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Dicionário de Cultura Basica
Dicionário de Cultura Basica
Epígrafe:
“Saber é poder: incomensurável é o valor do conhecimento para o progresso do indivíduo e da
sociedade!”
INTRODUÇÃO
Este trabalho já foi publicado, em 2005, pela Campus/Elsevier com o título “Pequena enciclopédia
da cultura ocidental”. Estando a edição original esgotada há algum tempo, o autor, atendendo à constante
demanda de interessados, resolveu procurar outra editora disposta a continuar a divulgação da obra que foi
considerada de utilidade pública, destinada a bibliotecas familiares e institucionais, bem como à leitura
individual. O livro foi revisto e atualizado, chegando ao público com uma nova veste tipográfica e
diferente título. Autor e editor acharam por bem não deixar no oblívio este compêndio de cultura geral,
rico manancial de informações indispensáveis para a formação de uma verdadeira cidadania.
Como já dizia o mestre Epicuro, há uns 24 séculos atrás, a ignorância está na origem das
superstições e de todos os outros males da humanidade. Ela é o único pecado realmente “capital”, pois é a
fonte de onde procedem todos os outros danos. É a falta de conhecimentos que cria o medo nas
civilizações antigas ou primitivas e a desgraça em muitas sociedades modernas, culturalmente atrasadas.
Ignorante é quem não conhece o passado da civilização em que está vivendo e não tem uma visão crítica
do presente, pois não pensa com sua própria cabeça e não reflete sobre as conseqüências de seus atos.
Sem dúvida, é a falta de cultura da massa popular que permite o predomínio de alguns líderes carismáticos
e fanáticos, capazes de exacerbar ódios e vinganças entre diferentes etnias, insuflando um falso
patriotismo e assumindo uma missão messiânica. Como também é a ignorância do povo que permite as
sucessivas reeleiçoes de líderes políticos corruptos. O dramaturgo alemão Berthold Brecht acertou em
cheio ao afirmar: infeliz do povo que precisa de um herói! A Alemanha de Hitler e a Rússia de Stalin
que o digam! Povos civilizados não necessitam de um Messias, de um Salvador da Pátria. Eles precisam
apenas de escolas!
Aumentar o conhecimento do passado cultural é a base do progresso do indivíduo, da família e da
sociedade. A cultura é a mais poderosa e eficaz arma política. Precisamos possuir o conhecimento para
sermos social e economicamente livres. Mas o saber, a que estou me referindo, não é dado pela simples
informação, pois os dados adquiridos devem ser estudados, interpretados, para chegarmos ao verdadeiro
conhecimento, ao saber que nos enriquece por dentro e que transborda e transforma a realidade em que
vivemos. Adquirindo cultura, um povo toma consciência da própria identidade, não se deixando manipular
por vendedores de ideologias ou por caçadores de votos. Sim, porque pouco adianta nos orgulharmos do
nosso regime democrático e do exercício da liberdade, se a grande massa do povo não é esclarecida,
vivendo completamente alienada dos problemas da coletividade.
A finalidade deste trabalho é contribuir, um pouco que seja, para a divulgação do cabedal cultural
que a tradição humanística nos deixou e que, infelizmente, se está perdendo. É curioso notar que, na
sociedade moderna, tudo evoluiu, com exceção da educação. O avanço tecnológico se, de um lado, nos
propicia uma avalanche de notícias regionais, nacionais e internacionais, de outro lado, contribui para
reduzir ainda mais o hábito da leitura em nosso lar, onde a Internet está suplantando a Biblioteca. É uma
pena, pois “lendo” se aprende muito mais do que “vendo”. O livro, além de nos acompanhar em qualquer
lugar da casa e durante as viagens, permite parar para pensar. O conhecimento é proporcionado de uma
forma mais lenta, porém mais proveitosa, estabelecendo um diálogo entre o escritor e a consciência do
leitor. A afirmação de Monteiro Lobato de que “uma nação se faz com homens e livros” ainda não ficou
obsoleta.
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A chamada democratização do ensino, hoje em dia, faz com que os estudantes cheguem às
Faculdades com conhecimentos cada vez mais minguados e delas saiam com mais diplomas e menos
sabedoria. E isso porque não existe a base cultural propiciada pela família, na primeira infância, e
continuada na escola primária e secundária. Apenas a escola, pública ou privada, por melhor que seja, não
é suficiente para a aprendizagem, se não houver o homework, o trabalho de casa, assistido por quem é
responsável pela educação da criança. Não se aprende de repente ou apenas fazendo um curso. Sem
tradição e estudo sustentado não há civilização. Como diria Lavoisier, nada sai do nada. O gênio é
apenas um anão sentado em cima de uma montanha, que é o passado cultural da sua etnia, a que ele
acrescenta mais alguma coisa. Sem o Atomismo de Demócrito e a Física de Arquimedes, não teríamos a
genialidade de Einstein. Sem Homero, Virgílio ou Sófocles, a grandiosidade de Dante, Camões ou
Shakespeare seria outra.
Este dicionário cultural é o fruto de quase meio século de discência, docência e pesquisa
universitária em várias áreas das Ciências Humanas, bem como de uma vida sofrida e viajada. Considero
este trabalho como meu testamento intelectual, deixando para meus ex-alunos e para todas as pessoas
interessadas em cultura um testemunho do pouco que consegui aprender e reter na minha memória, ao
longo de tantos anos. Aproveitei um pouco do material já publicado em livros e artigos, especialmente na
área de Teoria da Literatura, e extendi minhas pesquisas em outros campos do conhecimento. Os
assuntos, colocados em ordem alfabética, são apresentados não de uma forma teórica, mas através de
histórias míticas, literárias e artísticas. Daí o subtítulo "o saber indispensável, os mitos eternos". Na
verdade, o presente livro é uma coletânea de ensaios sobre Obras (Ilíada, Odisséia, Eneida, Divina
Comédia, Lusíadas, Dom Quixote, Hamlet, Fausto, Metamorfose, Processo etc), Autores (Homero,
Virgílio, Dante, Shakespeare, Fernando Pessoa, Machado, Dostoievski, Kafka, Darwin, Freud,
Marx, Einstein, Picasso etc) e Temas fundamentais da nossa cultura (mito, religião, filosofia, literatura,
artes plásticas, política, ciências etc).
Enfim, tentei colocar num único livro o essencial dos conhecimentos que qualquer ser humano, de
cultura média, deveria ter, tentando completar, de uma certa forma, as falhas do ensino colegial e
universitário. A matéria está distribuída em verbetes de A a Z, desenvolvidos por uma redação média de
uma página. Para evitar repetições, alguns verbetes são apenas remissivos, indicando o lugar onde o
assunto é tratado. O chamamento pelo “negrito” possibilita ao leitor a indicação de que aquele vocábulo
está redigido em lugar apropriado, estabelecendo assim uma rede remissiva que conecta os vários
assuntos. Pretendi realizar um trabalho de interdisciplinidade e de intertextualidade, aí residindo sua
originalidade, pois o distingue de outros dicionários culturais. Nunca escreveria um livro que tivesse
similares na praça, pois o trabalho intelectual, para mim, é demais penoso para ter como recompensa
apenas a vaidade ou alguns trocados.
Existem, é verdade, bons dicionários de mitos, filosofia, pedagogia, psicologia etc, mas todos eles
são específicos. Este pretende ser o “genérico”, aquele que lança pontes entre as várias áreas do
conhecimento, colocando em evidência a interdependência entre as várias atividades humanas, pois não
existe um saber verdadeiro fora de um contexto histórico, científico, artístico, religioso. O verbete
“Édipo”, por exemplo, é visto na sua origem como mito primitivo da Grécia, depois como personagem de
uma tragédia de Sófocles, como complexo materno na psicanálise de Freud, e em sua fortuna artística até
nossos dias, servindo este mito ainda hoje como inspiração para obras literárias, teatrais, cinematográficas.
E o verbete “Édipo” remete a outros assuntos tratados, tais como Tragédia, Teatro, Freud.
O desenvolvimento dos verbetes é maior ou menor, dependendo da importância do assunto e da
minha competência. Evidentemente, os temas relativos à Teoria da Literatura e à Cultura Clássica estão
mais bem desenvolvidos, pois é a minha área específica de conhecimento. O trabalho apresenta-se como
uma “mini-enciclopédia” geral. O grande desafio foi condensar, num único livro, de fácil consulta e a um
preço razoável, a cultura encontrável em volumosas enciclopédias, escritas por vários especialistas. O
critério da seleção e do tratamento dos verbetes foi sua “essencialidade”: escolhi alguns Autores, Obras e
Temas que considero “eternos” por terem ultrapassado os limites do tempo e do espaço. Procurei
apresentar os mitos e os homens que, segundo meu parecer, mais contribuíram para a formação da cultura
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ocidental, envolvendo Filosofia, Religião, Artes e Ciências. Se alguma escolha ou omissão não agradar ao
leitor, peço-lhe desculpas. E ele vai me perdoar, pois sabe que, em qualquer seleção, é difícil escapar do
demônio da subjetividade.
Além de proporcionar conhecimentos, este trabalho pretende ser um estímulo para a leitura e a
reflexão, um convite para o contato direto com as obras apontadas. Muita gente tem vontade de ler livros
importantes, pois culturalmente fundamentais, mas não sabe de onde começar. Aqui está um guia para o
leitor se orientar na escolha dos autores e das obras mais relevantes que o gênio humano produziu. Apesar
da amplidão e complexidade dos assuntos, sua exposição é simples e direta, num estilo às vezes divertido
ou até irônico, tentando evitar pedanteria ou chatice. Como bem adverte nosso Machado: “a primeira
condição do escritor é não aborrecer”. A maioria dos verbetes são ilustrados com a citação de frases
inteligentes de autores famosos e o significado é explicado a partir da etimologia da palavra, pois o
sentido original dos vocábulos é geralmente o mais certo. O livro tem como destinatários estudantes
universitários, docentes, profissionais liberais, pais e outros responsáveis pela ajuda às crianças nas tarefas
escolares. Interessa, enfim, a todas as pessoas que percebem a importância de exercitar o intelecto e
apreciam o valor do conhecimento para o exercício da cidadania e um melhor entendimento de obras
filosóficas ou artísticas.
Embora apresentada em verbetes, a obra foi concebida como um compêndio de cultura
humanística para ser lida todinha, de ponta a ponta, como se fosse um romance eclético sobre cultura, e
não apenas consultada como um dicionário. E isso porque a experiência me ensinou que, sem uma visão
gestáltica, o conhecimento do particular se esvai, não se solidifica, pois todo o saber é sempre contextual,
comparativo, referencial. Como pondera Blaise Pascal, “é preferível conhecer alguma coisa sobre tudo a
tudo sobre apenas uma coisa”. Mais ainda: não podemos esquecer que a sabedoria é indissociável do
amor. A leitura deste livro tem que ser carinhosa, assim como foi sua escrita. Não sei exatamente o valor
deste meu esforço intelectual, mas gostaria de terminar esta introdução com as palavras do sábio indiano
Mahatma Gandhi, “o que você fizer poderá até ser insignificante, mas é da maior importância que o
faça”.
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Poema é composição,
Mesmo da coisa vivida,
Um poema é o que se arruma,
Dentro a desarrumada vida.
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Por exemplo, é como um rio,
Por exemplo, um Capibaribe,
Em suas margens domado
Para chegar ao Recife,
COMPUTADOR (Internet)Informática
COMTE (filósofo francês)Positivismo
COMUNISMO (utopia socialista, Lênin, Stalin, URSS)Marx
DEUS (divindade)Religião
DIACRONIA (oposição diacrônico / sincrônico)CronosCrítica
DIALÉTICA (forma de argumentar: Diálogo em oposição ao Monólogo)
Do grego dia (prefixo “através”) + logos (“palavra”) + tecné (técnica), dialética significa a
linguagem em movimento, o discurso, a arte de argumentar e discutir. O aspecto prático da dialética é o
diálogo, que apresenta o confronto entre duas tomadas de posição, assim como foi utilizado pelos sofistas,
por Sócrates, por Platão. Para o filósofo alemão Hegel (Idealismo), a dialética é um modo de
conhecimento da realidade colhida na sua estrutura contraditória; para o sociólogo Karl Marx, o método
dialético deve descer do céu para a terra, aplicado para a solução de problemas da realidade existencial,
inclusive econômica, cuidando do dissídio entre os donos do poder e a classe dos trabalhadores. E a
dialética não existe apenas no campo filosófico ou sociológico. A dramaturgia, desde suas origens no séc.
V a.C., utiliza o diálogo como o meio mais apropriado para exprimir os problemas existenciais. O Teatro
começou quando os episódios da vida do deus Dionísio deixaram de ser narrados por um único narrador
(chamado de “rapsodo” na poesia épica) para serem representados por um ator dialogando com o corifeu
e, mais tarde, com um segundo e terceiro ator. O interlocutor surgiu como oponente ao protagonista na
representação do agon, a luta física ou intelectual. O diálogo, portanto, é a base dramática a partir da qual
se desenvolveu todo o teatro ocidental.
O antônimo do diálogo é o monólogo (do grego monos, uma única voz, aquele que fala sozinho,
a que os romanos deram o nome de “solilóquio”). A oposição “monológico / dialógico” passou a
diferenciar duas formas de atividade artística: a obra monológica ou de inspiração apolínea, de ideologia
conservadora, e a obra dialógica, imbuída do espírito dionisíaco ou “carnavalizada”, segundo o estudioso
russo Bakhtine (Crítica), de cunho revolucionário, pois contesta os valores sociais. Este dualismo
estético, que é uma representação do dualismo cósmico (a oposição entre noite e dia, céu e terra, alma e
corpo etc.) e que a psicanálise identifica no id e no superego (Freud), encontra-se bem expresso num
trecho da obra Origem da Tragédia, de F. Nietzsche: “Teremos dado um grande passo e promovido o
progresso da ciência estética quando chegarmos não só à indução lógica, mas também à certeza imediata
deste pensamento: a evolução progressiva da arte resulta do duplo caráter do espírito apolíneo o do
espírito dionisíaco tal como a dualidade dos sexos gera a vida no meio das lutas que são perpétuas e por
aproximações que são periódicas”.
DIREITO (Jurisprudência)Justiça
DIRETOR (encenador de obras teatrais, cinematográficas e televisivas)
Do latim vulgar directorem, indica quem dirige qualquer tipo de instituição ou é responsável pela
produção artística de uma peça, de um filme ou de um programa televisivo. No teatro, tem a função de
“encenador”, de metteur- en-scène, sendo o coordenador de todos os elementos constitutivos de uma peça:
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texto, atores, público, cenografia, sonoplastia. Se o dramaturgo é o autor do texto, o diretor é o autor do
espetáculo. Como o maestro de uma orquestra sinfônica, embora não toque nenhum instrumento, o diretor
tem a função de dirigir o trabalho de todos os elementos do conjunto. A ele cabe a escolha do texto, o
estudo apurado do script, a indicação dos atores capazes de interpretar os caracteres das personagens, a
orientação dos técnicos da cenografia e da sonoplastia. Ele deve ter a percepção profunda do gênio, o
ouvido apurado do músico, a consciência especial do dançarino. Tudo isso sempre em função de
alcançar o objetivo que ele tem em mente: ou a fidelidade ao texto do autor, com o intuito de conseguir
uma perfeita reconstrução histórica, ou a adaptação da peça à nova realidade da época. Essa segunda
hipótese é a mais aconselhável, pois a representação de uma obra teatral antiga só tem sentido se ela tiver
uma relação alegórica com a atualidade. Veja-se, por exemplo, o sucesso da encenação da peça Júlio
César, de Shakespeare, montada pelo diretor Orson Welles em Nova York, durante o apogeu de Mussolini
na Itália: os conspiradores que assassinaram o grande líder democrata da Roma antiga usavam camisas
negras, o uniforme registrado dos fascistas. O diretor é o mediador entre a obra que, enquanto texto
literário, é eterna, e o público, que se modifica constantemente. Ele tem de estabelecer o sentido que o
texto teatral irá adquirir em contato com o palco, através da interpretação dos atores, e com a platéia,
composta de um público dado, em circunstâncias históricas, sociais e éticas determinadas. Além disso,
tem de saber encontrar o equilíbrio entre a empatia e o distanciamento estético: a peça deve parecer
suficientemente real para assemelhar-se à vida, e suficientemente irreal para que ninguém se esqueça de
que é pura arte. A função do diretor é muito antiga, embora não com esse nome e com atribuições tão
específicas. Na Grécia da época de Péricles, havia um magistrado, chamado “Comissário das Delícias”,
que funcionava como diretor do coro: a ele cabia dispor o espaço físico para a representação teatral,
escolher e orientar os atores. De lá para cá, o papel do encenador enriqueceu-se cada vez mais até chegar à
função do moderno diretor de teatro, que teve início com André Antoine, no começo do século XX. Além
de encarregar-se da organização objetiva do espetáculo, como anteriormente, ele passou também a ter
consciência do significado artístico de sua função, conferindo uma interpretação pessoal à obra dramática,
cinematográfica ou televisiva, imprimindo-lhe a marca de sua genialidade. Na arte mais moderna, o
Cinema, o Diretor é peça fundamental!
ESTRUTURALISMO FormalismoFunçãoTextoCrítica
Do latim structura, o conceito de estrutura, entendida como relação entre as parte de um conjunto,
pode ser rastejado em antigas noções das ciências naturais, matemáticas e humanas, onde se confunde com
conceitos afins, como “sistema”, “organismo”, “conjunto”, “modelo”, “forma”. Aplicado à lingüística por
Wilhelm Humboldt, o termo “estrutura” encontra-se em Saussure e nos Formalistas russos, que usam
indiferentemente forma ou estrutura. Foi Claude Lévi-Strauss que deu notoriedade ao termo “estrutura” ao
transferi-lo da Lingüística para a Antropologia. A teoria levistraussiana está fundamentada no princípio do
isomorfismo entre as leis do pensamento e as leis do real. Captar as estruturas de determinados
comportamentos humanos significa expressar racionalmente o inconsciente meta-individual que sustenta
as regras do funcionamento social. Segundo esta teoria, a estrutura não poderia ser individualizada num
objeto particular, mas num “modelo” teórico formulado a partir da análise de vários objetos.
Distinguiríamos, então, a “forma” (o todo orgânico de um objeto concreto) da “estrutura” (o modelo geral
elaborado pela análise dos elementos constitutivos e invariáveis, comuns a este e a outros objetos do
mesmo grupo ou da mesma espécie). Aplicado aos estudos literários, o conceito de estrutura de Lévi-
Strauss levaria a uma redenominação do trabalho proppiano A Morfologia do Conto: o formalista russo,
Vladimir Propp, não teria descoberto a “morfologia”, isto é, a “forma”, mas a “estrutura” do conto
fantástico, visto que construiu seu modelo a partir da análise de um corpus, constituído de cem narrativas
fabulosas.
À margem das questões teóricas acerca do conceito de “forma” e “estrutura”, deve ser salientada a
enorme relevância dos estruturalistas, especialmente franceses, para a compreensão do texto literário, no
que toca o estudo da narrativa ficcional. Trilhando o caminho percorrido por V. Propp
(FormalismoFunção), eles procuram ampliar seu método de trabalho, estendendo-o à análise não só
do conto popular, mas de qualquer tipo de narrativa. Roland Barthes amplia o conceito proppiano de
função, acrescentando, às funções distributivas ou sintagmáticas (núcleos e catálises), as funções
integrativas ou paradigmáticas (índices e informantes). A. J. Greimas reduz as 31 funções a três categorias
básicas: as ações que dizem respeito ao “contrato”, à “prova” e à “viagem” do herói. Quanto às
personagens, as “sete esferas de ação” de Propp são transformadas, pelo semanticista francês, nas seis
figuras do “modelo actancial”, composto de três eixos: “querer” (sujeito/objeto), “saber”
(destinador/destinatário) e “poder” (ajudante/oponente). Claude Bremond procura captar a rede de
possibilidades lógicas, que engendram a narratividade, através da distinção de três momentos
(virtualidade, passagem ao ato e resultado) e de dois processos (melhoramento ou degradação). T.Todorov
estuda as categorias da narrativa literária, estabelecendo uma dicotomia entre “história” (a análise lógica
das ações e das relações entre as personagens) e o “discurso” (a análise do processo da enunciação: o eu
emissor e o tu receptor).
GÊNERO: na literaturaÉpico-narrativoLíricoDramático;
na biologia: gênero/espécieGenéticaDarwin;
na sociologia: as discriminaçõesEscravidãoNietzsche
Do latim genus, generis, gênero, no seu sentido mais amplo, indica uma classe de seres ou objetos, que
possuem características semelhantes (“genérico”) e origem comum (“genético”), englobando várias
“espécies” ou subclasses a ele relacionadas. No tocante à Literatura, Aristóteles foi o primeiro a se
preocupar em distinguir, entre as obras literárias até então produzidas, semelhanças genéricas e diferenças
específicas. Não existindo antes dele a arte literária em prosa, o filósofo e crítico grego estudou a
produção poética do séc. VIII ao III, distinguindo os três gêneros que se tornaram tradicionais, com base
na sua concepção de arte como mimese, imitação da realidade:
Poesia épica, de épos,(gênero narrativo): uma história ficcional, de assunto glorioso, contada em 3ª
pessoa, por um narrador onisciente, perante um auditório; trata-se da palavra “narrada”.
Poesia lírica, de lira, instrumento musical a corda, que acompanhava a declamação de um poeta
que expressava um sentimento de amor, de tristeza, de exaltação etc, em 1ªpessoa: era a palavra “cantada”.
Poesia dramática: de drama, encenação de um problema existencial transmitido por atores
perante espectadores, através do diálogo: 2ªpessoa, a palavra “representada”.
Mas tal divisão da produção poética nos gêneros épico, lírico e dramático só foi possível
posteriormente, quando a cultura e a civilização do povo grego já se encontravam num estado avançado de
evolução. Nas origens, no tempo da pré-história helênica, anteriormente à época homérica, tais gêneros
não eram distintos. As primeiras formas de criação literária não estavam separadas de outras formas de
arte, quais a música, o canto, a dança, a mímica. A arte primitiva de qualquer povo tem sempre uma
origem religiosa e agrária, estando estritamente relacionada com rituais sagrados, tendo vários objetivos:
agradecer a divindade pela boa colheita, transmitir elementos de cultura e entreter o povo, por várias
formas de expressão artística. Imaginamos o que devia acontecer na Grécia pré-histórica, durante as
festas dionisíacas: num primeiro momento, um velho sábio apenas recitava as façanhas do deus (o épos, o
fato glorioso), perante agrupamentos de gente analfabeta; mais tarde, o povo começou a participar através
da dança e do canto coral, o ditirambo, hino em honra do deus Dionísio (o romano Baco) que, mais tarde,
passou a ter uma estrutura dramática, pelo diálogo entre o chefe do coro e os coreutas: este ditirambo
dialogado estaria, segundo Aristóteles, na origem da tragédia. Assim, por uma plausível evolução, as
histórias sobre o deus Baco começaram a ser encenadas (surgimento do drama), após serem narradas
(forma épica) e cantadas (gênero lírico). Já das primeiras formas artísticas do povo latino temos algumas
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notícias mais precisas. A satura (cheia) lanx (tigela) era o ‘‘prato cheio’’ das primícias da terra que os
antigos camponeses itálicos ofereciam aos deuses durante as festas religiosas. Os semas de “abundância”
e de “mistura”, presentes no étimo do adjetivo “sátura”, fizeram com que se desse o nome de satura à
primeira forma de poesia campestre latina, onde vários elementos artísticos se misturavam: os versos
recitados por jograis eram acompanhados por instrumentos musicais, por danças e por representações
miméticas. Devido ao tom jocoso e, às vezes, debochado, mais tarde, a antiga satura deu nome ao filão da
literatura “satírica”, em versos e em prosa.
A tripartição das obras literárias em gênero narrativo (poesia épica, romance, conto etc.),
lírico (hino, ode, canção etc.) e dramático (tragédia, comédia, ópera lírica etc.) tornou-se tradicional,
sendo usada até hoje, reestudada por vários teóricos da arte da palavra, e também por filósofos e
psicólogos que, transcendendo o interesse puramente literário, estabeleceram relações dessa diferenciação
genérica com posturas antropológicas. Emil Staiger (Conceitos fundamentais da poética) afirma que os
adjetivos “épico” (ou narrativo), “lírico” e “dramático” são conceitos da ciência da literatura que
exprimem virtualidades fundamentais do ser humano, correspondentes, respectivamente, ao domínio do
“figurativo” (a história contada é sempre um tempo passado, indicando o distanciamento entre o poeta e o
mundo representado), do “emocional” (o lírico é um estado de alma, que exprime o presente da
recordação) e do “lógico” (o drama visa o futuro, pois coloca um problema existencial a ser resolvido). Já
o filósofo alemão Cassirer (A filosofia das formas simbólicas) relaciona os gêneros literários com os três
planos da linguagem: o lírico representaria a linguagem na fase da expressão “sensorial” (idade pueril); o
épico, a linguagem na fase da expressão “figurativa” (juventude); o dramático, a linguagem na fase da
expressão “conceitual” (idade adulta). Roman Jakobson (Lingüística e Comunicação), relacionando as
funções da linguagem com os fatores da comunicação humana, vê o princípio diferenciador da poesia
lírica na predominância da função “emotiva”, orientada para a expressão do subjetivismo do emissor; o do
gênero narrativo na preferência para a função “referencial”, orientada para o contexto objectual; o da
poesia dramática na marcação da função “conativa”, orientada para o destinatário (espectador). Tal
distinção está baseada no fato de que algumas espécies de obras literárias focalizam a pessoa que fala, o eu
do narrador (formas líricas); outras, a pessoa a quem se destina a mensagem, o tu do receptor (formas
dramáticas); outras, a pessoa de quem se fala, o ele do enunciado (formas épicas e romanescas).
Essa divisão da literatura em três gêneros fundamentais é apenas paramétrica ou didática
pois, em verdade, nenhum texto literário é exclusivamente narrativo, lírico ou dramático. A classificação
de uma obra num gênero é feita, não pela exclusividade, mas apenas pela predominância de uns caracteres
sobre outros, tanto é que não está errado falar de “romance dramático”, “poema narrativo” ou “drama
lírico”. E, também, há outras divisões possíveis: alguns estudiosos preferem a distinção entre obras em
versos e obras em prosa; outros, como Northrop Frye (Anatomia da crítica), recorrem à teoria dos
arquétipos, relacionando a Comédia com o mito da “primavera”, o Romance com o mito do “verão”, a
Tragédia com o mito do “outono”, e a Sátira com o mito do “inverno”. Em outras passagens da mesma
obra, Frye estuda a teoria dos gêneros em seu aspecto formal, dividindo a literatura em quatro gêneros
principais: o épos, caracterizado pelo ritmo da “repetição”; a prosa, caracterizada pelo ritmo da
“continuidade”; o drama, caracterizado pelo ritmo do “decoro”; e a lírica, caracterizada pelo ritmo da
“associação”. Já Mikhail Bakhtine sugere uma distinção com base em dois princípios estéticos e
ideológicos: monologismo e dialogismo (Dialética). As obras de estrutura e de conteúdo monológicos,
caracterizadas pela univocidade, expressariam os anseios de um grupo social que acredita nos valores
humanos e na possibilidade do conhecimento da verdade, bem como no triunfo do complexo de virtudes
que compõem a ideologia social (ordem, beleza, justiça, amor etc.); já as obras de fundo dialógico
representariam a contestação, a revolta contra a tradição estético-cultural, por estarem centradas no
polimorfismo e na polifonia. Nelas predominam as formas oximóricas, os paradoxos, a irreverência, a
relatividade, a descrença nos valores religioso-ético-sociais. O crítico russo sustenta a tese de que as
formas e os conteúdos da arte dialógica estão ligados aos ritos e ao espírito do Carnaval, criando,
assim, outra divisão genérica da literatura: as obras “carnavalizadas”, em oposição aos textos ideológicos
ou conservadores. Bakhtine considera carnavalizado todo o filão das obras que contestam os valores
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sociais: a sátira menipea dos gregos, os poemas satíricos de Horácio, os romances em língua latina
Satíricon e Metamorfoses, a coletânea de contos Decameron, do trecentista italiano Boccaccio, o
romance renascentista Pantagruel e Gargantua, do francês Rabelais, o Dom Quixote, de Cervantes, e
toda a grande literatura produzida pelos gênios da arte ficcional, dando particular relevo à obra do maior
escritor da sua terra (A poética de Dostoievski). Tal bipolaridade pode ser percebida em outros eruditos,
embora com uma terminologia diferente: o crítico italiano Umberto Eco chama de “apocaliptos” poetas e
prosadores da linha contestatória, dialógica, revolucionária, e de “integrados” os escritores conservadores,
que estão mais preocupados em agradar o grande público do que em denunciar os absurdos da condição
humana. O filósofo alemão F. Nietzsche, na sua famosa obra Origem da Tragédia, distingue o espírito
“dionisíaco” (de Dionísio ou Baco, deus da embriaguez, da desordem) do espírito “apolíneo” (de Apolo,
deus da luz, da harmonia). O médico e cientista austríaco Sigmund Freud, estudando a psicologia
profunda do ser humano, descobriu o princípio do id, a vontade de satisfazer as forças do instinto, os
anseios individuais, em oposição ao superego, a necessidade de obedecer ao conjunto de normas impostas
pela sociedade. A literatura, que não deixa de ser uma forma de antropologia, pode ter sua produção
examinada e dividida a partir dessas macro-concepções da realidade. Em verbetes específicos (lírica,
tragédia, romance, conto, ópera etc) verificamos as peculiaridades das várias formas literárias.
A questão do “Gênero”, não é exclusiva da Literatura. Também as ciências biológicas
agrupam os seres em gêneros e espécies, distinguindo humano, animal, vegetal, masculino, feminino
(GenéticaDarwin). E a Antropologia e a Sociologia, no estudo do ser humano, evidenciam
diferenças raciais e minorias discriminadas pelo sexo, pela cor, pela cultura, pelo biótipo etc.
(EscravidãoHitler).
GÊNIO (genialidade)Inteligência
GIL Vicente (teatrólogo português da Renascença)
Em Portugal, as origens do teatro estão ligadas à figura de Gil Vicente (1465-1536). Anteriormente a
ele, a arte dramática estava reduzida à representação de “mistérios” e “milagres” representados nas praças
das igrejas e a “entremezes” (entreatos, geralmente constituídos de breves farsas) e “momos” (cenas de
mímica). Tendo como modelo o dramaturgo espanhol Juan Del Encina, Gil Vicente começou a introduzir
o teatro regular na corte de D. Manuel e D. Maria de Castela. Escreveu 46 peças, em português e em
castelhano, de assuntos variados: religioso (Auto da fé, Auto da alma, Trilogia das barcas, Monólogo do
vaqueiro), pastoril (Auto pastoril castelhano e Auto pastoril português), cavaleiresco (D. Duardos, Auto
de Amadis de Gaula), satírico (Quem tem farelos?, Inês Pereira, O velho da horta, Auto da Índia). No
dizer de Massaud Moisés, cada uma dessas peças ou “autos” representaria algo como uma das muitas
sessões de arte cênica que criou para o gozo estético da fidalguia do tempo: parece que, em verdade, o
comediógrafo compôs uma única peça, dividida em quarenta e seis atos (= autos), uma espécie de ampla
“Comédia Humana” dos fins da Idade Média e princípios da Renascença.
Antes de analisarmos este soneto, convém fazer referência a uma questão de edóctica. Em algumas
edições gongorinas aparece uma variante no segundo verso da primeira quadra: em lugar de “el”,
encontra-se “al” Sol. O sujeito de ‘‘relumbra’’, não seria “el Sol”, mas “oro bruñido”. Optamos pelo texto
da edição Aguilar porque nos parece mais lógico sintática e semanticamente. Com efeito, a forma “el Sol”
estabelece, na mesma quadra, um paralelo sintático com “el lilio”. Além disso, a falta do artigo
determinativo leva-nos a considerar “oro bruñido” mais como aposto de “cabello” do que como sujeito de
“relumbra”. Do ponto de vista do sentido, entendemos que a imagem poética, que compara o cabelo cor de
ouro da amada com a luz do Sol, é mais original do que a metáfora de uso do cabelo da mulher comparado
ao brilho do ouro. A composição deste soneto de Góngora apresenta um único período sintático, existindo
apenas um ponto final no término do poema. O verbo da oração principal encontra-se lá em baixo, no
início do primeiro terceto, “goza”, que é um imperativo exortativo, dirigido aos quatro elementos do corpo
da amada, descritos nas duas quadras anteriores: colo, cabelo, lábio e fronte. As duas quadras revelam um
mesmo campo fônico, pelo mesmo esquema rímico ABBAABBA, e uma estrutura sintática paralelística,
pois todos os versos ímpares começam pelo advérbio temporal “mientras”. As quatro orações
subordinadas adverbiais temporais (duas em cada quadra) estabelecem comparações de superioridade
entre elementos do corpo da amada e elementos da natureza: o cabelo é mais loiro do que a luz do Sol; a
fronte é mais branca do que o lírio; os lábios são mais vermelhos do que o cravo; o pescoço é mais
reluzente do que o cristal. Os dois tercetos, rompendo o paralelismo fônico, sintático e semântico das
153
quadras, em que se deu a “descrição” da beleza da amada, apresentam uma exortação ao gozo da
juventude antes que a idade madura ou a velhice façam murchar o fruto delicioso da mocidade. O tema do
aproveitamento do momento presente, pois o tempo passa irreparavelmente, é muito antigo na lírica
ocidental. Encontramo-lo na poesia grega e na literatura em língua latina, onde a expressão collige, virgo,
rosas se tornou até proverbial: a juventude é comparada metaforicamente a uma flor que se estraga se não
for colhida no tempo apropriado. Em Góngora, esse motivo tópico é revestido de peculiaridades
estilísticas e ideológicas próprias do Barroco: o exagero do elemento metafórico (os cabelos da amada são
mais luminosos do que a luz do sol, etc.); o cromatismo das palavras e o prestígio dos metais preciosos (a
exaltação do ouro com relação à prata); a descrição decrescente dos elementos corporais da amada (do
cabelo ao pescoço). Mas o que mais distingue este soneto de um poema renascentista é a velada presença
da morte, pela qual o prazer se reveste de amargura. O último verso, de uma beleza inigualável pela
enumeração decrescente, que vai do elemento mais sólido (terra) ao elemento imaterial (nada), passando
por elementos aeriformes (fumo e pó) ou sem consistência alguma (sombra), faz com que a alegria do
gozo da juventude seja perturbada pelo sentimento da efemeridade da vida e da chegada irremediável da
morte, que tudo aniquila. É visível aqui a influência da ideologia do Concílio de Trento (Contra-
ReformaLutero) sobre o grande poeta espanhol. Góngora traduz em linguagem poética a advertência
contida na reza da Quarta-Feira de Cinzas: “lembra-te, o homem, que nasceste do pó e em pó te
converterás!”.
GÓTICO MedievalismoArte
GRAAL (A Demanda do Santo Graal: o mito do Rei Artur, ciclo cultural bretão)
O nome “graal” vem do latim gradalis, que era o vaso em que se colocavam os alimentos,
de forma “gradual”, conforme seu peso. Nas origens do Cristianismo, o termo foi usado para indicar o
vaso de que se serviu Jesus na Última Ceia. Nele o discípulo José de Arimatéia teria guardado o sangue
de Cristo na cruz, jorrado do costado aberto pela espada de um centurião romano. Após várias peripécias,
conforme lendas do ciclo “bretão”, este vaso teria chegado a Grã-Bretanha, na corte do lendário rei Artur e
de seus Cavaleiros da Távola Redonda, ao redor do séc.V, quando ocorreu a unificação dos povos anglos e
saxões e se introduziu o Cristianismo na Inglaterra. Entre as várias histórias fantásticas que se inventaram
acerca do rei Artur e dos heróis castos Galaaz, Perceval e Boors, a mais famosa é o romance de cavalaria
A Demanda do Santo Graal, que conta as aventuras dos cavaleiros em busca do vaso sagrado, símbolo da
graça divina. Talvez o texto mais expressivo desta saga romanesca, onde melhor aparecem os valores
ideológicos do Medievalismo, seja o episódio da "Tentação de Galaaz". O herói, durante uma de suas
andanças, chega a um castelo onde recebe hospedagem. A filha do dono do castelo, uma "fremosa
donzela" de 15 anos, apaixona-se pelo cavaleiro à primeira vista e perdidamente, sem que Galaaz sequer
suspeite de ser o objeto do desejo da mocinha. De noite, de camisola, ela penetra no quarto do jovem e se
deita na cama junto dele. Mas Galaaz, que tinha feito voto de castidade, não cede ao apelo erótico da moça
154
e esta, sentindo-se rejeitada, se suicida trespassando seu corpo com a espada de Galaaz. Do ponto de vista
estrutural, poderíamos notar vários elementos de inverossimilhança neste episódio da Demanda. O herói,
na entrada do castelo, é obrigado a deixar sua espada na casa das armas, conforme o costume medieval.
Ora, esta espada, logo depois, se encontra no quarto onde o jovem está dormindo e é usada pela moça.
Esta e outras contradições se explicam pelo caráter de oralidade das primitivas narrações, havendo vários
contadores da mesma história. Mais importante é ressaltar a inverossimilhança psicológica da personagem
feminina: tamanha audácia amorosa não é admissível numa jovem de apenas quinze anos. De outro lado,
ela sequer teria a força física suficiente para fazer com que a espada lhe furasse o corpo inteiro, do peito as
costas. Mas, como se sabe, o principio da verossimilhança é um preceito quase exclusivo da estética
clássica, não tido em conta pela arte medieval. Fundamental é o fator ideológico, que apresenta o choque
entre os dois códigos antitéticos do ser humano: natureza versus cultura. Galaaz encarna o código cultural
da Idade Média: a consagração de sua alma e de seu corpo a Deus; a preferência da castidade à satisfação
amorosa; a observância da norma da distinção entre as classes sociais que não permite a união de uma
jovem nobre e rica com um cavaleiro andante sem família e sem bens econômicos; a proibição do
relacionamento sexual fora do casamento; o respeito à vontade do pai da moça, o todo-poderoso e
autoritário dono do castelo; a gratidão pela hospedagem recebida; enfim, a honra, a honestidade, a
virgindade, o martírio do corpo, que são os principais valores do homem medieval, em vista de atingir o
bem supremo, que é a salvação da própria alma. A personagem da donzela, pelo contrário, representa o
código oposto: a força do instinto da natureza, que se revolta contra todos os valores ideológicos, em
nome da satisfação de seus desejos carnais. O impulso erótico dessa moça de apenas quinze anos e
educada no ambiente fechado do castelo é tão violento que a leva a quebrar todas as barreiras sociais,
morais e religiosas. E, quando percebe que seus esforços para obrigar Galaaz a fazer dela uma mulher
sexualmente satisfeita são inúteis, ela encontra na morte violenta a solução de sua angústia existencial. Se
cotejar a caracterização dessa personagem de A demanda do Santo Graal com a configuração da dama
angelical, ser idealizado e objeto de um amor apenas platônico, da poesia trovadoresca e da escola do
"doce estilo novo" (Petrarca), podemos verificar como o espírito dionisíaco e o espírito apolíneo estão
igualmente presentes na estética e na prática de vida medieval. O que impressiona é a irredutibilidade
desses dois princípios, que leva à prática da doutrina maniqueísta do dualismo cósmico. O personagem de
ficção (que geralmente é um homólogo do ser real) da Idade Média ou é um ser angélico ou um ser
diabólico e, portanto, raras vezes se apresenta como um ser “humano” no sentido mais profundo do termo.
Porque ser humano é sentir-se feito de carne e de espírito, ter vícios e virtudes, acusar momentos de
fraqueza e momentos de heroísmo, enfim nunca ser totalmente anjo ou totalmente demônio, visto que na
psicologia humana o id e o superego (Freud) sofrem vitórias e derrotas alternadas.
A saga do rei Artur e dos Cavaleiros da Távola Redonda foi fonte de inspiração para muitas obras
literárias e cinematográficas, sendo utilizada também por artistas plásticos, pelo teatro, pela dança, pela
ópera lírica. A partir dos anos 30, começou a ser publicada uma série de cinco volumes, com o título O
Único e Eterno Rei, de autoria de T.H.White. A tradução em língua portuguesa saiu em 2004, com o
título A Espada na Pedra. O cinema produziu muitos filmes de aventuras, centrados sobre episódios e
personagens do ciclo cultural da Bretanha: o rei Artur, o mago Merlin, a princesa Genebra, o amante
Lancelot, a espada mágica Excalibur. O compositor alemão Wagner tratou do assunto na Ópera lírica
Parsifal. A lenda do Santo Graal, recentemente, foi reinterpretada pelo ficcionista norte-americano Dan
Brown no seu best seller O Código Da Vinci (Leonardo). Nesta obra, instigante e polémica, a palavra
“Santo Graal”, pela etimologia francesa Sangreal, não significaria um cálice, mas o conjunto dos
documentos que revelariam uma suposta relação amorosa entre Jesus Cristo e Maria Madalena. O
segredo milenar, tendo referências simbólicas ao sagrado feminino, teria sido guardado sigilosamente
pelos Templários no séc. XI e pelo Priorado de Sião, sociedade secreta renascentista, da qual Leonardo da
Vinci teria sido membro.
IRACEMA (romance de José de Alencar: o mito indígena da virgem dos lábios de mel)
Verdes mares bravios de minha terra natal...
Iracema é a personagem-título do romance mais famoso de José Alencar, em que encontramos a
confluência de dois gêneros literários: o lírico e o épico, além do regionalista e indianista. O estilo lírico é
evidenciado pela “prosa poética”, repleta de elementos sonoros, provenientes da segmentação das frases e
da repetição de sintagmas, de imagens sugestivas, de metáforas delicadas, de comparações entre
elementos do mundo vegetal, animal e humano, e de outros recursos retóricos próprios da poesia lírica.
Além do aspecto formal, o lírico se depreende da exaltação da flora e da fauna da terra brasileira e do
idealismo sentimental com que são retratadas as personagens principais, especialmente a indígena
Iracema. O aspecto épico do romance se relaciona com o assunto: o narrador anuncia que está relatando
“uma história que me contaram nas lindas várzeas onde nasci”. Esta história é a lenda de Iracema, “a
virgem dos lábios de mel”. Tal lenda se formou no seio do povo nordestino, a partir de um fato histórico: a
luta pela colonização do Ceará e de outras regiões do nordeste brasileiro, no início do século XVII. O
jovem português Martim Soares Moreno participou da expedição do nobre paraibano Pero Coelho, que
visava colonizar a região à foz do rio Jaguaribe, primeiro núcleo do futuro Ceará (“canto da jandaia”). Os
indígenas Potiguaras (“comedores de camarão”), que habitavam o litoral nordestino, estabeleceram
relações de amizade com os portugueses para defender-se de inimigos comuns, quer de raça indígena, os
Tabajaras (“senhores das aldeias”) que habitavam no interior do Ceará e os Tupinambás (“parentes dos
Tupis”) que, após uma luta inglória contra os portugueses da Bahia, se aliaram aos franceses do
Maranhão; quer de raça branca: os invasores franceses e holandeses. Nesta luta pela colonização do
nordeste brasileiro, a história registra o valor guerreiro de Martim Soares Moreno, mestre-de-campo do
exército português, e do índio Poti, batizado com o nome de Antônio Felipe “Camarão”, irmão do chefe
potiguara Jacaúna, que ajudou os portugueses a expulsar os holandeses. Ao redor deste núcleo histórico, o
povo nordestino criou a lenda do português Martim, que se apaixona pela índia Iracema e cultiva um forte
sentimento de amizade pelo indígena Poti. Com um distanciamento de dois séculos e meio (1615, época
179
aproximada do episódio histórico, e 1865, data da primeira publicação de Iracema), José de Alencar
explora artisticamente os fatos histórico-lendários e cria um romance curto, meio poema épico e meio
poema lírico. A fábula romanesca inicia quando a bela tabajara Iracema, filha de Araquém, o grande chefe
da tribo, encontra na floresta cearense Martim, moço de raça branca que perdera de vista o companheiro
Poti, índio potiguara, durante uma caçada. Ela o leva até a cabana do Pajé, seu pai, conhecedor dos
segredos do deus Tupã. Bem recebido, Martim se apaixona pela linda Iracema, mas ela lhe revela que não
poderá amá-lo, porque consagrou sua virgindade ao deus, sendo guardiã do segredo da jurema e do
mistério do sono. A “jurema” era um licor preparado com o suco da fruta da árvore homônima, que tinha
um poder narcótico, pois excitava a fantasia e proporcionava alucinações agradáveis, vivificando os
sonhos e tornando realidade os desejos. Considerada uma bebida divina, a par do néctar dos deuses da
mitologia grega, sua fabricação era um segredo só conhecido pelo Pajé e por sua filha devotada ao culto
de Tupã. Irapuã (“Mel-Redondo”), o maior guerreiro tabajara, exorta os de sua tribo a lutarem contra os
índios potiguaras, que habitam o litoral cearense e travam amizade com os “guerreiros do fogo”, os
estrangeiros de outra raça e de outra religião. A vida de Martim, que é de raça branca e amigo da tribo
rival, está em perigo. Iracema sugere que Martim espere seu irmão Caubi chegar da caça para que seja
acompanhado em sua viagem de volta à tribo dos potiguaras. Leva-o até o bosque sagrado de Tupã e lhe
dá de beber a jurema, beberagem que lhe faz rever em sonho sua pátria natal, seus familiares e sua
namorada de infância. O guerreiro índio Irapuã, percebendo o amor que está crescendo entre Iracema e
Martim, tomado pelo ciúme e pelo ódio, ameaça chupar o sangue do jovem branco. Iracema e seu irmão
Caubi acompanham Martim em sua viagem de volta. Durante o caminho, Irapuã e mais de cem índios os
atacam e exigem a entrega do moço branco. O casal de indígenas defende Martim e o leva de volta à
cabana do Pajé. Entretanto, o índio potiguara Poti vem ao encontro de seu amigo branco, perdido na
floresta dos Tabajaras, mas não ousa aproximar-se da cabana de Araquém. De noite, Iracema embebeda o
jovem branco com o vinho de Tupã, a jurema, e com ele tem relação sexual, sem que Martim o perceba.
Durante uma festa em honra de Tupã, Iracema prepara muito licor de jurema para os guerreiros tabajaras.
Aproveitando do sono profundo destes, ela leva Martim até o lugar onde se esconde o amigo Poti. Aí
revela a Martim que é sua esposa e que não pode mais abandoná-lo, tendo traído o voto de virgindade
feito a Tupã. Dias felizes de amor, durante a viagem rumo à praia cearense. Na cabana à beira-mar, na
terra dos potiguaras, Martim sonha com a chegada de um barco que o possa levar de volta ao seu país
natal, Portugal. Iracema, grávida, se aflige com a tristeza de Martim, que, apesar de ter assimilado língua e
costumes indígenas, assumindo até o nome de Coiatabo (“guerreiro pintado”), ainda sente saudade de sua
terra e de seus familiares. O herói lusitano, preferindo a companhia de Poti para a guerra e para a caça,
afasta-se cada vez mais de sua cabana. Iracema, apenas na companhia de um cão fiel, dá à luz Moacir (“o
nascido do sofrimento”). Acabando o leite, ela oferece o seio a cachorrinhos para estimular sua produção e
alimentar Moacir. Cada vez mais fraca, está em ponto de morte, quando chegam Martim e Poti. O jovem
português sente a alegria da paternidade misturada à dor da viuvez. Enterrada a jovem esposa à sombra de
um coqueiro, Martim leva num frágil barco o filho e o cão fiel.
O romance Iracema é o mais acabado exemplo de literatura “indianista”, escrito nos alvores do
movimento nacionalista. A idealização do elemento indígena é, sem dúvida, o marco mais peculiar do
romantismo brasileiro. O índio como tema literário já fora explorado na época do Arcadismo. Mas,
enquanto a poesia épica de Santa Rita Durão e de Basílio da Gama considerou o indígena ou como ser de
raça inferior, antropófago (Caramuru) ou como simples elemento da natureza, inculto (Uraguai), a
literatura romântica promove a exaltação do aborígine brasileiro, em contraste com o egoísmo
estrangeirista dos portugueses, insinuando que a raça indígena é cultural e humanamente superior à raça
branca dominadora. Com efeito, no romance Iracema (como também nas duas outras ficções indianistas
de Alencar, O Guarani e Ubirajara), o personagem-título possui uma personalidade bem mais marcante
do que a do protagonista branco. É Iracema que seduz Martim, mesmo sabendo que o amor lhe causará a
morte. A paixão amorosa da jovem índia, bem ao estilo romântico, é mais forte do que seu voto religioso e
seu afeto à família e à tribo. Ela nunca se arrepende da escolha feita e seu amor em momento algum
vacila, enquanto o fraco Martim se deixa levar pela nostalgia da terra distante. É Martim que se acultura,
aprendendo a língua e os costumes indígenas, e não vice-versa, como acontece no Caramuru, onde a índia
Paraguaçu adota o nome cristão de Catarina e vai casar-se “legalmente” com Diogo na corte do rei da
França. Enfim, no romance de Alencar, é a cultura primitiva dos aborígines que predomina sobre a
civilização européia. Não é sem motivo, portanto, que a elaboração artística e idealizada da lenda de
Iracema se tornou a melhor expressão literária do indianismo brasileiro e um marco importante do nosso
nacionalismo poético. Iracema pode ser considerada a personagem símbolo da terra mãe que, pelos seus
encantos, seduz o estrangeiro que vem ao Brasil e o induz a aqui ficar. Neste sentido, o capítulo final do
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romance é bem expressivo: Martim, que, tomado pela saudade de sua terra de origem, voltara para
Portugal, não resiste ao chamamento da terra de Iracema e, após quatro anos de ausência, retorna
definitivamente ao Ceará e, ao redor do túmulo da índia, dá início à civilização brasileira, fruto do
acasalamento da raça portuguesa com a raça indígena evangelizada.
Talvez a culpa dos dois amantes — Leonardo e a Noiva — esteja na falta de coragem de enfrentar
tempestivamente a opinião pública pois, na sociedade espanhola da época de Lorca, o sentimento de honra
gritava mais forte do que o direito à felicidade. Quando resolvem atender ao chamamento da natureza, das
forças do instinto, já é tarde: o código social, pelo casamento de um e pelo noivado da outra, encontra-se
irremediavelmente violado e a desonra tem que ser lavada com o sangue.
LÚCIFER (Demônio)Satã
LUCRÉCIO (poeta e filósofo romano)Epicuro
Se os sentidos não são verdadeiros,
nossa razão é falsa
Poeta de tendência filosófica e científica, Titus Lucretius Carus (98?-55 a. C.), educado na escola
epicurista da Campânia, região ao sul de Roma, assumiu a missão de divulgar a doutrina atomista dos
filósofos Demócrito, Empédocles e, especialmente, do mestre Epicuro, que ensinava serem a ignorância
e o medo os sustentáculos da religião. No seu imortal poema em seis livros, De rerum natura (“Sobre a
natureza das coisas”), servindo-se da descoberta dos átomos, as partículas indivisíveis cujo choque
205
causaria os acidentes, tenta explicar as causas científicas dos fenômenos naturais, desmistificando assim as
superstições que atribuíam raios, terremotos e pestilências à ira dos deuses. Num dos trechos mais líricos
do poema didático, descrevendo o sacrifício de Ifigênia, conduzida à morte pelo próprio pai Agamenão
para atender à ordem da deusa Diana, Lucrécio exclama:
“Tantum religio potuit suadere malorum!”
(Até que ponto a religião pôde induzir um homem a cometer maldades!)
A obra de Lucrécio teve uma influência incalculável na cultura ocidental, pois, além de divulgar o
epicurismo e o atomismo, é o primeiro trabalho de pesquisa que apresenta um modelo sério de
investigação científica e de reflexão filosófica. O que dói é constatar que a humanidade, ate hoje, ainda
não aprendeu as lições ensinadas por Epicuro e Lucrécio, continuando a matar em nome de Deus!
MATERIALISMO RealismoPositivismo
MATRONA de Éfeso (conto picaresco de Apuleio)Metamorfoses
MITOLOGIA greco-romanaMitoReligião
“Tudo está repleto de deuses”
(Tales)
No verbete Mito, estudamos sua natureza genérica, independentemente de qualquer tipo de
religiosidade. Passamos agora a olhar de um modo mais peculiar a mitologia helênica, que é considerada
o acervo da civilização ocidental. Sem a presença fecundante do mito greco-romano seria difícil imaginar
239
a origem da tragédia, da música, das artes plásticas. O mito grego representa o esforço de entender os
arcanos da natureza, a cosmogonia do universo, a origem das paixões humanas, o motivo de usos e
comportamentos do homem helênico. No frontão do templo de Apolo, em Delfos, estava escrito
“conhecer-se a si mesmo”, estimulando o homem a ter uma experiência mais natural do que propriamente
divina. É interessante notar que a mitologia greco-romana não tem nenhum texto sagrado, como a Bíblia
de judeus e cristãos, o Corão dos muçulmanos ou os Vedas do Budismo. A religião dos antigos gregos
não conheceu a experiência mística das religiões orientais, nem o messianismo do Judaísmo. Ela
permaneceu ligada ao mundo dos seres naturais. Quando o filósofo Tales, no séc. VI a.C., disse: “tudo
está repleto de deuses”, não entendeu referir-se a entidades abstratas e distantes que, num determinado
momento, tivessem resolvido criar, organizar e dirigir o mundo. Ele, como Platão mais tarde, pensava
num Dáimon, num espírito cósmico, na força maravilhosa da natureza, que dá forma a tudo em vista de
um fim. Contrariamente ao que está escrito nas Sagradas Escrituras das religiões monoteístas, não é Deus
que cria o homem, mas são os homens que inventam os deuses a sua imagem e semelhança, projetando na
configuração de entidades sobrenaturais suas virtudes, seus vícios, seus desejos, seus medos. Na mitologia
greco-romana não existe o conceito de pecado como tormento interior, angústia por uma culpa ancestral,
que só pode ser redimida pela chegada de um Salvador.
Os mitos gregos, inventados pelo imaginário popular, depois de longa transmissão oral, a partir do
séc. IX a.C., quando a Grécia começou a usar o alfabeto, se encontram registrados em obras de
historiadores, filósofos, poetas trágicos, cômicos e líricos (Heródoto, Homero, Hesíodo, Ésquilo,
Sófocles, Eurípides, Aristófanes, Safo, Menandro), nas epígrafes em frontais de templos, nos túmulos,
em vasos, na estatuária e na pintura. A mitologia grega tem sua “história”. Os mitólogos distinguem as
“Divindades Primordiais”, a fase primitiva ou arcaica do nascimento dos mitos, das “Divindades
Olímpicas”, que seria o período de ouro da produção mitológica, quando a genealogia dos vários deuses se
define completamente, apresentando um núcleo principal com suas variantes, inclusive uma divindade se
inter-relacionando com outra. Falando das divindades primordiais, o poeta Hesíodo, na sua Cosmogonia,
que pode ser considerada o Gênesis da mitologia grega, conta que “no começo era o Caos”, o espaço
aberto, pura extensão ilimitada, um abismo sem fundo. Mas no “começo”, a partir de quando? O que
houve “antes”, ninguém pode saber, pois pertence à eternidade. Ao ser humano é dado conhecer apenas o
que decorre no Tempo (Cronos): o antes e o depois são mistérios que fogem à percepção da razão.
Narra o mito que, num momento indefinido, do Caos surgiu a primeira realidade sólida, chamada de Gaia,
a Terra , que, por partenogênese, deu à luz o Céu estrelado (Urano), que a cobriu toda. Do Caos, junto
com a Terra, saiu também Eros, o amor universal, cuja força irresistível operou a conjunção do Céu e da
Terra, fazendo com que a mãe se apaixonasse pela sua criatura. Já a tradição órfica (Orfeu) apresenta
uma outra versão do mito cosmogônico. Existiria um Ovo primordial que, engendrado pela Noite, deu
origem a Eros.. Da separação do Ovo, as duas metades formaram a Terra e o Céu. Voltando à narração de
Hesíodo, a mãe-Terra, a primeira forma material surgida do misterioso Caos, movida pela necessidade de
ter um companheiro, sozinha, gerou o Céu. Eros, seu contemporâneo no Caos, princípio espiritual do
Amor, faz Gaia unir-se ao seu primogênito. Fecundada por ele, a Terra dá à luz os Titãs (uma dúzia de
filhos “normais”), os Ciclopes (monstros de um só olho) e os Hecantôquiros (gigantes de cem braços e
cinqüenta cabeças). Mas a Terra, cansada de tanto parir, decide destronar o marido e pede a ajuda do filho
Cronos (Saturno), o insaciável deus do Tempo. Quando Urano se aproxima da esposa para novamente
fecundá-la, Cronos atira-se sobre o pai e corta-lhe a genitália. Os testículos, cheios de sêmen, caem no
oceano e formam uma espuma alvíssima, da qual emerge Afrodite (Vênus), a deusa do amor e de beleza.
E o Tempo começa a reinar no cosmos. Cronos, soberano absoluto do céu e da terra, une-se a Réia
(Cibele), sua irmã, também ela um titã. Engendra nela uma multidão de filhos, mas, para que não
acontecesse também a ele o que fizera a seu pai, devora todos ao nascerem. Até que Cibele consegue
esconder um filho, que escapa à voracidade de Saturno: Zeus (Júpiter), que consegue derrotar o pai e se
tornar o senhor do Olimpo. Das doze divindades olímpicas se fala em verbetes específicos, utilizando, de
preferência, os nomes latinos por serem mais conhecidos na nossa culturaVênusMarte etc.
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MODERNISMO (“A Semana da Arte Moderna”)IdadeVanguarda
Um safanão naquele adormecido em berço esplêndido Brasil
das Letras, das Artes e do pensamento
(Paulo Mendes de Almeida)
Do latim tardio modernus, de “modus” (maneira), calcado em “hodiernus”, de “hodie” (hoje), o
adjunto adnominal “moderno” qualifica algo que é atual, referente ao momento presente. É incorreto,
portanto, chamar de “moderno” a algo que aconteceu num passado remoto ou próximo. A famosa
“Semana de Arte Moderna” foi um movimento cultural “moderno” apenas com relação aos poetas e
artistas daquela época (1922). Falar em “Pós-Modernismo” é uma contradição em termos. Tanto é
verdade que na cultura européia não se fala em Modernismo. Os movimentos literários e artísticos, que se
sucederam ao Simbolismo e que vigoraram a partir do início do séc. XX, tiveram o nome genérico de
“Vanguarda” e denominações específicas: Futurismo, Expressionismo, Cubismo, Dadaísmo,
Surrealismo, Decadentismo, Neo-realismo etc. Também não faz sentido colocar o início da Era Moderna
(Idade) na época do Renascimento italiano, no séc.XV. Como observa Arnold Hauser, na famosa obra
História social da literatura e da arte, entre a Baixa Idade Média (Medievalismo) e o início da
Renascença não há propriamente uma ruptura de cultura, mas uma passagem gradativa do Absolutismo
religioso para o Humanismo. Com efeito, podemos distinguir três momentos diferentes no Renascimento
europeu: o carolíngio (Carlos), o das Cruzadas e o italiano, que é a renascença propriamente dita.
Para evitar essa confusão toda, seria bem mais coerente fazer coincidir o início da Era Moderna com o
surgimento das várias línguas neolatinas e anglo-saxônicas, chamadas de “modernas” em oposição às
línguas “clássicas” (latina e grega), recuando, assim, até o início do primeiro milênio, quando começaram
a aparecer os primeiros escritos em língua francesa, italiana, galega, inglesa etc.
Alguns críticos continuam chamando “moderna” toda a cultura do séc. XX, por não ter uma
classificação específica, após o período do Realismo, não distinguindo o moderno do contemporâneo. O
que de melhor foi produzido nas últimas dez décadas encontra-se nos verbetes que indicam o gênero
(Romance, Lírica, Drama etc.), a forma de arte (Cinema, Teatro, Pintura etc.) ou autores exponenciais
(Picasso, Einstein, Joyce etc.). Aqui daremos apenas um toque no movimento modernista, que estourou
na famosa “Semana de Arte”, de 11 a 18 de fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo, com a
participação de escritores, músicos e artistas plásticos paulistas e cariocas. Enquanto intelectuais e
músicos apresentavam concertos e palestras no interior do Teatro, pintores e escultores expunham suas
obras “modernistas”, que então eram chamadas de “futuristas” por leigos, no saguão. O evento,
organizado por Graça Aranha, acusou a presença das melhores inteligências da época: os poetas Mário e
Oswald de Andrade, Menotti Del Picchia, Guilherme de Almeida, Ronald de Carvalho; os pintores Anita
Malfatti e Di Cavalcanti; o músico Villa-Lobos. O movimento poético-artístico deflagrado durante a
Semana teve imensa repercussão, quer positiva quer negativa, ofendendo os conservadores e exaltando os
revolucionários. Um dos melhores frutos do acontecimento foi a organização das idéias renovadoras na
cultura brasileira que, até então, viviam na surdina.
NARRADOR PRESSUPOSTO
A essa primeira categoria pertencem as narrativas que não fazem referência explícita ao narrador e
ao destinatário. Trata-se de contos ou romances com registro da fala em terceira pessoa, onde predomina
a função referencial ou cognitiva que está orientada para o contexto: visa apenas a transmissão da
substância factual, sem preocupar-se com emissor e receptor. Essa categoria apresenta várias modalidades
de narrador:
1) Onisciente neutro: Norman Friedman assim nomeia o foco narrativo de textos nos quais a
história parece contar-se a si própria, prescindindo da figura do narrador. Este, oculto, pressuposto,
confundido com o que Waine Booth chama de “autor implícito", é dotado do poder da onipresença: ele
sabe o que se passa no céu e na terra, no presente e no passado, no íntimo de cada personagem. Tal
perspectiva é chamada por Jean Pouillon de “visão-por-detrás”: o narrador se coloca atrás e acima das
personagens, sabendo mais do que elas pelo simples motivo de que sabe tudo. A narração de
acontecimentos e a descrição de ambientes procedem de um modo neutro, impessoal, sem que o narrador
tome partido ou defenda algum ponto de vista. Mas será que tal imparcialidade é absoluta? Tomemos, por
exemplo, o conto infantil universal Chapeuzinho Vermelho. Quando o narrador onisciente diz "o lobo
malvado" está emitindo um julgamento de valor, acusando seu posicionamento ideológico. Por que o lobo
é malvado? Ao comer a menina, está apenas atendendo ao instinto de conservação da própria vida que o
leva a satisfazer sua fome. O homem que mata animais para se alimentar ou simplesmente para se divertir,
praticando os esportes da caça e da pesca, por que não é considerado malvado? A resposta está na postura
ideológica do autor implícito que, sendo um humano, defende a superioridade do homem em relação ao
mundo animal. É apenas uma questão de ponto de vista! A neutralidade do narrador onisciente é, portanto,
250
apenas aparente, pois, através dos elementos do aparelho formal da enunciação, são detectáveis os
critérios de valor do enunciador. Essa focalização centrada sobre um narrador onisciente neutro predomina
na ficção tradicional (narrativas primordiais, míticas, cavaleirescas), na literatura de massa (conto popular,
romance de amor e de aventura, de capa e espada, de terror, de ficção cientifica) e, de um modo geral, nas
obras românticas ou realistas que seguem o princípio clássico da verossimilhança.
2) Onisciente intruso: esse ponto de vista é muito semelhante à focalização anterior, com a
diferença de que o narrador volta e meia interrompe a narração dos fatos ou a descrição de personagens e
ambientes para tecer considerações e emitir julgamentos de valor. A técnica da intervenção do narrador é
praticada pelos autores que têm um pendor moralizante, satírico ou irônico. Honoré de Balzac e Machado
de Assis são mestres nesse tipo de focalização.
3) Onisciente seletivo: tal focalização dá-se quando o narrador, mesmo sendo o sujeito do
discurso, apresenta o ponto de vista de uma ou de várias personagens, não a posteriori, através do resumo,
mas diretamente, no momento presente, entrando na mente da personagem. A diferença estilística entre a
onisciência neutra ou intervencionista e a onisciência seletiva está na forma do discurso indireto: nesse
caso, é utilizado o chamado “discurso indireto livre”, pelo qual o narrador interpreta com palavras suas as
idéias e os sentimentos das personagens. Caso interessante esse: quem diz não é quem pensa e quem pensa
não é quem diz: o narrador funciona apenas como transmissor e intérprete da visão de mundo da
personagem. Tal perspectiva às vezes se confunde com a do narrador-personagem, que veremos a seguir.
Em certos trechos de algumas narrativas de fluxo de consciência fica difícil discernir se o sujeito da
enunciação é o narrador ou a personagem.
4) Narrador- câmara: atingindo o extremo oposto da onisciência, tal foco narrativo, que Pouillon
chama de “visão-de-fora”, anula quase completamente o saber do narrador. Este é como um camera-man
que, colocado atrás da máquina cinematográfica, só pode mostrar o que a objetiva é capaz de ver. Ele não
pode falar do passado, não pode estar em vários lugares simultaneamente, não pode penetrar na
consciência da personagem. O narrador exerce o papel de um observador imparcial que analisa
realisticamente a conduta e o meio enquanto materialmente observáveis. Influenciado pela técnica do
cinema, esse tipo de foco narrativo foi cultivado especialmente pelos autores ligados à “escola do olhar"
do nouveau roman, cujo teórico, Alain Robbe-Grillet, afirma que o narrador de seus romances,
diferentemente do deus onisciente balzaquiano, é um homem com suas limitações, que "vê, sente,
imagina, um homem situado no espaço e no tempo, condicionado pelas suas paixões, um homem como
você e eu. E o livro só relata a sua experiência, limitada, incerta”.
NARRADOR- PERSONAGEM
Nessa segunda categoria agrupamos as focalizações centradas num ente ficcional que, dentro do
texto literário, assume o papel de narrador. Jean Pouillon fala de "visão com", porque é através do ponto
de vista da personagem-narradora que conhecemos o que se passa no texto. A coerência interna desse tipo
de relato subjetivo (o romance é geralmente narrado em primeira pessoa) exige que a personagem-
narradora, vez por outra, nos explique como e quando tomou conhecimento dos fatos que está narrando e
dos pensamentos das outras personagens. Para superar essa dificuldade técnica, o autor usa o recurso de
atribuir o papel de narrador não a uma só personagem, mas a várias, sucessiva ou alternadamente, através
do discurso direto ou indireto livre. Nesse caso, o ponto de vista é múltiplo e o processo de enunciação é
posto em evidência toda vez que uma personagem toma a palavra. Aliás, a pluralidade de visões numa
mesma narrativa é fato comum. O problema é distinguir a visão predominante, pois esta implica
especificidade de estrutura e de significação própria de cada obra literária. O Narrador-Personagem pode
ser:
I) Narrador- protagonista: o eu que narra se identifica com o eu da personagem principal que vive
os fatos. Trata-se de um ator que acumula o papel de sujeito da enunciação e de sujeito do enunciado. Ele
nos conta uma história por ele vivida, a história de uma parcela de sua existência. É através de seus olhos
e de seus sentimentos que são apresentados os fatos, as outras personagens, os elementos espaciais e
temporais, os questionamentos existenciais. Em algumas narrativas, a personagem central faz uma
251
sondagem na profundidade de sua consciência, misturando sensações presentes com lembranças do
passado. É a narrativa de “introspecção psicológica” ou de "fluxo de consciência", em que a técnica
normalmente usada é o monólogo interior. Dostoievski, Virgínia Woolf, Marcel Proust, William
Faulkner, James Joyce, Clarice Lispector são os mestres desse tipo de focalização.
2) Narrador- personagem secundário: há narrativas em que o narrador não é o protagonista, mas
outra personagem que, embora participe dos acontecimentos, não exerce um papel de primeiro plano. Sua
função é mais importante ao nível da enunciação do que ao nível do enunciado. É através dela que
conhecemos o protagonista e as demais personagens. Tal perspectiva é peculiar de alguns romances
policiais nos quais é o secretário do detetive que narra a história do crime e a história da investigação.
3) Narrador- testemunha: é a focalização centrada sobre uma personagem que está presente no
texto só para narrar os acontecimentos, não se confundindo nem com o protagonista nem com nenhuma
outra personagem da história. Podemos chamá-la de personage ad hoc (só para isso, para contar a
história), pois pertence apenas ao plano do discurso, ou de "testemunha", porque ela narra o que viu, o que
ouviu ou o que leu em algum lugar. Um bom exemplo desse tipo de foco narrativo encontra-se no conto
de Eça de Queirós Singularidades de uma rapariga loura. Inicia assim:
"Começou por me dizer que o seu caso era simples e que se chamava Macário..."
O "eu" narrador desse conto não participa da história, cujo protagonista é Macário, mas está presente na
narrativa apenas para contar-nos o que o personagem principal lhe contara.
4) Narração dramática: é a técnica que o gênero narrativo usurpa do teatro, onde não existe um
narrador específico, mas todas as personagens, através do diálogo, funcionam como narradoras e
destinatárias da mensagem. O espectador (no teatro, no cinema ou na televisão), o leitor (de um texto
literário) ou o ouvinte (do rádio) fica conhecendo a história ficcional através da fala de atores,
personagens ou locutores. É difícil encontrarmos um texto ou uma fala, de qualquer gênero artístico, em
que não apareçam "cenas": toda vez que ocorre um diálogo entre personagens, estamos perante o modo
dramático de apresentação dos fatos. Especialmente nas short stories, esse procedimento é predominante.
Com o fim de sintetizar a tipologia de narradores acima descrita, utilizamos, agora, a terminologia
proposta por Gerald Genette, esclarecendo que a palavra grega diegese é empregada para indicar a
história, a fábula em movimento (Mito), o conjunto dos acontecimentos presentes num texto artístico.
O narrador intradiegético é o personagem que, dentro do texto, assume o papel de narrador. Ele é
chamado “homodiegético”, quando os fatos, idéias ou sentimentos que está expressando dizem respeito a
ele próprio, ou “heterodiegético”, quando a personagem conta uma história da qual não participa, sendo
vivida por outra entidade.
O narrador extradiegético: o papel de narrador não é exercido por nenhuma personagem O sujeito
do discurso está oculto, sendo apenas pressuposto, em que pese a presença de alguns elementos do
aparelho formal da enunciação que denunciam a participação ideológica do autor implícito.
A importância de detectar o sujeito da fala em certos momentos de uma narrativa está relacionada
não apenas a aspectos técnicos da estrutura da obra literária, mas à própria compreensão do texto, pois a
relevância de um discurso está diretamente ligada à autoridade de seu enunciador. Examinemos, como
exemplo, o plano da enunciação da conhecida obra Os Lusíadas, de Luis Vaz de Camões, na qual
aparecem três tipos de narradores principais, correspondentes a perspectivas ou visões diferentes. Um
deles representa o ponto de vista do “eu poemático” (As armas e os barões assinalados.....cantarei), que
se encontra na parte introdutória (Proposição, Invocação e Dedicatória) e em alguns epifonemas de finais
de Cantos: com o registro da fala em primeira pessoa, o sujeito da enunciação exprime idéias e
sentimentos que, de uma certa forma, podem levar a uma identificação com o autor, Camões. Outro ponto
de vista que se observa na obra é o do “narrador onisciente” (“Lá no largo Oceano navegavam...”), que se
encontra na parte mais ampla do poema, na chamada Narração: a voz de um narrador pressuposto que, em
terceira pessoa e de uma forma objetiva, descreve a gloriosa aventura do povo português. Por fim, o ponto
de vista das “falas das personagens”: os discursos de Vasco da Gama, de Inês de Castro, do Gigante
Adamastor, do Velho do Restelo etc. Trata-se de perspectivas particulares, diferentes e até contestatórias
252
das posições ideológicas do eu poemático ou do narrador onisciente. Camões serve-se do recurso técnico
da mudança do foco narrativo para evitar incoerências e contradições em sua obra. Assim, o sujeito do
discurso que exalta a viagem marítima rumo à Índia, fazendo o périplo da África (o eu poemático), é
diferente do eu conservador que critica as navegações de ultramar por considerá-las causa do
enfraquecimento de Portugal (o Velho do Restelo); da mesma forma, o que acontece com os portugueses
após a viagem de Vasco da Gama (tempo da fábula) é dito por personagens sobrenaturais que tem o dom
da profecia (o Gigante Adamastor e uma Ninfa da Ilha dos Amores). Tal variação do foco narrativo dentro
da mesma obra atesta conflito de idéias e de sentimentos. Todo texto literário é polifônico, pois é o
concerto de uma pluralidade de vozes. O caráter dialógico confere à obra de arte literária sua função
precípua de contestar os valores ideológicos, estimulando o leitor à reflexão sobre a condição humana.
NARRATIVA GêneroÉpicaRomanceContoNovela
“Inumeráveis são as narrativas do mundo”!
(Roland Barthes)
Do verbo latino narrare, uma narrativa é uma história real ou imaginária (mito), um fato, um
acontecimento contado por alguém para ouvintes, leitores ou espectadores, sendo os episódios vividos por
pessoas ou personagens num tempo e num espaço. Nesse sentido amplo, o conceito de narrativa não se
restringe apenas ao romance, conto ou poema épico, mas abrange também outras formas menores de
literatura e também escritos de outras áreas de conhecimento, incluindo não apenas as artes, mas também
a filosofia e as ciências: cinema (a história através da imagem móvel), teatro (a encenação dos fatos),
pintura (os episódios de vida representados pela imagem fixa, a Via Crucis de Cristo, por exemplo),
histórias em quadrinhos (banda desenhada), biografia, crônica, memorial. Sem falar da história sagrada,
sendo as várias religiões as maiores produtoras de narrativas fantásticas e didáticas. A narrativa está
presente na nossa conversa cotidiana, em todos os tempos e em todos os lugares, em qualquer tipo de
agrupamento humano, sendo a forma mais comum de comunicação e de transmissão do saber. Quanto ao
estudo da narrativa como gênero literário (Narratologia), distinto do lírico e do dramático, ele pode ser
feito quer através da análise de seus elementos internos, estruturais (abordagem textual ou sincrônica),
quer através da pesquisa sobre a evolução de suas formas ao longo do tempo (visão diacrônica). No
primeiro caso, consultar os verbetes texto, narrador, mito, personagem, tempo, espaço. No segundo
caso, ver epopéia, romance, conto, novela, crônica. Pode-se também estudar a tipologia narrativa, tendo
em conto a predominância de um elemento estrutural sobre outros: romance ou conto de ação, de
personagem, de espaço, de tempo, de introspecção psicológica; ou sua temática: romance de amor, de
aventura, de capa e espada, policial, de suspense, de terror etc. Enfim, como disse Roland Barthes,
“inumeráveis são as narrativas do mundo”! Fundamental é que, em qualquer narrativa a ser estudada,
especialmente num texto literário, distingamos, sempre, o Plano da Enunciação ou do Discurso
(Narrador), centrado sobre o personagem que conta os fatos ou exprime idéias e sentimentos, do Plano
do Enunciado ou da história (Mito), composto pelo conjunto dos fatos narrados.
Sentido do poema
Enquanto a Ilíada é a epopéia da guerra (Marte), em que se exalta a afirmação dos valores
individuais de heróis, transformados em personagens profundamente humanos, tratando do esforço
coletivo dos gregos em suas conquistas de novos territórios, a Odisséia é a epopéia do mar, visto que seu
tema principal é a narração das viagens marítimas de Ulisses, rumo à volta para a sua cidade de origem.
Os gregos da época dos poemas homéricos conheciam apenas as ilhas e os territórios banhados pelos
mares Iônio e Egeu. A Odisséia é a descrição poética de longínquas regiões, banhadas pelo Mediterrâneo
e pelo Tirreno; assim como o mito dos Argonautas, cantado por Eurípides na sua tragédia Medeia,
ilustra a luta dos gregos para desenvolverem o comércio no mar Negro. Pelo canto das peripécias do
andarilho Ulisses, os ouvintes de Homero podiam admirar os costumes de países estranhos. O grande
valor didático deste poema reside, portanto, na abertura para o conhecimento de um mundo novo e
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maravilhoso. Junto com as narrativas das aventuras fantásticas de lotófagos, ciclopes e sereias, temos a
descrição de episódios realísticos que ocorrem nas cortes das cidades de Esparta, de Pilos, de Esquéria e
de Ítaca. A viagem de Ulisses é retardada em dez anos porque ao poeta interessa, mais do que a narração
do regresso do herói, a descrição dos lugares por ele visitados. Para superar as dificuldades e os perigos
inerentes a uma longa viagem por frágeis embarcações e num mundo estranho, exige-se do herói uma
qualificação específica: ele deve ser sábio, inteligente, astuto, prudente. Esta caracterização acompanha o
herói desde seu nascimento, como podemos verificar pelo estudo do mito deUlisses. Filho de Sísifo e
neto de Autólico, os dois homens mais inteligentes da Grécia mítica (Laertes foi apenas o pai adotivo de
Ulisses), a vida lendária do protagonista da Odisséia é constelada de episódios em que sobressai sua
sagacidade: a) aconselha o pai de Helena a estabelecer, entre os noventa e nove príncipes pretendentes a
mão de sua filha, o pacto de respeitar a liberdade de escolha da moça e de zelar pela união do casal; b)
desmascara Aquiles disfarçado de mulher para não ir à guerra contra Tróia; c) inventa o cavalo de
madeira para penetrar na cidade assediada; d) engana o ciclope Polifemo, salvando a si e a seus
companheiros; e) amarra-se ao mastro do barco e coloca cera nos ouvidos dos companheiros para
resistirem ao canto das sereias; f) passa incólume entre Cila e Caríbdis, os temidos rochedos-monstros; g)
é o único grego a não comer das carnes dos bois consagrados ao deus Sol, fugindo ao castigo divino; h)
chega a Ítaca disfarçado de mendigo, para sondar o ambiente e maquinar a vingança contra os
pretendentes à mão de sua esposa. A Odisséia, epopéia de regresso do herói à terra de origem, representa a
passagem da era de migrações e de conquistas dos povos gregos para a época de fixação nas várias
“póleis”. A fidelidade da esposa Penélope, o amor filial de Telêmaco, a afeição do cão Argos, do
porqueiro Eumeu e da escrava Euricléia, são bens estáveis, cujo valor é considerado superior aos
encantamentos de Circe, à divinização prometida por Calipso, à beleza e à juventude da princesa Nausica.
Acima das aventuras maravilhosas, gozadas ou sofridas pelo herói em regiões estranhas, está o desejo da
volta ao lar e da reconquista de seu patrimônio material e espiritual.
RELIGIÃOMitologiaBíbliaBudaCristoMaoméEspiritismo
“Tantum religio potuit suadere malorum!”
(Lucrécio)
O termo “religião” é uma evolução fonética da palavra latina religionem, substantivo do verbo
“religare”, no sentido de ligar, indicando a ação de manter as pessoas unidas. Por evolução semântica,
teria passado a significar a união entre a divindade e a humanidade, entre o Criador e suas criaturas. Mas
há controvérsias. Para alguns estudiosos, este sentido de religião é tardio, encontrando a origem
etimológica no verbo “re-ligar”: juntar o que está desligado, reintegrar o homem à natureza. A idéia é
panteísta: não existiria um Deus transcendental, sentado num trono olímpico. Deus seria a inteligência, a
luz, o calor, o amor, que recompõe a todos, admitindo-se a existência de uma espiritualidade
294
transreligiosa. Mas, para a maioria das pessoas, o fundamento de qualquer credo religioso está na
necessidade de admitir a existência de um deus como resposta a perguntas que transcendem a razão
humana: quem eu sou? de onde eu venho? para onde irei após a morte? por que eu vivo? Ninguém se
conforma com o perecimento, a dor, a desigualdade, a injustiça, a crueldade, o desamor. Daí o apelo ao
sobrenatural ser a busca de uma fonte de conforto, de cunho essencialmente psicológico, projetando para
um futuro além-túmulo a felicidade que não se consegue neste mundo. Tal sentimento é natural e
compreensível. Por isso, não existe nenhum povo sem uma religião. O filósofo alemão Nietzsche, embora
dissesse que “o fanatismo é a única forma de força de vontade acessível aos fracos”, não deixou de
reconhecer que o homem é um animal “venerador”. A necessidade de acreditar numa divindade,
especialmente nas sociedades mais primitivas, é tão importante quanto a prática das artes (música, canto,
dança, narração ou representação de histórias fantásticasMito). Religião e Arte encontram-se juntas
nos rituais de todos os povos. No dizer de Pablo Neruda,
“as religiões foram berço de poesia,
e esta se juntou a elas fertilizando os mitos,
colaborando como o incenso no entardecer das basílicas”.
A faculdade de acreditar na existência de um ser superior, infinito e eterno, é uma exclusividade do
gênero humano, sendo um postulado gnosiológico, psicológico e sociológico. A fé num deus, que já foi
chamada de “a máquina de acreditar”, remonta à era glacial, conforme descobertas arqueológicas,
podendo ser encontrada em qualquer agrupamento social, por mais primitivo que seja. A religião
acompanha a evolução do homem, estimulando sua capacidade racional e imaginativa. No fundo, são os
homens que criam seus deuses, conforme suas necessidades e aspirações. Enquanto o filósofo Platão
achava que “foi um homem sábio quem inventou Deus”, o pensador francês Michel de Montaigne
observou que “o homem é certamente um louco varrido, pois não pode fazer um verme e, entretanto, faz
deuses às dúzias”. Todas as divindades, as pagãs como orientais ou cristãs, têm um aspecto
antropológico. A Virgem Maria é de cor negra para os católicos africanos! O ritual funerário, que existe
desde a aurora da humanidade, comprova a crença em que o homem nunca se conformou com a morte: os
corpos se encontram sepultados com seus ornamentos, armas e comidas, ferramentas consideradas
necessárias para a travessia espiritual. Aos poucos, a crença religiosa em um ou vários deuses deixou de
ser uma realidade apenas de grupos étnicos para se tornar um meio de coesão social. Agrupamentos
humanos começaram a ser identificados por praticarem os mesmos rituais. Ser estrangeiro passou a
significar venerar outros deuses, mesmo residindo na mesma cidade e obedecendo ao mesmo rei. E é aí
que mora o perigo! O tipo de religião praticada, na grande maioria dos casos, não é uma escolha pessoal,
mas sim uma herança cultural do meio em que o indivíduo é criado. Manobrado por alguns líderes
carismáticos, o sentimento religioso de grupos sociais pode se tornar fanatismo, levando, às vezes, até a
uma histeria coletiva, na crença de que apenas aquela religião é a verdadeira, tendo seus fiéis a obrigação
de lutar contra os que professam outros credos, inclusive chegando ao suicídio para honrar seu deus. A
História registra inúmeras perseguições, massacres e crueldades, cometidas em nome deste ou daquele
deus ao longo dos séculos. A briga entre divindades é bem antiga. O poeta Paul Valéry imagina uma
disputa entre os dois maiores deuses da nossa cultura:
“Afinal de contas – diz Júpiter a Jeová – você não inventou o raio!”
A obsessão religiosa pode levar ao fanatismo: do latim fanum, templo, lugar sagrado. Fanático é
chamado o homem que, sentindo-se inspirado por uma divindade, acha que está com a verdade absoluta,
se torna intolerante, exerce um zelo excessivo e pode até cometer atrocidades em nome do seu deus. Os
primeiros fanáticos ocidentais foram os devotos do deus grego Dionísio que, durantes os ritos orgiásticos,
as bacanais, devoravam as carnes do bode, animal sagrado a Baco, o nome romano de Dionísio. Do
politeísmo para o monoteísmo, o fanatismo religioso apareceu na Idade Média (Medievalismo),
especialmente na época das Cruzadas, quando cristãos e muçulmanos se digladiavam em nome de seus
deuses. A partir da Contra-Reforma, os atos de fanatismo começaram a envergonhar o sentimento
religioso de católicos e protestantes. Vejam-se os horrores do Tribunal da Inquisição, insituído para punir
os adeptos do Protestantismo (Lutero). O sacrifício da heroína francesa Joana d’ Arc, queimada em
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praça pública por uma absurda acusação de bruxaria, é um dos exemplos de insânia humana, provocada
por histeria religiosa. O fanatismo adquiriu várias formas ao longo da história. Mais recentemente, na
primeira década do séc. XX, na França, surgiu o integralismo, como reação ao culto das ciências, logo
após o triunfo do Positivismo e do Evolucionismo. Uma encíclica do Papa Pio X condenou o movimento
modernista que apregoava uma revisão dos dogmas da Igreja Romana em face do progresso das ciências
naturais e biológicas. A ala mais conservadora, que se autodefiniu como dos “católicos integrais”, foi
ironicamente apelidada de “integrista”.
No Oriente Médio, após a revolução teocrática do Irã, o termo “integrismo” passou a ser usado no
mundo islâmico para indicar o intuito de integrar o poder social e político ao religioso, para recuperar a
integridade dogmática da fé muçulmana (Maomé), ameaçada pelas tentações da moderna civilização
ocidental. Nos USA, em 1919, pastores tradicionais e conservadores de várias seitas protestantes
formaram a “World’s Christian Fundamental Association” para reagir às tendências liberalizantes do
pensamento moderno e defender pontos da fé cristã que consideravam fundamentais: nascia, então, o
chamado fundamentalismo. O movimento espalhou-se pelo Canadá e outros países, apresentando os
seguintes princípios básicos: a) a teoria da evolução de Darwin deve ser banida das escolas, substituída
pela história bíblica da Criação do mundo, pois os textos sagrados são inquestionáveis; 2) proscrição do
aborto e do prazer carnal fora do casamento; 3) apoio à livre iniciativa e redução do poder do Estado; 4)
condenação do Comunismo por ser ateu e totalitário. Atuais termos árabes, como Xiita, Jihad, e Talibã,
têm muitos a ver com Fanatismo, Integrismo e Fundamentalismo. Os Xiitas, diferentemente dos Sunitas,
são muçulmanos tradicionalistas, que consideram autênticos apenas os ensinamentos que remontam a Ali,
primo e genro do profeta Maomé. A Jihad é a “guerra santa” que todo muçulmano conservador deve fazer
para defender ou estender o domínio do Islã. Como afirmou Marcel Proust, “há algo mais difícil do que
fazer um regime, é não o impor aos demais”. O movimento dos Talibans pode ser considerado um
neofundamentalismo por defender a qualquer custo as tradições islâmicas contra a invasão da cultura
ocidental. Mesmo se esta se demonstrou mais apta a proporcionar ao homem o que ele mais deseja, a
felicidade! Como diria Nelson Rodrigues, numa de suas frases antológicas,
“se os fatos contradizem os profetas, pior para os fatos”.
Talvez o dramaturgo carioca se referisse ao fato de que, enquanto a doutrima muçulmana afirma
que Maomé, ao morrer na Cúpula Dourada de Jerusalém, foi assumido ao céu pelo arcanjo Gabriel, a
história testemunha que o fundador do Islamismo nunca esteve em Jerusalém e que a tal mesquita fora
construída 90 anos depois do falecimento do Profeta. Que bom sonhar com uma sociedade em que o
indivíduo pudesse escolher livremente sua religião, com base na verdade histórica, no raciocínio lógico,
no bom senso, sem ser vítima de líderes religiosos ou políticos. Que bonito seria ver um cristão e um
muçulmano, lado a lado, fazendo suas preces, cada qual torcendo pelo seu deus, como dois torcedores de
times diferentes! Ou alguém poder se declarar ateu, sem passar vexames! A observação da perfeita
arquitetura do Universo tem levado cientistas a admitir uma “religiosidade cósmica”. Acreditar na
existência de uma inteligência criadora é relativamente fácil; difícil é tentar compreender a essencialidade
deste ente superior, a que chamamos Deus. Definir o que é, como é e o que quer de nós esse Espírito
infinito, é algo que supera os limites da razão humana. Entramos, portanto, no campo do mistério, que os
vários credos religiosos tentam desvendar, apelando à crença em livros pressupostamente sagrados, onde
estaria revelada a vontade deste ser divino. Para preservar o sentimento religioso individual e grupal dos
cidadãos seus e de outros países, o governo de qualquer Estado deveria ser declaradamente laico,
proibindo qualquer forma de proselitismo. Algumas Nações, como a França recentemente, já tomaram a
dianteira, promulgando leis que punem quem ostenta símbolos religiosos em escolas públicas (crucifixos,
véus, solidéus); já outros mandatários, como o Governador do Estado do Rio de Janeiro, no mesmo ano de
2004, indo no sentido contrário da História, cria 500 cargos públicos para professores de Religião,
fomentando a briga entre padres, pastores, rabinos. O princípio da separação entre Igreja e Estado é uma
conquista recente da Humanidade, que tem que ser irreversível, visto que a História nos ensina que todos
os governos teocráticos estão marcados pelo atraso, pela injustiça, pela crueldade. Infelizmente, a
exclamação do poeta romano Lucrécio (colocada em latim na epígrafe deste verbete), ao comentar o
296
sacrifício da jovem Ifigênia, exprime uma verdade ainda hoje evídenciada por terroristas e homens-
bomba:
“Até que ponto a religião pode estimular o crime”!
Se o ensino religioso e as rezas ajudassem para a formação do caráter do cidadão, iranianos,
palestinos, judeus e outros conjuntos étnicos do Médio Oriente seriam modelos de homens cultos,
pacíficos e trabalhadores!
Verlaine (1844-1896)
Em 1884, Verlaine publicou um artigo com o título “Les Poètes Maudits”, chamando assim os
poetas “decadentes” da sua época, a nova geração de artistas inovadores e revolucionários. “Malditos”
porque não observavam os cânones estéticos tradicionais e não aceitavam a moral burguesa. Sua poesia
foi se enriquecendo, gradativamente, na medida em que ia abandonando a estética parnasiana. As duas
coletâneas Amour e Parallèlment contêm os melhores poemas de Verlaine. Famosa é sua obra Art
poétique, em que se encontram reflexões fundamentais sobre o conceito moderno de poesia, especialmente
no tocante o nível sonoro. Ele costuma dizer: “a música antes de tudo”.
Rimbaud (1854-1891)
Amigo íntimo de Verlaine: este chegou a abandonar a esposa para conviver com Rimbaud na
Bélgica e na Inglaterra. Mas não faltaram brigas entre os dois amantes: Verlaine feriu Rimbaud com um
tiro de revólver e acabou sendo preso. Rimbaud foi um homem revolucionário na política (atacando
Napoleão III e aplaudindo a Comuna), no campo social (lutando contra o conformismo burguês e a moral
323
católica) e na arte (rompendo com a tradição literária e procurando novas formas estéticas que o levassem
ao descobrimento do mistério da vida). O soneto Voyelles é uma tentativa de descrever um mundo onde
sons e cores pudessem se corresponder. Em Illuminations, coletânea de poemas em prosa, procura a fusão
do real e do imaginário, assumindo a alucinação como estado de espírito próprio do poeta. Ele achava que
“a nossa pálida razão esconde-nos o infinito”.
Valéry (1871-1945)
Foi uma personalidade enciclopédica: poeta, escritor, esteta, matemático, desenhista. O seu
pensamento estético encontra-se na obra Introduction à la méthode de Leonard da Vinci. Foi o maior
teórico da arte pela arte, da poesia pura, a poesia que se contempla a si mesma, como Narciso diante da
própria imagem refletida na água. A aspiração à perfeição o persegue a vida toda. Ele dizia: “um artista
nunca termina seu trabalho; ele apenas o abandona”. Valéry sentia-se fascinado ao descobrir nas
palavras musicalidade e diferentes sentidos, que só podiam ser revelados por novas disposições verbais.
Rejeitando a inspiração, era partidário do método, do rigor, da norma. Entre seus livros de poesias,
assinalamos Le Cemitière Marin e Charmes.
A reflexão sobre esta conceituação aristotélica da tragédia e, sobretudo, a leitura das peças, nos
levam à percepção da essência do trágico, que reside numa tensão entre elementos contrários.
Artisticamente, esta tensão é expressa por duas figuras de estilo: a “ peripécia” e a “ironia”. A peripécia é
definida por Aristóteles como "a súbita mutação dos sucessos, no contrário": trata-se, portanto, de uma
inversão, de uma passagem repentina de uma situação para outra. A peripécia dá-se ao nível fabular, sendo
a ação de uma personagem que consegue um resultado oposto ao esperado. Semelhante à peripécia é a
ironia dramática, chamada também de ironia do destino: a frustração do herói trágico que vê seu plano de
vida aniquilado pelos desígnios insondáveis do fado. Enquanto a peripécia é uma inversão ao nível da
estrutura das ações, a ironia é uma inversão ao nível do conteúdo ideológico, pois o sentido final é o
contrário do esperado.
Essas duas figuras de estilo ocultam profundas verdades existenciais. De um lado, a luta inglória
do homem contra os desígnios do destino: o livre-arbítrio estiola-se contra uma força cósmica ou atávica
que impede o homem de superar sua condição de mortal. Em seu afã de alcançar a divindade, o homem
comete um erro fatal, um pecado de orgulho, que torna o herói um vilão, merecedor do castigo divino,
conseguindo assim a degradação em lugar da melhora desejada. De outro lado e diferentemente dos
revoltosos míticos (Adão, Prometeu, Sísifo, Tântalo), o herói trágico é um “culpado-inocente”, porque
ele não teve a intenção de cometer a maldade, mas, muito pelo contrário, sua ação visava fazer o bem. Se
há culpa, ela nunca é do herói como indivíduo, mas de seus ancestrais. O filósofo alemão Hegel ressalta
que, numa disputa trágica, ambas as partes opostas têm igualmente razão, pois se propõem fins legítimos
em si; mas, ao tentar realizar tais fins, uma parte acaba violando o direito da outra, pois as forças são
antagônicas, contradizendo-se reciprocamente.
Para entender melhor essa conceituação do trágico na Grécia antiga, é conveniente recordar a
peça de Sófocles, Édipo Rei, de que já falamos no verbete Édipo. O protagonista é o típico herói trágico,
pois, ao mesmo tempo, culpado e inocente: culpado porque cometeu parricídio e incesto, mas inocente
porque não teve consciência dos crimes a ele imputados. Se houve um culpado, foi a própria vitima Laio,
seu pai, que, em sua juventude, por ter seduzido e causado a morte de um jovem amigo, atirou sobre si e
sua descendência a maldição divina. Trágico é um homem pagar pela culpa de outro, sofrer sem ter
cometido pecado algum, sendo vitima de taras hereditárias, preconceitos raciais e religiosos, guerras
estúpidas, injustiças sociais! Esse conceito de trágico, assim como emana do teatro grego, sofreu
evoluções ao longo da história do gênero dramático.
Na Idade Média, o trágico está diretamente relacionado com a religião cristã: as sagradas
representações colocavam em cena episódios da morte de Cristo e do sofrimento de santos e mártires da
Igreja católica, com claro fim didático e moralizante. A Renascença italiana tentou imitar a tragédia gre-
ga, mas com pouco sucesso: o espírito alegre daquele povo naquele período histórico não favorecia a
grave meditação sobre a existência humana. Mais sucesso teve a tragédia barroca na Espanha e na In-
glaterra onde, ao lado da imitação dos autores clássicos greco-romanos, foram introduzidos elementos do
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teatro popular nacional. Lope de Vega, Calderón de la Barca, Marlowe e, sobretudo, Shakespeare
elaboraram novas formas da peça trágica, lançando o verdadeiro fundamento do teatro moderno. A
retomada da tragédia grega antiga teve certo êxito apenas na França, durante o neoclassicismo: Corneille
e, especialmente, Racine, atendendo às reclamações dos teóricos franceses e italianos de que os
dramaturgos espanhóis e ingleses não estavam observando as regras aristotélicas das três unidades (ação,
tempo e espaço) e da separação dos elementos trágicos e cômicos, fizeram tragédias nos moldes antigos,
tendo ilustres seguidores na Europa durante todo o século XVIII, destacando-se o conde italiano Vittorio
Alfieri (1749-1803) com suas peças patrióticas e religiosas (Saul, Antigona, Maria Stuart) e o irreverente
filósofo francês Voltaire (1694-1778 Iluminismo): Édipo, Brutus, Irene.
Com o advento do Romantismo, a tragédia rompeu sua ligação com a tradição do teatro clássico,
dando origem à tragédia sentimental burguesa e escolhendo como autor modelar Shakespeare. Apenas na
Alemanha tivemos uma solução de compromisso com o teatro neoclássico de Lessing, Goethe e Schiller.
Enfim, com o Realismo, temos o início do verdadeiro drama moderno, quando a introdução de problemas
psicológicos e sociais torna-se a mola mestra do teatro. Decreta-se, assim, a morte da tragédia como forma
dramática à parte, nos moldes em que havia sido cultivada pelos gregos, renascentistas e neoclássicos. As
peças de Ibsen, Brecht, Pirandello, Sartre, Nelson Rodrigues não podem ser chamadas mais de
“tragédias” ou de “comédias”, mas apenas de dramas pois, como espelhos de vida, encerram dentro de si,
de uma forma inseparável, o elemento trágico e o elemento cômico da existência humana, superando a
oposição maniqueísta de tristeza e alegria.
Mas a tentação de retomar o rico filão da tragédia grega aparece, volta e meia, em alguns
dramaturgos modernos: veja-se, por exemplo, O luto assenta em Electra, do norte-americano Eugene
O'Neill (1888-1953), calcada sobre a trilogia Oréstia, de Ésquilo, ou Gota d' água, do poeta-músico Chico
Buarque, em parceria com Paulo Pontes. Trata-se da transposição da peça Medéia, de Eurípedes, para o
ambiente proletário carioca, onde o protagonista Jasão, além de trair a esposa, engana também seu povo,
vendendo-se ao novo sogro, o rico Creonte, explorador da miséria de seus inquilinos. Além disso, embora
sem o nome de tragédia e com técnicas dramáticas bem diferentes das do teatro clássico, o drama moderno
conserva, em muitos casos, o espírito trágico grego, fundamentado na figura da peripécia e da ironia.
Veja-se a análise do drama Seis personagens à procura de um autor, no verbete Pirandello. Enfim, se o
princípio ideológico (o que existe apenas no desejo da sociedade, mas não na realidade cotidiana) de que o
mérito reclama a recompensa e a culpa a punição está na base da obra artística de espírito “cômico”, pois
com final feliz (comédia, sátira, conto maravilhoso, romance sentimental), a negação sistemática dessa
regra define a obra trágica, mais aderente ao real do que ao ideal. A tragédia pode ser entendida como o
meio artístico mais adequado para recolher a desventura humana, assumi-la como inelutável, inerente à
natureza das coisas, e justificá-la sob a forma de necessidade ou purificação.
De acordo com a forma poemática do soneto, o texto transcrito acima apresenta um esquematismo
de estrofes, versos, metro, rimas e sentidos O poema é composto de dois quartetos e dois tercetos. O título
é bem explicativo, pois indica a forma poemática (“soneto”) e o tema (“fidelidade”). Pelo título, já
sabemos de antemão que o poeta irá expor artisticamente seu conceito de fidelidade. Passando à análise do
nível fônico, o poema, como qualquer soneto tradicional, apresenta 14 versos decassílabos, fonicamente
ligados entre si pelo esquema rímico abba/abba/cdf/dfc. Por essa disposição das rimas, notamos a presença
de dois campos sonoros: o dos versos das duas quadras, formado pela homofonia das rimas a b, e o dos
versos dos dois tercetos, ligados entre si fonicamente pelas rimas c d f. De modo que o abraço fônico das
duas quadras é estranho à sonoridade dos dois tercetos. Efetivamente, a terceira e a quarta estrofes se
distinguem nitidamente das duas primeiras: graficamente, por serem tercetos; sintaticamente, por
formarem um único período; fonicamente, por terem um bloco sonoro diferente das duas quadras;
semanticamente, por constituírem a síntese do pensamento exposto nas duas primeiras estrofes, em forma
de tese e antítese. Note-se o quiasma semântico, formado pelo cruzamento dos sintagmas que indicam o
prazer e a dor: riso // pranto; pesar // contentamento. Essa mistura de semas expressa poeticamente a
verdade humana de que não existe dor nem prazer absoluto: a vida nos oferece uma mescla de felicidade e
sofrimento. Belíssimo é o oxímoro formado pelo último verso do poema: o amor, embora seja “chama”,
algo cálido, fulgurante, que pode até queimar, ele é passageiro, como é a condição humana, tem que ser
“infinito enquanto dure”, quer dizer, o amor, apesar de sua fugacidade, deve ser vivido com tamanha
intensidade que nos dê a sensação de nunca acabar. A figura do oxímoro é formada pela aproximação de
dois semas opostos: o sema da eternidade, presente na palavra “infinito”, pois implica a ausência do
tempo, e o sema da efemeridade, implícito no sintagma “enquanto dure”, que denota a transitoriedade
própria das coisas temporais. É neste desejo de anular a oposição entre o efêmero e o eterno, no tocante
ao amor, que reside toda a beleza do poema.