Você está na página 1de 16

I: O libertário modal

Na edição de janeiro de 1990 da Liberty, Lew


Rockwell publicou um artigo, “Em defesa do
Paleolibertarianismo”, que causou alvoroço no
meio libertário. Foi o artigo mais comentado e
controverso da história dessa revista, e na
verdade, também do movimento libertário em
muitos anos.
O motivo é simples: o meio libertário está
há anos mergulhado, na melhor das hipóteses, na
indiferença, e na pior numa profunda decadência.
Tem se caracterizado por uma carência de novas
ideias, novas estratégias e formas de pensar. Na
última década, as ideias libertárias se
desenvolveram e se espalharam pelo mundo, mas
com exceção da área específica da economia de
livre mercado, as instituições libertárias vêm se
deteriorando e se tornando totalmente
irrelevantes para a cultura americana. Ao invés de
enfrentar o desafio da decadência e deterioração
crônicas, líderes do movimento se amontoaram
sobre ele, desesperadamente intensificando seus
esquemas de embustes e enganações, exatamente
como sanguessugas acelerando seu vampirismo
sobre o sangue de seu hospedeiro, conseguindo
cada vez menos alimento.
O ano de 1989 – ano da gloriosa implosão
revolucionária do comunismo/socialismo na
Europa Oriental e na União Soviética – nos
presenteou com um mundo totalmente novo,
com novos parâmetros para ações. Todos os
outros grupos ideológicos, conservadores,
progressistas e esquerdistas, conseguiram, cada
um de sua maneira, entender a necessidade de
encarar a nova realidade repensando seus focos e
estratégias. Apenas os libertários, como de
costume, têm agido como se o mundo real não
existisse, e continuaram a jogar negligentemente
seus jogos de enganações. Em meio a este
miasma generalizado, o artigo de Lew veio como
uma chama de excitação, como trombetas
anunciando que há grandes mudanças no mundo
real, e já está na hora de acordarmos e
colocarmos a cabeça pra funcionar sobre tudo
que isto significa. Para todos os libertários com
cérebros ainda funcionando, o artigo de Lew
anunciou um novo alvorecer de atividade
teleológica e pensamento criativo.
Infelizmente, tal é o estado alarmante que o
movimento se afundou que praticamente nada
desta excitação foi vista nos muitos comentários
enfadonhos e incompreensíveis que se seguiram
ao artigo na Liberty: quase todos não eram nada
além de respostas furiosas de ursos sendo
acordados de suas longas hibernações. Na
verdade, a única crítica inteligente e
fundamentada ao artigo de Rockwell não
apareceu na Liberty, mas veio de Justin Raimondo
na edição de março da Libertarian Republican
Organizer.
Então por que paleo? Como um dos críticos
de Lew disse, por que precisamos de mais uma
palavra comprida anexada a primeira
(libertarianismo)? O resumo da crítica padrão ao
posicionamento paleo é que estamos nos
preparando para “expulsar” todos os não-paleos
(definido de forma variada como todos os não-
burgueses e/ou não-religiosos) do movimento
libertário. Isto é uma caracterização absurda de
nossa posição e parece refletir uma grave
incapacidade de leitura (ou de pensar).
Em primeiro lugar, com exceção do Partido
Libertário, no movimento não existe nenhuma
organização do tipo que aceita membros da qual
poderíamos expulsar alguém. E quanto o PL, a
maioria de nós saiu dele de corpo, e todos nós
saímos de alma. E em segundo lugar, como pode
uma pequena maioria (paleos) “expulsar” uma
grande maioria?
Peneirando
Portanto, não focaram no ponto principal.
O ponto do novo movimento paleo, incluindo a
designação, é nos separar do movimento em
geral, encontrar e inspirar outros paleos, e formar
nosso próprio e separado movimento
autoconsciente.
O que estamos dizendo, resumidamente, é
que a liberdade é extraordinária e não queremos
enfraquece-la ou dilui-la nem um pouquinho,
mas que para nós, afinal, ela simplesmente não é
o suficiente. Ainda somos libertários hard core,
mas agora nós não estamos dispostos a nos
contentar, com um movimento, somente pela
liberdade. Nós lutamos por mais que liberdade.
Dissemos que uma certa matriz cultural é
essencial para a liberdade. Posso entender porque
esse tipo de ideia pode irritar libertários; por
exemplo, o teórico político de Oxford John Gray
tem, nos últimos anos, sinalizado sua deserção do
liberalismo clássico (que já é uma forma diluída
de libertarianismo) ao falar sobre a necessidade
de uma certa cultura em complemento a
liberdade: este tipo de conversa é quase sempre o
prelúdio a uma reivindicação por poder estatal –
e certamente o é no caso de Gray.
Mas este não é o ponto, embora eu
concorde que a liberdade tende a florescer mais
em uma cultura burguesa cristã. Eu estou
disposto admitir que você pode ser um bom
libertário hard core e ainda ser um hippie, um
hostil a burguesia e ao cristianismo, um viciado
em drogas, um vadio, um indivíduo rude e
intolerável, ou mesmo um verdadeiro ladrão.
Porém, o ponto é que nós paleos não
estamos mais dispostos a ter como colegas de
movimento estes tipos de gente. Por duas razões
distintas e poderosas, e cada uma delas sozinhas
já seria razão suficiente para se formar um
movimento paleo separado e distinto. Uma é
estratégica: pois estes tipos de pessoas tendem,
por razões óbvias, a enojar, e de fato repelir, a
maioria das “pessoas reais”, pessoas que
trabalham para ganhar a vida ou pagar as contas,
pessoas da classe média ou trabalhadora que, na
antiga e boa frase, buscam uma “vida digna”.
No Partido Libertário, a prevalência destes
tipos de pessoas manteve a filiação e os votos
baixos e ainda declinando. Mas também no
movimento em geral, estes
tipos luftmensch quase conseguiram transformar
o glorioso termo “libertário” em um palavrão para
a maioria dos ouvidos, sinônimo de maluco ou
libertino. Neste estágio, a única maneira de salvar
a gloriosa palavra e o conceito de “libertário” é
afixar a palavra “paleo” a ela, e com isto tornar a
distinção e a separação totalmente claras.
Mas nossas razões não são apenas
estratégicas. Pois entre as pessoas repelidas estão
nós mesmos, e apesar de obviamente possuirmos
um nível de tolerância bem alto, ele foi enfim
ultrapassado, e é com um sentimento jubiloso de
alívio que limpamos os dejetos dos libertários
padrões, ou “modais”, da sola de nossos sapatos.
Quando, no Libertarian Forum, eu
costumava criticar os “eternos adolescentes” e os
malucos – depois os apelidando
de luftmenschen – eu era tratado ou como um
adorável ou odiável excêntrico, mas o ponto é
que estas posições culturais não eram
consideradas nem um pouco relevantes para
minha doutrina libertária. Elas são mais
relevantes, ainda que em um plano diferente, do
que a própria doutrina. Mas o ponto é que não
pode mais ser aceitável negligenciar a parte
“paleo” da equação.
Mas se nós somos os “paleos”, quem são os
outros caras? Uma vez que os termos estejam em
diferentes planos de linguagem, a simples palavra
“libertário” não pode ser suficiente. Então eu
apelidei os outros caras – nossos oponentes, por
assim dizer – de “libertários nihilo” ou “nihilos”,
com o restante dos libertários, talvez a maioria,
confusos em algum ponto intermediário sem
estar ainda a par destas distinções. Muitos deles
são instintivamente paleos sem saberem disso.
Não há como saber os números exatos, mas
após quase quarenta anos como um ativista no
movimento libertário, tenho uma certeza: que os
nihilos, sendo ou não uma maioria numérica,
infelizmente são os libertários típicos ou
“modais”. [A “moda” é um conceito em estatística
que designa a classe ou categoria que possui a
maior frequência de membros.]
Lew Rockwell e eu temos sido críticos
ferrenhos do Partido Libertário, principalmente
depois do debate na convenção nacional na
Filadélfia em setembro do ano passado. Porém,
enquanto o Partido Libertário é de fato
irremediável e na verdade ainda não foi
suficientemente denunciado pelo que ele se
tornou, o partido não é o único problema. Pois o
partido é simplesmente a instituição mais visível
e mais organizada do movimento. A doença do
partido é somente o reflexo visível da podridão
subjacente do movimento como um todo.
É por isso que Lew e eu não estamos
pedindo por um novo Partido Libertário ou que
ele seja substituído imediatamente por uma nova
instituição de massa do movimento. A ferida é
muito mais profunda, e a solução deve ser muito
mais radical, e infelizmente deve levar mais
tempo do que alguma outra cura rápida. O
primeiro passo é peneirar, e formar nossos
próprios órgãos e instituições libertários,
começando, claro, com o próprio RRR (Rothbard–
Rockwell Report).
O retrato do Libertário Modal
É fácil começar nossa definição de “paleo”
explicando o que nós não somos, e do que nós
estamos determinados a nos afastar. E a maneira
mais fácil de explicar isto é desenhar nosso
retrato do Libertário Modal, sua natureza e suas
atitudes.
E o Libertário Modal (daqui para frente LM)
é, na verdade, um homem, pois o movimento
sempre foi, logicamente, predominantemente
masculino. E infelizmente, as poucas ativistas
libertárias femininas padecem de muitos dos
sintomas desta síndrome masculina.
O LM se encontrava na faixa dos seus vinte
anos há vinte anos e, agora, encontra-se na faixa
dos seus quarenta anos. Isso não é nem tão banal
nem tão benigno como parece, pois significa que
o movimento realmente não cresceu nos últimos
vinte anos; as mesmas pessoas patéticas apenas
envelheceram vinte anos. O LM é bastante
promissor e bastante versado na teoria libertária.
Mas ele não sabe nada e não se interessa pela
história, pela cultura, pelo contexto da realidade
ou pelos assuntos mundiais. A sua única leitura
ou o seu único conhecimento cultural é a ficção
científica, na qual o LM é um expert, e que faz
com que ele se mantenha tranquilamente bem
isolado da realidade. Consequentemente, o
membro ativista médio do mais insignificante
grupo trotskista sabe bem mais sobre temas
mundiais do que grande parte dos líderes
libertários.
O LM, infelizmente, não odeia o estado por
vê-lo como o instrumento social exclusivo da
agressão organizada contra a pessoa e a
propriedade. Em vez disso, o LM um adolescente
que se rebela contra todos ao seu redor: em
primeiro lugar, contra os seus pais; em segundo
lugar, contra a sua família; em terceiro lugar,
contra os seus vizinhos; e, por fim, contra a
própria sociedade. Ele se opõe especialmente às
instituições da autoridade social e cultural: em
particular, à burguesia da qual ele proveio, às
normas e às convenções burguesas e às
instituições da autoridade social (como as
igrejas). Para o LM, então, o estado não é o único
problema; ele é apenas a parte mais visível e mais
detestável das várias instituições burguesas
odiadas: vem daí o entusiasmo com que o LM
aperta o botão do “questione a autoridade”.
E daí se origina também a fanática
hostilidade do LM ao cristianismo. Eu costumava
pensar que esse ateísmo militante era apenas em
função do randianismo do qual a maioria dos
libertários modernos surgiu há duas décadas. Mas
o ateísmo não é a chave – pois aquele que
anunciasse, em uma reunião libertária, que era
uma bruxa ou um adorador do cristal de energia
ou de alguma besteira da Nova Era seria tratado
com grande tolerância e respeito. Somente os
cristãos eram os alvos dos abusos; e, claramente,
a razão dessa diferença de tratamento não tinha
nada a ver com o ateísmo. Isso tinha tudo a ver
com a rejeição (e o desprezo) da cultura burguesa
americana; e todo tipo de causa cultural maluca
seria promovido a fim de torcer o nariz da odiada
burguesia.
Na verdade, a atração original do LM para o
randianismo era parte integrante da sua revolta
adolescente: que maneira de racionalizar e
sistematizar a rejeição aos pais, familiares e
vizinhos seria melhor do que aderir a um culto
que denunciava a religião e que proclamava a
superioridade absoluta de si mesmo (do ego) e
dos seus cultuados líderes, em contraste com os
robóticos “second-handers” que supostamente
povoavam o mundo burguês? Um culto que, além
disso, conclama os seus prosélitos a desprezar os
pais, a família e os associados burgueses e a
cultivar a suposta grandeza do próprio ego
individual (convenientemente orientado, é claro,
pela liderança randiana).
Existe um certo charme arrojado nos
rebeldes adolescentes de vinte anos; no entanto,
aos quarenta, as mesmas atitudes e mentalidade
se tornam detestáveis. Os críticos de Lew
Rockwell convenientemente assumem que o que
ele e eu estamos atacando são o cabelo, o modo
de vida e o jeito de vestir “hippie”, ou largado.
Mas está é uma visão extremamente superficial. A
única coisa boa sobre ser largado é que isto faz
com que seja mais fácil de identificar os modais
nihilos. Mas mesmo aqueles LMs que se pareçam
com pessoas reais, que usem terno e gravata, na
verdade não são pessoas reais. O ponto principal
é a personalidade, as atitudes.
Resumindo: o LM, caso tenha uma
ocupação no mundo real (como a contabilidade
ou a advocacia), é, de um modo geral, um
advogado sem casos e um contador sem trabalho.
A profissão habitual do LM é a de programador
de computador; o LM era um nerd da
computação bem antes da invenção do
computador pessoal. Os computadores, na
realidade, atraem a inclinação científica e teórica
do LM; mas eles atraem o seu nomadismo
acentuado, a sua necessidade de não ter uma
folha de pagamento regular ou uma moradia fixa.
Além disso, é fácil se intitular “consultor de
computação” quando o que você é na verdade é
um desempregado.
O LM também possui o “olhar longínquo”
dos fanáticos. Ele está apto a te agarrar pela
lapela na primeira oportunidade e a discorrer
extensamente sobre as suas próprias “grandes
descobertas” contidas em seu poderoso
manuscrito que está chorando para ser publicado
– e ele diz que isso é uma conspiração do poder
constituído. Ele é como todos os fanáticos, sem
nenhum senso de humor; o ápice do engraçado
para ele é ver alguém levando uma torta na cara.
Mas, acima de tudo, o LM é um vadio, um
embusteiro e, muitas vezes, um verdadeiro
escroque. A sua atitude básica em relação aos
outros libertários é “a sua casa é a minha casa”.
Quantos libertários em uma rara posição
privilegiada de morar em um apartamento ou
casa não tiveram o prazer de ouvir a campainha
tocar, e de se depararem com um cara na porta
dizendo; “Ei cara, eu sou um libertário”,
esperando passar a noite, ou a semana, ou o que
for? Quantos libertários tiveram que deixar estas
pessoas ao relento? Em suma, articulem eles ou
não essa “filosofia”, os LMs são comunistas
libertários: alguém que possua propriedade
automaticamente tem de “compartilhá-la” com os
demais membros da sua “família” libertária
ampliada.
Nós paleo libertários somos pessoas que
finalmente estamos dizendo “Basta!”, “Chega!”,
Aguentamos até agora e não vamos aguentar
mais nada. Assim como vou apontar futuramente
em outro artigo, os gloriosos acontecimentos de
1989 acabaram com a Guerra Fria e tornaram
possível e viável uma aliança de “paleo-
conservadores”, uma reconstrução da Velha
Direita. Mas nosso crescente desgosto com
nossos camaradas de movimento libertário é um
fenômeno a parte, embora se encaixe
perfeitamente com nosso novo movimento e nos
tenha dado a palavra “paleo”.
Anos atrás, quando me lamentava a um
velho amigo sobre os malucos no movimento
libertário, ele me aconselhou: “Convenhamos. Em
um movimento excêntrico você vai encontrar
excentricidades.” Verdade, mas nossas ideias não
são tão excêntricas assim. Ao passo que todos os
movimentos são recipientes imperfeitos para suas
ideias puras, a maravilhosa doutrina libertária
não merecia isto de jeito nenhum. Uma vez meu
velho amigo Ralph Raico, falando sobre alguma
atrocidade do movimento, inspirando-se numa
espetacular fala do filme O Poderoso Chefão,
quando Lee Strasberg, interpretando uma versão
de Meyer Lansky, estava dando um sermão do
Velho Mundo a Corleone: “Quando Moe foi
assassinado (pelos Corleones) eu disse alguma
coisa? Fiz perguntas? Não, porque eu disse a mim
mesmo: este é o negócio que escolhemos.”
Ralph parafraseou isto em “Este é o
movimento que escolhemos.” Okay. Isto pode ter
servido de consolo por alguns anos. Mas nós
paleos já tivemos o bastante. Nós estamos nos
autoexcluindo. Estamos nos removendo do
movimento. Estamos formando um novo
movimento nosso: paleo-libertarianismo.

Você também pode gostar