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ENGENHARIA AUTOMOTIVA

ELÉTRICOS
MOVIDOS
A ETANOL
Grupos de pesquisa procuram desenvolver
uma tecnologia que permita usar o combustível feito
a partir da cana-de-açúcar na mobilidade elétrica

Domingos Zaparolli
VERSÃO ATUALIZADA EM 21/10/2021

Sistema alternativo 1. O etanol (C H O)


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disponível no tanque de
Saiba como o hidrogênio é separado do combustível é injetado
etanol e gera energia para mover o veículo de forma dosada em
um reformador, espécie
de reator que separa
as moléculas de um gás

Tanque de
combustível

Sistema SOFC* Motor


Força
Etanol Reformador Módulo transmitida
SOFC às rodas
H2 Carga

Ar (O2)
Bateria recarregável

Exaustor
H2O e CO2 * Célula a combustível de óxido sólido

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C
ombustível renovável e amplamen- A parceria mais antiga e avançada envolve a
te disponível no país, o etanol está montadora japonesa Nissan e o Ipen. Firmada em
sendo avaliado como uma opção 2019, foi renovada em junho deste ano após obter
para movimentar veículos elétri- avanços. “A tecnologia da célula a combustível
cos, substituindo a eletricidade a etanol permite abastecer o veículo com esse
da rede pública e dispensando o combustível em qualquer posto do país, como já
sistema de recarga do tipo plug-in, por meio de ocorre hoje. A partir daí, o etanol é convertido
tomadas, das baterias de lítio. A corrida para que [em moléculas de hidrogênio e gás carbônico] e
essa alternativa chegue ao mercado é disputada o hidrogênio resultante do processo é injetado na
por grupos de pesquisa em universidades, em- célula, gerando a energia necessária para a pro-
presas do setor automotivo e centros de estudos pulsão do motor elétrico”, explica o físico Fabio
no Brasil e em outros países. A solução passa Coral Fonseca, gerente do Centro de Células a
pelo desenvolvimento de um modelo de célula Combustível e Hidrogênio do Ipen.
a combustível movida a etanol que seja técnica Hoje, os veículos automotores movidos a hi-
e economicamente viável. Espécie de bateria drogênio produzidos e comercializados no mun-
que converte a energia química em elétrica, as do por fabricantes como Toyota, Honda, BMW
células a combustível tradicionalmente utilizam e Hyundai são dotados de tanques cheios desse
hidrogênio como insumo. gás. O combustível é bombeado para dentro da
Algumas montadoras de automóveis e fabri- célula a combustível, onde sofre reações quími-
cantes de autopeças instalados no país firmaram cas e gera energia elétrica, que faz a propulsão
acordos para o desenvolvimento dessa tecnologia. do motor. O único resíduo devolvido à atmosfera
INFOGRÁFICO  ALEXANDRE AFFONSO

Parte desses entendimentos tem a participação pelo cano de escapamento é vapor d’água – ser
do Centro de Inovação em Novas Energias (Ci- ambientalmente sustentável é a grande vantagem
ne), um Centro de Pesquisa em Engenharia (CPE) dessa tecnologia.
apoiado pela FAPESP e a Shell que reúne pesqui- A célula a combustível a etanol projetada pela
sadores das universidades Estadual de Campinas Nissan e pelo Ipen aproveita o hidrogênio contido
(Unicamp) e de São Paulo (USP) e do Instituto de no etanol (C2H6O) para gerar energia. O processo,
Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen). explica Fonseca, inicia-se quando um catalisador,

2. Nesse 3. O hidrogênio e o 4. O princípio de funcionamento de 5. O resultado 6. O vapor d’água


dispositivo, sob oxigênio (O2) do ar são uma célula a combustível é parecido é a geração de resultante do processo
alta temperatura, injetados em uma célula a ao de uma pilha comum. O O2 do ar energia elétrica que é eliminado pelo cano
o etanol é combustível de óxido sólido recebe os elétrons no cátodo (polo abastecerá a bateria de escape. O processo
transformado em (SOFC). O CO2 gerado positivo) e se torna um íon de oxigênio, recarregável do também gera calor,
um gás rico em no reformador é eliminado que migra pelo eletrólito e reage veículo e moverá que é reutilizado para
hidrogênio (H2) pelo escapamento com o H2 no ânodo (polo negativo) seu motor aquecer o reformador

TANQUE DE
COMBUSTÍVEL SISTEMA SOFC* EXAUSTOR

REFORMADOR MÓDULO SOFC


Etanol
O H
H
H H
Hidrogênio Água
H O C C H HH
HH
H H ânodo
Calor O
HH H H
H H Hidrogênio eletrólito
HH O
H O C C H
H H Gás cátodo
O Gás
carbônico carbônico
O
H H O C O O C O
Ar
H O C C H O O
H H Oxigênio
O C O O C O

Reaproveitamento do calor

FONTES  IPEN E NISSAN

PESQUISA FAPESP 308 | 67


Plantação de cana-de-açúcar em
Ipeúna, no interior de São Paulo;
protótipo da Nissan equipado
com célula a combustível movida
a etanol

composto por óxido de cério (CeO2) e metais


preciosos, por exemplo, quebra as moléculas do
etanol, separando o hidrogênio. Na sequência,
esse gás é injetado em um dispositivo que opera
entre 600 graus Celsius (oC) e 800 oC. São as cé-
lulas a combustível de óxido sólido (SOFC), que
levam esse nome porque seu eletrólito é com-
posto por material sólido, geralmente um óxido.
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Reações eletroquímicas nas SOFC transformam
o hidrogênio em eletricidade, que é armazenada
numa bateria recarregável e utilizada para mover
o veículo (ver infográfico na página 66).
A vantagem do novo sistema é que ele não de-
manda hidrogênio puro, como ocorre no modelo
tradicional, e está apto a trabalhar com o etanol,
que no processo se decompõe em moléculas de
hidrogênio e de dióxido de carbono, estas últimas
liberadas no ambiente. “O veículo, portanto, não é
isento de emissões de gases de efeito estufa, mas
a emissão é neutralizada pelo plantio da cana-de-
-açúcar”, diz Fonseca. “É um combustível com
cadeia produtiva sustentável.”

A
s pesquisas do Ipen têm como
meta reduzir a temperatura de
trabalho das SOFC para mais
próximo de 600 oC. Objetivam
também substituir o uso de me-
tais preciosos, como platina e
2
irídio, que hoje fazem parte de sua composição,
por outros economicamente mais acessíveis, A Karma Automotive, companhia norte-america-
como níquel, zircônio e nióbio. “Já estamos ob- na especializada em veículos elétricos, anunciou
tendo bons resultados trabalhando a 700 oC”, que ainda este ano pretende realizar testes com
informa Fonseca. Artigo detalhando esse avanço carros movidos a célula a combustível a metanol,
foi publicado em janeiro no International Journal também conhecido como álcool metílico.
of Hydrogen Energy. No Brasil, a montadora alemã Volkswagen
Outra vantagem das SOFC reside em sua efi- anunciou em julho que irá constituir no país um
ciência teórica, entre 10% e 20% superior às cé- centro de pesquisa e desenvolvimento (P&D)
lulas a combustível tradicionais na conversão de para biocombustíveis, e a célula a combustível
energia química em elétrica. Em um primeiro a etanol é um dos objetivos. Procurada por Pes-
protótipo de veículo dotado de célula a combus- quisa FAPESP, a companhia informou que o cen-
tível a etanol, produzido pela Nissan em 2016, tro de P&D ainda está em fase de estruturação
o automóvel abastecido com 30 litros de etanol e avaliou ser prematuro expor os trabalhos que
rodou mais de 600 quilômetros. serão desenvolvidos.
FOTOS 1 LÉO RAMOS CHAVES  2 NISSAN

Ricardo Abe, gerente sênior de engenharia da Um consórcio de empresas reunindo as multi-


Nissan do Brasil, defende que as SOFC são uma nacionais Mercedes-Benz, Stellantis (Fiat, Chrys-
solução para a eletrificação veicular, muito em ra- ler, Opel, Peugeot e Citroën), Bosch, Umicore,
zão da versatilidade de combustíveis que podem especializada em processos limpos de produção,
ser utilizados. “Elas podem ser alimentadas com e a brasileira Ipiranga, estabeleceu dois acordos
etanol, biogás ou gás natural e utilizam infraes- de parceria com o Ipen para o desenvolvimen-
truturas de abastecimento já existentes”, informa. to de tecnologias para o uso de hidrogênio em

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veículos. Os projetos ainda estão em fase pre- O problema é que produzir hidrogênio de-
liminar. Um deles envolve o uso de células a manda muita energia. Ele é tradicionalmente ob-
combustível de baixa temperatura, que opera tido em um processo de eletrólise – a separação
por volta de 100 oC, para o aproveitamento do da molécula do hidrogênio (H2) do oxigênio (O)
etanol como combustível de carros elétricos. O da água. Para ser ambientalmente sustentável,
outro projeto tem como meta um sistema que esse gás precisa ser classificado como verde, ou
combine etanol e hidrogênio para abastecer os seja, não pode utilizar reservas de água potável
tradicionais motores a combustão. e deve ser produzido com fontes renováveis de
Outro consórcio, formado por Volkswagen, energia, como eólica, solar ou biocombustíveis,
Stellantis, Toyota, Ford, Shell, Bosch, AVL e a entre eles o etanol.

O
brasileira Caoa, também fechou um contrato de
parceria com a Unicamp para desenvolver células utro desafio é que o hidrogênio
a combustível a etanol. O projeto, coordenado é um elemento inflamável e
pelo físico Hudson Zanin, da Faculdade de En- precisa ser armazenado em
genharia Elétrica e de Computação da Unicamp, tanques específicos, aptos
é apoiado pela FAPESP e pela Financiadora de a absorver choques e evitar
Estudos e Projetos (Finep). explosões e qualquer vaza-
Zanin explica que a proposta é utilizar célu- mento. É preciso, ainda, construir uma rede
las tipo SOFC de terceira geração que operam de distribuição capaz de abastecer os veículos.
em temperaturas de 500 oC a 600 oC. As célu- “O uso do etanol permite aproveitar a rede de
las serão produzidas na Unicamp por meio de distribuição já existente e os tanques comuns
manufatura aditiva (impressão tridimensional) utilizados nos veículos atuais”, diz Fonseca.
e utilizará ligas metálicas, como aço inox, para Os veículos elétricos tradicionais, do tipo
formar camadas ultrafinas, robustas e termi- plug-in, consomem eletricidade da rede de dis-
camente seguras. Um modelo dessas células já tribuição. No mundo, predomina uma matriz
está sendo produzido em escala experimental elétrica que utiliza combustíveis fósseis, o que
pela empresa inglesa Ceres Power Holdings. Na reduz a sustentabilidade ambiental dessa so-
Europa, a nova célula está sendo projetada para lução. Outro problema são as baterias dos veí-
trabalhar com metanol e gás natural. O trabalho culos, produzidas com lítio, um mineral que
da Unicamp prevê a construção de células SOFC demanda muita água e energia em seu processo
de terceira geração no Brasil e o desenvolvimen- de extração. Além disso, gera impacto ambien-
to de um catalisador próprio para operar com tal caso seu descarte, depois do uso da bateria,
etanol. “Nossa expectativa é ter um modelo co- não seja feito de forma adequada, uma vez que
mercial dentro de cinco a sete anos”, diz Zanin. se trata de um elemento inflamável. “Para ser
Abe prefere não se comprometer com previ- verdadeiramente sustentável, o veículo elétrico
sões sobre quando o sistema estará disponível precisa ter um combustível sustentável. É isso
para ser colocado no mercado. “Ainda estamos que a célula a combustível a etanol proporcio-
em fase de pesquisa e desenvolvimento. O fa- na”, diz Zanin.
to é que identificamos o potencial e estamos Para o Brasil, a tecnologia tem ainda uma ou-
acelerando os estudos voltados a desenvolver tra utilidade. Permite sobrevida ao grande par-
componentes para o projeto em escala comer- que de produção de etanol, que corre o risco
cial”, afirma. Para a química Ana Flávia Noguei- de cair em obsolescência quando os motores
ra, diretora-executiva do Cine, a viabilidade da elétricos substituírem os atuais a combustão, o
célula a combustível a etanol dependerá de sua que deve ocorrer nas próximas décadas. O estu-
internacionalização. “Para ter escala comercial, do “Electric vehicle outlook 2020”, da Bloom-
não pode ser uma tecnologia só do Brasil”, des- berg New Energy Finance, estima que 58% dos
taca. Zanin, porém, aposta que a tecnologia des- novos veículos comercializados no mundo em
pertará o interesse de outros países produtores 2040 serão elétricos.
de cana-de-açúcar na África, América Latina e No Brasil, a Associação Nacional dos Fabrican-
Ásia, principalmente na Índia, segundo maior tes de Veículos Automotores (Anfavea) projeta
produtor mundial, atrás apenas do Brasil. que em 2031 o veículo elétrico já será vantajoso
O uso de um combustível renovável, como o em termos de custos e, no mínimo, um terço dos
etanol, no sistema de propulsão elétrica de veí- carros novos no país em 2035 terá algum grau
culos tem potencial de remover gargalos impor- de eletrificação, seja plug-in ou híbridos, este
tantes relacionados à sustentabilidade ambiental. último uma versão que une motor a combustão
O hidrogênio é uma substância com alto poder e propulsão elétrica. n
calorífico, quase três vezes superior ao diesel, à
gasolina e ao gás natural. Renovável, não emite Os projetos e artigos científicos consultados para esta reportagem
poluentes na atmosfera, apenas vapor d’água. estão listados na versão on-line.

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