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ARTIGO

UMA ANÁLISE PSICOSSOCIAL DE EXPERIÊNCIAS DE


VIOLÊNCIA HOMOFÓBICA VIVIDAS POR JOVENS LGBT JULIANA PERUCCHI
NO PERÍODO ESCOLAR Professora do Programa de
Pós-graduação em Psicologia
da Universidade Federal de
Juiz de Fora – UFJF
THE PSICOSSOCIAL ANALYSIS OF HOMOPHOBIC VIOLENCE SITUATIONS
LIVED BY YOUNG LGBT PEOPLE IN SCHOOL CARLA GOMES CORRÊA
Psicóloga formada pela UFJF,
foi bolsista de extensão do
Projeto Educação Sem
RESUMO: A escola é um lugar em que jovens ABSTRACT: The school is a place where young Homofobia no ano de 2010
LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros) LGBT (lesbian, gay, bisexual and transgender)
enfrentam, sistematicamente, discriminação por face systematically discrimination by colleagues, * O Projeto Educação sem
parte dos colegas, professores, dirigentes e servi- teachers, principals and school servers. In con- Homofobia – coordenado pelo
dores escolares. Em contrapartida, a escola é um trast, the school is a privileged venue to imple- Prof. Dr. Marco Aurélio Máximo
local privilegiado de implantação de políticas pú- mentation of public policies that promote the he- Prado, pesquisador da
Universidade Federal de Minas
blicas que promovam a saúde de crianças, ado- alth of children, adolescents and youth. This
Gerais (UFMG) – foi fruto da
lescentes e jovens. O presente artigo discute as article discusses the perceptions that young parceria entre o Núcleo de Direitos
percepções que jovens LGBT construíram acerca LGBT built about situations of homophobic vio- Humanos e Cidadania LGBT da
das situações de violência homofóbica vividas em lence experienced in his school years and pre- UFMG (Nuh/UFMG), prefeituras
seu período escolar e apresenta, por meio de rela- sents through accounts of life history research of municipais e grupos do
movimento social LGBT do Estado
tos de história oral, uma pesquisa de iniciação basic scientific research conducted in the context de Minas Gerais. Contando com
científica realizada com jovens LGBT do município of LGBT youth of Juiz de Fora. Data collection in- financiamento da Secretaria de
de Juiz de Fora, Minas Gerais. A coleta de dados cludes the tools of using oral history interviews Educação Continuada,
contemplou ferramentas da história oral, utilizan- recorded and analysis was developed by the me- Alfabetização, Diversidade e
Inclusão (Secadi) e da Secretaria
do-se de entrevistas semi-estruturadas. A análise thodology of discourse analysis of Michel Fou-
de Educação Superior (Sesu),
foi desenvolvida pela metodologia de análise do cault. This suggests that homophobia, as a sys- ambas vinculadas ao Ministério
discurso de orientação foucaultiana. Os resulta- tem of oppression and hierarchies through these da Educação (MEC), este projeto
dos constatam que a homofobia, enquanto siste- relations so natural and invisible violence situa- insere-se, dentro das diretrizes do
ma de opressão e de hierarquias, atravessa as tions experienced. Plano Nacional de Promoção da
Cidadania LGBT, no âmbito da
relações escolares de modo a naturalizar e invisi- Formação de Profissionais da
bilizar as situações de violência vivenciadas. KEYWORDS: homophobic violence, LGBT youth, Educação para a Promoção da
school. Cultura de Reconhecimento da
PALAVRAS-CHAVE: violência homofóbica, ju- Diversidade Sexual e da Igualdade
de Gênero.
ventude LGBT, escola.
** Pesquisa financiada pela
FAPEMIG (Demanda
Universal-2009), coordenado pela
Profa. Dra. Juliana Perucchi da
Universidade Federal de Juiz de
Entre os anos de 2010 e 2012, o projeto de extensão “Educação Sem Homofobia”* Fora (UFJF), integra um conjunto
e o projeto de pesquisa “O preconceito como dispositivo de legitimação da vio- de investigações desenvolvidas
por pesquisadores/as mineiros/as
lência: juventude LGBT, família e Saúde”** permitiram ao nosso grupo de pesqui- (UFJF/UFMG) acerca do tema da
sa contato direto com diferentes problemáticas que concernem à juventude homofobia e seus
desdobramentos no âmbito
LGBT. Problemáticas que se referem às experiências de sexualidade, de classe, de educacional, familiar e da saúde.
gênero, de militância, familiares, enfim, de variados campos da vida que são de Teve como objetivo analisar os
aspectos psicossociais dos
suma importância. processos de ruptura do vínculo
familiar por parte de jovens LGBT
Com a finalidade de aprofundar o conhecimento acerca da dinâmica psicosso- mineiros/as, compreendendo os
cial da homofobia, em suas manifestações interpessoais e na instituição escolar, impactos de tais processos na
saúde desses/as jovens. Este
apostamos em categorias de análise que nos permitam compreender importantes artigo compõe parte dos
aspectos ainda não problematizados dessas situações que envolvem modalidades resultados dessa investigação,
com recorte nos aspectos
de violência ainda não nomeadas. Neste intuito, partiu-se ao encontro de jovens relacionados à homofobia em
ambiente escolar.

Recebido em: 19/11/2012


Aprovado em: 27/04/2013

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que, vivenciaram sua sexualidade, ou significado por alguém dentro de um
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algum aspecto dela, em desacordo sistema de relações sociais. Portanto,
com a norma heterossexual vigente e neste relato de pesquisa, as constru-
que tais experiências de sexualidade ções de significados atribuídos à exis-
tenham se processado, de alguma for- tência e às circunstâncias são enfatiza-
ma, em período escolar. das. Dialoga também, nesse sentido,
Isto posto, este artigo se propõe a com a teoria narrativa, destacando a
problematizar as percepções que jo- experiência vivida e a construção de
vens lésbicas e gays construíram significados por meio da linguagem, o
acerca das situações de violência vi- que dá sentido aos acontecimentos
vidas em seu período escolar em de- (Feijó, 2002; Grandesso, 2000).
corrência de sua orientação não-he- Ainda nesta linha de diálogos, o re-
terossexual. Este relato de pesquisa lato também estabelece fronteiras de
apresenta, por meio da análise de his- reflexão com os estudos acerca do po-
tória oral, uma investigação científi- tencial de proteção, apoio e legitima-
ca realizada num contexto urbano, ção existente na relação com pessoas
com jovens gays e lésbicas residentes significativas (Dabas & Najmanovich,
em um município de médio porte da 1995; Aun, Vasconcelos, & Coelho,
zona da mata mineira. Trata-se de 2005; Soares, Feijó, Valério, Siquieri, &
uma pesquisa cujos resultados da Pinto, 2011) e os estudos sobre redes
análise têm amplo diálogo com dife- sociais, próximos do proposto por Slu-
rentes campos da psicologia, seja no zki (1998). Ainda na visão de diálogos
âmbito da intervenção comunitária, epistemológicos, devido à importância
da clínica e da psicologia escolar, dos relatos de história oral para a aná-
com foco nos grupos em contextos lise dos processos de construção e de
de vulnerabilidade. manutenção de situações de violência
Portanto, esta pesquisa parte da no cotidiano escolar, constata-se a ar-
abordagem foucaultiana para proble- ticulação de diferentes mecanismos
matizar os aspectos psicossociais das psicossociais, por um lado, na consti-
experiências de violência homofóbica tuição e manutenção da violência; e,
vividas por jovens LGBT no período por outro lado, na produção de catego-
escolar. A perspectiva deste relato de rias que se propõem a explicar como
pesquisa dialoga com as perspectivas esse preconceito se constitui como dis-
contempladas no âmbito deste perió- positivo de legitimação da violência
dico, a saber, a construtivista e do homofóbica no contexto escolar.
construcionismo social, uma vez que Estabelecendo diálogos com os refe-
compartilha da tese de que a realidade renciais citados, o artigo tem como
é construída pelo sujeito no contexto principal referência de estudos as teo-
em que vive por meio da linguagem e rias queer. Segundo Louro (1999), a
na convivência social. Orienta-se, nes- teoria queer pode ser vinculada às ver-
te sentido, no diálogo com tais pers- tentes do pensamento ocidental con-
pectivas, compartilhando da premissa temporâneo que, ao longo do século
de não procurar causas lineares para XX, problematizaram noções clássicas
os problemas humanos e sim relações, de sujeito, de identidade, de agência,
contextos e processos (Esteves de Vas- de identificação. A psicologia ganhou
concellos, 2005). Dessa forma, tam- referências teóricas importantes ao in-
bém parte-se do pressuposto de que corporar o conceito de gênero e ingres-
um problema só existe se ele é assim sar no rol de saberes que, a partir deste

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conceito e avançando em uma crítica a científicas, no âmbito jurídico*, na Uma Análise Psicossocial de
ele, problematizam o jogo do poder ao mídia e também no interesse público, Experiências... 83
Juliana Perucchi
redor das categorias de gênero. Uma evidenciando a crescente dissemina- Carla Gomes Corrêa
destas referências tem sido a filósofa ção de práticas violentas em relação
Judith Butler, uma importante teórica ao grupo LGBT. Ao se tratar da vio-
dos estudos queer. A perspectiva de lência homofóbica no âmbito escolar
Butler (2005) sobre o gênero como percebemos que esta é pouco aborda-
uma ficção cultural e como efeito per- da (Castro, Abramovay & Silva, 2004),
formativo de atos discursivos reiterati- mesmo em enfoques altamente rele-
vos é uma tese bastante cara a este vantes, como na realização de estudos
campo de estudos. acadêmicos e a criação de políticas
No tocante à instituição escolar, a públicas que visem a diversidade no
análise constata como a homofobia se interior das escolas. Como não sabe-
revela como mais uma forma de ma- mos o que ocorre em seu interior, po-
nutenção das hierarquias sociais que demos afirmar que todo e qualquer
sustentam mecanismos de exclusão de tipo de violência homofóbica acaba
indivíduos e de grupos sociais especí- sendo silenciada e tratada como atitu-
ficos e vulneráveis no âmbito dos di- de “normal” perante o indivíduo que
reitos. Em relação aos/às jovens não- não faz parte da norma, este acaba se
-heterossexuais, há indícios de calando mediante a violência sofrida,
possíveis efeitos em sua saúde, no to- fazendo-a perpetuar ainda mais ante
cante às consequências das diferentes o inferior, contrário ou anormal (Bor-
formas de violência (da injúria à agres- rillo, 2001). Dessa forma, os relatos
são física) sofridas no período escolar. das vivências de violência homofóbica
Aspecto que não pode ser aprofunda- na escola são ricas fontes de estudos
do na presente pesquisa, mas que me- para se entender como é a constitui-
rece a atenção de outros/as pesquisa- ção e como se dá a perpetuação da
dores/as da área. violência homofóbica nesse contexto,
Espera-se que os resultados dessa e, com isso, conhecer seus desdobra-
investigação subsidiem debates em mentos na vida dos que sofreram esse
torno da proposição de políticas públi- tipo de violência.
cas para juventude, considerando as De acordo com Rogério Junqueira
estratégias de enfrentamento da vio- (2007), a escola é um lugar em que jo-
lência homofóbica nas escolas, com vens LGBT enfrentam, sistematica-
inserção das diversidades no currículo mente, discriminações por parte de
escolar, como forma de discutir a colegas, professores, dirigentes e servi-
questão das diferentes discriminações, dores escolares. Nesse contexto, a
bem como garantir o respeito às múlti- RITLA (Rede de Informação Tecnoló-
plas possibilidades do exercício da se- gica Latino-Americana) realizou, no
xualidade. ano de 2008, um diagnóstico acerca da
violência e convivência nas escolas do
Distrito Federal abrangendo as últi-
ALGUNS APONTAMENTOS DOS mas séries dos Ensinos Fundamental e
ESTUDOS ACERCA DA HOMOFOBIA Médio. O estudo diagnosticou que a
discriminação mais marcante, seja por
Nos últimos anos, a temática da vio- alunos ou professores, foi a homofo-
lência homofóbica se tornou vertigi- bia. Em relação às práticas de violência * Ver Rios (2001) e Dias
nosamente relevante em pesquisas homofóbica nas escolas estudadas, (2006).

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surgiram relatos de “estudantes, os ma prevê a positividade da subjetiva-
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quais revelaram que, em determinadas ção, singularidade e produção da dife-
situações, chegam a ser agredidos não rença. Mas é contra essa subjetivação
apenas verbalmente, mas também fisi- que o poder opera, e o sujeito “só passa
camente” (Abramovay, Cunha & Calaf, a existir na medida de sua própria su-
2009). Já num estudo da Unesco em jeição às regulações” (Butler, 1997). Se
escolas de 15 capitais brasileiras, en- o indivíduo não se sujeita à norma,
volvendo professores, alunos e pais, esta cria uma fronteira entre práticas
denotou como a discriminação em tidas como lícitas e ilícitas (Foucault,
função da orientação sexual é constan- 2002).
te no contexto escolar. O estudo mos- A problemática da homofobia se
trou uma imensa rejeição à homosse- torna alarmante quando se trata de jo-
xualidade, cujos dados afirmam que a vens. Frequentemente, sua iniciação
discriminação contra homossexuais é da vida sexual se processa no período
mais abertamente assumida do que da adolescência ou no início da juven-
outras formas de discriminação (Cas- tude, trazendo consigo inúmeros
tro, Abramovay & Silva, 2004). eventos de iniciação para a vida adul-
Esses estudos colocaram em evidên- ta, os quais tornam esses jovens extre-
cia vários tipos de violência homofóbi- mamente vulneráveis. Entretanto,
ca que os jovens sofrem e que vão des- considerando as nuances que a homo-
de a violência simbólica até a violência fobia possui e que perpassam a socie-
física, e também vislumbra aqueles que dade, sobretudo, nos níveis institucio-
praticam esse tipo de violência. Nesse nais; a vivência da sexualidade, pelos
contexto, é alarmante pensar que as re- adolescentes e jovens, fora dos parâ-
lações fundamentadas no preconceito metros da norma heterossexual passa
e na discriminação que se revelam na a ser a prerrogativa para uma série de
sociedade, se repetem e se reformulam violências legitimadas pelo preconcei-
nas escolas (Gomes, 2002), e que esse to. Na escola, a violência homofóbica
fenômeno é cada vez mais perpetuado gera grande impacto na vida de quem
e os responsáveis pela escola não fo- sofre esse tipo de violência, e essa se
mentam ações para frear essa violência manifesta nos sentimentos, na digni-
e trabalhar com a diversidade em seu dade, no sucesso ou fracasso escolar.
interior, a qual é a mesma que encon- Tornando o indivíduo excluído do cír-
tra-se fora dos muros da escola. culo social escolar e o fazendo por ve-
Toda e qualquer manifestação pre- zes até mudar de escola e até mesmo
conceituosa ou discriminatória dentro abandonar os estudos.
das escolas é a manifestação da legiti- A Educação, segundo a própria Lei
mação do poder disciplinar explanado de Diretrizes e Bases da Educação Na-
por Michael Foucault (1992; 2006), cional (LDB), é o caminho para asse-
onde este poder não se exerce de ma- gurar a todos os brasileiros a formação
neira coercitiva, mas sim na forma de comum indispensável para o exercício
um discurso verdadeiro da realidade. da cidadania e fornecer-lhes os meios
A norma é legitimada pelos discursos para progredir na vida. Portanto, a es-
dos dispositivos do poder, ela circula cola possui importante papel enquan-
através dos mesmos, e a escola, por ser to instituição social de formação dos
um desses dispositivos, perpetua a sujeitos. De acordo com Gimeno Sa-
norma da heterossexualidade. Em cristán e Peréz Goméz (2000), a escola
contrapartida, a resistência a essa nor- possui as funções reprodutiva, educa-

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tiva e compensatória. Reprodutiva ao professores. Em contrapartida, algu- Uma Análise Psicossocial de
passo que visa a socialização do indiví- mas entrevistadas apontaram que o Experiências... 85
Juliana Perucchi
duo, e a reprodução social e cultural curso trouxe reflexões sobre suas ma- Carla Gomes Corrêa
como requisito para a sobrevivência neiras de agirem e sobre suas posturas
na sociedade. Em sua função educati- preconceituosas. Os depoimentos
va deve prover aos indivíduos conhe- também mostraram o medo de que a
cimentos, ideias, habilidades e capaci- temática da diversidade sexual servis-
dades formais, e, também, disposições, se de estímulo e contagiasse uma sexu-
atitudes, interesses e pautas de com- alidade fora da norma.
portamento. Na função compensató- No contexto internacional, estudos
ria deve atenuar, em parte, os efeitos têm revelado que os desejos e as práticas
da desigualdade e preparar cada indi- homossexuais, bem como a homofobia,
víduo para lutar e se defender nas me- são fenômenos que incidem não apenas
lhores condições possíveis, no cenário em adultos (Lancaster, 1999; Allen, Gli-
social. Assim, a escola tem como obje- cken, Beach, & Naylor, 1998). No entan-
tivo básico a socialização dos alunos to, estudos que tratam dessa temática
para prepará-los para sua incorpora- com adolescentes e jovens são pouco
ção no mundo do trabalho e torná-los significativos no Brasil (Rios, 2003,
indivíduos produtivos e que se incor- 2004; Taquette, Santos, & Barros, 2005;
porem à vida adulta e pública. Souza, 2006). Neste sentido, torna-se re-
A escola também deve ser vislum- levante os estudos que priorizem a vio-
brada como um lugar privilegiado lência homofóbica direcionada aos jo-
para a implantação de políticas públi- vens, atravessando as instituições da
cas que apontem para a promoção de nossa sociedade. Dessa forma, com a
saúde das crianças, adolescentes e jo- obtenção de informações acerca desse
vens (Altmann, 2003). Deve-se ressal- fenômeno social, podem-se criar estra-
tar a relevância de se constatar como tégias de ação e enfrentamento da vio-
esta lida com a violência homofóbica, lência homofóbica.
e também se está inserida em projetos Nesse sentido, como destacado no
sociais para a promoção de uma inclu- início do artigo, o presente estudo inte-
são da diversidade sexual nesse con- gra este campo de investigações e con-
texto. templa uma pesquisa de iniciação
No estudo realizado por Meyer e científica que procurou analisar relatos
Borges (2008), a partir de um curso de de história oral de jovens LGBT acerca
capacitação de professores para o da violência homofóbica que vivencia-
combate à homofobia no Rio Grande ram na escola e os desdobramentos
do Sul, verificou-se que a grande destas situações de homofobia em suas
maioria dos professores relatou gran- vidas. A pesquisa pretendeu elucidar
des dificuldades em lidar com o tema questões pertinentes para a implemen-
na sala de aula, especialmente pela de- tação de políticas públicas para a ju-
volutiva dos alunos serem de discrimi- ventude no âmbito da educação para o
nação e violência. A amostra apresen- enfrentamento à homofobia.
tou como queixa a falta de material
didático para abordar a sexualidade de
forma transversal, e também a falta de MÉTODO
preparo para tratar da sexualidade na
sala de aula, pelo fato dessa temática Partindo da hipótese de que a escola
estar ausente em suas formações de é um espaço institucional de manuten-

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ção e perpetuação/reprodução da vio- ambiente escolar. Se considerarmos
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lência homofóbica, pode-se conside- que “a memória é um instrumento
rar que as experiências dos sujeitos precioso se desejamos construir a crô-
nos contextos educacionais são impor- nica do cotidiano” (Bosi, 2003) então,
tantes fontes de análise. Devido à rele- os relatos de histórias de vida permiti-
vância das experiências no contexto ram, por meio deste processo de in-
desta problemática, o relato de história vestigação científica, o acesso a infor-
de vida torna-se uma estratégia meto- mações que contemplam experiências
dológica importante. A metodologia vividas por jovens LGBT, no cotidiano
contempla um enfoque qualitativo, de sua vida escolar, caracterizadas
tendo como procedimento de coleta como situações de violência homofó-
de informações a aplicação de entre- bica. Com a análise das narrativas po-
vistas semi-estruturadas pautadas nos demos entender a complexidade de
parâmetros metodológicos da história um acontecimento.
oral, com informantes de uma amostra A pesquisa foi submetida à avalia-
de conveniência, constituída por satu- ção pelo Comitê de Ética em Pesquisa
ração (Marre, 1991). da UFJF tendo parecer favorável. As-
A história oral é uma metodologia sim, após a aprovação dos aspectos de
voltada para a experiência de vida cuidados éticos da pesquisa, foi inicia-
daquele que está narrando. Os traba- da a etapa de contato com os/as parti-
lhos em história oral devem seguir os cipantes da pesquisa e coleta de dados.
seguintes procedimentos: a escolha
das colônias, a formação de rede, a
entrevista, a transcrição, a conferên- PARTICIPANTES
cia, o uso autorizado dos textos e ar-
quivamentos dos depoimentos Participaram 10 jovens LGBT residen-
(Meihy, 2002). Nesse caso, foi estabe- tes na cidade de Juiz de Fora. Os crité-
lecida como “colônia” os grupos de rios de inclusão consistiram em três:
jovens LGBT de Juiz de Fora com 1) autoidentificação do/a jovem en-
idades entre 18 e 30 anos. E na com- quanto pessoa LGBT, 2) ter, em algum
posição da rede, a qual é mais especí- momento de sua vida escolar, sido alvo
fica, estão os jovens LGBT com ida- de manifestações homofóbicas na es-
des entre 18 e 30 anos que tenham cola e 3) estar com idade entre 18 e 30
abandonado os estudos por pressão anos. A amostra foi composta por cin-
da heteronormatividade compulsória co gays; três lésbicas e duas travestis.
e/ou que sofreram violência homofó- Todos/as os/as participantes assina-
bica no período escolar. A perspecti- ram o Termo de Consentimento Livre
va metodológica buscou visualizar a e Esclarecido.
teia relacional em que a pessoa está
ou esteve envolvida compreendendo
quem são as pessoas significativas INSTRUMENTOS E PROCEDIMENTOS
para ela por meio das diferentes rela-
ções inter-pessoais que estabelece em Optou-se por utilizar junto ao grupo
seus diferentes contextos familiar e de jovens um roteiro de entrevista se-
social (Sluzki, 1998). miestruturada de aplicação individual.
Essa pesquisa se volta para a análise O instrumento era composto por sete
da construção e manutenção do coti- perguntas organizadas, cada uma, a
diano de violência homofóbica no partir de, pelo menos, uma das catego-

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rias de análise que compõem a proble- (Luca, 21 anos) Uma Análise Psicossocial de
mática da pesquisa. Experiências... 87
Juliana Perucchi
A coleta dos dados iniciou-se após “... violência verbal assim... só tinha Carla Gomes Corrêa
parecer favorável do Comitê de Ética essa pessoa durante a quinta a oitava
em pesquisas da Universidade Federal série que foi...”.
de Juiz de Fora (UFJF). O termo de con- (Breno, 20 anos)
sentimento livre e esclarecido foi obtido,
antes de começar a entrevista com os/as “A violência verbal, as pessoas se re-
participantes. As entrevistas foram ferirem, as pessoas debocharem, isso
agendadas de acordo com a possibilida- sempre teve e tanto no meu período
de e disposição das/os informantes. na escola básica como eu ainda ouço
isso no ensino superior (...) Não foi
nada tão grave, né?”
ANÁLISE DOS DADOS (Diana, 23 anos)

A análise dos dados se deu por meio Os relatos destacam elementos co-
do método de análise do discurso de muns às experiências vivenciadas pe-
orientação foucaultiana, ancorada teo- los diferentes sujeitos, dentre eles
ricamente nas teorias criticas em Psi- o fato de que a violência verbal sofrida
cologia Social e nos estudos das teorias no interior das escolas era, frequente-
queer, sobretudo, as de orientação pós- mente, praticada sempre e sistematica-
-estruturalista. mente pelas mesmas pessoas. Outra
característica comum nas falas dos in-
formantes é a não percepção das situa-
AS PERCEPÇÕES DE JOVENS LGBT ções como sendo violentas, estas “pia-
ACERCA DAS SITUAÇÕES DE dinhas” e “comentários” não eram
VIOLÊNCIA HOMOFÓBICA VIVIDAS NO vistos como violência homofóbica,
PERÍODO ESCOLAR “nada grave”, mas sim como algo nor-
mal, corriqueiro e que “provavelmente
Entender o conceito de violência é ocorreria no interior de qualquer outra
percebê-lo como incluindo ações que escola”. De acordo com Prado e Ma-
não são necessariamente passíveis de chado (2008), o preconceito se estrutu-
sanção penal, nesse sentido, incivilida- ra através de alicerces construídos por
des, agressões verbais, humilhações e uma dinâmica na naturalização de in-
violência simbólica se enquadram nas feriorizações sociais. O que sustenta o
atitudes tidas como violentas (Abra- preconceito é que sua lógica nos impe-
movay, Cunha & Calaf, 2009). Quando de de enxergar as razões que justificam
submetidos a perguntas referentes à as inferiorizações naturalizadas por
violência homofóbica geral e no con- seu mecanismo. Portanto, o preconcei-
texto escolar, considerando 100% dos to não nos deixa identificar a percep-
entrevistados, a violência homofóbica ção da realidade, o preconceito impede
se dava de maneira verbal, concreti- que as pessoas vejam sua própria ce-
zando-se principalmente sob a forma gueira diante das situações de discri-
de piadinhas. minação e preconceito (Prado & Ma-
chado, 2008). Nas palavras dos autores,
“... piadinhas várias vezes assim que “se há um elemento paradoxal no pre-
acho que pode ser considerado um conceito é que ele nos impede de ‘ver’
tipo de violência né...”. que ‘não vemos’ e ‘o que é que não ve-

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mos’, ou seja, ele atua ocultando razões trabalho ético sobre si mesmo, carac-
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que justificam determinadas formas de terizado pela obrigatoriedade de colo-
inferiorizações históricas, naturaliza- car tais regras em prática.
das por seus mecanismos” (Prado &
Machado, 2008, p. 67). “... era aluno que ficava lá, tendo
Outro elemento que atravessa, de classificação da série acima da mé-
modo geral, a fala dos informantes é dia global do ano, eu sempre ficava
que em relação ao desempenho esco- nos primeiros, sabe”.
lar, todos afirmaram que se saíram (Luca, 21 anos)
muito bem durante seu percurso na
escola, e três dos cinco entrevistados “Eu acho que por eu me assumir ho-
relataram serem conhecidos em suas mossexual eu me tornei, eu tive uma
escolas devido ao seu “destaque no bo- certa fama dentro da escola; e essa
letim”. Assim, ocupar outras posições fama foi contribuída também pelas
de sujeito – mais “empoderadas” – no minhas notas, eu sempre tive notas
âmbito das relações sociais no contex- altíssimas, entendeu? Minhas notas
to da escola, foi uma estratégia recor- são todas acima de 80 quando o limi-
rente nas histórias orais destes jovens. te é 100, entendeu? E pelo fato de eu
Esta ênfase aos estudos e às atividades gostar de matemática, e matemática
escolares deve ser lida a partir dos é uma disciplina importante dentro
marcadores de constituição dos sujei- da escola, essa fama se evidenciava
tos na vida social. Classe é um deles, ainda mais, porque alunos que são
considerando que a amostra contem- bem-sucedidos na disciplina de ma-
plou jovens de camadas médias, uni- temática são vistos ainda com outros
versitários que conseguem ter nos es- olhos, entendeu? Então, eu sempre
tudos uma referência importante. tive uma certa fama dentro da esco-
Encontrar nos estudos uma forma de la, e, por gostar de estudar meu bole-
reconhecimento no contexto escolar, tim sempre foi azul.”
entre os pares e também entre os pro- (Diana, 23 anos)
fessores, parece ser um exercício de
cuidado de si, no sentido foucaultiano “Eu acho que eu fui um bom aluno,
do termo. Dito de outro modo, os in- sempre fui, acho que muito bom alu-
divíduos agem de modo a operarem no, assim, inclusive. Nunca tive re-
como sujeitos em relação aos códigos clamação de professor nenhum, pelo
prescritivos disponíveis em sua cultu-
contrário, os professores sempre gos-
ra, “ser bom aluno” certamente é ape-
taram de mim, eu acho que, tipo as-
nas um deles. Mas vale lembrar que
sim, o que foi até de certa forma bom
existem diferentes níveis de consonân-
pra mim, porque por ser homossexu-
cia à prescrição. Tais gradações em re-
al, eu sempre, depois que eu me des-
lação às formas de prescrição foram
cobri, eu sempre tentei ser o melhor
denominadas por Foucault como
aluno e como as melhores pessoas,
“substância ética”, que designa os mo-
me falavam que eu era incapaz por
dos como o indivíduo se constitui
ser homossexual, que era diferente
como sujeito moral (Foucault, 2006).
então, tipo assim, eu estudava muito
Portanto, a forma como o sujeito esta-
belece sua relação com tais regras, ou pra ser o melhor aluno e, tipo assim,
seja, seus modos de sujeição consti- mostrar que eu sou tão capaz quanto
tuem-se por meio da elaboração do qualquer outra pessoa. Sempre tive

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isso dentro de mim. Sempre corri funcionar a regularidade das condu- Uma Análise Psicossocial de
Experiências... 89
atrás mesmo, então, sempre fui um tas (Perucchi, 2012, p.88).
Juliana Perucchi
bom aluno.” Carla Gomes Corrêa
(Marcos, 24 anos) É nesta perspectiva que se consegue
entender o contexto de forças que fa-
Os fragmentos de fala destacados zem com que mediante situações de
remetem novamente ao princípio do violência homofóbica vividas, os en-
cuidado de si, princípio norteador da trevistados se posicionem de maneira
cultura ocidental, conceito que permi- passiva, não enfrentando tais situações
te problematizar na contemporanei- violentas, ou ainda, não as traduzindo
dade os processos de incorporação de enquanto tal. É frequente o relato de
disposições normativas que produzem aceitação da condição de ser alvo de
– pela repetição citacional dos discur- chacotas, fofocas, injúrias.
sos – as performances de gênero. Pro-
cessos pelos quais o sujeito contempo- “Acho que eu não fazia nada, tipo,
râneo reclama para si certa identidade. acho que eu ria, assim, quando eles
Já se teve a oportunidade de proble- falavam alguma coisa; e saía, e de-
matizar em outro texto (Perucchi, pois fingia que não tinha acontecido,
2012) o que implica reclamar uma assim. E depois, eu não gostava de
identidade. Consiste em descrever, passar perto desses meninos; coisa
por meio de múltiplos conhecimentos assim entendeu? Mas nunca tive um
e variadas práticas, aquilo que se reco- confronto direto com nenhum deles.”
nhece como sujeito, por si e pelos ou- (Luca, 21 anos)
tros. Neste sentido, “reclamar uma
identidade é, portanto, exercer um “Eu resolvi ‘deixar quieto’ e deixar
conjunto de práticas por meio das passar, e como na época eu nem era
quais o sujeito, ao mesmo tempo em assumida, né?! Eu não podia rebater,
que cuida de si, se produz. Essa pro- senão, eu meio que ia me assumir,
dução se dá, fundamentalmente, pela então, deixei quieto.”
inscrição corporal de certas disposi- (Tatiana, 19 anos)
ções sociais, do que se convencionou
chamar de sistema sexo/gênero” (Pe- “Pra mim, me prejudicou estar falan-
rucchi, 2012: 88). Neste sentido, pode- do, porque aí eu me senti muito erra-
-se afirmar ainda que: do, assim, em certo sentido. Achei
que quem tava errado era eu, então,
Trata-se de um sistema pelo qual se nunca relatei, e quando acontecia eu
articula um cruzamento estratégico ficava quieto, tipo assim, eu nunca
de dispositivos normativos da sexua- fui de me incomodar com isso. Eu
lidade de modo a delimitar binaria- ouvia e deixava pra lá, sabe ? Tipo
mente características de masculini- assim, porque eu fui, era meio meti-
dade e de feminilidade, categorizando do, assim, sabe? Tinha, assim, o na-
e hierarquizando práticas corporais. riz muito em pé. Talvez porque eu
É pelo sistema sexo/gênero (...) que se fosse inteligente, entendeu? Então, ti-
estabelece a institucionalização das nha certas regalias na escola. Aí
condutas corporais heteronormati- quando eu ouvia, assim, eu olhava
vas. Esta institucionalização, por sua pra pessoa assim, e pensava “hum...
vez, estabelece as regras que fazem eu sou melhor que você”. Entendeu?

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Eu pensava isso comigo, tinha essa ma heterossexual. A esses sujeitos
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coisa assim.” “anormais”, estão reservados lugares
(Marcos, 24 anos) específicos na vida em sociedade. Nes-
se sentido falamos de sujeitos incluí-
A aceitação das fofocas e injúrias é dos dentro de uma hierarquia social
o resultado de repetições constituti- na qual lhes cabem posições sempre
vas de regulações de gênero, ou seja, inferiores (Eribon, 2008). Nesse caso,
reiteração da norma corpo-gênero- o que faz a injúria funcionar como sis-
-sexualidade para manter a ordem tema é a racionalidade que hierarquiza
heterossexual (Butler, 2005), dessa diferenças, valorizando semelhanças e
forma, a construção de identidade é rechaçando as diferenças no intuito de
decorrente da repetição de normas estabelecer desigualdades. Semelhan-
constitutivas, e essa regulação se dá ça e diferença são faces de uma mesma
de maneira específica emitindo seus moeda, dialéticas importantes da vida
efeitos constitutivos sobre a subjetivi- em sociedade, não carregam, em si,
dade. Nesse sentido determina a hierarquias. A transformação das dife-
construção do sujeito gendrado, se- renças em desigualdades é histórica e
gundo Judith Butler (2006). social, não natural. Aliás, diferença e
A injúria, neste contexto, nos ajuda semelhança são elementos constituti-
a compreender como a norma atribui vos das relações sociais e, consequen-
um lugar particular no mundo àquele temente, das redes de apoio social que
ao qual ela é dirigida, a norma masca- as pessoas fazem parte.
rada na injúria, determinando àquele Como afirmam Marra e Feijó (2004),
que sofre a violência homofóbica um na rede de apoio social é importante
ponto de vista sobre o mundo, uma ser, concomitantemente, semelhante e
percepção particular, uma construção diferente, pois essa dinâmica das rela-
da subjetividade. Produz ainda efeitos ções sociais fortalece as relações e das
profundos na consciência de um indi- pessoas que fazem parte dela. Portanto,
víduo pelo que ela diz a ele: “Eu te assi- quando o/a jovem escolhe seus pró-
milo a”, “Eu te reduzo a” (Eribon, prios caminhos e passa a ter a própria
2008). perspectiva de vida validada pela rede
Neste sentido, a injúria institui e social que constitui, esse processo con-
perpetua a separação entre os “nor- tribui tanto para o desenvolvimento
mais” e os “anormais”, fazendo com individual, quanto para a afirmação da
que esta segregação opere, desde en- identidade (Marra & Feijó, 2004).
tão, a partir da própria consciência dos O presente relato de pesquisa não
indivíduos que foram alvo da injúria. parte da epistemologia construtivista e
Podemos então constatar que a injúria construcionista social, mas dialoga
“diz a um indivíduo” o que ele é, na com tais perspectivas, na medida em
medida em que “faz com que ele seja” que considera a realidade como produ-
o que ele é (Martins, 2010). to da ação e da percepção do sujeito no
Dessa forma, a marca da injúria de- mundo em que vive. Percepção e ação
limita, diante deste desviante, modali- mediadas inexoravelmente pela lin-
dades e possibilidades de existência guagem, no convívio social. Neste sen-
publicamente legítimas. E essas possi- tido, vale destacar que um importante
bilidades legítimas de existência não fundamento destas abordagens com as
abarcam os sujeitos cuja expressão da quais aqui se dialoga diz respeito à no-
sexualidade escapa e questiona a nor- ção de rede social. As características

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estruturais da rede social incluem a ou á injúria em relação à diversidade Uma Análise Psicossocial de
quantidade de pessoas com as quais o da orientação sexual ou à identidade Experiências... 91
Juliana Perucchi
sujeito tem contato social; a densidade de gênero destes/as jovens. A rede de Carla Gomes Corrêa
e a qualidade destes contatos, que se relações sociais estabelecida por esses/
refere à ligação entre pessoas e destas as jovens durante o período escolar –
com instituições e grupos; composição especificamente no que se refere às
da rede, que incluem familiares, ami- pessoas com as quais esse/a jovem
gos, conhecidos; dispersão das redes, pode assumir livremente sua identida-
que variam entre as limitadas a deter- de de gênero como transexual e/ou
minados territórios e lugares, ou até orientação sexual do desejo não-hete-
mesmo a um bairro ou uma comuni- rossexual – fica exclusivamente restri-
dade, ainda que dispersas geografica- ta a amigos/as (também não-heteros-
mente. Outro elemento referente às sexuais), quando não, reclusa e
características das redes sociais diz res- limitada ao universo do “armário”**.
peito à heterogeneidade ou à homoge- Cada encontro com uma nova tur-
neidade dos membros, em que o grau ma de estudantes, para não falar de um
de semelhança entre os indivíduos, novo chefe, assistente social, gerente
como a idade, a condição socioeconô- de banco, senhorio, médico, constrói
mica, são elementos fundamentais a novos armários cujas leis característi-
serem considerados (Sluzki, 1998). cas de ótica e física exigem, pelo me- * Ainda que não tenhamos
intencionalmente procurado
As narrativas produzidas no âmbito nos da parte de pessoas gays, novos abordar os cinco quadrantes do
desta pesquisa permitiram à equipe levantamentos, novos cálculos, novos chamado “mapa de rede”:
uma fértil fonte de material para análi- esquemas e demandas de sigilo ou ex- família, amizades, relações de
trabalho, relações comunitárias
se, assim, na medida em que cada in- posição. Mesmo uma pessoa gay assu- e relações com sistemas de
formante contextualizava sua história mida lida diariamente com interlocu- saúde (Sluzki, 1998); elementos
relacionados a eles apareceram,
escolar, ia-se delineando algo próximo tores que ela não sabe se sabem ou em maior ou menor grau, nas
à concepção de mapa de rede social* não. É igualmente difícil adivinhar, no narrativas das/os informantes
da pesquisa.
(Sluzki, 1998), mostrando proximida- caso de cada interlocutor, se, sabendo,
** “Armário” é, ao mesmo
des e distâncias de pessoas significati- considerariam a informação impor- tempo, uma categoria analítica,
vas no âmbito familiar, na escola, na tante. (...) O armário gay não é uma trabalhada no âmbito acadêmico
por Eve Sedgwick (2007); e
vizinhança, nas relações de amizades, característica apenas das vidas de pes- também, uma categoria nativa,
a partir das instituições as quais o/a jo- soas gays. Mas, para muitas delas, ain- usada por pessoas LGBT para
vem tinha e tem acesso. Este mapea- da é a característica fundamental da designar a situação de
anonimato das identidades e de
mento permitiu visualizar a teia rela- vida social, e há poucas pessoas gays, invisibilidade das práticas
cional em que o/a jovem esteve por mais corajosas e sinceras que se- sociais-sexuais, enquanto
pessoas LGBT, no âmbito da
envolvido/a nas situações de homofo- jam de hábito, por mais afortunadas vida pública. Este termo aponta
bia no período escolar, compreenden- pelo apoio de suas comunidades ime- o armário, enquanto categoria
analítica, como um dispositivo
do quem são as pessoas significativas diatas, em cujas vidas o armário não de regulação da vida de gays e
para ela naquelas situações, por meio seja ainda uma presença formadora lésbicas; mas também, de
heterossexuais em seus
das diferentes inter-relações que se es- (Sedgwick, 2007, p. 22). privilégios de visibilidade de
tabeleceram em todo o contexto en- No caso dos/as jovens interlocuto- suas práticas sociais-sexuais e
volvido. Neste sentido, no que se refere res dessa pesquisa, as redes sociais fa- de hegemonia de valores da
heterossexualidade compulsória.
ao apoio de pessoas significativas em miliares, por exemplo, não foram acio- Nesta perspectiva, o armário
relação às situações vividas no período nadas para o enfrentamento à não é algo exclusivo da vida de
pessoas homossexuais
escolar, não há relatos de qualquer ma- homofobia no contexto escolar, exata- (Sedgwick, 2007),
nifestação de suporte, direto ou indi- mente porque a família, assim como a contemplando um complexo e
generalizado sistema de (in)
reto, seja por parte da escola, seja por escola, é uma instituição forjada no visibilidade e (des)ocupação da
parte da família, frente às “piadinhas” seio de uma sociedade homofóbica e, vida pública.

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portanto, tão atravessada e constituída século XX respondem – e, portanto,
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pelo preconceito quanto esta. Enquan- evocam – as incoerências e contradi-
to jovens heterossexuais encontra- ções da heterossexualidade compulsó-
riam, frequentemente, uma abertura ria (Ibid., 39-40).
para falar acerca das “piadas”, ofensas e A escola – enquanto instituição que
injúrias sofridas na escola, em relação reproduz a lógica normativa da hete-
a qualquer outro marcador social (dis- rossexualidade compulsória – funcio-
criminações por condição econômica, na efetivamente como dispositivo de
por raça/etnia, por religião, ou por re- perpetuação da invisibilidade e desle-
sidir em um bairro estigmatizado na gitimação das múltiplas e variadas for-
cidade, etc.) com o marcador de gêne- mas de exercício pleno e sadio da sexu-
ro – que remete à orientação do desejo alidade. Ainda no que se refere a “sair
sexual e à identidade – ocorre que, o/a do armário”, a pesquisadora Guacira
jovem que sofreu a injúria, não encon- Lopes Louro afirma que a escola é:
tra na rede social familiar a abertura
para expor tranquilamente sua condi- (...) sem dúvida, um dos espaços
ção não-heterossexual. Consequente- mais difíceis para que alguém “assu-
mente, não se encontrará à vontade ma” sua condição de homossexual ou
para compartilhar com seus familiares bissexual. Com a suposição de que só
as violências sofridas na escola, vio- pode haver um tipo de desejo e que
lências essas atreladas a essa condição. esse tipo – inato a todos – deve ter
Isso se deve ao fato de que assumir como alvo um indivíduo do sexo
sua orientação sexual ou identidade de oposto, a escola nega e ignora a ho-
gênero, remete à visibilidade de uma mossexualidade (provavelmente
identidade erótica. Então, em uma si- nega porque ignora) e, desta forma,
tuação de “saída do armário”, seja para oferece muito poucas oportunidades
um amigo, uma amiga, um professor, para que adolescentes ou adultos as-
ou parentes, é fundamental considerar sumam, sem culpa ou vergonha, seus
o que Eve Sedgwick já constatou acer- desejos. O lugar do conhecimento
tadamente: neste processo que envol- mantém-se, com relação à sexualida-
vem situações de assumir-se perante de, como lugar do desconhecimento e
um outro que lhe é significativo, “a da ignorância (Louro, 1999, p. 30).
identidade erótica da pessoa que assis-
te à revelação está provavelmente im- O perfil das escolas que os entrevis-
plicada na revelação e, portanto, será tados estudaram era bastante diferente,
perturbada por ela” (Sedgwick, 2007). bem como a maneira que se sentiam
A autora continua afirmando que: diante desse contexto. Este variava des-
Isso é verdadeiro, em primeiro lugar de o cenário militar, público e particu-
e em geral, porque a identidade erótica lar, onde apenas uma entrevistada rela-
não deve ser nunca circunscrita em si tou como se sentia bem dentro da
mesma, não pode ser nunca não rela- escola, dizendo ter sido sua educação a
cional, não deve ser percebida ou co- causa máxima de sua vontade de ser
nhecida por alguém fora de uma professora. No que se refere ao papel da
estrutura de transferência e contra- escola no combate à homofobia, cons-
transferência. Em segundo lugar, e de tatou-se que todos/as os/as participan-
maneira específica, é verdadeiro por- tes da pesquisa entendem que a escola
que as incoerências e contradições da não deve agir de maneira a manter a
identidade homossexual na cultura do heterossexualidade como única possi-

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bilidade de exercício legítimo da sexu- desnaturalizar o gênero, como estraté- Uma Análise Psicossocial de
alidade dos/as alunos/as, mas sim, tra- gia de combate à violência normativa Experiências... 93
Juliana Perucchi
balhar, desde muito cedo, com as que encontra nas instituições sociais, Carla Gomes Corrêa
crianças, as diferentes e múltiplas pos- sobretudo, na família e na escola, dis-
sibilidades de exercício da sexualidade positivos de produção de verdades que
que existem em nossa sociedade. regulam a vida social.
A escola se processa efetivamente
“Eu acho que a escola seria no senti- enquanto instituição heteronormativa
do de educar mesmo desde cedo as por excelência, uma vez que não se en-
crianças assim, pra mostrar que o contra fora dos pressupostos impetra-
certo não é ser hetero assim, que não dos pelas interpelações cotidianas
tem certo nem errado entendeu? que acerca da sexualidade que atribuem
ser hetero acaba que culminou que é um caráter natural e evidente à hete-
o que a sociedade escolheu como cer- rossexualidade (Pocahy & Nardi,
to, mas, que não é certo sabe, não 2007). Assim, a reiteração da norma
tem certo na sexualidade assim, e eu corpo-gênero-sexualidade, base para a
acho que a escola tinha que ter esse heteronormatividade, se institui no
papel porque você crescendo com ambiente escolar por meio da regula-
essa concepção diminui muito o pre- ção do gênero, como forma de garantir
conceito, assim, porque você crescen- a ordem heterossexual.
do achando que cada um pode ser
livre pra fazer o que quer porque você “Ah, eu acho que devia, tipo assim, as
vai estranhar quando você ver dois professoras deviam explicar, esclare-
homens de mão dadas ou quando cer pras crianças, que isso é uma coi-
você ver uma pessoa do sexo mascu- sa normal assim, a gente não deve... é
lino que age de maneira afeminada, uma coisa comum, não deve agir
independente dela ser gay ou não; ou com... tipo, com medo, com repressão,
uma mulher que tem um comporta- com surpresa por uma pessoa gostar
mento dito masculino, assim, inde- de uma pessoa do mesmo sexo.”
pendente da orientação do desejo (Breno, 20 anos)
dela, sabe.”
(Luca, 21 anos) “Eu acho que é essencial né, e acho
que é o lugar onde você tá formando
Como afirmam Fernando Pocahy e pessoas, então é ali que você tem que
Henrique Caetano Nardi (2007), a discutir tudo, tudo que você puder
problemática da livre expressão da se- discutir você tem que discutir da me-
xualidade como um direito de cidada- lhor maneira possível sem nenhuma
nia é bastante pertinente no contexto visão preconceituosa, mostrando to-
brasileiro, pois, nas palavras dos auto- dos os lados, porque é dali que vão
res, “as marcas da desigualdade social sair os cidadãos e é ali que você tem
reforçam aquelas da discriminação li- que formar pessoas que não façam
gada à orientação sexual e às perfor- esse tipo de distinção.
mances de gênero” (Pocahy & Nardi, (Tatiana, 19 anos)
2007, p. 47). Nesta perspectiva, os
fragmentos de fala destacados permi- Considerando que as práticas se-
tem problematizar em suas enuncia- xuais tidas como não normais, ou seja,
ções as análises propositivas trazidas fora da norma heterossexual, colocam
por Judith Butler, em sua tentativa de em xeque a estabilidade do gênero, é

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possível entender o lugar de abjeção “Hoje em dia é essencial a escola par-
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em que elas se encontram no âmbito ticipar disso e ter uma postura em
escolar, em termos de uma sexualida- prol, sabe, pra ajudar. Sabe, perce-
de possível e legítima de ser experien- bendo, tipo assim, tentando não re-
ciada, naquilo que Judith Butler define produzir padrões. O que acontece,
como a possibilidade de uma vida in- eles só reproduzem padrões pras pes-
teligível e vivível. soas. Igual eu, por exemplo, quando
minha mãe falou comigo, eu achei
“Bom, a escola, primeiro, deveria que eu que tava errado. E a escola re-
considerar a homofobia como um forçava isso, essa coisa de que eu era
tema transversal de suma importân- errado. Na época, tipo assim, todo o
cia, sabe? É importante falar tam- ensino já estava voltado pra um pa-
bém de sexualidade, de árvores, de drão, um padrão hetero, que já exis-
meio ambiente, mas a homofobia tá te. Quando se tem uma coisa assim,
aí, cada vez mais eminente sabe e se não um trauma, mas passa por uma
encontram muito alunos homossexu- coisa dessas, e chega dentro da esco-
ais dentro da escola sabe, e eles pas- la, e a escola só reforça isso, você se
sam por muita coisa. Então, eu acho sente mais pressionado a se enqua-
que tem que ser feito um trabalho, drar. E se você não consegue se en-
entendeu? Pelo menos, se fala muito quadrar, se sente cada vez mais, sei
em semanas culturais dentro das es- lá, desvinculado de tudo que tá acon-
colas, então, deveria é financiar esse tecendo, meio fora de tudo, você não
tema. Deveria propor esse tema pros pode participar, né? Então, eu acho
alunos, trabalhar coletivamente com que a escola é essencial tentar modi-
as pessoas que se assumem assim ficar esse aspecto. Ainda mais com
dentro da escola, ajudar aqueles alu- uma criança, assim, desde cedo, você
nos que ainda não se descobriram e mostrar pra criança que existem vá-
que têm medo... entendeu, de se as- rias possibilidades, que possibilidade
sumirem por conta do comporta- não é uma só, não um par ou, enfim,
mento dos alunos entendeu, então eu homem e mulher. Mas que existem
acho que a escola deveria sim propor várias outras possibilidades, não só
a homofobia como um tema bem com relação a sexualidade, mas com
eminente, com uma importância em outras coisas, que possibilidades exis-
um dos temas transversais.” tem e são várias e nenhuma delas tá
(Diana, 23 anos) errada ou certa, são possibilidades.
Acho que se a escola procurasse ensi-
Sem dúvida, uma das expressões nar dessa forma e criar um ambiente
mais fortes da heteronormatividade é de possibilidades, seria muito mais
a homofobia. Entretanto, é importan- interessante e produtivo, pra todo
te destacar que o termo “homofobia” mundo.”
apresenta problemas do ponto de vis- (Marcos, 24 anos)
ta analítico, pois remete à ideia de “fo-
bia”, ou seja, a algo inerente às instân- Para Marilena Chauí (2007), o espa-
cias psíquicas, da ordem do não ço público no Brasil tem se caracteri-
racional ou do inconsciente, restrin- zado como hierarquizado e autoritá-
gindo o problema da violência nor- rio. Considerando que, na sociedade
mativa de gênero e da sexualidade ao brasileira, a desigualdade social cres-
âmbito individual. cente estrutura-se hierarquicamente, a

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autora caracteriza o autoritarismo no “Acho que o que marca sempre, tipo Uma Análise Psicossocial de
contexto brasileiro no âmbito político assim, é que eu sempre busquei mui- Experiências... 95
Juliana Perucchi
e no social. Portanto, para esta filósofa, to mostrar que eu sou capaz, assim, Carla Gomes Corrêa
além do autoritarismo caracterizado através do estudo. A marca que me
como fenômeno político, que afeta vi- trás, de ser homossexual dentro da
sivelmente o Estado em temas presen- escola, é essa coisa de me impulsio-
tes na arena pública, há também que se nar a estudar, de tipo assim, eu que-
considerar o autoritarismo da própria rer mostrar que eu sou tão capaz
sociedade brasileira, uma vez que des- como qualquer outra pessoa. Sabe,
sa sociedade provêm, também de durante muito tempo isso serviu pra
modo bastante explícito, diversas ma- tipo assim, dar sentido de enfrentar.
nifestações de autoritarismo social. Dessa forma, de já virar pra pessoa
Essa lógica autoritária também se ma- que me agrediu, com desdém, e falar
nifesta no contexto escolar, o qual pro- assim: eu sou muito mais inteligente
move compulsoriamente a heteronor- que você. Esse tipo de coisa. A marca
matividade, agindo, na maioria das que me deixou foi uma marca positi-
vezes de modo discriminatório e puni- va, de certa forma, porque me aju-
tivo, contra as pessoas não-heterosse- dou. Hoje eu estudo numa universi-
xuais. De acordo com Prado e Macha- dade federal, acho que porque eu
do (2008, p.24), “as práticas e sujeitos estudei muito.”
homossexuais permaneceram posicio- (Marcos, 24 anos)
nados em condições subalternas no
discurso hegemônico contemporâneo, Os demais entrevistados disseram
fomentando a formação do preconcei- que não possuem marcas da violência
to contra homossexuais como um im- homofóbica no período escolar, mas,
portante mecanismo de manutenção em contrapartida, contam que lem-
de hierarquias sociais, morais e políti- bram até os nomes das pessoas que
cas”. A escola perpetua esse processo lhes injuriavam. Também se constatou
de hierarquização, seja de classe, gêne- pela análise dos relatos, a vulnerabili-
ro, raça e sexualidade, mas ao mesmo dade desses/as jovens. Seja em âmbito
tempo a escola é portadora do papel de programático, em relação ao desampa-
despertar em seus alunos uma cons- ro institucional que tais joens se en-
ciência crítica mediante o que ocorre contram, diante da impotência e coni-
em nossa sociedade, e é dever da esco- vência das escolas frente às situações
la dar subsídios para que os estudantes de injúria e/ou agressão decorrente do
possam desconstruir conceitos que os preconceito homofóbico; seja em sua
levem a julgar sem conhecer, saber, en- dimensão social, em que a vulnerabili-
tender. A escola deve discutir sobre as dade se apresenta na ausência de redes
possibilidades de sexualidade existen- de apoio social vinculadas à família ou
tes, sobre os direitos das minorias se- à própria escola, enquanto instituições
xuais e o preconceito que gira em tor- sociais responsáveis pela proteção às
no dessa temática. crianças e às/aos adolescentes, inclusi-
Uma consequência marcante da ve aqueles/as que escapam às normas
violência homofóbica na vida de um de gênero e à heterossexualidade com-
entrevistado foi que impulsionou sua pulsória. Neste sentido, considerando,
busca por alto rendimento acadêmico, portanto, que a identidade é construí-
para, dessa forma, sentir-se “tão bom da e reconstruída através de outros
quanto qualquer outro”. que nos são significativos – familiares,

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vizinhos, amigos, inimigos, conheci- xualidade e sua diversidade e comple-
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dos, companheiros e todas aquelas xidade, de modo livre de dogmas reli-
pessoas com quem nos relacionamos giosos ou preconceitos de senso
e, portanto, é produto dessas experiên- comum. Neste sentido, foram enun-
cias de relação, então, esses “outros”, ciados como estratégias possíveis a
fazem parte da nossa construção coti- realização de cursos preparatórios
diana de relacionamentos enquanto “para toda a escola saber lidar com as
co-construtores de nossas próprias diferentes formas de preconceito e dis-
identidades (Sluzki, 1998). Sendo as- criminação” e também, a promoção,
sim, a escola constitui um dispositivo no interior das escolas, de mecanismos
poderoso na emergência de universos que acolham e apurem as denúncias
relacionais livres do sexismo e de seus dos alunos alvo de discriminação, ins-
efeitos de poder, dentre os quais está a tâncias institucionais da própria escola
homofobia e suas sequelas. que proteja alunos/as LGBT e, quais-
quer alunos/as, da cultura de ódio e da
violência de gênero.
CONSIDERAÇÕES FINAIS O estudo descrito neste artigo indi-
ca a relevância de se favorecer a pro-
As análises apontam que a homofobia, moção de discussões sobre as múlti-
enquanto sistema de opressão e de hie- plas possibilidades de exercício da
rarquias, atravessa as relações escolares sexualidade, também acerca de en-
de modo a naturalizar e invisibilizar as frentamento à discriminação contra
situações de violência vivenciadas. Os/ pessoas LGBT. Nesse sentido, eviden-
as jovens só conseguem identificar tais cia a importância de se implantar nas
situações passadas, vividas em seu pe- escolas dispositivos de identificação e
ríodo escolar, como sendo atos de ho- combate à homofobia contra jovens,
mofobia, tempos mais tarde. Quando quando perpetrada tanto no contexto
mais seguros de sua identidade de gê- escolar, quanto no contexto familiar.
nero e de sua orientação sexual. A aná- Segundo Abramovay, Cunha & Ca-
lise aponta o caráter político de cons- laf (2009), “toda política pública deve-
trução da identidade e suas implicações ria ser embasada em conhecimentos
nas percepções que jovens têm das ex- concretos sobre a realidade, advindos
periências vivenciadas. de instrumentos como pesquisas e
De modo geral, os/as informantes diagnósticos”. Sendo assim, este estu-
designam a escola como uma institui- do foi pautado visando possíveis enca-
ção que reproduz as normas de gênero minhamentos para a formulação de
e que sua função social tem de ser re- políticas públicas, desde a Educação
pensada de modo a problematizar ins- Básica até o Ensino Médio, como a re-
titucionalmente – nas arquiteturas es- tirada de conteúdos discriminatórios
colares, nos currículos, na postura de e preconceitos dos currículos, a cria-
professores/as e gestores/as – tais nor- ção de mecanismos de acolhimento à
mas, promovendo uma educação em queixa e apoio a alunos/as que sofrem
que todos e todas possam estar igual- violência homofóbica. Além de cursos
mente integrados. Outro ponto pro- de formação continuada, para que
blematizado pelos/as informantes da professores/as consigam lidar melhor
pesquisa, diz respeito à necessidade de com essas questões. Pois, apesar dos
capacitação dos/as educadores/as para resultados da pesquisa constatarem
lidar com questões relacionadas à se- contextos de vulnerabilidade indivi-

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