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M \

C 0 /eção Ditos
A :
E s c r i t o s II

Foucault
^
U Arqueologia das Ciências e
Histó ria dos Sistemas de
Pensamento
S
Organização e seleção de textos:
Manoel Barros da Motta

Tradução:
Elisa Monteiro
«a
Dits et écrits
Edição francesa preparada sob a direção de Daniel Defert e
Fran çois Ewald com a colaboração de Jacques Lagrange

a MaisondeFrancs
v 4

í#FORENSE
UNIVERSITÁRIA
M

Iu edi çã o - 2000
Apresentação
© Édifions Gallimard , 1994

.
© Librairie philosophique J . Vrin Paris , / 964 , para o texto Informe Hist ó rico
© Presses universitaires de France , 1971 e Éditions Gallimard Paris , 1994 , para o texto .
Nietzsche , a Genealogia , a História

Traduzido de :
Dits et é crits

Cet ouvrage , jnibli é dans le cadre du programme d ' aide à la publication , bén é ficie du soutien du Minist è re Construída sob o signo do novo , a obra de Michel Foucault sub-
Français des Affaires Etrang è res , de l ' Ambassade de France au Brésil et de la Maison de France de Rio de
Janeiro. verteu, transformou , modificou nossa relação com o saber e a ver -
Este livro , publicado no â mbito do programa de participaçã o ù publicaçã o , contou com o apoio do Ministé rio
[-'rances das Rela ções Exteriores , da Embaixada da Fran ça no Brasil c da Maison de France do Rio de Janeiro . dade. A relação da filosofia com a razão não é mais a mesma depois
Ouvrage publi é avec l ' aide du Minist è re Fran çais Charg é de la Culture - Centre National du Livre .
da história da loucura . Nem podemos pensar da mesma forma o
Ohra publicada com a ajuda do Ministé rio Francês da Cultura -- Centro Nacional do Livro . estatuto da punição em nossas sociedades. A intervenção teóri -
co-ativa de Michel Foucault introduziu també m uma mudan ça nas
relações de poder e saber da cultura contemporânea, a partir de
Foto da capa : Jacques Robert sua matriz ocidental na medicina, na psiquiatria, nos sistemas pe-
CIP- Brasil . Cataloga çâ o - na- lome nais e na sexualidade. Pode -se dizer que ela colabora para efetuar
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ .
uma mutação de episteme , para alé m do que alguns chamam de
FX6a -
Foucault , Michel, 1926 1984 pós-estruturalismo ou pós-modernismo.
Arqueologia das ciê ncias e hist ó ria dos sistemas de pensamenlo/ Michel
Foucault ; organizaçã o c seleçã o dc textos , Manoel BUITOS da Moita: tradu ção , A edição francesa dos Ditos e escritos , em 1994 , pelas Edições
Elisa Monteiro. - Rio de Janeiro: Forense Universit á ria , 2000.
( Ditos e escritos ; II ) Gallimard desempenha um papel fundamental na difusão de uma
Tradução de: Dits et écrits
boa parte da obra do filósofo cujo acesso ao pú blico era dif ícil ou ,
ISBN 85- 218 - 0276- 5 em muitos casos , impossível . Alé m de suas grandes obras como As
I . Teoria do conhecimento . 2 . Ciê ncias - Hist ó ria . I . T ítulo . II . Sé rie . palavras e as coisas , Histó ria da loucura , Vigiar e punir , O nasci -
00 - 1551 . CDD 121
mento da cl í nica , Raymond Roussel e História da sexualidade ,
CDU 165 Foucault multiplicou seus escritos e a ação de seus ditos , na Euro-
Proibida a reprodu ção total ou parcial, hem como a reprodu ção de a|H >siilas a partir deste livro, pa , nas Américas, na Ásia e no norte da África. Suas interven ções
de qualquer tonna ou por qualquer meio eletrónico ou mecâ nico , inclusive através de processos
.
xerojir á ticos dc fotocópia e de gravação, sem permissã o expressa do Editor ( Lei n " VM 0 de 10.02.98 ) .
,
foram desde relações da loucura e da sociedade feitas no Japão a
reportagens sobre a revolução islâmica em Teer ã e debates no Bra -
sil sobre a penalidade e a política . Este trabalho foi em parte reali -
zado através de um grande n ú mero de textos , interven ções , confe-
rências , introduções, prefácios , artigos , publicados em uma vasta
Reservados os direitos de propriedade desta edi ção pela : gama de países que vai do Brasil aos Estados Unidos , à Itália e ao
EDITORA FORENSE UNIVERSIT Á RIA LTDA. Japão . As Edições Gallimard recolheram esses textos , excluindo
Rio de Janeiro:
Rua do Rosário, 100 - 20041-002 - Telefax: (21 ) 509-3148/509-7395 os livros , em quatro volumes. A edição francesa pretendeu a exaus-
São Paulo: tividade , recolhendo a totalidade dos textos publicados quando Mi-
Largo de São Francisco, 20 - 01005-010 - Tels . : ( 11 ) 3104- 2005 - Fax : 3107 -0842 chel Foucault vivia , embora seja provável que alguma pequena la-
e -nuiil : foruniv @ unisys.com.br hí tp : // www .editoras . com/ forenseuniversit á ria
cuna exista neste trabalho. O testamento de Foucault, por outro
Impresso no Brasil lado , excluía as publicações póstumas . Daniel Defert e François
Printed in Brazil Ewald realizaram , assim , um monumental trabalho de edição e es-
tabelecimento dos textos. Situando de maneira nova as condições
da publicação dos textos, controlaram as circunstâ ncias das tradu -
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VI Michel Foucault - Ditos e Escritos Apresentação V! I

ções , verificaram as citações e erros de tipografia . Jacques Lagran- Port-Royal , o Iluminismo, o século XIX, com o texto extremamente
ge ocupou-se da bibliografia. Defert elaborou uma cronologia , na importante sobre Cuvier , o trabalho sobre a interpretação que tem
verdade uma microbiografia de Foucault para o primeiro volume , como eixo Nietzsche , Marx e Freud .
que mantivemos na edição brasileira , na qual muitos elementos Importante é registrar , mesmo em se tratando de questões cujo
novos sobre a obra e a ação de Michel Foucault aparecem . car áter teórico é extremamente significativo , que o trabalho de ela -
Este trabalho , eles o fizeram com uma visada ética que , de ma- boração por Foucault de seus livros e textos é uma experiência que ,
neira muito justa , parece-me , chamaram de intervenção mínima .
diz ele , “ desejaria a mais plena possível” . O sentido da experiência
para Foucault é especial - é algo do qual se sai transformado .
Para isto , a edição francesa de Defert e Ewald apresentou os textos
Escrever não é um ato de comunicar o que já se sabe. Este tipo de
segundo uma ordem puramente cronológica . Este cuidado não im-
escrita , diz Foucault , ele não teria coragem de fazê-lo . Ele escreve
pediu os autores de reconhecerem que a reunião dos textos produ -
porque não sabe ainda exatamente o que pensar desta coisa que ele
ziu algo de inédito. O conjunto destes textos constitui um evento
deseja muitíssimo pensar . Trata-se de uma experimentação e nao
tão importante quanto o das obras já publicadas , pelo que comple-
de um trabalho de teoria para construir um sistema geral . Este
menta , retifica ou esclarece . As numerosas entrevistas - quase to-
conceito de experiê ncia é bastante distante da fenomenologia , na
das nunca publicadas em portugu ês - permitem atualizar os ditos
medida em que nesta trata-se de lançar um olhar reflexivo sobre
de Foucault com relação a seus contempor â neos e medir os efeitos um objeto qualquer do vivido , para apreender suas significações . A
de intervenções que permanecem atuais , no ponto vivo das ques- experiê ncia em Nietzsche , Blanchot , Bataille , nos quais Foucault se
tões da contemporaneidade , sejam elas filosóficas , liter á rias ou inspira , tem como objetivo arrancar o sujeito de si mesmo , ou que
históricas. A omissão de textos produz , por outro lado , efeitos de ele chegue à sua dissolução . Empresa de dessubjetivação, diz Fou -
interpretação , inevitáveis , tratando-se de uma seleção. cault , que podemos chamar também de destituição subjetiva. “ N ão
A edição brasileira dos Ditos e escritos é uma ampla seleção que se pode deixar de notar que o livro deve funcionar como uma expe-
tem como objetivo tornar acessível ao pú blico brasileiro o maior riência para quem o escreve , mas também para quem o lê . ” É mais
h ú mero possível de textos de Foucault que não estivessem ainda neste sentido do que a constatação de uma verdade histórica . Neste
editados em portugu ês. Como não nos era possível editar integral- sentido , o que diz o texto deve ser verdadeiro em termos de verdade
mente todos os textos , optamos por uma distribuição temática em acadêmica , historicamente verificável . Por ém , o essencial n ão está
alguns campos que foram objeto de trabalho por Foucault. Assim , a í , mas nas experiê ncias que ele permite fazer na relação com os
este volume , o segundo da sé rie , concentra-se em torno das proble- loucos , com a instituição psiquiátrica , com a prisão. Trata -se de
má ticas da arqueologia das ciê ncias elaborada por Foucault e , em uma relação com os efeitos da ficção . O livro é o agente de uma mu -
seguida , da construção de uma genealogia ou dinastia dos saberes dança da relação histórica , teórica e é tica com o que ele estuda e
e poderes . Racionalidade científica, história da verdade , anatomia po- constrói . Diz Foucault: “ uma experiê ncia não é nem verdadeira
lítica , ontologia do presente são alguns dos eixos em que Foucault nem falsa . Uma experiê ncia é sempre uma ficção ; é alguma coisa
problematiza as obras de Koyr é , Fran çois Jacob , Canguilhem , a que nós pr óprios fabricamos, que não existe antes e que vai existir
heran ça de Kant e do Iluminismo , os trabalhos de Nietzsche , Marx depois . Isto é a relação dif ícil com a verdade , a maneira pela qual
e Freud , de Husserl, Weber , Heidegger , Hyppolite , Sartre , Bataille , esta se encontra engajada em uma experiê ncia que n ão é ligada a
Deleuze , lidos através de uma escrita que é uma experiê ncia onde ela e que , até um certo ponto , a destr ói ” ( ver n- 281 , p . 45, vol . IV da
nossa atualidade mesma é questionada . O trabalho de Nietzsche edição francesa desta obra ) .
para a constituição de uma genealogia , a relação das formas da ver - Problemas de epistemologia e história das ciê ncias encontra-
dade com seus efeitos epistemológico- polí ticos são pontos impor - vam-se na elaboração de Foucault em uma posição estratégica . A fe-
tantes presentes no conjunto de textos deste volume . Em termos de nomenologia apareceria na época em que Foucault inicia seus traba-
per íodos históricos , a contemporaneidade aí está bastante presen- lhos como um “ questionamento dos fundamentos da ciê ncia , de
te , alé m da Renascença , a é poca clássica , com o grande texto sobre sua racionalidade e de sua história. De um lado, a corrente existen-
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VIII Michel Foucault - Ditos e Escritos Apresentação IX

ciai que privilegiava a dimensão do vivido , de outro , a corrente que mas das ciências da vida era mostrar o “ homem como ser vivo que
vinha de Husserl e Koyr é . Em Husserl , principalmente na Krisis se punha em questão nesta experiê ncia ” .
der europàischen wissenchqften und die transzendentale pháno- Construindo as ciê ncias da vida e constituindo um certo saber , o
melogie , colocou-se a relação entre o projeto ocidental de um des- homem modificava-se como ser vivo, na medida em que, constituin-
dobramento universal da razão , a positividade da ciência e a radi- do-se como sujeito racional , podia agir sobre si mesmo , mudar
calidade da filosofia” . suas condições de vida e a pr ó pria vida. Foucault vê nas análises de
Para Foucault , a questão punha-se de forma diversa , graças à Canguilhem da constru ção da biologia o aspecto recíproco de uma
sua leitura de Nietzsche. Não bastava fazer uma história da racio- inclusão das ciê ncias da vida na história geral da espécie humana.
nalidade. O ponto de partida de Foucault partilhava nesta questão Michel Foucault ressalta aqui , nesta consideração de Canguilhem ,
aspectos extremamente importantes, que reconhecia ter um paren-
de forma paradoxal o de Nietzsche , Blanchot e Bataille . Não se tra-
tesco com Nietzsche . Dois aspectos fundamentais então: de um
tava de perguntar a uma ciê ncia em que medida sua história a
lado , os discursos sobre as experiê ncias-limites e o discurso sobre
-
aproximou ou não da verdade. Tratava se de dizer que a verdade é
a transformação do pr óprio sujeito pela constituição de um saber
uma certa relação do saber consigo pr ó prio; tratava-se de “ saber se
sobre a vida. A questão das doen ças, da morte , do monstro , da
esta relação tem ou não uma história" ( ver n- 281, p. 54, vol . IV da
anomalia , do erro tem na biologia uma visada completamente di-
edição francesa desta obra ) .
versa dos domínios físico-qu ímicos: é que a patologia foi o ponto a
É assim que Foucault lê a história da revolu ção astronómica es- partir do qual pôde se constituir uma ciência do vivo .
crita por Koyr é como uma “ modalidade da história da verdade” . O “ A oposição do verdadeiro e do falso , os valores que são atribu í-
que interessa a Foucault na operação de leitura praticada por este dos a um e a outro , os efeitos de poder que as diferentes sociedades
filósofo e historiador das ciências é que este “ só toma as id éias no e instituições associam a essa partilha , tudo isso talvez seja apenas
momento de sua turbulência, no momento em que o verdadeiro e o a resposta mais tardia a essa possibilidade de erro intr í nseca à
falso não estavam absolutamente separados” . E nesta leitura Fou- vida . Se a história das ciê ncias é descontí nua , ou seja , se ela só
cault retifica Freud . Com efeito, para Freud , Copé rnico , Darwin e a pode ser analisada como uma sé rie de ‘correções’ , como uma nova
psicanálise tinham sido as grandes feridas narcísicas impostas distribuiçã o que nunca libera finalmente e para sempre o momento
pelo saber europeu ao homem . Quanto a Copérnico , pelo menos , terminal da verdade , é que ainda ali o ‘erro’ constitui não o esqueci-
erro. Com o abandono do centro do mundo , com o fim do geocen- mento ou o atraso da realização prometida , mas a dimensão pecu -
trismo, o homem não está abandonado a um destino planetário liar da vida dos homens e indispensável ao tempo da espécie ” ( ver
anónimo , pelo contrário: Copérnico o faz descrever “ um círculo ri- p. 364 neste volume ) .
goroso, imagem sensível da perfeição, em torno de um centro que é Foucault interessa-se , assim , de forma particular pela hist ória
o luminar do mundo” . Foucault lembra o papel da heliolatria na das ciê ncias e saberes , pelos fundamentos da racionalidade . Can -
Renascen ça , da metaf ísica da luz para pintores , físicos e arquitetos guilhem tornou-se , por sua vez , um grande admirador do trabalho
e o retorno de um pensamento solar sob cuja égide vai se estabele- teórico e polí tico de Foucault , depois dos ataques extremamente
cer o Classicismo. O papel do erro na história da verdade revela-se violentos contra As palavras e as coisas . Canguilhem defendeu as
extremamente importante. Foucault foi um leitor de Bachelard , teses de Foucault de forma extremamente enf á tica. Ele compara
atento a suas reflexões sobre a descontinuidade na história das Foucault a Bachelard , a Hume e , principalmente , a Kant . Diz Can-
ciê ncias e no trabalho da razão sobre si mesmo e na constituição de guilhem: “ Em O novo espirito cientí fico , Gaston Bachelard tentou
seus objetos de análise . Diz ele: há em Bachelard “ toda uma sé rie extrair das novas teorias da física normas para uma epistemologia
de elementos que aproveitei e retomei” . n ão cartesiana.. . [ e ] na Filosofia do não ele esboçou a respeito das
No entanto, o filósofo da ciê ncia que exerceu mais influê ncia so- novas teorias da qu ímica a tarefa de uma analí tica não kantiana . ..
bre ele foi Georges Canguilhem , com seus estudos sobre as ciê ncias Michel Foucault estende as demandas de um não-cartesianismo e
da vida. O que interessava nos estudos de Canguilhem dos proble- um não- kantismo à pr ó pria reflexão filosófica. . . As palavras e as
X Michel Foucault - Ditos e Escritos Apresentação XI

coisas deve desempenhar para um Kant ainda desconhecido o pa- A primeira razão se deve à importância estratégica e sempre
pel de despertador que Kant atribui a Hume . . . esta obra é para as crescente tomada pela “ racionalidade científica e técnica no desen -
ciê ncias humanas o que A cr í tica da raz ã o pura foi para as ci ê n - volvimento das for ças produtivas e no jogo das decisões polí ticas ”
cias naturais” ( “ Mort de l’ homme ou épuisement du Cogito?” , Re- (ver p. 357 neste volume ) .
vue Critique , ps . 617-619 , 1966 ) . Uma segunda questão mais enigmática diz respeito aos efeitos
O tema da racionalidade foi introduzido pela primeira vez pela fi- de despotismo produzidos por uma “ revolu ção” que era levada por
losofia do século XVIIL Colocou -se então o problema da natureza do todo um racionalismo . A questão levantada por Foucault diz res-
pensamento racional , de seus fundamentos ou , como diz Foucault , peito à parte que cabe a esta mesma razão nestes efeitos despóticos
“ de seus poderes e de seus direitos , mas també m de sua histó ria e nos quais a esperan ça desta chamada “ revolu ção ” perdeu -se . Esta
de sua geografia , de seu passado imediato e de suas condições de questão , lembra o pr ó prio Foucault , já fora levantada pela Escola
exercício , de seu momento, de seu lugar e de sua atualidade” . de Frankfurt - a formação dos grandes sistemas de saber teve tam-
Esta questão tornou -se para a filosofia interrogação essencial à bém efeitos de servid ão e de dominação . Tal fato levara a uma revi -
qual Mendelssohn e , em seguida , Kant deram uma resposta à per - são completa do postulado , segundo o qual o desenvolvimento de
gunta da Berlinische Monatsschrift : Was ist Aufkl árung?. Esta um saber é em si pr ó prio uma garantia de liberação. O exercício da
quest ão vai revelar a filosofia ora como figura determinante de uma própria razão se inverteu em uma dominação da própria razão em
é poca , como a composição dos traços particulares do período em
que esta usurpa o lugar da liberdade. Esta questão levou os frank -
que aparecia ou como princí pio de deciframento de toda sucessão furtianos , e Horkheimer , por exemplo , a interrogar Marx , desig-
nando , assim , as formas de opressão das sociedades capitalistas e
histórica. É este duplo aspecto que torna a questão do “ momento
socialistas. Foucault lembra a refer ê ncia de Horkheimer a Marx , na
presente ” , da atualidade , a interroga çã o sobre a hist ória , uma
qual ele dizia que este concebia a sociedade sem classes como uma
questão da qual a filosofia não pode se separar . Para a filosofia , a
imensa usina .
histó ria passa a ser um de seus maiores problemas. Na Alemanha ,
esta questão produziu uma reflexão histórica e política sobre a so- -
Há, finalmente, uma questão mais geral habitada , no entanto ,
pelo problema de todas as particularidades e singularidades : o
ciedade , tendo como eixo central a experiência religiosa , a é tica
questionamento das Luzes liga-se ao movimento pelo qual “ se co -
protestante e as várias modalidades de é tica em sua relação com a me çou a perguntar , no Ocidente e ao Ocidente , que tí tulos sua cul -
economia e o Estado. Lembra Foucault que esta reflexão está pre- tura, sua ciência, sua organização social e , finalmente , sua pr ópria
sente em Feuerbach , Nietzsche , Marx , Weber , Luk ács e na Escola racionalidade podiam deter para reivindicar uma validade univer -
de Frankfurt . sal: ela não é apenas uma miragem ligada a uma dominação e uma
Na Fran ça , a resposta à questão filosófica do que foi a Aufkl á- hegemonia política? ” ( ver p . 357 neste volume ) .
rung foi dada pela histó ria das ci ê ncias , inicialmente a partir de Esta questão é mais do que nunca atual em um momento em que
Saint -Simon e Comte e seus sucessores , discutindo as formas cien - o poder hegemónico capitalista de hoje , com seu dispositivo té cni -
tíficas do conhecimento , os conte ú dos religiosos das represen- -
co científico no processo conhecido como globalização , atravessa ,
tações, passagem do pré-científico ao científico , origem e limites da perfura e funde talvez as civilizações de forma vertiginosa.
racionalidade . Foram os debates dos positivistas , a quest ã o do O retorno da questão das Luzes é , para Foucault , uma forma de
cientificismo , a ciê ncia medieval que colocaram em questão na Fran- interrogar -nos em uma dupla vertente sobre a razão . De um lado ,
ça a heran ça do Iluminismo . A entrada da fenomenologia na Fran ça para tomarmos consciê ncia das possibilidades atuais da liberdade
fez-se mesmo também , por um lado , através dos textos de Husserl, e , de outro, interroga- nos sobre os limites e poderes que usamos .
como as Meditações cartesianas e Krisis . Razão ocidental, ao mesmo tempo “ despotismo e luz” .
Para Foucault , a questão do Iluminismo é fundamental . E ele de- As palavras e as coisas é o livro em torno do qual gravita , para
clina de forma clara tr ês questões que trouxeram para o primeiro retificar , ampliar , desdobrar , um bom n ú mero de textos deste vo-
plano do debate contempor âneo a questão das Luzes . lume . E , sem d úvida , uma das mais importantes obras do pensa -
M

XII Michel Foucault - Ditos e Escritos


Apresentação XIII

mento do século XX, comparável a O ser e o tempo , de Heidegger , dicional . Os ataques ao livro As palavras e as coisas , como obra
ou ao Tratactus , de Wittgenstein . É fundamental explicar o contex- tecnocr á tica , idealista , publicados na revista de Sartre eram total-
to ideológico em que surgiu . Livro extremamente técnico , que Fou - mente iguais “ aos que foram avan çados no per íodo de Kruchtchov
cault endere çava principalmente a especialistas da histó ria das sobre o formalismo e o estruturalismo ” . Foucault refere-se a duas
ciê ncias , ele o escreveu depois de muitas discussões com Cangui- pequenas histórias que ilustram este quadro - a visita de um gran
lhem e dirigia-o principalmente a pesquisadores . Alcan çou enorme -
de filósofo ocidental - provavelmente Sartre - que era esperado pe-
sucesso junto ao público e recebeu uma cr í tica extremamente nega- los tchecos como um messias , tratando-se do primeiro grande inte
tiva de Sartre , Garaudy , Henri Lefebvre, Michel Amiot , Jean Piaget ,
-
lectual não comunista convidado no período de grande efervescên-
Sylvie Le Bon , Mikel Dufrenne , que se inclu ía no amplo debate cia cultural que precedia à primavera de Praga . Esse filósofo ata-
sobre o estruturalismo . Sartre chegou a chamar o trabalho de Fou- cou o estruturalismo , afirmando que este encontrava-se a servi ço
cault de “ última fortaleza ideol ógica da burguesia ” . do grande capital e que tentava se opor à grande corrente ideológi-
Para Foucault , por tr ás do barulho da polê mica , existia uma ra- ca marxista . A platéia o recebeu decepcionada , porque ele fornecia
z ão de fundo. É que o estruturalismo nascera de um conjunto de uma arma excepcional ao poder constitu ído pelos estalinistas e
pesquisas que haviam se desenvolvido na URSS e na Europa Cen- seus remanescentes na antiga Tchecoslová quia , que podiam atacar
tral na altura dos anos 20. As pesquisas de Propp, Troubetzkoi , Ja- o estruturalismo, considerado ideologia reacionária por um filóso-
-
cobson , Bakthin contam se entre as mais significativas dessa cor - fo não comunista . A outra anedota vem da pró pria experiê ncia de
rente . Esses trabalhos , que compreendiam o campo da lingúística , Foucault , em 1967, na Hungria . Ele propôs como tema o debate em
do folclore , da mitologia , da poé tica , precederam à Revolu ção Rus- curso no Ocidente sobre o estruturalismo . Os temas propostos por
sa e foram suprimidos e perseguidos pelo estalinismo . Essas cor - Foucault foram aceitos , e tendo ele feito as confer ê ncias no teatro
rentes , de forma meio subterr ânea , acabaram por atingir a Fran ça da universidade faltava uma confer ê ncia espec ífica sobre o estrutu -
e marcaram os trabalhos de Dum é zil e Lévi-Strauss . Na agressivi- ralismo . Disseram -lhe - o que Foucault sabia ser uma mentira -
dade com que um certo marxismo historicista atacava o estrutura- que se tratava de questão extremamente difícil que não suscitava
lismo , estava o fato de que “ o estruturalismo fora a grande ví tima muito interesse . Falando com seu inté rprete , este respondeu : “ Há
cultural do estalinismo , uma possibilidade diante da qual o mar - tr ês coisas sobre as quais n ão podemos falar na universidade : o na-
xismo não soubera o que fazer ” ( ver n- 281 , p . 62 , vol. IV da edição zismo , o regime Horty e o estruturalismo . ” Foucault compreendeu
francesa desta obra ) . que o problema do estruturalismo era um problema do Leste euro-
Assim , o estruturalismo aparece como o contragolpe de proble- peu , e a confusão ideológica , as discussões inflamadas que reina -
mas muito mais importantes que se colocavam na Europa Oriental vam na Fran ça eram o eco de uma luta extremamente importante
sob domínio da antiga União Soviética. Eram realizados esfor ços, que se desenrolava na Europa Oriental .
por muitos intelectuais na é poca , para a desestalinização - sovi é ti- O que estava em questão eram problemáticas que não eram irra-
cos , da antiga Tchecoslová quia etc . -, intelectuais estes que deseja- cionalistas , que não eram de direita e que não estavam inseridas
vam tornar -se autónomos frente ao poder político e libertar -se da dentro do dogmatismo estalinista , ou do humanismo marxista e
ideologia oficial . O formalismo e o estruturalismo eram a grande suas variantes. A constru ção de uma pesquisa teórica racional , ci-
tradição que estes intelectuais podiam oferecer à cultura ocidental . entífica , fora das leis do materialismo dialé tico era uma questã o
Eram trabalhos inovadores , que estavam ligados , direta ou indire- importante na Europa Ocidental , na Fran ça è no Leste europeu .
tamente , à Revolução Russa. No momento em que o estalinismo se Era isto , segundo Foucault , o que explicava os anátemas de que ele
desestabilizava , retomar essa tradição não podia sofrer a acusaçã o foi objeto .
de pertencer a uma corrente reacioná ria e ocidental . Foucault chama a atenção para a forma variada com que o mar -
Na Fran ça , nos meios mais ou menos marxistas , diz Foucault , xismo funcionava na Europa Oriental e nos países do Terceiro
sentiu -se que , no estruturalismo , tal como era praticado nesse Mundo , como a Tunísia e o Brasil , principalmente no meio estu -
país , havia como que um fim de linha para a corrente marxista tra- dantil. Tendo vivido dois anos e meio na Tun ísia , esteve presente
XIV Michel Foucault - Ditos e Escritos Apresentação XV

guinte , em que se encontra em ação um ú nico e mesmo sistema de


quando alguns meses antes de maio de 1968, precisamente em
mar ço , rebeliões estudantis muito intensas explodiram com greve formação de enunciados , ou , ainda, o momento em que este siste-
ma se transforma” .
geral , interrupção de cursos , prisões , estudantes feridos grave-
mente ou condenados até a 14 anos de prisão. Foucault impressio- Epistemologização - “ quando no jogo de uma formação discursi-
nou -se vivamente com aqueles que , redigindo um panfleto , distri- va um conjunto de enunciados se delineia , pretende fazer valer
( mesmo sem consegui-lo ) normas de verificação e de coerê ncia e
buindo-o ou conclamando à greve se expunham a enormes riscos . o
Foi para ele uma formid ável experiê ncia política . Todos os estu -
fato de que exerce em relação ao saber uma função dominante ( mo-
delo , cr ítica ou verificação ) ” .
dantes se proclamavam marxistas , em Tú nis. O marxismo para
eles nã o era apenas uma doutrina , era uma espécie de energia mo- Cientificidade - “ quando uma figura epistemológica assim deli-
neada obedece a um certo n ú mero de critérios formais , quando
ral , de ato existencial. Era algo totalmente diverso da situação polo-
nesa , que Foucault també m conhecia , onde o marxismo era recebi- seus enunciados não respondem somente a regras arqueológicas
do com total desprezo por ser ensinado como um catecismo . Dife-
de formação , mas , alé m disso , a certas leis de constru ção de pro-
posições” .
rente tamb é m do funcionamento francês do marxismo , onde as
discussões eram frias e acad ê micas no in ício dos anos 60. Na Tuní- Formalização - “ quando este discurso científico , por sua vez , pu -
sia , pelo contr á rio , a maneira de afirmar seu modo de ser marxista
der definir os axiomas que lhe são necessá rios , os elementos que
possu ía uma viol ê ncia e uma intensidade radicais e com um entu - usa , as estruturas proposicionais que lhe são legítimas e as trans-
siasmo impressionante . Amargura , eis o que invadia Foucault ao
formações que aceita , quando puder assim desenvolver , a partir de
si mesmo , o edif ício formal que constitui” .
pensar na distância entre a maneira de ser marxista na Tunísia e
A arqueologia não especifica particular mente estruturas das
aquilo “ que eu sabia do funcionamento do marxismo na Europa
ciê ncias , mas os diferentes dom í nios do saber . Foucault formula
( França , Polónia e União Sovié tica ) ” ( ver n- 281, p . 79 , vol . IV da
em sua resposta ao Círculo de Epistemologia um amplo conjunto
edição francesa desta obra ) .
de condições negativas para definir o saber : este n ão é “ uma soma
O “ Cí rculo de Epistemologia da Escola Normal ” , que se organiza
de conhecimentos - pois destes se deve poder dizer se sã o verda -
em fevereiro de 1966 , tendo à frente Jacques-Alain Miller , além de
deiros ou falsos , exatos ou não , aproximativos ou definidos , con -
François Régnault , Alain Grosrichard , Alain Badiou , Jean Claude
Milner , no conselho de redação organizado com o apoio de Lacan e traditó rios ou coerentes; nenhuma dessas distinções é pertinente
para descrever o saber , que é o conjunto dos elementos ( objetos , ti-
Canguilhem , passa a editar os “ Cahiers pour l’analyse” . Como lema
pos de formulações, conceitos e escolhas teóricas ) formados a par -
de um trabalho que pretende elaborar uma teoria do discurso , uma
tir de uma só e mesma positividade , no campo de uma formaçã o
citação de Canguilhem que é , por sua vez , continuação de uma tese
de Jean Cavaillès , filósofo e combatente da resistê ncia : “ Trabalhar discursiva unitária” ( ver p . 110 neste volume ) .
Em As palavras e as coisas , Michel Foucault procurou compa -
um conceito é fazer variar sua extensão e sua compreensão , genera -
rar três pr áticas científicas. O fato de que a história natural , a gra-
liz á-lo pela incorporação de traços excepcionais , exportá-lo fora de
mática e a economia polí tica se tenham constitu ído mais ou menos
sua região de origem , tomá-lo como modelo ou , inversamente , pro-
na mesma é poca parecera a Foucault algo de singular . Tratava-se
curar para ele um modelo , em suma , conferir -lhe progressivamen- de estudar pr áticas heterogé neas . Foucault não procurava estudar
te , por transformações calculadas, a função de uma forma. ” O Cír -
o nascimento da análise das riquezas e a formação do capitalismo .
culo propôs a Foucault questões de mé todo para um n ú mero dedi-
O problema era encontrar pontos comuns entre vá rias pr á ticas dis-
cado à genealogia das ciê ncias . Foucault retomou suas questões , cursivas: uma análise comparativa dos procedimentos internos ao
corrigiu -as e ampliou -as na Arqueologia do saber . Ele especifica , discurso científico . No Pref ácio à Edição Inglesa , publicado neste
então , quatro crité rios que marcam os momentos fundamentais de volume , Foucault ressalta que se trata de um estudo em um setor
uma pr ática discursiva: da história das ciências relativamente negligenciado. Esta privile-
Positividade - “ momento a partir do qual uma pr ática discursiva gia a história das matemá ticas , a cosmologia e a f ísica . As discipli -
se individualiza e assume sua autonomia ; o momento , por conse-
XVI Michel Foucault - Ditos e Escritos Apresentação XVII

nas referentes aos seres vivos , às línguas e aos fatos económicos , O ponto em que se situa a leitura arqueológica de Foucault é o li-
que ele estuda, supõe-se que sejam por demais tingidas pelo pensa- miar da epistemologização. Este é definido como "o ponto de cliva-
mento empírico para que tenham uma história diversa da irregu- gem entre as formações discursivas definidas por sua positividade
lar . A hipótese de Foucault é que a pr ó pria história do saber não e figuras epistemológicas que não são todas for çosamente ciências
formalizado possui um sistema. ( e que de resto jamais chegaram a sê-lo ) . Não é um nível em que a
Foucault não pretendeu , a partir de um tipo particular de saber , cientificidade serve como norma . Na história arqueológica , são as
esboçar o quadro de um per íodo ou reconstituir o espírito de um práticas discursivas na medida em que dão lugar a um saber , em
século. Ele apresenta um nú mero preciso de elementos - bem pre- que este saber assume o lugar e o status de uma ciência” ( A arqueo-
ciso , frisa ele - sobre o conhecimento dos seres vivos , sobre o co- logia do saber , Forense Universitária , p . 216 ) .
nhecimento das leis da linguagem e o conhecimento dos fatos eco- Foucault chamou na Arqueologia do saber a análise das forma-
nómicos. Relaciona estes saberes , durante um período que se es- ções discursivas , das positividades e do saber de "análise da episte-
tende do século XVII ao século XIX, ao discurso filosófico de seu me ” . Ele a distingue , assim , de outras formas de história da ciê ncia.
tempo . Este método diverge dos estudos unidisciplinares . Não h á E a episteme é “ o conjunto das relações que podem unir , em
em As palavras e as coisas uma história justaposta da biologia , da uma determinada época , as pr áticas discursivas que dão lugar a fi-
lingúística e da economia política. Há um quadro inteiramente di- guras epistemológicas , a ciências , eventualmente, a sistemas for -
verso que subverte as grandes classificações conhecidas e familia - malizados ; o modo segundo o qual , em cada uma dessas forma -
res. Foucault não foi buscar nos séculos XVII e XVIII os começos da ções discursivas , se situam e se realizam as passagens à epistemo-
biologia ou os da economia ou da lingúística. Ele observou as figu- logização , à cientificidade , à formalização” (A arqueologia do sa -
ras caracter ísticas do que chamou de “ Idade Clássica” , uma taxio- ber , Forense Universitária , p . 217 ) .
nomia ou uma história natural pouco contaminada pelo saber exis- Contra todas as leituras herdeiras do Zeitgeist hegeliano , Fou -
tente da fisiologia animal ou vegetal. E é assim que Foucault pode cault afirma : “ A episteme não é uma forma de conhecimento ou
dizer que a “ vida” não existia na Idade Clássica , e que a história na - uma forma de racionalidade que , atravessando as ciê ncias mais di -
tural morre , desaparece , quando surge a episteme do século XIX. versas , manifestaria a unidade soberana de um sujeito , ou o espí ri-
Esta leitura permite produzir uma perspectiva inteiramente nova to de uma é poca : é o conjunto de relações que podem ser descober -
sobre a função de Cuvier na história da biologia - nela , Cuvier apa - tas, para uma é poca dada , entre as ciê ncias , quando estas são ana-
rece como a condição de possibilidade da teoria da evolução . No lisadas ao nível das regularidades discursivas” (A arqueologia do
debate sobre Cuvier , do qual participam Ivette Conry, Bernard Ba - saber , Forense Universitá ria , p. 217 ) . A episteme , por outro lado ,
lan e François Dagognet , Foucault dá conta de um embaraço que é una: “ Em uma cultura e em um momento dado, existe apenas
não superou em As palavras e as coisas . Ao colocar Cuvier , Bopp e uma episteme , que define as condições de possibilidade de todo
Ricardo , isto é , nomes , parecia designar a totalidade de uma obra . saber ” ( Les mots et les choses , Ed . Gallimard , 1966 , p . 27 ) . Cabe
Na verdade , tratava-se de compreender Cuvier ou Ricardo “ n ão ressaltar a diferen ça do conceito de episteme com qualquer tipo de
como o nome que permite classificar um certo n ú mero de obras, Weltanschauung com que um ideólogo como Raymond Aron , seu
( . .. ) mas como a sigla de uma transformação ” ( ver p. 223 neste vo- futuro colega no Collège de France , tentava identificá-la .
lume ) . Referindo-se a um efeito da física , o efeito Ramsey , Foucault É um nível de trabalho distinto do historiador da ciê ncia corren -
diz que se deveria dizer a transformação Ricardo ou Cuvier . te . Foucault procura descrever o que ele chama de “ inconsciente
Diferente da epistemologia bachelardiana , com a qual partilha o positivo do saber : um n ível que escapa à consciê ncia do pesquisa -
papel heurístico da construção da descontinuidade , dos tempos di- dor e que , no entanto , faz parte do discurso científico ” ( ver p . 184
ferenciais na história do saber , não há na arqueologia qualquer as- neste volume ) . Um exemplo visível está no fato de que naturalistas
pecto evolutivo, progressivo ou retrospectivo . Se ela permite uma e economistas por vezes utilizavam as mesmas regras para definir
leitura retroativa é porque elimina o ju ízo sobre o saber do passado os objetos pr óprios de seu campo de estudo para formar seus con-
a partir da atualidade da ciê ncia. Não há passado sancionado ou ceitos, construir suas teorias . O n ível arqueológico aqui é definido
ultrapassado na perspectiva de Foucault .
XVIII Michel Foucault - Ditos e Escritos Apresentação XIX

como o “ fundamento comum a toda uma sé rie de representações” Na entrevista feita com Raymond Bellour , em 1967, Foucault
ou de “ produtos científicos dispersos através da história natural , ressalta o papel de Nietzsche na construção de sua arqueologia . É a
da economia e da filosofia da época clássica” (A arqueologia do sa- -
Nietzsche lido antes por Blanchot e Bataille - mais do que ao es-
ber , Forense Universitária , p. 182 ). truturalismo ou à epistemologia que a arqueologia se vincula. Em
Aos que disseram que o livro de Foucault negava a pr ó pria possi- 1971, Foucault escreve seu grande texto Nietzsche , a Genealogia ,
bilidade de mudan ça ele responde que esta questão constituía sua a História ( ver p. 260 neste volume ) , no qual o fulcro de suas análi-
preocupação principal . E Foucault ressalta que o que o impressio- ses se desloca para uma genealogia das relações poder -saber . Ser á
nou em particular foi a maneira radical , violenta com que certas este trabalho que constituir á o campo mais importante das pesqui-
ciê ncias foram objeto de uma reorganização completa ; que no es- sas que ir á fazer e cursos que ir á ministrar no Collège de France ,
paço de alguns anos substitu íram-se , simultaneamente , várias dis- para o qual fora eleito em novembro de 1969, na cadeira de Histó-
ciplinas . Assim , a filologia sucede à gramática geral , a anatomia ria dos Sistemas de Pensamento.
comparada obriga a um novo ordenamento, o das classificações A genealogia nietzschiana - é o que mostra Foucault - choca-se
naturais , e à análise das riquezas sucede-se uma economia cujos com a crença na metaf ísica e a maneira tradicional de fazer histó-
conceitos-chaves são os de produ ção e trabalho . Foucault reconhe- ria: ela se opõe à pesquisa da origem , porque nesta há “ um esfor ço
ce , por outro lado , que deixou de lado nesse livro o problema das para captar a essê ncia exata da coisa , sua mais pura possibilidade ,
causas , tendo se limitado a descrever as pr óprias transformações . sua identidade cuidadosamente guardada em si mesma , sua forma
Cabe ressaltar aqui um pequeno detalhe da histó ria da episteme im óvel e anterior a tudo o que é externo , acidental e sucessivo ” ( ver
do século XIX que teve amplas conseq üê ncias políticas . O fato de p. 262 neste volume ) . O genealogista , ao escutar a história , aprende
“ que por tr ás das coisas h á ‘algo completamente diferente’ : n ão ab -
Foucault ter localizado a teoria econ ómica de Marx no interior da
do século XIX, no quadro da episteme em que a obra de Ricardo solutamente seu segredo essencial e sem data , mas o segredo de
era o ponto inaugural da economia polí tica , rendeu -lhe um dilúvio que elas são sem essê ncia ou que sua essê ncia foi constru ída peç a
de injú rias. E muitas destas partiram dos que consideravam Marx por peça a partir de figuras que lhe eram estranhas” ( ver p . 262
o ponto inaugural de um modo de cientificidade a partir do qual a neste volume ) .
história do mundo deveria ser estudada , julgada etc . Neste ponto é A genealogia não é uma análise presa ao postulado da origem
que se devem situar as relações complexas da obra de Foucault ( Ursprung ) , na medida em que este seria o lugar da verdade , “ pon -
com a de Althusser . Este també m fora situado como estruturalista to completamente recuado e anterior a qualquer conhecimento po-
e tornara-se objeto de ataques por parte dos ideólogos humanistas sitivo , [ e a origem ] tornaria possível um saber que , no entanto , a re-
do PCF, como Garaudy. Em mar ço de 1966 , como lembra Defert cobre , e não cessa , em sua falação , de desconhecê-la ; ela estaria
( ver p. 19 , vol . I da edição brasileira desta obra ) , “ o Comité Central nessa articulação inevitavelmente perdida em que a verdade das
do PCF reunido em Argenteuil declara , contra Althusser , que o coisas se liga a uma verdade do discurso que logo a obscurece e a
‘marxismo é o humanismo de nosso tempo’ ” . Em maio , Foucault perde . ( . . . ) Por tr ás da verdade , sempre recente , avara e comedida ,
proclama : “ nossa tarefa é nos libertamos do humanismo .. . é neste há a proliferação milenar dos erros. Não acreditamos mais ‘que a
sentido que meu trabalho é um trabalho político , na medida em verdade permaneça verdadeira quando lhe arrancamos o véu : já vi-
que todos os regimes do Leste ou do Oeste fazem passar suas mer - vemos bastante para crer nisto’ ” ( ver p . 263 neste volume ) . O que é
cadorias sob a bandeira do humanismo ” ( ver n2 37 , p. 516 , vol . I da a verdade , então? “ A verdade , espécie de erro que tem a seu favor o
edição francesa desta obra ) . Foucault situa o equívoco de o consi- fato de não poder ser refutada , sem d ú vida porque a longa cocção
derarem estruturalista , assim como Althusser e Lacan , no fato de da história a tornou inalter ável . E , alé m disso , a pr ó pria questão da
que os tr ês abandonavam um postulado fundamental da filosofia verdade , o direito que ela se dá de refutar o erro ou de se opor à
francesa , o fato de colocarem de forma nova a questão do sujeito , apar ê ncia , a maneira pela qual alternadamente ela se tornou aces -
de a situarem de maneira diversa da tradição cartesiana refor çada sível aos sábios , depois reservada apenas aos homens piedosos , a
pela fenomenologia. seguir retirada para um mundo fora de alcance , onde desempe -
Apresentação XXI
XX Michel Foucault - Ditos e Escritos

vras e reflexões. Neste estado de espírito ele se tornar á um pensa-


nhou simultaneamente o papel de consolo e de imperativo , rejeita- dor e anunciador , ou então sua imaginação desenvolver á suas su -
da , enfim , como id éia in ú til , supé rflua , contradita em todo lugar - perstições.” No corpo se encontra o estigma dos acontecimentos
tudo isso não é uma história , história de um erro que tem o nome passados , assim como dele nascem os desejos , os desfalecimentos
de verdade?” ( ver p . 263 neste volume ) . e os erros. O corpo é uma superf ície de inscrição dos acontecimen-
As for ças que estão em jogo na história , campo de batalha , não tos, lugar de dissolução do uno , volume em perpétua pulverização.
obedecem nem a uma destinação nem a uma mecânica , mas ao A genealogia está na articulação do corpo com a história.
acaso da luta . . . “ Elas surgem sempre no aleatório singular do acon- Um outro elemento fundamental da genealogia é a emergê ncia
tecimento ” ( ver p. 273 neste volume ) . [ Entstehung ) , a lei singular de um aparecimento. Ela não deve ser
Seguir Nietzsche , ao fazer a genealogia dos valores , da moral , do buscada em uma continuidade ininterrupta . Seria tamb é m um en-
ascetismo , do conhecimento , nunca ser á , portanto, partir em bus- gano dar conta da emergência pelo termo final. Os fins últimos não
ca de sua “ origem ” , negligenciando como impossíveis todos os epi- passam do episódio final de uma sé rie de submissões . O castigo
sódios da história. O genealogista reconhece os abalos, as surpre- que ser á depois objeto da pesquisa precisa de Foucault sobre o
sas , as vitórias vacilantes e as derrotas mal digeridas dos aconteci- nascimento da prisão foi alternadamente submetido à necessidade
mentos da história , que dão conta dos começos . de se vingar , de “ excluir o agressor , de se libertar da vítima , de ater -
A proveniê ncia ( Herkunft ) , revela-nos Foucault , é para Nietzsche rorizar os outros ” . A genealogia restabelece os sistemas de submis-
o objeto específico da genealogia. Permite “ descobrir todas as mar - são . N ão a potê ncia antecipadora de um sentido , “ mas o jogo casual
cas sutis e singulares , subindividuais , que podem se entrecruzar e das dominações” . A emergê ncia sempre se produz em um determi-
formar uma rede dif ícil de desembaralhar ” . Foucault ressalta ser a nado estado de for ças. A análise da Entstehung deve mostrar seu
proveniê ncia uma figura da semelhan ça diferente da que ele anali- jogo , a maneira pela qual umas lutam contra as outras , ou o com-
sou na episteme da Renascença. bate que travam diante de circunstâncias adversas. . . de escapar à
A proveniência permite também reencontrar sob o aspecto ú nico degenerescê ncia e recobrar o vigor a partir de seu pr ó prio enfra-
de uma característica ou de um conceito a proliferação dos aconteci- quecimento . Por exemplo , “ a emergê ncia de uma espé cie ( animal
mentos contra os quais , ou graças aos quais , este conceito se formou . ou humana ) ” e sua solidez são asseguradas “ por um longo combate
Seguir o filão complexo da proveniê ncia é , pelo contr ário , man - contra as condições constantes e essencialmente desfavor áveis ” .
ter o que se passou na dispersão que lhe é pr ó pria ; é situar os aci - Nietzsche opõe a histó ria tradicional a wirkliche Historie . De
dentes , os í nfimos desvios - ou , pelo contr ário , as completas inver - um lado , a tradição teleológica ou racionalista que tende a dissol-
sões , os cálculos err óneos que fizeram nascer o que existe e tem va- ver o acontecimento singular em uma continuidade ideal - movi-
lor para n ós: é descobrir que na raiz do que conhecemos e do que mento teleológico ou encadeamento natural. A “ hist ória efetiva ” faz
somos não há absolutamente a verdade e o ser , mas a exterioridade surgir o acontecimento , faz aparecer o acontecimento no que pode
do acidente . ter de ú nico e agudo . E o que é o acontecimento? Não é decisão , tra-
E Foucault ressalta ainda que a proveniê ncia se relaciona com o tado , reino ou batalha , mas uma relação de for ças que se inverte ,
corpo. Inscreve-se no sistema nervoso , no humor e no aparelho di- um poder confiscado , um vocabulá rio retomado contra seus utili-
gestivo. Má respiração, má alimentação , corpo d ébil e vergado da- zadores , uma dominação que se enfraquece , se amplia e se envene-
queles cujos ancestrais cometeram erros. Por que os homens in- na e uma outra que faz sua entrada , mascarada .
ventaram a vida contemplativa? Porque atribuíram um valor su- O trabalho da genealogia vai també m se transformar progressiva-
premo a este tipo de existê ncia . Em Aurora , é o que refere Nie- mente nos livros e ensaios seguintes de Foucault , até transformar -se
tzsche: “ Durante as é pocas bá rbaras . .. se o vigor do indivíduo de- em uma ontologia do presente. Genealogia e arqueologia se articu -
cai , se ele se sente fatigado ou doente , melancólico ou saciado , e , lam sob o signo das problematizações . Em um momento posterior
conseq úentemente , de forma tempor ária , sem desejo ou sem apeti- de seu trabalho , já quando escrevia a história da sexualidade , sob a
tes , ele se torna um homem relativamente melhor , ou seja , menos égide da problematização , eis como ele define esta etapa de seu tra-
perigoso , e suas id éias pessimistas se formulam apenas por pala- balho e redefine o que realizara antes: “ analisar não os comporta-
XXII Michel Foucault - Ditos e Escritos Apresentação XXIII

mentos nem as id éias , não as sociedades nem suas ideologias” , mas pref ácio , confer ê ncia , entrevista, discussão , interven ção , resumo
as problematizações através das quais o ser se dá como podendo e de curso . Esta indicação , organizada pelos editores , foi mantida na
devendo ser pensado e as práticas a partir das quais elas se formam . edição brasileira , assim como a refer ê ncia bibliogr áfica de cada
A dimensão arqueológica da análise permite analisar as formas texto , que figura sob seu tí tulo .
mesmas da problematização; sua dimensão genealógica , sua forma- A edição francesa possui um duplo sistema de notas : as notas
ção a partir das pr á ticas e suas modificações . Problematização da numeradas foram redigidas pelo autor e aquelas com asterisco fo-
loucura e da doença a partir de pr áticas sociais e médicas , definindo ram feitas pelos editores franceses. Na edição brasileira , há tam -
um certo perfil de “ normalização” ; problematização da vida , da lin- .3,
bé m dois sistemas , com a diferença de que as notas numeradas
guagem e do trabalho em práticas discursivas que obedecem a cer- compreendem tanto as originais de Michel Foucault quanto as dos
tas regras “ epistê micas"; problematização do crime e do comporta- editores franceses . Para diferenciá-las , as notas do autor possuem
mento criminoso a partir de certas pr áticas punitivas que obedecem um ( N .A. ) antes de iniciar -se o texto . Por sua vez , as notas com aste-
a um modelo “ disciplinar ” ( L’ usage des plaisirs , Ed . Gallimard , ps . .S
risco , na edição brasileira , se referem à quelas feitas pelo tradutor
17- 18 ) . * ou pelo revisor técnico , e vê m com um ( N .T. ) ou um ( N . R . ) antes de
Se o trabalho de Nietzsche foi um dos eixos que permitiram ope- r . iniciar -se o texto .
rar a passagem da arqueologia à genealogia é interessante notar o Esta edição permite o acesso a um conjunto de textos inacessí -
trabalho do arqueólogo Foucault na descrição das dificuldades veis , fundamentais para pensar questões cruciais da cultura con -
para o empreendimento internacional de uma nova edição das tempor â nea e , ao mesmo tempo , medir a extensão e o alcance de
obras de Nietzsche , pelo que ele junto com Deleuze foram durante n um trabalho , de um work in progress dos mais importantes da his-
n
uma certa etapa os responsáveis . A edição deste texto de Foucault :ï$
tó ria do pensamento em todas as suas dimensões , éticas , estéticas ,
se justifica na medida em que não temos notícia de projetos de edi- if . liter á rias , políticas , históricas e filosóficas .
çã o em língua portuguesa das obras completas do autor da Genea-
logia da moral - quando o interesse pela obra de Nietzsche é entre Manoel Barros da Motta
n ós intenso. Para Foucault trata-se nesta edição de restituir a pai-
sagem intelectual do filósofo. Isto significa que cada volume foi
acompanhado “ dos esboços , notas e rascunhos” , do que Foucault
chamou de “ sua confusão característica” . Trata-se de construir
“ um terreno de discussão . Nele , diz Foucault , os historiadores da
filosofia poder ão fazer a sua parte ” . Projeto diverso da nova edição
de Nietzsche na Bibliothè que de la Plé iade , na qual só as obras edi-
tadas pelo filósofo em vida ter ão lugar .
É preciso n ã o esquecer o importante papel que Foucault atri-
buiu em seu percurso teó rico e político à obra de Gilles Deleuze e a
leitura de m ú ltiplos efeitos que fez Deleuze da inversão do platonis-
mo . Como sabemos , esta inversão se desdobra em efeitos sobre
toda a hist ó ria da metáfora ocidental .
A edição brasileira é bem mais ampla do que a americana , em
curso de publicação , e també m do que a italiana. Sua diagramação
segue praticamente o modelo francês. A ú nica diferença significati-
va é que na edição francesa a cada ano abre-se uma página e os tex-
tos entram em seq úê ncia numerada ( sem abrir página ) . Na edição
brasileira , todos os textos abrem página e o ano se repete . Abaixo
do tí tulo há uma indicação de sua natureza: artigo , apresenta ção ,
Sumário

1961 - “ Alexandre Koyr é : Revolução Astronómica , Copé rnico ,


Kepler , Borelli” 1
1964 - Informe Histórico 4
1966 - A Prosa do Mundo 10
1966 - Michel Foucault e Gilles Deleuze Querem Devolver a
Nietzsche Sua Verdadeira Cara 30
1966 - O Que É um Filósofo? '
34
1967 - Introdu ção Geral ( às Obras Filosóficas Completas
de Nietzsche ) 36
1967 - Nietzsche , Freud , Marx 40
1967 - A Filosofia Estruturalista Permite Diagnosticar o
Que É “ a Atualidade” 56
1967 - Sobre as Maneiras de Escrever a História 62
1967 - As Palavras e as Imagens 78
1968 - Sobre a Arqueologia das Ciê ncias . Resposta ao
Círculo de Epistemologia 82
1969 - Introdu ção ( in Arnauld e Lancelot ) 119
1969 - Ariadne Enforcou-se 141
1969 - Michel Foucault Explica Seu Último livro . . 145
1969 - JeanHyppolite . 1907-1968 153
1969 - Lingü istica e Ciê ncias Sociais . 160
1970 - Pref ácio à Edição Inglesa 182
1970 - ( Discussão ) 189
1970 - A Posição de Cuvier na História da Biologia 192
1970 - Theatrum Philosophicum 230
1970 - Crescer e Multiplicar 255
1971 - Nietzsche , a Genealogia , a História 260
1972 - Retornar à História 282
1975 - Com o Que Sonham os Filósofos? 296
1980 - O Filósofo Mascarado 299
1983 - Estruturalismo e Pós-estruturalismo 307
1984 - O Que São as Luzes? 335
1985 - A Vida : a Experiência e a Ciência 352
Organização da Obra - Ditos e Escritos 367
1961

“ Alexandre Koyr é : a Revolução Astronómica ,


Copé rnico , Kepler , Borelli”

Koyr é: a revolução astronómica , Copé rnico , Kepler , Borelli . La nouvel -



“ Alexandre
- ano n - 108 l ü de dezembro de 1961 , ps . 1.123-1.124 . (Sobre
le revue fran ç aise , 9 , ,
A . Koyr é , op. cit . , Paris , Hermann , col . “ Histoire de la pensée ” , 1961 .
)

Há histó rias tristes da verdade: essas que enlutam a narrativa de


tantos erros feéricos e mortos; no máximo elas nos oferecem , às ve -
zes , a graça de um reconforto: as almas reitoras pelas quais Kepler
guiava seus planetas definitivamente elí pticos nos consolam de sa-
ber que elas n ão mais girar ão em c írculo ; o orgulho de Copé rnico
que nos tornou estrela recompensa certamente o tédio de não estar
mais no centro do mundo .
O livro do Sr . Koyré é tudo o que há de menos triste ; ele narra ,
com uma voz grave de erudito , as bodas maravilhosas e ininterrup-
tas do verdadeiro e do falso . Mas somos ainda n ós que , do fundo de
nossa linguagem gasta, falamos de verdade ou de erro e admira -
mos sua alian ça . A autoridade desse trabalho paciente e profundo
vem de mais longe: o rigor na apresentação de textos tão pouco co-
nhecidos e sua justa exegese se sustentam em um duplo propósito
de historiador e de filósofo: só tomar as id éias no momento de sua
turbulê ncia , em que o verdadeiro e o falso n ão estão absolutamente
ainda separados; o que é relatado é um indissociável trabalho sub-
jacente às partilhas que a histó ria faz a seguir . As elipses de Kepler
faziam apenas uma coisa com a surda m úsica dos n ú meros disper -
sos no universo .
O Sr . Koyr é mostra como essa astronomia , que para nós se tor -
na científica de Copé rnico a Kepler , era sustentada por um grande
projeto pitagó rico. Para Freud , Copé rnico , Darwin e a psicanálise
tinham sido as tr ês grandes frustrações impostas pelo saber euro-
peu ao narcisismo do homem . Para Copé rnico pelo menos , erro .
Quando o centro do mundo deixa o nosso solo , ele n ão abandona

i
1961 - “ Alexandre Koyré: a Revolução Astronómica , Copérnico , Kepler , Borelli" 3
2 Michel Foucault - Ditos e Escritos

o animal humano a um destino planetá rio anónimo: ele o faz des- do cé u os grandes círculos imagin á rios onde se inscrevia a per -
crever um círculo rigoroso , imagem sensível da perfeição , em tor - feiçã o dos planetas.
no de um centro que é o luminar do mundo , o deus visível de Tris- Esse novo mundo luminoso, cuja geometria é de pleno direito f í-
sica e que , subitamente , se encurva no círculo min úsculo mas deci-
megisto , a grande pupila cósmica . Nessa claridade , a Terra é libe-
rada do peso sublunar . É preciso lembrar o hino de Marsilio Fi- sivo de um pensamento que sempre retoma sua fala , compreen -
cino ao Sol , e toda essa teoria da luz que foi a dos pintores , dos fí- de-se que tenha sido a paisagem natural de uma filosofia, de uma
sicos , dos arquitetos. A filosofia do homem era a de Aristóteles; o linguagem e de uma cultura mais ocupadas com a verdade das coi-
pr óprio humanismo está associado a um grande retorno da cultu - sas do que com o seu ser .
ra do Ocidente ao pensamento solar . O classicismo se estabelece-
r á nesse mundo iluminado, uma vez dominada a jovem violê ncia
do Sol ; o grande trono de fogo com o qual se encantava a cosmolo-
gia de Copé rnico ir á se tornar o espaço homogé neo e puro das for -
mas inteligíveis .
O pr ó prio Kepler é assaltado por lembran ças que remontam
para al é m de Arist ó teles. Ele precisou de 10 anos de cálculos , ou
seja , de escr ú pulos , para arrancar os planetas da perfeição dos
c í rculos , e 10 anos mais para reconstituir em torno dessas elip-
ses um mundo inteiramente harmonioso ; ele precisou desses 20
anos para fazer entrar o problema f ísico do movimento dos pla-
netas e de sua causa na velha abóbada plana , onde unicamente a
geometria das esferas movia as coisas celestes . Passo a passo , o
Sr . Koyr é restaurou essa pesquisa , duas vezes fiel à quele que se-
guiu : Kepler n ão anunciava uma nova verdade sem indicar ele
pr ó prio por qual vereda de erro acabara de passar : assim era
sua verdade. Montaigne perdia as pistas e sabia que as perdia .
Descartes , de um golpe , reagrupa todos os erros possíveis , fa-
zendo deles um grande maço essencial , e o trata impacientemen -
te como o fundo diab ólico de todos os perigos eventuais ; depois ,
considera -se quite . Entre os dois , Kepler - que não diz a verda -
de sem relatar o erro . A verdade se profere no encontro de um
enunciado e de um relato . Coisa capital na hist ó ria de nossa lin -
guagem : de um lado , o relato vai abandonar sua vocação sim -
plesmente hist ó rica ou fantástica , para transmitir alguma coisa
que é da ordem do definitivo e do essencial; quanto à enuncia-
çã o do verdadeiro , ela poder á se encarregar de todas as modu -
la çõ es individuais , das aventuras e dos vã os devaneios. Nesse
in í cio do sé culo XVII , o lugar do nascimento da verdade se des -
locou : ele n ã o está mais do lado das figuras do mundo , mas nas
formas interiores e cruzadas da linguagem . A verdade se escre -
ve na curva de um pensamento que se engana e o diz . É esse pe -
queno cí rculo à altura do homem que Kepler traçou , apagando
1964 - Informe Histórico 5

1964 figurar ainda no catálogo da universidade, para o semestre do verão


de 1797, mas ele havia declarado em público, mesmo que não de ma-
neira oficial , que, “ em função de sua idade avançada , não queria mais
fazer conferê ncias na universidade” 4 . Deíinitivamente interrompido o
Informe Histórico curso, Kant decidiu mandar imprimir o texto.
De seus diversos estágios , antes dessa ú ltima redação , não co-
nhecemos nada ou quase nada . Em duas ocasiões , Starke publi-
cou , após a morte de Kant , notas que teriam sido tomadas pelos
“ Informehistórico” , in Kant ( I . ) , Anthropologie du point de vue pragmatique ( trad .
M . Foucault ) , Paris , Librairie philosophique , J . Vrin , 1964 , ps. 7- 10 . ouvintes5. Nenhuma dessas obras merece , no entanto , confian ça
Em 1961 , M . Foucault apresenta como tese complementar para a obten ção do
absoluta ; é dif ícil dar crédito a notas publicadas 35 anos após a
doutorado em Letras uma tradução comentada , de 347 páginas , da Anthropologie morte de Kant. Apesar disso , a segunda coletânea inclui um ele-
in pragmatischer Hinsichtabgefapt , de Immanuel Kant , precedida de uma intro- mento importante que não figura no texto publicado por Kant : um
du ção de 128 páginas . O conjunto está preservado sob forma datilografada pela bi- capítulo “ Von der intellectuellen Lust und Unlust” . Segundo Star -
blioteca da Sorbonne . Foucault só publicou a tradu çã o precedida desse “ informe
histó rico" .
ke , o manuscrito desse capítulo teria sido perdido quando Kant o
enviou de Kõnigsberg a lena para mandar imprimi-lo . De fato , nada
no manuscrito da Anthropologie , tal como ele existe na biblioteca
Uma nota da Anthropologie 1 indica que o texto , antes de ser de Rostock , permite supor que um fragmento tenha sido perdido .
redigido , tinha sido objeto de um curso durante “ uns 30 anos” ; É mais verossímil que Kant não tenha querido incluir , na obra im-
as aulas do semestre de inverno lhe sendo consagradas , as do ve- pressa , um texto que , outrora , tinha feito parte de seu ensino oral .
r ão anterior devendo ser reservadas à geografia f ísica . Na verda- Quanto à primeira compilação de Starke, se é necessário deter -se
de , esse n ú mero não é exato . Kant tinha começado seu ensino de nela é porque ela comporta uma precisão de data ; as notas que a
geografia em 1756 ; os cursos de antropologia , em compensação , constituem teriam sido tomadas durante o semestre do inverno de
s ó foram inaugurados provavelmente durante o inverno de 1790- 1791: sobre um ponto relativo à concepção e à pr ó pria estru -
1772- 17732. tura da Anthropologie , elas indicam que uma mudança deve ter se
A edição do texto que conhecemos coincide com o fim dos cursos produzido entre essa data e a redação definitiva do manuscrito .
e com a aposentadoria definitiva de Kant como professor . O Neues Ainda por volta de 1791 , o curso se dividia em uma Elementarleh-
Teutsche Merkur de 1797 faz menção da notícia , que lhe é transmi- re e uma Methodenlehre . Considerando que essa não era a organi-
tida de Kõnigsberg: “ Kant publica esse ano sua Anthropologie . Ele a zação primitiva , é provável que ela tenha sido , em um dado mo-
havia guardado em seu poder até agora porque , de suas confer ê n- mento, tomada emprestada das Critiques . Na Anthropologie , tal
cias , os estudantes quase não freqüentavam nada além desta . Atual- como foi publicada , as duas partes trazem o título de Didactique e
mente , ele não dá mais cursos , e não tem mais escr ú pulos de apre-
de Caractéristique , sem que o conte ú do tenha sido , no entanto ,
sentar este texto ao público . ” 3 Sem d úvida , Kant deixa seu programa
modificado. Talvez esses tenham sido os títulos originais que Kant
teria abandonado por uns tempos visando a estabelecer uma sime-
tria com as três críticas.
^
1. ( N . A. ) Kant (1. ) , Anthropologie in pragmatischer Hinsichtabge/a í, Kõnigsberg,
Friedrich Nicolovius , 1798. ( Anthropologie du point de vue pragmatique , trad . M .
Foucault , Paris , Vrin , 1964 , Pref ácio , p. 13 ( N .E . ) . )
2 . ( N .A . ) Ver Arnoldt ( E . ) , Kritische Excurse im Gebiete der Kantsjorschung ,
Kõ nigsberg, F. Beyer , 1894 , p . 269 sq. 4 , ( N.A. ) Citado por K ülpe , ibid . Ver Emil Arnoldt , Beitràge zu dem Material der
3. ( N .A . ) Neues Teutsche Merkur , 1797 , vol . II , p . 82. Citado por Oswald K ülpe in Geschlchte von Kants Leben , Berlim , Bruno Cassirer , 1909.
Kants Werke . Ed . Kõniglische Preussischen Akademie der Wissenschaft , Berlim , 5. ( N.A. ) Starke ( F. C. ) , Kants Anweisung zur Menschen und Weltkennetniss. Leipzig,
Georg Reimer , vol. VII : Anthropologie , 1917 , p . 354. 1831; Kants Menschenkunde , Oder philosophische Anthropologie , Leipzig, 1831.
6 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1964 - Informe Histórico 7

No volume XV da edição da Academia, encontramos as Colle - 2 ) Em 20 de setembro de 1797 , o texto está bem adiantado para
gentw ürfe divididas em duas seções: uma reunindo os anos de que o círculo de amigos e correspondentes aguarde uma publica -
1770-1780 , a outra , os anos de 1780-17906. Há muitos pontos co- ção pr óxima. “ É com grande alegria , escreve Biester , que os leitores
muns entre esses esboços e o texto publicado; no entanto , podem- vão acolher sua Anthropologie" ; e , pensando provavelmente que a
se notar deslizamentos maiores na própria significação da Anthro- redação já está acabada , acrescenta: "Seria excelente se você entre-
pologie e na definição do ponto de vista pragmático ( importância gasse o texto ao editor ainda este ano, porque há muito tempo se
bem maior dada pela Collegentw ãife aos temas da história , cida- deseja lê-lo . ” 9
dania e cosmopolitismo ) . 3 ) Em 5 de novembro do mesmo ano , Tieftrunk pede notícias da
Enfim , a edição da Academia reagrupou as Reflexionen7 repor - obra , surpreendendo-se um pouco de que ela não tenha sido ainda
tando-se à Anthropologie , tentando lhes dar uma data. Mas , nesse publicada: “ O p ú blico espera de você uma Anthropologie : ela ser á
nível , apenas as modificações de detalhe podem se tornar decifr á- publicada em breve?» 10
veis ( a classificação desses fragmentos , segundo o plano de 1798 , é 4 ) De fato , é dif ícil saber se a redação está ou não concluí da nes-
o feito dos editores ) . sa data. Quanto mais Kant está ocupado com obstinação e min ú cia
sn
com a publicação de Conflit des facult é , mais ele é avaro , em sua
correspondê ncia , de informações sobre a Anthropologie . Quando ,
em uma carta de 13 de outubro de 1797 , ele evoca a possibilidade
Um certo n ú mero de indícios permite situar com bastante exati- da proximidade de sua morte , recomenda a Tieftrunk duas "me-
d ão o momento em que foi redigido o texto da Anthropologie , publi- mórias” , das quais o professor Gensichen se encarregar á. Uma
cado por Nicolovius , em outubro de 1798. está inteiramente redigida - já há dois anos -, a outra está quase
1 ) Em uma carta a Christoph Wilhem Hufeland , que data da se- conclu ída 12 . É infinitamente pouco provável que o manuscrito da
gunda quinzena do mês de mar ço de 1797, Kant agradece a seu Anthropologie se refira a isso: o termo Abhandlung n ã o convé m a
correspondente pelo envio que ele lhe fez . Trata-se da Makrobiotik um texto tão longo ; trata -se de prefer ê ncia de duas seções do Con-
oder die Kunst das menschliche Leben zu verlangern ( Iena , flit des facult é s . Da í é preciso admitir que a verdadeira redação da
1796 ) ; ele promete 1er o livro , mas medindo seu prazer , "ao mesmo Anthropologie ainda não foi feita ou , pelo contr á rio , está completa -
tempo para conservar a vivacidade de seu apetite e para apreender mente terminada e já encaminhada ao editor ?
claramente as id éias audaciosas e excitantes para a alma que con- 5 ) Schõnd õrffer confirma que o manuscrito da Anthropologie
cernem à for ça da disposição moral , animadora do homem físico , n ão designa nominalmente o Dr . Less a propósito de Albrecht Hal -
com as quais conta se servir bastante para a Anthropologie ” 8. ler; trata-se apenas de um “ teólogo conhecido , antigo colega ( de
Haller ) na universidade ” . Ora , o texto impresso traz o nome do Dr .
Less13. Tendo este morrido em 1797 , pode-se supor que Kant nã o
6 . Entw ü rfe zu dem Colleg ü ber Anthropologie aus den 70 er und 80 er Jahren , tenha querido, durante a sua vida , citá-lo expressamente ; a notícia
Kants Werke , op . cit. , vol . XV , t . I : Collegentw ã rfe aus den 70 er Jahren , ps .
657-798 , e Collegentwiirfe aus den 80 er Jahren , ps . 799 899.- 9. ( N .A . ) Lettre de Biester , 20 de setembro de 1797 , in Kants Schriften , t . III ,
-
7 . Rejlexionen zur Anthropologie , ibid . , vol. XV , t . I , ps . 55 654 , e t . II , ps .
Berlim , p. 217.
-
494 899.
10. ( N.A. ) Lettre de Biester , 5 de novembro de 1797 , ibid .
8. ( N .A. ) Lettre à Christoph Wilhem Hufeland , 15 de março de 1797 ( n- 347 ) , in
11. ( N .A . ) Der Streit der Facult àten , Konigsberg, 1798. { Le corjlit des facult é s ,
Kanis Werke , vol. X: Briefe von und an Kant , t . II: 1790-1803, t. II , Berlim , Bruno
trad . J . Gibelin , 4Ü ed . , Paris , Vrin , 1988. Alusão às cartas de Kant: Lettre à Frie -
Cassirer , 1923, p. 299 . ( A obra do médico e professor Hufeland foi , de início, publi-
drich Nicolovius , 9 de maio de 1798 , n- 427 , Kants Werke , Ed . Bruno Cassirer , vol .
cada em série em Iena em 1796 , antes de ser publicada com o título Die Kunst das
X , t . II , ps . 345-346 , e Lettre à Cari Friedrich St à udliri , 1- de julho de 1798 , n ü 429 ,
menschliche Leben zu verlàngern , Viena , Franz Buchh ándler , 1797 , 2 vol . O título
ibid . , p . 348 ( N.E . ) . )
Makrobiotik oder die... só aparece na edição de Wittlich , Berlim , 1805 . L' art de pro-
12 . ( N . A . ) Lettre à Tieftrunk , 13 de outubro de 1797 ( nü 414 ) , ibid . , p . 329.
longer la vie de Vhomme ou le macrobiotique , trad . A. J . L. Jourdan , Paris , Bailliè-
13. ( N .A . ) Anthropologie , Ed . Vrin , p. 22.
re , 1838 ( N . E . ) . )
1 8 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1964 - Informe Histórico 9

do falecimento seria divulgada , uma vez o manuscrito acabado e , Hearne já fora citado em La religion à Vinté rieur des limites de la
sem d úvida , remetido à gráfica . simple raison 19 . Poderia então tratar -se de uma lembrança e de um
6 ) Mais importante e convincente o fato de que certas passagens acréscimo .
que figuram no manuscrito passaram , quase da mesma forma , no Todos esses esclarecimentos indicam uma data bastante preci-
texto Von der Macht des Gem üts durch den blossen Vorsatz sei - sa; o manuscrito da Anthropologie deve ter sido concluído , no es-
ner krankhqften Gef ühle meister za sein 14. Esse texto constitui a sencial, na primeira metade do ano de 1797 - talvez nos tr ês ou
terceira parte do Conflit des faculté s . Em uma carta de 17 de abril quatro primeiros meses. A sú bita inspiração que fez nascer Von
de 179715 , Kant se refere a este tema da obra como uma id éia que der Macht não deve , sem dúvida, ter interrompido uma redação
lhe veio muito recentemente . Ele acaba de completar 74 anos e se quase acabada ; mas provavelmente adiou sua impressão e conclu -
encontra felizmente preservado de qualquer doença; essa experiên- são definitiva. Uma vez concluído Von der Macht e talvez já enviado
cia o capacita para falar de uma psychologisches Arzneimittel .
16 a Hufeland , foram feitas as ú ltimas modificações na Anthropologie
De fato , em sua carta precedente para Hufeland ( fim do mês de ( supressão de passagens que tinham duplo emprego , acr éscimo de
março ) , isso ainda não está em pauta. A leitura da Makrobiotik o refer ências ) , sendo então enviadas diretamente à gr áfica ou acres-
determinou , como o deixa entender a “ Resposta a Hufeland ” que centadas às provas20 .
abre Von der Macht des Gemü ts. Ora , esse texto foi publicado no
Journal der praktischen Arzneikunde und Wundarzneikunst ( 4 te
St ück , VBand , 1798 ) , com textos retirados do texto daAnthropo ío-
gie 17 . Pode-se então supor que este estava concluído , ou quase ,
quando o artigo destinado à revista de Hufeland foi redigido.
7 ) Uma nota do texto impresso remete a Von der Macht des Ge -
müts 18 . Ora , essa nota não figura no manuscrito de Rostock , o que
deixa supor que , na é poca em que ele o redigiu , Kant ainda não ti-
nha acabado e talvez nem mesmo começado a composição do arti-
go que destinava a Hufeland .
8 ) Observou -se que uma nota marginal do manuscrito remete à
obra de Hearne , cujas duas traduções alemães tinham sido publi-
cadas em 1797. Kant as teria lido na segunda metade deste ano ,
uma vez o manuscrito redigido. Mas é preciso ainda observar que

14 . Le conflit des facult és , op . cit . , 3Ú seção : Conflit de la facult é de philosophie


avec la facult é de médecine : de la puissance qu’ a l’ âme d’ê tre par sa résolution
seule maî tresse de ses sentiments morbides . N - 19 .
15. Lettre r é ponse à M . le Conseiller aultque et professeur Hufeland , in Le conflit 19. ( N.A. ) Anthropologie , in Kants Werke , Berlim , vol. VII , 1917, p. 354 , nota 1 . Die
des facult és , op . cit . , ps. 113- 117. Religion innerhalb der Grenzen der blossen Vernunft , Konigsberg, 1793. { La reli-
16. ( N .A . ) Lettre du 19 avril 1797 ( n2 398 ) , Kanfs Werke , Ed . Bruno Cassirer , vol . gion dans les limites de la simple raison , trad . J . Gibelin , 1- parte , § 3, Paris, Vrin ,
X, t . II , p . 300 . 1943, p. 53. Samuel Hearne , oficial da Companhia da Baía de Hudson , é o autor da
17 . ( N .A . ) Trata-se , essencialmente , de uma passagem que figurava no manuscrito Obra Ajourneyfrom Prince of Wales’ s Fort in Hudson’ s Bay to the Northern Ocean ,
no § 26: o sono é aí definido como uma detenção muscular , o despertar , como uma Londres, T. Cadell , 1795. Foi publicada em alemão em 1797: S . Hearne’s Tage -
tensão . A prova disso é que um homem tirado bruscamente de seu sono e logo buch elner Re í se von Fort Pr í nz Wallis in der Hudsonbay , nach dem nórdlichen
depois testado "é pouco mais do que meia- pataca ” se comparado ao mesmo homem Weltmeer , Halle , Matthias Sprengel , 1797 ( N.E. ) . )
testado após o repouso depois do sono 20 , ( N.A. ) As relações do pensamento cr ítico e da reflexão antropológica serão estu -
18 . ( N .A . ) Anthropologie , Ed . Vrin , p . 144. dadas em uma obra posterior.
!"
1966 - A Prosa do Mundo 11

dos sonhos e das visões , dos sentidos enganadores ; é o tempo em


1966 que as metáforas , as comparações e as alegorias definiam o espaço
poético da linguagem . Mas a ratio entra em um espaço no qual ape-
nas estará em questão o Mesmo - definido pela identidade dos ele-
mentos ou das relações - e o Outro , com seus códigos e seus crité-
A Prosa do Mundo rios de discriminação : nesse espaço se desdobrarão a medida do
quantitativo , a formalização do que não pode ser numericamente
determinado , os métodos gerais do pensamento analítico, as filoso-
fias da evid ência e do a priori , assim como aquelas da identidade e
A prosa do mundo” , Diog è ne , n- 53, janeiro-março de 1966, ps . 20-41.
"

da alienação , enfim , a experiê ncia da repetição ou do retorno .


Reedição , com algumas diferenças , do Capítulo II de As palavras e as coisas , solici-
tada por Roger Caillois. Ver n2 292 da edição francesa desta obra.
Como se todo o pensamento ocidental moderno - aquele no qual
nos reconhecemos desde o in ício da é poca clássica - estivesse alo-
jado no vazio que foi aberto no interior da semelhança , quando lhe
foi requerido , senão fazê-la desaparecer , pelo menos dela dissociar
Eis que , h á mais de dois séculos na nossa cultura , a semelhan - o desenho tornado bastante precá rio em um quadro discursivo de
ça deixou de formar , no interior do saber , uma figura estável , sufi- identidades e diferenças .
ciente e autó noma. A é poca cl ássica a mandou embora : Bacon , 1 de í Atualmente , o semelhante é tão alheio ao nosso saber , tão mistu -
in ício , depois Descartes instauraram , para um tempo do qual n ã o rado aos jogos solitários da percepção , da imaginação e da lingua-
saí mos , uma ordem de conhecimentos em que a similitude pode gem , que facilmente esquecemos que ele tenha podido ser , e por mui-
ter apenas um lugar precá rio e provisó rio , no limite da ilusão: “ E to tempo, uma forma de saber positivo. Figura autónoma, a similitu-
um hábito freq ü ente , quando se descobrem algumas semelhanç as de não tinha que confessar de que peças ou pedaços era feita secre-
entre duas coisas , atribuir tanto a uma como à outra , mesmo em tamente; ela podia dar conta , pelos poderes que lhe eram pr óprios ,
pontos em que na realidade elas são diferentes , o que se reconhe- da maneira pela qual o mundo estava ligado a ele mesmo: conhecer
ceu verdadeiro somente para uma das duas . ” 2 Desde o século dava acesso à semelhança, e a semelhança permitia conhecer . É ela que ,
XVII , o similar só oferece ao saber uma face perturbadora , pronta em boa parte , conduzia a exegese e a interpretação dos textos; é ela
a se desfazer , e que cabe ao conhecimento analisar imediatamente que organizava o jogo dos símbolos, autorizava o conhecimento do
para que apareçam , lado a lado e cuidadosamente separados , o visível através do invisível , guiava a arte de representá-lo. O mundo
id ê ntico e o diferente . SC enrolava sobre si mesmo: a terra repetindo o céu , os rostos se re-
Licenciada pelo pensamento racional , a semelhança apenas con- fletindo nas estrelas e as ervas envolvendo em seus caules os segre-
servar á poderes de encantamento . Estes se encontrar ão então , nes- dos que serviam ao homem . A pintura imitava o espaço . E a repre-
sa é poca que com ou sem razão se chama barroca , multiplicados sentação - fosse ela festa ou saber - se dava como repetição: “ teatro
pelo livre jogo , pelo espaço vazio que subitamente lhes são concedi- da vida” ou “ espelho do mundo” , eis ali o título de qualquer lingua-
dos: é o tempo privilegiado da ilusão de ótica , da ilusão cómica , do gem , sua maneira de se anunciar e de formular seu direito de falar .
teatro duplicado em seu pr óprio interior ; é o tempo do qü iproquo ,

As quatro similitudes
1 . ( N .A. ) Bacon ( F. ) , Novum organum scientiarum , livro I , §§ 45 e 55, Londres , J .
Billium , 1620 .
A trama semântica da semelhança é bastante rica : amicitia , ae ~
2. ( N .A. ) Descartes ( R . ) Regulae ad direct í onem ingenii , I , 1628. [ Rè gles pour la
f

direction de l’ esprit , Rè gle I , trad . G. Le Roy , in Oeuvres et lettres , Paris , Galli- qualitas ( contractas, consensus, matrimonium, societas , pax et
mard , col. “ Bibliothèque de la Pléiade ” , 1952 , p. 37 ( N .E . J . ) ê tmtlta ) , consonantia , concertus, continuum , paritas , proportio ,

à£i .
12 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1966 - A Prosa do Mundo 13

similitudo , conjunctio , copula3 . E ainda há muitas outras noções A convenientia é uma semelhan ça ligada ao espaço sob a forma
que , na superfície do pensamento, se entrecruzam , se sobrepõem , do “ pr óximo ao pr óximo” . Ela é da ordem da conjunção e do ajusta-
se refor çam ou se limitam . Basta por hora indicar as principais fi- mento . Porque ela pertence menos às pr ó prias coisas do que ao
guras que prescrevem suas articulações com o saber da semelhan- mundo no qual elas se encontram . O mundo é a “ conveniê ncia ” uni-
ça. Há quatro que são, certamente , essenciais. r
• versal das coisas ; aos peixes na água correspondem na terra os ani-
Inicialmente , a convenientia . Na verdade , a proximidade dos lu - mais ou os objetos produzidos pela natureza ou os homens ( não há
gares se encontra , por esta palavra , mais fortemente designada do peixes que se chamam Ep í scopus , outros Catena e outros Pria-
que a similitude. São “ convenientes” as coisas que, aproximan- pus?) ; na água e na superf ície da terra há tantos seres quanto no
do-se uma da outra , acabam por se tocar ; elas se tocam no limite , céu , e aos quais eles correspondem ; enfim , tudo o que é criado se
suas franjas se misturam , a extremidade de uma designa o início encadeia a tudo o que se poderia encontrar eminentemente contido
da outra. Por ali o movimento se comunica , as influências e as pai- em Deus , “ Semeador da Existê ncia , do Poder , do Conhecimento e
xões , as propriedades também. De modo que , nessa articulação do Amor ” 6. Assim , pelo encadeamento da similitude e do espaço ,
das coisas , uma semelhança aparece. Dupla , desde que se tente pela for ça dessa conveniência que aproxima os semelhantes e assi-
discriminá-la: semelhança do lugar , do sítio em que a natureza co- mila os pr óximos , o mundo se encadeia com ele mesmo . Em cada
locou as duas coisas , portanto , semelhança das propriedades ; ponto de contato começa e termina um elo que se assemelha ao
pois, nesse continente natural que é o mundo, a proximidade não é ! precedente e ao subseqüente; e, de círculo em círculo, as similitu-
uma relação exterior entre os seres , mas o signo de um parentesco des prosseguem , retendo os extremos em sua distâ ncia ( Deus e a
ao menos obscuro. E , em seguida , desse contato nascem por troca matéria ) , aproximando-os de maneira que a vontade do To-
L
novas semelhanças , um regime comum se impõe ; à similitude
.

do-Poderoso penetre até nos confins mais adormecidos . É essa ca -


como razão surda da proximidade se sobrepõe uma semelhança deia imensa , tensa e vibrante , essa corda da conveniê ncia que Por -
que é o efeito visível da proximidade. A alma e o corpo , por exem- ta evoca em um texto de sua Magie naturelle : “ Do ponto de vista de
plo , sã o duas vezes convenientes: foi preciso que o pecado tivesse sua vegetação , a planta convé m à fera bruta , e por sentimento o ani-
tornado a alma densa e pesada , e terrestre , para que Deus a locali-
iv

mal brutal ao homem , que se conforma ao resto dos astros por sua
zasse no mais oco da matéria. Mas, por essa proximidade, a alma inteligê ncia; essa ligação procede tão propriamente que ela parece
-
recebe os movimentos do corpo e se assimila a ele , enquanto “ o uma corda estendida da causa primeira às coisas baixas e í nfimas ,
corpo se altera e se corrompe pelas paixões da alma” 4. Na vasta sin- por uma ligação recíproca e contí nua: de maneira que a virtude su -
taxe do mundo , os seres diferentes se ajustam uns aos outros ; a perior , espargindo seus raios , atingir á esse ponto que , se tocamos
planta se relaciona com o animal , a terra , com o mar , o homem , a sua extremidade , ela tremer á e far á mover o resto . ” 7
com tudo aquilo que o cerca. A semelhança prescreve vizinhanças A segunda forma de similitude é a aemulatio: uma espé cie de
que , por sua vez, asseguram semelhanças . O lugar e a similitude se conveniê ncia , mas que ser á liberada da lei do lugar e atuar á , im ó-
embaralham: vêem-se crescer musgos nos cascos dos mariscos , vel , na distância . Um pouco como se a conivê ncia espacial tivesse
plantas nos chifres dos veados, espécies de ervas no rosto dos ho- sido rompida e os anéis da cadeia, destacados, reproduzissem
mens; e o estranho zoófito justapõe , misturando-as , as proprieda- seus círculos , longe uns dos outros , de acordo com uma semelhan-
des que també m o tornam semelhante tanto à planta quanto ao ani- ça sem contato . Há na emulação alguma coisa do reflexo e do espe-
mal5. Igualmente formas de conveniê ncia.

6. ( N.A . ) Campanella ( T. ) , Realisphilosophiae epilogisticaepartes quatuor , hoc est


3. ( N.A . ) Grégoire ( P. ) , Syntaxeon artis mirabilis , Colónia , L . Zetzneri, 1610 , p . 28. de rerum natura , hominum moribus , politica et oeconomia , cum adnota-
4. ( N.A. ) Porta ( G. Della ) , De humana physiognomonia , Hanover , G. Antonium , tiontbus physiologicis , Frankfurt , G . Tampachii , 1623, p . 98.
1593 ( La physionomie humaine , trad . Rault , Rouen , J . Berthelin , 1655, p. 1 ) . 7. ( N .A. ) Porta ( G. Della ) , Magiae naturalis , sive de Miraculis rerum naturaiium ,
5. ( N.A. ) Aldrovandi ( U. ) , Monstrorum historia , cum paralipomenis historiae Nápoles, Canar , 1558 (La magie naturelle , qui est tes secrets et miracles de
omnium animalium . Bolonha , N . Tebaldini , 1647, p. 663. nature , Rouen , J. Lucas , 1650, p. 22 ) .

i
ÏÏ 14 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1966 - A Prosa do Mundo 15
r

lho: por ela, as coisas dispersas no mundo se dão resposta. De lon-


ervas celestes estão voltadas para o lado da terra e olhando direta-
mente as ervas que elas procriaram , incutindo-lhes alguma virtude
ge , o rosto é o êmulo do céu ; e tal como o intelecto do homem refle-
particular . ” 10
te , imperfeitamente , a sabedoria de Deus , da mesma forma os dois
Mas ocorre também que a luta permaneça em aberto e que nos
olhos , com sua claridade limitada, refletem a grande iluminação
dois espelhos opostos se reflita apenas a imagem de “ dois soldados
que o sol e a lua propagam no céu . A boca é Vé nus , já que por ela
irritados” . A similitude torna-se , então , o combate de uma forma
passam os beijos e as palavras de amor ; o nariz oferece a min ús-
contra a outra - ou , melhor , da mesma forma separada de si mes-
cula imagem do cetro de J ú piter e a orelha , a do caduceu de Mer -
ma pelo peso da maté ria ou pela distância dos lugares. O homem
c ú rio8. Por essa relação de emulação , as coisas podem se imitar de de Paracelso é , como o firmamento , “ constelação de astros” : mas
uma ponta à outra do universo sem encadeamento nem proximida- não está ligado a ele como "o ladr ão ao cárcere , o assassino à roda ,
de: por sua duplicação em espelho, o mundo abole a distância que o peixe ao pescador , a caça àquele que a caça” . Pertence ao firma-
lhe é pr ópria ; através dela , ele triunfa sobre o lugar que é dado a mento do homem ser “ livre e poderoso ” , “ não obedecer a nenhuma
cada coisa. Desses reflexos que percorrem o espaço , quais são os ordem ” , “ não ser regido por nenhuma das outras criaturas” . Seu
primeiros? Onde está a realidade , onde está a imagem projetada? céu interior pode ser autónomo e repousar apenas nele pr óprio :
Freq úentemente , não é possível dizê-lo , pois a emulação é uma es- mas desde que , por sua sabedoria, que é també m saber , ele se tor -
pécie de geminação natural das coisas ; ela nasce de uma duplica- ne semelhante à ordem do mundo , a retome em si e , assim , faça os-
ção do ser , cujos dois lados imediatamente se defrontam . Paracel- cilar em seu firmamento interno aquele onde cintilam as visíveis
so compara esta duplicação fundamental do mundo à luta de “ dois estrelas . Então , essa sabedoria do espelho envolver á , retroativa-
soldados igualmente ferozes e irritados” , ou , ainda , à imagem de mente , o mundo onde ela estava localizada ; seu grande anel girar á
dois gê meos que “ se parecem perfeitamente , sem que seja possível até os confins do cé u , e mais alé m ; o homem descobrir á que ele
a ningué m dizer qual trouxe ao outro a semelhança” 9. conté m “ as estrelas no interior dele mesmo ( . .. ) , e que assim ele
No entanto , a emulação não deixa inertes , uma diante da outra , comporta o firmamento com todas as suas influ ê ncias” 11 .
as duas figuras refletidas que ela opõe . Ocorre que uma seja a mais A emulação se d á , inicialmente , sob a forma de um simples refle-
fraca e receba forte influ ê ncia daquela que vem se refletir em seu xo , furtivo , longínquo ; ela percorre em silê ncio os espaços do mun-
espelho passivo. As estrelas não predominam sobre as plantas da do . Mas a distâ ncia que ela transpõe não é anulada por sua sutil
terra , das quais elas são o modelo imutável , a forma inalter ável , e metáfora ; ela permanece aberta para a visibilidade . E , nesse duelo ,
sobre as quais lhes é dado derramar secretamente toda a dinastia as duas figuras confrontadas se apoderam uma da outra . O seme-
de suas influê ncias? A terra sombria é o espelho do cé u semeado , lhante envolve o semelhante , que , por sua vez , o cerne , e talvez seja
mas nesse torneio os dois rivais não são nem de valor nem de digni- novamente envolvido por um desdobramento que tem o poder de
dade iguais. As luminosidades da vegetação reproduzem sem vio- prosseguir infinitamente . Os anéis da emulação não formam uma
lê ncia a forma pura do cé u : “ As estrelas , diz Crollius , são a matriz cadeia como os elementos da conveniê ncia: mas , antes, cí rculos
de todas as ervas e cada estrela do cé u não passa da espiritual pre- concê ntricos , refletidos e rivais .
figuração de uma erva , tal como ela a representa , e exatamente Terceira forma de similitude , a analogia . Antigo conceito já fa -
como cada erva ou planta é uma estrela terrestre olhando o cé u , miliar à ciência grega e ao pensamento medieval , mas cujo uso tor -
també m cada estrela é uma planta celeste em forma espiritual , que nou-se provavelmente diferente . Nessa analogia se sobrepõem con-
difere das terrestres unicamente pela maté ria ( .. . ) , as plantas e as venientia e aemulatio. Como esta , ela assegura a maravilhosa con -

10. ( N.A. ) Crollius ( O. ) , Tractatus novus de signatures rerum internis , Frankfurt ,


8. ( N .A . ) Aldrovandi ( U . ) , op. cit ., p. 3. C. Marmium , 1609 ( Trait é des signatures , in La royale chymie de Crollius , trad .
9 . ( N .A. ) Paracelso (P. T. von Hohenheim , dito) , Das Buch Paramirisches , Mu- Marcel de Boulenc , Lyon , P. Drouet , 1624 , p . 28 ) .
lhouse , Peter Schmid , 1562 ( Liber paramirum , trad . Grillot de Givry, in Oeuvres 11 . ( N.A. ) Paracelso , op. cit .
compl è tes , t. I , Paris , Chacornac , col. “ Les classiques de l’occulte ” , 1913, p. 3) .
A 16 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1966 - A Prosa do Mundo 17

frontação das semelhanças através do espaço ; mas ela fala , como terra que ele habita: sua carne é uma gleba , seus ossos, rochedos ,
aquela , de ajustamento , de ligações e jun ções . Seu poder é imenso , suas veias , grandes rios ; sua bexiga é o mar , e seus sete membros
pois as similitudes que ela acarreta não são aquelas , visíveis , maci- principais , os sete metais que se escondem no fundo das minas13.
ças, das próprias coisas; basta que sejam as semelhanças mais su- O corpo do homem é sempre a metade possível de um atlas univer-
tis das relações . Assim aliviada, ela pode propagar , a partir de um -
sal. Sabe se como Pierre Belon traçou , e detalhadamente , a primei -
mesmo ponto , um nú mero infinito de parentescos. Por exemplo , a ra tábua comparativa do esqueleto humano com o dos pássaros;
relação dos astros com o cé u onde eles cintilam também pode ser vemos aí que “ a ponta da asa chamada apêndice é proporcional , na
encontrada: da erva com a terra , dos seres vivos com a terra que asa , ao lugar do polegar na mão; a extremidade da asa é como os
eles habitam , dos minerais e diamantes com os rochedos onde es- ¥ dedos em nós ( . .. ) ; o osso dado para as pernas nos pássaros corres-
tã o enterrados , dos ó rgãos dos sentidos com o rosto que eles ani- ¥ pondendo ao nosso calcanhar , tal como temos quatro artelhos nos
mam , das manchas da pele com o corpo que elas marcam secreta- ¥ pés , os pássaros têm quatro dedos , dos quais o de tr ás é proporcio-
It
mente . Uma analogia pode assim retornar sobre si mesma, sem , no > - nal ao grande artelho em nós” 14. Tanta precisão só é anatomia com-
entanto , ser contestada. A antiga analogia da planta com o animal parada para um olhar armado dos conhecimentos do século XIX.
( o vegetal é um animal que se sustenta de cabe ça para baixo , a boca Ocorre que a grade , pela qual deixamos chegar ao nosso saber as fi-
- ou as raízes - enterrada na terra ) , Cesalpino não a critica nem a guras do isomorfismo, recorta nesse ponto ( e quase unicamente
apaga ; ao contrário , ele a refor ça; multiplica-a por ela mesma quan- nesse ponto ) aquela que o saber do século XVI havia disposto so-
do descobre que a planta é um animal de pé , cujos princípios nutriti- bre as coisas.
vos sobem de baixo para o cume , ao longo do caule que se estende Mas a descrição de Belon decorre , na verdade , apenas da positi-
como um corpo e termina em uma cabeça - buquês, flores , folhas: vidade que a tornou possível em sua é poca . Ela não é nem mais ra -
essa relação sobreposta , mas n ão contr á ria à primeira analogia , lo- cional nem mais científica do que aquela observação de Aldrovan -
caliza “ a raiz na parte inferior da planta , o caule na parte superior , di , quando ele compara as partes baixas do homem aos lugares in -
pois , nos animais , a rede venosa começa també m na parte inferior fectos do mundo , ao Inferno , às suas trevas , aos amaldiçoados que
do ventre e a veia principal sobe para o coração e a cabeça” 12 . são como os excrementos do Universo15; ela pertence à mesma cosmo-
Essa reversibilidade , assim como essa polivalê ncia , d á à analo- grafia analógica que a comparação , clássica na é poca de Crollius ,
gia um campo universal de aplicação. Por ela , todas as figuras do entre a “ apoplexia” e a tempestade : a tormenta começa quando o ar
mundo podem se aproximar . Há , no entanto , nesse espaço sulca- se torna pesado e se agita , e a crise , no momento em que os pensa-
do em todas as direções , um ponto privilegiado: ele é saturado de mentos se tornam pesados , inquietos ; depois as nuvens se acumu -
analogias ( cada uma pode nele encontrar um dos seus pontos de lam , o ventre estufa , o trovão retumba e a bexiga se rompe ; os re-
apoio ) e , passando por ele , as relações se invertem sem se altera- lâmpagos fulminam , enquanto os olhos brilham com um clar ão
rem . Esse ponto é o homem ; ele está em harmonia tanto com o terrível , a chuva cai , a boca espuma , o raio se desencadeia enquan -
cé u , como com os animais e as plantas , como com a terra , os me- to os espíritos fazem a pele arrebentar ; mas eis que o tempo se tor -
tais , as estalactites ou as tempestades . Erigido entre as duas faces na claro e a razão se restabelece no doente16 . O espaço das analo-
do mundo , ele tem relaçã o com o firmamento ( seu rosto é , para gias é , no fundo , um espaço de irradiação . De todos os lados o ho-
seu corpo , o que a face do cé u é para o éter ; sua pulsação bate em mem é concernido por ele , mas esse mesmo homem , inversamen -
suas veias como os astros circulam conforme suas pr ó prias vias ; te , transmite as semelhanças que ele recebe do mundo. Ele é o
as sete aberturas formam em seu rosto o mesmo desenho que os
sete planetas no céu ); mas todas essas relações, ele as desloca, e
as encontramos , similares , na analogia do animal humano com a 13. ( N.A. ) Crollius ( O . ) , op. cit . , p. 88.
.
14 ( N .A. ) Belon ( P. ) , L' historié de la nature des oiseaux avec leurs descriptions et
na\fs portraits . Paris, G . Corrozet, 1555, p . 37.
15. ( N.A. ) Aldrovandi ( U. ) , op. cit . , p. 4.
12 . ( N .A . ) Cesalpino ( A. ) , De plantis , livro XVI , Florença , G. Marescottum , 1583. 16 . ( N .A. ) Crollius ( O. ) , op. cit . , p . 87.
Ç
18 Michel Foucault - Ditos e Escritos
1966 - A Prosa do Mundo 19
grande foco das propor ções , o centro em que as relações vê m se
apoiar e de onde elas são novamente refletidas . Eis por que a simpatia é compensada por sua figura gê mea , a an-
Por fim , a quarta forma de semelhança é assegurada pelo jogo tipatia. Esta manté m as coisas em seu isolamento e impede a assi-
das simpatias . Ali , nenhum caminho é determinado de saída , ne- milação ; ela enclausura cada espécie em sua diferença obstinada e
nhuma distâ ncia é suposta , nenhum encadeamento , prescrito . A em sua propensão a perseverar no que ela é : “ É bastante conhecido
simpatia age em estado livre nas profundezas do mundo . Ela per - que as plantas se odeiam entre si ( .. . ) ; diz-se que a azeitona e a videi-
corre em um instante os mais vastos espaços: do planeta ao ho- ra odeiam o repolho; o pepino foge da azeitona ( . .. ) . Entendido que
mem que ele rege , a simpatia cai de longe como um raio; ela pode , elas cruzam pelo calor do sol e o humor da terra , é preciso que
ao contr á rio , nascer de um contato preciso - como essas “ rosas de qualquer á rvore opaca e espessa seja perniciosa às outras e tam-
luto , das quais se ser á servido nos funerais” que , pela simples pro- bém àquela que tem muitas raízes. ” 1 9 Assim perpetuamente , atra-
ximidade com a morte , tornam qualquer pessoa que lhes aspira o vés dos tempos , os seres do mundo se odiar ão e contra toda simpa-
perfume “ triste e moribunda” 17. Mas o poder da simpatia é tal que tia manter ão seu feroz apetite. “ O rato da í ndia é pernicioso ao cro-
ela não se contenta em jorrar de um ú nico contato e de percorrer os codilo , pois a Natureza lhe fez seu inimigo ; de maneira que , quando
espaços ; ela incita o movimento das coisas no mundo e provoca a esse violento se diverte ao sol , ele lhe prepara armadilha e astúcia
aproximação das mais distantes. Ela é princípio de mobilidade ; mortal , percebendo que o crocodilo , adormecido em suas delícias ,
atrai os pesados para o peso do solo e os leves para o é ter sem peso , dorme de goela escancarada , ele entra por aí e escorrega por sua
empurra as raízes para a água e faz girar com o movimento do sol a grande goela até o ventre daquele , devorando-lhe as entranhas , sa -
grande flor amarela do girassol . Bem mais , atraindo as coisas indo , enfim , pelo ventre do animal morto . ” Mas , por sua vez , os ini-
umas na direção das outras , por um movimento exterior e visível , migos do rato o espreitam ; pois ele está em discórdia com a aranha
ela suscita em segredo um movimento interior , um deslocamento e , “ combatendo várias vezes com o áspide , ele morre ” 20. Por esse
das qualidades que se substituem umas às outras: o fogo , por ser jogo da antipatia que os dispersa , mas que da mesma forma os lan -
quente e ligeiro , eleva-se no ar , na direção do qual suas chamas in- ça ao combate , os torna assassinos e os expõe por sua vez à morte ,
cansavelmente se erguem ; mas ele perde sua pr ó pria sequid ão descobre-se que as coisas e os animais e todas as figuras do mundo
( que pertencia à terra ) e adquire uma umidade ( que o liga à água e permanecem aquilo que são.
ao ar ) ; desaparece então em um ligeiro vapor , em fumaça azul , em A identidade das coisas - o fato de poderem se assemelhar às
nuvem ; transformou-se em ar . A simpatia é uma instância do Mes- outras e se aproximar delas , mas sem se colar e mantendo-se dis-
mo tão forte e tão esmagadora que não se contenta em ser uma das tintas delas - corresponde ao equilí brio constante entre a simpa -
formas do semelhante ; ela tem o perigoso poder de assimilar , de tia e a antipatia , que lhe corresponde . Explica que as coisas cres -
tornar as coisas idê nticas umas às outras , de mistur á-las , de fa- çam , se desenvolvam , se misturem , desapareçam , morram , mas
z ê-las desaparecer em sua individualidade - portanto , de torná-las perpetuamente se reencontrem ; em suma , que haja ali um espaço
( que , no entanto , não é sem marca nem repetição , sem porto segu -
alheias ao que elas eram . A simpatia transforma. Ela altera , mas na
direção do id ê ntico , de maneira que , se seu poder não fosse equili- ro de similitude ) e um tempo ( que , no entanto , deixa reaparecer
brado , o mundo seria reduzido a um ponto , a uma massa homogé- ininterruptamente as mesmas figuras , as mesmas espécies , os
nea , à morna figura do Mesmo: todas as suas partes se sustenta- mesmos elementos ) . “ Ainda que , em si mesmos , os quatro corpos
riam e se comunicariam entre si sem ruptura nem distância , como ( água , ar , fogo , terra ) sejam simples e tendo suas qualidades dis-
essas cadeias de metal suspensas pela simpatia à atração de um tintas , na medida em que o Criador ordenou que os corpos ele-
ú nico imã 18 .
19 . ( N.A. ) Cardan ( J . ) , De subtilitate , Bâle , Petrina , 1560 { De La subtilité , trad . R . Le
Blanc , Paris , G. Le Noir , 1656, p. 154 ) .
17. ( N .A . ) Porta ( G . Della ) , La magie naturelle , op. cit . , p . 72 . 20 . ( N.A. ) Goulart (S. ) , Annotations et observations sur le texte pour Vexplication
18. ( N .A . ) Porta ( G. Della ) , La magie naturelle , op. cit . , p . 72 . d e plusieurs difficultés , in Du Chesne ( J . ) , Le grand miroir du monde ( 1587 ) , 2-
ed . revista e ampliada , Lyon , E. Vignon , 1593, p . 498.
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20 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1966 - A Prosa do Mundo 21

mentares ser ão compostos de elementos misturados , eis por que olhos e que a noz socada com vinagre trata das dores de cabeça , é
suas conveniê ncias e discordâ ncias são notáveis, o que se conhece preciso certamente que um sinal nos advirta disso: sem o qual esse
por suas qualidades. O elemento do fogo é quente e seco ; ele tem , segredo permaneceria imediatamente adormecido . Como saber
portanto , antipatia com os da água , que é fria e ú mida. O ar quen- ; que entre um homem e seu planeta há uma relação gemelar ou de
te é ú mido , a terra , fria e seca , é a antipatia. Para conciliá-los , o ar rivalidade , se não houvesse em seu corpo e nas rugas de seu rosto o
foi colocado entre o fogo e a água , a água , entre a terra e o ar . À me- sinal que ele é rival de Marte ou aparentado com Saturno? É preci-
dida que o ar é quente , ele se aproxima do fogo e sua umidade se so que as similitudes soterradas sejam assinaladas na superf ície
acomoda com a da água. Mas , uma vez que sua umidade é tempe- das coisas ; é necessária uma marca visível das analogias invisíveis .
rada , ela modera o calor do fogo e dele també m recebe ajuda , as- Qualquer semelhança não é , simultaneamente , o que é o mais ma -
sim como , por outro lado , por seu calor med íocre , ele amorna a nifesto e o que está melhor escondido? Ela não é composta de fato
frieza ú mida da água . A umidade da água é aquecida pelo calor do por pedaços justapostos , uns id ê nticos , outros diferentes: ela é , ao
ar e alivia a fria secura da terra.” 21 A soberania do par simpa- mesmo tempo , uma similitude que se vê e que não se vê . Portanto ,
tia-antipatia , o movimento e a dispersão que ele prescreve d ã o lu - I-
ela não teria crité rio se nela não houvesse - em cima ou ao lado -
gar a todas as formas de semelhança. Assim se encontram reto- um elemento de decisão que transforme sua cintilação duvidosa
madas e explicadas as tr ês primeiras similitudes . Todo o volume em clara certeza .
do mundo , todas as proximidades da conveniê ncia , todos os ecos Não há semelhan ça sem assinatura . O mundo do similar só pode
I ser um mundo marcado . “ Não é vontade de Deus , diz Paracelso ,
da emulaçã o , todos os encadeamentos da analogia são suporta-
dos , mantidos e duplicados por esse espaço da simpatia e da anti- que aquilo que ele cria para benef ício do homem e o que ele lhe deu
patia , que não cessa de aproximar as coisas e de mantê-las a dis- ü permaneça escondido.. . E mesmo que Ele tenha escondido certas
tâ ncia . Por esse jogo , o mundo permanece id ê ntico ; as semelhan- coisas , nada deixou sem sinais exteriores e visíveis com marcas es-
ças continuam a ser o que elas são e a se parecer . O mesmo per - m peciais - tal como o homem que enterrou um tesouro , marcando o
manece o mesmo , e trancafiado em si . lugar para que ele possa encontr á-lo . ” 22 O saber das similitudes se
migr: fundamenta no levantamento dessas assinaturas e em sua decifra -
. #t ção. In ú til deter -se na casca das plantas para conhecer sua nature-
As assinaturas za : é preciso ir direto às suas marcas , “ à sombra e imagem de Deus
que elas trazem ou à virtude interna , que lhes foi dada pelo cé u as-
E , no entanto , o sistema não é fechado. Uma abertura se manté m : sim como por dote natural ( ... ) , virtude , digo , que se reconhece de
por ela , todo o jogo das semelhanças tenderia a escapar dele mesmo prefer ê ncia pela assinatura ” 23. O sistema de assinaturas inverte a
ou a permanecer desconhecido , se uma nova figura não viesse fechar relação do visível com o invisível . A semelhan ça era a forma invisí-
o círculo , torná-lo ao mesmo tempo perfeito e manifesto. vel do que , nos confins do mundo , tornava as coisas visíveis ; mas ,
Convenientia , aemulatio , analogia e sympathia nos dizem para que essa forma por sua vez venha à luz , é necessária uma figu -
como o mundo deve se redobrar sobre si mesmo, se duplicar , se re- ra visível que a arranque de sua profunda invisibilidade . Eis por
fletir ou se encadear para que as coisas possam se parecer . Elas que a face do mundo está coberta de brasões , de “ caracteres” , de ci-
nos falam dos caminhos da similitude e por onde eles passam ; não fras , de palavras obscuras - de hier óglifos , dizia Turner . E o espaço
onde ela existe , nem como a vemos , nem a marca na qual a reco- das semelhanças imediatas se transforma em num grande livro
nhecemos . Ora , talvez nos ocorresse atravessar toda essa maravi- aberto ; ele é coberto por grafismos; vêem-se , ao longo da página , fi-
lhosa abundância de semelhanças sem mesmo duvidar de que ela é
preparada há bastante tempo pela ordem do mundo , e para nosso
22 . ( N .A. ) Paracelso ( P. T . von Hohenheim , dito ) , Die 9 Bûcher der Natura Rerum .
maior benef ício . Para saber que o acônito cura as doen ças dos í n S àmtliche Werke , t . IX: Paramirisches , and anderes Schriftwerke der Jahre
-
1531 1535 , Karl Sudhoff ed . , Berlim , R . Oldenbourg, 1925, p. 393.
21. ( N .A . ) Goulart ( S. ) , op . cit 23. ( N .A. ) Crollius ( O . ) , op . cit . , p . 4.
il
22 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1966 - A Prosa do Mundo 23
I
guras estranhas que se entrecruzam e , às vezes, se repetem . Resta uma vida curta, o cruzamento de duas linhas, o encontro de um
apenas decifr á-las: “ Não é verdade que todas as ervas , plantas , ár - obstáculo , o movimento ascendente de uma prega , a escalada de
vores e outras , provindo das entranhas da terra, são tanto livros um homem para o sucesso. O tamanho é sinal de riqueza e impor -
como sinais mágicos?’’24 O grande espelho calmo, no fundo do qual tância ; a continuidade marca a sorte , a descontinuidade , o infortú -
as coisas se refletem e remetem suas imagens uma à outra , é , na rea- nio28. A grande analogia do corpo com o destino é indicada por todo
lidade , murmurante de palavras. Os reflexos mudos são duplica- um sistema de reflexos e atrações. São as simpatias e as emulações
dos pelas palavras que os indicam . E , pelo dom de uma última for - que assinalam as analogias.
ma de semelhança que envolve todas as outras e as fecha em um Quanto à emulação , pode-se reconhecê-la pela analogia: os olhos
ú nico c í rculo , o mundo pode se comparar a um homem que fala: são as estrelas porque espalham a luz sobre os rostos como os as-
“ Tal como os secretos movimentos de seu entendimento são mani- tros na escuridão , e porque os cegos estão no mundo como os clari-
festados pela voz, da mesma forma não parece que as ervas falam videntes na mais sombria noite . Pode-se reconhecê-la també m pela
ao médico curioso por sua assinatura , revelando-lhe ( ... ) suas vir - conveniê ncia: sabe-se , desde os gregos , que os animais fortes e co-
tudes interiores , guardadas sob o véu do silêncio da natureza?” 25 rajosos tê m a extremidade dos membros larga e bem desenvolvida .
Mas é preciso nos determos por um instante na pr ópria lingua- O tamanho da mão , em um homem , é a imagem de seu vigor . Mas
gem , nos signos dos quais ela é formada ; na maneira pela qual es- essa imagem apenas é signo na medida em que é sustentada pelo
ses signos remetem ao que eles indicam . conhecimento de um encadeamento constante . “ Como toda a espé-
cie dos leões - as extremidades notáveis em for ça ou tamanho ; e em
Há simpatia entre o acônito e os olhos. Essa afinidade imprevis-
ta permaneceria desconhecida se não houvesse na planta uma assi- todas as outras espécies de animais , ocorre que cavalos , touros , ou
natura , uma marca e como uma palavra dizendo que ela é boa para o homem , sendo fortes , tê m as extremidades da fortuna , conse-
as doenças dos olhos . Esse signo é perfeitamente legível em seus qüentemente aqueles que não tê m as extremidades fortes e grandes
grãos: são pequenos globos sombrios engastados em películas são tidos de fato por fracos e d é beis: esse ser á então o sinal da for -
brancas , que representam aproximadamente o que as pálpebras ça , ter extremidades grandes, ” 29 O reconhecimento das semelhan -
são para os olhos26 . O mesmo para a afinidade entre a noz e a cabe- ças mais visíveis se faz , portanto , em função de uma descoberta ,
ça ; o que cura “ as feridas do pericr ânio” é a espessa casca verde que é a da conveniê ncia das coisas entre si . E se imaginamos agora
que repousa sobre os ossos - sobre a casca - do fruto ; mas os ma- que a conveniê ncia nem sempre é definida por uma localização
les interiores da cabeça são prevenidos pelo pr óprio caroço , “ que atual , mas que muitos seres se convê m estando separados ( como
mostra perfeitamente o cé rebro” 27. O signo da afinidade , e o que a ocorre entre a doença e seu remédio , entre o homem e os astros,
torna visível , é simplesmente a analogia ; a cifra da simpatia reside entre a planta e o solo do qual ela tem necessidade ) , ser á preciso
na propor ção. novamente um signo da conveniê ncia. Ora , que outra marca existe
Mas , que assinatura trar á a pr ópria propor ção para que seja de que duas coisas estão encadeadas , senão que elas se atraem re-
possível reconhecê-la? Como seria possível saber que os sulcos da ciprocamente , como o sol e a flor do girassol, ou como a água e o
mão ou as rugas do rosto desenham no corpo dos homens o que broto do pepino?30 A não ser que haja entre elas tanto afinidade
. %
são as tend ê ncias , os acidentes ou as travessias no grande tecido como simpatia?
da vida? Somente porque a simpatia comunica o corpo com o cé u ,
e transmite o movimento dos planetas às aventuras dos homens.
També m porque a brevidade de uma linha é a simples imagem de 28. ( N.A. ) Cardan ( J . ) , La mé toposcopie ( trad . C . M. de Laurendière ) , Paris , Jolly ,
-
1658 , ps. III VIII .
29. ( N.A. ) Porta ( G . Delia ) , La physionomie humaine , op . cit . , p. 64.
24. ( N .A . ) Crollius ( O. ) , ibid . , p. 6. 30. ( N.A . ) Bacon ( F. ) , Sylvia sylvarum , or A natural historie . In ten centuries
25 . ( N .A . ) Crollius ( O. ) , ibid . , loc. cit . ( 1626 ) , Londres , William Rawley , 1627 ( Histoire naturelle de Mre François Bacon ,
26 . ( N .A . ) Crollius ( O. ) , op . cit . , p . 33. Paris, Sommaville e Soubron , 1631 , p . 221 ) .
27. ( N .A . ) Crollius ( OJ , ibid . , ps . 33-34.
24 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1966 - A Prosa do Mundo 25

Assim o círculo se fecha. Vê-se , no entanto, por que sistema de A gramática dos seres é sua exegese. E a linguagem que eles falam
desdobramentos . As semelhanças exigem uma assinatura , pois ne- revela apenas a sintaxe que os liga. A natureza das coisas , sua coe-
nhuma delas poderia ser distinguível se não fosse legivelmente xistê ncia , o encadeamento que as associa e pelo qual elas se comu -
marcada . Mas, quais são esses signos? Em que se reconhece , den- nicam não são diferentes de sua semelhança. E esta aparece ape-
tre todos os aspectos do mundo e tantas figuras que se entrecru- nas na rede de signos que , de uma extremidade à outra , percorre o
zam , que há aqui uma caracter ística na qual convé m se deter , por- mundo . A “ natureza ” é tomada na fina densidade que sustenta ,
que ela indica uma secreta e essencial semelhança? Que forma uma sobre a outra , semiologia e hermenê utica ; ela é misteriosa e
constitui o sinal em seu singular valor de signo? É a semelhan ça. velada , apenas se oferece ao conhecimento que , às vezes , ela derro-
Ele significa na medida em que há semelhan ça com isso que ele in- ta, na medida em que essa sobreposição não ocorre sem uma ligei-
dica ( ou seja , com uma similitude ) . Mas , no entanto , não é a homo- ra defasagem das semelhanças. De repente , a grade não é clara ; a
logia que ele assinala; pois seu ser distinto de assinatura se apaga- transpar ê ncia se encontra confusa desde o primeiro dado. Surge
ria no rosto daquilo de que ele é signo: ele é uma outra semelhan ça , um espaço sombrio , que exige ser progressivamente esclarecido .
uma semelhança pr óxima , e de um outro tipo , que , por sua vez , é Eis aí a “ natureza” , e é isso que é preciso empenhar -se em conhe-
revelada por uma terceira. Qualquer semelhança recebe uma assi- cer . Tudo seria imediato e evidente se a hermenê utica da seme-
natura ; mas essa assinatura não passa de uma forma intermediá- lhança e a semiologia das assinaturas coincidissem sem a menor
ria da semelhança. Embora o conjunto de marcas faça deslizar so- oscilação. Mas , porque há uma “ fenda” entre as similitudes que for -
bre o c írculo das similitudes um segundo círculo , que duplicaria mam grafismo e as que formam discurso , o saber e seu trabalho in -
exatamente e ponto por ponto o primeiro , não fosse essa pequena finito recebem ali o espaço que lhes é próprio: eles ter ão que trilhar
defasagem que faz com que o signo da simpatia resida na analogia , essa distância, indo , em um ziguezague indefinido , do semelhante
o da analogia na emulação , o da emulação na conveniência , que re- ao que lhe é semelhante.
quer , por sua vez , para ser reconhecida , a marca da simpatia .. . A
assinatura e o que ela designa são exatamente da mesma natureza ;
obedecem apenas a leis ou distribuições diferentes; o recorte é o Os limites do mundo
mesmo .
Forma assinante e forma assinada são semelhan ças , mas à par - Eis , em seu esboço mais geral, a episteme do século XVI . Essa
te . E é isso , sem d úvida, que faz com que a semelhança seja , no sa- configuração traz consigo um certo n ú mero de conseqúências.
ber do século XVI , o que há de mais universal: ao mesmo tempo o De in ício, o car á ter simultaneamente pletórico e absolutamente
que há de mais visível , mas que , no entanto , se deve procurar des- pobre desse saber . Pletórico, já que ele é ilimitado. A semelhança
cobrir , pois é o mais escondido ; o que determina a forma de conhe- nunca permanece estável em si mesma; ela não é fixada a não ser
cimento ( pois só se conhece seguindo os caminhos da similitude ) e que remeta a uma outra similitude que , por sua vez , exige novas se-
o que lhe garante a riqueza de seu conte ú do ( pois, desde que se melhanças ; de maneira que cada semelhança só vale pela acumula-
destaquem os signos e que se observe o que eles indicam , deixa-se ção de todas as outras ; e o mundo inteiro deve ser percorrido para
emergir e cintilar em sua pr ó pria luz a semelhan ça mesma ) . y

que a mais ínfima das analogias seja justificada e apareça , enfim ,


Chamemos de hermenê utica o conjunto dos conhecimentos e como certa. Portanto , é um saber que poderá, que dever á proceder
técnicas que permitem fazer falar os signos e descobrir seus senti- por acumulação infinita de confirmações , umas exigindo as outras .
dos; chamemos de semiologia o conjunto dos conhecimentos e téc- E , por isso , desde os seus fundamentos , esse saber será árido. A
nicas que permitem distinguir o que é signo , definir o que os insti- ú nica forma de ligação possível entre os elementos do saber é a adi-
tui como signos , conhecer suas ligações e as leis de seu encadea- ção . Daí essas imensas colunas , daí sua monotonia . Colocando
mento . O século XVI sobrepôs semiologia e hermenêutica na forma como ligação entre o signo e aquilo que ele indica a semelhança ( ao
da similitude . Buscar o sentido é evidenciar o que se assemelha . mesmo tempo terceiro poderoso e poder ú nico, já que ela habita da
Buscar a lei dos signos é descobrir as coisas que são semelhantes. mesma forma a marca e o conte údo ) , o saber do século XVI se con-
1966 - A Prosa do Mundo 27
26 Michel Foucault - Ditos e Escritos

f te todas as analogias do mundo. Mas havia no cerne do saber uma


denou a reconhecer apenas a mesma coisa , mas só reconhecê-la no necessidade: era preciso ajustar a infinita riqueza de uma semelhan-
té rmino jamais atingido de um percurso indefinido. ça introduzida como terceiro entre os signos e seus sentidos , e a mo-
E é ali que funciona a categoria , muito ilustre , do microcosmo. notonia que impunha o mesmo corte da semelhança ao significante
Esta velha noção tinha sido, sem d úvida , reanimada , ao longo da e ao que ele designava. Em uma episteme na qual signos e similitu-
Idade Média e desde o início do Renascimento , por uma certa tradi- des se enrolavam reciprocamente segundo uma voluta sem fim , era
ção neoplatônica . Mas ela acabou por desempenhar no século XVI preciso certamente que se colocasse na relação do microcosmo com
uma função fundamental no saber . Pouco importa que ela seja ou o macrocosmo a garantia desse saber e o término de sua expansão.
não , como se dizia antigamente , visão do mundo ou Weltanschau- Pela mesma necessidade , esse saber devia acolher simultanea-
ung . De fato , ela tem uma , ou melhor , duas funções muito precisas mente e no mesmo plano magia e erudição. Acreditamos facilmente
na configuração epistemológica dessa época . Como categoria de que os conhecimentos do século XVI eram constitu ídos de uma
pensamento , ela aplica a todos os dom ínios da natureza o jogo das mistura instável de saber racional , de noções derivadas das pr áti-
semelhanças reduplicadas; garante à investigação que cada coisa cas de magia e de toda uma herança cultural , da qual a descoberta
encontrar á , em uma escala maior , seu espelho e sua confirmação de textos antigos havia multiplicado os poderes de autoridade .
macroscó pica ; afirma que a ordem visível das mais altas esferas Assim concebida , a ciê ncia dessa é poca parecia dotada de uma es-
voltar á , retroativamente , a se refletir na profundeza mais sombria trutura fr ágil ; ela seria apenas o lugar liberal de uma confrontação
da terra . Mas , concebida como configuraçã o geral da natureza , ela entre a fidelidade aos Antigos , o gosto pelo maravilhoso e uma aten-
coloca limites reais , e , por assim dizer , tangíveis , à progressão infa- ção já despertada sobre essa soberana racionalidade na qual nos
tigável das semelhanças que se relançam . Ela indica que existe um reconhecemos . E essa é poca trilobulada se refletiria no espelho de
mundo grande e que seu perí metro traça o limite de todas as coisas cada obra e de cada pensamento partilhado . .. Na verdade , o saber
criadas ; que , na outra extremidade , existe uma criatura de privilé-
do século XVI n ão sofre de uma insuficiê ncia de estrutura. Vimos ,
gio que reproduz , em suas dimensões restritas , a ordem imensa do
3 pelo contr á rio , o quanto são meticulosas as configurações que defi-
céu , dos astros, montanhas , rios e tempestades ; e que é entre os li-
niam seu espaço. É esse rigor que impõe a relação entre magia e
mites efetivos dessa analogia constitutiva que se desenrola o jogo
das semelhanças . Por esse fato mesmo a distâ ncia do microcosmo erudição - não conte ú dos aceitos , mas formas convenientes. O
mundo está coberto de signos que é preciso decifrar , e esses sig-
ao macrocosmo , por imensa que seja , não é infinita ; os seres que
ali habitam , por mais numerosos que sejam , poderiam no limite nos , que revelam as semelhanças e as afinidades , são eles pr óprios
ser contados ; e , conseqüentemente , as similitudes que , pelo jogo apenas formas da similitude . Conhecer ser á , portanto , interpretar :
dos signos que elas exigem , se apoiam sempre umas nas outras ir da marca visível ao que se diz através dela , e que , sem ela , per -
não correm mais o risco de escapar infinitamente . Elas tê m , para maneceria palavra muda , adormecida nas coisas. “ Nós, homens di-
se apoiar e se refor çar , um dom ínio perfeitamente fechado. A natu- ferentes , descobrimos tudo o que está escondido nas montanhas
reza , como jogo de signos e de semelhanças , volta a se fechar sobre pelos signos e por correspond ê ncias exteriores ; foi assim que en -
si mesma conforme a figura reduplicada do cosmo. contramos todas as propriedades das ervas e tudo o que está nas
É preciso , então , se precaver para não inverter as relações. Certa- pedras. Não há nada na profundidade dos mares , nada nas alturas
mente , a id éia do microcosmo é , como se diz , “ importante ” no século do firmamento que o homem não seja capaz de descobrir . Não há
XVI ; entre todas as formulações que uma pesquisa poderia recen- montanha que seja bastante vasta para esconder do olhar do ho-
sear , provavelmente ela seria uma das mais freqüentes. Mas não se mem o que nela existe ; isso lhe ser á revelado pelos signos corres-
trata aqui de um estudo de opiniões que a simples análise estatística pondentes. ” 31 A adivinhação não é uma forma concorrente de co-
do material escrito permitiria conduzir . Se , pelo contrário, se inter -
roga o saber do século XVI em seu nível arqueológico - ou seja , no 31. ( N.A. ) Paracelso ( P. T. von Hohenheim , dito ) , Archidoxa magica , seu de secretis
que o tornou possível -, as relações entre o macrocosmo e o micro- naturae mysteriis , Bâle , Pernam , 1570 ( Les sept Hures de VArchidoxe magique ,
cosmo aparecem como um simples efeito de superfície . Não é por- trad . M . Haven , Paris , Dujols e Thomas , 1909, ps. 21-23 ) .
que se acreditava em tais relações que se passou a buscar novamen-
28 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1966 - A Prosa do Mundo 29

nhecimento ; ela dá corpo ao pr óprio conhecimento. Ora , esses sig- preciso aprender sua linguagem , 1er seus textos , compreender o
nos que são interpretados apenas designam o escondido na medi- que eles disseram . A herança da Antigüidade é , como a pr ópria
da em que se assemelham a ele ; e não se atuar á sobre as marcas natureza , um vasto espaço a interpretar ; aqui e ali , é preciso cons-
sem operar simultaneamente sobre aquilo que é secretamente indi- truir signos e, pouco a pouco, fazê-los falar . Em outros termos , di-
cado por elas. Eis por que as plantas que representam a cabeça , os vinatio e erud í t í o são uma mesma hermenêutica. Mas ela se desen-
olhos , o coração ou o fígado ter ão eficácia sobre um órgão ; eis por volve , de acordo com figuras semelhantes , em dois níveis diferen-
que os pr óprios animais ser ão sensíveis às marcas que os desig- tes: uma vai da marca muda à pr ó pria coisa ( e ela faz falar a nature-
nam . “ Diga- me então , pergunta Paracelso , por que a serpente na za ) ; a outra , do grafismo imóvel à clara palavra ( ela d á novamente
Helvécia , Argé lia , Su écia entende as palavras gregas Osy , Osya , vida às linguagens adormecidas ) . Mas , tal como os signos naturais
Osy ... Em que academias as aprenderam para que , apenas ouvida estão ligados ao que eles indicam pela profunda relação de seme-
a palavra , elas imediatamente virem seu rabo para não ouvi-la de lhan ça , també m o discurso dos Antigos é a imagem do que ele
novo? Logo que elas ouvem a palavra , não obstante sua natureza e enuncia ; se ele tem para n ós o valor de um signo precioso é porque ,
seu espí rito , permanecem imóveis e não envenenam ningu é m com no fundo de seu ser , e pela luz que não cessou de atravessá-lo des-
sua mordida venenosa. ” E que não se diga que aí está apenas o efei- de o seu nascimento , é ajustado às pr óprias coisas , forma o seu es-
to do barulho das palavras pronunciadas: “ Se você escreve , em pelho e sua emulação; ele é , para a verdade eterna , o que esses sig-
tempo favor ável , apenas essas palavras na pele de veado , no perga- nos são para os segredos da natureza ( ele é a marca a decifrar des-
minho , no papel , e você as impõe à serpente , esta não permanecer á sa palavra ) ; ele tem , com as coisas que desvela , uma afinidade ime-
menos imóvel do que se você as tivesse articulado em voz alta."320 morial . In ú til , então , pedir -lhe seu título de autoridade : ele é um te -
projeto das “ magias naturais", que ocupa um amplo espaço no fim £ souro de signos ligados pela semelhança ao que eles podem desig-
do século XVI e avança ainda em pleno meado do século XVII , não é nar . A ú nica diferença é que se trata de um tesouro de segundo
um efeito residual na consciê ncia européia ; ele foi ressuscitado , WR.. grau , remetendo às notações da natureza, que indicam obscura-
como o diz expressamente Campanella33 - e por razões contempo- mente o fino ouro das pr óprias coisas . A verdade de todas essas
r â neas: porque a configuração fundamental do saber remetia , marcas - quer elas atravessem a natureza ou se perfilem nos perga -
umas às outras , as marcas e as similitudes. A forma mágica era minhos e nas bibliotecas - é em toda parte a mesma : tão arcaica
inerente à maneira de conhecer . quanto a instituição de Deus .
E pelo mesmo fato à erudição: pois , no tesouro que a Antigü ida- Entre as marcas e as palavras não há diferen ça da observação à
de nos transmitiu , a linguagem vale como o signo das coisas . Não autoridade aceita , ou do verificável à tradição. Em tudo há o mes-
há diferença entre essas marcas visíveis que Deus dispôs na super- mo jogo , o do signo e do similar , e é por isso que a natureza e o ver -
f ície da terra , para nos fazer conhecer os segredos interiores , e as bo podem se entrecruzar infinitamente , formando para quem sabe
palavras legíveis que a Escritura ou os sábios da Antigü idade , es- 1er um grande texto ú nico.
clarecidos por uma luz divina , depositaram nos livros que a tradi-
ção salvou . A relação com os textos é da mesma natureza que a re-
lação com as coisas. Aqui e lá , são signos o que se constr ói ; mas
Deus , para exercitar nossa sabedoria , apenas semeou na natureza
figuras a decifrar ( e é nesse sentido que o conhecimento deve ser
divinatio ) , enquanto os antigos já deram interpretações que só te-
mos que recolher . Que dever íamos somente recolher , se não fosse

32 . ( N .A . ) Paracelso , op . cí t .
33. ( N . A . ) Campanella ( T. ) , De sensu rerum et magia libri quatuor , Frankfurt ,
Emmelium , 1620 , p. 261.
i 1966 - Foucault e Deleuze Querem Devolver a Nietzsche Sua Verdadeira Cara 31

1966 Essa massa impressionante de inéditos é uma das explicações


da longa demora das obras completas. Raz ões polí ticas puderam
igualmente intervir . De fato , a publicação das obras completas ti -
nha sido decidida na Alemanha antes da guerra. Foram publicados
Michel Foucault e Gilles Deleuze Querem cinco volumes , compostos unicamente de escritos da juventude de
Nietzsche anteriores à publicação de seu primeiro livro. Trabalhos
Devolver a Nietzsche Sua Verdadeira Cara* de filologia essencialmente , mas també m poemas , alguns dos quais
r
escritos aos 14 anos , sobre diversos temas: Saint-Just , a Revolu -
f ção Francesa etc .
- Como se apresenta a edição em preparação?
“ Michel Foucault e Gilles Deleuze querem devolver a Nietzsche sua verdadeira cara ” - Em primeiro lugar , um fato paradoxal: os alemães não partici-
( entrevista com C. Jannoud ) , Le Figaro litté raire , n- 1.065, 15 de setembro de S pam desse empreendimento de car áter internacional . Tr ês edito-
1 '

1966 , p . 7 .
f res: um italiano, um holandês e um francês ( Gallimard ) tomaram a
* decis ã o de financiar a nova coleçã o de manuscritos . É evidente -
& •

mente a tarefa capital . Ela constituir á uma interrogaçã o hist óri-


- A edição das obras completas é um antigo projeto. Efetivamente , ca implacável , da mesma natureza da que foi colocada anterior -
desde a publicação de Vontade de potê ncia , pessoas do círculo de mente , por exemplo , pela ediçã o cient ífica dos Pensées de Pas-
Nietzsche - dentre os quais seu mais antigo amigo, Overbeck - de- cal . Vai se tratar eventualmente de demolir a falsa arquitetura ,
nunciaram os procedimentos , muito pouco científicos , da irmã do fi- cria çã o de terceiros excessivamente zelosos , para reconstruir ,
lósofo . Mas se a publicação das obras completas tinha sido adiada na medida do possível , os textos conforme as pr ó prias perspecti -
até hoje é porque ela apresenta dificuldades esmagadoras . vas de Nietzsche .
A massa de inéditos de Nietzsche é enorme . Ela pode ser dividi- Impossível , naturalmente , julgar previamente os resultados des -
da em duas grandes rubricas: os escritos anteriores a 1884 - ano se trabalho. Há um processo em curso , movido contra a irmã do fi-
da publicação de Zaratustra -, geralmente notas ou primeiros es- lósofo , mas não se pode dizer precisamente em que reside a falsifi-
boços de obras publicados pelo pr ó prio filósofo . A seguir , os ma- caçã o , se ela existe . Esse trabalho de elucidação ser á uma obra de i
nuscritos posteriores a 1884 , não publicados por Nietzsche , que grande f ôlego . Mas , desde agora , na Fran ça , uma primeira etapa ?

compreendem numerosos inéditos e também aqueles dos quais ser á cumprida em breve . Publicaremos as traduções das obras pu -
Elisabeth Forster se serviu para Vontade de potê ncia . blicadas pelo pr ó prio Nietzsche .
J á existem tradu ções desses livros , algumas excelentes . Utiliza-
remos , aliás , algumas . Mas nos esfor çaremos para homogeneizar
Nas notas que trazem refer ência das obras de Nietzsche , a remissão das
* ( N . R. )
as tradu ções , não somente de acordo com a lingü istica , mas em
páginas refere-se à edição de Georgio Colli e Mazzino Montinari , das obras
filosóficas completas de Nietzsche , cuja edição francesa foi dirigida por Foucault e
função dos conceitos fundamentais de Nietzsche . Em suma , tenta -
: .
Deleuze , inicialmente , e depois por Deleuze e Maurice de Gandillac para as Éditions
*

remos restituir a paisagem intelectual do filósofo . Seus livros ser ã o


Gallimard . acompanhados dos esboços , notas e rascunhos que os precede -
O trabalho de Colli e Montinari permanece como referência atual para o estabelecimento ? ram . Assim , cada obra ter á seu verdadeiro volume , seu memorial .
dos textos de Nietzsche .
A gaia ci ê ncia , traduzido por Pierre Klossowski , ser á editado mui -
A Biblioth èque de la Pléiade publicará em tr ês tomos os textos do filósofo , editados
enquanto estava vivo , tendo como referê ncia os editores italianos de Nietzsche . to em breve . A seguir , Aurora , Humano , demasiado humano , Ge -
Ver , neste volume , p. 36, a Introdução Geral ( às Obras Filosóficas Completas de nealogia da moral etc . Ulteriormente , essas obras ser ão publica -
-#
Nietzsche ) escrita por M. Foucault para explicar os crité rios da edição que ele das na coleção da Plé iade.
organizou com Deleuze . V - Terminada a nova coleçã o dos textos , você acredita que sur -
girá uma nova imagem do filósofo? Alguns acham, apoiando-se
32 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1966 - Foucault e Deleuze Querem Devolver a Nietzsche Sua Verdadeira Cara 33
?
?
nas declarações de Nietzsche , que , desde Zaratustra, os concei - f rio definir o que tinha sido a filosofia depois de Descartes , descre-
tos fundamentais de sua filosofia tinham sido estabelecidos , as ver seu esforço para se definir como contrametafísica , em suma ,
obras seguintes sendo essencialmente pol ê micas. Outros , ao con- para ser uma reflexão autónoma concentrando sua atenção essen -
trário , afirmam que os manuscritos póstumos marcam uma nova I
4 '
cialmente no sujeito.
virada do pensamento do fil ósofo. - Retomemos seu livro, As palavras e as coisas, no qual você se
- É impossível ainda uma vez julgar previamente os resultados i íí. insurge contra essa tradição.
do trabalho da nova coleção. Nossa tarefa consiste em construir - Sim , estamos hoje na era do saber . Fala-se correntemente de
um terreno de discussão . Sobre ele , os historiadores da filosofia um empobrecimento do pensamento filosófico; julgamento inspi- ]

poder ão evoluir , fazer a sua parte . Confiemos neles! rado por conceitos ultrapassados. Existe hoje uma reflexão filosófi-
- Mas , desde agora , como vocês definem o papel de Nietzsche ca extremamente rica em um campo que , antigamente , não fazia
na hist ória da filosofia? Ele é um fil ósofo , na acepção cl ássica do parte da reflexão filosófica. Os etnólogos, os lingüistas, os sociólo-
termo? Ele é acusado principalmente de ter um conhecimento de gos, os psicólogos comentam os atos filosóficos. O saber se disse-
filosofia de segunda mão . minou . O problema filosófico contempor âneo é cernir o saber em
s seu pr óprio limite , definir seu pr óprio perímetro .
- Essa ú ltima cr ítica é inexata , no que se refere a Schopenhauer
e també m aos filósofos gregos. Certamente , Nietzsche tinha sobre - Como você situa Nietzsche dentro dessa concepção da filo-
eles um conhecimento essencialmente filológico. Muitos especialis- sofia?
- Nietzsche multiplicou os gestos filosóficos. Ele se interessou
tas ficam , inclusive , desconcertados pelos começos filológicos de
Nietzsche . É uma via pouco habitual para um filósofo. A massa cul-
por tudo , pela literatura , história , política etc. Ele vai buscar a filo-
sofia em tudo. Neste aspecto , mesmo se em certos domínios ele
tural e filosófica lhe foi transmitida através de manuscritos. Não é
permanece um homem do século XIX, ele antecipou genialmente a
menos verdade que o surgimento de Nietzsche constitui um corte
nossa época.
na histó ria do pensamento ocidental. O modo do discurso filosófi-
co mudou com ele . Anteriormente , este discurso era um Eu anó ni-
mo . Assim , as Meditações metaf í sicas tê m um car á ter subjetivo .
No entanto , o leitor pode se substituir a Descartes. Impossível dizer
"eu ” no lugar de Nietzsche. Por esse fato , ele desapruma todo o pen-

samento ocidental contempor âneo.


- No entanto , o discurso filosófico cl ássico parece dominar o
pensamento ocidental . Aparentemente , Marx e Hegel , por exem-
plo , exerceram uma influê ncia mais decisiva?
- Nietzsche abriu uma ferida na linguagem filosófica. Apesar dos
esfor ços dos especialistas , ela não foi fechada . Veja Heidegger , cada F-
fy
vez mais obcecado por Nietzsche em sua longa meditação ; da mes-
ma forma , Jaspers . Se Sartre é uma exceção à regra é porque , de- h
pois de muito tempo , ele deixou de filosofar .
k
- Mas Heidegger acusa Nietzsche de ter caí do nas armadilhas
da metaf í sica .
- Desde o final do século XVII , cada filósofo importante fez essa » 3

acusação contra seus predecessores. Isto começou com Locke . De


fato , a era metafísica havia se conclu ído com Descartes. Para aca-
bar com essas acusações permanentes e recíprocas, seria necessá- w
il
.
1966 - O Que É um Filósofo? 35

1
1966 - De. fatosuper
, somos os ú ltimos homens no sentido nietzschiano do
- homem será aquele que tiver superado a ausência
termo O
-
de Deus e a ausê ncia do homem no mesmo movimento de ultrapas
sagem. Mas , no que se refere a Nietzsche , podemos voltar à sua
questão: para ele , o filósofo era aquele que podia diagnosticar o es-
O Que É um Filósofo? tado do pensamento . Podemos , aliás, considerar dois tipos de filó-
sofos , aquele que abre de novo os caminhos para o pensamento
,
de alguma forma um
como Heidegger , e aquele que desempenha
o
papel de arqueólogo , que estuda o espaço no qual se desdobra
O que é um fil ósofo?” ( entrevista com M. - G . Foy ) , Connaissance des hommes , pensamento , seu
pensamento , assim como as condições desse
"

n- 22. outono de 1966, p . 9 .


modo de constituição .

- Qual o papel do fil ósofo na sociedade?


- O filósofo não tem papel na sociedade . Não se pode situar seu
pensamento em relação ao movimento atual do grupo. Socrates é
um excelente exemplo: a sociedade ateniense pôde apenas lhe atri-
buir um papel subversivo , seus questionamentos não podiam ser
admitidos pela ordem estabelecida. Na verdade , é ao cabo de um
certo n ú mero de anos que se toma consciê ncia do lugar de um filó-
sofo: em suma , atribuí mos a ele um papel retrospectivo .
- Mas, entã o , como você se integra na sociedade?
- Integrar -me . .. Você sabe , até o século XIX , os filósofos não
eram reconhecidos . Descartes era matemático ; Kant n ão ensinava
filosofia , mas antropologia e geografia ; aprendia-se retó rica , não fi-
losofia , e então não existia para o íf lósofo a questão de se integrar .
É no sé culo XIX que se encontram , enfim , as cadeiras de filosofia:
Hegel era professor de filosofia. Mas, nessa época, se estava de
acordo em pensar que a filosofia atingia o seu fim .
- Isso coincide aproximadamente com a id é ia da morte de
Deus?
- Em certa medida , mas é preciso não se enganar . A noção da
morte de Deus não tem o mesmo sentido segundo você a encontre ?
em Hegel , Feuerbach ou Nietzsche . Para Hegel , a Razão assume o
lugar de Deus , é o esp í rito humano que se realiza pouco a pouco.
Para Feuerbach , Deus era a ilusão que alienava o Homem; uma vez
varrida essa ilusão , é o Homem que toma consciê ncia de sua liber -
dade. Para Nietzsche , finalmente , a morte de Deus significa o fim
da metafísica , mas o lugar permanece vazio; não é absolutamente o
Homem que toma o lugar de Deus.
- Sim , o último homem e o super-homem.
1967 - Introdução Geral ( às Obras Filosóficas Completas de Nietzsche ) 37

E necessário lembrar que Nietzsche esboçava simultaneamente


1967 muitos planos diferentes ; que ele variava os projetos de seu grande
1

livro ; que renunciava talvez a ele , decidindo publicar seus livros de
1888 e , em todo caso , que ele concebia a seqüência de sua obra de
acordo com “ técnicas” que não se pode , sem contra-senso, preten -
Introdução Geral ( às Obras Filosóficas der reconstituir e fixar . Os leitores de Nietzsche sabem que prodi-
Completas de Nietzsche ) giosas novidades ele legou , e n ão apenas na técnica da expressão fi-
losófica: o fragmento voluntário ( que não se confunde com a máxi-
ma ) , o aforismo longo, o livro santo , a composição muito especial
-
de OAnticristo ou de Ecce homo . O teatro , a ópera bufa , a música ,
“ Introdução geral ” ( com G . Deleuze ) às Oeuvres philosophiques compl ètes de F. o poema , a par ódia estão perpetuamente presentes na obra de Nie-
.
Nietzsche , Paris Gallimard , 1967, t. V: Le gai savoir. Fragments posthumes tzsche . Ningu ém pode prejulgar a forma ou o assunto que teriam
-
( 1881 1882 ) , à parte , ps . I-IV. tido o grande livro ( nem as outras formas que Nietzsche teria inven -
tado se ele tivesse renunciado ao seu projeto ) . No máximo , o leitor
pode sonhar ; mas é preciso dar -lhe os meios.
Os pensadores “ malditos” são reconhecidos externamente por
tr ês traços : uma obra brutalmente interrompida , parentes abusi-
vos que pesam na publicação dos póstumos , um livro-misté rio , al- O conjunto dos cadernos manuscritos representa pelo menos o
guma coisa como “ o livro” do qual não se acaba de pressentir os se- triplo da obra publicada pelo pr óprio Nietzsche . Os póstumos já
gredos. editados são muito menos numerosos do que aqueles que ainda
A obra de Nietzsche é brutalmente interrompida pela loucura , aguardam uma publicação.
no início de 1889 . Sua irmã , Elisabeth , se fez guardiã autoritá ria r
Certos editores sustentaram que o conhecimento desses póstu -
da obra e da memória. Ela fez publicar um certo n ú mero de notas mos não traria nada de novo. De fato , quando um pensador como
póstumas . Os críticos lhe reprovam talvez menos as falsificações Nietzsche , um escritor como Nietzsche apresenta muitas versões
( as ú nicas que são evidentes se referem às cartas ) do que as defor - da mesma id éia , é evidente que essa id éia deixa de ser a mesma.
mações: ela afiançou a imagem de um Nietzsche anti-semita e pre- Alé m disso , as notas tomadas por Nietzsche em seus cadernos de-
cursor do nazismo - o anti- Nietzsche por excelência. viam servir não somente para retomadas , mudan ças, mas para fu -
&
turos livros. Seria absurdo pensar que ele tenha utilizado tudo ,
ainda mais absurdo pretender que as notas inéditas não conte-
nham nada de diferente das que foram publicadas. Citemos so-
Do ponto de vista da edição , o problema essencial é o do Nach-
mente dois exemplos . Em um caderno de 1875, Nietzsche estuda e
lass , por muito tempo identificado com o projeto de um livro que
critica de maneira detalhada um livro de Dú hring, Der Werth des
seria chamado Vontade de potê ncia . Já que não foi possível aos
Leberts . Como pretender que a publicação integral desse caderno
pesquisadores mais sé rios ter acesso ao conjunto dos manuscritos % não nos ensine nada sobre a formação e a significação do conceito
-
de Nietzsche , sabia se somente de maneira vaga que Vontade de li®*-
nietzschiano de valor? Todo um caderno de 1881 se refere a O eter -
potê ncia não existia como tal, que não era um livro de Nietzsche , fr
§ no retorno ; parece , a partir de Ecce homo , que Nietzsche tinha re-
mas resultava de um recorte arbitr ário operado nos póstumos no tomado essa caderneta justamente antes da doença. Neste caso
qual se misturavam anotações de data e de origem diversas. Em ainda, como negar que uma edição completa se impõe?
torno de um n úcleo de aproximadamente 400 “ notas” e de um pla- O fato novo é a liberdade de acesso aos manuscritos , após sua
no quadripartido , os primeiros editores tinham composto um vo- transferência do antigo Nietzsche-Archíu para o Goethe und Schil-
%
lume fictício. ler Archiv de Weimar , na Repú blica Democrática Alemã ( 1950 ) .

li
38 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1967 - Introdução Geral ( às Obras Filosóficas Completas de Nietzsche ) 39

Nossa leitura de Nietzsche é , por ele , profundamente modificada - a massa de fragmentos póstumos redigidos entre o outono de
em tr ês pontos essenciais . Podemos apreender as deformações 1882 e a derrocada final.
promovidas por Elisabeth Nietzsche e Peter Gast ; podemos desta- Com exceção das cartas e das obras musicais, eis que surge fi-
car os erros de data , os erros de leitura , as inumer áveis omissões nalmente na França uma tradução das obras completas de Nie-
i
que comportavam , até o presente , as edições do Nachlass . Por fim , tzsche , no momento mesmo em que uma edição cr í tica, estabeleci-
i-
e sobretudo , podemos conhecer a massa de inéditos . da a partir dos mesmos documentos, é publicada em língua alemã ,
Os Srs . Colli e Montinari , concluindo o imenso trabalho que con- e quando uma tradução italiana é realizada sob a direção dos Srs .
siste em examinar os arquivos de Weimar , determinaram a ú nica Colli e Montinari. A maioria das tradu ções francesas, mesmo as
via possível para uma publicação científica : editar o conjunto dos das obras já conhecidas , ser á nova. N ão esquecemos certamente o
cadernos seguindo a ordem cronol ógica. Sem d úvida , ocorria a que significou no in ício desse século o trabalho de Charles Andler e
Nietzsche reabrir um antigo caderno para acrescentar uma nota ; Henri Albert, nem a importância das traduções já feitas. Em deter -
I minados casos , pouco numerosos , estas ser ão retomadas .
ou no interior de um caderno , não seguir a ordem cronológica .
Daí decorre que cada caderno em seu conjunto pode ser datado ( e Desejamos que o novo dia , trazido pelos inéditos , seja o do retor-
isso ocorreria graças apenas às alusões pessoais e aos rascunhos no a Nietzsche . Desejamos que as notas que ele pôde deixar , com
das cartas ) e corresponde a um per íodo determinado da atividade seus múltiplos planos , resgatem aos olhos dos leitores todas as
criadora de Nietzsche . Ora , esses cadernos repercutem singular - suas possibilidades de combinação , de permutação, que conte-
mente nas obras publicadas de Nietzsche . Eles mostram de fato nham de agora para sempre , em maté ria nietzschiana , o estado
como Nietzsche retoma e transforma uma id éia anterior , como re- m inacabado do “ livro a advir ” .
nuncia a utilizar agora uma id éia que retomará mais tarde , como se
prepara ou se esboça uma id éia futura , em que momento se forma
tal ou qual grande conceito nietzschiano . Seria então preciso editar
o conjunto dos cadernos seguindo a sé rie cronológica , e conforme jL
os per í odos correspondentes aos livros publicados por Nietzsche .
Somente dessa maneira a massa de inéditos pode revelar seus m ú l- F>
tiplos sentidos .
A presente edição é estabelecida a partir dos textos manuscritos
tal como eles foram decifrados e transcritos pelos Srs. Colli e Mon - I '

i
tinari . As obras publicadas por Nietzsche tinham sido traduzidas
após a última edição publicada enquanto ele vivia. O conjunto in -
cluir á então:
- os escritos da juventude ;
- os estudos filológicos e os cursos de 1869 a 1878;
- todas as obras publicadas por Nietzsche de O nascimento da
trag édia ( 1872 ) a A gaia ciê ncia ( 1882 ) , cada uma sendo acompa-
nhada dos fragmentos póstumos que pertencem ao seu per íodo de
preparação e de redação ;
- as obras publicadas ou prontas para publicação entre 1882 e
1888 ( Assimfalou Zaratustra , Alé m do bem e do mal , Genealogia
da moral , O caso Wagner , O cresp úsculo dos í dolos , O Anticris to , ?
Ecce homo , Nietzsche contra Wagner , Os ditirambos de Dioní sio )
e as poesias inéditas do inverno de 1882- 1883 a 1888;

i
ir: 1967 - Nietzsche , Freud , Marx 41
Û

f Essas duas suspeitas , que se vêem aparecer já nos gregos , não


1967 desapareceram e ainda são contempor âneas , já que voltamos a
acreditar , precisamente , desde o século XIX , que os gestos mudos ,
as doenças, qualquer tumulto à nossa volta també m pode falar ; e
a mais do que nunca estamos à escuta de toda essa linguagem possí-
Nietzsche , Freud , Marx £ vel , tentando surpreender por baixo das palavras um discurso que
seria mais essencial.
Creio que cada cultura, quero dizer , cada forma cultural na civi-
lização ocidental, teve seu sistema de interpretação, suas técnicas ,
“ Nietzsche , Freud , Marx” , Cahiers de Royaumont , t. VI , Paris , Ed . de Minuit , 1967 ,
seus m étodos , suas maneiras pr óprias de supor que a linguagem
Nietzsche , ps. 183-200. ( Colóquio de Royaumont , julho de 1964. )
quer dizer outra coisa do que ela diz , e de supor que há linguagem
para alé m da pr ópria linguagem . Parece , portanto , que haveria
m uma empreitada a ser inaugurada para estabelecer o sistema ou o
Quando esse projeto de “ mesa redonda” me foi proposto , pare- ? quadro , como se dizia no século XVII , de todos esses sistemas de
ceu-me muito interessante , mas , evidentemente , bem espinhoso . &
interpretação .
Sugiro um viés: alguns temas relativos às técnicas de interpreta- Para compreender que sistema de interpretação o século XIX
! ção em Marx , Nietzsche e Freud . áv -
:
fundou e , conseqüentemente , de que sistema de interpretação nós ,
! Na realidade , por tr ás desses temas, há um sonho , que seria o de ainda hoje , fazemos parte , parece-me que seria necessário retomar
poder fazer , um dia , uma espécie de Corpus geral, de Enciclopédia uma refer ê ncia remota , um tipo de técnica , tal como pôde existir ,
de todas as técnicas de interpretação que pudemos conhecer dos por exemplo , no século XVI. Nesta é poca , o que dava lugar à inter -
gramáticos gregos aos nossos dias . Acredito que , até o presente , pretação , simultaneamente seu sítio geral e a unidade m í nima que
poucos capítulos desse grande corpus de todas as técnicas de inter - a interpretação tinha a tratar , era a semelhança . Lá onde as coisas
pretação foram redigidos. se assemelhavam , lá onde isso se parecia , alguma coisa queria ser
Parece-me que seria possível dizer o seguinte , como introdu ção dita e podia ser decifrada ; sabe-se bem o importante papel que de-
geral à id éia de uma história das técnicas de interpretação: a lin- sempenharam , na cosmologia , na botânica , na zoologia , na filoso-
guagem , em todo caso , a linguagem nas culturas indo-européias , fia do século XVI , a semelhança e todas as noções que giram em
sempre fez nascer dois tipos de suspeitas:
-
:
i
- inicialmente , a suspeita de que a linguagem não diz exatamente
o que ela diz . O sentido que se apreende , e que é imediatamente
torno dela como satélites . Na verdade , aos nossos olhos de homens
do século XX , toda essa rede de similitudes é sofrivelmente confusa
e embaralhada. De fato , no século XVI , esse corpus da semelhança
manifesto , é talvez , na realidade , apenas um sentido menor , que era perfeitamente organizado . Havia pelo menos cinco noções total-
protege , restringe e , apesar de tudo , transmite um outro sentido, mente definidas:
sendo este , por sua vez , o sentido mais forte e o sentido ‘‘por baixo ” . - a noção de conveniência, a conuenentia, que é ajustamento
É isso que os gregos chamavam de allegoria e hyponoï a. i
( por exemplo, da alma ao corpo , ou da sé rie animal à vegetal ) ;
- por outro lado , a linguagem faz nascer esta outra suspeita: que , - a noção de sympathe ï a , a simpatia , que é a identidade dos aci-
de qualquer maneira, ela ultrapassa sua forma propriamente ver - dentes nas distintas substâncias;
bal , que há certamente no mundo outras coisas que falam e não são - a noção de emulatio , que é o mais curioso paralelismo dos
linguagem . Afinal , é possível que a natureza , o mar , o sussurro das atributos nas subst âncias ou em seres distintos , de tal maneira
árvores , os animais, os rostos, as máscaras, as facas cruzadas , que os atributos são como o reflexo uns dos outros em uma subs-
tudo isso fale ; talvez haja linguagem se articulando de uma manei- tância e na outra . ( Assim , Porta explica que o rosto humano é ,
ra que não seria verbal. Isso seria , se vocês querem , muito grossei- com as setes partes que ele distingue , a emulação do cé u com seus
ramente , o semaï non dos gregos. sete planetas . ) ;
42 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1967 - Nietzsche , Freud , Marx 43

- a noção de stgnatura , a assinatura, que é , dentre as proprieda- com técnicas interpretativas . E o efeito de choque , a espécie de feri-
des visíveis de um indivíduo , a imagem de uma propriedade invisí- da provocada no pensamento ocidental por essas obras vem prova-
£
vel e escondida ; velmente do fato de elas reconstituírem aos nossos olhos alguma
í
'
'
- e de resto, certamente , a noção de analogia, que é a identidade coisa que , inclusive , o pr óprio Marx chamava de “ hier óglifos ” . Isso
das relações entre duas ou mais substâncias distintas. nos colocou em uma postura desconfortável , já que essas técnicas
Nesta é poca, a teoria do signo e as técnicas de interpretação se de interpretação nos implicam , visto que nós mesmos, inté rpretes ,
* :?
baseavam em uma definição perfeitamente clara de todos os tipos somos levados a nos interpretar por essas técnicas. É com essas
possíveis de semelhança , e elas fundavam dois tipos de conheci-
mento completamente distintos: a cognitio , que era a passagem , de
técnicas de interpretação que , em compensação, devemos interro
gar esses intérpretes que foram Freud , Nietzsche e Marx, embora
-
qualquer forma lateral, de uma semelhança à outra ; e a diuinatio , sejamos remetidos perpetuamente a um perpé tuo jogo de espe-
que era o conhecimento em profundidade , indo de uma semelhan- lhos.
ça superficial a outra mais profunda. Todas essas semelhanças Freud fala , em algum lugar , que há tr ês grandes feridas narcí -
manifestam o consensus do mundo que as funda; elas se opõem ao sicas na cultura ocidental: a ferida imposta por Copérnico; aquela
simulacrum , a má semelhança, que repousa na dissensão entre I feita por Darwin , quando ele descobriu que o Homem descendia do
Deus e o Diabo. macaco; e a ferida feita por Freud , já que ele pr óprio , por sua vez ,
descobriu que a consciê ncia repousava na inconsciê ncia5. Eu me
pergunto se não seria possível dizer que Freud , Nietzsche e Marx ,
Se essas técnicas de interpretação do século XVI foram deixadas
! nos envolvendo em uma tarefa de interpretação que sempre se re-
flete sobre si mesma , constitu íram à nossa volta , e para nós, esses
em suspenso pela evolução do pensamento ocidental nos séculos
espelhos , de onde nos são enviadas as imagens , cujas feridas ines-
XVII e XVIII , se a cr ítica baconiana , a cr ítica cartesiana da seme-
lhança desempenharam certamente um grande papel para colo-
m. gotáveis formam nosso narcisismo atual. Em todo caso - e é sobre
Isso que eu gostaria de dar algumas sugestões - não me parece que ,
cá-las entre par ê nteses, o século XIX e , muito singularmente , Marx,
de qualquer forma , Marx, Nietzsche e Freud tenham multiplicado
Nietzsche e Freud nos põem diante de uma nova possibilidade de
OS signos no mundo ocidental. Eles não deram um sentido novo a
h interpretações ; eles fundaram novamente a possibilidade de uma
coisas que não tinham sentido . Na realidade , eles mudaram a natu -
hermenê utica.
i O primeiro livro do Capital 1 , textos como O nascimento da tra-
reza do signo e modificaram a maneira pela qual o signo em geral
podia ser interpretado.
g édia2 e Genealogia da moral 3 , a Traumdeutung 4 nos confrontam
A primeira questão que eu gostaria de colocar é a seguinte: Marx ,
Freud e Nietzsche modificaram profundamente o espaço de distri-
1 . Marx ( K . ) , Das Kapital . Krtt í k der politischen Oekonomie , livro I : Der Produk - buição no qual os signos podem ser signos?
tionsprozess des Kap í tals , Hamburgo , O . Meissner , 1867 ( Le capital . Critique de Na época que tomei como ponto de refer ê ncia, no século XVI , os
l ’ é conomie politique , livro I : Le dé veloppement de la production capitaliste , trad . Signos se distribu íam de uma maneira homogénea em um espaço
J . Roy, revista por M . Rubel , in Oeuvres , t . I : É conomie , Paris , Gallimard , col . que era ele próprio homogéneo, e em todas as direções. Os signos

Bibliothè que de la Pléiade" , 1965 , ps . 630- 690 ) .
1
2 . Nietzsche ( F . ) , Die Geburt der Tragodte . Oder : Griechenthum und Pesstmismus , I
da terra remetiam ao cé u , mas também ao mundo subterrâneo,
Leipzig, E . W . Fritzsch , 1872 ( La naissance de la trag é die . Ou hell é nit é et
pessimisme , trad . P. Lacoue -Labarthe , in Oeuvres philosophiques complè tes ,
!
1 6 . Alusão à tr íplice humilhação infligida ao narcisismo do Homem por Nicolau
Paris , Gallimard , t . I , 1977 , ps . 23- 156 ) .
3 . Nietzsche ( F . ) , Zur Genealogie der Moral , Leipzig, C . G . Naumann , 1887 ( La .. Copé rnico ( “ humilhação cosmológica" ) , Charles Darwin ( “ humilhação biológica” ) e
g é né alogie de la morale , trad . I . Hildenbrand e J . Gratien , in Oeuvres philoso- Sigmund Freud ("humilhação psicológica” ) da qual fala Freud em Eine Schwie -
phiques compl è tes , Paris , Gallimard , t . VII , 1971 , ps . 213-347 ) . Hgkeit der Psychoanalyse , 1917 ( Une difficult é de la psychanalyse , trad . M .
4 . Freud ( S . ) , Die Traumdeutung , Viena , Franz Deuticke , 1900 ( L’ interpr é tation Bonaparte e E . Marty , in Essais de psychanalyse appliqué e , Paris , Gallimard , col .
des rê ves , trad . D . Berger , Paris , PUF , 1967 ) . “ Les essais” , nfi 61 , 1933, ps . 141 - 147 ) .
44 Michel Foucault - Ditos e Escritos ï 6
à 1967 - Nietzsche , Freud , Marx 45

I bruma para mostrar de fato que não há monstros nem enigmas


eles remetiam do homem ao animal , do animal à planta , e vice-
? versa . A partir do século XÍX - ou seja, desde Freud , Marx e Nie - profundos , porque tudo o que existe de profundidade na concep-
tzsche - os signos foram escalonados em um espaço muito mais di- ção que a burguesia tem da moeda , do capital, do valor etc . não
ferenciado , segundo uma dimensão que se poderia chamar de a da passa , na verdade , de platitude .
profundidade , desde que não a entendamos como interioridade , E , certamente , seria necessário chamar o espaço de interpreta-
mas , ao contr ário , como exterioridade . ção que Freud constituiu , não somente na famosa topologia da
Penso , em particular , nesse longo debate que Nietzsche não ces- Consciência e do Inconsciente , mas també m nas regras que ele for -
sou de manter sobre a profundidade . Há em Nietzsche uma cr í tica mulou relativas à atenção do psicanalista e à decifração pelo analis-
da profundidade ideal , da profundidade de consciê ncia , que ele de- ta do que se diz durante o desenrolar da “ cadeia” falada. Seria ne-
nuncia como uma invenção dos filósofos ; essa profundidade seria cessário relembrar a espacialidade , no final das contas muito ma-
busca pura e interior da verdade . Nietzsche mostra como ela impli- terial , à qual Freud atribuiu tanta importância , e que instala o do-
ca a resignação, a hipocrisia , a máscara ; embora o inté rprete deva , ente sob o olhar inclinado do psicanalista. :

!
ao percorrer os signos para denunciá-los , descer até o fim da linha
vertical e mostrar que essa profundidade da interioridade é , na ver -
dade , outra coisa do que ela diz. E preciso , conseq üentemente , que O segundo tema que gostaria de lhes propor , e que inclusive está
o inté rprete desça, que seja, como ele pr ó prio diz , “ o bom escava- um pouco ligado a esse , seria indicar , a partir desses tr ês homens
dor dos subterrâ neos” 6 . de que falamos há pouco , que a interpretação finalmente tornou-se
Mas , na realidade , apenas se pode percorrer essa linha descen- uma tarefa infinita.
dente quando se interpreta para restituir a exterioridade cintilante Na verdade , ela já o era no século XVI , mas os signos remetiam
que estava recoberta e soterrada . Porque , se o pró prio inté rprete uns aos outros simplesmente porque a semelhança só pode ser li-
deve ir até o fundo como um escavador , o movimento de interpreta- mitada . A partir do século XIX, os signos se encadeiam em uma
ção é , ao contr á rio , o de um desaprumo, de um desequilíbrio cada rede inesgotável , ela também infinita , não porque repousem em
vez maior , que deixa sempre , acima dele , a profundidade revelar -se uma semelhança sem limite , mas porque há uma hiâ ncia e abertu -
de uma maneira cada vez mais visível ; a profundidade é então resti- ra irredutíveis.
tu ída como segredo absolutamente superficial, de tal maneira que O inacabado da interpretação , o fato de que ela seja sempre reta -
o vôo da águia , a ascensão da montanha , toda essa verticalidade lhada, e permaneça em suspenso no limite dela mesma , é encon -
r tão importante em Zaratustra é , no sentido estrito, a reviravolta da trado, acredito , de uma maneira bastante análoga em Marx , Nie-
profundidade , a descoberta de que a profundidade não passava de tzsche e Freud , sob a forma da recusa do começo . Recusa da “ ro-
um jogo e de uma dobra da superf ície . À medida que , sob o olhar , o btnsonade ” , dizia Marx; distinção , tão importante em Nietzsche ,
mundo se torna mais profundo, nos apercebemos de que tudo o entre o começo e a origem ; e caráter sempre interminável do pro-
que exerceu a profundidade do homem não passava de uma brin- cesso regressivo e analítico em Freud . É sobretudo em Nietzsche e
cadeira de crian ça. em Freud , inclusive , e em menor grau em Marx, que se vê delinear
Essa espacialidade , esse jogo de Nietzsche com a profundidade , .. W essa experiê ncia , que acredito ser tão importante para a hermenêu-
eu me pergunto se eles não podem ser comparados ao jogo , apa- f.
tica moderna , de que , quanto mais longe vamos na interpretação ,
rentemente diferente , que Marx fez com a platitude. O conceito de ao mesmo tempo mais nos aproximamos de uma região absoluta-
platitude é muito importante em Marx; no começo do Capital , ele 4. mente perigosa , na qual a interpretação vai encontrar não só seu
explica como, diferentemente de Perseu , ele deve mergulhar na & ponto de retrocesso, mas onde ela pr ópria vai desaparecer como
interpretação, ocasionando talvez o desaparecimento do pr ó prio
t

’ *

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Inté rprete. A existê ncia sempre aproximativa do ponto absoluto da
6 . ( N .A. ) Nietzsche ( F. ) , Morgenròthe , Leipzig, C. G . Naumann , 1880. Aurore . r Interpretação seria , simultaneamente , a aproximação de um ponto
Pensées sur les préjug és moraux , § 446: “ Hiérarchie” . ( Trad . Julien Hervier , de ruptura.
Oeuvres philosophiques complè tes , Paris, Gallimard , t. IV , 1980 , p. 238 ( N.E . ) . )

Í - vJish v '
m
46 Michel Foucault - Ditos e Escritos I 1967 - Nietzsche , Freud , Marx 47

Em Freud , sabe-se claramente como é feita progressivamente a longo de toda a sua vida, não sem angústia. Essa experiê ncia da
descoberta desse car áter estruturalmente aberto da interpretação , loucura seria a sanção de um movimento de interpretação, que se
estruturalmente vazio . Ela foi feita inicialmente de uma maneira aproxima infmitamente do seu centro , e que desmorona, calcinada.
muito alusiva , muito velada a si mesma na TraumcLeutung , quan-
I do Freud analisa seus pr óprios sonhos, e invoca razões de pudor
ou de não-divulgação de um segredo pessoal para se interromper . Esse aspecto essencial de inconclusão da interpretação , creio
Na análise de Dora , vemos aparecer essa idéia de que a interpre- que está ligado a dois outros princípios , també m fundamentais , e
ta o deve deter-se , não pode ir até o fim por causa de alguma coisa
çã que constituiriam com os dois primeiros , de que acabo de falar , os
que ser á chamada , alguns anos mais tarde , de transferê ncia . E de- postulados da hermenêutica moderna. Inicialmente este: se a inter -
pois se afirma , ao longo de todo o estudo da transfer ê ncia , o inter - I pretação nunca pode se concluir , é muito simplesmente porque
minável da análise , no caráter infinito e infinitamente problemático nada há a interpretar. Nada há de absolutamente primeiro a inter -
da relação do analisando com o analista, relação que é evidente- pretar , pois no fundo tudo já é interpretação; cada signo é nele
mente constituinte para a psicanálise , e que abre o espaço no qual mesmo não a coisa que se oferece à interpretação , mas interpreta-
ela não cessa de se desdobrar , sem nunca poder terminar . ção de outros signos .
Em Nietzsche , també m , é evidente que a interpretação é sempre Nunca há, se vocês querem , um interpretandum que não seja já
inacabada . O que é , para ele , a filosofia , senão uma espécie de filo- interprétons , embora seja estabelecida , na interpretação, uma re-
logia sempre em suspenso , uma filologia sem té rmino , desenvolvi- lação tanto de violê ncia como de elucidação . De fato, a interpreta -
da sempre mais adiante , uma filologia que nunca seria absoluta- ção não esclarece uma maté ria a interpretar , que se ofereceria a ela
mente fixada? Por quê? Porque , como ele o diz em Alé m do bem e passivamente ; ela pode apenas apoderar -se , e violentamente , de
do mal , “ morrer pelo conhecimento absoluto bem poderia fazer m& uma interpretação já ali, que ela deve subverter , revirar , quebrar a
parte do fundamento do ser ” 7. E , no entanto, ele mostrou em Ecce marteladas.
homo8 o quanto ele estava pr óximo desse conhecimento absoluto Vemos isso já em Marx, que não interpreta a história das rela-
que faz parte do fundamento do Ser . Da mesma forma , durante o mr ções de produção , mas uma relação já se oferecendo como inter -
outono de 1888, em Turim . pretação, já que ela se apresenta como natureza. Da mesma forma ,
Freud não interpreta signos , mas interpretações . O que Freud des-
1

Se , na correspond ência de Freud , deciframos suas perpé tuas
cobre , de fato , sob os sintomas? Ele não descobre , como se diz , os
preocupações desde o momento em que ele descobriu a psicanáli- i§
“ traumatismos” ; ele revela os fantasmas * , com sua carga de an -
se , podemos nos perguntar se a experiê ncia de Freud não é , no fun-
do , bem semelhante à de Nietzsche . O que está em questão no pon- W
gústia , ou seja , um núcleo que já é ele pr óprio, em seu pr óprio ser ,
to de ruptura da interpretação, nessa convergê ncia da interpreta-
F uma interpretação. A anorexia , por exemplo, não remete ao desma-
C me , como o significante remeteria ao significado , mas a anorexia
ção na direção de um ponto que a torna impossível , poderia ser como signo , sintoma a interpretar , remete aos fantasmas do seio
certamente alguma coisa como a experiê ncia da loucura. mau materno, que já é em si mesmo uma interpretação, que já é em
Experiê ncia contra a qual Nietzsche se debateu e pela qual ele si mesmo um corpo falante. Eis por que Freud só tem a interpretar
era fascinado ; experiê ncia contra a qual o pr óprio Freud lutou ao na linguagem de seus pacientes o que eles lhe oferecem como sinto-
mas; sua interpretação é a interpretação de uma interpretação , nos
7 . ( N . A . ) Nietzsche ( F. ) , Jenseits von Gut und Bòse . Vorspiel einer Philosophie der termos em que essa interpretação é dada. Sabe-se claramente que
Zukunft Leipzig, C. G . Naumann , 1886 . { Par -del à le bien et le mal . Pré lude d ’ une Freud inventou o superego no dia em que um paciente lhe disse :
philosophie de l ’ avenir , trad . C . Heim , in Oeuvres philosophiques compl è tes , “ Sinto um cachorro em cima de mim . ”
Paris , Gallimard , t . VII , 1971 , § 39 , p . 56 ( N . E . ) . )
8 . Nietzsche ( F. ) , Ecce homo . Wie man wird , was man ist , Leipzig , C . G . Naumann , •( N . R . ) Preferimos a tradução defantasme por fantasma em português , como se fez
1889 ( Ecce homo . Comment on devient ce que Von est , trad . J . -C . H émery , in
em espanhol , de acordo com o significante da língua francesa .
Oeuvres philosophiques compl è tes . Paris, Gallimard , t . VIII , 1974 , ps . 237- 341 ) .
48 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1967 - Nietzsche , Freud , Marx 49

1A ^
Da mesma forma , Nietzsche se apodera de interpretações que já tal . E assim que funcionam os sintomas para Freud . E , em Nie-
se apoderaram umas das outras. Não há para Nietzsche um signifi- tzsche , as palavras , a justiça, as classificações binárias do Bem e
Í C;
cado original . As pr óprias palavras não passam de interpretações ; do Mal, conseqüentemente os signos , são máscaras . O signo , ad -
'

I
ao longo de sua história , elas interpretam antes de serem signos , e quirindo essa nova função de recobrimento da interpretação , per -
I só significam finalmente porque são apenas interpretações essen- de seu ser simples de significante que possu ía ainda na é poca do
ciais . E o que testemunha a famosa etimologia de agathos9. É tam- Renascimento , sua densidade própria vem como que se abrir , e po-
bé m o que diz Nietzsche , quando ele fala que as palavras sempre dem então se precipitar na abertura todos os conceitos negativos Û
foram inventadas pelas classes superiores ; elas não indicam um que até agora tinham permanecido alheios à teoria do signo . Esta
significado , impõem uma interpretação. Conseqüentemente , não é conhecia apenas o momento transparente e quase negativo do véu .
porque há signos primeiros e enigmáticos que estamos agora dedi- Agora poder á organizar -se no interior do signo todo um jogo de
cados à tarefa de interpretar , mas , sim , porque há interpretações , conceitos negativos , de contradições, de oposições , enfim , o con -
porque não cessa de haver , debaixo de tudo o que se fala, a grande junto desse jogo de for ças reativas que Deleuze tão bem analisou
trama das interpretações violentas. É por essa razão que há signos , em seu livro sobre Nietzsche .
“ Repor a dialética sobre seus pés” , se essa expressão deve ter um
signos que nos prescrevem a interpretação de sua interpretação ,
que nos prescrevem revir á-los como signos. Neste sentido , pode-se sentido , não seria justamente ter recolocado na densidade do signo ,
dizer que a allegoria e a hyponoia são , no fundo e antes dela , lin- nesse espaço aberto , sem fim , vazio, nesse espaço sem conteú do real
nem reconciliação , todo esse jogo da negatividade que a dialé tica ti-
?
guagem , não aquilo que deslizou a posteriori sob as palavras para
nha finalmente neutralizado dando-lhe um sentido positivo?
deslocá-las e fazê-las vibrar , mas aquilo que fez nascer as palavras , f
que as faz cintilar em um clar ão que nunca se fixa. Eis por que tam-
bé m o inté rprete , para Nietzsche , é o “ verídico” ; ele é o “ verdadei-
{
ro” , não porque se apodera de uma verdade adormecida para pro- Enfim , ú ltima caracter ística da hermenêutica : a interpretação se
> feri-la , mas porque ele pronuncia a interpretação que toda verdade confronta com a obrigação de interpretar a si mesma infinitamen -
? tem por função velar . Talvez essa primazia da interpretação em re- £ te , de sempre se retomar . Donde duas conseq üê ncias importantes .
lação aos signos seja o que há de mais decisivo na hermenêutica A primeira é que a interpretação ser á sempre , desde então , inter -
moderna . » pretação através do “ quem?” ; não se interpreta o que há no signifi-
A id é ia de que a interpretação precede o signo implica que o sig- cado, mas , no fundo , quem colocou a interpretação . O princípio da
no não seja um ser simples e generoso , como era o caso ainda no interpretação nada mais é do que o inté rprete . E talvez seja esse o
século XVI , em que a pletora dos signos , o fato de as coisas se asse- sentido que Nietzsche deu à palavra “ psicologia” . A segunda conse-
melharem provavam simplesmente a benevolê ncia de Deus , e ape- qüência é que a interpretação tem sempre que interpretar a si mes-
nas afastavam por um vé u transparente o signo do significado . Ao ma , e não pode deixar de retornar a si mesma. Em oposição ao
contr ário , desde o século XIX, a partir de Freud , Marx e Nietzsche , tempo dos signos , que é um tempo do fracasso , e em oposição ao
parece -me que o signo vai se tornar malévolo; quero dizer que há tempo da dialé tica , que , apesar de tudo , é linear , há um tempo da
no signo uma maneira ambígua e um pouco equivocada de malque- interpretação , que é circular . Esse tempo é , certamente , obrigado a
rer e de “ malevolê ncia” . E isso na medida em que o signo já é uma passar novamente por onde ele já passou , o que faz com que final-
interpretação que não se d á como tal . Os signos são interpretações mente o ú nico perigo que a interpretação realmente corra , mas é
que tentam se justificar , e não o inverso. um perigo supremo , sejam paradoxalmente os signos que a fazem
Assim funciona a moeda, tal como a vemos definida na Critique
de l’ économie politique , e sobretudo no primeiro livro do Capi- 10. Marx ( K. ) , Zur Krittk derpolttischen Oekonomie , Berlim , Franz Dancker , 1859
[ Critique de l’ économie politique , trad . M . Rubel e L. Évrard , 1- seção: Le capital en
g é néral , Capítulo II : “ La monnaie” , in Oeuvres , t. I: É conomie , Paris, Gallimard ,
9 . ( N .A . ) Cf . La g é néalogie de la morale , op . cit . , 1- dissertação , §§ 4 e 5. col. "Bibliothèque de la Pléiade ” , 1965, ps. 317- 452 ) .
50 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1967 - Nietzsche , Freud , Marx 51

deslizar . A morte da interpretação é acreditar que há signos , signos Uma coisa é certa: a importância do signo , pelo menos uma certa
que existem primeiramente , originalmente , realmente , como mar - n mudan ça na importância e no cr édito que se dava ao signo , produ -
cas coerentes , pertinentes e sistemáticas. ziu -se no final do século XVIII ou no in ício do XIX , por razões que
A vida da interpretação , pelo contr ário , é acreditar que só há in- são muito numerosas. Por exemplo , a descoberta da filologia , no
terpretações . Parece- me que é preciso compreender uma coisa que sentido clássico do termo , a organização da rede das línguas in-
muitos de nossos contempor âneos esquecem , que a hermenê utica do-européias , o fato de os métodos de classificação terem perdido
e a semiologia são dois inimigos implacáveis. Uma hermenêutica, sua utilidade , tudo isso provavelmente reorganizou inteiramente
que se restringe de fato a uma semiologia, acredita na existê ncia nosso mundo cultural dos signos. Coisas como a filosofia da natu-
absoluta dos signos: ela abandona a violência , o inacabado , a infi- reza , entendida em um sentido muito amplo , não somente em He-
nitude das interpretações, para fazer reinar o terror do índice e gel , mas em todos os contempor âneos alemães de Hegel , são , sem
suspeitar da linguagem. Reconhecemos aqui o marxismo , após d úvida , a prova dessa alteração no regime dos signos produzida na
i * Marx. Ao contr ário , uma hermenêutica que se envolve consigo mes- cultura naquele momento.
¥
ma entra no domínio das linguagens que não cessam de implicar a Tenho a impressão de que seria , digamos , mais fecundo, atual- Ij
si mesmas , essa região intermediá ria entre a loucura e a pura lin - \\ mente , em relação ao tipo de problema que nos colocamos , ver na
guagem . E ali que reconhecemos Nietzsche . id éia da mistificação da consciê ncia um tema nascido talvez mais
da modificação do regime fundamental dos signos do que encon -
Ü

n trar aí , ao contr ário , a origem da preocupação em interpretar .


Discussão Sr. Taubes : A análise de M . Foucault não é incompleta? Ele n ão
levou em conta as técnicas de exegese religiosa , que tiveram um pa -
Sr. Boehm : Você mostrou claramente que , em Nietzsche , a in - pel decisivo. E ele não seguiu a articulação histórica verdadeira .
terpretação nunca cessa e que ela constitu ía a pr ó pria trama da Apesar do que M . Foucault acaba de dizer , parece-me que a inter -
realidade . Inclusive , para Nietzsche , interpretar o mundo e mu - pretação no século XIX começa com Hegel.
d á-lo não são duas coisas diferentes . Mas isso vale para Marx? Em !
f Sr. Foucault : Não me referi à interpretação religiosa que , de
um texto célebre , ele opõe mudança do mundo e interpretaçã o do fato , teve extrema importância , porque , na muito resumida história
4
mundo . . . I que tracei , localizei-me do lado dos signos , e não do lado do senti-
Sr. Foucault : Eu esperava que essa frase de Marx me fosse con- m . do. Quanto ao corte do século XIX, podemos atribu í-lo a Hegel.
traposta. De qualquer forma , se você se reportar à economia políti- Mas , na história dos signos , tomados em sua mais ampla extensão ,
li
ca , observar á que Marx a trata sempre como uma maneira de inter - a descoberta das línguas indo-européias , o desaparecimento da
pretar . O texto sobre a interpretação diz respeito à filosofia e ao fim WM gramática geral , a substituição do conceito de organismo pelo con-
da filosofia . Mas ser á que a economia política , tal como Marx a con- ceito de car áter não são menos “ importantes ” do que a filosofia he-
cebe , seria capaz de constituir uma interpretação que não fosse geliana. É preciso não confundir história da filosofia e arqueologia
condenável , na medida em que ela pudesse levar em conta a mu - do pensamento.
dança do mundo e , de alguma forma , a interiorizasse? mt - Sr. Vattimo : Se eu o compreendi bem , Marx deveria ser classifi-
v
Sr. Boehm : Outra questão: o essencial , para Marx, Nietzsche e
'

T
cado entre os pensadores que , como Nietzsche , descobrem o inter -
Freud não está na id éia de uma automistificação da consciê ncia? minável da interpretação. Estou inteiramente de acordo com você
N ão se trata aí dessa nova id éia , que não surge antes do século XIX no que se refere a Nietzsche . Mas , em relação a Marx, não há neces-
e que encontraria sua fonte em Hegel? sariamente um ponto de chegada? O que quer dizer a infra-
Sr. Foucault : Foi negligê ncia minha não dizer que essa não era estrutura senão alguma coisa que deve ser considerada como
precisamente a questão que eu queria colocar . Eu quis tratar da in- base?
terpretação como tal. Por que somos levados a interpretar? Ser á Sr. Foucault : Em relação a Marx , quase não desenvolvi minha
por influ ê ncia de Hegel? id éia ; temo mesmo não poder demonstr á-la ainda. Mas tomem o
3L
52 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1967 - Nietzsche , Freud , Marx 53

Dezoito brumárion , por exemplo: Marx jamais apresenta sua in- I Sr. Foucault: Oh , eu não diria que ele sucumbiu! É claro que
terpretação como interpretação final . Ele sabe claramente , e o diz , existe , nas técnicas de interpretação de Nietzsche , alguma coisa
i que se poderia interpretar em um n ível mais profundo , ou em um que é radicalmente diferente , e que faz corn que não se possa , se vo-
n ível mais geral , e que não há explicação que seja rasteira . cês querem , inscrevê-lo nos corpos constituídos que representam ,
?
;
Sr. Wahl : Creio existir uma guerra entre Nietzsche e Marx , e en- atualmente , por um lado , os comunistas e , por outro , os psicana-
tre Nietzsche e Freud , apesar de haverem analogias. Se Marx tem listas. Os nietzschianos não tê m , do ponto de vista do que eles in-
razão , Nietzsche deve ser interpretado como um fenômeno da bur- terpretam ...
guesia de sua época . Se Freud tem razão , seria preciso analisar o Sr. Wahl : Há nietzschianos? Duvidava-se disso essa manhã!
Sr. Baroni: Gostaria de lhe perguntar se você concorda que entre
t* inconsciente de Nietzsche . Vejo então uma espécie de guerra entre
Nietzsche e os outros dois. Nietzsche , Freud e Marx o paralelo poderia ser o seguinte: Nie- i
Não é verdade que temos interpretações em demasia? Estamos tzsche , em sua interpretação , busca analisar os bons sentimentos e
“ obsedados pela interpretação” . Sem d úvida , é preciso interpretar mostrar o que eles escondem na realidade ( tal como na Genealogia
sempre. Mas há sempre o que interpretar? E me pergunto ainda : da moral ) . Freud , na psicanálise , vai desvelar o que é o conteú do «
quem interpreta? E , por fim: estamos sendo enganados , mas por latente : e , aqui também , a interpretação ser á bastante catastr ófica
quem? Há um mistificador , mas quem é ele? Há sempre uma plu- para os bons sentimentos. Enfim , Marx atacará a boa consciê ncia
ralidade de interpretações: Marx, Freud , Nietzsche , e também Go- da burguesia, e mostrar á o que existe no fundo . Embora as tr ês in-
bineau . . . Há o marxismo , a psicanálise , há ainda , digamos , as in- terpretações pareçam estar dominadas pela id é ia de que há signos
terpretações raciais. . . a traduzir , dos quais é preciso descobrir a significação , mesmo se
Sr. Foucault : Creio que o problema da pluralidade das interpre- essa tradução não é simples e deva ser feita em etapas , talvez infini-
tações, da guerra das interpretações se tornou estruturalmente ! .
.
tamente.
possível pela pr ópria definição da interpretação como aquilo que s
3
Mas existe , me parece , um outro tipo de interpretação em psi-
não tem fim , sem que haja um ponto absoluto a partir do qual ela i cologia , que é totalmente oposta , e que nos remete ao s éculo XVI
se julga e se decide . De maneira que isso , o pr óprio fato de que este- do qual você falou . É a de Jung, que denunciava , precisamente ,
1 no tipo de interpretaçã o freudiana , o veneno depreciativo . Jung
jamos dedicados a ser interpretados no momento mesmo em que
interpretamos , todo inté rprete deve sabê-lo . Essa pletora de inter - opõe o sí mbolo ao signo , o signo sendo o que deve ser traduzido
pretações é , certamente , um traço que caracteriza profundamente em seu conte ú do latente , enquanto o sí mbolo fala por si mesmo .
a cultura ocidental atualmente . Se eu disse há pouco que me parecia que Nietzsche estava do
Sr. Wahl : Há , de qualquer forma , pessoas que nã o sã o int é r - lado de Freud e de Marx , creio de fato que , em rela çã o a esse pon -
W
pretes. to , Nietzsche pode tamb é m ser aproximado de Jung. Tanto para
Sr. Foucault : Neste momento , elas repetem , repetem a pr ó pria & Nietzsche , como para Jung, há uma oposição entre o “ eu ” e o “ si ” ,
linguagem . entre a pequena e a grande razão . Nietzsche é um int é rprete ex-
Sr. Wahl : Por quê? Por que dizer isso? Pode-se , naturalmente , in- » tremamente agudo, e mesmo cruel , mas há nele uma certa manei-
terpretar Claudel de múltiplas maneiras, à maneira marxista, ao mo- ra de se colocar à escuta da “ grande raz ã o” , o que o aproxima de
do freudiano , mas , apesar de tudo, o importante é a obra de Claudel. Jung.
Quanto à obra de Nietzsche , é mais dif ícil dizer . Em relação às inter- Sr. Foucault : Sem d úvida , você tem razão.
pretações marxistas e freudianas , ele arrisca sucumbir ... Srta. Ramnoux: Gostaria de retornar a um ponto: por que você
não falou do papel da exegese religiosa? Parece-me que talvez não
se possa neglicenciar a questão das traduções , porque , no fundo ,
11 . Marx ( K. ) , Der Achtzehnte Brumaire des Louis Bonaparte , in Die Revolution. todo tradutor da Bíblia considera que ele diz o sentido de Deus , e
Eine Zeitschrift in zwanglosen Hejten , Ed . J. Weydemeyer , Erstes Heft , Nova que, conseqúentemente , deve colocar ali uma consciê ncia infinita.
-
Iorque , 1852 ( Le dix huit brumaire de Louis Bonaparte , Paris, Éditions Sociales , Finalmente , as traduções evoluem com o tempo , e alguma coisa se
1962 ) .
54 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1967 - Nietzsche , Freud , Marx 55

revela através dessa evolu ção das tradu ções. E uma questão muito Sr. Demonbynes : Sobre Nietzsche , você disse que a experiê ncia
complicada . . . da loucura era o ponto mais pr óximo do conhecimento absoluto .
Antes de ouvi-lo , eu també m refletia sobre as possíveis relações Eu lhe pergunto em que medida , do seu ponto de vista, Nietzsche
entre Nietzsche e Freud . Se tomarmos o índice das obras comple- teve a experiência da loucura? Se você tiver tempo , naturalmente ,
tas de Freud , e como suplemento o livro de Jones , encontraremos seria muito interessante colocar a mesma questão a respeito de ou -
no final das contas muito pouca coisa. De repente , eu me disse: o tros grandes homens , sejam eles poetas ou escritores, como Hõl-
problema é inverso. Por que Freud se cala sobre Nietzsche? derlin , Nerval ou Maupassant , ou mesmo músicos , como Schu -
Ora , em relação a isso , há dois pontos. O primeiro é que , em mann , Henri Duparc ou Maurice Ravel. Mas fiquemos no piano de
1908, creio , os alunos de Freud , ou seja, Rank e Adler , tomaram Nietzsche . Ser á que compreendi bem? Pois você falou claramente
como tema de um de seus pequenos congressos as semelhanças ou dessa experiência da loucura. Foi isso , na verdade , o que você quis
as analogias entre as teses de Nietzsche ( particularmente na Genea- dizer?
logia da moral ) e as teses de Freud . Freud permitiu que o fizessem , Sr. Foucault : Sim.
mas guardou extrema reserva , e creio que o que ele disse neste mo- Sr. Demonbynes : Você não quis dizer “ consciência” ou “ pres-
ciência” , ou pressentimento da loucura? Você acredita verdadeira-
mento foi mais ou menos o seguinte: Nietzsche traz muitas idéias
ao mesmo tempo. mente que possa existir . . . que grandes homens como Nietzsche
possam ter tido “ a experiê ncia da loucura” ?
ï O outro ponto é que , desde 1910 , Freud inicia seu contato com
Sr. Foucault : Eu lhe respondo: sim , sim .
Lou Salomé ; sem d úvida , ele fez um esboço ou uma análise didá ti-
Sr. Demonbynes: N ão compreendo o que isso quer dizer , por -
ca de Lou Salomé 12 . Conseqúentemente , devia haver , através de
que eu não sou um grande homem.
Lou Salom é , uma espécie de relação médica entre Freud e Nie-
: Sr. Foucault : Eu não disse isso .
tzsche . Ora , ele não podia falar sobre isso. Mas o certo é somente
Sr. Kelkel : Minha questão ser á muito breve: ela se relaciona , no
que tudo o que Lou Salomé publicou depois faz parte , no fundo , de
fundo, com o que você chamou de “ técnicas de interpretação” , nas
sua análise interminável. Seria preciso lê-lo nessa perspectiva . A
13 quais você parece ver , eu não diria um substituto, mas em todo
seguir , encontramos o livro de Freud , Moï se et le monothéisme , caso um sucessor , uma sucessão possível à filosofia . Você concor -
em que h á uma espécie de diálogo de Freud com o Nietzsche de Ge - da que essas técnicas de interpretação do mundo são antes de tudo
nealogia da moral - veja, eu apenas lhe submeto os problemas ; técnicas de “ terapêutica” , técnicas de “ cura” , no sentido mais am -
você poderia acrescentar alguma coisa? plo do termo: da sociedade em Marx, do indivíduo em Freud e da
Sr . Foucault : Não , não sei rigorosamente nada mais. Fiquei real- humanidade em Nietzsche?
mente surpreso com o espantoso silê ncio , com exceção de uma ou Sr. Foucault : Penso de fato que o sentido da interpretação , no
duas frases , de Freud em relação a Nietzsche , mesmo em sua cor - século XIX , certamente se aproximou do que você concebe por tera-
respond ê ncia . É realmente muito enigmático. A explicação pela pêutica. No século XVI , a interpretação talvez encontrasse seu sen-
análise de Lou Salomé , o fato de ele não poder falar disso ... tido do lado da revelação, da salvação. Eu lhe citarei simplesmente
Srta. Ramnoux : Ele não queria dizer mais nada sobre isso... uma frase de um historiador chamado Garcia: “ Em nossos dias -
diz ele , em 1860 - a saúde substituiu a salvação” .
12 . Refer ência à correspondência entre Lou Andreas-Salomé e Freud , que se esten -
de por um quarto de século . Lou Andreas -Salomé , Correspondance avec Sigmund
Freud ( 1912 - 1936 ) . Seguida do Journal d ’ une ané e { 1912 - 1913 ) , trad . L . Jumel ,
Paris , Gallimard , col . “ Connaissance de l'inconscient” , 1970 .
13 . Freud ( S . ) , Der Mann Moses und die Monotheistische Religion . Drei Abhand -
lungen . Amsterdam , Allert de Lange , 1939 ( L ’ homme Mo ï se et la religion mono-
thé iste . Trois essais , trad . C. Heim , Paris , Gallimard , col . “ Connaissance de
l ’ inconscient” , 1986 ) .
1967 - A Filosofia Estruturalista Permite Diagnosticar o Que É “ a Atualidade" 57

1967 Nessa medida, se é verdade que as ciências humanas desceram a


rua e impregnaram um certo nú mero de nossas ações, elas reencon-
traram , nessa mesma rua, instalada bem antes delas, a filosofia.
Pode-se dizer que , no século XX, qualquer homem que descobre
ou que inventa, qualquer homem que muda alguma coisa no mun-
A Filosofia Estruturalista Permite Diagnosticar do , o conhecimento ou a vida dos homens, é , de alguma forma, um
o Que É “ a Atualidade” filósofo .
- O estruturalismo não nasceu recentemente. Ele está em
quest ão desde o iní cio do século. Contudo, só falamos dele atual -
mente. Para o grande público, você é o papa do “ estruturalismo
“A
filosofia estruturalista permite diagnosticar o que é ‘a atualidade’ " ( entrevista Por quê?
com G . Fellous ) , La presse de Tunisie , 12 de abril de 1967 , p . 3. - Talvez eu seja mais o coroinha do estruturalismo . Digamos
que sacudi a sineta , os fiéis se ajoelharam , os incr édulos gritaram .
Mas a missa tinha começado há muito tempo. O verdadeiro misté-
- A sociologia, a psicologia , a pedagogia faziam parte , há al - rio não fui eu que o realizei. Como observador inocente com sua so-
guns decé nios, dafilosofia. Essas disciplinas dela se destacaram brepeliz branca , eis como vejo as coisas.
para descer a rua e ter aplicações na vida cotí diana moderna. A Poder íamos dizer que há duas formas de estruturalismo: a pri-
filosofia parece terficado para tr ás dessa evolução. Ela lhe pare- meira é um método que permitiu seja a fundação de certas ciências
ce ameaçada por isso? como a lingúística , seja a renovação de algumas outras como a his-
- Creio que, de fato, a situação da filosofia mudou bastante de tória das religiões, seja o desenvolvimento de certas disciplinas
um século para cá. como a etnologia e a sociologia . Esse estruturalismo consiste em
Inicialmente , a filosofia se desobrigou de toda uma série de pes- uma análise não tanto das coisas , das condutas e de sua gé nese ,
quisas que constituíram as ciências humanas , e esta é a primeira mas das relações que regem um conjunto de elementos ou um con-
mudan ça. junto de condutas: ele estuda muito mais os conjuntos em seu
Por outro lado , a filosofia perdeu seu status privilegiado em rela- equilíbrio atual do que os processos em sua história. Esse estrutu -
ção ao conhecimento em geral, e à ciê ncia em particular . Ela parou ralismo mostrou seu valor ao menos nisto: ele permitiu o surgi-
de legiferar , de julgar . mento de novos objetos científicos , desconhecidos até então ( a lín-
A terceira mudança, à qual não se tem o hábito de dar atenção , é gua , por exemplo ) , como também descobertas em domí nios já co-
muito caracter ística e importante. A filosofia deixou de ser uma es- nhecidos: a solidariedade das religiões e das mitologias indo-
peculação autónoma sobre o mundo , o conhecimento ou o ser hu- européias, por exemplo .
mano . Ela se tornou uma forma de atividade engajada em um de- O segundo estruturalismo seria uma atividade através da qual
terminado n ú mero de domínios. Quando a matemática passou por os teóricos , não especialistas , se esfor çam para definir as relações
sua grande fase de crise no começo do século XX, foi através de atuais que podem existir entre tal e tal elemento de nossa cultura ,
uma sé rie de atos filosóficos que se buscaram novos fundamentos tal ou tal ciência , tal domínio pr ático e tal domínio teórico etc . Dito
para ela. Foi também por um ato filosófico que a lingúística foi fun- de outra forma, seria uma espécie de estruturalismo generalizado e
dada por volta de 1900 , 1920. Igualmente , foi um ato filosófico que não mais limitado a um domínio científico preciso e , por outro
Freud realizou , descobrindo o inconsciente como significação de lado , um estruturalismo que concerniria a nós, nossa cultura , nos-
nossas condutas. Da mesma forma , podemos nos perguntar se , so mundo atual , o conjunto das relações pr áticas ou teóricas que
nos domínios da pr ática , o socialismo, por exemplo , não é uma es- definem nossa modernidade.
pécie de filosofia em ato. É nisso que o estruturalismo pode valer como uma atividade fi-
losófica, se admitimos que o papel da filosofia é o de diagnosticar .
58 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1967 - A Filosofia Estruturalista Permite Diagnosticar o Que É “ a Atualidade" 59

Efetivamente , o filósofo parou de querer falar do que existe eterna- de uma certa preocupação com o rigor . O sistema é atualmente
mente . Ele tem a tarefa bem mais árdua e mais fugidia de dizer o nossa maior forma de honestidade.
que se passa. Nessa medida , pode-se certamente falar de um tipo - Pela primeira vez , o marxismo é colocado em dificuldade
de filosofia estruturalista , que poderia ser definida como a ativida- pelo sistema estruturalista. Até que ponto o marxismo está amea-
de que permite diagnosticar o que é a atualidade. çado e por quê?
- Nessa perspectiva , seria possí vel pensar que o filósofo será - O que está ameaçado pelo estruturalismo não é - creio - o mar -
convocado , em um futuro próximo , para tarefas muito pr áticas. xismo , mas uma certa maneira de compreender o marxismo.
- Na verdade se pode conceber o filósofo como um tipo de analis- Há , efetivamente , hábitos mentais que estão começando a desa-
ta da conjuntura cultural. A cultura sendo entendida aqui no senti- parecer , e cujos traços só são encontrados como limites em certas
do amplo , não apenas produção de obras de arte mas , igualmente , mentes petrificadas: hábito de acreditar que a história deve ser
instituições políticas , formas de vida social , proibições e imposi- uma longa narrativa linear , às vezes ligada por crises; hábito de
ções diversas. acreditar que a descoberta da causalidade é o nec plus ultra da
- Em 1945 , o existencialismo encontrava na França, e a seguir análise histórica ; hábito de acreditar que existe uma hierarquia
em outros paí ses europeus , uma ressonância tão forte que ele to- das determinações indo da causalidade material mais estrita à au -
mou o aspecto de uma moda definidora de uma é poca. Diz -se rora mais ou menos vacilante da liberdade humana. Se o marxis-
que 1967 será para o estruturalismo o que 1945 foi para o exis- mo fosse isso , não resta nenhuma d úvida de que o estruturalismo
tencialismo . não lhe daria muita importância.
- De fato , 1945 marcou a data em que uma certa forma de filoso- Mas , felizmente , o marxismo é outra coisa. Em todo caso, em
fia galgou o limiar da notoriedade , e 1967 marca també m o limiar nossa é poca , ele continua a existir e a viver como tentativa de anali-
de notoriedade do estruturalismo. sar todas as condições da existê ncia humana , como tentativa de
Dito isso, não se pode comparar de forma alguma a situação do compreender , em sua complexidade , o conjunto das relações que
existencialismo com a do estruturalismo , pela simples raz ão de constituí ram nossa história, como tentativa de determinar em que
que o existencialismo surgiu na França a partir de uma tradição fi- conjuntura nossa ação é atualmente possível.
losófica ( Hegel, Kierkegaard , Husserl e Heidegger ) e també m de Quanto ao estruturalismo, ele é um método de análise , uma ten -
uma experiência política muito rica, que era a da luta , desde 1933, tativa de leitura , uma colocação em relação , uma tentativa de cons-
contra o fascismo e o nazismo . tituição de uma rede geral de elementos . Parece-me que entre o
O estruturalismo , ao contr ário , nasceu e se desenvolveu em um marxismo e o estruturalismo não pode haver a menor sombra de
per íodo de entressafra política , ao menos na França , onde , após o incompatibilidade , pois eles não se situam no mesmo n ível.
fim da guerra da Argélia , o gaullismo teve que fazer muito esfor ço Um estruturalista pode ser marxista ou não , mas ele o ser á sem -
para mobilizar o interesse dos intelectuais . pre um pouco , na medida em que ele se der por tarefa diagnosticar
Deserto político, por um lado, mas , em compensação , extraordi- as condições de nossa existência.
nária proliferação de disciplinas teóricas , mas não filosóficas , no Um marxista poderá ser estruturalista ou não , mas ele o ser á
qual o estruturalismo encontrou simultaneamente sua origem e sempre pelo menos um pouco, se ele quiser ter nas mãos um ins-
seu lugar de manifestação . Embora o existencialismo provavel- trumento rigoroso para resolver as questões que ele coloca .
mente tenha oferecido , durante uma década , um estilo de vida a - Quais são as relações entre sua teoria estruturalista e suas
um certo n ú mero de intelectuais franceses e talvez também euro- obras?
peus , pode-se dizer que nenhum saber jamais pôde ser dito exis-
- - O que tentei fazer foi introduzir análises de estilo estruturalista
tencialista. Entretanto , “ estruturalista” pode ser colocado em epíte- í. em domínios nos quais elas não haviam penetrado até o presente ,
to a um grande nú mero de pesquisas teóricas ou pr á ticas: lingúísti- ou seja, no domínio da história das idéias, da história dos conheci-
ca, sociologia , história , economia etc. Certamente , ele ainda não mentos , da história da teoria. Nessa medida , fui levado a analisar
penetrou na existê ncia concreta dos homens , a não ser sob a forma em temos de estrutura o nascimento do pr ó prio estruturalismo .
60 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1967 - A Filosofia Estruturalista Permite Diagnosticar o Que É "a Atualidade" 61

Desse ponto de vista, tenho com o estruturalismo uma relação O Que Michel Foucault Pensa da Tunísia
ao mesmo tempo de distâ ncia e de reduplicação . De distâ ncia , já
que falo dele em vez de praticá-lo diretamente , e de reduplicação , já Vim por causa dos mitos que qualquer europeu cria atualmente
que não quero falar dele sem falar sua linguagem . para si mesmo sobre a Tunísia : o sol , o mar , a grande tepidez da
- Quais são suas obras estruturalistas já publicadas? Você África; vim buscar , enfim , uma tebaida sem ascetismo.
está preparando agora alguma outra obra estruturalista? Na verdade , encontrei estudantes tunisianos , e então foi amor à
- Não há um manual, um tratado de estruturalismo. O estrutu- primeira vista. Provavelmente, não encontrei nos estudantes , a não
ralismo é , precisamente , uma atividade teórica que existe apenas ser no Brasil e na Tunísia , tanta seriedade e tanta paixão, paixões
no interior de determinados dom ínios. É uma certa maneira de tão sérias , e o que me encanta mais do que tudo , a avidez absoluta
analisar as coisas. Portanto , não pode haver uma teoria geral do es- de saber .
truturalismo. Apenas se podem indicar obras que provocaram mo-
dificações importantes em um domínio particular ou simultanea-
mente em vá rios domínios.
E preciso citar , no domínio da etnologia , os trabalhos de Lé-
vi-Strauss , aqueles que são consagrados às formas de parentesco
nas sociedades proto-americanas e os que foram dedicados à análi-
se dos mitos americanos ; no dom ínio da sociologia , os de Jacques
Berque . Outra grande obra é a de Dumézil , que acaba de publicar
uma espécie de inventário intitulado La religion romaine archaï -
que, em que ele relaciona a religião romana com o conjunto das mi-
tologias e das religiões indo-européias . No domínio da análise lite-
r ária , é preciso citar as obras de Barthes sobre Racine .
Estou preparando agora um trabalho de metodologia relati-
vo às formas de existê ncia da linguagem em uma cultura como a
nossa .

( No artigo, aparecem duas chamadas: )

Michel Foucault Contado por Ele Mesmo

Após ter permanecido na universidade francesa por tão longo


tempo para fazer o que é preciso e ser o que se deve ser , fui passear
no estrangeiro, o que ofereceu ao meu olhar míope o exercício da
distâ ncia e permitiu , talvez , o restabelecimento de uma perspectiva
mais justa sobre as coisas.
Na Suécia , o que me permitiu saber o que seremos, daqui a 50
ou 100 anos , quando todos formos ricos, felizes , esterilizados. Na
Polónia. Em Hamburgo. Na América do Sul .
Sou celibatário . Oh , sim.
1967 - Sobre as Maneiras de Escrever a História 63

harmonizar sua consciê ncia política e sua atividade de pesquisa ou


1967 de escrita; sob o signo da cruz da história , qualquer discurso se
tornava prece ao deus das justas causas. Há, também , uma raz ão
mais técnica . É preciso de fato reconhecer que , em domínios como
Sobre as Maneiras de Escrever a História a lingü istica, a etnologia , a história das religiões, a sociologia , os
conceitos , formados no século XIX, e que podem ser caracteriza-
dos como de ordem dialé tica , foram em boa parte abandonados.
Ora , aos olhos de alguns , a história como disciplina constituía o úl-
"Sobre as maneiras de escrever a história" ( entrevista com R. Bellour ) , tes lettres
timo ref úgio de ordem dialé tica: nela , se podia salvar o reino da
. contradição racional. .. Assim , em muitos intelectuais se manteve ,
-
françaises , n2 1.187, 15 21 de junho de 1967, ps 6-9.
por estas duas razões e contra toda verossimilhança , uma concep-
ção da história organizada a partir do modelo da narrativa como
grande seq üê ncia de acontecimentos tomados em uma hierarquia
- A dupla recepção , de crí tica e de p úblico , entusiasta e reti-
de determinações: os indivíduos são apreendidos no interior dessa
cente , em relação ao seu livro , incita a dar continuidade à entre- totalidade que os ultrapassa e que brinca com eles , mas da qual
vista na qual , aqui mesmo , há mais de um ano , você expôs a na-
eles são talvez , ao mesmo tempo , os autores pouco conscientes . Ao
tureza e o campo de suas pesquisas. Qual foi , para você , a mais ponto de essa história , simultaneamente projeto individual e totali -
surpreendente reação suscitada por As palavras e as coisas?
dade , ter se tornado para alguns intocável: recusar tal forma de di-
- Fiquei surpreso com o seguinte fato: os historiadores profis- zer histó rico seria atacar a grande causa da revolução .
sionais nele reconheceram um livro de história , e muitos outros ,
que tê m uma concepção antiga da história e , sem d úvida , bastante
- Em que consiste exatamente a novidade dos trabalhos hist ó-
ricos aos quais você se refere?
obsoleta , alardearam o assassinato da história .
- N ão lhe parece que aforma do livro - por forma , entendo tan- - Eles podem ser caracterizados de uma maneira um pouco es-
quemática:
to a ausê ncia de notas extensas e de bibliografia , de referê ncias
1 ) Esses historiadores se colocam o problema muito dif ícil da
acumuladas e declaradas , habituais nesse tipo de obra , como o
jogo de espelho constituí do por Las Meninas - e mesmo o seu esti-
periodização. Percebeu-se que a periodização manifesta , escandida
lo , puderam contribuir para mascarar a sua natureza? pelas revolu ções políticas , não era sempre , metodologicamente , a
- Sem dúvida, a apresentação do livro não é indiferente, mas creio, melhor forma possível de recorte .
sobretudo , que alguns ignoram a mais importante mutação do sa- 2 ) Cada periodização recorta na história um certo nível de acon-
ber histórico já em ação há mais de 20 anos . Sabe-se que os livros tecimentos e , opostamente , cada estrato de acontecimentos exige ?

de Dumézil , Lévi-Strauss e Lacan se relacionam entre os mais im- sua pr ó pria periodização . Trata-se de um conjunto de problemas
portantes de nossa é poca; mas ser á que se sabe mesmo que , dentre delicados , já que , de acordo com o nível escolhido, ser á preciso de-
os trabalhos que hoje asseguram uma aventura nova no saber , é limitar periodizações diferentes , e , conforme a periodização que se
necessário incluir os livros de Braudel , de Furet e de Denis Richet , dê , atingir-se-ão níveis diferentes . Acede-se , assim , à metodologia
de Le Roy Ladurie , as pesquisas da escola histórica de Cambridge e complexa da descontinuidade .
da escola sovié tica? 3) A velha oposição tradicional entre as ciê ncias humanas e a
-Você se situa então deliberadamente como historiador . A que história ( as primeiras estudando o sincr ônico e o não-evolutivo , e a
você atribui esse desconhecimento? segunda analisando a dimensão da grande mudança incessante )
- Acredito que a história foi objeto de uma curiosa sacralização. desaparece: a mudança pode ser objeto de análise em termos de es-
Para muitos intelectuais , o respeito distante , não informado e tra- trutura , o discurso histórico é povoado por análises tomadas em-
dicionalista em relação à história era a maneira mais simples de prestado da etnologia e da sociologia, das ciências humanas .
64 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1967 - Sobre as Maneiras de Escrever a História 65

4 ) Introduzem-se , na análise histórica , tipos de relação e de mo- antes mesmo de ter avançado muito nesse trabalho , parece-me que
dos de ligação muito mais numerosos do que a universal relação de o grande corte deve se situar no nível de Marx. Somos remetidos
causalidade pela qual se havia querido definir o método histórico . aqui ao que eu dizia há pouco: a periodização dos domínios do co-
Assim , talvez pela primeira vez , há a possibilidade de analisar nhecimento não pode ser feita da mesma maneira conforme os ní-
como objeto um conjunto de materiais que foram depositados no veis em que nos colocamos. Encontramo-nos diante de uma espé-
decorrer dos tempos sob a forma de signos , de traços , de institui- cie de superposição de tijolos e o interessante , o estranho, o curio-
ções , de prá ticas , de obras etc. De todas essas mudanças, há duas so será precisamente saber como e por que o corte epistemológico
manifestações essenciais: para as ciências da vida , da economia e da linguagem se situa no
- do lado dos historiadores, os trabalhos de Braudel , da escola início do sé culo XIX, e , para a teoria da história e da política , em
de Cambridge, da escola russa etc.; meados do século XIX.
- a extraordinária crítica e análise da noção de história desenvol- - Trata- se então de romper deliberadamente com o privil é gio
vida por Althusser no início de Lire “ Le Capital' 1 . da histó ria como ciê ncia harmó nica da totalidade , tal como ela
- Você assinala dessa forma um parentesco direto entre os nos é apresentada pela tradição marxista.
seus trabalhos e os de Althusser? - Do meu ponto de vista , essa idéia , que se encontra dissemina-
- Tendo sido seu aluno e lhe devendo bastante, talvez eu tenha a da , não aparece realmente em Marx. Mas eu responderia sobretu -
tend ê ncia de atribuir à sua influência um esfor ço com o qual ele po- do que , nesse domínio, no qual só abordamos os princípios possí-
deria não concordar , embora não possa responder por ele no que veis , é ainda muito cedo para colocar o problema das determina-
lhe concerne . De qualquer forma , eu diria : abram os livros de ções rec íprocas desses estratos . Não é de todo impossível que se
Althusser . possam encontrar formas de determinações tais que todos os n í -
Permanece , no entanto, entre Althusser e eu , uma diferença evi- veis concordem em marchar juntos como um pelotão sobre a pon -
dente: ele emprega a palavra corte epistemológico a propósito de te do devir histórico. Mas são apenas hipóteses.
Marx , e eu afirmo , ao contr ário , que Marx não representa um corte - Enfatiza-se , nos artigos que atacam seu livro , estas pala-
epistemológico. vras : “ congelar a hist ória ” , que retornam sob aforma de um leit-
- Essa diferença da qual Marx é objeto não é precisamente o motiv e parecem formular a mais fundamental acusação , ade -
sinal mais manifesto do que pareceu incontest ável em suas aná- quada para questionar tanto o seu corte conceituai quanto a t éc -
lises das mutações estruturais do saber durante o século XIX ? nica narrativa que ele implica , fazendo disso a pr ó pria possibili -
- O que eu disse a propósito de Marx se refere ao domínio episte- dade de formular , como você acabou de faz ê -lo , uma lógica da
mológico preciso da economia política. Seja qual for a importância mutação . O que você pensa disso?
das modificações promovidas por Marx nas análises económicas - No que se chama de história das id éias , descreve-se em geral a
de Ricardo, não creio que suas análises económicas escapem ao es- mudança, permitindo-se dois expedientes fáceis:
paço epistemológico instaurado por Ricardo. Em compensação , é 1 ) Utilizam-se conceitos que me parecem um pouco mágicos ,
possível supor que Marx introduziu um corte radical na consciê n- como a influência , a crise , a tomada de consciê ncia , o interesse
cia histó rica e política dos homens e que a teoria marxista da socie- conferido a um problema etc. Todos utilitários , eles não me pare-
dade instaurou , certamente , um campo epistemológico inteira- cem operatórios .
mente novo. 2 ) Quando se encontra uma dificuldade , passa-se do n ível de
Meu livro trazia como subtítulo “ Uma arqueologia das ciê ncias I análise , que é o dos pr óprios enunciados , para um outro , que lhe é
humanas": esta supõe uma outra , que seria justamente a análise do exterior . Assim , diante de uma mudança , uma contradição , uma
incoer ê ncia, recorre-se a uma explicação pelas condições sociais
,
saber e da consciê ncia histórica no Ocidente desde o século XVI . E ,
pela mentalidade , pela visão do mundo etc.
1 . Althusser ( L . ) , Du “ Capital ” à la philosophie de Marx , in Althusser ( L . ) , Macherey
Eu quis , pelo jogo sistemático, tentar evitar esses expedientes e ,
( P . ) , Rancière ( J . ) , Lire “ Le Capital ” , Paris , Maspero , t . 1 , 1965 , ps . 9-89 . conseqüentemente , esforcei-me para descrever os enunciados, gru -

.
ÚV
66 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1967 - Sobre as Maneiras de Escrever a História 67

pos inteiros de enunciados , fazendo surgir as relações de implica- Em um sentido , a descrição é infindável ; em outro , ela é fechada ,
ção , de oposição , de exclusão , que podem ligá-los novamente . na medida em que tende a estabelecer o modelo teórico capaz de dar
Disseram- me , por exemplo, que eu havia admitido ou inventado conta das relações existentes entre os discursos estudados.
um corte absoluto entre o fim do século XVIII e o in ício do XIX. De - Parece que é precisamente esse duplo caráter da descrição
fato, quando se observam os discursos científicos do final do sécu - que é capaz de suscitar reticê ncia ou confusão, já que a hist ória se
lo XVIII , constata-se uma mudan ça muito r ápida e , na verdade , encontra assim, ao mesmo tempo , diretamente inserida no infini-
to de seus arquivos - portanto nafalta de sentido caracter í stica de
bastante enigmática ao olhar mais atento. Eu quis descrever justa
mente essa mudança , ou seja , estabelecer o conjunto de transfor -
- todo infinito - e organizada a partir dos modelos , cujo caráterfor-
mações necessárias e suficientes para passar da forma inicial do mal acusa , em sua pró pria l ógica , a falta de sentido pró pria de
discurso científico , o do século XVIII , à sua forma final , o do século todo fechamento de caráter interno e circular. E o efeito é tanto
XIX. O conjunto de transformações que defini mantém um certo mais intenso que seu livro se manté m em uma distância absoluta
n ú mero de elementos teóricos , desloca outros , vemos desaparece- em relação ao que se poderia chamar de “ história viva” , esta cuja
rem alguns elementos antigos e surgirem novos ; tudo isso permite prática - quaisquer que sejam o ní vel teó rico em que a solicitemos
definir a regra de passagem nos domí nios que considerei. O que eu e os modelos nos quais se possa restringir sua diversidade infati-
quis estabelecer é justo o contr ário de uma descontinuidade , já que g ável - encontra a falta de sentido , em uma espécie de familiari -
evidenciei a pr ópria forma da passagem de um estado ao outro . dade , no mundo “ natural” de ações e instituições. Como você pen-
sa este corte sobre o qual se estabelece As palavras e as coisas?
- Eu me pergunto se o mal-entendido não decorre da dificulda
de de conceber lado a lado os termos: por um lado , mudança e
- - Tentando colocar em jogo uma descrição rigorosa dos pr óprios
passagem , e por outro , quadro e descri ção. enunciados , pareceu -me que o domínio dos enunciados obedecia a
- Há mais de 50 anos, no entanto , nos demos conta de que as ta- leis formais , que se podia , por exemplo , encontrar um ú nico mode-
lo te órico para dom í nios epistemológicos diferentes , e que , nesse
refas da descrição eram essenciais em dom ínios como os da histó
ria , da etnologia e da lí ngua. Afinal , a linguagem matemática , desde
- sentido , se podia concluir que haveria uma autonomia de discur -
Galileu e Newton , não funciona como uma explicação da natureza, sos . Mas só há interesse em descrever esse estrato autónomo dos
mas como uma descrição de processos . Não vejo por que se pode- discursos na medida em que se pode relacioná-lo com outros estra-
riam criticar as disciplinas não formalizadas , como a história , por tos , de pr áticas , de instituições , de relações sociais , políticas etc . E
també m empreenderem as tarefas primordiais da descrição. essa relação que sempre me obsedou ; e eu quis , precisamente , na
- Como você concebe a orientação metódica dessas tarefas pri - História da loucura e em O nascimento da cl í nica , definir as rela-
mordiais? ções entre esses diferentes domínios. Tomei como exemplo o dom í-
- I 2) Deve ser possível, se o que digo é verdade , dar conta e anali- nio epistemológico da medicina e o das instituições de repressão ,
sar exatamente , segundo os mesmos esquemas , trazendo algumas de hospitalização , de seguros aos desempregados , de controle ad -
transformações suplementares , os textos aos quais não me referi. ministrativo da saúde p ú blica etc . Mas me dei conta , nesses dois
22 ) Podem-se muito bem retomar os textos de que falei e esse primeiros livros , de que as coisas eram mais complicadas do que
mesmo material de que tratei em uma descrição que teria uma ou- eu supunha , que os domínios discursivos não obedeciam sempre a
tra periodização , e que se situaria em um outro n ível. Quando se fi- estruturas que lhes eram comuns com seus dom ínios pr á ticos e
zer por exemplo, a arqueologia do saber histórico, ser á preciso institucionais associados , que eles obedeciam , ao contr ário , a es-
evidentemente utilizar novamente os textos sobre a linguagem , e truturas comuns a outros domínios epistemológicos, que havia um
ser á necessário correlacioná-los com as técnicas da exegese , da cr í- isomorfismo dos discursos entre si em uma é poca dada . De ma -
tica das fontes , com todo o saber relativo à sagrada escritura e à neira que me confrontei com dois eixos de descrição perpendicula-
tradição histó rica ; sua descrição ser á , portanto , diferente . Mas es- res: o dos modelos teóricos comuns a vários discursos e aquele das
sas descrições, se são corretas , deveriam ser tais que se pudessem relações entre o domínio discursivo e o domínio não discursivo .
definir as transformações que permitem passar de uma à outra. Em As palavras e as coisas , percorri o eixo horizontal ; na História
68 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1967 - Sobre as Maneiras de Escrever a História 69

da loucura e em O nascimento da cl í nica , a dimensão vertical da Embora o autor , nisso e somente nisso , seja constitutivo daquilo
figura . sobre o que ele fala . Meu livro é uma pura e simples ficção: é um
No primeiro me empenhei em demonstrar , apoiando-me em al- romance , mas não fui eu que o inventei; foi a relação de nossa é po-
guns textos, que tal coer ência teórica entre os discursos não existe , ca e sua configuração epistemológica com toda uma massa de
e assim uma verdadeira discussão poder á começar . Quanto a mini- enunciados. Embora o sujeito esteja de fato presente na totalida -
mizar o domínio da pr ática , meus livros precedentes estão aí para de do livro , ele é apenas o “ se ” anónimo que fala hoje em tudo
demonstrar que estou longe disso e , para me remeter a eles , vou aquilo que se diz.
me referir a um ilustre exemplo. Quando Dumézil demonstra que a - Como você pensa o estatuto desse “ se ” anónimo?
religião romana mantém uma relação de isomorfismo com as len- - Talvez estejamos começando a desfazer , pouco a pouco , mas
das escandinavas ou célticas , ou com tal ritual iraniano , ele não não sem dificuldade , a grande desconfiança alegórica. Por descon-
quer dizer que a religião romana não tenha seu lugar no interior da fiança alegórica entendo a id éia simples que consiste em , diante de
história romana , que a história de Roma não exista , mas que só po- um texto , não mais se perguntar sobre o que esse texto diz verda-
deremos descrever a história da religião romana , suas relações deiramente por baixo do que ele diz realmente . Sem d úvida , essa
com as instituições , as classes sociais , as condições económicas le- é a herança de uma antiga tradição exegé tica: diante de qualquer
vando em conta a sua morfologia interna. Da mesma forma , de- coisa dita , supomos que se diz outra coisa. A versão leiga dessa
monstrar que os discursos científicos de uma é poca decorrem de desconfiança alegórica teve o efeito de assinalar para qualquer co-
um modelo teórico comum não quer dizer que eles escapem à his- mentador que ele devia procurar em todos os lugares o pensamen-
tória e flutuem no ar como desencarnados e isolados , mas que não to verdadeiro do autor , o que ele tinha dito sem dizê-lo , querido di-
ser á possível fazer sua história , a análise do funcionamento , do pa- zer sem conseguir , desejado esconder e , no entanto, deixado apare-
pel desse saber , das condições que lhe são impostas , da maneira cer . Percebe-se hoje que há muitas outras possibilidades de tratar
pela qual ele se enraíza na sociedade , sem levar em conta a for ça e a a linguagem . Assim , a crí tica contempor â nea - e é isso que a distin -
consistê ncia desses isomorfismos. gue do que era feito até muito recentemente - está começando a for -
- Essa objetividade que você atribui aos modelos teóricos vi - mular , sobre os diversos textos que ela estuda , seus textos-objetos ,
sando a uma análise extensa da histó ria como ci ê ncia e à l ó gica uma espécie de combinatória nova. Em vez de reconstituir seu se-
descritiva , para a constituição desses modelos , na medida em gredo imanente , ela apreende o texto como um conjunto de elemen-
que esta exige se interrogar sobre o ponto de partida dessa des- tos ( palavras , metáforas , formas liter árias, conjunto de narrativas )
crição , enfim , sobre sua origem , isto quer dizer , no caso de um li - entre os quais é possível fazer surgir relações absolutamente no-
vro t ão pessoal quanto o seu , tentar compreender a relação do vas, na medida em que eles não foram determinados pelo projeto
autor com seu texto , qual o lugar exato ele pode , quer e deve ocu- do escritor , mas apenas tornados possíveis pela pr ópria obra como
par nele . tal. As relações formais que assim se descobrem não estavam pre-
- A única forma de responder a isso é me aprofundando no pró- sentes na cabeça de ningué m ; elas não constituem o conte ú do la-
prio livro. Se o estilo de análise que nele tentei formular é admissí- tente dos enunciados , seu segredo indiscreto ; são uma construção ,
vel , seria possível definir o modelo teórico ao qual pertencem não mas uma construção precisa desde que as relações assim descritas
só o meu livro mas os que pertencem à mesma configuração de sa- possam ser atribuídas realmente aos materiais tratados. Aprende-
ber . Sem d úvida , é ela que nos permite tratar a história atualmente mos a colocar as palavras dos homens em relações ainda não for -
como conjunto de enunciados efetivamente articulados, a língua muladas, ditas por nós pela primeira vez , e , no entanto , objetiva-
como objeto de descrição e conjunto de relações conectadas ao dis- mente exatas.
y

curso, e os enunciados que foram objeto da interpretação. E nossa Assim , a cr ítica contemporânea começa a abandonar o grande
é poca , e somente ela , que torna possível o aparecimento desse con- mito da interioridade: Intimior intimio ejus . Ela se encontra total-
junto de textos que tratam da gramática , da história natural ou da mente desencaixada dos velhos temas do encaixe , do cofrinho do
economia política , como de tantos outros objetos. tesouro que convém ir procurar no fundo do armário da obra. Lo-
70 MicheL Foucault - Ditos e Escritos 1967 - Sobre as Maneiras de Escrever a História 71

calizando-se no exterior de um texto, ela o constitui como exteriori- liter ária em uma cultura e em instituições como as nossas. Afinal ,
i!
dade nova , escrevendo textos de textos . há séculos, seis ou sete , que o anonimato , salvo caso excepcional ,
- Parece- me que , nessa própria fecundidade em suas rela-
ex desapareceu inteiramente da linguagem liter ária e de seu funciona-
g
ções múltiplas , a moderna crí tica liter ária procura , por exemplo , mento .
y

como você a descreve , marcar em um sentido uma curiosa re - - E por isso , creio , que a lição de Blanchot encontra , em com-
gressão em relação àquele em quem ela buscava o essencial de paração com as cr í ticas t écnicas em relação às quais ele próprio
suas exig ê ncias: quero dizer , Blanchot . Pois se Blanchot , sob o r guarda igual distâ ncia , um mais justo eco em uma interpretação
nome de “ literatura” , efetivamente conquistou , no espaço do pen- 1
do tipo psicanal í tico , que se sustenta por definição em um espaço
samento moderno , uma exterioridade imperiosa do texto , ele não do sujeito , do que em uma interpretaçã o do tipo linguí stico , na
se permitiu absolutamente essa concessão que tende a afastar a qual aflora Jreq üentemente um risco de abstração mecânica.
viol ê ncia da obra como lugar de um nome e de uma biografia , » O que precisamente é importante , problemático , em certas
cujo segredo , precisamente , é ser atravessado diversamente pesquisas do tipo cient í fico , como a sua , é uma certa relação de
pela força irredut í vel e abstrata da literatura , da qual Blanchot familiaridade um pouco nova que elas parecem manter com as
retraça , em cada caso , o itinerário rigoroso , sem se preocupar , obras mais explicitamente “ subjetivas” da literatura.
como deseja uma cr í tica mais intelectual , em descrev ê -lo como - Seria muito interessante saber em que consiste a individualida-
tal na l ógica de suas formas. de designável , “ nomeável” de uma obra científica; as de Abel ou de
- Foi efetivamente Blanchot quem tornou possível qualquer dis- ri
Lagrange , por exemplo , são marcadas por características de escrita
curso sobre a literatura . De início , porque ele foi o primeiro a mos- que as individualizam certamente tanto quanto um quadro de Ticia-
trar que as obras se conectam umas com as outras por essa face ex- i no ou uma página de Chateaubriand . Da mesma forma, os escritos
terior de sua linguagem na qual surge a “ literatura” . A literatura é, filosóficos ou escritos descritivos como os de Lineu e de Buffon. No
assim , o que constitui o fora de qualquer obra , o que sulca toda lin- entanto , elas estão articuladas à rede de todas aquelas que falam da
guagem escrita e deixa em qualquer texto a marca vazia de uma ra- !
i “ mesma coisa” , que lhes são contemporâneas e lhes sucedem: essa
nhura . Ela não é um modo de linguagem , mas um oco que percorre rede que as envolve delineia essas grandes figuras sem estado civil
i
como um grande movimento todas as linguagens liter árias . Fazen- que chamamos de “ matemática” , “ história” , “ biologia” .
do aparecer essa instância da literatura como “ lugar comum ” , es- í O problema da singularidade ou da relação entre o nome e a rede
paço vazio onde vê m se alojar as obras, creio que ele assinalou à é muito antigo, mas antigamente havia tipos de canais , de vias bali -
cr í tica contemporâ nea qual deve ser seu objeto , o que torna possí- zadas que separavam as obras liter á rias das obras f ísicas ou mate-
vel seu trabalho ao mesmo tempo de exatid ão e de invenção . máticas , das obras históricas ; cada uma evolu ía no seu nível pr ó-
Pode-se afirmar que , por outro lado , Blanchot a tornou possível prio é , de qualquer forma , na parte do território que lhe era desig-
1
instituindo entre o autor e a obra um modo de relação até então in- nada , apesar de todo um conjunto de recobrimentos , de empr ésti-
suspeitado . Sabe-se agora que a obra não pertence a um projeto de mos, de semelhanças. Constata-se , atualmente , que toda essa divi-
seu autor , nem mesmo àquele de sua existência , que ela manté m ï:. são , essa compartimentalização está começando a se apagar ou a
com ele relações de negação , de destruição , que ela é para ele o jor - îir;u
se reconstituir de uma forma totalmente diferente . Assim , as rela-
ro do eterno fora, existindo , no entanto, entre eles essa função pri- ções entre a lingü istica e as obras liter árias , entre a m úsica e a ma -
mordial do nome . É pelo nome que , em uma obra , se marca a mo- í
temática , entre o discurso dos historiadores e o dos economistas
dalidade irredutível do murm ú rio anónimo de todas as outras lin- 1 não são mais simplesmente da ordem do empr éstimo , da imitação
'

guagens . Não há d úvida de que a crítica contemporânea ainda não ff ou da analogia involuntária , nem mesmo do isomorfismo estrutu-
questionou verdadeiramente essa exigência do nome que Blanchot ral ; essas obras , esses procedimentos se formam uns em relação
lhe propôs . Ser á preciso que ela se preocupe com isso , já que o 1 aos outros, existem uns para os outros . Há uma literatura da lin-
nome marca para a obra suas relações de oposição , de diferença m güistica , e não uma influência dos gramáticos na gramática e no vo-
com outras obras , e caracteriza totalmente o modo de ser da obra cabulário dos romancistas. Da mesma forma, a matemática não é
72 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1967 - Sobre as Maneiras de Escrever a História 73

aplicável à construção da linguagem musical , como no fim do sécu - Como justificar esse discurso sobre os discursos que eu mante-
lo XVII e no in ício do XVIII ; ela constitui atualmente o universo for -
'
ï nho? Que estatuto lhe dar? Começa-se , sobretudo do lado dos lógi-
mal da pr ópria obra musical . Assim , se assiste a um apagamento cos , alunos de Russell e de Wittgenstein , a se dar conta de que a lin -
geral e vertiginoso da antiga distribuição das linguagens. guagem apenas poderia ser analisada em suas propriedades for -
Diz-se de boa vontade que , hoje , nada nos interessa mais do que mais , desde que se leve em conta seu funcionamento concreto. A
*
a linguagem e que ela se tornou o objeto universal . E preciso não se língua é um conjunto de estruturas , mas os discursos são unidades
enganar : essa soberania é a soberania provisória , equívoca , precá- de funcionamento , e a análise da linguagem em sua totalidade nao
ria , de uma tribo em migração . Certamente , nos interessamos pela pode deixar de fazer face a essa exigência essencial. Nessa medida ,
linguagem ; no entanto, não por termos conseguido finalmente to- o que faço localiza-se no anonimato geral de todas as pesquisas
mar posse dela , mas antes porque , mais do que nunca , ela nos es- que , atualmente , giram em torno da linguagem , ou seja , não so-
capa . Suas fronteiras se desmoronam e seu calmo universo entra mente da língua que permite dizer , mas dos discursos que foram
em fusão ; se estamos submersos nela , não é tanto por seu rigor in- ditos.
temporal , mas pelo movimento atual de sua onda . - O que você entende mais precisamente por essa id éia de ano-
- Como você se situa pessoalmente nessa mutação que arras- nimato?
ta, em uma espécie de aventura romanesca, as obras mais exi - ~ Pergunto- me se n ão reencontramos atualmente , sob a forma

gentes do saber? da rela ção do nome com o anonimato , uma certa transposição do
- Diferentemente daqueles que são chamados de estruturalistas , antigo problema clássico do indivíduo e da verdade, ou do indiví-
não estou tão interessado pelas possibilidades formais oferecidas duo e da beleza . Como é possível que um indivíduo nascido em um
por um sistema como a lí ngua . Pessoalmente , estou antes obceca- dado momento , tendo tal história ou tal rosto , possa descobrir , e
do pela existê ncia dos discursos , pelo fato de as palavras terem ele sozinho e sendo o primeiro , tal verdade , talvez a mesma verda-
surgido: esses acontecimentos funcionaram em relação à sua situa- de? Eis a questão à qual respondem as Meditações 2 de Descartes :
ção original ; eles deixaram traços atr ás deles , eles subsistem e como eu pude descobrir a verdade? E , anos mais tarde , a reencon-
exercem , nessa pr ó pria subsistência no interior da história , um tramos no tema romântico do gê nio: como um indivíduo localizado
certo n ú mero de fun ções manifestas ou secretas. em uma dobra da histó ria pode descobrir formas de beleza nas
- Você cede assim à paixão pró pria do historiador que quer quais se exprime toda a verdade de uma época e de uma civiliza -
responder ao rumor infinito dos arquivos. ção? Atualmente , o problema não se coloca mais nesses termos : ,

- Sim , pois meu objeto não é a linguagem , mas o arquivo , ou seja , não estamos mais na verdade , mas na coer ê ncia dos discursos , não
a existê ncia acumulada dos discursos. A arqueologia, tal como eu a mais na beleza , mas nas complexas relações de formas . Trata-se ,
entendo , não é parente nem da geologia ( como análise dos subso- atualmente , de saber como um indivíduo , um nome pode ser o su-
los ) , nem da genealogia ( como descrição dos começos e das suces- porte de um elemento ou grupo de elementos que , vindo se integrar
sões ) ; ela é a análise do discurso em sua modalidade de arquivo . na coer ê ncia dos discursos ou na rede infinita das formas , vem
Um pesadelo me persegue desde a inf â ncia: tenho , diante dos apagar ou , ao menos , tornar vazio e in ú til esse nome , essa indivi-
olhos , um texto que não posso 1er , ou do qual apenas consigo deci- dualidade da qual ele traz , até um certo ponto, durante um certo
frar uma ínfima parte. Eu finjo que o leio , sei que invento ; de repen- tempo e para certos olhares , a marca. Temos que conquistar o ano-
te , o texto se embaralha totalmente e não posso 1er mais nada , nem nimato , justificar - nos pela enorme presun ção de nos tornarmos
mesmo inventar , minha garganta se fecha e desperto.
N ão ignoro tudo o que pode haver de pessoal nessa obsessão
2. Descartes ( RJ , Meditationes de prima philosophia , Paris , Soly , 1641 ( M é di -
pela linguagem que existe em todos os lugares e nos escapa em sua tations touchant la premiè re philosophie , dans lesquelles l' existence de Dieu et la
pr ó pria sobrevivência. Ela persiste desviando de nós seus olhares , distinction réelle entre l' â me et le corps de l’ homme sont d é montrées , in Oeuvres
o rosto inclinado na direção de uma escurid ão da qual nada sabe- et lettres , Ed . Andr é Bridoux, Paris , Gallimard , col. "Bibliothèque de la Pléiade” ,
mos . 1953, ps. 253-547 ) .
74 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1967 - Sobre as Maneiras de Escrever a História 75

um dia , enfim , anónimos , um pouco como os clássicos tinham que sofo , permanentemente ambí gua , entre a ciê ncia e a literatura.
se justificar pela enorme presunção de ter encontrado a verdade e Nesse sentido , qual seria , do seu ponto de vista , o estatuto mo-
de ligar seu nome a ela . Antigamente , para aquele que escrevia, o derno daf í losofia?
problema era se destacar do anonimato de todos ; hoje é chegar a - Parece-me que a filosofia hoje não existe mais, não no sentido
apagar seu nome pr óprio e vir alojar sua voz nesse grande murmú- de que ela teria desaparecido , mas de que está disseminada em
rio anónimo dos discursos que se mantê m . uma grande quantidade de atividades diversas: assim , as ativida-
- N ão lhe parece que isso é , justamente quando esse movimen- des do matemático , do lingü ista , do etnólogo , do historiador , do re-
to é levado ao extremo, entrar no duplo jogo recí proco da afirma- volucionário , do político podem ser formas de atividade filosófica.
çã o e do apagamento , da palavra e do sil ê ncio , do qual Blanchot No século XIX, era filosófica a reflexão que se interrogava sobre as
fazia a essê ncia do ato liter ário , quando ele atribui à obra a fun- condições de possibilidade dos objetos ; hoje , é filosofia qualquer
v çã o eleita de uma rica morada do silê ncio em face da insuportá- atividade que faz aparecer um objeto novo para o conhecimento ou
vel imensid ã o falante , sem a qual , no entanto , ela não existiria? para a pr ática - seja essa atividade decorrente da matemática , da
m Quando Lé vi - Strauss diz sobre Le cru et le cuit: “ Assim esse livro linguística , da etnologia ou da história.
m sobre os mitos é , à sua maneira , um mito” , ele visa à impessoali- - No entanto , no último cap í tulo de As palavras e as coisas, no
ai
dade soberana do mito , e , no entanto , poucos livros , por este fato qual você trata das ciê ncias humanas atualmente , você atribui à
mesmo , são tão pessoais como suas Mythologiques3. Você , de ma- história um privil égio sobre todas as outras disciplinas. Seria
neira bem diferente , está em uma posição parecida em relação à uma nova maneira de reencontrar esse poder de legislação sint é -
história . tica que constituí a até então o privilégio pró prio do pensamento
- O que d á a livros como este , que não tê m outra pretensão se- filosófico , e que Heidegger reconhecia j á não mais como o dafilo-
não serem an ónimos , tantas marcas de singularidade e de indivi- sofia tradicional , mas como o da “ história dafilosofia” ?
dualidade não são os signos privilegiados de um estilo , nem a mar - - De fato, a história detém , em relação à minha investigação ,
ca de uma interpretação singular ou individual , é a fú ria de um gol- uma posição privilegiada. Porque em nossa cultura , pelo menos há
pe de borracha pelo qual se apaga meticulosamente tudo o que po- vários séculos , os discursos se encadeiam sob a forma de história :
deria remeter a uma individualidade escrita . Entre os escritores e recebemos as coisas que foram ditas como vindas de um passado
os escreventes, há os que apagam . no qual elas se sucederam , se opuseram , se influenciaram , se subs-
O Bourbaki4 é , no fundo, o modelo. O sonho de todos seria fazer , tituíram , se engendraram e foram acumuladas. As culturas “ sem
cada um em seu domínio, alguma coisa parecida com o Bourbaki, no história” não são evidentemente aquelas nas quais não haveria
qual a matemática foi elaborada sob o anonimato de um nome de fan- acontecimento, evolução , nem revolu ção , mas nas quais os discur -
tasia. Talvez a diferença irredutível entre as pesquisas matemáticas e sos não se acumularam sob a forma de história ; eles se justapõem ;
nossas atividades seja que os golpes de borracha destinados a buscar eles se substituem ; são esquecidos ; transformam-se . Pelo contr á-
o anonimato marcam mais seguramente a assinatura de um nome do rio, em uma cultura como a nossa , todo discurso aparece sobre um
que as canetas ostentatórias. Ainda se poderia dizer que Bourbaki fundo de desaparecimento de qualquer acontecimento.
tem seu estilo e sua maneira característica de ser anónimo. Eis por que , estudando o conjunto de discursos teóricos concer -
- Isso , assim como sua referê ncia à relação clássica do indiv í - nindo à linguagem , à economia , aos seres vivos , eu não quis estabe-
duo , convida a pensar que a posição do autor nesse tipo de pes- lecer as possibilidades ou as impossibilidades a priori de tais co-
quisas aparece de fato como uma duplicação da posição do fil ó- nhecimentos. Quis fazer um trabalho de historiador mostrando o
funcionamento simultâneo desses discursos e as transformações
.
3. Lévi-Strauss ( C . ) , Mythologiques , 1.1: Le cru et le cuit Paris, Plon , 1964. que davam conta de suas mudanças visíveis.
4 . Nicolas Bourbaki , pseudónimo coletivo assumido por um grupo de matemáticos No entanto , a história não tem que representar o papel de uma fi-
franceses ( Henri Cartan , Claude Chevalley , Jean Dieudonné , Charles Ehresmann , losofia das filosofias, se prevalecer de ser a linguagem das lingua-
Andr é Weyl etc . ) que empreenderam a refundação da matemática em bases axio- gens, como o queria , no século XIX, um historicismo que tendia a
m áticas rigorosas.
76 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1967 - Sobre as Maneiras de Escrever a História 77 1

atribuir à história o poder legislador e crítico da filosofia . Se a his- - Mas como , nesse caso , associar Nietzsche à arqueologia sem
tória possui um privilégio , este estaria , de prefer ê ncia , na medida arriscar serfalso tanto com um como com a outra? Parece- me que
em que ela desempenharia o papel de uma etnologia interna de há , nesse fato mesmo , uma contradição insuperável . Eu a veria ,
nossa cultura e de nossa racionalidade , e encarnaria , conseqüente- em seu livro , sob a forma figurada de um conflito de princí pio en-
mente , a pr ó pria possibilidade de toda etnologia . tre Nietzsche e Las Meninas. Pois , sem recorrer ajogosf áceis sobre
- Gostaria , após esse longo desvio , de retornar ao livro , e lhe
perguntar a razão dessa defasagem que se experimenta na sua
sua predileção por metáforas espaciais , é claro que o quadro se
confirma no livro como o lugar privilegiado , como ele o é em certo
posição quando se passa da análise dos séculos XVII e XVIII para sentido em todo o estruturalismo: é nisso , creio , que você compara
a dos séculos XIX e XX , desní vel que é objeto certamente das o anonimato atual com o do século XVII , em nome de uma id éia da
mais vivas reservas formuladas em relaçã o ao seu trabalho . leitura que possa dispor a histó ria em um quadro , tal como no tex-
- De fato , alguma coisa parece mudar , com o século XIX , na dis- to de Borges sobre a enciclopédia chinesa , onde seu livro tem “ seu
tribuição do livro. A mesma coisa ocorreu em relação à Histó ria da lugar de nascimentoEis por que o século XIX , no qual a histó ria
loucura , pois supuseram que eu queria atacar a psiquiatria moder - se inventa sob a forma de uma defasagem entre os signos e o ho-
na , e em As palavras e as coisas , que eu polemizava com o pensa- mem , é objeto de debate , e nossa é poca é a esperança de uma re -
mento do século XIX. Há, de fato , uma diferença entre as duas aná- soluçã o nova atrav és de uma tentativa de reintegrar o sujeito his-
lises. Posso, efetivamente , definir a é poca clássica em sua configu- tórico no espaço do quadro , em um novo anonimato.
ração pr ópria pela dupla diferen ça que a opõe ao século XVI , por Nietzsche não é precisamente o lugar em que todos os signos
um lado , e ao século XIX , por outro . Ao contr á rio , não posso definir convergem na dimensão irredut í vel de um sujeito , anónimo por
a Idade Moderna em sua singularidade senão opondo-a ao século força de ser esse “ sí ” , por força de incorporar a totalidade das vo-
XVII , por um lado , e a nós , por outro; é preciso , então , para poder zes sob a forma do discurso fragmentário ; e não está nisso a for -
operar sem cessar a partilha , fazer surgir , sob cada uma de nossas ma extrema e exemplar do pensamento e de toda expressão
frases , a diferen ça que nos separa dela . É preciso , então , desta- como autobiografia sem resto , que sempre faz falta no espaço do
car -se dessa é poca moderna que começa em torno de 1790-1810 e quadro , assim como ela faz falta no tempo da hist ória , em que
vai até por volta de 1950, ao passo que , em relação à é poca clássi- ela é e nã o é , pois apenas se pode diz ê - la no sentido de sua pr ó - !
ca , trata-se apenas de descrevê-la. pria loucura , e não pelo recurso a uma lei exterior? Assim , o fato
O car áter aparentemente polê mico se liga assim ao fato de que se de que Nietzsche escape , e com ele uma certa verdade da litera-
trata de furar toda a massa do discurso acumulado sob nossos tura , a seu livro , que lhe deve e lhe trouxe tanto , essefato não tes -
pr ó prios pés. Podem-se descobrir , em um movimento suave , as ve- temunha uma impossibilidade de tratar todos os discursos em
lhas configurações latentes; mas , desde que se trate de determinar um mesmo ní vel? E isso mesmo , sob a forma de sua presença no
o sistema de discurso no qual ainda vivemos , no momento em que livro , não estaria na exata medida do impossí vel anonimato com
somos obrigados a questionar palavras que ressoam ainda em nos- o qual você sonha , que , se fosse total , hoje só poderia significar
sos ouvidos , que se confundem com aquelas que tentamos susten- um mundo sem palavra escrita ou , até a loucura , a literatura cir -
tar , aí então o arqueólogo, como o filósofo nietzschiano , é for çado a cular de Nietzsche?
operar a golpes de martelo . - É dif ícil responder a esta questão ; porque é dela , no fundo ,
- O estatuto único e apaixonado que você atribui a Nietzsche que procedem todas as suas questões , conseqíientemente , todo o
não é precisamente o sinal mais manifesto dessa defasagem irre -
nosso diálogo. É ela que suporta o interesse apaixonado, um pouco
mediável?
distante , que você tem pelo que se passa à sua volta , nas gerações
-Se eu tivesse que recomeçar esse livro conclu ído há dois anos ,
tentaria não dar a Nietzsche esse estatuto ambíguo, absolutamente
que lhe precedem ; dessa questão vem seu desejo de escrever e de
questionar . Aqui começa então a entrevista de R . Bellour por Mi-
privilegiado , metaistórico que tive a fraqueza de lhe atribuir . Ela
chel Foucault , entrevista que se estende há vá rios anos e das quais
advé m do fato , sem d úvida , de minha arqueologia dever mais à ge -
nealogia nietzschiana do que ao estruturalismo propriamente dito.
Les lettres françaises publicar ão , talvez um dia , um fragmento .
1967 - As Palavras e as Imagens 79

1967 discurso já suposta pela iconografia clássica . Para Émile Mâle , as


formas plásticas eram textos gravados na pedra , nas linhas ou nas i
cores ; analisar um capitel, uma iluminura era manifestar o que
“ isso queria dizer ” : restaurar o discurso lá onde , para falar
mais di-
retamente , ele estava despojado de suas palavras . Panofsky eleva o
As Palavras e as Imagens privilégio do discurso . Não para reivindicar a autonomia do univer -
so plástico , mas para descrever a complexidade de suas relações:
entrecruzamento, isomorfismo , transformação, tradução, em su-
ma , toda essa franja do visí vel e do diz í vel que caracteriza uma cul-
“ As palavras e as imagens” , Le nouvel observateur , n- 154 , 25 de outubro de 1967 , tura em um momento de sua história.
ps . 49-50 ( Sobre E. Panofsky, Essais d’ iconologie , Paris, Gallimard , 1967, e Archi- s

tecture gothique et pensée scolastique , Paris, Ed . de Minuit , 1967 ) . As vezes , os elementos de discurso se mantê m como temas atra-
vés dos textos , dos manuscritos recopiados , das obras traduzidas,
comentadas , imitadas ; mas eles ganham corpo em motivos plásti-
cos que são submetidos às transformações ( a partir do mesmo tex-
Que se perdoe minha pouca competê ncia. N ão sou historiador to de Ovídio , o rapto da Europa é cena de banho em uma miniatura
da arte . De Panofsky, até o mês passado , eu nada havia lido. Duas do século XVI , rapto violento em D ü rer ) ; outras vezes , a forma
tradu ções foram publicadas simultaneamente: os famosos Essais plástica se manté m , mas acolhe uma sucessão de diversos temas ( a
d’ iconologie , surgidos há quase 30 anos ( são cinco estudos sobre a mulher nua , que é Vício na Idade Média , transforma-se em Amor
Renascença , precedidos e ligados entre si por uma importante re- despojado , portanto puro , verdadeiro e sagrado no século XVI ) . O
flexão de mé todo; Bernard Teyssèdre apresenta a edição francesa ) , discurso e a forma se movimentam um em direção ao outro . Mas
e dois estudos sobre a Idade Média gótica , reunidos e comentados eles não são absolutamente independentes: quando a Natividade
por Pierre Bourdieu . não é mais representada por uma mulher em trabalho de parto ,
Após tão longa espera, essa simultaneidade surpreende . Estou mas por uma Virgem ajoelhada , a ê nfase é colocada no tema da
mal posicionado para falar do benef ício que os especialistas pode- Mãe do Deus vivo, mas també m se trata da substituição de um es- !
r ão tirar dessa publicação há tanto tempo desejada . Sendo um pa- quema triangular e vertical por uma organização retangular . Ocor -
nofskiano neófito , mas certamente entusiasta , explicarei o destino re , finalmente , que o discurso e a plástica sejam ambos submeti-
do mestre pelas palavras do mestre , e direi que o benef ício ser á dos , como por um ú nico movimento , a uma ú nica disposição de
grande : entre nós essas tradu ções vão transformar a longí nqua e a conjunto . O discurso escolástico , no século XII , rompe com o longo
estranha iconologia em hábitos ; para os historiadores aprendizes , fluxo contínuo das provas e das discussões : as “ sú mulas” far ão
esses conceitos e métodos deixarão de ser o que é preciso aprender aparecer sua arquitetura lógica , espacializando tanto a escrita
para se tornarem isso a partir do que se vê , se lê , se decifra , se co- como o pensamento: divisões em parágrafos, subordinação visível
nhece. das partes , homogeneidade dos elementos do mesmo nível ; visibili-
Mas não me precipitarei. Gostaria apenas de dizer o que encon- dade , portanto , do conjunto do argumento . Nessa mesma época, a
trei de novo nesses textos que , para outros, já são clássicos: o des- ogiva torna perceptível o ponto nevr álgico da constru ção; substitui ,
locamento ao qual eles nos convidam e que tende , eu o espero , a pela grande continuidade do ber ço , a compartimentalização das
nos expatriar . traves; dá a mesma estrutura a todos os elementos que têm função
Um primeiro exemplo: a análise das relações entre o discurso e o id ê ntica. Aqui e ali, um só e mesmo princípio de manifestação .•
visível . O discurso não é , portanto , o fundo interpretativo comum a to-
Estamos convencidos , sabemos que tudo fala em uma cultura: dos os fenômenos de uma cultura. Fazer aparecer uma forma n ão é
as estruturas da linguagem dão forma à ordem das coisas. Outra uma maneira desviada ( mais sutil ou mais ingénua , como se quei-
versão ( muito fecunda, é sabido ) desse postulado da soberania do ra ) de dizer alguma coisa. Naquilo que os homens fazem , tudo não
80 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1967 - As Palavras e as Imagens 81

é , afinal de contas , um ru ído decifr ável. O discurso e a figura tê m , cursos reais . É possível que a obra de Panofsky valha como uma in-
cada um , seu modo de ser ; mas eles mantê m entre si relações com- dicação , talvez como um modelo: ela nos ensina a analisar não ape-
plexas e embaralhadas . É seu funcionamento recíproco que se tra- nas os elementos e as leis de sua combinação , mas o funcionamen -
ta de descrever . to recíproco dos sistemas na realidade de uma cultura.
Outro exemplo: a análise da função representativa da pintura
nos Essais d’ iconologie .
Até o final do século XIX, a pintura ocidental “ representava ” : por
sua disposição formal , um quadro tinha sempre relação com um
certo objeto . Problema incansavelmente retomado de saber o que ,
dessa forma ou desse sentido , determina o essencial de uma obra .
Panofsky substitui essa oposição simples pela análise de uma fun-
ção representativa complexa que atravessa , com valores diferentes ,
toda a densidade formal do quadro.
O que representa um quadro do século XVI está presente nele
sob quatro formas. As linhas e as cores representam os objetos -
homens , animais , coisas , deuses -, mas sempre de acordo com as
regras formais de um estilo. Nos quadros de uma época há posicio-
namentos rituais , que permitem saber se nos deparamos com um
homem ou um anjo , com uma aparição ou uma realidade ; eles tam-
bé m indicam valores expressivos - cólera de um rosto , melancolia
de uma floresta -, mas de acordo com as regras formais de uma
convenção ( as paixões em Le Brun não tê m a mesma característica
que em Dü rer ) ; por sua vez , esses personagens , essas cenas , essas
m í micas e esses gestos encarnam temas , episódios , conceitos ( que-
da de Vulcano , primeiras eras do mundo , inconstância do Amor ) ,
mas de acordo com as regras de uma tipologia ( no século XVI , a es-
pada pertence a Judith , não a Salomé ) ; enfim , esses temas d ão lu-
gar ( no sentido estrito da palavra ) a uma sensibilidade , a um siste-
ma de valores , mas conforme as regras de um tipo de sintomatolo-
gia cultural .
A representação não é exterior nem indiferente à forma. Ela está
ligada a esta por um funcionamento que pode ser descrito , desde
que se discriminem os seus n íveis e que se precise , para cada um
deles , o modo de análise que deve ser específico a ele . Então , a obra
aparece em sua unidade articulada.
A reflexão sobre as formas , cuja importâ ncia se reconhece hoje ,
foi a história da arte desde o século XIX que a fez nascer . Há cerca
de 40 anos , ela havia emigrado para as regiões da linguagem e das
estruturas lingúísticas . Ora , colocam-se múltiplos problemas - e
bastante dif íceis de resolver - quando se deseja ultrapassar os limi-
tes da língua , do instante mesmo em que se pretende tratar dos dis-
1968 - Sobre a Arqueologia das Ci ências. Resposta ao Círculo de Epistemologiâ 83

A periodização arqueológica delimita , no contínuo, conjuntos sincrônicos , reu -


1968 nindo os saberes sob a forma de sistemas unitários. Seria aceitável uma alternativa
que lhe foi proposta entre um historicismo radical ( a arqueologia poderia predizer
sua própria reinscrição em um novo discurso) e uma espécie de saber absoluto ( do
qual alguns autores poderiam ter tido o pressentimento independentemente das
exigências epistemológicas )?
Sobre a Arqueologia das Ciê ncias. Resposta ao
O C í rculo de Epistemologiâ
Círculo de Epistemologiâ

A história e a descontinuidade
"Sobre a arqueologia das ciê ncias. Resposta ao Círculo de Epistemologiâ ” , Cahiers
-
pour l’ analyse , n29: Gé né alogie des sciences , ver ão de 1968 , ps . 9 40. Uma curiosa interseção . Por décadas até hoje a atenção dos his -
Nossa ú nica inten ção nas perguntas aqui dirigidas ao autor de Hist ó ria da loucura , toriadores se voltou preferencialmente sobre os longos per í odos .
O nascimento da cl í nica e As palavras e as coisas foi pedir -lhe para falar sobre sua Como se , sob as peripécias pol í ticas e seus episódios , eles buscas-
teoria e sobre as implicações de seu m étodo de proposições cr íticas que fundam a sem esclarecer os equilíbrios estáveis e difí ceis de romper , os im-
sua possibilidade . O interesse do Cí rculo é pedir-lhe para definir suas respostas em pérceptíveis processos , os constantes reajustes , os fenômenos ten-
relação ao estatuto da ciência , de sua histó ria e de seu conceito .
denciais que culminam e se invertem após continuidades secula-
Sobre a episteme e a ruptura epistemol ógica res , os movimentos de acumulação e as lentas saturações , as gran -
Desde a obra de Bachelard , a noção de ruptura epistemológica serve para nomear
des bases imóveis e mudas que o emaranhado das narrativas tradi -
a descontinuidade que a filosofia e a história das ciências acreditam marcar entre o cionais tinha recoberto por toda uma densidade de acontecimen-
nascimento de qualquer ciê ncia e a "trama de erros positivos , tenazes , solidários ” , tos . Para conduzir essa análise , os historiadores dispõem de ins -
retrospectivamente reconhecida como a precedendo . Os exemplos protot í picos de trumentos que , por um lado , fabricaram e , por outro , receberam :
Galileu , Newton , Lavoisier , mas também de Einstein e Mendeleïev ilustram a perpe-
tuação horizontal dessa ruptura .
modelos do crescimento económico , análise quantitativa dos flu -
xos de mudanças , perfis dos crescimentos e das regressões demo-
O autor de As palavras e as coisas marca uma descontinuidade vertical entre a
configuração epistêmica de uma é poca e a subseqüente. gráficos , estudo das oscilações do clima . Esses instrumentos lhes
Perguntamo-lhe que relações mantêm entre si essa horizontalidade e essa verti- permitiram distinguir , no campo da história , diversos estratos se -
calidade 1. dimentares ; as sucessões lineares , que tinham constituí do até en-
tão o objeto da pesquisa , foram substituí das por uma série de rup-
turas em profundidade . Da mobilidade polí tica às lentidões carac-
1 . Tentamos retomar nessa pergunta a seguinte passagem do artigo de G. Cangui-
ter ísticas da “ civilização material ” , os níveis de análise se multipli -
-
lhem consagrada ao livro de M . Foucault (Critique , n- 242 , ps. 612 613) : "Tratan - caram ; cada um tem suas rupturas específicas; cada um comporta
- -
do se de um saber teórico , é poss ível pensá lo, na especificidade de seu conceito , um corte que apenas lhe pertence ; e , à medida que se desce até os
sem referê ncia a qualquer norma? Dentre os discursos teóricos mantidos de acordo estratos mais profundos , as escansões se fazem cada vez mais am-
com o sistema epistêmico dos séculos XVII e XVIII , alguns , como a história natural ,
foram descartados pela episteme do século XIX , enquanto outros foram nela inte-
plas . A velha questão da história ( que ligação estabelecer entre os
grados. Embora tenha servido de modelo para os fisiologistas da economia animal acontecimentos descontínuos? ) foi substituí da desde então por
durante o século XVIII , a física de Newton não se desacreditou com ela. Buffon foi re- uma série de interrogações dif íceis : que estratos é preciso isolar
futado por Darwin , mesmo que ele não o tenha sido por Étienne Geoffroy Saint - uns dos outros? Que tipo e que critério de periodização é necessá-
Hilaire . Mas Newton não foi mais refutado por Einstein do que por Maxwell. Darwin rio adotar para cada um deles? Que sistema de relações ( hierar -
-
não foi refutado por Mendel e Morgan . A sucessão Galileu Newton -Einstein não
quia , dominância , estratificação , determinação unívoca , causalida-
apresenta rupturas semelhantes às observadas na sucessão Tournefort Lineu - -
Engler em sistem ática botânica ." de circular ) pode ser descrito entre eles?
84 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1968 - Sobre a Arqueologia das Ciências. Resposta ao C írculo de Epistemologia 85

Ora, quase na mesma é poca , nessas disciplinas que se chamam namento , a emergê ncia de um mecanismo , o instante de desregula-
história das id éias , das ciê ncias , da filosofia, do pensamento , tam- ção de uma causalidade circular . Ela é , enfim , um conceito que o
bé m da literatura ( sua especificidade pode ser negligenciada no trabalho não cessa de especificar : ela não é mais esse vazio puro e
momento ) , disciplinas que , apesar de seus títulos , escapam em uniforme que separa por uma só e mesma lacuna duas figuras po-
grande parte ao trabalho do historiador e a seus métodos , a aten- sitivas; ela assume uma forma e uma função diferentes conforme o
ção deslocou-se , ao contr ário, das vastas unidades formando “ é po- dom ínio e o nível nos quais é assinalada . Noção que não deixa de
ca” ou “ século” para os fenômenos de ruptura. Sob as grandes con- ser bastante paradoxal : já que ela é , ao mesmo tempo , instrumento
p tinuidades do pensamento, sob as manifestações maciças e homo- e objeto de pesquisa , já que delimita o campo de uma análise da
I gê neas da razão , sob a evolu ção tenaz de uma ciê ncia obstinan- qual ela é o efeito; já que permite individualizar os domínios , mas
do-se para existir e se aperfeiçoar desde o seu começo , procura-se que só podem ser estabelecidos em comparação com ela ; já que ela
atualmente detectar a incidência das interrupções. G . Bachelard rompe unidades , apenas para estabelecer novas ; já que ela escande
delimitou os limiares epistemológicos que rompem o acú mulo infi- as sé ries e multiplica os níveis . E porque , afinal de contas , ela não é
nito de conhecimentos ; M. Gueroult descreveu os sistemas fecha- simplesmente um conceito presente no discurso do historiador ,
dos , arquiteturas conceituais fechadas que escandem o espaço do mas aquilo que , em segredo , ele supõe ; donde poderia ele falar , de
discurso filosófico; G. Cánguilhem analisou as mutações , os deslo- fato , senão a partir dessa ruptura que lhe oferece como objeto a
camentos, as transformações no campo de validade e as regras de história - e sua pr ópria história?
uso dos conceitos. Quanto à análise liter ária, é a estrutura interna i Poder íamos dizer , de modo esquemá tico , que a história e , de
da obra - menos ainda , do texto - que ela interroga . \ uma maneira geral , as disciplinas históricas deixaram de ser a re-
Mas que essa interseção não crie , no entanto , ilusão . Não é para constituição dos encadeamentos para além das sucessões aparen -
se imaginar , a partir da crença na aparê ncia , que certas disciplinas tes ; elas praticam desde então a sistemá tica introdu ção do descon -
históricas tenham ido do contínuo ao descontínuo , enquanto ou - tínuo. A grande mutação que as caracteriza em nossa é poca não é a
\
tras - para dizer , de imediato , a história - iriam da abundância das expansão de seu domí nio até os mecanismos económicos que elas
descontinuidades às grandes unidades ininterruptas. De fato , foi a há muito tempo conheciam ; tampouco é a integração de fenômenos
noção de descontinuidade que mudou de estatuto. Para a histó ria , ideológicos , de formas de pensamento , dos tipos de mentalidade : o
na sua forma clássica , o descontí nuo era simultaneamente o dado e século XIX já os havia analisado . É , antes , a transformação do des-
o impensável: o que se oferecia sob a forma de acontecimentos , ins- contínuo: sua passagem de obstáculo à pr ática ; essa interiorização
tituições, id éias ou práticas dispersas ; era o que devia ser contor - no discurso do historiador que permitiu que ele não fosse mais a
nado , reduzido , apagado pelo discurso da história , para que apare- fatalidade exterior que é preciso reduzir , mas o conceito operatório
cesse a continuidade dos encadeamentos. A descontinuidade era que se utiliza ; essa inversão de sinais , graças à qual ele não é mais
esse estigma da dispersão temporal que o historiador tinha o en- o negativo da leitura histórica ( seu avesso , seu fracasso , o limite de
cargo de suprimir da história. Ela se tornou , atualmente , um dos seu poder ) , mas o elemento positivo que determina seu objeto e va-
elementos fundamentais da análise histórica . Aí , ela aparece com lida sua análise . É preciso aceitar compreender em que se transfor -
mou a história no trabalho real dos historiadores: um certo uso re-
r uma tripla função. Constitui , inicialmente , uma operação delibera-
j da do historiador ( e não mais o que ele recebe , apesar dele mesmo, grado da descontinuidade para a análise das sé ries temporais .
do material que tem a tratar ) : pois ele deve , ao menos a título de hi- Compreende-se que muitos tenham permanecido cegos a este
pótese sistemática , distinguir os níveis possíveis de sua análise e fi- fato que nos é contempor âneo , e do qual , no entanto , o saber histó-
r xar as periodizações que lhe convêm. Ela é também o resultado de rico d á testemunho há quase meio século . Se a história podia , de
sua descrição ( e não mais o que deve ser eliminado como efeito de fato , manter o laço das continuidades ininterruptas, se ela inces-
sua análise ) : pois o que ele tenta descobrir são os limites de um santemente ligava os encadeamentos que nenhuma análise poderia
processo, o ponto de inflexão de uma curva , a inversão de um movi- desfazer sem abstração , se ela tramava , em torno dos homens , de
mento regulador , os limites de uma oscilação, o limiar de um funcio- suas palavras e de seus gestos , obscuras sínteses sempre prontas a
86 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1968 - Sobre a Arqueologia das Ciências. Resposta ao C í rculo de Epistemologia 87

se reconstituírem , ela seria então um abrigo privilegiado para a os seus momentos , que se pedia para salvar o que devia ser salvo:
consciê ncia : o que ela lhe retira, evidenciando as determinações quem ousaria despojar o sujeito de sua história recente? A história
materiais , as práticas inertes , os processos inconscientes , as inten- assassinada ser á alardeada cada vez que, em uma análise histórica
ções esquecidas no mutismo das instituições e das coisas, ela lhe ( e , sobretudo, quando se trata do conhecimento ) , o uso da descon -
restituiria sob a forma de uma síntese espontânea; ou , antes , ela tinuidade se tornar muito visível. Mas é preciso não se enganar : o
lhe permitiria recuper á-la , apoderar -se novamente de todos os fios que se lamenta tão intensamente não é absolutamente o ponto de
que lhe haviam escapado, reanimar todas essas atividades mortas I apagamento da história , é o desaparecimento dessa forma de histó-
e voltar a ser , em uma ótica nova ou restaurada, o sujeito soberano. ria que era secretamente , mas inteiramente , referida à atividade
A história contínua é o correlato da consciê ncia: a garantia de que o sinté tica do sujeito . Outrora acumularam-se todos os tesouros na
que lhe escapa poder á lhe ser devolvido ; a promessa de que todas velha cidadela dessa história: acreditava-se que ela era sólida , por -
essas coisas que a circundam e a ultrapassam lhe será dado um dia que ela tinha sido sacralizada , e que ela era o lugar último do pen-
tornar a se apropriar delas , restaurar aí seu domínio, e encontrar o samento antropológico. Mas há bastante tempo os historiadores
que é necessário chamar - atribuindo à palavra tudo o que ela tem partiram para trabalhar em outro lugar . Não é mais possível contar
de sobrecarga - sua morada. Querer fazer da análise histórica o com eles para manter os privilégios, nem para reafirmar uma vez
discurso do contí nuo e fazer da consciê ncia humana o tema origi- mais uma fé exagerada - quando se teria uma grande necessidade
nário de qualquer saber e de qualquer pr ática são as duas faces de dela diante da misé ria atual - de que a história , ao menos ela, é viva
um mesmo sistema de pensamento. Nele o tempo é concebido em e contí nua.
termos de totalização , e a revolução nada mais é do que uma toma-
da de consciê ncia .
Quando , desde o in ício deste século , as pesquisas psicanalí ticas , O campo dos acontecimentos discursivos
lingúísticas , depois etnológicas despojaram o sujeito das leis de
seu desejo , das formas de sua fala , das regras de sua ação e dos sis- Se quisermos aplicar sistematicamente ( ou seja , definir , utilizar
temas de seus discursos m íticos , aqueles que , entre nós , são encar - de uma maneira tão geral quanto possível e validar ) o conceito de
regados de toda salvaguarda , constantemente , replicavam: sim , descontinuidade nesses domí nios , tão incertos em suas fronteiras ,
mas a história.. . A história que não é estrutura , mas vir a ser ; que tão indeterminados em seu conte údo , que se chama história das
não é simultaneidade , mas sucessão ; que não é sistema , mas pr á ti- idéias , do pensamento , da ciê ncia ou dos conhecimentos, depara -
ca; que não é forma, mas esfor ço incessante de uma consciência re- mo-nos com um certo n ú mero de problemas .
tomando a si mesma e tentando se ressarcir até o mais profundo de Logo de início, as tarefas negativas. É preciso libertar -se de toda
suas condições ; a história que não é descontinuidade , mas longa uma série de noções ligadas ao postulado de continuidade . Elas
paciê ncia ininterrupta. Mas , para cantar essa cantilena da contes- não tê m certamente uma estrutura conceituai muito rigorosa , mas
tação era preciso desviar os olhares do trabalho dos historiadores: sua função é muito precisa. Tal como a noção de tradição, que per -
recusar ver o que se passa atualmente em sua pr á tica e em seu dis- mite simultaneamente situar qualquer novidade a partir de um sis-
curso; fechar os olhos diante da grande mutação de sua disciplina ; tema de coordenadas permanentes e dar um status a um conjunto
permanecer obstinadamente cego para o fato de que a história não de fenômenos constantes . Tal como a noção de influência , que d á
é talvez , para a soberania da consciê ncia , um lugar melhor abriga- um suporte - mais mágico do que substancial - aos fatos de trans-
do, menos perigoso do que os mitos , a linguagem ou a sexualidade ; missão e comunicação. Tal como a noção de desenvolvimento , que
enfim , seria preciso reconstituir , para se reassegurar , uma história permite descrever uma sucessão de acontecimentos como a mani- !
como não se faz mais. E, no caso em que essa história não ofereces- festação de um só e mesmo princípio organizador . Tal como a no-
se bastante segurança, é ao devir do pensamento , dos conhecimen- ção , simétrica e oposta , de teleologia ou de evolução para um está-
tos , do saber , é ao devir de uma consciê ncia, sempre pr óxima dela gio normativo. Tais como as noções de mentalidade ou de espírito
mesma , perpetuamente ligada ao seu passado e presente em todos de uma época , que permitem estabelecer entre fenômenos simultâ-
88 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1968 - Sobre a Arqueologia das Ciências. Resposta ao Círculo de Epistemologia 89

neos ou sucessivos uma comunidade de sentidos, ligações simbóli- começam . Elas não são menores que aquelas encontradas pelo lin-
cas, um jogo de semelhanças e de espelhos . É preciso abandonar gü ista quando ele quer definir a unidade da frase , ou pelo historia-
essas sínteses fabricadas , esses agrupamentos que são aceitos an- dor , quando quer definir a unidade da literatura ou da ciê ncia. Ini-
tes de qualquer exame , essas ligações cuja validade é admitida de cialmente , a unidade do livro não é uma unidade homogé nea: a rela- !

saída; rejeitar as formas e for ças obscuras pelas quais se tem o há- ção entre diferentes tratados de matemática não é a mesma existente
bito de ligar entre si os pensamentos dos homens e seus discursos ; entre diferentes textos filosóficos; não é possível sobrepor a diferen-
aceitar ter relação apenas , em primeira instância , com uma popu - ça entre um romance de Stendhal e um de Dostoïevski à que separa
ã dois romances da Comédia humana; e esta, por sua vez , não é pos-
í lação de acontecimentos dispersos .
g sível sobrepor à que separa Ulysses2 de Dedalus3. Mas, além disso ,
r É preciso não mais sustentar como válidos os recortes ou agru-
j pamentos com os quais adquirimos familiaridade. Não se podem os limites de um livro nunca são nítidos , nem rigorosamente distin-
L
admitir tais quais nem a distinção dos grandes tipos de discurso , tos: nenhum livro pode existir por si mesmo; ele está sempre em
nem a das formas ou gêneros ( ciê ncia, literatura , filosofia , religião , uma relação de apoio e de dependência em relação a outros ; é um
história , ficções etc. ) . Os motivos saltam aos olhos. Nós mesmos ponto em uma rede ; comporta um sistema de indicações que reme-
não estamos seguros do uso dessas distinções no nosso pr óprio tem - explicitamente ou não - a outros livros , textos ou frases; e ,
mundo de discurso . Com mais forte razão quando se trata de anali- conforme se relacione com um livro de í f sica , uma coletânea de dis-
sar os conjuntos de enunciados que eram distribu ídos, repartidos cursos políticos ou um romance de ficção científica, a estrutura de
e caracterizados de uma maneira totalmente diferente : afinal , a “ li- atribuição , e , conseq üentemente , o sistema complexo de autonomia
teratura” e a “ política” são categorias recentes que não podem ser e de heteronomia não ser á o mesmo. O livro se compraz em se ofere-
aplicadas à cultura medieval , ou ainda à cultura clássica , a não ser cer como objeto que se tem na mão; satisfaz-se em compactar -se
por uma hipótese retrospectiva e por uma sé rie de novas analogias nesse pequeno paralelepípedo que o fecha ; sua unidade é variável e
ou de semelhanças semâ nticas: mas nem a literatura , nem a polí ti- relativa: ela não se constr ói , não se indica e , conseqüentemente , ape-
ca , nem , conseq üentemente , a filosofia e as ciê ncias articulavam o nas pode ser descrita a partir de um campo de discurso.
campo do discurso nos séculos XVII ou XVIII como elas o articula- Quanto à obra , os problemas que ela levanta são ainda mais dif í-
ram no século XIX. De qualquer forma , certamente é preciso tomar ceis . Aparentemente , trata-se da soma de textos que podem ser de-
consciê ncia de que esses recortes - quer se trate dos que admiti- notados pelo signo de um nome pr ó prio . Ora , essa denotação ( mes-
mos ou dos que são contempor â neos aos discursos estudados - mo se deixamos de lado os problemas da atribuição ) não é uma
são sempre , eles mesmos , categorias reflexivas , princípios de clas- função homogé nea : um nome de autor não denota da mesma ma-
sificação , regras normativas, tipos institucionalizados: por sua vez , neira um texto que ele pr ó prio publicou sob seu nome , um outro
eles são fatos de discurso que merecem ser analisados ao lado de que ele apresentou sob um pseudónimo, um outro que ter á sido
outros , que mantê m certamente com eles relações complexas , mas encontrado após sua morte no estado de esboço, ainda um outro
que não tê m caracter ísticas intr í nsecas autóctones e universalmen- que não passa de rabiscos , uma caderneta de notas , um “ papei ” . A
te reconhecíveis. constituição de uma obra completa ou de um opus supõe um certo
Mas , sobretudo, as unidades que é preciso colocar em suspenso número de escolhas teóricas que não é fácil de justificar nem mes-
são aquelas que se impõem da maneira mais imediata: as do livro e mo de formular : ser á que basta juntar , aos textos publicados pelo
da obra. Aparentemente , não se pode apagá-las sem extremo artif í- autor , aqueles que ele planejava publicar e que só ficaram inacaba-
cio: elas são aceitas como certas , seja por uma individualização ma- \
terial ( o livro é uma coisa que ocupa um espaço determinado , tem 2. Joyce ( J . ) , Ulysses , Paris, Shakespeare and Company , 1922 ( Ulysse , trad . A .
seu valor económico e que marca por si mesmo , a partir de um certo Morel , revista por S. Gilbert , V. Larbaud e o autor , Paris , Gallimard , col . "Du Monde
n ú mero , os limites de seu começo e de seu fim ) , seja por uma rela- Entier ” , 1937 ) .
ção de atribuição ( mesmo se , em certos casos , ela é bastante proble- .
3. Joyce ( J . ) , Dedalus. Aportrait of the artist as a young man Nova Iorque , Ben W.
mática ) entre os discursos e o indivíduo que os proferiu . E , no en- Huebsch , 1916 ( Dedalus. Portrait de l’ artiste jeune par lui- mê me , trad . L .
Savitzky , Paris , Gallimard , col . “ Du Monde Entier ” , 1943) .
il
tanto , desde que se as examine com mais atenção , as dificuldades
90 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1968 - Sobre a Arqueologia das Ciências. Resposta ao Círculo de Epistemologia 91

dos pelo fato de sua morte? Ser á preciso incluir também todos os Finalmente , última medida para colocar fora de circuito as irre-
rascunhos , primeiros esboços , correções e rasuras das obras? E fletidas continuidades pelas quais se organiza, antecipadamente e
preciso acrescentar os esboços abandonados? Que valor dar às em um meio-segredo, o discurso que se pretende analisar : renun-
cartas , às notas, às conversas narradas, aos discursos transcritos ciar a dois postulados que estão interligados e se confrontam . Um
pelos ouvintes , em suma , a essa imensa abundância de traços ver - supõe jamais ser possível assinalar , na ordem do discurso , a irrup-
bais que um indivíduo deixa em torno dele no momento de morrer , ção de um acontecimento verdadeiro; que , para além de todo co-
que falam , em um entrecruzamento perpétuo , várias linguagens di- meço aparente , há sempre uma origem secreta - tão secreta e tão
ferentes e prosseguem por séculos , milénios , talvez , antes de se originária que não se pode recuper á-la inteiramente nela mesma.
apagarem? Em todo caso, a denotação de um texto pelo nome Mal- Embora fôssemos fatalmente reconduzidos , através da ingenuida-
larmé não é certamente do mesmo tipo quando se trata de temas de das cronologias , a um ponto infinitamente recuado, jamais pre-
ingleses , de traduções de Edgar Poe , de poemas ou de respostas a sente em nenhuma história ; ele mesmo seria apenas seu pr ó prio
entrevistas ; da mesma forma não existe a mesma relação entre , por vazio ; e , a partir dele , todos os começos apenas poderiam ser reco-
um lado , o nome Nietzsche e , por outro, as autobiografias de juven- meços ou ocultações ( para dizer a verdade , em um só e mesmo ges-
tude , as dissertações escolares , os artigos filológicos, Zaratastra , to , isso e aquilo ) . Ligado a esse tema está o de que todo discurso
Ecce homo , as cartas , os últimos cartões-postais assinados por Dio-
manifesto reside secretamente em um já dito; mas esse já dito não
nysos ou Kaiser Nietzsche , as inumeráveis cadernetas onde se mis-
é simplesmente uma frase já pronunciada , um texto já escrito , mas
turavam notas de lavanderia e projetos de aforismos.
um “ jamais dito", um discurso sem corpo, uma voz tão silenciosa
De fato , a ú nica unidade que poderia ser reconhecida na “ obra ”
quanto um sopro, uma escrita que não passa do vazio de seu pr ó-
de um autor é uma certa função de expressão . Supõe-se que deve
prio traço . Supõe-se assim que tudo que ocorre ao discurso formu -
haver um n ível ( tão profundo que é necessário supô-lo ) no qual a
lar já se acha articulado nesse meio-silêncio que o precede , que
obra se revela , em todos os seus fragmentos , mesmo os mais mi-
continua a correr obstinadamente por baixo dele , mas que ele reco-
n úsculos e os mais dispensáveis , como a expressão do pensamen-
bre e faz calar . O discurso manifesto seria , afinal de contas , apenas
to , da experiê ncia , da imaginação , do inconsciente do autor ou das
a presença depressiva do que ele não diz ; e esse não-dito seria um
determinações históricas às quais ele estava preso. Mas logo se vê
vazio que anima do interior tudo o que se diz. O primeiro motivo
que essa unidade do opus , longe de ser dada imediatamente , é
consagra a análise histórica do discurso a ser procura e repetição
constitu ída por uma operação; que essa operação é interpretativa
de uma origem que escapa a qualquer determinação da origem ; o
( no sentido de que ela decifra, no texto , a expressão ou a transcri-
segundo a consagra a ser interpretação ou escuta de um já dito , que
ção de alguma coisa que simultaneamente ela esconde e manifes-
seria ao mesmo tempo um não-dito. E preciso renunciar a todos
ta ) ; que , enfim , a operação que determina o opus em sua unidade e ,
esses temas que tê m por função garantir a infinita continuidade do
conseqüentemente , a pr ó pria obra como resultado dessa operação
discurso e sua secreta presença em si mesmo no jogo de uma au -
não ser ão as mesmas , quer se trate do autor do Théâtre et sort
sê ncia sempre reconduzida. É preciso acolher cada momento do
double 4 ou do autor de Tractatus5. A obra não pode ser considera-
discurso em sua irrupção de acontecimento ; na pontualidade em
da como uma unidade imediata , como uma unidade certa , nem
que ele aparece e na dispersão temporal que lhe permite ser repeti-
como uma unidade homogé nea.
do , sabido , esquecido , transformado , apagado até em seus meno-
res traços , enterrado , bem longe de qualquer olhar , na poeira dos
4. Artaud ( A. ) , Le théâ tre et son double , Paris , Gallimard , col . " Métamorphoses ,
"
livros. Não é preciso remeter o discurso à longínqua presença da
1938 ( reeditada em Oeuvres complètes , Paris , Gallimard , "Collection Blanche , t . origem ; é preciso tratá-lo no jogo da instância pr ó prio a cada um .
IV , 1978 ) . Uma vez descartadas essas formas pr évias de continuidade , es-
-
5. Wittgenstein ( L . ) , Tractatus loglco philosophicus , Londres , Routledge & Kegan
sas sínteses mal reguladas do discurso, todo um domínio se acha
Paul , 1922 (Tractatus logico philosophicus . Seguido de: investigations philoso-
-
phiques . Introdução de B. Russell , trad . Pierre Klossowski , Paris , Gallimard , col . liberado. Um domínio imenso , mas que pode ser definido: ele é
"Tel" , n- 109 , 1990 ) . constituído pelo conjunto de todos os enunciados efetivos ( tenham
,j
92 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1968 - Sobre a Arqueologia das Ciências. Resposta ao Círculo de Epistemologia 93

sido eles falados e escritos ) , em sua dispersão de acontecimentos e discurso que ela utiliza. Sua questão é infalivelmente : o que , afinal,
na instância que é caracter ística de cada um . Antes de se relacionar se dizia no que era dito? Mas a análise do discurso tem uma finali-
com uma ciê ncia , romances , discursos políticos ou com a obra de dade completamente diferente ; trata-se de apreender o enunciado
um autor , ou mesmo com um livro, o material que se tem a tratar na estreiteza e na singularidade de seu acontecimento ; de determi-
em sua neutralidade primeira é uma população de acontecimentos nar as condições de sua existê ncia , de fixar da maneira mais justa
no espaço do discurso em geral . Assim surge o projeto de uma des- os seus limites, de estabelecer suas correlações com os outros
crição pura dos Jatos de discurso . Essa descrição se distingue fa- enunciados aos quais ele pode estar ligado , de mostrar que outras
cilmente da análise da língua. Certamente , só é possível estabelecer formas de enunciação ele exclui. Não se procura absolutamente ,
um sistema lingúístico ( se ele não é construído artificialmente ) uti - por baixo do que é manifesto , o falatório em surdina de um outro
lizando um corpus de enunciados ou uma coleção de fatos de dis- discurso. Deve-se mostrar por que ele não poderia ser diferente do
curso ; mas trata-se então de definir , a partir desse conjunto que que é , em que ele exclui qualquer outro discurso, como ele ocupa
tem valor de amostra , as regras que permitem construir enuncia- dentre os outros e em relação a eles um lugar que nenhum outro
dos eventualmente diferentes daqueles: uma língua , mesmo se de- poderia ocupar . A questão pr ópria da análise do discurso poderia
sapareceu há muito tempo , mesmo se ninguém a fala mais e que se ser formulada da seguinte maneira: qual é essa irregular existê ncia
a restaure a partir de raros fragmentos , constitui sempre um siste- que emerge no que se diz - e em nenhum outro lugar?
ma de enunciados possíveis; é um conjunto finito de regras que au- Podemos nos perguntar para que pode servir afinal essa suspen -
toriza um n ú mero infinito de performances . O discurso , em con- são de todas as unidades admitidas, essa obstinada perseguição da
trapartida , é um conjunto sempre finito e atualmente limitado uni- descontinuidade , se , no final das contas , trata-se de libertar uma
camente pelas seq üê ncias lingúísticas que foram formuladas ; elas poeira de acontecimentos discursivos , de acolhê-los e de conser -
podem ser certamente inumeráveis , podem , por sua massa , ultra- vá-los em sua pura dispersão. De fato, o sistemático apagamento
passar qualquer capacidade de registro , de memória ou de leitura : das unidades previamente dadas permite , de início , restituir ao
não obstante , elas constituem um conjunto finito . A questão que a enunciado a sua singularidade de acontecimento: ele não é mais
análise da língua coloca , a respeito de um fato qualquer de discur - considerado simplesmente como a colocação em jogo de uma es-
so , é sempre: segundo que regras tal enunciado foi construído e , trutura lingü istica , nem como a manifestação episódica de uma sig-
conseqúentemente , conforme que regras outros enunciados seme- nificação mais profunda do que ele ; ele é tratado em sua irrupção
lhantes poderiam ser constru ídos? A descrição do discurso coloca histórica ; o que se tenta observar é essa incisão que o constitui ,
uma questão diferente: como ocorre que tal enunciado tenha surgi- essa irredutível - e bem freq üentemente min úscula - emergê ncia .
do e nenhum outro em seu lugar? Tão banal quanto ele seja , tão pouco importante que o imaginemos
Vê-se igualmente que essa descrição do discurso se opõe à análi- em suas conseqúê ncias , tão rapidamente possa ser esquecido após
se do pensamento. Ali também apenas se pode reconstituir um sis- seu aparecimento , tão pouco entendido ou mal decifrado que o su-
tema de pensamento a partir de um conjunto definido de discur - ponhamos , tão r ápido possa ser devorado pela noite , um enuncia-
sos . Mas esse conjunto é tratado de tal maneira que se tenta redes- do é sempre um acontecimento que nem a língua nem o sentido po-
cobrir , para alé m dos pró prios enunciados , a intenção do sujeito dem de fato esgotar . Acontecimento estranho , certamente: de in í-
falante , sua atividade consciente , o que ele quis dizer , ou , ainda , o cio , já que é ligado , por um lado , a um gesto de escrita ou à articula -
jogo inconsciente que surge apesar dele mesmo no que ele disse ou ção de uma palavra , mas que , por outro , abre para si mesmo uma
na quase imperceptível fratura de suas palavras manifestas ; de existê ncia permanente no campo de uma memória , na materialida-
qualquer forma , trata-se de reconstituir um outro discurso , de re - de dos manuscritos , dos livros ou de não importa que forma de re-
encontrar a palavra muda , murmurante , inesgotável que anima do gistro; a seguir , já que é ú nico como qualquer acontecimento , ele é
interior a voz que se ouve , de restabelecer o texto miúdo e invisível oferecido à repetição , à transformação , à reativação ; finalmente ,
que percorre o interstício das linhas escritas e às vezes as desarru- porque ele é ligado simultaneamente a situações que o provocam e
ma . A análise do pensamento é sempre aleg ó rica em relação ao a conseqúências que ele incita , mas é ligado ao mesmo tempo , e de
!
1968 - Sobre a Arqueologia das Ciências. Resposta ao Círculo de Epistemologia 95
94 Michel Foucault - Ditos e Escritos

acordo com uma modalidade completamente diferente , a enuncia-


F'
um pouco por um jogo de palavras pois a consciência nunca está
dos que o precedem e que o sucedem . presente em tal descrição , de inconsciente , não do sujeito falante ,
Mas se isolamos , em relação à língua e ao pensamento , a instân- mas da coisa dita .
cia do acontecimento enunciativo , não é para tratá-la em si mesma Enfim , no horizonte de todas essas pesquisas , talvez se esboças- !
como se ela fosse independente , solitária e soberana . É , ao contrá- se um tema mais geral : o do modo de existência dos acontecimen-
rio , para apreender como esses enunciados , enquanto aconteci- tos discursivos em uma cultura . O que se trata de fazer aparecer é o
mentos e em sua especificidade tão estranha , podem se articular conjunto de condições que regem , em um momento dado e em uma
com acontecimentos que não são de natureza discursiva , mas que sociedade determinada , o surgimento dos enunciados , sua conser -
podem ser de ordem técnica , prática , económica , social , polí tica vação , os laços estabelecidos entre eles , a maneira pela qual os
etc . Fazer aparecer em sua pureza o espaç o onde se dispersam os I agrupamos em conjuntos estatutários , o papel que eles exercem , a
acontecimentos discursivos não é pretender estabelecê -lo em um ?: série de valores ou de sacralizações pelos quais são afetados , a ma-
corte que nada poderia superar ; não é tornar a fechá-lo nele pró- neira pela qual são investidos nas práticas ou nas condutas , os
prio , nem , com mais forte motivo , abri -lo a uma transcendê ncia; é , princípios segundo os quais eles circulam , são recalcados , esqueci -
ao contrário , tornar -se livre para descrever , entre ele e outros siste- dos , destruí dos ou reativados . Em suma , tratar-se-ia do discurso
mas que lhe são exteriores , um jogo de relações . Relações que de- no sistema de sua institucionalização . Chamarei de arquivo não a
vem ser estabelecidas - sem passar pela forma geral da lí ngua , nem totalidade de textos que foram conservados por uma civilização ,
pela consciência singular dos sujeitos falantes - no campo dos nem o conjunto de traços que puderam ser salvos de seu desastre ,
acontecimentos . ï mas o jogo das regras que , em uma cultura , determinam o apareci -
A terceira vantagem de tal descrição dos fatos de discurso é que , mento e o desaparecimento de enunciados , sua permanência e seu
libertando-os de todos os agrupamentos que se oferecem como [ apagamento , sua existência paradoxal de acontecimentos e de coi -
unidades naturais , imediatas e universais , surge a possibilidade de ? sas . Analisar os fatos de discurso no elemento geral de arquivo é
descrever , mas dessa vez por um conjunto de decisões controla- I considerá-los não absolutamente como documentos ( de uma signi -
das , outras unidades . Desde que se definam claramente suas con- f ficação escondida ou de uma regra de construção ) , mas como mo-
dições , poderia ser legí timo constituir , a partir de relações correta- numentos6 ; é - fora de qualquer metáfora geológica, sem nenhum
mente descritas , conjuntos discursivos que não seriam novos , mas
!
I assinalamento de origem , sem o menor gesto na direção do começo
que , no entanto , teriam permanecido invisíveis . Esses conjuntos I de uma archè - fazer o que poder í amos chamar , conforme os direi -
não seriam absolutamente novos porque seriam formados por
enunciados já formulados , dentre os quais se poderia reconhecer I
I
tos lúdicos da etimologia , de alguma coisa como uma arqueologia .
Essa é , aproximadamente , a problemática da Hist ó ria da loucu-
um certo número de relações claramente determinadas . Mas essas
relações jamais teriam sido formuladas por si mesmas nos enuncia- II ra, de O nascimento da cl í nica e de As palavras e as coisas . Ne -
nhum desses textos é autónomo , nem suficiente por si mesmo; eles
dos em questão ( diferentemente , por exemplo , dessas relações ex-
plícitas que são colocadas e ditas pelo próprio discurso , quando
! se apoiam uns nos outros , na medida em que se trata, a cada vez ,
da exploração muito parcial de uma região limitada . Eles devem
ele se dá sob a forma do romance , ou quando se inscreve em uma ser lidos como um conjunto apenas esboçado de experimentações
série de teoremas matemáticos ) . Mas essas relações invisíveis não descritivas . No entanto , mesmo que não seja necessário justifi -
i

constituiriam de forma alguma uma espécie de discurso secreto , cá-los por serem tão parciais e lacunares , é necessário explicar a
animando do interior os discursos manifestos ; portanto , não é escolha à qual eles obedecem . Pois , se o campo geral dos aconteci -
uma interpretação que poderia fazê-las emergir , mas sim a análise I mentos discursivos não permite nenhum recorte a priori , está ex-
de sua coexistência , de sua sucessão , de seu funcionamento mú- cluído entretanto que se possam descrever em bloco todas as rela-
tuo , de sua determinação recíproca , de sua transformação inde-
pendente ou correlativa. Todas elas ( embora jamais se possa anali-
sá-las de maneira exaustiva ) formam o que poder íamos chamar , 6. ( N .A. ) Devo ao Sr . Canguilhem a idéia de utilizar a palavra nesse sentido.
96 Michel Foucault - Ditos e Escritos
1968 - Sobre a Arqueologia das Ciências. Resposta ao Círculo de Epistemologia 97 I
ções caracter ísticas do arquivo. É preciso , portanto , em uma pri- dir sua imobilidade de superf ície ; arrisco suscitar a cada instante ,
meira aproximação , aceitar um corte provisório: uma região ini- sob cada uma de minhas proposições , a questão de saber de onde
cial , que a análise subverter á e reorganizar á quando tiver podido ele pode nascer : pois tudo isso que digo poderia ter como efeito
definir um conjunto de relações . Como circunscrever essa região? deslocar o lugar de onde eu o digo. Embora aí esteja a questão : de
Por um lado , é preciso escolher , empiricamente , o domínio em que onde você pretende falar , você que quer descrever - de tão alto e de
as relações tendem a ser numerosas, densas e relativamente fáceis tão longe - os discursos dos outros? Responderei somente : eu acre-
de descrever : e em que outra região os acontecimentos discursivos ditei que falava do mesmo lugar que esses discursos e que , definin-
parecem estar melhor ligados entre si, e conforme relações melhor do seu espaço, eu situaria minha inten ção ; mas devo agora reco-
decifr áveis , do que naquela que se designa em geral com o termo | nhecê -lo: de onde mostrei que eles falavam sem dizê-lo , eu mesmo
ciê ncia? Mas , por outro lado , como se dar mais chances de recupe-
só posso falar a partir dessa diferença , dessa í nfima descontinui-
rar em um enunciado não o momento de sua estrutura formal e de '
dade deixada , já detr ás dele , por meu discurso.
suas leis de construção , mas o de sua existê ncia e das regras de seu
surgimento , senão se dirigindo a grupos de discursos pouco forma-
lizados , nos quais os enunciados não parecem se engendrar de As formações discursivas e as positividades
acordo com regras de pura sintaxe? Como estar seguro , enfim , de
Tentei então descrever as relações de coexistê ncia entre os enun-
não se deixar envolver por todas essas unidades ou sínteses irrefle-
ciados . Tomei cuidado para não levar em conta nenhuma dessas
tidas que se referem ao indivíduo falante , ao sujeito do discurso , ao
unidades que podiam ser presumidas sobre eles e que a tradição
autor do texto , enfim , a todas essas categorias antropológicas? A
colocava à minha disposição: seja a obra de um autor , a coesão de
não ser talvez considerando justamente o conjunto dos enunciados ; uma é poca ou a evolu ção de uma ciê ncia. Sustentei-me apenas na
através dos quais essas categorias são constitu ídas - o conjunto presença dos acontecimentos pr óximos do meu pr óprio discurso -
dos enunciados que escolheram como “ objeto ” o tema dos discur - certo , daí em diante , de ter relação com um conjunto coerente se
sos ( seu pr ó prio tema ) - e tentando desdobr á-lo como campo de
conseguisse descrever entre eles um sistema de relações .
conhecimentos? ij Inicialmente me pareceu que certos enunciados podiam formar
Assim se explica o privilégio efetivamente concedido a esse jogo
y um conjunto , na medida em que eles se referem a um só e mesmo
de discurso , do qual se pode dizer , muito esquematicamente , que y objeto . Afinal , os enunciados referentes à loucura , por exemplo ,
define as “ ciê ncias do homem ” . Mas esse é apenas um privilégio de
não tê m todos certamente o mesmo n ível formal ( eles estão longe
partida . É preciso ter presentes no pensamento dois fatos : que a
de obedecer , todos , aos crité rios requisitados por um enunciado
análise dos acontecimentos discursivos e a descrição do arquivo científico ) ; não pertencem todos ao mesmo campo semâ ntico ( al-
não são de forma alguma limitadas a tal dom ínio ; e que , por outro guns decorrem da semâ ntica médica , outros, da semâ ntica jur ídica
lado , o recorte do pr ó prio domí nio não pode ser considerado como
3 ou administrativa , outros utilizam um léxico liter á rio ) , mas todos
definitivo nem como válido absolutamente ; trata-se de uma aproxi- se relacionam com esse objeto que se perfila de diferentes manei-
mação primeira que deve permitir fazer aparecer as relações que v ras na experiê ncia individual ou social , e que podemos designar
tendem a apagar os limites desse primeiro esboço . Ora, devo reco- 1 i como a loucura . Ora , rapidamente nos apercebemos de que a uni -
nhecer que esse projeto de descrição , da forma como tento circuns- î !; dade do objeto não permite individualizar um conjunto de enuncia -
crevê-lo agora , encontra-se ele pr óprio preso na região que preten- ’

dps e estabelecer entre eles uma relação simultaneamente descriti-


do , em uma primeira abordagem , analisar , e que tende a se disso-
ciar sob o efeito da análise . Interrogo essa estranha e bem proble-
va e constante . E isso por duas razões . Porque o objeto , longe de
mática configuração das ciê ncias humanas , à qual meu discurso se
I 11 ser o que se relaciona com o que pode ser definido como um con-
junto de enunciados , é antes constitu ído pelo conjunto dessas for -
encontra ligado . Analiso o espaço em que falo . Exponho-me a des- mulações ; seria um engano buscar do lado da “ doença mental” a
fazer e a recompor esse lugar que me indica as balizas primeiras do
unidade do discurso psicopatológico ou psiquiátrico ; certamente
meu discurso ; tento dissociar dele as coordenadas visíveis e sacu- |:
\\

1
98 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1968 - Sobre a Arqueologia das Ciências. Resposta ao C írculo de Epistemologia 99
I
se estaria enganado se se pedisse ao ser mesmo dessa doença , ao transformação. A unidade dos discursos sobre a loucura não está
seu conte údo secreto, à sua verdade muda e fechada novamente em fundamentada na existê ncia do objeto “ loucura” ou na constituição
'

si mesma o que se pôde dizer dela em um momento dado ; a doença de um horizonte ú nico de objetividade ; é o conjunto das regras que
mental foi constituída pelo conjunto do que pôde ser dito no grupo tornam possíveis , durante uma determinada época , o aparecimen-
de todos os enunciados que a nomeavam , a recortavam , a descre- to de descrições médicas ( com seu objeto ) , o aparecimento de uma
viam , a explicavam , relatavam seus desenvolvimentos , indicavam série de medidas discriminatórias e repressivas ( com seu objeto
suas diversas correlações , a julgavam e , eventualmente , empresta- próprio ) , o aparecimento de um conjunto de pr áticas codificadas
vam-lhe a palavra, articulando em seu nome discursos que deviam em receitas ou em medicações ( com seu objeto específico ) . É , por -
passar por seus. Poré m há mais: esse conjunto de enunciados rela- ^tanto , o conjunto de regras que dão conta menos do pr óprio objeto
em sua identidade do que de sua não-coincidê ncia consigo mesmo ,
I tivos à loucura , e que de fato a constituem , está longe de se relacio-
! nar com um ú nico objeto, de o ter formado de uma vez por todas e de sua perpétua diferença , de sua defasagem e de sua dispersão .
de conservá-lo perpetuamente como seu horizonte de idealidade Além disso , a unidade dos discursos sobre a loucura é o jogo das
inesgotável ; o objeto que é colocado como seu correlato pelos enun- regras que definem as transformações desses diferentes objetos ,
ciados médicos dos séculos XVII ou XVIII não é idê ntico ao objeto sua não-identidade através dos tempos , a ruptura neles produzida ,
que se delineia através das sentenças jurídicas ou das medidas po- a descontinuidade interna que suspende sua permanê ncia. Para-
^ liciais ; da mesma forma, todos os objetos do discurso psicopatoló- doxalmente , definir um conjunto de enunciados no que ele tem de
gico foram modificados de Pinel ou de Esquirol a Bleuler : não são individual não consiste em individualizar seu objeto , em fixar sua
absolutamente as mesmas doenças o que está em questão aqui e ali identidade , em descrever as características que ele conserva per -
- seja porque o código de percepção e as técnicas de descrição mu - manentemente ; ao contr ário, é descrever a dispersão desses obje-
daram , porque a designação da loucura e seu recorte geral não obe- tos, apreender todos os interstícios que os separam , medir as dis-
decem mais aos mesmos crité rios ou porque a função do discurso tâncias que reinam entre eles - em outros termos , formular sua lei
médico, seu papel , as práticas nas quais ele está investido e que o de repartição . Eu não chamaria esse sistema de “ domínio” de obje-
sancionam , a distância que ele mantém do doente foram profunda- : tos ( pois essa palavra implica a unidade , o fechamento , a proximi-
mente modificados . { dade , mais do que a disseminação e a dispersão ) ; dar -lhe-ei , um
Poder íamos concluir , talvez se devesse concluir sobre essa mul- [ pouco arbitrariamente, o nome de referencial ; e direi , por exem-
tiplicidade de objetos , que não é possível admitir o “ discurso relati- j pio, que a “ loucura” não é o objeto ( ou referente ) comum a um gru -
vo à loucura” como uma unidade válida para constituir um conjun- ! po de proposições , mas o referencial ou lei de dispersão de diferen-
to de enunciados. Talvez fosse preciso restringir -se somente aos | tes objetos ou referentes colocados em ação por um conjunto de
grupos de enunciados que têm um só e mesmo objeto: os discursos í enunciados, cuja unidade se encontra precisamente definida por
sobre a melancolia , ou sobre a neurose. Mas rapidamente nos da- ! essa lei.
r íamos conta de que cada um desses discursos, por sua vez , consti- f * O segundo critério que poderia ser utilizado para constituir con-
tuiu seu objeto e o trabalhou até transformá-lo inteiramente . De 1 Juntos discursivos seria o tipo de enunciação utilizada. Pare-
maneira que se coloca o problema de saber se a unidade de um dis- i 1 ceu-me , por exemplo , que a ciê ncia médica, a partir do século XIX ,
curso é preferencialmente constituída, mais do que pela perma- | I caracterizava-se menos por seus objetos ou conceitos ( dentre os
nê ncia e singularidade de um objeto, pelo espaço comum em que quais alguns permaneceram id ênticos , enquanto outros foram in -
diversos objetos se perfilam e continuamente se transformam . A teiramente modificados ) do que por um certo estilo , uma certa for -
1 '

ma constante de enunciação: talvez se estivesse assistindo à instau -


relação caracter ística que permite individualizar um conjunto de a


enunciados relativos à loucura seria então: a regra de aparecimen- | ( ração de uma ciê ncia descritiva. Pela primeira vez , a medicina não
to simultâneo ou sucessivo dos diversos objetos que aí são nomea- I mais é constituída por um conjunto de tradições , observações , re-
dos, descritos, analisados, apreciados ou julgados ; a lei de sua ex-
clusão ou de sua implicação recíproca; o sistema que rege sua
! Ceitas heterogé neas, mas por um corpus de conhecimentos que su -
l põem um mesmo olhar sobre as mesmas coisas , uma mesma gra-
t\. MéDiaTHèçue
MaisondeFran
;

I
1968 - Sobre a Arqueologia das Ciências. Resposta ao C í rculo de
1 00 Michel Foucault - Ditos e Escritos Epistemologia 101

de do campo perceptivo , uma mesma análise do fato patológico de mentos institucionais , decisões políticas . Todo esse conjunto não
acordo com o espaço visível do corpo , um mesmo sistema de trans- pode obedecer a um modelo ú nico de encadeamento linear : tra -
crição do que se percebe no que se diz ( mesmo vocabulário , mes- ta-se de um grupo de diversas enunciações que estão longe de obe-
mo jogo de metáforas ) ; em suma , parecia-me que a medicina se for - decer às mesmas regras formais , de ter as mesmas exigê ncias de
malizava , se é possível dizê-lo, como uma série de enunciados des- validação, de manter uma relação constante com a verdade , de ter
critivos . Mas aqui , també m , foi preciso abandonar essa hipótese a mesma função operatória. O que deve ser caracterizado como
inicial. Reconhecer que a medicina clínica era tanto um conjunto medicina clí nica é a coexistê ncia desses enunciados dispersos e he-
de prescrições políticas , decisões económicas , regulamentos insti- terogé neos ; é o sistema que rege sua repartição , a confirmação que
tucionais , modelos de ensino quanto um conjunto de descrições , eles adquirem uns a partir dos outros , a maneira pela qual eles se
que este , em todo caso , não podia ser abstraído daquele , e que a implicam ou se excluem , a transformação que sofrem , o jogo de
enunciação descritiva era apenas uma das formulações presentes
sua emergência , de sua disposição e de sua substituição . Pode-se
no grande discurso clí nico. Reconhecer que essa descrição não ces- fazer coincidir no tempo o surgimento do discurso com a introdu -
sou de se deslocar : seja porque , de Bichat à patologia celular , se dei- ção na medicina de um tipo privilegiado de enunciação . Mas este
xou de descrever as mesmas coisas ; seja porque , da inspeçã o vi - não tem um papel constituinte ou normativo. A partir desse fenô-
sual , da auscultação e da palpação ao uso do microscó pio e dos tes- meno e inteiramente em torno dele se depreende um conjunto de
tes biológicos, o sistema de informação foi modificado ; seja ainda formas enunciativas diversas: é a regra geral desse desdobramento
porque , da correlação anatomoclínica simples à análise fina dos que constitui , em sua individualidade , o discurso clínico . A regra
processos fisiopatológicos , o l éxico dos signos e sua decifração fo- de formação desses enunciados em sua heterogeneidade , em sua
ram inteiramente reconstitu ídos ; seja enfim porque o pr ó prio mé - pr ó pria impossibilidade de se integrar em uma só cadeia sintática
dico pouco a pouco deixou de ser o lugar de registro e de interpre- é o que chamarei de defasagem eriuncíatiua. E direi que a medici-
taçã o da informação , e porque ao lado dele , fora dele , foram consti- na clínica se caracteriza , como conjunto discursivo individualiza -
tu ídos massas documentá rias , instrumentos de correlaçã o e técni- do , pela defasagem ou lei de dispersão que rege a diversidade de
cas de análise , que ele tem certamente que utilizar , mas que modifi- | seus enunciados.
cam do ponto de vista do doente , sua posição de sujeito que olha . O terceiro crité rio pelo qual se poderiam estabelecer grupos uni-
Todas essas alterações , que talvez nos façam sair hoje da medi- tários de enunciados é a existê ncia de uma sé rie de conceitos per -
cina clí nica , foram lentamente depositadas , durante o século XIX , manentes e coerentes entre si. Pode-se supor , por exemplo , que a
no interior do discurso clí nico e no espaço que ele delineava . Caso análise da linguagem e dos fatos gramaticais baseava-se nos clássi-
se quisesse definir esse discurso como uma forma codificada de cos ( de Lancelot ao fim do século XVIII ) em um n ú mero definido de
enunciação ( por exemplo , a descrição de um certo n ú mero de ele - conceitos , cujo conte ú do e uso foram estabelecidos de uma vez por
mentos determinados na superf ície do corpo e detectados pelo todas: o conceito de julgamento definido como a forma geral e nor -
olho , ouvido e dedos do médico ; identificaçã o de unidades descriti- mativa de qualquer frase , os conceitos de sujeito e de atributo rea-
í
vas e signos complexos ; avaliação de sua provável significação ; grupados na categoria mais geral de substantivo , o conceito de ver -
prescrição da terapêutica correspondente ) , seria preciso reconhe- bo utilizado como equivalente ao de có pula lógica , o conceito de pa -
cer que a medicina clínica se desfez desde seu surgimento e que ela ! lavra definido como signo de uma representação. Dessa forma se
quase não conseguiu se formular a não ser com Bichat e Laénnec . I poderia reconstituir a arquitetura conceituai da gramática clássica.
De fato , a unidade do discurso clí nico não é uma forma determina- I Mas ali, também , logo se encontrariam os limites: seria possível
da de enunciados , mas o conjunto de regras que , simultânea e su- I descrever , sem d úvida com dificuldade , as análises de tais elemen-
cessivamente , tornou possível não somente descrições puramente I tos feitas pelos autores de Port-Royal. E rapidamente se seria obri-
perceptivas , mas també m observações mediatizadas por instru- 1 gado a constatar o aparecimento de novos conceitos ; alguns dentre
mentos , protocolos de experiê ncias de laboratórios , cálculos esta- 1 eles talvez sejam derivados dos primeiros, mas outros lhes são he-
tísticos , constatações epidemiológicas ou demogr áficas , regula- í terogêneos e alguns são mesmo incompatíveis com eles. As noções
1968 - Sobre a Arqueologia das Ciências. Resposta ao C í rculo de Epistemologia 103
102 Michel Foucault - Ditos e Escritos

de ordem sintática direta ou inversa , a de complemento ( introduzi-


tos tais como o de signo arbitrário e convencional ( permitindo, con-
1 seq üentemente , a construção de uma língua artificial ) , mas certa-
da por Beauzée no começo do século XVIII ) podem , sem d úvida
mente também o de signo espontâneo , natural , imediatamente im-
ainda , integrar -se ao sistema conceituai da gramática de Port-
Royal. Mas nem a idéia de um valor originariamente expressivo dos pregnado de valor expressivo ( permitindo assim reintroduzir a ins-
sons , nem a de um saber primitivo implícito nas palavras e trans- tância da língua no vir a ser , real ou ideal, da humanidade ) . Por
mitido obscuramente por elas , nem a de uma regularidade na evo-
fim , a teoria da derivação dá conta da formação de um conjunto de
lução histórica das consoantes podem ser deduzidas do conjunto
noções muito dispersas e bastante heterogé neas: a id éia de uma
de conceitos utilizado pelos gramáticos do século XVIII. Bem mais , imobilidade da lí ngua que apenas é submetida à mudança como
um resultado de acidentes externos; a id éia de uma correlação his-
a concepção do verbo como simples substantivo permitindo desig-
tórica entre a transformação da língua e as capacidades de análise ,
nar uma ação ou uma operação, a definição da frase não mais como
de reflexão e de conhecimento dos indivíduos ; a id éia de uma rela-
proposição atributiva, mas como uma série de elementos designati-
ção recíproca entre as instituições polí ticas e a complexidade da
vos cujo conjunto reproduz uma representação, tudo isso é rigoro-
samente incompatível com o conjunto dos conceitos de que Lancelot
gramática ; a idéia de uma determinação circular entre as formas
da língua , as da escrita , as do saber e da ciê ncia , as da organização
ou Beauzée podiam fazer uso. É preciso admitir que , nessas condi-
social e aquelas, enfim , do progresso histórico; a idéia da poesia
ções , essa gramática apenas aparentemente constitui um conjunto
concebida não absolutamente como uma certa utilização do voca-
coerente. Seria esse conjunto de enunciados , análises, descrições ,
bulário e da gramá tica , mas como o movimento espontâneo da lín-
princípios e conseqüê ncias , de deduções , que se perpetuou com
esse nome durante mais de um século, uma falsa unidade? gua se deslocando no espaço da imaginação humana , que é por na-
De fato é possível , a partir desses conceitos mais ou menos hete-
tureza metafórica. Essas quatro “ teorias” - que , como tantos es-
quemas , são formadoras de conceitos - tê m relações descritíveis
rogéneos da gramática clássica, definir um sistema comum que dê entre si ( elas se supõem entre si ; opõem-se duas a duas ; derivam
conta não somente de sua emergê ncia , mas de sua dispersão e ,
uma da outra e , encadeando-se , ligam em uma só figura discursos
eventualmente , de sua incompatibilidade . Esse sistema não é cons-
que não podem ser unificados , nem sobrepostos ) . Elas constituem
tituí do por conceitos mais gerais e mais abstratos do que os que
aparecem na superf ície e são manipulados às claras ; ele é antes
o que se poderia chamar de uma rede teórica. Esse termo não deve
constitu ído por um conjunto de regras de formação dos conceitos .
ser entendido como um grupo de conceitos fundamentais que rea -
Esse conjunto se subdivide em quatro grupos subordinados. Há o grupariam todos os outros , e permitiriam relocalizá-los na unidade
grupo que rege a formação dos conceitos que permitem descrever e de uma arquitetura dedutiva: mas antes a lei geral de sua disper -
analisar a frase como uma unidade , no qual os elementos ( as pala-
são, de sua heterogeneidade , de sua incompatibilidade ( seja ela si-
multânea ou sucessiva ) - a regra de sua insuper ável pluralidade . E ,
vras ) não são meramente justapostos, mas relacionados uns aos
se é lícito reconhecer na gramática geral um conjunto individuali-
outros ; esse conjunto de regras é o que se pode chamar de teoria da
zado de enunciados é na medida em que todos os conceitos que
atribuição . E sem que ela própria seja modificada , essa teoria da
nela figuram , se encadeiam , se entrecruzam , interferem uns nos
atribuição pode dar lugar aos conceitos de verbo-có pula , de ver -
outros , se buscam uns aos outros, se mascaram , se dispersam , são
bo-substantivo específico da ação, ou de verbo-ligação dos elemen-
formados a partir de uma só e mesma rede teó rica ,
tos da representação. Há també m o grupo que rege a formação dos I
conceitos que permitem descrever as relações entre os diferentes
f Enfim , seria possível tentar constituir unidades de discurso a
elementos significantes da frase e os diferentes elementos do que é I partir de uma identidade de opinião. Nas “ ciê ncias humanas” , de -
representado por esses signos ; é a teoria da articulação , que pode , !I dicadas à polê mica , expostas ao jogo das prefer ê ncias ou dos inte-
resses , tão permeáveis a temas filosóficos ou morais, tão aptas em
em sua unidade específica , dar conta de conceitos tão diversos
quanto o de substantivo como resultado de uma análise do pensa- I certos casos ao uso político, igualmente tão pr óximas de certos
mento, e o de substantivo como instrumento pelo qual se pode fa- I dogmas religiosos, é legí timo em primeira instância supor que
zer tal análise . A teoria da designação rege a emergência de concei- I uma certa temática é capaz de ligar e de arrimar , como um orga- ;
1968 Sobre a Arqueologia das Ciências. Resposta ao Círculo de Epistemologia 1 05
104 Michel Foucault - Ditos e Escritos

nismo que tem suas necessidades , sua for ça interna e suas capa- nuo das espécies é como o afloramento , aos olhos do naturalista ,
cidades de sobrevivê ncia , um conjunto de discursos . N ão se pode- de toda uma consistê ncia do tempo. No século XIX, a id éia evolu -
ria constituir , por exemplo , como unidade tudo aquilo que , de cionista é uma escolha que não mais implica a constituição do qua-
Buffon a Darwin , constituiu o discurso evolucionista? Tema inici- dro das espécies , mas as modalidades de interação entre um orga-
almente mais filosófico do que científico , mais pr óximo da cosmo- nismo , em que todos os elementos são solid ários , e um meio , que
logia do que da biologia; tema que talvez tenha orientado de longe lhe oferece suas condições reais de vida . Uma só “ id éia” , mas a par -
as pesquisas , que nomeou , recobriu e explicou os resultados ; tir de dois sistemas de escolha .
tema que sempre pressupunha mais sobre o que não se sabia , No caso da fisiocracia , ao contr á rio , pode-se dizer que a esco-
mas que impunha , a partir dessa escolha fundamental , transfor - lha de Quesnay depende exatamente do mesmo sistema de concei-
mar em saber discursivo o que estava esboçado como hipótese ou
,
tos que a opinião inversa sustentada por aqueles que podemos
como imposição . Não se poderia da mesma forma falar da id éia fi- chamar de utilitaristas . Nessa é poca , a análise das riquezas com -
siocr á tica? Id é ia que postulava , para alé m de qualquer demons- portava uma sé rie de conceitos relativamente limitada e que era
tração e antes de qualquer an álise , o car áter natural dos tr ês tipos admitida por todos ( dava-se a mesma definição da moeda : que era
de renda fundamentais ; que supunha conseq ú entemente o prima- um signo e que apenas tinha valor pela materialidade praticamen -
do econ ó mico e polí tico da propriedade agr á ria ; que exclu ía qual- te necessá ria desse signo ; dava-se a mesma explicação de um pre -
quer an álise dos mecanismos da produ çã o industrial ; que , em ço pelo mecanismo de troca e pela quantidade de trabalho neces-
contrapartida , implicava a descrição da circula ção do dinheiro no sário para a obtenção da mercadoria; fixava-se da mesma forma o
interior de um Estado , de sua distribuição entre as diferentes ca- preço de um trabalho : o que custava o sustento de um trabalha -
tegorias sociais e dos canais pelos quais ele retornava à produ çã o ; dor e de sua fam ília durante o tempo de sua execu ção ) . Ora , a par -
que finalmente conduziu Ricardo a se interrogar sobre os casos tir desse sistema conceituai único, havia duas maneiras de expli -
em que essa tr íplice renda nã o aparecia , sobre as condições pelas car a formação do valor , conforme fosse analisado a partir da tro-
quais ela poderia se formar e , conseq úentemente , a denunciar a ca ou do pagamento da jornada de trabalho . Essas duas possibili-
arbitrariedade do tema fisiocr á tico . dades inscritas na teoria económica e nas regras de seu sistema
Mas , a partir de tal tentativa , somos levados a fazer duas consta- conceituai deram origem , a partir dos mesmos elementos , a duas
tações inversas e complementares. Em um caso , o mesmo fato de opiniões diferentes .
opinião , a mesma temática , a mesma escolha se articula a partir de Sem d ú vida , estar íamos enganados em procurar nesses fatos de
duas sé ries de conceitos , de dois tipos de discursos , de dois cam- opinião os princípios de individualização de um discurso . O que
pos de objetos totalmente diferentes: a id éia evolucionista , em sua define a unidade da história natural n ão é a permanê ncia de certas
formulação mais geral , é talvez a mesma em Benoî t de Maillet , Bor - id éias como a de evolu ção ; o que define a unidade do discurso eco-
deu ou Diderot , e em Darwin ; mas , de fato , o que a torna possível e nómico no século XVIII não é o conflito entre fisiocratas e utilitaris-
coerente não é absolutamente da mesma ordem nos dois casos . No tas, ou entre os defensores da propriedade agr ária e os partid ários
século XVIII , a id éia evolucionista é uma escolha operada a partir do comé rcio e da ind ústria. O que permite individualizar um dis-
de duas possibilidades claramente determinadas: ou se admite que curso é atribuir -lhe uma existê ncia independente , é o sistema de
o parentesco das espécies forma uma continuidade totalmente pontos de escolha que ele deixa livre a partir de um campo de obje-
dada de in ício , e que apenas as catástrofes da natureza , somente a tos dados , a partir de uma gama enunciativa determinada , a partir
história dramática da Terra , os transtornos de um tempo extr ínse- de uma sé rie de conceitos definidos em seu conte ú do e em seu uso .
co a interrompeu e a separou ( portanto foi esse tempo que criou a Seria então insuficiente procurar em uma opção teórica o funda-
descontinuidade , o que exclui o evolucionismo ) , ou se admite que é mento geral de um discurso e a forma global de sua identidade his-
o tempo que cria a continuidade , as mudanças da natureza que tórica: pois uma mesma opção pode reaparecer em dois tipos de
obrigam as espécies a tomar características diferentes das que lhes discursos ; e um só discurso pode dar lugar a várias opções diferen-
tinham sido dadas de saí da: de maneira que o quadro quase contí- tes. Nem a permanê ncia das opiniões através do tempo nem a dia-
û
106 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1968 Sobre a Arqueologia das Ciências. Resposta ao Círculo de Epistemologia
107

lética de seus conflitos bastam para individualizar um conjunto de conta não de seus elementos comuns mas do jogo de suas defasa-
enunciados. É necessário , para isso , que se possa situar a distribui- gens, seus interstícios , sua distâncias - de qualquer forma, de suas
ção dos pontos de escolha e que se defina , aquém de qualquer op- lacunas, mais do que de suas superfícies plenas -, é isso que propo-
ção , um campo de possibilidades estraté gicas . Se a análise dos fi- rei chamar de sua positividade .
siocratas faz parte dos mesmos discursos que a dos utilitaristas ,
não é absolutamente porque eles viviam na mesma época , não ab-
solutamente porque eles se confrontavam no interior de uma mes- O saber
ma sociedade , não absolutamente porque seus interesses se mistu-
ravam em uma mesma economia , é porque suas duas opções pro- No ponto de partida , o problema era definir , sob as formas pre-
cipitadamente admitidas de sí ntese , as unidades que seria legítimo
vinham de uma só e mesma distribuição dos pontos de escolha, de
instaurar no campo incomensur ável dos acontecimentos enuncia-
um só e mesmo campo estratégico . Esse campo não é o somatório
tivos. A essa questão eu me esforcei para dar uma resposta que fos-
de todos os elementos em conflito , tampouco uma obscura unida-
se empírica ( e articulada a investigações precisas ) e cr ítica ( já que
de dividida contra ela mesma e recusando se reconhecer sob a
ela concernia ao lugar de onde eu colocava a questão , à região que a
máscara de cada adversário ; é a lei de formação e de dispersão de
situava , à unidade espontâ nea no interior da qual eu podia crer que
todas as opções possíveis.
Em resumo , estamos diante de quatro critérios que permitem re- falava ) . Daí , essas investigações no domí nio dos discursos que ins-
conhecer unidades discursivas que não são absolutamente as unida-
tauravam ou pretendiam instaurar um conhecimento “ científico ”
des tradicionais ( sejam elas: o “ texto ” , a “ obra” , a “ ciê ncia” ; ou o do-
do homem que vive , fala e trabalha . Essas investigações evidencia -
mínio ou a forma de discurso , os conceitos que ele utiliza ou as esco- ram conjuntos de enunciados que chamei de “ formações discursi-
lhas que manifesta) . Esses quatro critérios não somente não são in- vas” e sistemas que , sob o nome de “ positividades” , devem dar con -
!
compatíveis , mas eles se reclamam uns aos outros: o primeiro defi- ta desses conjuntos. Mas ser á que não fiz , afinal de contas , pura e
simplesmente uma história das “ ciê ncias” humanas - ou , se quise-
ne a unidade de um discurso pela regra de formação de todos os
seus objetos ; o outro , pela regra de formação de todos os seus tipos rem , desses conhecimentos inexatos cujo ac ú mulo não pode ainda
constituir uma ciê ncia? Ser á que não permaneci preso em seu re-
sintáticos; o terceiro, pela regra de formação de todos os seus ele-
mentos semânticos ; o quarto , pela regra de formação de todas as corte aparente e no sistema que elas pretendem dar a si mesmas?
Será que não fiz uma espécie de epistemologia crí tica dessas figu -
suas eventualidades operatórias . Todos os aspectos do discurso es-
í tão , deste modo , cobertos. E quando , em um grupo de enunciados , é ras das quais não se está certo de que elas mereçam verdadeira-
possível observar e descrever um referencial , um tipo de defasagem mente o nome de ciê ncias?
enunciativa , uma rede teórica , um campo de possibilidades estraté-
De fato , as formações discursivas que foram recortadas ou des-
critas não coincidem exatamente com a delimitação dessas ciê n -
gicas, pode-se então estar seguro de que eles pertencem ao que se
cias ( ou pseudociê ncias ) . Sem d úvida , é a partir da existê ncia no
poderia chamar de uma formação discursiva . Essa formação agru-
pa toda uma população de acontecimentos enunciativos. Evidente- momento atual de um discurso que se diz psicopatológico ( e que
pode ter , aos olhos de alguns, a pretensão de ser científico ) que ini-
mente ela não coincide , em seus crité rios , em seus limites, nem em
ciei a investigação sobre a história da loucura ; sem d úvida , foi
suas relaçõeâ internas , com as unidades imediatas e visíveis sob as
igualmente a partir da existê ncia de uma economia política e de
quais se tem o hábito de reagrupar os enunciados. Ela evidencia ,
dentre os fenômenos da enunciação , as relações que até então per-
uma lingiiística ( das quais alguns podem contestar os crité rios de
maneciam na sombra e não se encontravam imediatamente trans- rigorosa cientificidade ) que pretendi analisar o que , nos séculos
critas na superfície dos discursos. Mas o que ela evidencia não é um
XVII e XVIII , se havia podido dizer sobre as riquezas, a moeda , a
segredo , a unidade de um sentido escondido , nem uma forma geral e
troca, os signos lingü isticos e o funcionamento das palavras. Mas
única; é um sistema regrado de diferenças e dispersões. Esse siste- as positividades obtidas no final dessa análise e as formações dis-
ma de quatro níveis , que rege uma formação discursiva e deve dar cursivas que elas reagrupam não cobrem o mesmo espaço que es -
1968 - Sobre a Arqueologia das Ciências. Resposta ao C í rculo de Epistemologia 1 09
1 08 Michel Foucault - Ditos e Escritos

se tratava de saber ao preço de que cortes ou de que recalcamentos


sas disciplinas , nem se articulam como elas ; bem mais, elas não se
sobrepõem ao que podia ser considerado como ciê ncia ou como
uma ciê ncia , ou pelo menos uma disciplina com pretensão científi-
forma autónoma de discurso na é poca estudada . Assim , o sistema
ca, ia finalmente se constituir em um solo tão impuro. Tratava-se
de fazer aparecer o sistema dessa “ impureza” - ou melhor , pois a
de positividade analisado na Hist ória da loucura não d á conta ex-
palavra pode não ter a significação , nessa análise , de dar conta do
clusivamente , nem mesmo de uma maneira privilegiada , do que os
médicos puderam dizer nesta época sobre a doença mental ; de pre- surgimento simultâneo de um certo n ú mero de enunciados , cujo
fer ê ncia ele define o referencial , a gama enunciativa, a rede teórica ,
nível de cientificidade , forma e n ível de elaboração podem , retros-
pectivamente , nos parecer heterogéneos.
os pontos de escolha que tornaram possíveis, em sua pr ópria dis-
A formação discursiva analisada em O nascimento da cl í nica re-
persão, os enunciados médicos , os regulamentos institucionais , as
presenta um terceiro caso. Ela é bem mais ampla do que o discurso
medidas administrativas , os textos jur ídicos , as expressões liter á-
médico no sentido estrito do termo ( a teoria científica da doença ,
rias , as formulações filosóficas. A formação discursiva , constituí da
de suas formas, de suas determinações e de seus instrumentos te-
e descrita pela análise , ultrapassa largamente o que se poderia re-
latar como a pr é-história da psicopatologia ou como a gé nese de
rapê uticos ) ; ela engloba toda uma sé rie de reflexões polí ticas , pro-
seus conceitos. gramas de reforma , medidas legislativas, regulamentos adminis-
trativos , considerações morais , mas , por outro lado , não integra
Em As palavras e as coisas a situação é oposta . As positividades
tudo o que , na é poca estudada , podia ser conhecido sobre o tema
obtidas pela descrição isolam formações discursivas que são me-
do corpo humano , de seu funcionamento , de suas correlações ana-
nos amplas do que os dom í nios científicos reconhecidos em pri-
tomofisiológicas e das perturbações das quais ele podia ser a sede .
meira instâ ncia . O sistema da história natural permite dar conta de
A unidade do discurso clínico não é de forma alguma a unidade de
um certo n ú mero de enunciados sobre a semelhança e a diferença
uma ciê ncia ou de um conjunto de conhecimentos tentando se dar
entre os seres, as constituições das caracter ísticas específicas ou
um status científico. É uma unidade complexa : não é possível apli -
genéricas , a distribuição dos parentescos no espaço geral do qua-
dro ; mas ele não rege as análises do movimento involuntário , nem
car -lhe os crité rios pelos quais podemos - ou , pelo menos , pensa-
a teoria dos gê neros , nem as explicações qu í micas do crescimento . mos poder - distinguir uma ciê ncia de outra ( por exemplo , a fisio-
A existê ncia , a autonomia , a consistê ncia interna , a limitação dessa logia da patologia ) , uma ciê ncia mais elaborada de outra que é me -
formação discursiva são precisamente uma das razões pelas quais nos ( por exemplo, a bioquí mica da neurologia ) , um discurso verda -
uma ciê ncia geral da vida não foi formulada na é poca clássica. Da deiramente científico ( como a endocrinologia ) de uma simples co-
dificação da experiê ncia ( como a semiologia ) , uma verdadeira ciê n -
mesma forma , a positividade que , na mesma é poca , regeu a análise
cia ( como a microbiologia ) de uma ciê ncia que ainda não o era
das riquezas não determinava todos os enunciados relativos às tro-
( como a frenologia ) . A clí nica não constitui nem uma verdadeira
cas , aos circuitos comerciais e aos preços: ela deixava de lado as
“ aritmé ticas políticas” , que só entraram no campo da teoria econ ó- nem uma falsa ciência, embora em nome de nossos critérios contem-
por âneos possamos nos dar o direito de reconhecer como verda -
mica muito mais tarde , quando um novo sistema de positividade
tornou possível e necessá ria a introdução deste tipo de discurso na deiros alguns de seus enunciados e como falsos certos outros . Ela é
análise económica. A gramática geral tampouco dá conta de tudo o um conjunto enunciativo simultaneamente teórico e pr ático , des-
que pôde ser dito sobre a linguagem na época clássica ( seja pelos critivo e institucional , analítico e prescritivo , composto tanto de in-
exegetas dos textos religiosos , os filósofos ou os teóricos da obra li- fer ências como de decisões , tanto de afirmações como de decretos .
ter á ria ) . Em nenhum desses tr ês casos, tratava-se de reencontrar o As formações discursivas não são , portanto , nem ciê ncias atuais
que os homens puderam pensar da linguagem , das riquezas ou da em gestação nem ciências outrora reconhecidas como tais , depois
vida em uma é poca na qual se constituíam lentamente e sem baru -
caídas em desuso e abandonadas em função de exigê ncias novas de I
lho uma biologia, uma economia e uma filologia ; tampouco se tra-
nossos critérios. São unidades de uma natureza e de um nível dife- I

tava de descobrir o que se misturava ainda de erros, preconceitos , rentes do que hoje se chama ( ou do que se pôde chamar antigamen-
confusões , fantasmas talvez , a conceitos em vias de formação: não
te ) de ciência. Para caracterizá-las, a distinção entre o científico e o
110 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1968 - Sobre a Arqueologia das Ciências. Resposta ao Cí rculo de Epistemologia 111

não científico não é pertinente: elas são epistemologicamente neu- nam possível como ciência; eles nunca podem dar conta de sua
tras. Quanto aos sistemas de positividade que lhes asseguram o existê ncia de fato, ou seja, de sua emergê ncia histórica , dos aconte-
agrupamento unitário , não são absolutamente as estruturas racio- cimentos , episódios , obstáculos , dissensões , expectativas , atrasos ,
nais , nem tampouco os jogos, os equilíbrios , as oposições ou as dia- facilitações que puderam marcar seu destino efetivo. Se, por exem-
lé ticas entre as formas de racionalidade e as imposições irracionais; pio, foi preciso esperar o final do século XVIII para que o conceito
a distinção do racional e de seu contrário não é pertinente para des- de vida se tornasse fundamental na análise dos seres vivos ou se o
crevê-las: pois não são leis de inteligibilidade; são leis de formação registro das semelhanças entre o latim e o sânscrito não puderam
de todo um conjunto de objetos, de tipos de formulação , conceitos , dar origem , antes de Bopp , a uma gramática histórica e compara-
opções teóricas que são investidas nas instituições , nas técnicas , nas da, ou ainda se a constatação das lesões intestinais nas afecções
condutas individuais ou coletivas, nas operações políticas, nas ativi- “ febris ” não pôde dar origem , antes do início do século XIX , a uma
dades científicas, nas ficções literá rias , nas especulações teóricas. O medicina anatomopatológica, não é para se buscar o motivo nem
conjunto assim formado, a partir do sistema de positividade e mani- na estrutura epistemológica da ciê ncia biológica em geral , ou da
festo na unidade de uma formação discursiva, é o que se poderia ciê ncia gramatical ou da ciência médica , nem tampouco no erro em
chamar de saber . O .saber não é uma soma de conhecimentos - pois que se obstinou por muito tempo a cegueira dos homens; ele reside
f destes sempre se deve poder dizer se são verdadeiros ou falsos , exa- na morfologia do saber , no sistema das positividades, na disposi-
tos ou não , aproximativos ou definidos, contraditórios ou coerentes; !

ção interna das formações discursivas. Bem mais, é no elemento
nenhuma dessas distin ções é pertinente para descrever o saber , que do saber que se determinam as condições de aparecimento de uma
é o conjunto dos elementos ( objetos , tipos de formulações , conceitos ciê ncia , ou pelo menos de um conjunto de discursos que acolhem
e escolhas teóricas ) formados a partir de uma só e mesma positivi- ou reivindicam os modelos de cientificidade : se , até o in ício do sé-
dade , no campo de uma formação discursiva unitária . culo XIX , vemos se formar , com o nome de economia política , um
Estamos agora diante de uma figura complexa. Ela pode e deve conjunto de discursos que d ão a si mesmos signos de cientificida-
ser analisada simultaneamente como uma formação de enuncia- de , e se impõem um certo n ú mero de regras formais; se , quase na
dos ( quando consideramos a população dos acontecimentos dis- mesma época , alguns discursos se organizam sob o modelo dos
cursivos que dela fazem parte ) ; como uma positividade ( quando discursos médicos , clínicos e semiológicos , para se constitu írem
consideramos o sistema que , em sua dispersão , rege os objetos , os como psicopatologia, não se pode pedir retrospectivamente expli-
|
tipos de formulação , os conceitos e as opiniões postos em ação nes- cação a essas “ ciências” - seja sobre seu equilíbrio atual ou sobre a
ses enunciados ) ; como um saber ( quando consideramos esses ob- forma ideal na direção da qual se supõe que elas se encaminhem ;
jetos , tipos de formulação , conceitos e opiniões , tais como são in- tampouco se pode pedir explicações a um puro e simples projeto
vestidos em uma ciê ncia, em uma receita técnica , em uma institui- de racionalização que teria se formado então no pensamento dos
ção , em uma narrativa romanesca , em uma pr ática jur ídica ou polí- ! homens , mas que não poderia assumir para si o que esses discur -
tica etc . ) . Não se analisa o saber em termos de conhecimentos ; nem sos têm de específico. É no campo do saber que é preciso realizar a
a positividade em termos de racionalidade ; nem a formação discur - análise dessas condições de aparecimento - no n ível dos conjuntos
siva em termos de ciê ncia. E não se pode exigir que sua descrição discursivos e do jogo das positividades.
seja equivalente a uma história dos conhecimentos, a uma gé nese Sob a denominação geral de “ condições de possibilidade ” de uma
da racionalidade ou à epistemologia de uma ciê ncia . ciência é preciso , portanto , distinguir dois sistemas heteromorfos.
N ão é menos verdade que seja possível descrever um certo n ú - Um define as condições da ciência como ciência: é relativo ao seu do-
mero de relações entre as ciê ncias ( com suas estruturas de racio- mínio de objetos , ao tipo de linguagem que ela utiliza , aos conceitos
nalidade e a soma de seus conhecimentos ) e as formações discursi- de que ela dispõe ou busca estabelecer ; ele define as regras formais e
vas ( com seu sistema de positividade e o campo de seu saber ) . Pois semânticas exigidas para que um enunciado possa pertencer a essa
é verdade que apenas os crité rios formais podem decidir sobre a ci- ciência; é instituído seja pela ciência em questão , na medida em que
entificidade de uma ciê ncia, ou seja , definir as condições que a tor - ela coloca para si suas próprias normas , seja por uma outra ciência,

I
112 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1968 - Sobre a Arqueologia das Ciê ncias . Resposta ao Círculo de Epistemologia 113

na medida em que esta se impõe à primeira como modelo de forma- ï lugar . Fazer emergir a dimensão do saber como dimensão específi-
lização: de qualquer forma , essas condições de cientificidade são in- ca não é rejeitar as diversas análises da ciê ncia; é desdobrar , o
teriores ao discurso científico em geral e só podem ser definidas por , mais amplamente possível , o espaço em que elas podem se alojar .
É , acima de tudo , desvencilhar -se de duas formas de extrapolação
ele. O outro sistema concerne à possibilidade de uma ciência em sua I que
existência histórica. Ele é exterior a ela e não passível de ser sobre- | tem cada uma um papel redutor simétrico e oposto: a extrapo-
posto. E constituído por um campo de conjuntos discursivos que lação epistemológica e a extrapolação gené tica.
não têm o mesmo estatuto , o mesmo recorte , a mesma organização, A extrapolação epistemol ógica não se confunde com a análise
nem o mesmo funcionamento das ciências às quais eles dão origem. ( sempre legítima e possível ) das estruturas formais que podem ca-
Seria preciso não ver nesses conjuntos discursivos uma rapsódia de racterizar um discurso científico. Mas ela permite supor que , para
falsos conhecimentos , de temas arcaicos, de figuras irracionais que uma ciê ncia , bastam essas estruturas para definir a lei histórica de
as ciê ncias em sua soberania definitivamente baniriam para as tre- seu surgimento e desenvolvimento . A extrapolação genética não se
vas de uma pré-história. També m não seria preciso imaginá-los confunde com a descrição ( sempre legítima e possível ) do contexto
como o esboço de futuras ciências que ainda estariam confusamente - seja ele discursivo, técnico, económico , institucional - em que
recuadas em relação ao seu futuro e que vegetariam , por um tempo , uma ciê ncia apareceu ; mas ela permite supor que a organização in-
no meio-sono das germinações silenciosas. Seria necessá rio , enfim , terna de uma ciência e suas normas formais podem ser descritas a
partir de suas condições externas. Em um caso , pode-se atribuir à
não concebê-los como o ú nico sistema epistemológico de que seriam
ciência a incumbê ncia de dar conta de sua historicidade ; no outro ,
suscetíveis essas falsas , ou quase- , ou pseudociências que seriam as
incumbem-se as determinações históricas de dar conta de uma cien-
ciê ncias humanas. De fato , trata-se de figuras que têm sua consis-
tificidade . Ora , isso é desconhecer que o lugar de surgimento e de
tê ncia pr ó pria , suas leis de formação e sua disposição autónoma.
desenvolvimento de uma ciê ncia não é nem esta ciê ncia mesma dis-
Analisar as formações discursivas , as positividades e o saber que
tribuída conforme uma seq üê ncia teleológica nem um conjunto de
lhes correspondem não é atribuir -lhes formas de cientificidade , é pr á ticas mudas ou de determinações extr í nsecas , mas o campo do
percorrer um campo de determinação histórica que deve dar conta , saber com o conjunto de relações que o atravessam . Esse desco-
em seu aparecimento , persistê ncia, transformação e , eventualmen- nhecimento se explica , na verdade , pelo privilégio dado a dois tipos
te , em seu apagamento , de discursos dos quais alguns são ainda de ciê ncias, que servem em geral de modelos , já que elas são certa -
hoje reconhecidos como científicos , outros perderam esse estatuto , mente casos-limites. Há , efetivamente , ciê ncias tais que podem re-
alguns jamais o adquiriram , enquanto outros jamais pretenderam tomar cada um dos episódios de sua evolução histórica no interior
adquiri-lo . Em uma só palavra, o saber não é a ciência no desloca- de seu sistema dedutivo ; sua história pode ser descrita como um
mento sucessivo de suas estruturas internas, é o campo de sua his- movimento de extensão lateral , depois de retomada e de generali-
tória efetiva . zação em um nível mais elevado , de maneira que cada momento ?

aparece como uma região particular ou um n ível definido de forma-


lização ; as seqiiê ncias se abolem em proveito de aproximações que
Várias observações não as reproduzem ; e as datas se apagam para fazer aparecer sin-
A análise das formações discursivas e de seu sistema de positivi- cronias que ignoram o calend ário. É o caso , evidentemente , da ma-
dade em relação ao elemento do saber concerne somente a certas temática, em que a álgebra cartesiana define uma região particular
determinações dos acontecimentos discursivos. Não se trata de em um campo que foi generalizado por Lagrange , Abel e Galois ; em
constituir uma disciplina unitária que se substituiria a todas essas que o método grego da exaustão parece contempor âneo do cálculo
outras descrições dos discursos e os invalidaria em bloco . Tra- de integrais definidas . Pelo contr ário , há ci ê ncias que só podem as-
ta-se , antes, de dar seu lugar a diferentes tipos de análise já conhe- segurar sua unidade através do tempo pela narrativa ou pela reto-
cidos , e freq üentemente praticados há muito tempo; de determinar mada cr ítica de sua pr ópria história : se há uma psicologia desde
seu nível de funcionamento e eficácia; de definir seus pontos de Fechner e apenas uma , se há desde Comte ou mesmo desde Durk -
heim apenas uma sociologia não é na medida em que se pode atri-
aplicação ; e de evitar finalmente as ilusões às quais eles podem dar
114 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1968 - Sobre a Arqueologia das Ciências . Resposta ao Cí rculo de Epistemologia 115

buir , a tantos discursos diversos , uma única estrutura epistemoló- ca ou lingúística, estatística ou interpretativa ) dos fatos de opinião .
gica ( tão frágil quanto possamos imaginá-la ) ; é na medida em que a Mas há ilusão doxol ógica cada vez que se faz valer a descrição como
sociologia e a psicologia situaram , a cada instante , seu discurso em análise das condições de existência de uma ciência. Essa ilusão as-
um campo histó rico que elas pr ó prias percorriam através do modo sume duas formas: ela admite que o fato das opiniões , em vez de ser
cr í tico da confirmação ou da invalidação. A história da matemática determinado pelas possibilidades estratégicas dos jogos concei-
está sempre a ponto de ultrapassar o limite da descrição epistemo- tuais , remete diretamente às divergências de interesses ou de hábi-
lógica ; a epistemologia de “ ciê ncias” tais como a psicologia ou a so- tos mentais dos indivíduos; a opinião seria a irrupção do não-
ciologia está sempre no limite de uma descrição genética. científico ( do psicológico , do político , do social, do religioso ) no do-
Eis por que , longe de constituírem exemplos privilegiados para a mínio específico da ciência. Mas , por outro lado, ela supõe que a opi-
análise de todos os outros domínios científicos , estes dois casos ex- nião constitui o n úcleo , o foco central a partir do qual se desdobra
tremos tendem antes a induzir em erro; a não deixar ver , simulta- todo o conjunto de enunciados cient íficos ; a opinião manifestaria a
neamente em sua especificidade e em suas relações , o nível das es- instância das escolhas fundamentais ( metaf ísicas, religiosas , políti-
truturas epistemológicas e o das determinações do saber ; que toda cas ) a partir das quais os diversos conceitos da biologia , da econo-
ciê ncia ( mesmo tão altamente formalizada como a matemática ) su - mia ou da lingúística seriam somente a versão superficial e positiva ,
põe um espaço de historicidade que não coincide com o jogo de a transcrição em um vocabulário determinado, a máscara cega a si
suas formas ; mas que qualquer ciê ncia ( seja ela tão carregada de mesma. A ilusão doxológica é uma maneira de elidir o campo de um
empirismo quanto a psicologia , e tão afastada das normas exigidas saber como lugar e lei de formação das opções teóricas.
para constituir uma ciê ncia ) existe no campo de um saber que não Da mesma forma , é perfeitamente legítimo descrever , para uma
prescreve simplesmente a sucessão de seus episódios , mas que de- dada ciê ncia , alguns de seus conceitos ou de seus conjuntos concei-
termina , segundo um sistema que pode ser descrito, suas leis de tuais: a definição que lhe é dada, a utilização que se faz deles, o
formação. Em compensação , são as ciê ncias “ intermediárias” - campo em que se tenta validá-los , as transformações que lhes faze-
como a biologia , a fisiologia , a economia política , a lingúística , a fi- mos sofrer , a maneira pela qual eles são generalizados ou transferi-
lologia , a patologia - que devem servir de modelos: pois , com elas , dos de um domí nio para outro . É igualmente legítimo descrever , a
não é possível confundir em uma falsa unidade a instância do saber propósito de uma ciê ncia , as formas de proposições que ela reco-
e a forma da ciê ncia , nem elidir o momento do saber . nhece como válidas , os tipos de infer ê ncia aos quais ela recorre , as
A partir daí , é possível situar em sua possibilidade , mas também regras que ela se dá para ligar os enunciados uns aos outros ou
definir em seus limites , um certo n ú mero de descrições legítimas para torná-los equivalentes , as leis que ela coloca para reger suas
do discurso científico. Descrições que não se dirigem ao saber transformações ou suas substituições. Em suma , sempre é possí-
como instâ ncia de formação , mas aos objetos , às formas de enun- vel estabelecer a semântica e a sintaxe de um discurso científico.
ciação , aos conceitos , às opiniões às quais finalmente ele d á lugar . Mas é necessário precaver-se do que poderia ser chamado de ilu -
Descrições que , no entanto , só permanecer ão legítimas desde que são formalizadora: ou seja, imaginar que essas leis de construção
não se pretenda descobrir as condições de existê ncia de alguma são ao mesmo tempo e de pleno direito condições de existê ncia ;
I
coisa como um discurso científico. Assim , é perfeitamente legítimo que os conceitos e as proposições válidas não passam da formali-
descrever o jogo de opiniões ou de opções teóricas que se revelam zação de uma experiê ncia selvagem , ou do resultado de um traba-
em uma ciê ncia e a propósito de uma ciência; deve-se poder defi- lho sobre proposições e conceitos já instaurados: que a ciê ncia pas-
nir , para uma época ou um domínio determinado, quais são os sa a existir a partir de um certo grau de conceitualização , e de uma
princípios de escolha , de que maneira ( através de que retórica ou certa forma na construção e no encadeamento das proposições;
de que dialé tica ) eles são manifestados, dissimulados ou justifica- que basta , para descrever sua emergê ncia no campo dos discursos ,
dos , como se organiza e se institucionaliza o campo da polê mica , situar o nível lingúístico que a caracteriza . A ilusão formalizadora
quais são as motivações que podem determinar os indivíduos; em elide o saber ( a rede teórica e a distribuição enunciativa ) como lu -
suma, há lugar para uma doxologia, que seria a descrição (sociológi- gar e lei de formação dos conceitos e das proposições.
f
1968 - Sobre a Arqueologia das Ciê ncias . Resposta ao Círculo de Epistemologia 117
116 Michel Foucault - Ditos e Escritos

Finalmente , é possível e legítimo definir , por uma análise regio- tância são específicas para cada discurso científico , e sua forma va-
nal, o dom ínio de objetos aos quais uma ciê ncia se dirige . E anali- ria através da história . Isso porque elas pr óprias são determinadas ;

sá-la seja no horizonte de idealidade que a ciê ncia constitui ( por pela instância específica do saber . Esta define as leis de formação
um código de abstração , por regras de manipulação, por um siste- dos objetos científicos e especifica , por esse fato mesmo , as liga-
ma de apresentação e de eventual representação ) , seja no mundo ções ou oposições entre a ciê ncia e a experiê ncia. Sua extrema pro-
das coisas ao qual esses objetos se referem: pois se é verdade que o ximidade , sua intransponível distância não são dadas de saída ;
objeto da biologia ou o da economia política se definem certamente elas tê m seu princípio na morfologia do referencial ; é ele que define
por uma certa estrutura de idealidade caracter ística dessas duas a disposição recíproca - o face a face , a oposição , seu sistema de co-
ciê ncias , se eles não são pura e simplesmente a vida da qual parti- municação - do referente e do objeto . Entre a ciê ncia e a experiê n -
cipam os indivíduos humanos ou a industrialização da qual eles fo- cia há o saber : não absolutamente como mediação invisível , como
ram os artesãos , é , no entanto , à experiê ncia ou a uma fase deter - intermediário secreto e cú mplice , entre duas distâncias tão dif íceis
minada da evolução capitalista que esses objetos se referem . Mas ao mesmo tempo de reconciliar e de distinguir ; de fato , o saber de-
seria incorreto acreditar ( por uma ilusã o da experiê ncia ) que há termina o espaço onde podem separar -se e situar-se , uma em rela-
regiões ou domí nios de coisas que se oferecem espontaneamente a
ção à outra , a ciê ncia e a experiê ncia .
uma atividade de idealização e ao trabalho da linguagem científica ; Portanto , o que a arqueologia do saber coloca fora de circuito
que eles se desdobram por si mesmos na ordem em que a história , não é a possibilidade de descrições diversas às quais o discurso ci-
a técnica , as descobertas , as instituições , os instrumentos huma- entífico pode dar lugar ; é , antes, o tema geral do “ conhecimento ” . O
nos puderam tê-los constitu ído ou feito com que eles emergissem ; conhecimento é a continuidade da ciê ncia e da experiê ncia , seu in-
que toda elaboração científica é apenas uma certa maneira de 1er , dissociável intricamento , sua infinita reversibilidade ; é um jogo de
de decifrar , de abstrair , de decompor e recompor o que é dado , formas que se antecipam a todos os conte ú dos , na medida em que
seja em uma experiê ncia natural ( e , conseqúentemente , com um elas os tornam possíveis ; é um campo de conte údos originá rios que
valor geral ) , seja em uma experiê ncia cultural ( e , conseq úentemen- silenciosamente esboçam as formas pelas quais poderemos lê-los ;
te , relativa e histórica ) . Há uma ilusão que consiste em supor que a é a estranha instauração do formal em uma ordem sucessiva que é
ciê ncia se enraíza na plenitude de uma experiê ncia concreta e vivi-
a das gé neses psicológicas ou históricas ; mas é o ordenamento do
da: que a geometria elabora um espaço percebido , que a biologia dá empírico por uma forma que lhe impõe sua teleologia. O conheci-
forma à íntima experiê ncia da vida ou que a economia polí tica tra- mento confia à experiê ncia o encargo de dar conta da existê ncia efe-
duz no nível do discurso teórico os processos de industrialização ; tiva da ciê ncia ; e ela confia à cientificidade o encargo de dar conta
portanto , que o referente detém em si mesmo a lei do objeto cientí- da emergê ncia histórica das formas e do sistema aos quais ela obe-
fico . Mas há , igualmente , ilusão em se imaginar que a ciê ncia se es- dece . O tema do conhecimento equivale a uma denegação do saber .
tabelece por um gesto de ruptura e de decisão , que ela se liberta de Ora , muitos outros estão ligados a esse tema maior . O de uma
repente do campo qualitativo e de todos os murmú rios do imaginá- atividade constituinte que asseguraria , por uma sé rie de operações
rio , pela violê ncia ( serena ou polê mica ) de uma razão que se funda
fundamentais , anteriores a quaisquer gestos explícitos , a quais-
em suas pr ó prias asser ções: donde o objeto científico se põe a exis- quer manipulações concretas , a quaisquer conte údos dados , a uni-
tir por ele mesmo em sua pr ópria identidade .
dade entre uma ciê ncia definida por um sistema de requisitos for -
mais e um mundo definido como horizonte de todas as experiê n -
Se há ao mesmo tempo relação e corte entre a análise da vida e a
familiaridade do corpo, do sofrimento, da doença e da morte ; se há cias possíveis. O de um sujeito que assegura , em sua unidade refle-
ao mesmo tempo ligação e distância entre a economia política e xiva , a síntese entre a diversidade sucessiva do dado e a idealidade
uma certa forma de produção; se de maneira geral a ciê ncia se refe- que se perfila , em sua identidade , através do tempo . Enfim e sobre-
re à experiê ncia e no entanto dela se destaca, não se trata absoluta- tudo o grande tema histórico- transcendental que atravessou o sé -
mente de uma determinação unívoca, nem de um corte soberano, culo XIX e se extenua com dificuldade ainda hoje na repetição ines-
constante e definitivo. De fato , essas relações de refer ê ncia e de dis- gotável dessas duas questões: qual deve ser a história , por que pro-
118 Michel Foucault - Ditos e Escritos

jeto absolutamente arcaico é preciso que ela seja atravessada , que


telos fundamental a estabeleceu desde seu primeiro momento ( ou
1969
melhor , que permitiu a possibilidade desse primeiro momento ) e a
dirige , na sombra , até uma finalidade já obtida para que a verdade
possa emergir ou que ela reconheça, nessa claridade sempre recua-
da , o retorno disso que a origem já havia ocultado? E logo a outra
Introdução ( in Arnauld e Lancelot )
questão se formula: qual deve ser esta verdade ou talvez esta aber -
tura mais que originária para que a história aí se desdobre, não
sem recobri-la , escondê-la , enterrá-la em um esquecimento do qual
essa história traz todavia a repetição , o apelo , cuja memória nunca .
Introdução , í n Arnauld ( A. ) e Lancelot ( C ) , Grammaire g é né rale et raisonnée , Pa-
se cumpre? Pode-se fazer tudo o que se queira para tornar essas -
ris , Republications Paulet , 1969 , ps. Ill XXVII.

questões tão radicais quanto possível: elas permanecem ligadas ,


apesar de todas as tentativas para desarticulá-las , a uma analítica
do sujeito e a uma problemática do conhecimento. Gramática geral e lingüistica
Em oposição a todos esses temas , pode-se dizer que o saber ,
como campo de historicidade no qual as ciê ncias aparecem , está li- Muitos traços estabelecem parentesco entre a lingüistica moder -
vre de qualquer atividade constituinte , liberado de qualquer refe- na e a Grammaire de Port-Royal e , de modo geral, todas essas gra-
r ê ncia a uma origem ou a uma teleologia histórico-transcendental , máticas racionais , cuja dinastia se estendeu ao longo da é poca clás-
destacado de qualquer apoio em uma subjetividade fundadora. De sica - da metade do século XVII aos primeiros anos do século XIX:
todas as formas de síntese pr évias pelas quais se queriam unificar como se , para além do episódio filológico - de Bopp a Meillet , em
que as línguas eram estudadas simultaneamente conforme o curso
-
os acontecimentos descontínuos do discurso, é provável que estas
tenham sido , durante mais de um século , as mais insistentes e du- de sua evolu ção individual e a rede de sua filiação ou de seus paren-
vidosas ; são elas sem d úvida que animavam o tema de uma histó- tescos históricos , o recente projeto de uma ciê ncia da l í ngua em
ria contínua , perpetuamente ligada a si mesma e infinitamente I geral fosse ao encontro do velho empreendimento da gramática
aberta às tarefas de retomada e de totalização. Era necessá rio que l geral . E , afinal , entre as ú ltimas gramáticas “ filosóficas” , “ gerais”
a história fosse contínua para que a soberania do sujeito fosse sal- a ou “ racionais” e o Curso de Saussure* decorreu menos de um sécu-
vaguardada; mas era preciso reciprocamente que uma subjetivida- : lo ; aqui e ali , mesma refer ê ncia, explícita ou não , a uma teoria dos
de constituinte e uma teleologia transcendental atravessassem a i signos , da qual a análise da língua seria apenas um caso particular
história para que esta pudesse ser pensada em sua unidade . !
e singularmente complexo; mesma tentativa de definir as condi-
;
Assim , a descontinuidade anónima do saber estava excluída do Î ções de funcionamento comuns a todas as línguas ; mesmo privilé -
discurso e rejeitada como impensável . I gio atribu ído à organização atual de uma língua e mesma reticê ncia
: J
j em explicar um fato gramatical por uma evolução ou por uma per - ï
I sistência histórica ; mesma vontade de analisar a gramática , não !

como um conjunto de preceitos mais ou menos coerentes, mas


ï como um sistema no interior do qual seria preciso poder encontrar
i ! I uma razão para todos os fatos, mesmo para aqueles que pareces-
ï !'
sem os mais desviados.

é .
* Saussure ( F. de ) Cours de linguistique g é né rale ( publicado por C . Bally e A .
& Sechehaye ) , Genebra , 1916.

1
i
1 20 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1969 - Introdução ( in Arnauld e Lancelot ) 121

N ão é fácil dar um sentido preciso a essas coincid ê ncias. De racional que permite adquiri-lo. A gramática cartesiana não é mais
nada serve reconhecer nelas o avan ço premonitório dos clássicos para a lingüistica atual somente uma prefiguração estranha e longín-
em relação a nós , ou nosso retorno a descobertas esquecidas e há qua de seus objetos e procedimentos; ela faz parte de sua história es-
muito tempo sepultadas. A gramática geral não é uma qua- pecífica ; inscreve-se no arquivo de suas transformações.
se-lingüistica , apreendida de maneira ainda obscura ; e a lingüistica
moderna não é uma nova forma mais positiva dada à antiga id é ia
de gramática geral . Trata-se , de fato , de duas configurações episte- Uma mutação pedagógica
mológicas diferentes , cujo objeto não se recorta da mesma manei-
A Grammaire g é nérale et raisonnée* , publicada em 1660 , fa -
ra , cujos conceitos não têm inteiramente o mesmo lugar nem exata- zia parte de todo um projeto pedagógico , ao qual estavam dedica-
mente a mesma função. No entanto, o fato de que , através de tantas
dos há quase duas d écadas os educadores de Port-Royal . Lancelot
diferenças, certas semelhanças pareçam se delinear e se tornar
havia editado em 1644 uma Grammaire latine** , seguida de gra -
perceptíveis para nós não é da ordem da pura e simples ilusão; ele
má ticas grega , italiana e espanhola. Tratava-se , aparentemente ,
coloca , ao contr ário, um problema que nos é contempor âneo:
de uma simples reforma nos mé todos empregados para ensinar
como explicar que , entre duas disciplinas tão diferentes em sua or - línguas . Os manuais utilizados até então enunciavam as regras
ganização , tão afastadas também por suas datas de nascimento , tal
gramaticais apoiando-as em exemplos ; ora , não somente o exem-
conjunto de analogias possa surgir hoje? Que espaço comum está
plo mas freq ü entemente a pr ó pria regra eram formulados na l í n-
começando a se abrir que aloja ambas , e permite fixar para elas um
gua a ensinar , e às vezes de tal maneira que ela ilustrava a si pr ó-
sistema de identidades e diferenças , ali onde só havia até então
pria , constituindo, por seu enunciado , um exemplo do que ela
duas figuras não passíveis de sobreposição? Que análise generali-
prescrevia , embora a aprendizagem se fizesse no interior da l ín -
zada da linguagem , já atuando em nosso saber , permite definir o
gua ensinada e por uma manifestação da regra no interior do ;
isomorfismo parcial de duas figuras em princípio alheias uma à
exemplo . Os versos latinos de Despautè re eram a ilustraçã o mais
outra? célebre dessa técnica2.
O parentesco , subitamente descoberto , com a gramática geral
A reforma introduzida no século XVII consiste em desdobrar
não é , para a lingü istica , uma curiosidade de sua história , nem o í n- essa figura complexa em que cada lí ngua devia , eventualmente em
dice que garante a sua antigü idade ; é antes um episódio que se ins- uma só frase , manifestar -se , enunciar suas regras e mostrar sua
creve em uma mutação atual. aplicação . Por quase tr ês séculos , o ensino de uma lí ngua através
Estudando a “ lingüistica cartesiana” 1 , Chomsky não aproxima ab- dela mesma vai regredir até desaparecer ou quase3, e dois planos
solutamente a gramática dos clássicos da lingüistica de hoje: ele bus-
ca preferencialmente fazer aparecer , como seu devir e seu futuro lu-
gar-comum , uma gramática em que a linguagem não mais seria anali- * Arnauld ( A. ) e Lancelot ( C . ) , Grammaire g é né rale et raisonnée , contenant les
fondements de Vart de parler expliqué s d’ une maniè re claire et naturelle , Paris ,
sada como um conjunto de elementos discretos, mas como uma ativi- Le Petit , 1660.
dade criadora; em que estruturas profundas seriam delineadas sob ** Lancelot ( C. J , Nouvelle méthode pour apprendre facilement la langue latine ,
figuras superficiais e visíveis da língua; em que a pura e simples des- Paris , A. Vitr é , 1644.
k
crição das relações seria retomada no interior de uma análise explica- 2. ( N.A . ) Eis alguns exemplos das regras de Despautère. Regra enumerativa :
“ JVÍascu ía sunt pons , morts , fons , reps dum d énotât anguem ." Regra sintática com
tiva; em que o sistema da língua não seria dissociável da elaboração
exemplo : “ Si ternam primae des , totum sit tibi pr í mae ; sique secondae des ternam
totum esto secunda ; pauper ego canto, Luca vir maximum audiRegra que é seu
próprio exemplo: "Sin res absque anima, ponetur mobile , neutrum.”
i?
-
1. ( N .A. ) Chomsky ( N . ) , Cartesian linguistics. A chapter in the history of rationa 3. ( N.A . ) Já na edição de 1641 da Grammaire de Despautère ( Universa grammati -
.
listic thought Harper & Row , Nova Iorque e Londres , 1966. ( La linguistique ca , Cadoni , G . Granderge ) , os exemplos são traduzidos, palavra por palavra , em
cartésienne . Seguido de: La nature formelle du langage , trad . N . Delanoe e D . francês.
Sperber , Paris, Éd . du Seuil , col. "L’ordre philosophique” , 1969 ( N .E . ) J
1969 - Introdução ( in Arnauld e Lancelot ) 123
122 Michel Foucault - Ditos e Escritos

certa ordem que se poderia reconstituir com toda a sua


se encontrar ão radicalmente diferenciados: o da língua que ensina clareza ,
desde que não se considerasse da mesma forma a pr ópria língua ,
e o da língua ensinada4 . com a complexidade de seus usos e de suas formas, mas sim os
Desde então , e por muito tempo, ser ão distinguidas, pelo menos princípios gerais que a regiam, de qualquer forma
funcionalmente , a língua de aprendizagem e a língua aprendida. A independentes
de qualquer roupagem lingü istica . Ela também supunha que
língua de aprendizagem será a mais familiar , a mais natural para o essa
ordem de razões era compreensível progressivamente e que se po-
aluno ; a língua aprendida ser á aquela da qual ele precisa adquirir
dia sem d ú vida dar conta dela, sem obscuridade, seguindo o enten-
sejam os elementos ( quando se trata de uma língua estrangeira ) ,
dimento natural . Enfim , ela supunha uma diferença de nível e de
sejam os princípios ( quando se trata da sua ) , em todo caso, as re-
gularidades . È na língua do sujeito falante que a regra deve ser for - funcionamento entre a língua materna (ou , pelo menos, essa parte
da lí ngua materna que é adquirida durante a infância ) e a língua a
mulada: é na sua língua que ele deve compreendê-la e familiari-
aprender (ou , pelo menos, as regras da língua materna que não
zar-se com ela; o exemplo mostrará somente a sua aplicação. Para
isso, uma razão: a ordem quer que se vá do mais f ácil ao que é me-
são ainda utilizadas , nem compreendidas ) . Aqui , também , a mu *

nos . “ Já que o simples senso comum nos ensina que é preciso co- tação observada na Grammaire de Port-Royal tinha tido corres-
pondentes que lhe são contempor âneos . Em 1656 , Irson escrevia:
meçar sempre pelas coisas mais fáceis e o que já sabemos deve nos “ É um erro que surpreendeu diversas pessoas
servir como uma luz para esclarecer o que não sabemos, é visível v se
imaginar que
que devemos nos servir de nossa língua materna como um meio pode falar corretamente sua língua materna sem a ajuda da gramá-
para entrar nas línguas que nos são estrangeiras e desconhecidas. tica e que se pode aprender mais pelo uso do que pelos preceitos. . .
Se isso é verdade no que se refere às pessoas idosas e sensatas , e Sem a certeza das regras jamais se pode adquirir a perfeição de
que nenhum homem de espírito deixa de pensar que o ridiculariza- uma língua. ” 6
mos se lhe propusermos uma gramática em versos espanhóis para Isso tem duas consequências essenciais . A primeira é positiva.
lhe fazer aprender espanhol , isso é ainda mais verdadeiro em rela- Ela faz a lí ngua surgir como um edif ício de dois andares: o andar
ção às crianças, para as quais as coisas mais claras parecem5 obs- manifesto das frases , das palavras e discursos, dos usos, dos esti-
curas por causa da fraqueza de seu espírito e de sua idade .” los que constituem o corpo visível da lí ngua , e o andar não manifes-
A id éia , nova na época , de ensinar o latim e , de uma maneira ge- to dos princípios que devem, com perfeita clareza, dar conta dos fa-
ral, as línguas estrangeiras a partir do francês ( ou da língua mater - tos que se podem observar . A segunda conseq üê ncia é negativa: a
na do aluno ) teve , sem d úvida , efeitos culturais consider áveis . O re- análise da língua se encontra liberada de um certo número de espe-
cuo do latim como língua de comunicação, o desaparecimento do culações que , há séculos , a sobrecarregavam , e sem d úvida desde
plurilingú ismo, uma consciê ncia mais aguda das nacionalidades os primeiros gramáticos gregos. Ela se desvencilha das antigas
lingúísticas e das distâncias que as separam um certo fechamento questões relativas à origem natural ou artificial das palavras , aos
das culturas em si mesmas , uma certa fixação de cada língua em valores da etimologia, à realidade dos universais, e vê surgir diante
seu vocabulário e sintaxe pr óprios, tudo isso consiste , nessa refor - dela uma tarefa ainda inédita: procurar a razão dos usos.
ma do século XVII, senão em sua origem , ao menos em um de seus Foi preciso que a mínima defasagem entre a língua ensinada e a
elementos determinantes. língua que ensina fosse totalmente esclarecida para que a teoria da
Mas essa transformação promoveu conseqúências epistemológi- língua assumisse sua autonomia, para que também se libertasse
cas importantes. Ela supunha , de fato, que havia nas línguas uma tanto dos imperativos pedagógicos imediatos quanto das preocu-
pações da exegese ou das querelas filosóficas. Foi necessário até
certo ponto renunciar a falar diretamente , a aplicar imediatamente
4 . ( N .A. ) Lancelot não foi o único nessa época a tecer tal crítica . Ela é encontrada
novamente em Coustel ( P . ) , Les rè gles de ('éducation des enfants , Paris , E .
os modelos , para que a pr ópria língua constitua um objeto de sa-
Michallet , 1687 , 2 vol . ; em Guyot ( T. ) , Billets que Cicé ron a é crits à son ami
aux
Atticus , Paris , C . Thiboust , 1666 , e em Snyders ( G . ) , La pé dagogie en France 6 . ( N . A . ) Irson ( C. ) , Nouvelle mé thode pour apprendre facilement les principes et
XVir et XVIIIe si ècles , Paris , PUF, 1965 .
la puret é de la langue française , Paris, de posse do autor , 1656 .
5 . ( N .A . ) Lancelot , Nouvelle mé thode . . . , op . cit . , Prefácio , ps . 2- 3 .
124 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1969 - Introdução [ in Arnauld e Lancelot ) 125

ber . A língua como domí nio epistemológico não é a que se pode uti- em relação aos outros usos, mas no princípio que o torna possível e
lizar ou interpretar; é aquela com a qual se pode enunciar os prin- do qual ele não passa de uma de suas eventuais aplicações. Como di-
zia o padre Lamy, bem pouco tempo após a Grammaire de Port-
cípios em uma língua que é de um outro nível.
Royal : “ Quando se concebe claramente o que é preciso para expri-
mir seus pensamentos e os diversos meios que a natureza oferece
t para fazê-lo , se tem um conhecimento de todas as línguas que é fácil
Generalidade e razão
aplicar àquela em particular que se quer aprender . »7
Lancelot já havia publicado gramáticas latina , espanhola e italia- Quanto mais uma gramática de uma língua for racional , mais se
na. A que ele redige com Arnauld é uma “ gramática geral e racio- aproximará de uma gramática geral: quanto mais uma gramática
nal” , que não se refere a um domínio lingüistico limitado, mas à for geral , mais valer á como gramática racional de uma lí ngua qual-
“ arte de falar ” no que ela pode ter de universal. quer . No limite, seria possível construir uma gramática geral a par -
Ora, o que permite aos autores de Port-Royal aceder a esse nível de tir de uma só língua , assim como é possível descobrir as razões de
generalidade não é uma comparação sistemática das línguas umas r
uma determinada língua a partir da gramática geral.
com as outras. Em nenhum momento , Arnauld e Lancelot procuram Compreende-se por que o projeto de uma gramática geral jamais
dominar um conjunto de línguas que eles poderiam conhecer ; o do- tenha engendrado um método comparativo: bem mais, por que esse
mínio ao qual eles se dirigem é visivelmente limitado: trata-se princi- projeto foi, durante toda a época clássica , indiferente aos fenômenos
palmente de fatos latinos e franceses , aos quais são acrescentados , de semelhança ou de filiação. A gramática geral apenas definia um
sobretudo a título de confirmação, alguns fatos gregos e hebreus , as- espaço comum a todas as línguas, na medida em que ela abria uma
sim como raros exemplos italianos ou espanhóis. A gramática geral - dimensão interna a cada uma; somente ali se deveria buscá-la. É
e esse é um princípio que vale até o fim do século XVIII - não é uma ainda Irson que , na época de Port-Royal e pouco após Les origines
gramática que analisa e compara um material lingüistico heterogé- de la langue française , de Ménage* , renunciava a procurar “ a eti-
neo; é uma gramática que toma distância em relação a uma ou duas mologia das palavras francesas nas línguas estrangeiras.. . os mais
línguas dadas e que, na distância assim instaurada , reconstitui os sábios permanecendo de acordo que nem sempre é uma prova certa
usos particulares dos princípios universalmente válidos. Mas que ins- de que uma palavra seja tirada de uma língua estrangeira por haver
tância garante essa passagem e como estar seguro de que se atinge, a ali alguma relação, já que era impossível não encontrar nenhuma na
partir de um fato singular , uma forma absolutamente geral? multid ão de línguas das quais temos conhecimento ” . E , mais adian-
O critério consiste na reciprocidade entre o caráter geral e o cará- te , acrescentava: “ Pois o acaso e a sorte não agem nesses encontros
ter racional da análise. Eis por que , durante aproximadamente um de letras e nessa semelhança de palavras.” 8 A essas pesquisas duvi-
século e meio , esses dois termos ser ão quase constantemente asso- dosas, passou-se a preferir a análise genética: o mito do homem na-
ciados. De fato , uma gramática pode escolher seus exemplos em um turalmente mudo que pouco a pouco deseja aprender a falar : “ Ve-
dom ínio limitado; se , entretanto , ela é capaz de justificar os usos mos como os homens formariam sua linguagem se , tendo a natureza
particulares, de mostrar que necessidade os funda, se pode relacio- lhes feito nascer separadamente , eles se reencontrassem em seguida
nar os fatos de uma língua às evidê ncias que os tornam transparen- em um mesmo lugar . Usemos da liberdade dos poetas: façamos
tes , ela terá atingido por esse fato mesmo o nível das leis que valem £ emergir da terra ou descer do céu um bando de novos homens que
da mesma forma para todas as línguas: pois a “ razão” que atravessa ignoram o uso da palavra. Esse espetáculo é agradável . .. ” 9
a singularidade das línguas não é da ordem do fato histórico ou do
acidente ; ela é da ordem daquilo que os homens em geral podem * Ménage ( G . ) , Les origines de la langue française , Paris, A. Courbé , 1650.
querer dizer . Inversamente , uma gramática pode muito bem ser ge- 7. ( N.A. ) Lamy {R. P. B.) , La rhétorique ou Vart de parler , Paris, A. Pralard , 1688
ral e fazer abstração dos fatos lingüisticos em sua diversidade: por Prefácio , p. XV.
isso , ela não valerá menos - e sempre - como uma gramática racio-
. .
8. ( N.A.) Irson (C. ), Nouvelle méthode..., op cit Prefácio e p. 164.
9. ( N.A. ) Lamy ( R. P. B. ) , La réthorique , op. cit , Livro I , Cap . IV.
... .
nal ; pois a razão de um uso particular não está no que o faz desviar
126 Michel Foucault - Ditos e Escritos
1969 - Introdução ( in Arnauld e Lancelot ) 127
i
?!
I porque a lógica tem relação com todas as ações do pensamento
Mas vemos també m por que as análises clássicas jamais pude- permitem conhecer : conceber , julgar , raciocinar ,
que
ram fundar uma disciplina semelhante à linguística; é porque a ge- 3r [ ordenar . Arte de
i pensar e não absolutamente arte de bem pensar , porque
neralidade à qual ela acede não é absolutamente aquela da língua i
tem sempre por tarefa estabelecer as regras; porque as regras
uma arte
em geral, mas antes aquela das razões que agem em qualquer lí n- pre definem uma ação correta e porque não existe arte de pensar
sem-
gua. Razões que são da ordem do pensamento, da representação, } errado , assim como não há regras para pintar mal . O pensamento
da expressão ( do que se quer exprimir , da finalidade visada ao fa-
incorreto é um pensamento sem regra ; uma regra que não fosse
lar , da escolha que se faz da importância relativa dos elementos a “ absolutamente correta” não poderia de forma
exprimir e da sucessão linear que se lhes impõe ) ; certamente essas alguma ser conside-
rada uma verdadeira regra. A regra não é uma pura e simples pres-
razões introduzem resultados linguísticos diferentes ( aqui , de ca- crição externa que permitiria ( ou não ) aceder à verdade ; ela é uma
so, e ali , de preposições; aqui, dois gêneros , e ali, tr ês; aqui , uma l
condição de existência , que é ao mesmo tempo garantia da verda-
ordem “ natural” das palavras , e ali , uma ordem “ inversa” ) ; mas em de ; ela é o fundamento comum do que existe e do conhecimento
si mesmas e em sua generalidade, elas não são absolutamente lin-
i
*
verdadeiro que disso se adquire .
guísticas. Elas jamais permitem apreender o que pode ser , confor- A gramática não é tampouco uma “ arte de bem falar ” , mas muito
me sua própria natureza e suas leis internas , “ a” língua. A gramáti- *
simplesmente uma “ arte de falar ” . O princípio de pensar errado é
ca geral, diferentemente da linguística , é mais uma maneira de en-
!
i
não pensar absolutamente, e deve ser de fato aplicado à fala; falar
focar uma língua do que a análise de um objeto específico , que se-
ria a língua em geral.
\ fora de qualquer regra torna-se então não falar de forma alguma : a
[ existê ncia de uma fala efetiva depende de sua correção . Donde uma
Chega-se por aí à idéia , para nós paradoxal , mas então evidente , % î conseqüência importante: a gramática não poderia valer como as
de uma gramática geral que ignora tanto a comparação das línguas í prescrições de um legislador dando, enfim , à desordem das pala-
quanto a autonomia do campo linguístico , à id é ia de uma gramáti- I
I vras , sua constituição e suas leis ; ela tampouco poderia ser com -
ca que , estudando as razões de uma língua qualquer , evidencia a preendida como uma coletânea de conselhos dados por um revisor
generalidade que atravessa cada uma. Nesse sentido, a gramática r vigilante . Ela é uma disciplina que enuncia as regras pelas quais é
sr-
geral é bastante próxima de uma lógica que se proporia a estudar j preciso que uma lí ngua se ordene para poder existir . Ela deve defi-
não tanto as regras dos raciocínios válidos mas “ as principais ope- nir a regularidade de uma lí ngua , que não é seu ideal , seu melhor
k
rações do espírito” , tal como elas agem em todo pensamento. uso , nem o limite que o bom gosto não poderia ultrapassar , mas a i
i
ï forma e a lei interna que lhe permitem simplesmente ser a língua
R que ela é 10 .
A relação com a lógica \
\
í
!
10. ( N.A . ) Vê-se a diferença com Vaugelas , cujas Remarques sur la languefrançaise
A Logique* , publicada pouco depois da Grammaire , apresen- !: I tinham sido publicadas em 1647. Deve-se notar entretanto que, estabelecendo o uso
ta-se como uma arte de pensar **. Respondendo às “ principais ob- i ( ou pelo menos um certo uso ) como critério de validade , ele tamb
ém define a regra
jeções" que foram formuladas à primeira edição do texto, Arnauld como a lei de existência da l íngua . Um contemporâneo de Lancelot, Irson , em seu ï

Nouvelle méthode pour apprendre facilement les principes et la pureté de la


e Nicole explicam por que preferiram esse subtítulo à designação
?

| langue française , explicava que a gramática n ão estava submetida ao “ capricho dos


tradicional: “ Arte de bem raciocinar” . Pensar e não raciocinar , 3 homens ” ; mas que “ a Razão regula e conduz os movimentos da fala com uma ordem
e uma propor ção admir áveis ” .
Arnauld critica inclusive Vaugelas em suas Ré/iextons sur cette maxime que l’usage
.
* Arnauld (A ) e Nicole (PJ ,La logique ou Vartdepenser , Paris , C. Savreux, 1662. J est la règle et le tyran des langues vivantes: “ Não se tem necessidade de combater
** O artigo de Michel Foucault -
de 1967 “ La Grammaire gé né rale de Port Royal ,
"
M essa máxima que é muito verdadeira , desde que seja bem entendida e restrita a justos
publicado em Langages ( ver n 49 , vol. I da edição francesa
2 desta obra ) come ça com limites." Para os novos usos que se querem estabelecer , Arnauld recomenda sub-
esta frase ( "La Logique , publicada pouco depois da Grammaire ( ... ) ) . As diferenç
” as meter-se a eles apenas quando são razoáveis; “ quando não os consideramos como tais
entre o artigo e este prefácio serão assinaladas progressivamente por asteriscos. por boas razões, devemos pelo contrário nos opor a eles” .

2i

L
í

128 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1969 - Introdução [ t n Arnauld e Lancelot ) 129

Por esse fato mesmo , o sentido da palavra gramática se desdo- essas regras , é preciso que eu as reconduza aos princípios que as
bra ; há uma gramática que é a ordem imanente a qualquer palavra fundamentam.
pronunciada , e uma gramática que é a descrição , a análise e a expli- Vemos o quanto seria falso caracterizar a gramática clássica
-
cação - a teoria dessa ordem. A gramática é a lei do que eu digo ; e como uma assimilação apressada à lógica. Em uma , regras e fun-
també m a disciplina que permite conhecer essa lei . Eis por que a damentos não passam de uma só e mesma coisa; na outra, eles não
gramática é definida pelo título da obra como um discurso que são do mesmo nível. E essa defasagem justifica , em compensação ,
“ contém os fundamentos da arte de falar ” ; e , nas primeiras linhas a distinção inicial entre a língua que ensina ( que enuncia os funda-
do texto , como a própria “ arte de falar” . Ora , não se encontra tal mentos ) e a língua ensinada ( que manifesta as regras ) , da mesma
desdobramento na Logique , ou melhor , encontra-se um outro , se- forma como essa distinção tinha originariamente permitido fazer
melhante a ele apenas aparentemente. De fato , os princípios da ló- aparecer a gramática como uma disciplina que fundamenta, expli-
gica são aplicados “ naturalmente por todo espírito atento que faz
ca e justifica as regras gramaticais.
uso de suas luzes” , e “ às vezes melhor por aqueles que não apren-
deram nenhuma regra da lógica do que por aqueles que as apren-
deram"; a lógica consiste somente em “ fazer reflexões sobre o que a A teoria do signo
natureza nos faz fazer ” . Mas essas reflexões tê m por finalidade “ nos “ Falar é explicar seus pensamentos através
assegurar de que nos servimos bem de nossa razão” , “ descobrir e de signos que os ho-
mens inventaram intencionalmente. ” A Grammaire de Port-Royal
explicar o erro” e “ nos fazer conhecer melhor a natureza de nosso
se compõe de duas partes. A primeira é consagrada aos sons , ou
espí rito” . Em outros termos, a lógica , em relação à arte natural de
seja , ao material que foi escolhido para constituir os signos : ele
pensar , é uma luz que nos permite conhecer a nós mesmos e estar
consiste em um certo nú mero de elementos que são , por um lado ,
seguros de que estamos certos . Ela não explica por que pensamos, portadores de variáveis ( abertura da boca, duração do som ) e , por
como pensamos; ela mostra o que é verdadeiramente o pensamen- outro, capazes de combinações (as sílabas ) ; estas, por sua vez , têm
to e , conseq üentemente , o que é o pensamento verdadeiro. Sua ta- como variável a acentuação , que pode estar presente ou ausente .
refa é puramente reflexiva; ela busca explicar somente quando se Como sons , as palavras são sílabas ou conjuntos de sílabas acen -
trata da não-verdade. A lógica é a arte de pensar , esclarecendo-se !/:
tuadas de diferentes maneiras. A segunda parte é consagrada aos
por si mesma e formulando-se em palavras .
diferentes tipos de palavras ( substantivos , verbos , preposições
A gramática é uma tarefa mais complexa , pois as regras que
etc. ) , ou seja, às múltiplas maneiras pelas quais os homens conse-
constituem espontaneamente a arte de falar não são justificadas guem significar seus pensamentos. Em outros termos, os primei-
unicamente pelo fato de serem sensatas e porque delas se tomou
ros capítulos da Grammaire tratam da natureza material do signo ,
consciência . Elas exigem ainda serem justificadas , e é necessário os demais, das diversas “ maneiras de significar ” .
mostrar por que elas são como são. Eis a razão pela qual , entre a Vemos que o que “ falta ” , o que foi mantido em silê ncio , foi a
gramática como arte de falar e a gramática como disciplina conten- teoria da significação e da palavra enquanto portadora de signifi-
do os fundamentos dessa arte , a relação não é de pura e simples re
-
cação* . A ú nica coisa a ser dita , e de maneira absolutamente resu -
flexão ; é de explicação. É preciso conduzir as regras ao seu funda -
como elas mida , é que a palavra é um signo. Se não há teoria do signo na
mento , ou seja , aos princípios evidentes que explicam
- Grammaire , em compensação a encontramos na Logique . [ É pre-
permitem dizer o que se quer dizer . A fórmula da lógica seria: des
de que eu pense a verdade , penso verdadeiramente; e basta que eu
reflita sobre o que é necessário para um pensamento verdadeiro
, * Na versão de 1967 , aparece aqui a seguinte passagem: “ . . .enquanto portadora de
um pensa - significação. Como ocorre que certos grupos de sons possam ser significantes? Qual
para que saiba a que regra obedece necessariamente é o ato ou qual é o sistema que faz surgir a significação entre o material não ainda
mento verdadeiro. A f órmula da gramática seria de prefer ência : significante que se combina para formar as sílabas e as diversas categorias de
desde que falo verdadeiramente , falo de acordo com as regras ; mas palavras que formam outras tantas maneiras diferentes de significar? A ú nica coisa
se quero saber por que minha língua obedece necessariamente a a ser dita . .. ” .
?

130 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1969 - Introdução ( in Arnauld e Lancelot ) 131

constituía o objeto da primeira id éia; o objeto do signo ser á substi-


ciso examiná-la com cuidado. Perguntar -se por que ela se encontra
exposta ali e não na Grammaire ; e que lugar preciso ela ocupa na tu ível e equivalente à idéia do objeto significado . O exemplo primei-
ro do signo para os lógicos de Port-Royal não é a palavra nem a
economia geral da Logique. * ] A análise dos signos aparece na pri-
marca; e o quadro ou o mapa geogr áfico: a id éia que os meus senti-
meira parte da Logique , que conté m “ as reflexões sobre as id é ias
dos me dão dessa superfície atravessada por traços tem por objeto
ou sobre a primeira ação do pensamento que se chama conceber ” .
a representação de um outro objeto - um país com suas fronteiras,
Ela corresponde ao seu quarto capítulo, e sucede a uma análise da
rios , montanhas e cidades . O signo desdobrado em sua maior di-
natureza e das origens das idéias e a uma cr ítica das categorias de
Aristóteles ; precede també m um capítulo sobre a simplicidade e
mensão é um sistema de quatro termos, que poderíamos esquema-
tizar assim :
complexidade das idéias. Esta posição da teoria dos signos pode
parecer estranha, já que eles têm por função representar não so-
Representação coisa
mente todas as idéias, mas todas as características distintivas das * •

id éias; longe de figurar entre as caracter ísticas das idéias , eles de- l
veriam de preferência recobrir todo o domínio - portanto , aparecer Representação * coisa 1
no in ício ou no fim da análise . A pr ó pria Logique não diz - deixan- ou ainda :
do entender que as idéias e seus signos devam ser analisados em
conjunto - “ por que as coisas só se apresentam ao nosso espí rito
Idéia > ( objeto = idéia ) objeto
com as palavras com as quais estamos acostumados a revesti-las
ao falar com os outros, é preciso na lógica considerar as idéias asso-
A relação da idéia com seu signo é , portanto, uma especificação ,
ciadas às palavras e as palavras associadas às idéias” ? Por que , a
ou melhor , um desdobramento da relação da id é ia com seu obje-
partir disso, inserir a reflexão sobre os signos no meio de muitas
to11 . É à medida que a representação é sempre representação de al -
outras considerações sobre a idéia?
[ Ora , essa disposição estranha parece ainda mais paradoxal
guma coisa que ela pode , além disso, receber um signo. A lingua-
gem , ou melhor , a palavra-signo se aloja no espaço aberto pela
quando nos reportamos ao plano da primeira parte da Logique , tal id éia que representa seu objeto .
. %
i
i -r
como ele é apresentado , a titulo de preliminar , antes do Capítulo I.* * ] E normal que a teoria do signo esteja localizada no cerne da re-
Ali é dito que as reflexões sobre as idéias podem se reduzir a cinco flexão sobre a id é ia , na qual a relação da representação com o ob-
pontos: sua natureza e origem , seu objeto , sua simplicidade ou
jeto é questionada . Normal també m que ela venha em seqüê ncia a
composição , sua extensão , sua clareza ou obscuridade. Ele não faz
uma cr ítica das categorias de Aristóteles ( já que , daí em diante , a
nenhuma menção da análise dos signos que deveria ser formulada
depois das reflexões sobre o objeto das idéias , se esse plano pro-
tarefa do conhecimento não é mais classificar os objetos possíveis
em grandes tipos definidos por antecipação , mas tanto multipli-
posto estava de acordo com a ordem realmente seguida na obra. £
car como constituir , se possível , as formas e os níveis da repre-
Isso porque de fato , tal como nas discussões sobre as categorias de
sentação de um objeto, de maneira a poder analisá-lo , decom-
Aristóteles que a precedem imediatamente , ela ainda faz parte
da f
es da id é com seu objeto . Dar um signo a uma pô-lo, combiná-lo , ordená-lo. Uma lógica dos conceitos , das cate-
análise das relaçõ ia
que
id éia é se dar uma id éia cujo objeto ser á o representante do
11. ( N.A. ) “ Assim o signo encerra duas idéias, uma da coisa que representa , outra da
coisa representada , e sua natureza consiste em provocar a segunda pela primeira ”
* Na versão de 1967 , em vez dessa frase entre colchetes pode se- 1er : “ Em que ela
[ Logique , I, 4).
consiste? E por que ela se encontra exposta ali?

Encontra-se a mesma análise na Rhé torique do padre Lamy : “ Chama-se signo uma
* * No texto de 1967 , lemos , em vez da frase entre colchetes: “ É provável que coisa que , diferente da idéia que ela mesma dá quando a
Logique , tal vemos , d á uma segunda
encontremos a razão desse fato estranho no plano da primeira parte da que não se vê. Como quando se vê na porta de uma casa um galho de hera; além da
como ele é exposto logo antes do Capítulo I."
id éia de hera que se apresenta ao pensamento, se concebe que , nessa casa , se vende
vinho” ( Livro I , Cap . II ) .
1 32 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1969 - Introdução ( in Arnauld e Lancelot ) 1 33

gorias e dos racioc í nios é substituí da por uma lógica das id


éias , [ tes tipos de vocábulos, as diversas significações; análise do valor sig~
dos signos e dos julgamentos) . É normal [ que o signo - já que ele é j nificativo das palavras, que deve fundamentar a análise de suas re -
um desdobramento da relação com o objeto -] * possa representar gras de uso. Mas já que a relação de significação é um desdobramen-
f

igualmente todas as representações e que a análise das palavras


i

seja correlativa da análise das idé ias ( apesar de a teoria do signo


Eis aí um fato importante ; muitos outros dele derivam . Inicialmente , o car áter
se esforçar em vão para se enraizar em um ponto muito determi- erróneo da tese habitual : a gramá tica clássica apenas teria dado atenção ao sentido
nado da Logique , e formar apenas um de seus capí tulos , a consi - das palavras e ela teria derivado sua forma e sua função dessa significação; na
deração da linguagem a percorre em todos os seus momentos es
- realidade, as diferenças que são pertinentes para o gramático não concernem às
senciais : teoria da definição das palavras a propósito das id é ias ; coisas significadas pelas palavras , mas ao modo pelo qual elas significam . A seguir ,
teoria das palavras e dos verbos a propósito do julgamento
) . Nor - a quase-ausê ncia da sintaxe em todas as “ gramáticas racionais” ; pois os signos são
estudados não de acordo com a posição que eles ocupam longitudinalmente uns em
mal enfim , e sobretudo , que a noção de signo surgisse totalmente relação aos outros ( salvo para enfatizar que eles concordam entre si ou se regem ) ,
armada na Grammaire e que entre a análise preliminar dos pri
-
mas de acordo com aquela que eles ocupam sagitalmente em relação ao objeto.
maneiras de signi -
meiros sons e aquela , posterior , das diferentes Enfim , o caráter aparentemente heterogéneo dos critérios escolhidos para explicar
ficar a palavra e o sentido apareçam como ligadas
[ a um n í vel que -
a diferen ça das palavras: ora os autores de Port Royal evocam uma diferença na »

não decorre da Grammaire ] * * . -


natureza das idéias ( e assim explicam a oposição substantivo verbo ) ; ora eles
evocam o n ú mero de indivíduos aos quais se aplica uma idéia ( o que d á lugar à
-
oposição substantivo pr óprio substantivo comum ); ora evocam as diferentes
relações possíveis entre as coisas ( donde as diferentes preposições ) . Mas , na
A especificação das palavras** * verdade, essa heterogeneidade apenas existe quando se imagina que as palavras
devem ser distinguidas por seu sentido ; ela desaparece e se torna coer ência rigorosa
A Grammaire de Port-Royal se distribui em torno de uma lacuna se nos lembrarmos de que as diferentes espécies de palavras têm muitas maneiras
central que a organiza . E essa teoria do signo , que se encontra assim de significar , ou seja , que cada uma ocupa uma posição específica no interior dessa
relação de objeto desdobrada , que é a significação .
elidida, não assegura a identidade do lógico e do gramatical , nem a Todas as grandes categorias da gramática podem ser deduzidas de uma maneira
?
subordinação deste àquele; ela determina ao mesmo tempo a depen- absolutamente contínua , sem o menor traço de heterogeneidade , se as colocarmos
dência da relação de significação com a relação de objeto , e o direito em seu elemento . É preciso retomar o esquema inicial :
da primeira de representar todas as possibilidades da segunda .
Toda a segunda parte da obra é ordenada por esses dois princípios. idé ia ( objeto = id é ia ) objeto
A possibilidade de significar sendo dada às palavras a partir do exte
- (a ) (a ) (b) (b)

rior , a tarefa da gramática [ será * * * * dizer quais são , para os diferen


-
A palavra é o objeto (a ) que funciona como a idé ia ( b ) do objeto ( b ) , e que tem a id éia
l (a ) como forma representativa no pensamento. É a partir da í que as diferentes
j maneiras de significar se desdobram .
o de objeto
* Na versão de 1967: “ É normal igualmente que o signo , como relaçã Vemos imediatamente que pode haver dois grandes níveis de diferenciações, a
desdobrada , possa representar todas as representa çõ es e que . . . ”
partir da palavra ou do objeto (a ) , que podemos designar como o n ível 0 .
* * Versão de 1967 : ". . .a palavra e o sentido aparecem como já ligados
”. Inicialmente , as idéias ( b ) podem ser quer concepções quer afirmações ; as palavras
* * * Esse título não aparece na vers ão de 1967 . que representam as id éias são substantivos , e as que representam as afirmações
* * * * Desse colchete até o da p. 135 , numerosas modificações ocorrem
em relação à são verbos . A seguir , os objetos ( b) podem ser tanto substâncias ( que serão
gram n mostrar como o sentido pode se
versão de 1967 : ...a tarefa
“ da á tica ão é designadas pelos substantivos ) , quanto acidentes ( que serão designados pelos
são as
constituir , a partir de quais elementos e seguindo que regras. Ela dir quais
á adjetivos ) . Diremos que essas duas primeiras distinções são de nível 1 e 2 . No
os vocá bulos: an álise diferencial das palavras
diferentes significações para diferentes entanto, é preciso observar que , no espaço separando esses dois níveis, há
ção é
e n ão enunciado das leis de sua construção. Mas já que a relação de significa I diferentes maneiras de a idéia ( b ) representar o objeto ( b ) : uma idéia pode
o , as diferen ças entre as palavras devem ser
um desdobramento da relaçã de objeto
I representar um só objeto ou valer da mesma maneira para muitos objetos
comporta ,
explicadas no interior dessa relação: seja pelos diversos níveis que ela I semelhantes ; o substantivo próprio será a maneira de significar o primeiro desses
seja pelas variações que ela permite em cada nível. Embora as
palavras não difiram I modos de representação , e o substantivo comum , o segundo. Estamos a í no nível 1
tanto por seu sentido quanto pela maneira pela qual elas funcionam em relação ao f .
Vi Da mesma forma , antes do nível 1 , a maneira pela qual o objeto ( a ) - ou seja , a
objeto. palavra - representa a idéia ( b ) é suscet ível de variações...”
134 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1969 - Introdução [ i n Arnauld e Lancelot ) 1 35

to da relação id éia-objeto, as diferenças entre os diversos tipos de pensar que as palavras devam ser distinguidas por seu sentido; ela
palavras devem ser explicadas no interior dessa relação assim des- desaparece e se torna coerê ncia rigorosa se nos lembrarmos de que
dobrada: seja pelos diversos níveis que ela comporta, seja pelas varia- as diferentes espécies de palavras são diferentes maneiras de signifi-
ções que ela permite em cada nível. Embora as palavras não difiram car , ou seja, que cada uma ocupa uma posição específica no interior
tanto por seu conteúdo significado , quanto pela maneira através da dessa relação de objeto desdobrada que é a significação.
qual elas funcionam em relação ao objeto ou à idéia do objeto. Todas as grandes categorias da gramática podem ser deduzidas
Deve-se notar , conseqúentemente , o car áter err óneo da tese ha- de uma maneira absolutamente contínua, com a condição de reco-
bitual: a gramática clássica só teria dado atenção ao conte údo se- locá-las em seu elemento. É necessário retomar o esquema inicial:
mântico das palavras e teria derivado sua forma e sua função dessa
significação ; na realidade , as diferenças que são pertinentes para l id éia ( objeto = id é ia ) objeto
t
*
os gramáticos não concernem somente às coisas significadas pelas (al ) ( a2 ) (b l ) ( b2 )
6
palavras , mas també m ao modo pelo qual elas as significam .
Dois fatos derivam disso. Um é a quase-ausê ncia da sintaxe . Os A palavra é o objeto (a2 ) que funciona como a idéia { b l } do objeto
autores de Port- Royal apenas lhe consagraram um capítulo , o ú lti- ( b2 ) , e que tem a id éia ( a l ) como forma representativa no pensamen -
5
| to. A partir daí, as diferentes maneiras de significar se desdobram .
mo da obra. Sem d úvida , muitas anotações ao longo do texto se re-
ferem a ela ( a propósito dos verbos , preposições ou pronomes ) . Se tomamos o signo , em sua realidade de objeto , como ponto de
Mas os fatos de sintaxe não são analisados a partir da função que partida , vemos que podemos encontrar , para especificar as dife -
as palavras exercem na frase ; eles são estudados a partir da relação rentes categorias de palavras , dois princípios gerais que se situam
que as coisas mantê m entre si , ou da maneira pela qual se concebe h; em dois níveis distintos: no n ível da id é ia ( b l ) representada pelo
esta relação , ou , enfim , a partir da maneira pela qual as palavras í
signo ; e no nível do objeto ( b2 ) , que é representado pela id éiq ( a l ) ,
designam essa relação . Assim , os casos do latim não indicam a fun- mas por intermédio do signo . Inicialmente , as idéias ( b l ) podem
1 '

ção da palavra , mas as maneiras pelas quais se quer fixar , na lin- ser quer concepções, quer afirmações ; as palavras que represen-
guagem , as relações entre as coisas representadas . “ Se consider ás- tam as afirmações são verbos . Por outro lado , os objetos ( b2 ) po-
semos as coisas separadamente umas das outras” , as palavras te- dem ser substâ ncias ( que ser ão designadas por substantivos ) ou
riam certamente um gê nero e um n ú mero , mas não caso. No entan- acidentes ( que ser ão designados por adjetivos ) . Diremos que essas
to , “ para que as observemos com as diversas relações que elas duas primeiras distinções são de nível 1 e 2. Mas há princípios su -
mantê m umas com as outras, uma das invenções de que nos servi- plementares de diferenciação; no espaço separando os níveis 1 e 2 ,
mos em algumas lí nguas para marcar essas relações foi a de dar há diversas maneiras para a id éia ( b l ) representar o objeto ( b2 ) :
aos substantivos diversas terminações” ( Livro II , Cap . VI ) . O que é uma idéia pode representar um ú nico objeto ou valer da mesma :>
verdade para essa sintaxe , dita de regime , o é també m para a sinta- maneira para diversos objetos semelhantes - o substantivo pr óprio
xe de concordâ ncia ou de acordo: se o adjetivo assume o nú mero e ser á a maneira de significar o primeiro desses modos de represen-
o gênero do substantivo, é porque ele marca a maneira pela qual é tação, o substantivo comum , o segundo. Estamos aí no n ível 1 V2 . i
determinada a representação designada pelo substantivo. Da mesma forma , antes do nível 1, a maneira pela qual o objeto ( a )
Outro fato importante , o car áter aparentemente heterogé neo dos
3.
- ou seja, a palavra - representa a idéia ( b ) é suscetível de varia-
crité rios escolhidos para explicar a diferença das palavras: ora os ções: ] ela pode representar uma só ou várias id éias do mesmo tipo ;
autores de Port-Royal evocam uma diferença na natureza das id éias daí a diferença entre singular e plural ; ou ela pode ainda represen -
( e explicam , assim , a oposição substantivo-verbo ) ; ora eles evocam o tar uma id éia indeterminada ( qualquer uma das id éias de um mes-
n ú mero de indivíduos aos quais se aplica uma id éia ( o que dá lugar à mo tipo ) ou , ao contr ário , uma id éia determinada entre outras ; daí,
oposição substantivo pr óprio-substantivo comum ) ; ora eles evocam os artigos definidos e indefinidos . Essas diferenças são de nível V2 .
as diferentes relações possíveis entre as coisas ( daí , as diversas pre- Enfim , além do nível 2, as preposições são maneiras de significar
posições ) . Mas , na verdade , essa heterogeneidade não é tal que leve a as relações entre os objetos.
1 36 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1969 - Introdução { i n Arnauld e Lancelot ) 137

Podemos então construir um quadro onde lemos as relações en- Há també m mudanças que são decorrentes das necessidades de
tre a lógica e a gramática, a articulação da relação de significação clareza; para mostrar com que substantivos se relacionam os adjeti-
na relação do objeto e as diferentes categorias de palavras na posi- vos , adquiriu -se o hábito de marcar de uma certa maneira os adjeti-
ção que elas ocupam no eixo que vai do signo ao objeto: vos que se relacionam com seres masculinos , e, de uma outra, os re-
lacionados aos seres femininos; duas transferências analógicas re-
N ível Diferenciação por Categorias gramaticais meteram então essas marcas aos pr óprios substantivos , depois eles ?
as estenderam aos seres que não tinham sexo. O desejo de resumir
Logique Grammaire os enunciados provoca igualmente certas modificações: seja quando
Id éia ( a ) 0 se quer evitar a repetição de um substantivo ( são os elementos pro-
Objeto-signo ( a ) 0 nominais ) ; seja quando se quer reunir muitas maneiras de significar
I o n ú mero de signos singular/plural no interior de uma mesma palavra ( o pronome relativo desempenha
a extensão do signo artigo definido/indefinido simultaneamente a função de pronome e de conjunção ) ; seja quando
se quer reunir várias palavras em uma só ( o verbo ser e um atributo
Id éia ( b ) 1 a natureza da id é ia substantivos-verbos
são resumidos em um verbo , uma preposição e um substantivo, em
1 V2 a extensão da id éia substantivos próprios-comuns
um advé rbio ) . Enfim, podem-se obter novas maneiras de significar
Objeto ( b ) 2 a natureza do objeto substantivos-adjetivos
2 V2 as relações entre preposições
invertendo a ordem das palavras ( interrogação ) . É preciso observar
os objetos que certas formas gramaticais acumulam muitos desses procedi-
mentos: o infinitivo tem uma significação nominal , mas ele indica
também uma subordinação do ponto de vista do verbo pessoal; ele
As figuras * é , portanto , uma forma de abreviação; é nisso que ele é o análogo
para os verbos ao que é o relativo para os substantivos.
Sem d ú vida , esse quadro não cobre a totalidade do domínio gra- Ora , é curioso constatar que esses quatro procedimentos que se
matical . Ele o organiza , ao menos no essencial . Com relação aos ï sobrepõem à dedução fundamental das categorias gramaticais são
outros fatos da gramática , eles são na maioria modificações obti- I da mesma natureza das quatro figuras da constru ção , que são
das a partir dessa primeira dedu ção . Há , inicialmente , analogias | . apresentadas no fim do texto . Compreende-se , a partir daí , que a
que transferem certas distinções ou certas relações de uma parte formação normal das frases pode ser modificada seja pela silepse ,
do quadro para outra : assim , a oposição substantivo-adjetivo é re- que impõe a uma preposição sua transformação em outra ( tratan-
! í
.
do um plural , por exemplo , como um singular ) ; seja pelo pleonas-
encontrada na diferen ça entre o verbo ser e os outros verbos; ou - r
I mo , que refor ça repetindo; seja pela elipse , que abrevia ; seja pelo
tras analogias , mais estranhas , transferem para a função da pala-
hipérbato, que altera a ordem das palavras. Todos os seres grama-
vra na frase a maneira pela qual ela significa o objeto que ela desig-
ticais produzidos por meio da analogia , do esclarecimento , da re-
na: dessa forma , sendo a característica do adjetivo marcar uma coi- I-
f. du ção ou da inversão são de qualquer maneira “ figuras ” em relação
sa sob o aspecto de seu acidente , chamaremos de adjetivo toda pa- r às categorias essenciais da gramá tica . «
lavra que , em uma frase , se relacionar com uma outra, tal como um
Na análise e na classificação das palavras propostas pelos autores
acidente com uma substância , e funcionar do mesmo modo12 . de Port-Royal, não há , portanto, nenhuma heterogeneidade . Mas po-
demos distinguir três estratos que se sobrepõem e cujo conjunto
* Esse tí tulo n ão aparece na versão de 1967. F constitui o edif ício inteiro da gramática . O primeiro estrato compre-
-
12 . ( N .A . ) Vemos esquematizar se aqui um balizamento do que será chamado mais ende as diferenciações maiores , as de nível 1 e 2. É nele que aparecem
tarde de "fun ções” gramaticais. Mas é caracter ístico que essa análise se faça a partir
de um funcionamento representativo do signo: a relação gramatical adjetivo-subs-
os verbos , substantivos e adjetivos; seu material é suficiente para
-
tantivo repete analogamente , no n ível da frase , a relação atributo substância , tal
como ela pode ser representada por signos.
constituir uma proposição ; nele, lógica e gramática são exatamente
adequadas. O segundo estrato compreende as distinções de nível V2,
1 V2, 2 V2; nele se distinguem os numerais , os artigos , os substantivos

-
k:
138 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1969 - Introdução { in Arnauld e Lancelot ) 139

próprios ou comuns , as preposições; ele permite falar , e o edif


ício de mas remontam a bem mais longe ainda; pouca originalidade na teo-
uma linguagem suficiente poderia muito bem deter-se aí; a correlação ria da proposição , inovações bastante limitadas na análise dos
entre gramática e lógica não está ainda interrompida , mas não se tra- tempos. A Grammaire de Port-Royal não teve certamente esses efei-
ta mais de uma adequação: as categorias de generalidade, singulari- tos de revolução geral, de ampla invenção conceituai , de multiplica-
dade , particularidade , complexidade , simplicidade estão presentes ção das descobertas empíricas que encontraremos, um século e
ao mesmo tempo na Logique e na Grammaire , mas, aqui e ali, de for- meio mais tarde , frente a uma outra revolu ção da ciê ncia da lingua-
mas diferentes. Os dois primeiros estratos formam o estrato dedutí- gem , com as obras de Bopp, de Rask e de Grimm . Para um olhar
vel e absolutamente indispensável da gramática. O terceiro é uma ar- que buscaria apenas a sucessão de idéias , ou ainda a génese das
ticulação a partir dos elementos dos dois primeiros; ele compreende verdades de hoje , não haveria motivo para dar um destino particu-
os gêneros , os pronomes pessoais e relativos , os advérbios e os outros lar a esse texto. Outras gramáticas , não tão distantes no tempo - as
verbos, com exceção do verbo ser. Revela o aprimoramento das de Du Marsais, Buf íier ou Régnier -, outras mais tardias, mas que per-
línguas e não mais mantém relações com a lógica. É o estrato das “ figu- tencem ao mesmo tipo de pensamento - como a de Beauzée - talvez
ras” , que na realidade é constituído somente por elementos fundamen- i tenham tido mais influência em sua época; e é possível que elas re-
tais transformados; através da análise, é sempre possível substituir presentem mais interesse retrospectivo13; a gramá tica de Condillac
por cada uma dessas figuras os elementos invisíveis pelos quais ela é teve incid ê ncias pedagógicas mais extensas e mais profundas.
composta. Assim , podemos decompor uma frase em que aparecem se- No entanto , a obra de Lancelot e Arnauld marca uma transfor -
res do terceiro estrato em uma frase que talvez jamais tenha sido pro- ? mação no saber gramatical. Ela constituiu , para a análise da lin-
nunciada, e que é composta apenas de seres essenciais pertencentes
aos dois primeiros estratos ( por exemplo: “ eu canto" vale como a trans-
guagem , um novo espaço epistemológico , um novo modo de apare-
V
cimento dos objetos gramaticais , um novo estatuto para sua an áli-
formação de “ eu sou cantante” , ou ainda “ Seio malum esse fugi-
endum\ ' como a transformação de “ Seio malum estfugiendum" ) * . se , uma nova maneira de formar os conceitos . Embora as coisas
pudessem aparentemente permanecer em seus lugares , as teses
tradicionais se repetir como no passado e as id éias conservar sua
Após Port-Royal
« *
O que a fez desaparecer não poderia ser a simples descoberta , no fim do século
É preciso não alimentar ilusões: a importância da Grammaire XVIII , das estranhas semelhanças entre o sânscrito e o latim . Foi necessária
g é né rale não é decorrente das descobertas nela encontradas , nem efetivamente toda uma mutação do objeto e de seu estatuto no saber ocidental . A
da novidade dos conceitos que ela põe em ação. Muitas dessas aná- partir do momento em que foi possível interrogar -se sobre as condições do objeto
ém geral , a gramática cl ássica perdeu sua atmosfera de evid ê ncia . Por que , após um
lises estão na exata tradição dos gramáticos da Renascença; algu- distanciamento de mais de um século , ela parece retornar entre nós? Apesar de
algumas semelhan ças , não é a lingiiística , nem , de uma maneira mais ampla , a
* Na versão de 1967 , o artigo termina como segue : "Seja um conjunto de fatos análise dos signos que podem chamar nossa atenção para a gram á tica geral , mas
gramaticais: se é possível recolocá-los no interior das relações que unem a id éia de antes essa mutação atual que introduziu , na teoria da linguagem, as instâncias
signo ao objeto da id éia representada por esse signo , e caso se consiga deduzi-los daquele que fala e do que ele fala , ou seja , a instância do discurso. Novamente a
da í , se ter á constituído, dirigindo-se inteiramente a uma só língua , uma gramática organização da linguagem e a constituição da objetividade se aproximam ; mas sua
geral e racional. Racional , já que se terá revelado a explicação de cada fato; geral , f ordem de dependência é atualmente inversa ao que ela era na é poca clássica: é no
porque se terá destacado o espaço no qual outras gramáticas são igualmente í elemento do discurso que devem, a partir de então , ser analisados a possibilidade
possíveis. Assim se ter á atingido , para além de uma gramática entendida como arte I dos objetos, a presença de um sujeito e todo o desdobramento positivo do mundo . "
de falar’ , uma gramática que enunciar á os ‘fundamentos da arte de falar’. Enfim , se ï 13- ( N.A. ) DU Marsais ( C . ) , Logique et principes de grammaire , Paris , Briasson , Le
ter á atingido um n ível que uma língua não pode atingir por si mesma pelo simples | Breton e Hérissant , 1759 . Régnier - Desmarais ( F. ) , Traité de la grammaire
jogo de seus exemplos ou das regras que deles se deduzem , mas que só é possível I française , Paris , J . B. Coignard , 1705. Buffier ( C. ) , Grammaire française sur un
fazer aparecer passando da língua dos usos àquela das evidências, que pode ser E plan nouveau , Paris , N. Le Clerc , 1709. Beauzée ( N. ) , Grammaire g é né rale , ou
gramaticalmente id êntica. Essa é a figura epistemológica cujo aparecimento é [ exposition raisonnée des é l é ments nécessaires du langage pour servir de
marcado pela Grammaire de Port- Royal em meados do século XVII. f fondement à l’ étude de toutes les langues , Paris, J . Barbou , 1767, 2 vol .
140 Michel Foucault - Ditos e Escritos

for ça adquirida , as condições do saber estavam de fato mudadas. 1969


Foi instalada toda uma rede de relações , que permitiria o ulterior
aparecimento de conceitos , descrições , explicações que caracteri-
zam a gramática geral dos séculos XVII e XVIII . Podemos resumir
as caracter ísticas desse campo epistemológico da seguinte manei- Ariadne Enforcou-se
ra . Seja um conjunto de fatos gramaticais: se for possível recolo-
cá-los no interior das relações que unem a id éia de signo ao objeto
da idéia representada por esse signo , e se delas se conseguisse de-
duzi-los , se ter á constituído , dirigindo-se inteiramente a uma só “ Ariadne enforcou-se" , Le nouvel observateur , n2 229 , 31 de mar ço-6 de abril de
língua , uma gramática geral e racional ; racional, porque se ter á evi- -
1969 , ps. 36 37. (Sobre G . Deleuze , Diff é rence et ré pétition , Paris , PUF, 1969. )
denciado a explicação de cada fato; geral , porque se ter á destacado
o espaço no qual outras gramáticas são igualmente possíveis .
Assim se ter á atingido , para alé m de uma gramática entendida Eu teria que “ contar ” o livro de Deleuze ; eis aproximadamente a
como “ arte de falar ” , uma gramática que enunciar á os “ fundamen- fábula que tentei inventar .
tos da arte de falar ” . Enfim , se ter á atingido um n ível em que uma Cansada de esperar que Teseu retorne do labirinto, cansada de
l íngua não pode atingir por si mesma , através do simples jogo de !
j espreitar por seu passo igual e de reconhecer seu rosto entre todas
seus exemplos ou das regras que deles se deduzem , mas que ape- as sombras que passam , Ariadne acaba se enforcando . No fio amo-
nas pode aparecer passando da língua dos usos àquela das evid ê n- \
cias , que pode ser gramaticalmente id ê ntica . Essa é a figura episte-
I rosamente trançado da identidade , da memória e do reconheci-
i mento , seu corpo , absorto em seus pensamentos , gira sobre si. No
mológica cuja emergê ncia é marcada pela Grammaire de Port-
Royal em meados do século XVII.
! entanto , Teseu , amarra rompida , não retorna . Corredores , t ú neis ,
porões e cavernas , encruzilhadas , abismos , relâmpagos sombrios ,
Para que a Grammaire g é né rale desapareça no in ício do século f trovões lá de baixo: ele avança , tropeça, dança , salta .
XIX , e deixe lugar para uma filologia histórica , foi preciso outra coi- Na sábia geometria do Labirinto habilmente centrado? Não, mas
sa bem diferente da simples observação de descobertas empí ricas , ao longo do dissimétrico , do tortuoso , do irregular , do montanhoso
como a semelhan ça do sâ nscrito com o grego e o latim ; mais preci- e do que vai ao ápice. Ao menos em direção ao final de sua prova ,
samente , o preço epistemológico de seu registro e de sua conceitua- em direção à vitória que lhe promete o retorno? Não mais ; ele vai
lização era muito mais elevado do que aquele de uma melhor aten- alegremente na direção do monstro sem identidade , na direção do
ção aos fatos , de uma informação mais ampla ou de um interesse disparate sem espé cie , na direção daquele que não pertence a ne-
novo pela história. Para que essas noções novas possam dar lugar a nhuma ordem animal , que é homem e fera , que justapõe em si o
análises de um tipo inédito ( e decorreu quase meio século entre a tempo vazio , repetitivo , do juiz infernal e a violência genital , ins-
constatação de uma analogia sânscrito-latim e a formação do dom í- tantânea, do touro. Ele vai na direção dele , não para varrer da terra
nio comparativo indo-europeu ) , foi preciso que fossem questiona- I essa forma insuportável , mas para se perder com ela em sua extrema
dos toda a teoria do signo , a da representação e , finalmente , o esta- I distorção . E é ali, talvez ( não em Naxos ) , que o deus báquico está à
tuto dado ao objeto representado no pensamento . Toda uma trans- I espreita: Dionísio mascarado, Dionísio disfar çado, infinitamente re-
formação cujos processos ultrapassaram , e largamente , os limites I petido. O fio célebre foi rompido, ele que consideravam tão sólido ;
da simples gramática geral. I Ariadne foi abandonada um tempo antes do que se pensava ; e toda a
I história do pensamento ocidental está por ser escrita.
I Mas , eu me dou conta, minha fábula não faz justiça ao livro de
I Deleuze. Ele é bem diferente do enésimo relato do começo e do fim
i da metaf ísica. Ele é o teatro, a cena, a repetição de uma nova filoso-
1

142 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1969 - Ariadne Enforcou -se 143

fia: sobre o palco nu de cada página, Ariadne é estrangulada , Teseu esse vé u é a imagem que o pensamento tinha formado de si pró prio
dança , o Minotauro ruge e o cortejo do deus m últiplo ri às gargalha- e que lhe permitia suportar sua pr ópria inclemência . Acredita-
das. Houve ( Hegel, Sartre ) a filosofia-romance ; houve a filoso- va-se , dizia-se: o pensamento é bom ( como prova: o bom senso , do
fia-meditação ( Descartes, Heidegger ) . Eis , após Zaratustra , o retor - qual ele tem o direito e o dever de fazer uso ) ; o pensamento é um
( como prova , o senso comum ) ; ele dissipa o erro, empilhando
no da filosofia-teatro; não absolutamente reflexão sobre o teatro; grão
não absolutamente teatro prenhe de significações. Mas filosofia tor - a gr ão a colheita das proposições verdadeiras ( finalmente , a bela
nada cena , personagens , signos, repetição de um acontecimento pirâmide do saber . . . ) .
ú nico e que jamais se reproduz. Mas , ei-lo: libertado dessa imagem que o liga à soberania do su-
Gostaria que vocês abrissem o livro de Deleuze como se empur - jeito ( que o “ assujeita” , no sentido estrito da palavra ) , o pensamen -
ram as portas de um teatro , quando se acendem os fogos de uma to aparece , ou melhor , se exerce tal como ele é : mau , paradoxal ,
rampa e a cortina se levanta. Autores citados , inúmeras referências surgindo involuntariamente no limite extremo das faculdades dis-
- eis os personagens. Eles recitam seu texto ( o texto que eles pro- persas ; devendo afastar incessantemente sua estupefaciente tolice ;
nunciaram em outro lugar , em outros livros , em outras cenas , mas submisso , obcecado , for çado pela violência dos problemas ; sulca-
que , aqui , se representa de outra forma ; trata-se da técnica , meti- do , como por tantos lampejos de id é ias distintas ( porque agu ça-
culosa e astuciosa, da “ colagem ” ) . Eles tê m seu papel ( freqúente- das ) e obscuras ( porque profundas ) .
mente , eles valem por tr ês, o cómico , o tr ágico , o dramá tico: Péguy , Retenhamos cada uma dessas transformações que Deleuze ope-
Kierkegaard , Nietzsche; Aristóteles - sim, sim , o cómico -, Platão , ra no velho decoro filosófico: o bom senso em contra-ortodoxia; o
Duns Scot ; Hegel - sim , ainda -, Hôlder lin e Nietzsche - sempre ) . senso comum em tensões e pontos extremos; a conjuração do erro
Eles jamais aparecem no mesmo lugar , jamais com a mesma em fascinação pela tolice ; o claro e distinto em distinto-obscuro .
identidade : às vezes , comicamente distanciados do fundo sombrio Retenhamos sobretudo essa grande subversão dos valores da luz : o
que eles carregam sem o saber , às vezes , dramaticamente pr óxi- pensamento não é mais um olhar aberto sobre formas claras e bem
mos ( eis Platão , sábio , um tanto emproado , que expulsa os grossei- fixadas em sua identidade ; ele é gesto , salto , dan ça , discordâ ncia !
ros simulacros, dissipa as más imagens , afasta a aparência que extrema, obscuridade tensa. É o fim da filosofia ( a da representa-
cintila e invoca o modelo ú nico: essa id éia do Bem que em si mes- ção ). Incipit phiiosophia ( a da diferen ça ) .
ma é boa; mas eis outro Platão , aterrorizado , que não sabe mais , na Chega então o momento de errar . N ão como É dipo , pobre rei
sombra , distinguir de Sócrates o sofista zombeteiro ) . sem cetro , cego interiormente iluminado ; mas vagar na festa som-
Quanto ao drama - no pró prio livro - há , como em É dipo , de Só- bria da anarquia coroada. Pode-se então , a partir daí , pensar a dife-
focles , tr ês momentos . Inicialmente , a insidiosa espera dos signos : rença e a repetição . Ou seja - em vez de representá-las - fazê-las e i

os murm úrios, os or áculos que berram , os adivinhos cegos que fa- jogar com elas. O pensamento no ápice de sua intensidade ser á ele
lam demais . A alta realeza do Sujeito ( eu ú nico , coerente ) e da Re- pr ó prio diferen ça e repetição ; permitir á distinguir o que a repre-
presentação ( id éias claras que percorro com o olhar ) está minada. sentação buscava reunir ; ele atuar á a perpé tua repetição da qual a
Sob a voz monárquica , solene , calculadora dos filósofos ocidentais metaf ísica obstinada buscava a origem . Não mais se perguntar : di-
que queriam fazer reinar a unidade , a analogia, a semelhança, a não- ferença entre o que e o qu ê? Diferen ça delimitando que espécies e
contradição e que queriam reduzir a diferença à negação ( o que é di- repartindo que grande unidade inicial? Não mais se perguntar : re-
ferente de A e não-A, a escola nos ensinou depois) , sob essa voz petição do que, de qual acontecimento ou de que modelo primário?
constantemente sustentada , pode-se ouvir o estilhaçamento da dis- Mas pensar a semelhan ça , a analogia ou a identidade como tantos
paridade . Escutamos as gotas de água pingando no mármore de Leib- meios de velar a diferen ça e a diferen ça das diferen ças ; pensar a re-
niz. Contemplamos a fissura do tempo listrar o sujeito kantiano. petição, sem origem do que quer que seja e sem reaparecimento da
E , subitamente , em plena metade do livro ( ironia de Deleuze que mesma coisa.
apresenta , sob a apar ê ncia de um equilíbrio acadêmico , a divina Pensar antes as intensidades ( e mais cedo ) do que as qualidades
claudicação da diferen ça ) , subitamente a cesura. O véu se rasga ; e as quantidades; antes as profundidades do que os comprimentos

D
144 Michel Foucault - Ditos e Escritos
I

e as larguras ; antes os movimentos de individuação do que as espé-


cies e os gê neros ; e mil pequenos sujeitos larvários , mil pequenos I í 1969
eus dissociados , mil passividades e pululações lá onde , ontem , rei- *!
nava o sujeito soberano. Sempre se recusou , no Ocidente , a pensar
a intensidade . Na maior parte do tempo , ela foi rebatida sobre o
mensur ável e o jogo das igualdades ; o pr óprio Bergson , sobre o
Michel Foucault Explica Seu Último Livro
qualitativo e o contínuo. Deleuze a liberta agora por e em um pen-
samento que será o mais elevado , o mais agudo e o mais intenso .
N ão devemos nos enganar quanto a isso. Pensar a intensidade - “
Michel Foucault explica seu último livro” ( entrevista com J . -J . Brochier ) , Magazi -
suas diferenças livres e suas repetições - não é uma insignificante
' f
ne litt é raire , n228 , abril-maio de 1969 , ps . 23- 25 .
revolu ção em filosofia. É recusar o negativo ( que é uma maneira de
reduzir o diferente a nada , a zero , ao vazio , à nulidade ) ; é , portanto ,
rejeitar de um só golpe as filosofias da identidade e as da contradi-
ção , os metaf ísicos e os dialéticos , Aristóteles com Hegel . É reduzir -Você intitulou seu livro de A arqueologia do saber. Por que ar -
os prestígios do reconhecível ( que permite ao saber reencontrar a queologia?
identidade sob as diversas repetições e fazer jorrar da diferença o - Por duas razões. Inicialmente , empreguei essa palavra de ma-
n ú cleo comum que sem cessar aparece novamente ) ; é rejeitar de neira um pouco cega , para designar uma forma de análise que não
um só golpe as filosofias da evid ê ncia e da consciê ncia , Husserl não seria efetivamente uma história ( no sentido em que se relata , por
menos que Descartes . É recusar , enfim , a grande figura do Mesmo exemplo, a história das invenções ou das idéias ) , e que tampouco ;
que , de Platão a Heidegger , não parou de aprisionar em seu círculo seria uma epistemologia , ou seja , a análise interna da estrutura de
a metaf ísica ocidental. uma ciê ncia. Trata-se de uma coisa diferente , e então eu a chamei de
É tornar -se livre para pensar e amar o que , em nosso universo , “ arqueologia ” ; depois , retrospectivamente , pareceu -me que o acaso
ruge desde Nietzsche ; diferenças insubmissas e repetições sem ori- não tinha me guiado muito mal: afinal , essa palavra “ arqueologia ” ,
gem que sacodem nosso velho vulcão extinto ; que fizeram espou - ao preço de uma aproximação que me ser á perdoada , eu espero ,
car , desde Mallarmé , a literatura ; que fissuraram e multiplicaram pode querer dizer : descrição do arquivo . Por arquivo, entendo o
o espaço da pintura ( divisões de Rothko , sulcos de Noland , repeti- * v. ,
» conjunto de discursos efetivamente pronunciados; e esse conjunto
ções modificadas de Warhol ); que definitivamente quebraram , des- é considerado não somente como um conjunto de acontecimentos
de Webern , a linha sólida da m úsica ; que anunciam todas as ruptu - que teriam ocorrido uma vez por todas e que permaneceriam em
ras históricas de nosso mundo . Possibilidade finalmente oferecida suspenso , nos limbos ou no purgató rio da história, mas também
de pensar as diferenças de hoje , de pensar o hoje como diferença como um conjunto que continua a funcionar , a se transformar atra-
das diferen ças. vés da história, possibilitando o surgimento de outros discursos .
O livro de Deleuze é o teatro maravilhoso onde se apresentam , - Em “ arqueologia ” não há també m uma id éia de escavação ,
sempre novas , essas diferenças que nós somos, essas diferenças de procura do passado?
que fazemos , essas diferenças entre as quais vagamos . De todos os - Sem d úvida. Esse termo "arqueologia ” me embaraça um pou-
livros que foram escritos há muito tempo , o mais singular , o mais co , porque ele recobre dois temas que não são exatamente os meus .
diferente e aquele que melhor repete as diferenças que nos atraves- Inicialmente , o tema da origem ( ark è , em grego , significa começo ) .
sam e nos dispersam. Teatro atual . Ora, eu não procuro estudar o começo no sentido da origem primei-
ra , do fundamento a partir do qual todo o resto seria possível . Não
estou à procura desse primeiro momento solene a partir do qual ,
por exemplo, toda a matemática ocidental foi possível . Não retorno
a Euclides ou a Pitágoras. São sempre começos relativos que pro-

1
1 46 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1969 - Michel Foucault Explica Seu Último Livro 147

curo , antes instaurações ou transformações do que fundamentos , nas descontinuidades , nas falhas. Por exemplo , a ruptura entre a
fundações. E , depois , me incomoda da mesma forma a id é ia de es- física aristotélica e a física galileana, a irrupção absoluta represen-
cavações . O que eu procuro não são as relações que seriam secre- tada pelo nascimento da qu ímica no fim do século XVIII. É deste
tas, escondidas , mais silenciosas ou mais profundas do que a cons- paradoxo que parti: os historiadores isolam apenas as continuida-
ciê ncia dos homens . Tento , ao contr á rio , definir relações que estão des , enquanto os historiadores das id éias liberam as descontinui-
na pr ó pria superf ície dos discursos; tento tornar visível o que só é dades. Mas creio que são dois efeitos simé tricos e opostos de uma
invisível por estar muito na superf ície das coisas . mesma retomada metodológica da história em geral.
- Quer dizer que você se interessa pelo fenô meno , e que você - Quer dizer que quando você critica aqueles que mitificam a
se recusa ã interpretação. história , mostrando que eles se filiam à filosofia tradicional da
- Não pretendo procurar por baixo do discurso o que é o pensa- consciência transcendental , do homem soberano , você os critica em
mento dos homens, mas tento tomar o discurso em sua existê ncia seu próprio terreno , ou seja , o da história. Enquanto os estrutura-
manifesta , como uma prática que obedece a regras. A regras de for - listas , que també m os criticam , o fazem em um outro terreno.
mação , de existê ncia, de coexistência, a sistemas de funcionamento - Creio que os estruturalistas jamais criticaram os historiado-
etc. É essa pr ática , em sua consistê ncia e quase em sua materiali- res , mas um certo historicismo , uma certa reação e desconfian ça
dade , que descrevo. historicista contra a qual seus trabalhos se chocaram. Diante da
- Ou seja , você refuta a psicologia . análise estrutural, um certo n ú mero de pensadores tradicionais fi-
- Totalmente. Deve-se poder fazer uma análise histórica da caram aterrorizados. Não, certamente, porque se analisavam as re-
transformação do discurso sem recorrer ao pensamento dos ho- lações formais entre elementos indiferentes; há muito tempo se fa-
mens , ao seu modo de percepção , a seus hábitos, às influê ncias zia isso e não havia razão para ter medo. Mas eles pressentiam mui-
que eles sofreram etc. to bem que o que estava em questão era o pr ó prio estatuto do sujei-
- Em seu livro , você parte da observação de que a histó ria e as to . Se fosse verdade que a linguagem ou o inconsciente pudessem
ciê ncias do homem se transformaram de modo inverso. Atual - ser analisados em termos de estrutura , o que seria então desse
mente , a história , em vez de procurar os acontecimentos que famoso sujeito falante , desse homem que é suposto pôr em ação a lin-
constituem as rupturas , busca as continuidades , enquanto as guagem , falá-la , transformá-la , fazê-la viver! O que seria desse ho-
ci ê ncias do homem procuram as descontinuidades . mem , que é suposto ter um inconsciente , caso ele pudesse tomar cons-
- De fato , hoje em dia , os historiadores - e penso certamente na ciência desse inconsciente , reassumi-lo e fazer de seu destino uma
escola dos Annales , Marc Bloch , Lucien Febvre , Fernand Braudel - história! Creio que a irritação , ou , em todo caso , a má vontade que
tentam ampliar as periodizações que os historiadores praticam ha- o estruturalismo suscitou entre estes tradicionalistas estava ligada
bitualmente . Braudel , por exemplo , chegou a definir uma noção de ao fato de que estes sentiam posto em questão o estatuto do sujeito .
civilização material que teria uma evolução extremamente lenta: do E eles foram se refugiar em um terreno que lhes parecia, para a
final da Idade Média ao século XVIII , o universo material dos cam- sua causa , infinitamente mais sólido , o terreno da história. E disse-
poneses europeus - as paisagens , as técnicas , os objetos fabrica- ram: admitamos que uma língua tomada fora de sua evolução his-
dos , os hábitos - modificou-se de uma maneira extremamente len- tórica , fora de seu desenvolvimento , seja de fato um conjunto de re-
ta ; poder íamos dizer que ele se desenvolveu em marcha lenta. lações ; admitamos, no máximo , que o inconsciente funcione em
Esses grandes blocos , muito mais maciços do que os acontecimen- um indivíduo como uma estrutura ou um conjunto de estruturas ,
tos que usualmente se recortam , fazem parte atualmente dos obje- que o inconsciente possa ser situado a partir de fatos estruturais ;
tos que a história pode descrever . Assim , vêem-se aparecer gran- há pelo menos uma coisa que a estrutura nunca abocanhar á - a his-
des continuidades que , até então, não tinham sido isoladas. Em tória. Pois há um devir que a análise estrutural jamais poderá dar
contrapartida , os historiadores das idéias e das ciê ncias, que ou- conta , um devir que , por um lado, é constitu ído de uma continuida-
trora falavam sobretudo em termos de progresso contínuo da ra- de , enquanto a estrutura é por definição descontínua , e por outro , é
zao , da ocorr ê ncia progressiva do racionalismo etc . , insistem agora constituído por um sujeito : o pr óprio homem , ou a humanidade ,
148 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1969 - Michel Foucault Explica Seu Último Livro 149
:
;
consci ê ncia e totalização pertencem propriamente ao vocabulá -
ou a consciência , ou a razão , pouco importa . Para eles , há um sujei-
rio dele?
to absoluto da história que faz a história , que assegura sua continui-
dade , que é o autor e a garantia dessa continuidade . Em relação às - Sartre , utilizando essas palavras , apenas retoma um estilo ge -
ral de análise , que podemos encontrar , por exemplo , em Gold -
análises estruturais , elas apenas têm lugar no recorte sincrônico
dessa continuidade da história submetida assim à soberania do mann , Lukács , Dilthey , nos hegelianos do século XIX etc . Essas pa-
homem . lavras não são de forma alguma específicas de Sartre .
Quando se tenta questionar o primado do sujeito no próprio do- - Sartre seria simplesmente um dos pontos de chegada dessa
mínio da história, então novo pânico em todos esses antigos segui- filosofia transcendental que est á come çando a se desfazer .
- É isso .
dores , pois ali estava seu terreno de defesa , a partir do quad eles po-
diam limitar a análise estrutural e impedir o seu “ câncer ” , circuns- - Mas , com exceção dos estruturalistas , que se encontram em
uma posi ção aná loga à sua , há poucos fil ó sofos que tomaram
crevendo assim o poder da inquietude . Se , a propósito da história ,
consci ê ncia do fim dessa filosofia transcendental .
e precisamente a propósito da história do saber , ou da razão , se
- Pelo contrário . Creio que há muitos deles , dentre os quais eu
chega a mostrar que ela não obedece absolutamente ao mesmo mo-
delo que a consciência; se se consegue mostrar que o tempo do sa-
colocaria no primeiro plano Gilles Deleuze .
ber ou do discurso não é absolutamente organizado ou disposto
- Você desencadeou “ movimentos diversos ” quando , em As pa-
\ lavras e as coisas , disse : o homem deve ser jogado para o alto.
como o tempo vivido ; que ele apresenta descontinuidades e trans-
I Ora , em A arqueologia do saber , você diz que não somente as coi -
formações específicas ; se , finalmente , se mostra que não há neces-
sidade de passar pelo sujeito , pelo homem como sujeito , para ana-
t sas , mas mesmo as palavras devem ser jogadas para o alto .
| - Eis o que eu quis dizer . Meu tí tulo As palavras e as coisas era
lisar a história do conhecimento , superam-se grandes dificuldades ,
mas se toca talvez em um problema importante .
I completamente irónico . Ninguém percebeu isso claramente , e sem
- A partir desse fato , você foi levado a refutar a filosofia dos I dúvida não havia muito disfarce no meu texto para que a ironia não
200 últimos anos ou , o que é pior para ela , a deixá - la de lado .
I fosse suficientemente vis ível . Há um problema : como é possível
- Atualmente , de fato , toda essa filosofia que , desde Descartes ,
I que as coisas reais , e percebidas , possam vir a se articular pelas
dava ao sujeito seu primado , esta filosofia está começando a se di- f palavras no interior de um discurso? São as palavras que nos im-
luir diante de nossos olhos . IL põem o recorte em coisas , ou são as coisas que , por alguma opera-
ção do sujeito , vêm se transcrever na superfí cie das palavras? Não
- E voc ê data o iní cio desse desaparecimento a partir de Nie -
tzsche? I foi absolutamente esse velho problema que eu quis tratar em As í
- Parece -me que se poderia fixar este momento a partir de Marx , I palavras e as coisas . Tentei deslocá-lo : analisar os pr óprios dis -
cursos , ou seja , essas práticas discursivas que são intermediárias
de Nietzsche e de Freud .
- Em seu livro , aliás , voc ê denuncia a interpretação antropolo -
entre as palavras e as coisas . Essas práticas discursivas a partir
das quais se pode definir o que são as coisas e situar o uso das pa-
gizante de Marx e a interpretação de Nietzsche em termos de ,í lavras . Tomemos um exemplo muito simples . No século XVII , os
consci ê ncia transcendental como uma recusa de levar em consi -
deração o que eles traziam de novo . | naturalistas multiplicaram as descrições das plantas e animais . !
- Exatamente . | Pode-se fazer a história dessas descrições de duas maneiras . Ou
- Destaquei , em sua introdução , esta passagem na qual você I partindo das coisas e dizendo: sendo os animais o que eles são ,
diz : “ Fazer da aná lise histó rica o discurso do cont í nuo efazer da I sendo as plantas tais como as vemos , como as pessoas dos séculos
consci ê ncia humana o tema originário de qualquer devir e de
I XVII e XVIII os viram e descreveram? O que eles observaram , o que
qualquer prá tica são duas fases de um mesmo sistema de pensa-
! omitiram? O que eles viram e o que não viram? Pode-se fazer a aná -
mento: nele , o tempo é concebido em termos de totalização, e as I Use no sentido inverso , estabelecer o campo semântico dos séculos
revoluções não passam de tomadas de consci ê nciaVocê não
I XVII e XVIII , ver de que palavras e , conseqüentemente , de que con -
ceitos se dispunha então , quais eram as regras de utilização dessas §
critica diretamente Sartre , tanto mais que os termos tomada de
*
150 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1969 - Michel Foucault Explica Seu Último Livro 151

palavras e , a partir daí, ver qual era a grade , o enquadramento do


conjunto das plantas e dos animais . Estas são duas análises tradi-
cionais .
s.
?!
imagens que elas tinham em suas cabeças , seus devaneios , tudo
isso lhes impedia de ter acesso à verdade. Finalmente, a histó
ciências não passava da história da mistura de todos esses
ria das
erros
Tento fazer uma outra coisa e mostrar que havia, em um discurso maciços e numerosos com algumas pepitas de verdade , o problema
como a história natural, regras de formação dos objetos ( que não sendo saber como algu é m um dia tinha descoberto uma pepita.
são as regras de utilização das palavras ) , regras de formação dos ï Tal descrição me embaraçava um pouco por diversas razões. Ini-
conceitos ( que não são leis de sintaxe) , regras de formação das teo- cialmente porque , na vida histórica real dos homens, essas famosas
A•
ciências empíricas , que os historiadores e os
rias ( que não são regras de dedução , nem regras retóricas ) . São es- epistemólogos negli-
sas regras postas em ação por uma pr ática discursiva em um mo- genciam , têm uma importância colossal . Os progressos da medicina
mento dado que explicam que tal coisa seja vista ( ou omitida ) ; que tiveram , sobre a vida humana, a espécie humana , a economia das
ela seja enfocada sob tal aspecto e analisada em tal nível; que tal pa- sociedades, a organização social, consequências certamente tão gran-
lavra seja empregada com tal significação e em um tal tipo de frase. - des como as que tiveram as descobertas da í f sica teórica . Eu lamen-
Conseqüentemente , a análise a partir das coisas e a análise a partir l tava que essas ciê ncias empíricas não fossem estudadas.
das palavras apareciam nesse momento como secundárias em rela- . Por outro lado , pareceu -me interessante estudar essas ciências
ção a uma análise primeira, que seria a análise da prática discursiva . I empíricas na medida em que elas são mais do que ciências teóricas
ligadas a práticas sociais; por exemplo , a medicina ou a economia
Em meu livro não havia análise das palavras e nenhuma análise
das coisas. E um certo n ú mero de pessoas - os rudes , os rasteiros
I política são disciplinas que não tê m talvez , se as compararmos
- disseram : é escandaloso, nesse livro que se chama As palavras e \ com a matemática , um grau de cientificidade muito elevado. Mas
as coisas , não há “ coisas” . E os sutis disseram: nesse livro não [ suas articulações com as práticas sociais são muito numerosas , e
existe análise semântica. Certamente! Eu não queria fazer nem I era isso precisamente o que me interessava. A arqueologia que
uma nem outra. I acabo de escrever é uma espécie de teoria para uma história do sa-
- Se seu procedimento cient í fico parte de uma espécie de tatea- I ber empí rico.
mento , de um empirismo , como , por qual itiner á rio você chegou a - Donde sua escolha, por exemplo , da História da loucura.
esse livro totalmente teórico que é A arqueologia do saber? - Exatamente .
- Isso ocorreu , certamente , a partir de investigações empí ricas - A vantagem de seu método, entre outras coisas , é a dejuncio-
L Tiar TIOS dois sentidos: diacroní camente e sincronicamente . Por
sobre a loucura , sobre a doen ça e os doentes mentais , sobre a me-
dicina nos séculos XVIII e XIX e sobre o conjunto de disciplinas exemplo , para a História da loucura, você retorna no tempo e es-
( história natural, gramá tica geral e troca da moeda ) que foram tra- tuda as modificações , enquanto , no caso da histó ria natural nos
tadas em As palauras e as coisas . Por que essas pesquisas me leva- I séculos XVII e XVIII, em As palavras e as coisas, uocé estuda um
ram a construir toda essa maquinaria teórica de A arqueologia do j estado não exatamente estático , mas um estado mats imó vel
saber , que me parece um livro de leitura muito dif ícil? Eu encon- ï dessa ciê ncia.
trei muitos problemas. Sobretudo este: quando se fazia história I - Não exatamente imóvel. Tentei definir as transformações: mos-
das ciê ncias, se tratavam de forma privilegiada, quase exclusiva , as trar a partir de que sistema regular as descobertas , as invenções ,
belas , as boas ciê ncias bem formais como a matemática ou a física as mudan ças de perspectivas , as subversões teóricas puderam
teórica. Mas quando se abordavam disciplinas como as ciê ncias í ocorrer . Pode-se mostrar , por exemplo, o que , na pr ática discursi-
empíricas , ficava-se muito embaraçado , contentava-se mais fre- i va da história natural, tornou possível o aparecimento da id éia de ?

q üentemente com uma espécie de inventário das descobertas , di- | evolução desde o século XVIII; o que tornou possível a emergê ncia
zia-se , em suma , que essas disciplinas eram apenas misturas de I de uma teoria do organismo que era ignorada pelos primeiros na-
verdades e erros ; nesses conhecimentos tão imprecisos, o pensa- I turalistas. Portanto, quando algumas pessoas , felizmente pouco í

mento das pessoas , seus preconceitos , os postulados dos quais \ numerosas, me acusaram de apenas descrever os estados do saber
e não as transformações , é simplesmente porque elas não leram o
elas partiam , seus hábitos mentais , as influê ncias que sofriam , as
1 52 Michel Foucault - Ditos e Escritos

livro . Se elas o fizessem , bastaria folheá-lo distraidamente , teriam 1969


visto que nele estão em questão apenas as transformações e a or -
dem na qual essas transformações se realizaram .
- Seu método estuda a prática do discurso, e você , em A arqueo-
logia do saber , fundamenta essa prática do discurso no enuncia- Jean Hyppolite . 1907- 1968
do , que você distingue radicalmente dajrase gramatical e da
proposição l ógica. O que você entende por enunciado?
- A frase é uma unidade gramatical de elementos que estão liga-
dos por regras lingü isticas. O que os lógicos chamam de proposi- “
Jean Hyppolite . 1907 - 1968" . Revue de mé taphysique et de morale , 74- ano , n- 2 ,
ção é um conjunto de símbolos regularmente construídos; pode-se abril -junho de 1969 , ps. 131 - 136 . ( Continuação da homenagem a J . Hyppolite pres-
I
dizer sobre uma proposição se ela é verdadeira ou falsa, correta ou tada pela École normale supé rieure em 19 de janeiro de 1969 . )
não . O que chamo de enunciado é um conjunto de signos, que pode
ser uma frase , uma proposição, mas considerada no nível de sua
existê ncia. Aqueles que estavam na classe preparatória para a É cole norma-
- Você não aceita ser estruturalista , mesmo se , de acordo com le supé rieure no pós-guerra se recordam dos cursos do Sr . Hyppo-
a opinião comum, você esteja incluí do entre os estruturalistas . lite sobre a Phé nomé nologie de Vesprit : nessa voz que não parava
Mas seu mé todo tem , com relação ao mé todo estrutural , dois de se retomar como se meditasse no interior de seu pr óprio movi-
pontos comuns : a recusa do discurso antropol ógico e a ausê ncia mento , não percebíamos somente a voz de um professor ; ouvíamos
do sujeito falante . Na medida em que o que está em questão é o alguma coisa da voz de Hegel, e talvez ainda a voz da pró pria filoso-
lugar e o estatuto do homem , ou seja , do sujeito , será que você r
fia . Não penso que se tenha podido esquecer a força dessa presen-
não pendeu automaticamente para o lado do estruturalismo? ça, nem a proximidade que pacientemente ele evocava.
- Penso que atualmente o estruturalismo se inscreve no interior Que a lembrança dessa descoberta me autorize a falar em nome
de uma grande transformação do saber das ciê ncias humanas , que daqueles que a partilharam comigo e dela fizeram certamente um
essa transformação tem por ápice menos a análise das estruturas melhor uso.
do que o questionamento do estatuto antropológico, do estatuto do Historiador da filosofia, não era assim que ele pr óprio se definia .
sujeito , do privilégio do homem . E meu mé todo se inscreve no qua- Mais freqüentemente , mais exatamente , ele falava de uma história
dro dessa transformação da mesma forma que o estruturalismo - do pensamento filosófico. Nessa diferença se alojavam sem d úvida
ao lado dele , não nele . a singularidade e o alcance do seu trabalho.
- Você fala de “ limites leg í timos ” do estruturalismo. Ora se Pensamento filosófico: o Sr . Hyppolite o concebia como aquilo
tem a impressão de que o estruturalismo tende a absorver tudo: que em todo sistema - tão acabado quanto pareça - o ultrapassa , o
os mitos com Lévi -Strauss , depois o inconsciente com Lacan, de- excede e o coloca em uma relação ao mesmo tempo de troca e de
pois a cr í tica literária , todas as ciê ncias humanas serão absorvi - falta com a pr ópria filosofia ; o pensamento filosófico não era , para
das por ele . ele , a intuição primeira de um sistema , sua intimidade não formu-
- Não falei em nome dos estruturalistas. Mas, no que se refere à lada ; era sua incompletude , a dívida que ele jamais chega a pagar , a
sua questão, parece me que se poderia responder o seguinte : o es-
- t lacuna que nenhuma de suas proposições jamais poder á preen -
truturalismo é um método , cujo campo de aplicação não é definido cher ; aquilo que , tão longe quanto prossiga , permanece em falta em
a priori . O que é definido de saída são as regras do método e o nível í relação à filosofia . Por pensamento filosófico ele entendia també m
em que algué m se coloca para aplicá-lo . Mas é muito possível que
i

se possam fazer análises estruturais em domínios que não são ab- I esse momento tão dif ícil de apreender , velado desde seu apareci-
solutamente previstos no momento. Não creio que se possa a priori
f mento , em que o discurso filosófico se decide , se desprende de seu
mutismo e toma distância em relação ao que , desde então, vai apa-
limitar a extensão dessas pesquisas.
154 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1969 - Jean Hyppolite . 1907-1968 155

recer como não-filosofia: o pensamento filosófico é , portanto , me- finitude do homem, dos limites do conhecimento ou das determina
ções da liberdade , ele pediu explicações sobre a finitude que
-
nos a determinação obscura e prévia de um sistema do que a divi- lhe é
própria. Questão filosófica dirigida aos limites da
são súbita e ininterruptamente recomeçada pela qual ele se estabe- filosofia.
lece. Por pensamento filosófico, creio que o Sr. Hyppolite entendia ,
enfim , essa torção e esse desdobramento , essa saída e essa nova
apreensão de si mesmo, pelas quais o discurso filosófico diz o que Conseqúência natural dessa questão mais do que escolha primei-
-
ele é , pronuncia sua justificativa e , distanciando se em relação à ra: fazer a análise histórica das obras - de seu começo e de seu per
-
sua forma imediata, manifesta o que pode fundamentá-lo e fixar pétuo recomeço , de seu fim sempre inconcluso. A história não
seus pró prios limites. éo
lugar privilegiado no qual pode aparecer a finitude filosófica?
Assim concebido , o pensamento filosófico mantém o discurso
do filósofo na instância de uma vibração infinita , e o faz ressoar
\ Mas a história não consistia , para o Sr . Hyppolite , na busca das
para alé m de toda morte; ele garante o excesso da filosofia em rela - IS singularidades ou das determinações que tinham podido marcar o
nascimento de uma obra; ela tampouco consistia em mostrar como
ção a qualquer filosofia: luz que já vigiava antes mesmo de qual - 1 um dado monumento testemunhava para a é poca que o tinha visto
quer discurso, lâmina que ainda brilha mesmo que ele tenha ador- 1 nascer , para os homens que o haviam concebido ou as civilizações
mecido. I que lhe haviam imposto seus valores . Mais precisamente ainda , -
fa
Tomando por tema o pensamento filosófico , o Sr . Hyppolite que- ! lar de uma obra filosófica não era para ele descrever um objeto ,
ria dizer sem dúvida que a filosofia jamais está atualizada nem pre-
sente em nenhum discurso, nem em nenhum texto; que na verdade
cerni-lo , fechá-lo em seus contornos, mas antes abri lo ,
- localizar
suas rupturas, suas defasagens , suas lacunas , estabelecê-lo em sua
a filosofia não existe; que preferencialmente ela escava com sua irrupção e em sua suspensão , desenvolvê-lo nessa falta ou nesse
perpétua ausência todas as filosofias , que ela inscreve nelas a falta \ não-dito pelo qual fala a pr ópria filosofia. Daí, sua posição de histo-
na qual , ininterruptamente, elas podem prosseguir, continuar , de- i riador , não fora, mas no espaço da filosofia da qual ele falava, e o
saparecer , se suceder e permanecer para o historiador em uma sus- apagamento sistemático de sua pr ópria subjetividade.
pensão, na qual é preciso que ele as retome. | O Sr . Hyppolite gostava de citar as palavras de Hegel sobre a mo-
O que é então fazer a análise do pensamento filosófico? O Sr . l déstia do filósofo que perde qualquer singularidade. Todos os que
Hyppolite não queria descrever o movimento dessas id éias - cientí- | ouviram o Sr . Hyppolite se lembram da modéstia austera de sua
ficas , políticas , morais - que pouco a pouco e em ordem dispersa fala; todos os que o leram conhecem bem essa escrita ampla que ja-
adentraram na filosofia , nela se instalaram e adquiriram uma sis- mais rompe a indiscrição de uma primeira pessoa . Mod éstia que
tematicidade nova. Ele queria descrever a maneira pela qual todas não era de modo algum neutralidade nem obstinação contra si mes-
as filosofias retomam em si um imediato que elas já deixaram de mo , mas que lhe permitia fazer ressoar no que ele dizia a amplitude
ser ; a maneira pela qual visam a um absoluto que elas jamais atin- multiplicada de uma voz que não era a sua ; e , nesses textos que pas-
gem; a maneira pela qual fixam os limites que sempre transgridem . I savam continuamente da citação ao comentário e da referência à
Tratava-se de fazer jogar as filosofias nessa sombra e nessa luz , em análise , sem quase serem necessárias as aspas, a filosofia continua-
que sua distância da filosofia se manifesta e se esquiva. va a se escrever . Prosa do pensamento, mais surda, mais insistente
O problema que o Sr . Hyppolite jamais deixou de tratar talvez do que tudo isso que os homens singularmente puderam pensar .
seja o seguinte: qual é então essa limitação pr ópria do discurso filo- Em várias ocasiões , o Sr . Hyppolite retomou esse ponto da filo-
sófico e que o deixa, ou melhor , que o faz aparecer como palavra da I sofia bergsoniana que é a análise da memória . Talvez eu me engane
pr ópria filosofia? Em resumo: o que é a finitudefilosó fica? em supor que ele via ali mais do que uma verdade, um modelo para
Se é verdade que , desde Kant , o discurso filosófico é antes o dis- a história do pensamento; porque , para ele , o presente do pensa-
curso da finitude do que o do absoluto , talvez se pudesse dizer que a mento não estava separado ontologicamente de seu passado , e a
-
obra do Sr . Hyppolite o ponto de sua originalidade e de sua decisão atenção do historiador devia apenas constituir a ponta agu çada ,
- foi a de duplicar a questão: a esse discurso filosófico que falava da
156 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1969 - Jean Hyppolite . 1907- 1968 157

atual e livre de um passado que nada havia perdido do seu ser . E , Hyppolite recusava duas atitudes familiares: uma que considera
da mesma maneira que ocorre com o presente , segundo Bergson , que a filosofia deve refletir sobre os objetos exteriores - seja a ciê n-
reapreender sua sombra por uma espécie de tor ção sobre si mes- cia ou a vida cotidiana , a religião ou o direito, o desejo ou a morte ;
mo , o historiador , para o Sr . Hyppolite - esse historiador que ele outra que considera que a filosofia deve interrogar todas essas in-
pr óprio era -, marca o ponto de inflexão a partir do qual a filosofia genuidades diversas, descobrir as significações aí escondidas , sa-
pode e deve apreender a sombra que a recorta a cada instante , mas cudir a sua positividade muda e lhes pedir explicações sobre o que
que , no entanto , a liga à sua invencível continuidade . pode fund á-las. Para ele , a filosofia não é nem reflexiva , nem funda-
É no interior da filosofia que o Sr . Hyppolite interrogava as dife- dora em relação a isso que não é ela; mas ela deve apreender simul-
rentes filosofias. E ele as interrogava em sua relação sempre esqui- taneamente a interioridade que faz com que ela habite já silenciosa-
va , mas jamais desfeita , com a filosofia . Ele queria apreendê-las mente tudo o que não é ela ( ela já está ali, tanto na atividade do ma -
nesse ponto em que elas começam , e nesse outro ponto em que elas temático , como na inocência da bela alma ) e a exterioridade que faz
desembocam e se delimitam como um sistema coerente . Ele queria com que ela jamais esteja implicada necessariamente por uma
apreender em uma obr à a relação jamais totalmente estabelecida , | ciência ou uma prática. É essa relação de interioridade e de exterio-
jamais tòtalmente dominada entre uma experiê ncia e um rigor , um í ridade , de proximidade e de distância que a filosofia deve retomar
imediato e uma forma , a tensão entre o dia apenas pressentido de I em si mesma.
um começo e a exatid ão de uma arquitetura . A partir daí , podem-se compreender , acredito, certos traços ca -
O Sr . Hyppolite confrontava de boa vontade seu próprio trabalho racter ísticos da obra do Sr . Hyppolite .
com duas das grandes obras que lhe eram contemporâneas e que ele Penso , inicialmente , em sua relação com Hegel. Porque , para ele ,
homenageou , tanto uma quanto outra , em sua aula inaugural no ii ;. Hegel marcava o momento em que o discurso filosófico colocou
Collège de France1. A de Merleau-Ponty, investigação sobre a articu- j para si mesmo e no seu pr óprio interior o problema de seu começo
lação originária entre o sentido e a existência , e a de Gué roult , análi- ! e de seu fim : o momento em que o pensamento filosófico se d á
se axiomática das coer ê ncias e das estruturas filosóficas. Entre es- íi
I como tarefa inesgotável dizer o campo total da não-filosofia , e ten-
sas duas balizas , a obra do Sr . Hyppolite buscou , desde o início , no- I tar chegar , com toda a soberania , a formular seu pr óprio fim. Hegel
mear e fazer aparecer - em um discurso simultaneamente filosófico ! era, para o Sr . Hyppolite , o momento em que a filosofia ocidental
e histórico - o ponto em que o trágico da vida toma sentido em um I retoma a tarefa de dizer o ser em uma lógica , se propõe a descobrir
Logos , em que a génese de um pensamento se torna estrutura de um II as significações da existência em uma fenomenologia, e tenta refle-
tir sobre si mesma como resultado e termo da filosofia. A filosofia
sistema , em que a própria existência se encontra articulada em uma
Lógica . Entre uma fenomenologia da experiência pr é-discursiva - ao I hegeliana marcava dessa maneira o momento em que a filosofia se
modo de Merleau-Ponty - e uma epistemologia dos sistemas filosófi- I tornou , no interior de seu próprio discurso , titular do problema de
cos - como ela aparece em Guéroult - a obra do Sr . Hyppolite pode I seu começo e de seu término: o momento em que , levando a si mes-
ser lida também como uma fenomenologia do rigor filosófico , ou ! ma ao extremo de seus pr óprios limites, ela se tornou a questão do
como uma epistemologia da existência filosoficamente refletida. I imediato e do absoluto - desse imediato que ela não ultrapassou ,
I embora ela o mediatize , e do absoluto que ela não pode efetuar se- 1

I não ao preço de seu próprio desaparecimento. Com Hegel, a filoso-


I fia que , ao menos desde Descartes, mantinha uma relação indelé-
Que relação a filosofia tem com o que não é ela , e sem o que no I vel com a não-filosofia tornou-se não somente consciê ncia dessa re-
entanto ela não poderia ser? Para responder a essa questão , o Sr . I lação, mas discurso efetivo sobre essa relação: atuação conseqüen-
I te do jogo da filosofia com a não-filosofia. Enquanto outros viam no
I pensamento hegeliano o recuo da filosofia sobre si mesma, e o mo-
1 . Hyppolite ( J . ) , “ Leçon inaugurale au Collège de France" ( 19 de dezembro de I mento em que ela passa ao relato de sua própria história , o Sr .
1963 ) , reeditada em Figures de la pens é e philosophique , Paris , PUF , col . “ Épimé -
thée” , 1971 , t . II , ps . 1.003- 1.028 . I Hyppolite aí reconhecia o momento em que ela ultrapassa seus
1 58 Michel Foucault - Ditos e Escritos -
1969 - Jean Hyppolite. 1907 1968 159

pr ó prios limites para tornar -se filosofia da não-filosofia , ou , talvez , improvável ; a propósito de Lapoujade6, a análise do modo pelo
não-filosofia da pr ópria filosofia. qual a pintura pode se pintar na forma nua e originária dos seus
Mas esse tema que obsedou seus estudos sobre Hegel os ultra- elementos .
passava amplamente e levava mais longe seu interesse . A relação Não devemos nos enganar : todos os problemas que são os nos-
entre filosofia e não-filosofia , ele a via efetuada em Marx - ao mes- sos - nós seus alunos de tempos passados e seu alunos de ontem -,
mo tempo realização e derrocada , segundo ele , da filosofia hegelia- todos esses problemas foi ele quem os estabeleceu para nós; foi ele
na , cr í tica de qualquer filosofia , em seu idealismo , atribuição ao quem os escandiu nessa fala que era forte, austera, sem deixar de
mundo do futuro filosófico, e à filosofia de tornar -se mundo. Ele a ser familiar ; foi ele quem os formulou neste texto, Logique et exis-
reconhecia també m , e cada vez mais durante os ú ltimos anos , em tence7 , que é um dos grandes livros de nosso tempo. No pós-
relação à ciê ncia. Reencontrava assim suas preocupações de ju- guerra , ele nos ensinava a pensar as relações entre a violência e o
ventude e a tese que ele havia redigido sobre o método matemático discurso; ontem , nos ensinava a pensar as relações entre a lógica e
e o encaminhamento filosófico de Descartes . Ele se aproximava a existência; ainda há pouco, ele nos propôs pensar as relações en-
també m dos trabalhos de dois homens que ele associava na mes- tre o conteúdo do saber e a necessidade formal . Ele nos ensinou fi-
ma admiração e em uma fidelidade sem divisão , estes que são j nalmente que o pensamento filosófico é uma prática incessante ;
para nós os dois grandes filósofos da racionalidade f ísica e da ra- I que ele é uma certa maneira de colocar em ação a não-filosofia, mas
cionalidade biológica . I permanecendo sempre bem próximo dela , lá onde ela se liga à exis-
Estes se tornaram então os campos de sua reflexão: Fichte , de !I tência. Com ele , é preciso lembrar sem cessar que , “ se a teoria é
cinzenta , é verde a á rvore de ouro da vida” .
um lado , e a possibilidade de manter um discurso filosófico sobre a
ciê ncia que fosse inteiramente rigoroso e demonstrativo2 ; e , de ou-
tro, essa teoria da informação que permite descobrir , na extensão
dos processos naturais e nas trocas do vivente , a estrutura da men-
sagem3. Com Fichte , ele colocava o problema de saber se é possível
manter um discurso científico sobre a ciê ncia , e se , a partir de um
pensamento puramente formal , é possível reunir o conte údo efeti-
vo do saber . E , opostamente , a teoria da informação lhe colocava o
seguinte problema: que estatuto é preciso dar , em ciências tais
como a biologia ou a genética , a esses textos que não foram pronun-
ciados por ningu é m , nem escritos por nenhuma mão?
Em torno dessas questões , muitos temas se organizavam , mui-
tas pesquisas se abriam : a propósito de Freud 4 , a análise do efeito ,
no desejo, da instância formal da denegação; a propósito de Mallar -
m ea5 , a reflexão sobre o jogo , em uma obra , do necessário e do í

2. Hyppolite ( J . ) , “ L'idée fichtéenne de la doctrine de la science et le projet husser-


lien" ( 1959 ) , op. cit . , t. I , ps. 21-31.
3. Information et communication" ( 1967 ) , op. cit . , t . II , ps. 928-971.
4. “ Comentário falado sobre a Verneinung de Freud ” ( intervenção no seminário de
técnica freudiana em 10 de fevereiro de 1954 , sustentado por Jacques Lacan na cl í -
nica da faculdade do hospital Sainte-Anne e dedicado aos escritos técnicos de Freud 6. “ Préface aux ‘Mécanismes de la fascination’ de Lapoujade" ( Paris, Éd . du Seuil ,
no ano de 1953-1954) , op. cit . , t I , ps. 385-396 . 1955 ) , op. cit . , t. II , ps. 831-836.
5. “ Le ‘Coup de dés’ de Stéphane Mallarmé et le message” (1958) , op. cit . , t . II. ps . 7. Hyppolite ( J . ) , Logique et existence. Essai sur la Logique de Hegel , Paris , PUF ,
877-884. col. “ Épim éthée", 1953.

i l
1969 - Linguística e Ciências Sociais 161

em relação a essas ciê ncias humanas , em uma posição de modelo a


1969 seguir e a aplicar e , ao mesmo tempo , as ciê ncias humanas , muito
naturalmente , buscariam se juntar à lingü istica nessa nova forma
de cientificidade que ela teria finalmente atingido. Assim , seria ins-
taurada uma espécie de prova de ciclismo , a lingíiística passando
Lingíií stica e Ciências Sociais para o lado das ciê ncias exatas e todas as ciências humanas tentan-
do atingir com a lingíiística o n ível normativo das ciências exatas. É
! o que ocorreria principalmente com a sociologia, a mitologia como
; análise de mitos , a crítica literária etc.
“ Lingíi ísticae ciências sociais” , Revue tunisienne de sciences sociales , 62 ano , n- Podemos criticar essas teses correntemente admitidas. Pode-se
19 , dezembro de 1969, ps. 248-255; debate com N . Bou Aroudj , naturalista , A .
1 fazer observar que n ão é de hoje , longe disso , que as ci ê ncias so-
.
El-Ayed , lingüista , E Fantar , historiador , S. Garmadi , lingüista , Naccache , econo-
ciais solicitam à ciê ncia da linguagem alguma coisa como uma for -
mista , M. Seklani , demógrafo , H . Skik , lingüista , F. Stambouli , sociólogo, M . Zami-
ti , sociólogo , A. Zghal , sociólogo , ps. 272-287. ( Conferência e debate organizados ma ou um conte údo de conhecimento . Afinal , desde o século
pela seção de linguística do Centro de Estudos e de Pesquisas Económicas e Sociais XVIII , as ciê ncias sociais recorrem à an álise da linguagem , e disso
- CERES - da Universidade da Tunísia , mar ço de 1968 ) . darei somente quatro exemplos. Abramos simplesmente o Dis -
cours préliminaire de l’ Encyclopédie de D’Alembert: ele explica
?:
que , se ele faz um dicionário que tem a forma de análise de uma
O tema que abordarei ser á , de maneira geral , o seguinte: quais língua , é na medida em que ele pretende construir um memorial
sao os problemas que a lingíiística em sua forma moderna pode in- que poder á permitir às gerações futuras conhecer quais foram os
troduzir no pensamento em geral , na filosofia , se vocês querem , e , costumes , os conhecimentos , as técnicas do século XVIII . Dito de
mais precisamente , nas ciências humanas? outra forma, é para dar uma imagem , um esboço, um quadro e
Freqúentemente , encontramos expressa a seguinte tese ( como t um memorial da civilizaçã o e da sociedade do século XVIII que a
em Lévi-Strauss na sua Anthropologie structurale ) : a análise da Encyclopédie foi construída como um dicionário de palavras. Po -
linguagem por Saussure e seus sucessores - ou seja , a lingíiística í
demos també m citar o texto que Schlegel escreveu por volta de
estrutural - conseguiu atingir , durante o século XX , o que podería- | 1807 sobre a lí ngua e a sabedoria dos hindus , no qual analisa si-
mos chamar de um “ limiar de cientificidade” . Esse limiar de cienti- | multaneamente a sociedade , a religião , a filosofia e o pensamento
ficidade se tornou manifesto , por um lado , pelas técnicas de forma- I dos hindus a partir da especificidade de sua língua . É preciso lem-
lização das quais a lingüistica é atualmente capaz , e , por outro , ! brarmos també m como, atualmente , Dumézil , que não é lingü ista ,
pela relação que ela manté m com a teoria das comunicações , com a I mas filólogo , conseguiu reconstituir a estrutura social e religiosa
teoria da informação em geral e , em terceiro lugar , por suas rela- I de certas sociedades indo-européias a partir de análises filol ógi- i
ções recentes com a biologia , a bioqu ímica , a genética etc. , e , enfim , I cas. Conseq ü entemente , não data de hoje essa relação permanen -
pela existê ncia de um domínio técnico de aplicação, do qual as má- Ií te entre as ciências sociais e a ciência das línguas. Não é de hoje
quinas de traduzir são , afinal , apenas um dos exemplos. A lingüis- que data essa defasagem epistemológica entre as ciê ncias da lin -
tica teria então ultrapassado um certo limiar , emergida das ciê n - ! guagem e as outras ciências humanas. Não questiono o fato de que
cias humanas na direção das ciências da natureza , do domínio do í a lingíiística transformacional ou a lingíiística estrutural tenham
conhecimento interpretativo àquele do conhecimento formal . A lin- atingido um alto n ível de cientificidade, mas me parece que, desde
gü istica teria passado, portanto, para o lado da verdadeira ciência , o século XIX, as ciê ncias da linguagem tinham atingido um grau
ou seja , da ciê ncia verdadeira ou ainda da ciência exata . de exatidão e de demonstrabilidade mais elevado do que todas a
Segunda tese que encontramos freqúentemente: a partir do mo- outras ciê ncias sociais ou humanas reunidas. Desde o in ício do
mento em que a lingü istica teria renunciado à sua velha pertinê ncia : século XIX , pessoas como Rask , Schlegel , Grimm estabeleceram
e antiga familiaridade com as ciências humanas , ela se encontraria, um domínio coerente de fatos filológicos: as linhas gerais , os mé-
1969 - Lingüistica e Ciências Sociais 163
1 62 Michel Foucault - Ditos e Escritos

sível da relação nos coloca diante de duas séries de questões -


todos de análise e muitos resultados não foram questionados ao im
portantes :
longo do século XIX . 1 ) Até que ponto as relações do tipo lingüistico podem ser aplica-
E nem a sociologia de Auguste Comte , 40 anos mais tarde , nem a das a outros domínios , e quais são esses outros domínios aos quais
de Durkheim , 80 anos depois , poderiam apresentar aquisições elas podem ser transpostas? É preciso tentar verificar se tal ou tal
como as leis da evolução fonética ou o sistema de parentesco das ! forma de relação pode ser encontrada em outro lugar , se é possível ,
l ínguas indo-européias . Dito de outra forma , o fato de que as ciên- por exemplo , passar da análise do nível fonético à análise dos rela-
cias da linguagem estejam em um nível de cientificidade superior tos , dos mitos , das relações de parentesco . Tudo isso é um imenso
ao das outras ciências humanas é um fenômeno que data de quase campo de desbravamento empírico ao qual todos os pesquisadores
dois séculos . Por isso não creio que se possa dizer muito simples- no domínio das ciências humanas estão convocados .
mente que as ciências da linguagem e as ciências da sociedade se 2) Que conexões existem entre essas relações que se podem des -
aproximam hoje , porque a ciência da linguagem passou primeira- cobrir na linguagem ou nas sociedades em geral , e o que se chama
mente para um regime superior e as ciências sociais querem atin- de “ relações lógicas” ? Que ligação pode existir entre essas relações
gir esse nível . Parece-me que as coisas são um pouco mais compli - e a análise lógica? É possível formalizar inteiramente em termos de
cadas do que isso . I lógica simbólica esse conjunto de relações? Portanto , o problema
O fato novo seria antes que a lingüistica acaba de dar às ciências que surgiu, e que é , por uma face , filosófico e , por outra, puramen-
I
sociais possibilidades epistemológicas diferentes das que ela lhes
oferecia até então . É o funcionamento recí proco da lingüistica e das ! te empírico , é no fundo o da inserção da lógica no próprio cerne do
real. Esse problema é filosófica e epistemologicamente muito im-
ciências sociais que permite analisar a situação atual , bem mais do portante . Antigamente , a racionalização do empírico se fazia sobre -
que o nível de cientificidade intr ínseco da lingüistica . Encontra- tudo através e graças à descoberta de uma certa relação, a relação
:
mo-nos , portanto , diante de um fato constante : a antiga decalagem de causalidade . Pensava-se que se havia racionalizado um domínio
epistemológica entre as ciências da linguagem e as outras ciências empírico quando se tinha podido estabelecer uma relação de cau -
humanas. Mas o particular da situação atual é que essa decalagem
l
[ salidade entre um fenômeno e um outro . Atualmente , graças à lin-
epistemológica assume uma nova forma . É de uma outra maneira güistica , descobriu-se que a racionalização de um campo empírico
que , atualmente , a lingüistica pode servir de modelo para as outras não consiste somente em descobrir e poder delimitar essa relação
r
ciê ncias sociais .
Gostaria agora de enumerar um certo número de problemas que
a lingüistica , em sua forma moderna , coloca para as ciências hu-
^;
;
precisa de causalidade , mas em esclarecer todo um campo de rela-
ções que são provavelmente do tipo das relações lógicas . Ora , estas
últimas não conhecem a relação de causalidade . Também nos en-
manas . A lingüistica estrutural não atua sobre coleções empíricas [ contramos diante de um instrumento formidável de racionalização
de átomos individualizáveis ( raízes , flexões gramaticais , palavras ) , ; do real , o da análise das relações, análise que é provavelmente for -
mas sobre conjuntos sistemáticos de relações entre os elementos . l malizável , e nos damos conta de que essa racionalização tão fecun -
Ora, essas relações têm de notável o seguinte : elas são independen- da do real não passa mais pela atribuição do determinismo e da cau-
tes em si mesmas - ou seja , em sua forma - dos elementos sobre os
j .

quais elas incidem; desse ponto de vista, elas são generalizáveis ,


J salidade . Creio que esse problema da presença de uma lógica que
I não é a lógica da determinação causal está atualmente no âmago
sem metáfora alguma , e eventualmente podem ser transpostas dos debates filosóficos e teóricos . A retomada , a reativação , a trans -
para qualquer outra coisa além dos elementos que seriam de natu-
|
reza lingüistica . it formação dos temas marxistas no pensamento contemporâneo gi-
ram em torno disto : assim , o retorno a Marx ou as pesquisas sobre
Seria possível encontrar , portanto , a mesma forma de relação I
I Marx do tipo althusseriano mostram que a análise marxista não
não somente entre os fonemas , mas entre os elementos de uma f está ligada a uma atribuição de causalidade ; elas tentam libertar o
narrativa , ou ainda entre indivíduos que coexistem em uma mes- I marxismo de uma espécie de positivismo no qual alguns queriam
ma sociedade . J á que a forma de relação não é determinada pela
natureza do elemento sobre o qual ela age , essa generalização pos- f encerrá-lo e , conseqüentemente , desatrelá-lo de uma causalidade
1 64 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1969 - Lingu ística e Ciências Sociais 165

entra em consonância com as análises relativas aos có


primária, para nele reencontrar alguma coisa como uma lógica do digos e às
real . Mas também é preciso que essa lógica não seja a dialética no
mensagens trocadas entre as moléculas que constituem os núcleos
das células vivas. Os biólogos sabem hoje , aproximadamente
sentido hegeliano do termo . Tentou-se libertar Marx de um positi- , que
código e que forma de mensagem implicam os fenô
vismo elementar no qual o haviam fechado , por um retorno aos tex- menos da here-
ditariedade, inscritos no núcleo das células genéticas. Vocês perce
tos , aos conceitos de alienação , ao per íodo hegeliano , em suma , por
bem também que , ao mesmo tempo, a lingúística se vê -
toda uma aproximação com a Fenomenologia do espí rito . Ora, a dia- ligada às
ciências sociais de um modo novo , na medida
lética hegeliana nada tem a ver com todas essas relações lógicas que em que o social pode
ser agora definido ou descrito como um conjunto de có
se começa a descobrir empiricamente nas ciê ncias de que falamos . informações que caracterizam um grupo dado de emissores e
digos e de
O que se tenta reencontrar em Marx é alguma coisa que não seja de
receptores. Fenômenos como a moda, a tradição, a influê
nem a atribuição determinista da causalidade , nem a lógica do tipo imitação que , desde Tarde , apareciam como fenô
ncia, a
hegeliano , mas uma análise lógica do real . menos a serem
analisados em termos exclusivamente psicossociológicos , podem
Chegamos agora ao problema da comunicação. A filologia do sé-
\ ser lidos no presente a partir do modelo lingúístico. Dentro dessa
culo XIX trabalhava sobre determinadas línguas ; a lingúística , a i mesma ordem de id éias, é necessário falar do problema da análise
partir de Saussure , trabalha sobre a lí ngua em geral , como os gra-
má ticos dos séculos XVII e XVIII . Mas a diferen ça que existe entre a
| histórica . Há o hábito de dizer que a lingúística se afastou da filolo-
gia adotando o ponto de vista da sincronia , e abandonando o velho
lingúística estrutural e a velha análise cartesiana da língua e da r

ponto de vista diacr ônico. A lingúística estudaria o presente e


Grammaire g é né rale é que a lingúística saussuriana não conside- a si-
multaneidade de uma língua, enquanto a filologia estudaria os fe-
ra a língua como uma tradu ção do pensamento e da representação ; nômenos lineares da evolu ção de um estágio para outro .
ela a considera como uma forma de comunicação . Assim conside-
De fato , é verdade que o ponto de vista da lingúística estrutural é
rados, a lí ngua e seu funcionamento supõem :
- pólos emissores, de um lado, e receptores , de outro ; -
sincr ô nico , mas o ponto de vista sincr ô nico não é a histórico e ,
com mais forte razão, não é um ponto de vista anti-histórico . Esco-
- mensagens , ou seja , séries de acontecimentos distintos ; lher a sincronia não é escolher o presente contra o passado e o imó-
- códigos ou regras de constru ção dessas mensagens que permi-
vel contra o evolutivo. O ponto de vista sincr ônico , ligado à lingúís-
tem individualizá-las .
tica estrutural , não nega a histó ria por um certo n ú mero de razões :
De repente , a análise da linguagem , em vez de ser relacionada a
1-) O sucessivo não passa de uma dimensão da história: afinal , a
uma teoria da representação ou a uma análise psicológica da men-
simultaneidade de dois acontecimentos é menos um fato histórico
talidade dos sujeitos , encontra-se atualmente colocada em pé de
do que sua sucessão. É preciso não identificar a história ao suces-
igualdade com todas as outras análises que podem estudar os sivo , como se faz ingenuamente. É preciso admitir que a história é
emissores e os receptores , a codificação e a decodificação, a estru-
tanto o simultâneo quanto o sucessivo.
tura dos códigos e o desdobramento da mensagem . A teoria da lín- 2-) A análise sincr ônica feita pelos lingúistas não é absolutamen -
gua encontra-se , portanto , ligada à análise de todos os fenômenos te a análise do imóvel e do está tico, mas é , na realidade , a das con-
da informação. Isso é importante de início devido à possibilidade dições de mudança. De fato, a questão colocada é a seguinte: quais
I
de formalizar e de matematizar bem amplamente as análises lin-
são as transformações que toda língua deveria sofrer para que um
gúísticas , a partir do fato de vermos aparecer uma nova definição só dos elementos seja modificado? Quais são as correlações neces-
do que se poderia chamar de coletivo . O coletivo nessa nova pers-
sárias e suficientes do conjunto da língua para que apenas uma
pectiva não ser á mais a universalidade do pensamento , ou seja ,
modificação seja obtida? Dito de outra forma , o ponto de vista sin -
uma espécie de grande sujeito que seria um tipo de consciê ncia so- ; crónico não é um corte estático que negaria a evolução; é, pelo con-
cial ou uma personalidade de base, ou um “ espírito da época” . Atual-
j trário , a análise das condições nas quais uma evolução pode se
mente, o coletivo é um conjunto constitu ído pelos pólos de comuni- | dar . Enquanto a antiga análise sucessiva colocava a questão: dada
cação , por códigos que são efetivamente utilizados e pela freqúê n- l uma mudança , o que pode causá-la?, a análise sincr ônica coloca a
cia e estrutura das mensagens enviadas . De repente , a lingúística
166 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1969 - Lingüistica e Ciências Sociais 167

questão: para que uma mudança possa ser obtida , quais são as ou- tórico-religiosos etc. Podem-se fazer atualmente todas essas análi-
tras mudanças que devem estar igualmente presentes no campo da ses levando em conta o que foi obtido na pr ópria descrição da lin-
contemporaneidade? Trata-se , portanto, de uma maneira diferente guagem. O postulado que não é admitido definitivamente , mas que
de analisar a mudança, e não absolutamente de uma maneira de permanece sempre a ser revisado, é o seguinte: já que as obras lite-
negar essa mudança em proveito da imobilidade. rárias, os mitos, as narrativas populares etc. são feitos com a lin-
Se , a partir de tal análise , a atribuição da causalidade não está guagem, já que é certamente a língua que serve de material para
mais presente como tema orientador da análise, é possível ao me- tudo isso , não se poderiam reencontrar , em todas essas obras , es-
nos apontar que somente a análise sincrônica permite localizar al- truturas que sejam similares , análogas ou , em todo caso, que se-
guma coisa que seria como uma atribuição causal. Para que a pes- jam descritíveis a partir das estruturas que se podem encontrar no
quisa da causalidade não se perca em uma nebulosidade mais ou
próprio material , ou seja , na linguagem ?
menos mágica, é necessário definir de início quais são as condições Resumindo , eu diria que a lingü istica se articula atualmente com
que permitirão a mudança. as ciências humanas e sociais por uma estrutura epistemológica
Essa análise das condições necessárias e suficientes para que que lhe é própria, mas que lhe permite fazer aparecer o car áter das
uma mudança local ocorra é igualmente necessária e quase indis- !
relações lógicas no pró prio cerne do real , fazer aparecer o car áter
pensável para que se possa transformar essa análise em uma inter - senão universal, ao menos extraordinariamente extenso dos fenô-
venção pr ática e efetiva , pois o problema colocado é o de saber o menos de comunicação que vão da microbiologia à sociologia , fazer
que será preciso mudar , se quero mudar alguma coisa no campo I aparecer as condições de mudança graças às quais se podem anali-
total das relações. Longe de ser anti-histórica , a análise sincr ônica
sar os fenômenos históricos, enfim , realizar ao menos a análise do
que se poderia chamar de produções discursivas.
nos parece muito mais profundamente histórica , já que ela integra
o presente e o passado, permite definir o domínio preciso em que
poder á se repetir uma relação causal , possibilitando passar final-
mente à pr ática. Discussão
Tudo isso está ligado , creio, à renovação das disciplinas históri- S. Garmadi : M . Foucault enfatizou o fato de que a sincronia não
cas. Tem-se o hábito de dizer que as disciplinas históricas estão se opõe absolutamente à diacronia . Eu mesmo tentei mostrar , em
atualmente atrasadas e que elas não atingiram o nível epistemológi-
-
co de disciplinas tais como a lingüistica. Ora , parece me que , em
minha exposição , como os mé todos de análise estrutural sincr ôni-
ca se beneficiaram dos estudos lingü isticos do tipo diacr ônico . A
todas as disciplinas que estudam a mudança , produziu-se recente- explicação diacr ônica dos fatos lingüisticos deixou realmente de
mente uma renovação importante: foram introduzidas as noções ser o estudo de elementos isolados transformando-se em outros
de descontínuo e de transformação. Noções como a da análise das elementos isolados , para se tornar o estudo dos conjuntos em cor -
-
condições correlativas à mudança são bem conhecidas pelos histo relação sincrônica e de sua transformação em outros conjuntos em
riadores e economistas. O problema que se coloca ent ã o para os es-
o exemplo da lin- correlaçã o sincr ônica , e isso em cada ponto dessa transformação .
pecialistas das ciências humanas é o de utilizar
Mas eu gostaria de colocar uma questão para M. Foucault relati-
gü istica, da história e da economia para introduzir , no interior das
ça e va à definição de sincronia. Ele diz que a sincronia é a explicação
ciências humanas e sociais , a análise enfim rigorosa da mudan
é necess ário nã o se afastar das condições de mudança. Dito de outra forma, para haver uma
da transformação. De qualquer forma ,
mudan ça , para que um elemento mude , o que é necessário que eu
das análises lingüisticas como se fossem análises incompatíveis tenha como relações sincr ônicas em um estado dado da língua?
com uma perspectiva histórica. Ora, para os lingüistas , uma descrição sincr ônica de um estado
A lingüistica permitiu , enfim , analisar não somente a linguagem
,

estudar o que se pode fazer de uma determinada língua não é tanto a descrição das condições
mas os discursos, isto é , ela permitiu de possibilidade de mudança, mas a descrição das condições de
com a linguagem. Tal como a análise das obras literárias, dos mi- funcionamento de um estado da língua em um determinado mo-
tos, das narrativas populares , dos contos de fadas , dos textos his-
168 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1969 - Lingüistica e Ciências Sociais 169
I
mento de seu desenvolvimento . É então bem mais o estudo diacr ô- 1 ) A noção de neutralização . No francês parisiense se distingue
nico que , em lingúística , se ocupa de definir as condições de mu- dois e: o é fechado ( no artigo “ Zes ” ) e o è aberto ( em " lait” ) ; diremos
dança , buscando saber como , a partir de um elemento que muda , que é e è se opõem .
toda a estrutura da língua muda , e tentando estabelecer as reper - Mas a análise da língua nos mostra que essa oposição apenas se
cussões que a mudança de um elemento acarreta sobre todos os realiza em uma ú nica posição: na sílaba final .
outros elementos da estrutura lingúística , tanto aqueles que são Em todas as outras posições, o locutor não tem escolha entre é e
compar áveis com ele quanto os que não o são. è. Ele deve obrigatoriamente utilizar um ou outro ( é em uma sílaba
M. Foucault : Você quer dizer o seguinte: o que os lingúistas anali- aberta terminada por uma vogal: été ; è em uma sílaba fechada ter -
sam é o fato de que , produzida uma mudança , ela provoca na língua minada por uma consoante: cette ) .
um certo número de outras transformações. Ora, não creio que seja Diremos que a oposição é-è se neutraliza no francês dos parisi-
exatamente isso o que os lingú istas fazem. Eles dizem: seja um esta- enses , exceto na sílaba final.
do A da língua , estado caracterizado por um certo n ú mero de traços. Temos o direito de pensar que uma oposição que tende a se neu -
Seja atualmente um estado B, no qual se constata que houve tal mu - tralizar na maior parte das posições é muito frágil, e , portanto ,
dança e que , em particular , o elemento a' foi transformado em a ” . ameaçada de desaparecer em um tempo maior ou menor .
Neste momento , os lingú istas constatam que essa mudan ça é sem- 2 ) A noção de rendimento funcional . Mas , para avaliar de uma
pre correlativa de outras mudanças ( b’ em b ” , c’ em c ” etc . ) . maneira mais precisa a solidez de uma oposição tão frágil e suas
A análise estrutural não consiste então em dizer: a mudança de possibilidades de manutenção, a lingúística recorre a outra noção
a ’ em a ” provocou a sé rie de mudanças , b’ em b ” , c' em c ” , e sim : muito importante , cuja utilização infelizmente não é ainda muito
não se pode encontrar a mudan ça de a’ em a ” , sem que haja igual- usual , pois não se chegou a torná-la realmente operatória : a noção
mente a mudan ça de b ’ em b ” , de c ’ em c” etc . de rendimento funcional de uma oposição.
H . Skik : Queria dizer logo de in ício que a lingúística estrutural Ela consiste em analisar o rendimento de uma oposição na lín -
não exclui absolutamente a diacronia . Na Fran ça , o primeiro gran- gua , ou seja , o n ú mero de vezes em que se tem necessidade dessa
de trabalho de lingúística estrutural e de fonologia continua sendo oposição para distinguir palavras e se fazer compreender .
uma obra de diacronia e não de sincronia : trata-se do trabalho do Por exemplo , se tomarmos em francês a oposição “ an-orz ” , não
mestre atual da fonologia francesa , Andr é Martinet , que se intitula há nenhum problema em acumular palavras que apenas se distin-
É conomie des changements phoné tiques , e que retoma toda a his- guem por um desses dois sons ( bon e banc , blond e blanc , son e
tó ria das mudanças foné ticas que tinham sido estudadas no século sang .. . ) .
XIX sob o ângulo da filologia e da gramática histórica. Pelo contr ário , dificilmente poder íamos encontrar mais de três
Portanto , desse ponto de vista , a lingúística está no mesmo n ível ou quatro pares que somente se distinguem pela oposição "í n- un ”
da história. (brin-brun, Ain-im ... )
Respondendo ao Sr . Garmadi , eu diria que a descriçã o sin - Diremos que o rendimento funcional da oposição “ an-on ’’ é mui-
cr ô nica da lí ngua falada em um momento dado permite n ão s ó to forte , enquanto o da oposição í n- un ” é muito fraco.
M

definir as condições das mudan ças foné ticas , como tamb é m ob - Baseando-nos em tais constatações ( essencialmente, mas não ex-
servar as mudan ç as que estã o em vias - ou são suscetíveis - de clusivamente , pois as coisas na realidade são mais complexas ) , po-
se produzir . deremos dizer que essa oposição é muito fr ágil e que corre o risco de
Isso pode parecer paradoxal , já que , em princípio , quem diz aná- ser eliminada, em função de sua pequena utilidade ( efetivamente
lise das mudan ças diz ao mesmo tempo análise de um ponto de constata-se que, na França, a maioria das pessoas não faz essa dis-
partida e de um ponto de chegada , o que não parece ser o caracte- tinção “ in- un ” e diz: “ inélè ve ” e não mais “ unélè ve ” ) .
r ístico da sincronia . Esses exemplos tinham por finalidade demonstrar o seguinte :
Para compreender isso, é necessário recorrer a duas noções mui- que mesmo a descrição sincr ônica , definindo a estrutura da língua
to importantes em lingúística estrutural : em questão, mostrando , se quiserem , os pontos fracos, pode ser
170 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1969 - Lingüistica e Ciências Sociais 171

uma descrição dinâ mica e aberta à história passada e futura dessa partir de tr ês momentos de sua história passada , a
saber : a Renas-
língua . cença , o per íodo clássico e o per íodo moderno , abstendo-se , ao me-
F. Stambouli : Estou um pouco embaraçado de tomar a palavra nos até o momento , de se pronunciar claramente sobre o período
em uma reunião de lingüistas, mas é preciso participar da discus- contempor âneo. Essa dificuldade que o estruturalismo experimen-
são ; como o tema de nosso encontro é “ Lingü istica e ciê ncias so- ta em dar conta do presente constitui , de nosso ponto de vista , seus
ciais ” , vou tentar fazer algumas observações como sociólogo . limites em sociologia.
Fiquei extremamente interessado pelas observações do profes- I Concluindo , o estruturalismo como mé todo de conhecimento ci-
sor Foucault , sobretudo aquelas sobre aposição do estruturalismo í entífico permanece limitado em suas aplicações e parcial em seu
do ponto de vista da história. O estruturalismo - isso acaba de ser \ tratamento do homem como ser social. História , indivíduo e liber-
-
dito aqui , dessa vez de maneira sistemática e com vigor longe de j dade , noções de duração , de ruptura , de mudan ça , novas versões
\ do homem e novas configurações das formações socioeconômicas,
se opor à mudança - ou seja , à história - é apenas uma modalidade
de análise da mudan ça , uma modalidade de análise que a “ precipi- | tantas questões que permanecem colocadas para o estruturalismo
ta ” de alguma forma e permite dar conta dela . I e às quais ele parece não ter dado ainda respostas satisfatórias .
Dito isso , a questão que me coloco é relativa ao grau de utilidade I M . Seklani : Estou contente de ouvir lingíiistas afirmarem ainda
operatória do conceito de estrutura, desta vez não mais em lingü is- uma vez que a lingü istica , seja quais forem seu campo de investiga -
tica , mas em sociologia . Enquanto o enfoque estrutural se revela al- ção e seus métodos , não é filologia , nem tampouco análise liter ária .
tamente positivo em lingüistica e em etnologia, pois o objeto dessas Não é suficiente possuir línguas para se crer lingüista . Por suas
duas ciê ncias é relativamente autónomo no que se refere ao sujeito preocupações , seus problemas , seus métodos e seu conteúdo ela é
e do ponto de vista da pr ática consciente dos indivíduos e dos gru- uma ciê ncia social por excelê ncia , pelo menos no estágio em que se
pos , já em sociologia , ciê ncia da sociedade atual e de seu futuro , o encontra atualmente, o que contribui, pelo menos eu o espero , para
enfoque estrutural não vai por si e se choca com numerosas dificul- suspender certos equívocos. Gostaria , no entanto , de contribuir
dades . para esse debate com alguns esclarecimentos sobre as relações en-
Se é verdade que o enfoque estrutural se refere à dimensão in- tre a lingü istica e certas ciê ncias sociais , como a sociologia e a de-
consciente dos fen ômenos para delinear a lógica que lhes é subja- mografia.
cente , e se é verdade que ele també m pode privilegiar esse nível Por ocasião desses debates para os quais fomos convidados e
com sucesso na lingü istica e na etnologia , ele não pode fazê-lo tão que esperamos se repetir ão tão freq üentemente quanto possível no
facilmente em sociologia , assim como em história. Efetivamente, se futuro , poderemos falar de dois grandes temas: poderemos nos ? m
os fatos sociais são suscetíveis de um tratamento científico , eles perguntar se a lingü istica atingiu um grau de cientificidade supe-
não podem sê-lo totalmente , por permanecerem maculados, por rior ao das outras ciências sociais , ao ponto de ela poder lhes pro-
um lado , pela indeterminação que a problemática estruturalista por a sua metodologia e seus conceitos , já que atualmente é a lin -
não parece ter ainda reduzido. güistica que expõe seus próprios métodos através do estr úturalis-
Tudo se passa como se o estruturalismo experimentasse dificul- mo. A lingüistica e as ciê ncias sociais podem se enriquecer mutua-
dades desde que ele opere sobre o presente. Pelo contrário, desde mente do ponto de vista de seus respectivos mé todos?
que opere sobre o que foi disposto e , portanto , relativamente dis- Contudo , a história do pensamento científico mostra que , quan-
junto dos indivíduos e dos coletivos que vivem os fatos sociais , his- do uma disciplina se engajava , mesmo parcialmente , na via científi -
tóricos ou outros, a análise estrutural é conclusiva. Vemos isso em ca, ela conseguia, cedo ou tarde, engajar -se nela inteiramente.
Lévi-Strauss na etnologia , na qual dessa vez se opera com sucesso Os modelos lingüisticos que tentam precisar as formas de mu -
sobre as sociedades que qualificamos de “ frias” e que desaparece- danças de signos ou de comunicações possíveis entre os indivíduos
\ ( a linguagem ) , entre elementos de máquinas ( sistemas analógicos ,
ram ; opera-se sobre o que resta delas , principalmente sobre os mi-
tos. Vemos isso também na “ arqueologia do saber ” de Foucault traduções automá ticas ) ou entre outras entidades recorrem à teo-
que , para analisar e dar conta do pensamento ocidental , o faz a ria da informação e são dominados pelo emprego de noções toma-

ï
í

172 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1969 - Lingüistica e Ciências Sociais 173

das emprestado da termodinâmica , ou seja , as noções de medidas gramática , diante da astronomia , ou , ainda , a da demografia , dian
quantitativas ( entropia . . . ) introduzidas engajam cada vez mais esta te da aritmética ou da medicina? Mas creio igualmente que as ciên-
disciplina na via científica , e dessa forma aumentam seu grau de cias que podem trocar conceitos e métodos - falo de métodos , e nao
cientificidade . de informações - , dentre as ciências sociais , são aquelas que se
A lingüistica estatística , na qual se chegou a leis semelhantes às apresentam como ciências das leis . Ora , nem todas as ciências so-
encontradas em biologia ou em ecologia ( lei de Zipf ) , revelaria tal- ciais se definem como tais .
vez essa identidade das estruturas internas das formas , que advém O que a lingüistica estrutural proporia , a partir do que acaba de
provavelmente da natureza das coisas , cuja classificação já indica a nos ser dito muito sucintamente , é que haveria uma convergência
existência possível de “ funções” próprias do que se comunica por entre as análises lingüisticas e as sociol ógicas . Da mesma forma
signos e por sí mbolos . A biologia e a psicologia têm , desse ponto de que seria possível opor , por exemplo , língua à fala em lingüistica ,
vista , um terreno de convergência com a lingüistica . seria possível opor coletivo a indiví duo ou a algumas de suas res -
Não há dúvida de que a lingüistica geral e , preferencialmente , a pectivas caracter ísticas em sociologia . É possível que os conceitos
lingüistica transformacional , como se acaba de nô-la expor , bus- : de uma possam servir de instrumentos de análise para as outras ,
cam estabelecer leis e utilizam o método dedutivo e experimental provavelmente depois de uma certa adaptação ,

na base de todos os seus procedimentos . Mas não parece que elas f Citarei como exemplo desses conceitos comuns à lingüistica e à
tenham conseguido submeter todas as suas investigações a esses I demografia , sem saber qual das duas disciplinas os emprestou à
métodos científicos tomados emprestado das ciências exatas , em- I outra : a sincronia e a diacronia . A demografia os utiliza freqúente -
bora os aspectos matemáticos da lingüistica se desenvolvam atual- I mente em suas análises e os denomina “ observações transversais e
mente em uma velocidade vertiginosa . Ser á que o patamar de cien- I longitudinais ” . As gerações podem ser estudadas através de acon -
tificidade superior ao qual a lingü istica conseguiu atingir proviria ! tecimentos dos quais elas são a sede ao longo de um per íodo ( dia-
talvez dessa orientação? I cronicamente ) , ou em um momento preciso de sua vida ( sincroni -
Eu responderia afirmativamente à segunda questão , por duas ra- | camente ) . . . Essas comparações serão sem dúvida mais frutíferas
zões . Inicialmente , porque as ciências sociais conseguiram atingir I caso se pudesse fazê-las avançar . Será que o conceito de análise
atualmente níveis diferentes de seu desenvolvimento ; as melhores , I das estruturas das populações , essencial em demografia , encontra -
obtidas pelas circunstâncias ou pelo acaso , podem provavelmente I ria um dia um campo de aplicação em sociologia e em lingüistica?
fornecer às outras uma gama de instrumentos mais ou menos varia- I De maneira geral , a demografia estatística regulamentou um
dos , capazes de ajudá-las a se desenvolverem e a melhor dominarem I conjunto de métodos capazes de serem utilizados vantajosamente
seus dados de base . A seguir , creio que a maior parte das ciências I pela maioria das outras ciências sociais , tais como a economia , a
sociais procede da mesma d é marche científica . Na atual etapa de F sociologia , a geografia e , talvez mesmo , a lingüistica . Que se me
seu desenvolvimento , que alguns qualificam de pré-histórica em I permita tomar emprestado este ponto de vista a Lévi-Strauss :
comparação com as ciências da natureza , elas se esforçam para ex- I “
Do ponto de vista da absoluta generalidade e da imanência a to -
plicar e interpretar os fenômenos sociais , de resto tão complexos , í dos os outros aspectos da vida social , o objeto da demografia , que é
sem estabelecer necessariamente relações causais. Nessa etapa , elas I o número , se situa no mesmo nível da língua. Talvez pela mesma ra-
têm necessidade de se afirmar e de reivindicar para si o estatuto ci- I
I
zão, atiemografia e a lingüistica são as duas ciências do homem que
conseguiram ir mais longe no sentido do rigor e da universalidade . ”
entífico que , infelizmente , nem sempre está assegurado.
Elas estão , portanto , à procura de instrumentos de análise , ou K Mas o que deturpa todos esses ares científicos de todas as ciên-
seja , de metodologias adequadas para fazê-las emergir , já que a I cias sociais , ou pelo menos as perturba , é que todas elas procedem
maior parte de suas explicações depende da metodologia adotada , S de um conteúdo ambíguo imanente ao homem : sua natureza e seu
pois não devemos esquecer que elas dificilmente acabam , na maio- I comportamento .
ria das vezes , nascendo de disciplinas literárias , filosóficas e histó- I E neste sentido que concordo um pouco com o que o Sr . Stam-
ricas . Qual é , de fato , a idade da sociologia , filha da filologia ou da I bouli diz , quando ele fala da sociologia . É que , justamente ali , se
174 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1969 - Lingü istica e Ciências Sociais 175

consegue , com mais ou menos sucesso , analisar o que decorre da pansemiótica , prevendo mesmo a possibilidade de uma comunica -
natureza do homem , pelo menos no que ela tem de constante , mas , ção extraterrestre .
quando se chega à análise de seu comportamento , os métodos e os As comunicações humana e animal constituem igualmente ma -
conceitos de todas essas ciências sociais permanecem incertos , e nifestações de um verdadeiro c ódigo da vida . Eis por que a lin -
às vezes inaplicáveis . Não penso que o estruturalismo , colocado à güistica moderna , com suas diferentes ramificações , em particu-
prova , conseguisse , melhor do que os outros , vencer o desafio . lar com suas interferê ncias com a semió tica e a genética , parece
Fantar : O professor Foucault enfatizou a diferença entre as rela- ter se tornado a ciê ncia por definição , produzindo tentáculos que
ções encontradas pelos lingüistas na linguagem e as relações que interessam a todas as outras disciplinas chamadas ciências do
os cientistas buscam encontrar nas outras disciplinas . Insistiu par - homem .
ticularmente sobre a negação da noção de causalidade nas pesqui- A . Zghal : Gostaria de expor uma ou duas possibilidades de cola-
sas lingüisticas estruturais . Ele nos disse , por exemplo , que temos boração entre sociólogos e lingüistas .
um estado lingüistico que se compõe de diferentes elementos : a , b , Estudando as cooperativas agr í colas , dei -me conta da existên -
c . Quando uma mudança afeta a , que se torna a \ automaticamente I cia , nos camponeses , de uma língua muito particular que não exis -
b se torna b ’ e c s e transforma em c ’ . Mas , para que uma mudança I te nas cidades , nem na elite administrativa nem no resto da popula -
afete a , que se torna a\ é necessário que alguma coisa aconte ça . I ção citadina .
També m me parece que não se pode negar totalmente a causalida- I Não sou lingüista , mas creio que , para estudar até que ponto a
de . Há , de fato , sempre alguma coisa que age , mas , em vez de agir
I ideologia e a mensagem da elite administrativa atingiram a popula-
em um só elemento , age sobre um conjunto de elementos entre os
I ção camponesa , seria necessário que os lingüistas examinassem
I essa l í ngua particular criada recentemente no nível regional e utili -
quais existem relações orgânicas .
zada gradualmente pelos camponeses . Uma colaboração sobre
Quando falamos de lingüistica , nos referimos à informação , ao I
c ódigo . Pergunto -me se os lingüistas chegaram a encontrar um sis-
I esse tema entre lingüistas e soci ólogos permitiria a estes últimos
tema que permita decifrar as lí nguas que permaneceram até hoje
I saber até que ponto os projetos imaginados pelos serviços admi -
indecifr áveis , como o etrusco . Até o presente , para decifrar uma I
I
nistrativos puderam ser veiculados por essa língua , qual é a pro -
porção dos camponeses atingidos por essa mensagem , e quais são
\
l íngua , os lingüistas são obrigados a conseguir traduções . Se eles B afinal as porcentagens respectivas de palavras retidas ou recusa -
não encontram inscrições bilingües , não podem decifrar uma lí n-
gua . Estamos , portanto , sempre no estágio de Champollion . Uma II das pelos camponeses . Citarei um só exemplo a este respeito : a no-
ção de amortização . O camponês recebe essa noção sob a forma
í
língua é sempre decifrada a partir de uma outra língua , o fenício a I árabe de jrr** ( naqs muctabar ) , literalmente : “ diminuição
partir do bilingüe de Malta , o cunéiforme a partir do bilingüe de I considerada” , e me parece que ele não a compreende , já que um
Persépoles etc . I trator ainda é novo e abate -se no máximo 10% de seu valor .
A . El - Ayed : Gostaria inicialmente de lembrar uma frase lança- I O segundo tema que gostaria de propor à colaboração entre so -
da pelo professor De Voto durante o X Congresso Internacional I ciólogos e lingüistas é a organização do sistema de parentesco na
dos lingüistas de Bucareste . Visando a pôr fim ao famoso confli - I sociedade bedu í na .
to diacronia- sincronia , o professor De Voto usou a seguinte ima- I Fiquei pessoalmente impressionado de constatar , nas popula-
gem : a diacronia seria um rio que atravessa um lago , o lago da I ções seminômades da Tuní sia e no conjunto de Maghreb , a impor -
sincronia .
Dito isso , quero retornar à semiologia , denominada também “ se-
II tância da regra de casamento com a filha do tio paterno , assim
como a solidez da ligação com o grupo é tnico e familiar , e ao mes -
miótica” . Essa jovem ciência dos signos , anunciada por Saussure , I mo tempo de constatar a ausência de palavras precisas exprimindo

!
se destaca cada vez mais e parece ter campos de aplicação imen-
sos . Desta forma , um cientista americano , o Sr . Sebeok , pôde falar ,
por ocasião do mesmo congresso , de uma zoossemiótica , de uma
I
I
!
uma tal realidade . As palavras J
O
£

— y ^
— ( qab ï la ) , <JLJL-P ( cã’ ila ) ou
' j * ( cars ) são muito imprecisas e exprimem coisas muito varia-
*

das . Quanto mais a estrutura de parentesco é coercitiva mais as pa-


176 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1969 - Linguística e Ciências Sociais 177 ;

poderia ser circunscrever de mais perto as relações m útuas , essas


lavras existentes são imprecisas. Há uma verdadeira contradição
entre a for ça da submissão à estrutura do sistema de parentesco e interdepend ências entre lingü istica, etnologia e sociologia , por um
lado , e a economia , por outro.
a fragilidade das palavras exprimindo os agrupamentos agn á ticos .
N . Boa Aroudj : Parece-me que M. Foucault enfatizou as analo-
A palavra * jr - ; * ( = qabila ) exprime coisas “ variadas que os
franceses traduzem segundo uma estrutura hierarquizada , por gias existentes entre a d émarche estrutural em lingiiística e os mé- i
t
todos de análise estrutural das outras ciências , principalmente da
confederação , tribo , fração , subfração” . .. Mas trata-se apenas aí de
ciê ncia da informação. Mas creio que nos omitimos de falar sobre
uma lógica feudal , visto que a organização tribal é uma organização
um tema importante , que se encontra no centro dos problemas da
segmentar coercitiva . Creio que a contribuição dos lingü istas sobre !
este ponto pode ajudar os sociólogos a compreender as relações lingiiística e da informação , ou seja , o estudo do cérebro humano,
isto é , dos centros de linguagem .
entre a linguagem e a organização tribal. Ali també m gostaria de ci-
O segundo ponto sobre o qual eu gostaria de ter a opinião dos
tar um exemplo : sabe-se que existem tribos que eram muito impor -
tantes nos séculos XV e XVI , e cujas denominações desapareceram . lingüistas é a possibilidade que tem a linguagem humana de se co-
municar com os animais. Parece-me que certos animais podem
A população ainda existe , mas os nomes desapareceram . Qual é a
responder de maneira inteligente a certas linguagens. Eu me per -
hist ória desses nomes? Alguns desapareceram , outros nasceram e ,
no entanto , a população permaneceu a mesma e a organização do gunto então se os lingüistas têm desenvolvido trabalhos relativos a
sistema de parentesco é també m coercitiva .
esse aspecto da questão e sobretudo concernindo , em biologia -
Naccache : Quero falar inicialmente de minha inquietação diante psicologia , ao domínio dos reflexos condicionados.
M . Foucault : Gostaria de responder a algumas das questões
da sociologia , tal como a definiu o Sr . Stambouli . Não vejo muito
que me foram propostas . Inicialmente , vou lhes confiar uma coisa
bem o que pode ser uma ciê ncia na qual se pense que a ação do in -
que parece nã o ser ainda conhecida em Paris - não sou estrutura -
divíduo é fundamental . Nã o vejo muito bem como tal aproximação
lista. Salvo em algumas páginas que eu lamento , jamais empre-
pode ser científica . Parece- me que , afinal de contas , a ação do indi-
guei a palavra estrutura. Quando falo de estruturalismo, falo dele
víduo sobre a lí ngua é muito mais coercitiva do que sua ação sobre !
como um objeto epistemológico que me é contempor âneo . Isso
o meio social. Creio que , em se tratando da sociologia e da lingüisti-
dito , há um método que me interessa em lingüistica , o que o Sr . i f
ca , a causalidade deve ser buscada alhures e não no seio dessas
Maamouri lhes expôs há pouco e que foi batizado com o nome de í
duas disciplinas .
“ gramá tica gerativa ou transformacional” . É um pouco esse m é to-
Na realidade , o que é determinante tanto em sociologia como em í
do que tento introduzir na história das id éias , das ciê ncias e do
lingü istica , creio , são as condições económicas , portanto condi-
pensamento em geral.
ções extra-sociológicas e extralingüisticas. O Sr . Zghal acaba justa-
O Sr . Stambouli dizia há pouco que a noção de estrutura não é
mente de nos falar de uma mudança lingüistica que se operou no
diretamente utilizável em sociologia. Nisso estou inteiramente de
seio das cooperativas agr ícolas sob a influ ê ncia evidentemente da
acordo com ele e não penso que haja um só lingü ista ou estrutura -
mudança das condições económicas .
lista que lhes afirmaria que ela é utilizável no mesmo nível . Creio
A história recente da Tun ísia mostra que há tr ês registros lin -
que o problema que se coloca é o seguinte: considerando o extraor -
güisticos , quatro com a lí ngua das cooperativas, cinco com a de ou- dinário aporte de conceitos , de métodos e de formas de análise que
tros setores económicos etc. Esses diferentes registros estão liga-
a lingüistica e um certo n ú mero de outras disciplinas conexas
dos a certas classes sociais . N ão são as mesmas classes sociais que
como a semiologia criaram recentemente , parece-me que a análise
falam francês , o árabe clássico ou o á rabe dialé tico , e aqueles tuni-
de certos fenômenos sociais poderia ser , sem d úvida , facilitada e
sianos que utilizam essas tr ês lí nguas não empregam qualquer
enriquecida pela pr ópria transformação desses métodos de análi-
uma delas com qualquer um . A transformação da língua não pro-
se. Penso que o sociólogo poderia enriquecer até a pr ópria lingüis -
vém então de sua pr ópria dinâmica e de sua estrutura pr ópria , mas
tica , com a condição de que ele se desembaraçasse de sua atitude
certamente da influê ncia das condições exteriores, económicas e
de recusa total ou de aceitação em bloco, e se colocasse a questão: o
sociais . Creio que o tema de nosso pr óximo debate multidisciplinar
1 78 Michel Foucault - Ditos e Escritos
\;
1969 - Lingü istica e Ciê ncias Sociais 179

que é preciso que eu mude nos conceitos , nos mé todos e nas for- Tomemos um exemplo. Institucionalizada na Grã-Bretanha após
mas de análise da lingüistica para que estas últimas sejam por a Primeira Guerra Mundial , a formação profissional se desenvolve
mim utilizáveis em tal ou tal domí nio? nesse país durante os anos 30. Na Fran ça , ela remonta a 1939 ,
Quanto ao Sr . Fantar , ele levantou dois problemas : o da causali- quando Dautry , ministro do Exé rcito , decidiu dispor rapidamente
dade e o da tradução . de trabalhadores indispensáveis às fábricas para a condu ção da
Quanto à causalidade , não vejo em que seu conselho difere do guerra . Como modo r ápido de transmissão de um saber técnico,
que eu expus até aqui, ou seja, o fato de que a análise estrutural essa formação faz parte do conjunto de relações institucionais que
tenta definir o campo no interior do qual as relações causais pode- os indivíduos organizaram entre eles em função de sua adaptação
r ão ser atribuídas. Quando se diz : não há mudan ça de a ’ em a ” sem particular à situação e ao meio . Na Europa ocidental do sé culo XX ,
uma mudan ça de b’ em b” , de c’ em c ” etc . , determina-se certamen- a formação profissional e a industrialização foram dois aspectos
te a causalidade , mas , a qualquer indivíduo que quisesse encontrar complementares de uma mesma realidade, de um mesmo discur -
a causa dos fen ômenos , assinalar -se-ia como condição levar tudo
so. Inversamente , a introdu ção maciça da formação profissional na
isso em conta . Dito de outra forma , o que define o estruturalismo é
Tun ísia por um decreto promulgado em 12 de janeiro de 1956 ,
o campo de efetuação de uma explicação causal ,
quando a industrializa ção ainda engatinhava , criou graves proble-
M. Zamiti : M . Foucault acaba de levantar o problema da aplica-
mas de emprego e, portanto, uma disjunção, no nível da sociedade
ção à sociologia dos mé todos utilizados pela lingü istica estrutural.
global , tão grave quanto seria o escâ ndalo semântico provocado
Esse procedimento seria legítimo apenas à medida que autê nticas
pela introdu ção , em uma lí ngua determinada , de um termo que lhe
descobertas pudessem se descolar de hipóteses inexatas , processo
fosse estrangeiro. A analogia pode ser levada bastante longe , já que ,
do qual a histó ria do conhecimento oferece m ú ltiplos exemplos .
nos dois casos , o da língua e o da sociedade , a análise é capaz de
A dificuldade fundamental da transposição metodológica coloca-
ser conduzida em termos de adoção ou de rejeição de um código
da em causa remete -se ao seguinte fato: se a língua é um produto
exógeno introduzido em um sistema receptor concordante ou dis -
da vida social , assim como o discurso determina , em certa medida ,
cordante .
o campo do real , o que incita Lévi-Strauss a procurar “ uma origem
No entanto, bem rapidamente , a divergê ncia se anuncia , pois , se
simb ólica da sociedade ” , os sujeitos da vida coletiva são simulta-
a introdução de um elemento lingüistico em um outro sistema se
neamente produtos e produtores desta .
esgota em um n ão-sentido e na recusa radical , a formação recebida
Percebendo as m últiplas relações de complementaridade , de
por um sujeito é um dos fatores capazes de lhe permitir contribuir !
oposição , de implicação m ú tua tramadas entre os diferentes aspec-
para a criação de um emprego , e , portanto , de restabelecer a coe - !
tos materiais e ideológicos das unidades coletivas reais , etnólogos e
sociólogos adotaram os conceitos de totalidade e de sistema: tal
r ência inicialmente perdida . A ambivalê ncia do sujeito frustra
como a linguagem , toda cultura é sistemá tica ou tende à sistemati- qualquer tentativa de assimilá-lo à linguagem . Muitos debates , tor -
zação . A partir disso , a tentação é forte para o sociólogo: assegura- nados desde então clássicos , tais como o que opôs malthusianos e
do dessa homologia geral, ele espera dar um salto adiante em sua populacionistas , só se tornaram possíveis graças a interpretações
disciplina utilizando m é todos mais rigorosos do que os lingü istas . antin ômicas e unilaterais de apenas uma ou outra das duas dimen -
,

No entanto , ele se choca a cada vez com o mesmo limite , porque os sões indissociáveis desse drama dialé tico original da liberdade hu -
fatos que decorrem de seu dom ínio não se situam no mesmo n ível mana. Nessa ordem de id é ias , Sauvy se comprazia em relembrar
de empirismo que os materiais bem mais elaborados com os quais freqüentemente este provérbio extremamente oriental: “ Pode-se fa -
zer viver durante um dia um homem dando-lhe um peixe , mas po-
seu colega costuma trabalhar . Desde que tente encerrar a realidade
de-se fazê-lo viver para sempre ensinando-o a pescar . ”
social mutante em esquemas e nos modelos de interpretação toma-
I dos emprestado dos lingüistas , fatores imprevisíveis constante -
Eis a razão pela qual podemos nos interrogar , com inveja mas
sem esperan ça , sobre a eventual extensão à sociologia dos mé todos
mente intervê m para desarrumar sua constru ção.
prestigiados da análise lingüistica do tipo estrutural.
1 80 Michel Foucault - Ditos e Escritos
1969 - Lingu ística e Ciências Sociais 181

entre as condutas sociais e linguísticas antigas e modernas , uma


S. Garmadi : Gostaria de voltar à intervenção do Sr . Stambouli
colaboração muito frutífera pode e deve se instaurar entre sociólo-
para tentar cernir de mais perto o que me pareceu constituir uma
base comum da problemática de nossas duas disciplinas , a socio-
gos e lingüistas tunisianos.
Concluirei agradecendo ao Sr . Zghal pelos dois temas de cola -
logia e a lingü istica . O que o Sr . Stambouli disse poderia fazer crer
boração sociolingüistica que ele nos propôs e que nos permitirão
que há uma grande defasagem entre essas duas ciências sociais . A
nos debru çarmos sobre as novas formas lingiiísticas efetivamente
sociologia seria o estudo de fenômenos humanos , presentes e futu-
utilizadas pela população tunisiana , esperando que o CERES te-
ros , à medida que estã o ligados ao sujeito emissor . E como a lin-
nha o hábito de organizar , uma vez por ano, por exemplo , debates
guística estrutural tende cada vez mais a dissociar o estudo do dis- interdisciplinares semelhantes , cujo interesse não deixa nenhuma
curso e da fala humana daquele do sujeito , de suas intenções , das
d úvida .
condições sociológicas nas quais ele vive etc. , seria possível acredi-
tar que há uma espécie de antagonismo profundo entre os métodos
de análise em linguística e em sociologia . De fato, isso me parece
secund á rio , se comparado ao que parece ligar profundamente a
metodologia dessas duas disciplinas.
Parece- me com efeito que o que está em primeiro plano em so-
ciologia é o estudo das tensões . Tenho a impressão de que , quando
os sociólogos falam , eles o fazem sobretudo a partir disso que , em
tal ou tal coletivo social , resiste a qualquer coisa. Dito de outra for -
ma , a sociologia contemporânea parece privilegiar um domínio , o
do estudo da defasagem entre a norma e o comportamento real das
pessoas , seja esta norma atual ou retire sua for ça e sua realidade
do passado. i
/
Pois bem , é exatamente isso que fazem os lingüistas modernos .
A lingu ística , dissociando a língua da fala concreta , o paradigma do
sintagma , ou seja , dissociando a norma do comportamento lingu ís-
tico real dos locutores , retoma exatamente o mesmo procedimento .
Um tunisiano que diz : udonne - moi la parapluie ” faz , para o gramá-
tico , um erro de gê nero . Mas , para o lingü ista , esse “ erro” é signifi-
cativo e ele lhe dará toda a sua atenção. Para ele , o locutor tunisia-
no em questão está em tensão , porque , para formar seu sintagma
( donne moi la parapluie ) , ele dispõe de duas normas , dois códi-
-
! gos: o código francês , que exige "le parapluie” , e o código á rabe , que
sugere “ ía parapluie” ( o equivalente árabe shãba = sendo fe-
minino ) . No presente caso é o có digo á rabe ( o ancestral , diriam os
ó
soci logos ) que o carregou . Os soció logos , estudando , por exem -
pio o, grau de aceita ção ou de recusa de novas normas , tais como
as pr áticas contraceptivas, por uma sociedade com normas antigas
opostas , seguem conseq üentemente o mesmo procedimento meto-
dológico que os linguistas. Para concluir sobre este ponto , eu diria
que , nesses domínios da tensão , da distor ção entre o formal - ou
seja , a norma - e o real , quer dizer , o comportamento, a defasagem
1970 - Prefácio à Edição Inglesa 183

formá-los em tradições, de fazer deles um uso puramente especula-


1970 tivo , se mesmo isso não fosse submetido ao acaso? Se os erros ( e as í


verdades ) , a pr ática das velhas cren ças em nome das quais são
computadas não somente as verdadeiras descobertas, mas tam -
bém as idéias mais ingénuas -, se tudo isso obedecesse, em um mo-
Pref ácio à Edição Inglesa mento dado, às leis de um certo código de saber? Se , em suma , a
pr ó pria história do saber não formalizado possu ísse um sistema?
Essa foi minha hipótese de partida - o primeiro risco que assumi.
2 ) Esse livro deve ser lido como um estudo comparado , e não
“ Foreword to the English Edition ” ( “ Pref ácio à ediçã o inglesa ” ; trad . F. Du
-
rand - Bogaert ) , in Foucault ( M . ) , The order of things , Londres, Tavistock , 1970 , ps .
como um estudo sintomatológico. Minha intenção não foi , a partir
de um tipo particular de saber ou de um corpus de idéias, esboçar
IX-X1V.
o quadro de um per íodo ou reconstituir o espírito de um século. Eu
quis apresentar , uns ao lado dos outros , um n ú mero bem preciso
de elementos - o conhecimento dos seres vivos , o conhecimento
Talvez fosse preciso intitular este pref ácio de “ modo de empre- das leis da linguagem e o conhecimento dos fatos económicos - re-
go” . Não que , a meus olhos , o leitor não seja digno de confiança - li- lacionando-os ao discurso filosófico do seu tempo , durante um pe-
vre , bem-entendido , para fazer o que ele desejar do livro que teve a ríodo que se estende do século XVII ao XIX. Ele não devia ser uma
amabilidade de 1er . Que direito tenho eu de sugerir que se faça des- análise do classicismo em geral ou a pesquisa de uma Weltanschau-
se livro um uso de prefer ência a um outro? Numerosas coisas , ung , mas um estudo estritamente “ regional” 1 .
quando eu o escrevia , não estavam claras para mim: algumas pare- Mas , entre outras coisas , esse mé todo comparativo produz re-
ciam muito evidentes ; outras , muito obscuras. Então eu me disse : sultados que são , com freq üê ncia , espantosamente diferentes da-
eis como meu leitor ideal teria abordado meu livro se minhas inten - queles que os estudos unidisciplinares revelam . ( O leitor não deve
ções tivessem sido mais claras e meu projeto mais capaz de tomar então esperar encontrar aqui , justapostas, uma história da biolo-
forma . gia , uma história da lingíiística , uma história da economia polí tica
1 ) Ele reconheceria que se trata de um estudo em um campo re- e uma história da filosofia . ) Certas coisas predominaram sobre ou -
lativamente negligenciado . Na Fran ça , ao menos , a história da ciê n- tras: o calend á rio dos santos e dos her óis foi um tanto modificado
cia e do pensamento cedeu terreno para a matemá tica , a cosmolo- ( um maior destaque é dado a Lineu do que a Buffon , a Destutt de
gia e a f ísica - ciê ncias nobres , ciê ncias rigorosas , ciê ncias do ne- Tracy do que a Rousseau ; Cantillon sozinho se opõe a todos os fi -
cessá rio , muito pr óximas da filosofia : pode-se 1er , na sua histó ria , siocratas ) . As fronteiras foram retraçadas , aproximações operadas
a emergê ncia quase ininterrupta da verdade e da razão pura . Mas entre coisas habitualmente distintas , e vice-versa : em vez de ligar
se consideram as outras disciplinas - aquelas , por exemplo, relati- as taxionomias biológicas a um outro saber relativo ao ser vivo ( a
vas aos seres vivos , às lí nguas ou aos fatos económicos - como mui- teoria da germinação , a fisiologia do movimento animal ou , ainda ,
to tingidas pelo pensamento empírico , muito expostas aos capri- a está tica das plantas ) , eu as comparei ao que se teria podido di-
chos do acaso ou às figuras da retórica , às tradições seculares e aos zer , na mesma é poca , sobre os signos lingúísticos , a formação das
acontecimentos exteriores , para que se lhes suponha uma história id éias gerais , a linguagem de ação , a hierarquia das necessidades e
diversa da irregular. Espera-se delas, no máximo , que testemu- a troca das mercadorias.
nhem um estado de espírito , uma moda intelectual , uma mescla de Isso teve duas conseqüências: fui de in ício conduzido a abando-
arcaísmo e de apreciação ousada , de intuição e de cegueira. E se o nar as grandes classificações que , hoje , nos são familiares a todos .
saber empí rico , em uma é poca e cultura dadas , possuísse efetiva- r
mente uma regularidade claramente definida? Se a pró pria possi- 1 . ( N .A . ) Utilizo , às vezes , termos como “ pensamento” ou “ ciência clássica ” , mas eles
bilidade de registrar fatos , de se deixar convencer por eles , de de- remetem quase sempre à disciplina particular que é examinada.
184 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1970 - Pref ácio à Edição Inglesa 185

Não fui buscar , nos séculos XVII e XVIII , os começos da biologia do na consciê ncia do cientista ; ou , então , a parte de consciê ncia era
século XIX ( ou da filosofia , ou da economia ) . Mas observei a emer - superficial, limitada e quase de pura fantasia ( Adanson , por exem -
gê ncia de figuras caracter ísticas do per íodo clássico: uma “ taxiono- pio , sonhava em estabelecer uma denominação artificial das plan
mia ” ou uma “ história natural” relativamente pouco contaminada
tas ; Turgot comparava a cunhagem das moedas à linguagem ) ; mas ,
pelo saber que existia então na fisiologia animal ou vegetal ; uma sem que eles tivessem consciê ncia , os naturalistas, os economistas
“ an álise das riquezas” que se preocupava pouco com os postulados e os gramáticos utilizavam as mesmas regras para definir os obje-
da “ aritmé tica política” que lhe era contempor â nea ; enfim , uma tos pr ó prios ao seu campo de estudo , para formar seus conceitos ,
“ gramática geral ” que nada tinha em comum com as análises histó- construir suas teorias. São essas regras de formação , que jamais ti-
ricas e os trabalhos de exegese que eram perseguidos simultanea-
veram formulação distinta e apenas eram percebidas através das
mente . Tratava-se de fato de figuras epistemológicas que não eram teorias , dos conceitos e dos objetos de estudo extremamente dife-
impostas às ciê ncias , tais como foram individualizadas e nomea-
rentes , que tentei evidenciar , isolando , como seu lugar específico ,
um n ível que denominei , talvez de maneira um pouco arbitr á ria ,
das no século XIX. Observei també m a emergê ncia, entre essas di-
ferentes figuras , de uma rede de analogias transcendendo as proxi- arqueológico . Tomando como exemplo o per íodo abrangido por
midades tradicionais: entre a classificação das plantas e a teoria da esse livro , tentei determinar o fundamento ou o sistema arqueoló-
gico comum a toda uma série de “ representações ” ou de “ produtos ”
cunhagem das moedas , entre a noção de caracter ística gené rica e a
científicos dispersos através da história natural , da economia e da
análise das trocas comerciais , encontramos , nas ciê ncias da época
clássica , isomorfismos que parecem desdenhar da extrema diver -
filosofia da época clássica .
4 ) Eu gostaria que o leitor penetrasse nesse livro como em um sí -
sidade dos objetos considerados . O espaço do saber , na é poca clás-
tio aberto . Numerosas questões nele colocadas não encontraram
sica , é organizado de uma maneira inteiramente diferente daquela ,
ainda respostas ; e , entre as lacunas , numerosas são aquelas que
sistematizada por Comte ou Spencer , que domina o século XIX. Eis
o segundo risco que corri : ter escolhido descrever não tanto a géne- remetem seja a trabalhos anteriores , seja a trabalhos que ainda
se de nossas ciê ncias , mas um espaço epistemológico caracter ísti- não estão concluídos ou mesmo começados. Mas gostaria de evo-
co de um per íodo particular . car tr ês problemas. !
O problema da mudança . Disseram desse livro que ele negava a
3 ) Conseq üentemente , não operei no nível que é habitualmente o
do historiador das ciê ncias - eu deveria dizer nos dois níveis que
pró pria possibilidade de mudança . A questão da mudança é , no en -
'1
são habitualmente os seus. Por um lado , a história da ciê ncia retra- tanto , o que constituiu minha principal preocupação. Na verdade ,
duas coisas em particular me impressionaram : por um lado , a ma -
ça efetivamente o progresso das descobertas , a formulação dos
neira sú bita e radical com que certas ci ê ncias foram às vezes objeto
problemas , registra o tumulto das contrové rsias ; ela analisa tam-
bé m as teorias em sua economia interna; em suma , descreve os
de uma reorganização ; e , por outro , o fato de que na mesma época
mudanças similares ocorreram em disciplinas aparentemente mui-
processos e os produtos da consciê ncia científica. Por outro lado ,
no entanto , ela tenta restituir o que escapou a essa consciê ncia : as
to diferentes. No espaço de alguns anos ( em torno de 1800 ) substi-
tuiu -se a tradição da gramática geral por uma filologia essencial-
influ ê ncias que a marcaram , as filosofias implícitas que a susten-
tam , as temáticas não formuladas , os obstáculos invisíveis; ela des- mente histórica; ordenaram-se as classificações naturais de acordo
creve o inconsciente da ciê ncia . Esse inconsciente é sempre a ver - com as análises da anatomia comparada ; fundou-se uma economia
polí tica cujos principais temas eram o trabalho e a produ ção . Dian -
são negativa da ciê ncia - o que resiste a ela , a faz desviar-se ou a
perturba . Mas , por minha parte , gostaria de evidenciar um incons- te de uma combinação tão surpreendente de fenômenos , pare-
ceu -me que seria preciso examinar mais atentamente essas mu -
ciente positivo do saber : um nível que escapa à consciê ncia do pes-
danças , sem procurar , em nome da continuidade , reduzir sua su -
quisador e que , no entanto , faz parte do discurso científico , à medi-
bitaneidade ou restringir seu alcance . Pareceu -me , de saída , que se
da que ele contesta sua validade e procura minimizar sua natureza
operavam no interior do discurso científico diferentes tipos de mu-
científica . O que a histó ria natural , a economia e a gramática da
dança - mudanças que não intervinham no mesmo nível , não pro-
é poca clássica tinham em comum não estava certamente presente
1 86 1970 - Prefácio à Edição Inglesa 187
Michel Foucault - Ditos e Escritos

grediam no mesmo ritmo , nem obedeciam às mesmas leis; a ma- causas2 e escolhi me limitar à descrição das próprias transforma-
neira pela qual , no interior de uma ciê ncia particular , eram elabo ções , considerando que isso constituiria uma etapa indispensável
- se uma teoria da mudança científica e da causalidade epistemológi-
radas novas proposições , novos fatos eram isolados e novos concei-
tos forjados ( in ú meros acontecimentos que constituem a vida co- ca viesse , um dia , a tomar forma .
tidiana de uma ciê ncia ) n ão resultava , de acordo com qualquer O problema do sujeito. Distinguindo entre o nível epistemol ógi-
probabilidade , no mesmo modelo que o surgimento de novos co do saber ( ou da consciê ncia científica ) e o nível arqueológico , £

campos de estudo ( e o desaparecimento freq üentemente concomi- tive consciê ncia de me engajar em uma via muito dif ícil. Pode-se
tante dos antigos ) ; mas o aparecimento de novos campos de estu - falar da ciência e de sua história ( e, portanto, de suas condições
do , por sua vez , não deve ser confundido com essas redistribui- de existê ncia , de suas transformações , dos erros que ela cometeu ,
ções globais que modificam nã o somente a forma geral de uma dos avanços súbitos que a projetaram em uma nova direção ) sem
ciê ncia , mas també m suas relações com outros dom ínios do sa- fazer referência ao pró prio cientista ( não me refiro somente ao in-
divíduo concreto representado por um nome pr óprio , mas à sua ii
ber . Pareceu -me , conseq üentemente , que n ão era preciso reduzir
todas essas mudanças a um mesmo n ível, nem fazê-las se reunir obra e à forma particular de £eu pensamento )? Pode-se enfocar ,
em um só ponto , nem tampouco relacioná-las à genialidade de um com alguma validade , uma história da ciência que retraçaria do
indivíduo , ou a um novo espírito coletivo, ou mesmo à fecundida- in ício ao fim todo o movimento espontâneo de um corpo de saber
de de uma só descoberta ; que seria melhor respeitar essas dife- anó nimo? É legítimo , é ú til mesmo substituir o tradicional “ X pen -
renças, e mesmo tentar apreendê-las em sua especificidade. Nes- sava que .. /’ por um “ sabia-se que . /’? Mas esse não é exatamente o
se espí rito , busquei descrever a combinação das transformações projeto que me propus. Nã o procuro negar a validade das biogra -
concomitantes ao nascimento da biologia , da economia política , fias intelectuais , ou a possibilidade de uma histó ria das teorias ,
da filologia , de um certo n ú mero de ciê ncias humanas e de um dos conceitos ou dos temas . Perguntei- me simplesmente se tais i
novo tipo de filosofia na virada do século XIX. descrições são em si mesmas suficientes , se elas fazem justiça à
O problema da causalidade. Nem sempre é fácil determinar o extraordiná ria densidade do discurso cient ífico , se não existem , i
ft
que ocasionou uma mudança específica no interior de uma ciência .
:
fora de suas fronteiras habituais , sistemas de regularidade que
O que tornou essa descoberta possível? Por que esse novo conceito desempenham um papel decisivo na história das ciê ncias . Gosta -
ria de saber se os sujeitos responsáveis pelo discurso científico
surgiu? De onde proveio essa teoria? E aquela? Tais questões são
com freqiiê ncia extremamente espinhosas, pois não existem prin- não são determinados em sua posição , em sua função , em sua ca -
cípios metodológicos claramente definidos a partir dos quais se po- pacidade de percepção e em suas possibilidades pr á ticas por con -
deria justificar esse tipo de análises . O embaraço aumenta no caso dições que os dominam , e mesmo os esmagam . Em suma , tentei
de mudanças gerais que transformam uma ciência globalmente . | explorar o discurso científico não do ponto de vista dos indiví -
Ela també m se amplia no caso em que temos que nos haver com I duos que falam , nem do ponto de vista das estruturas formais que
muitas mudan ças que se correspondem . Mas ela atinge seu á pice , I regem o que eles dizem , mas do ponto de vista das regras que en-
sem d úvida , no caso das ciê ncias empí ricas, pois se o papel dos ! tram em jogo na pr ópria existência de um tal discurso ; que condi-
instrumentos , das técnicas , das instituições , dos acontecimentos , ções Lineu ( ou Petty , ou Arnauld ) devia preencher não para que
das ideologias e dos interesses é nelas totalmente manifesto , não se seu discurso fosse , de uma maneira geral , coerente e verdadeiro,
sabe como efetivamente opera uma articulação ao mesmo tempo mas para que ele tivesse , na é poca em que tinha sido escrito e ad -
tão complexa e diversamente composta . Pareceu-me não ser pru- mitido , uma aplicação e um valor pr áticos como discurso cient ífi -
?
dente , no momento, impor uma solução que eu me sentia incapaz - co ( ou , mais exatamente , como discurso naturalista , económico
i
eu o admito - de propor : as explicações tradicionais - o espírito ou gramatical )?
da é poca , as mudanças tecnológicas ou sociais , as influ ências de il
todos os tipos - me pareceram, em sua maioria, mais mágicas do 2. [ N .A. ) Abordei essa questão em relação à psiquiatria e à medicina clínica em duas
que efetivas. Portanto, deixei de lado nesse livro o problema das obras anteriores.
188 Michel Foucault - Ditos e Escritos

Sobre esse ponto també m , estou bem consciente de não ter pro- 1970
gredido muito . Mas não queria que o esfor ço que realizei em uma
direção fosse tomado como uma rejeição de todas as outras abor -
dagens possíveis . O discurso em geral, e o discurso científico em
particular , constitui uma realidade tão complexa que é , não somen- ( Discussão )
te possível, mas necessário abordá-lo em diferentes níveis e de
acordo com métodos diferentes. Se há , no entanto , uma aborda-
gem que rejeito categoricamente é aquela ( vamos chamá-la , de ma-
neira geral , de fenomenológica ) que d á uma prioridade absoluta ao
In Revue d ' histoire des sciences et de leurs applications , t. XXIII , 1 , janei-
sujeito da observação , atribui um papel constitutivo a um ato e co- -
ro mar ço de 1970 , ps. 61-62 . ( Sobre a exposição de F. Dagognet , “ La situation de
loca seu ponto de vista como origem de toda historicidade - essa , Cuvier dans 1 histoire de la biologie ” , ibid . , ps. 49- 60 , Jornadas Cuvier , Instituto de
em suma , que desemboca em uma consciê ncia transcendental. Pa- -
História das Ciências , 30 31 de maio de 1969 . )
rece- me que a análise histó rica do discurso científico deveria resul-
tar , em ú ltima instância , antes em uma teoria das pr áticas discur -
sivas do que em uma teoria do sujeito do conhecimento.
5 ) Para terminar , queria dirigir uma sú plica ao leitor de língua
inglesa . Na França , certos “ comentadores” limitados persistem em
Sr. Piveteau: Vejo em sua comunicação1 duas partes . Na primei-
ra , trata-se especialmente mais de uma questão científica do que de
história das ciê ncias. Ficaria muito contente se pud éssemos con -
-
I

me apor a etiqueta de “ estruturalista” . Não consegui imprimir em versar sobre isso, mas temo que , para o auditório , nos engajar ía -
seu espí rito estreito que não utilizei nenhum dos métodos , nenhum mos no terreno um pouco difícil dos problemas de homologia dos
dos conceitos ou palavras-chaves que caracterizam a análise estru - ossículos do ouvido médio , das relações existentes entre o endoes -
tural . Ficaria grato a um p ú blico mais sé rio por me libertar de uma queleto e o exoesqueleto . Seria prefer ível , no espí rito dessas reu -
associação que , certamente , me honra , mas que não mereci . E pos- niões , abordar o problema de uma maneira mais filosófica , e dou a
sível que existam certas semelhanças entre meu trabalho e o dos palavra imediatamente ao Sr . Michel Foucault .
estruturalistas. Cairia mal - para mim mais do que para qualquer Sr. Foucault : Teria de fato dois ou tr ês pontos para contrapor ao
outro - pretender que meu discurso fosse independente de condi- Sr . Dagognet , por exemplo , sobre a desvalorização do tegumentar .
ções e regras das quais sou , em boa parte , inconsciente , e que de- Há um texto em que Cuvier diz : os elementos exteriores do organis -
terminam os outros trabalhos realizados atualmente . Mas é mais mo devem precisamente servir de baliza para descobrir as organi-
f á cil desincumbir -se da tarefa de analisar semelhante trabalho , zações profundas.
apondo -lhe uma etiqueta grandiloquente , mas inadequada . Gostaria de situar o nível em que cada uma dessas intervenções
pt)de ser situada . Nessa disciplina que se poderia chamar arbitra -
riamente de epistemografia , ou seja , a descrição desses discursos
7 que , em uma sociedade , em um dado momento , funcionaram e fo-
t ram institucionalizados como discursos científicos , parece-me que
I se podem distinguir diferentes n íveis .
Chamarei de n ível epistemonô mico o ajuste dos controles epis -
: temológicos internos que um discurso científico exerce sobre si
\ mesmo . Parece- me que muitos dos trabalhos de Michel Serres defi -
j nem esse campo epistemonômico: ele mostrou de que maneira a

1 . Trata-se da exposição que F. Dagognet acaba de pronunciar .

I
1 90 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1970 - ( Discussão ) 1 91

uma transformação epistemológica que seria distinta da pr ópria


matemá tica interiorizou sua pr ó pria epistemologia. Isso é verdade verdade da afirmação científica. Não há transformação epistemoló-
para a matemá tica , mas penso que qualquer ciê ncia tem seu fun-
gica que não passe por um sistema de confirmação científica. Mas
cionamento epistemon ômico . Poder íamos encontrar na biologia ,
creio que uma transformação epistemológica deva poder ocorrer
por exemplo , um controle epistemológico dela mesma .
mesmo através de um sistema de afirmações que se mostraria ci-
Chamarei de epistemocr í tica a análise feita em termos de verda-
entificamente falso. É preciso distinguir , na densidade de um dis-
de e de erros; ela pergunta a qualquer enunciado que , em uma é po- curso científico , o que é da ordem da afirmação científica verdadei-
ca dada , funcionou e foi institucionalizado como científico, se ele é ra ou falsa e o que seria da ordem da transformação epistemológi-
verdadeiro ou falso . Ela analisa os procedimentos experimentais
ca. Que certas transformações epistemológicas passam por , to-
que foram utilizados para validar esse enunciado. Ela avalia as coe-
mam corpo em um conjunto de proposições cientificamente falsas ,
r ê ncias que podem ser detectadas entre diferentes afirmações e di- isso me parece ser uma constatação histórica perfeitamente possí-
ferentes asser ções . Foi isso , em suma , o que o Sr . Dagognet acaba
vel e necessária .
de fazer , questionando Cuvier sobre a verdade de suas afirmações.
Por exemplo, vocês acham realmente que , hoje , um médico po-
Pode-se deduzir daí , e Dagognet o mostrou de uma maneira con-
deria encontrar nos textos de Bichat muitas proposições medica-
tundente , que Cuvier cometeu erros magistrais .
mente verdadeiras? E não digo que elas não existam , mas somente
Chamarei de epistemol ógicas a análise das estruturas teóricas de
que já não existem muitas. Mesmo no caso de Broussais , o que se
um discurso científico , a análise do material conceituai, a análise
poderia reconhecer como válido? Ora, se nos interessássemos pelo
dos campos de aplicação desses conceitos e das regras de utilização [ nascimento da medicina clínica , poder íamos mostrar que a trans-
dos mesmos. Parece-me que os trabalhos feitos , por exemplo , sobre
formação do saber médico passou , efetivamente , por Bichat e
a história do reflexo decorrem desse nível epistemológico. [ Broussais . Há atualmente uma ú nica proposição de Esquirol que
Há , enfim , um ú ltimo n ível que não nomearei , no qual tenho a
impressão de que o Sr . Courtès se situou . É neste n ível que gosta -
I poderia ser considerada exata? E , no entanto , a transformação da
ria de me situar també m . Trata-se da análise das transformações
I psiquiatria no século XIX passou por Esquirol .
dos campos de saber .
I Conseqüentemente , creio que é preciso distinguir Verdade e
I Erro científicos de transformação epistemológica.
Se quero me discriminar em relação ao Sr . Dagognet , direi que
espero que ele tenha raz ão. Entretanto , não sou competente . O Sr .
I Eis o ponto de vista no qual eu me colocarei. Eis o motivo pelo
Piveteau poder á nos falar sobre isso. Mas espero que Dagognet te-
f qual eu desejaria que Dagognet tivesse raz ão . Eu me sentiria tran-
! qüilo e , desta vez , justificado .
nha razão e gostaria que ele tivesse ainda mais razão do que so-
mente em relação a isso. Gostaria que se pudesse dizer que nem
uma só das proposições de Cuvier pode ser considerada verdadei-
ra. Isso muito me agradaria e me permitiria dissociar dois n íveis de
análise que podem ser depreendidos dos textos de Cuvier : sistema
de verdades e de erros ; no limite , o “ erro Curvier ” , ou seja , tudo
aquilo em que as asser ções de Cuvier se distinguem do que atual-
mente se pode afirmar como verdadeiro; e depois a “ transforma-
ção Cuvier ” , ou seja , o conjunto das modificações que poderíamos
apreender em ação nos textos de Cuvier , que não são tanto modifi-
cações dos objetos , dos conceitos e das teorias , mas a modificação
das regras segundo as quais os discursos biológicos formaram
seus objetos , definiram seus conceitos , constitu í ram sua teoria. E
essa modificação das regras de formação dos objetos , conceitos e
teorias que tento isolar em Cuvier . Desde então , pode-se admitir
1970 - A Posição de Cuvier na História da Biologia 193

ele há , portanto , uma realidade , que é o indivíduo , e uma segunda


1970 realidade , que é a “ variabilidade ” do indivíduo , sua capacidade de
variar . Todo o resto ( seja a espé cie , o gê nero ou a ordem etc . ) é
uma espécie de constru ção erigida a partir dessa realidade , que é
o indivíduo. Desse ponto de vista , pode-se dizer que Darwin se
A Posição de Cuvier na História da Biologia opõe absolutamente a Cuvier . E , curiosamente , ele parece retor -
nar a uma tend ê ncia da taxionomia clássica dos séculos XVII e
( Confer ência ) XVIII , quando os metodistas , por exemplo , e Lamarck , particular -
mente , se interrogaram sobre a realidade da espécie , e supuseram
a continuidade da natureza t ã o bem articulada consigo mesma ,
“ A posi ção de Cuvier na história da biologia” , Revue d ’ histoire des
sciences et de t ão pouco interrompida que até a pr ópria espé cie talvez fosse uma
- -
leurs applications , t . XXIII , n 1, janeiro- mar ço de 1970 , ps . 63 92. ( Jornadas Cu - categoria abstrata. Portanto , uma espécie de retorno de Darwin a I
vier , Instituto de História das Ciências , 30-31 de maio de 1969. ) temas reencontrados não apenas em Lamarck , mas nos metodis-
tas da é poca lamarckiana . Podemos nos perguntar se , na hist ória
da biologia do indivíduo , não se é levado a saltar diretamente de
Comunicação de Michel Foucault Jussieu ou de Lamarck a Darwin , sem passar por Cuvier . Assim , í
chegar -se -ia a enuclear inteiramente Cuvier dessa história . Consi-
Gostaria de precisar o que chamo de transformação epistemoló- dero que tal análise não seria nem totalmente justificada nem su -
gica , e pensei em dois exemplos. ficiente . Como é freq üente nesses fenô menos de retorno , de repe- s
Tomemos o primeiro. Trata-se da biologia , da posição do indiví- tiçã o , de reativação , há por baixo um fen ô meno complexo , um
duo e da variação individual no saber biológico . processo de transformação bastante intenso .
Pode-se dizer que se há algu é m que acreditou efetivamente na Gostaria de mostrar como o indivíduo , ou , mais exatamente , a i
espécie , algu é m que não se interessou pelo que havia abaixo dela , crítica da espécie em Lamarck e nos seus contempor âneos não é
que se bateu contra o muro frente ao limite da espé cie , que nunca absolutamente isomorfa , nem passível de ser sobreposta à cr í tica
conseguiu descer abaixo dela e apoderar -se do saber biológico so- da espé cie tal como podemos encontr á-la em Darwin . E que essa
bre o indivíduo , é certamente Cuvier . Ele considerava que tudo ti- cr ítica da espé cie , tal como a vemos operar em Darwin , só pôde ü

nha sido organizado a partir da espé cie para a espécie , até a espé- surgir a partir de uma transformação , de uma reorganização , de
cie . Em contrapartida , todos conhecem bem o que diz Darwin so- uma redistribuição do saber biológico , que se realiza através da
bre a espé cie . A espé cie , para Darwin , n ão é uma realidade origi- obra de Cuvier . Que transformação é esta?
nariamente primeira e analiticamente ú ltima , como para Cuvier . A taxionomia clássica era essencialmente a ci ê ncia das espé -
Para Darwin , é dif ícil distinguir a espécie da variedade . E ele cita cies , ou seja , a definição das diferen ças que separam as espé cies
numerosos exemplos nos quais não se pode , em boa botânica ou umas das outras ; a classificação dessas diferen ças ; o estabeleci -
em boa zoologia , dizer : “ isso é uma espécie” ou “ isso é uma varie- mento de categorias gerais dessas diferen ças; a hierarquização
dade ” . Por outro lado, Darwin admitia a consolidaçã o progressiva dessas diferenças , umas em relação às outras . Dito de outra forma ,
das variações individuais . Segundo ele , mesmo no interior da es-
todo o edif ício da taxionomia clássica parte da diferen ça específica
pécie se produzem pequenas variações que n ão cessam de se e tenta definir as diferenças superiores tomando como medida a di-
acentuar e que acabam por questionar o quadro prescrito , a pos- ferença específica.
teriori , para a espécie ; e , finalmente , os indivíduos , de variações
Creio que houve testemunho de que a classificação biológica es-
em variações , encadeiam -se uns aos outros , bem além , acima do
colhe como elemento mí nimo a diferen ça específica , ou que ela não
quadro definido para a espé cie . Em suma , Darwin admite que to-
pode operar abaixo da diferen ça específica. Lineu , por exemplo , diz
dos os quadros taxion ô micos propostos para classificar os ani-
que o conhecimento dos indivíduos e das variedades é um conheci-
mais e as plantas são , até certo ponto , categorias abstratas . Para
í
1 94 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1970 - A Posição de Cuvier na História da Biologia 1 95

Espécies
mento de florista , e não uma diferença de botânico . Diz també m Ordem Classe
que o conhecimento das variedades é importante para a economia, \
para a medicina e para a culinária , mas que ele não passa disso . E
acrescenta: o conhecimento das variedades é um conhecimento \
pr á tico. Em contrapartida, a teoria e a ciê ncia começam alé m da
espécie . A existê ncia desse limiar entre o indivíduo e a espécie acar - Limiar Limiar
epistemológico ontológico
reta uma série de conseqüências.
Inicialmente , há entre a diferença específica e a diferença indivi-
dual uma decalagem , um salto , um limiar . Este é o limiar a partir
do qual o conhecimento científico pode começar . A diferen ça indi- De modo que é acima do indivíduo que ser á possível organizar
vidual não é pertinente para a ciê ncia. Pode-se dizer que entre indi- um saber . A partir da espécie entraremos na ordem do saber ,
víduos e espécies há um limiar epistemológico. que não ser á dado , mas constru ído , e abaixo da espécie teremos
um conjunto de realidades que são efetivamente dadas na expe-
riência .
Conhecimento Conhecimento Donde o problema da taxionomia clássica: como chegar a cons-
cientí fico inexistente Espé cies cientí fico possí vel truir gê neros que sejam reais , ou melhor , já que estes nunca são
reais , gê neros bem fundamentados? É toda a antinomia e a oposi -
Construção ção entre os sistematas e os metodistas. Os primeiros dizem que ,
\ Gê nero Ordem Classe do saber para alé m da espécie , de qualquer forma não se pode atingir direta-
Indivíduos \ » mente a realidade . É preciso escolher uma técnica de classificação
\ que ser á arbitr ária , mas que deve ser eficaz e cômoda. Os segun -
dos , os metodistas , dizem , ao contr á rio, que as classificações e as
constru ções classificatórias que ser ão erigidas devem se ajustar ,
Limiar
epistemológico até certo ponto , às semelhanças globais dadas na experiência . Não
se podem colocar , em uma mesma categoria , uma salada e um abe-
to. Mas, quer se trate do método natural ou do sistema arbitrário ,
Por outro lado , se é verdade que o que é dado como objeto primi- sempre estar á alé m desse limiar ontológico .
.O problema é saber como essa configuração da taxionomia
tivo de ciê ncia é a espécie e as diferenças específicas , tudo o que
ser á constru ído a partir da diferença específica - ou seja, as dife- clássica vai se transformar . Como se poder á chegar a reencontrar
ren ças de diferenças , ou as semelhanças de diferenças, as diferen- nos indivíduos , que ser ão doravante conhecidos dentro da espé-
ças mais gerais do que as diferenças específicas , e , conseqüente- cie e do gê nero, uma só e mesma trama de realidade ( essa trama
mente , as categorias mais gerais do que a espécie - todas essas ca- ser á, para Darwin , a genealogia ) . Como Darwin vai , por um lado ,
tegorias ser ão construções . Essas construções do saber que não se apagar o limiar epistemológico e mostrar que , de fato , o que é pre-
apoiar ão , diferentemente da definição da espécie , em um dado efe- ciso come ç ar a conhecer é o indiv í duo com as varia ções indivi -
tivamente aberto à experiê ncia , serão hipóteses que poder ão ou duais ; por outro lado , ele vai mostrar como , a partir do indiví duo ,
não ser verificadas, hipóteses que ser ão mais ou menos bem funda- o que se poder á estabelecer como sua espécie , como sua ordem
mentadas , hipóteses que talvez venham a coincidir com os fatos. E ou sua classe ser á a realidade de sua genealogia , ou seja , a se-
tudo o que , acima da espécie, não pertencer à mesma categoria on- qüência de indivíduos. Teremos então um quadro uniforme , sem
tológica do que decorre da espécie ou do que decorre do indivíduo , sistema de duplo limiar .
abaixo da espécie. Entre a espécie e o gê nero haver á um novo limiar Essa transformação foi operada através da obra de Cuvier .
que não ser á mais epistemológico , mas, desta vez , ontológico .
1 96 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1970 - A Posição de Cuvier na História da Biologia 1 97

A anatomia comparada , tal como Cuvier a praticou , teve como estruturas anatomofuncionais, que vão constituir seu filo , sua clas-
primeiro efeito a introdução da anatomia comparada como instru -
se , sua ordem e seu gê nero . O conjunto dessas estruturas que estão
mento para a classificação e para a organização taxionômica das efetivamente presentes nele , que nele se organizam pacientemente
espécies. Ela teve també m por efeito conferir o mesmo nível ontoló- e se comandam fisiologicamente , vai definir , em parte, suas condi-
ções de existê ncia. Por condições de existê ncia , Cuvier concebe a
gico à espé cie , ao gê nero , à ordem , à classe . Portanto , o primeiro
efeito da anatomia comparada foi apagar esse limiar ontológico . O confrontação de dois conjuntos: por um lado, o conjunto de corre-
lações que são fisiologicamente compatíveis entre si; por outro , o
que a anatomia comparada mostrou é que todas as categorias su -
meio no qual ele vive - ou seja , a natureza das molé culas que ele
pra-ordenadas à espé cie , superiores a ela , não são simplesmente ,
como na taxionomia clássica , tipos de regiões de semelhan ças , deve assimilar , seja pela respiração, seja pela alimentação. Assim ,
agrupamentos de analogias que se poderiam estabelecer seja arbi- encontramos , no in ício das Ré volutions du globe 1 , uma passagem
trariamente , a partir de um sistema de signos , seja geralmente , se- na qual Cuvier mostra de que maneira funcionam as condições de
existê ncia. O indivíduo , em sua existência real , em sua vida , não
guindo a configuração geral das plantas e dos animais , mas que
elas são tipos de organização . Desde então , pertencer a um gê nero , passa de todo um conjunto de estruturas simultaneamente taxio-
a uma ordem , a uma classe não é apresentar em comum com ou - nômicas e anatomofisiológicas; é igualmente esse conjunto presen-
tras espécies tais caracter ísticas menos numerosas do que as ca - te de qualquer forma no indivíduo , no interior de um meio dado .
racter ísticas específicas , não é possuir uma caracter ística gené rica Há , conseq üentemente , duas séries: uma , na qual o indivíduo cai
ou uma caracter ística de classe - ser á possuir uma organização L abaixo do nível do saber , e na qual estão ligados ontologicamente ,
precisa , ou seja , ter um pulmão e um coração duplos , ou um apare- I uns aos outros, a espécie , o gênero, a ordem etc . ; e uma outra , rela-
lho digestivo localizado acima ou abaixo do sistema nervoso . Em I tiva à vida real do indivíduo e ao meio, no interior do qual se encon -
suma pertencer a um gê nero , a uma classe ou a uma ordem , per -
tencer a tudo que está acima da espécie ser á possuir em si , em sua I
I
tram funcionando suas caracter ísticas específicas gené ricas . Dois
tipos de conhecimento podem então ser estabelecidos : a anatomia
anatomia , em seu funcionamento , em sua fisiologia , em seu modo I comparada , que permite considerar as caracter ísticas mais gerais
de existência, uma certa estrutura perfeitamente analisável uma
I e as estruturas mais globais dos indivíduos , situar a classe à qual
estrutura que tem , conseq üentemente , sua positividade . B eles pertencem , a ordem , o gênero, a espécie ; a paleontologia come-
Temos , portanto , sistemas positivos de correlações. Nessa medi- |çará pelo indivíduo tal como podemos observá-lo eventualmente na
da , não se pode dizer que o gê nero exista menos do que a espécie , ou B escala subindividual quando ele não passa de um órgão , já que ,
que a classe exista menos do que a espécie . Da espécie à categoria considerando esse órgão , ela poder á reencontrar a espécie levando
mais geral , haver á uma só e mesma realidade , que é a realidade bio-
em conta o meio em que ele vive , ou apoiando-se ao mesmo tempo
lógica , ou seja , a realidade do funcionamento anatomofisiológico . I nas considerações anatômicas e de meio. Há assim duas linhas
O limiar ontológico espécie-gênero encontra-se apagado. A ho- I epistemológicas, a da anatomia comparada e a da paleontologia ,
mogeneidade ontológica vai , desde então , do indivíduo à espécie , ao E que são dois sistemas de saber diferentes daquele da taxionomia
gê nero, à ordem , à classe , em uma continuidade ininterrupta. Por 1 clássica. Os limiares ontológico e epistemológico se encontram ,
outro lado , a articulação das categorias na taxionomia clássica era I
portanto , apagados . Vê-se da mesma forma como isso pode tornar
I possível Darwin. Tornar possível Darwin - isso não quer dizer que
a articulação caracter ística de um quadro classificatório . Mas , em
Cuvier , haver á uma articulação anatomofisiológica de todas essas
I depois de Cuvier não tenha havido outras transformações e que
categorias com seu suporte interno . Nós a encontramos no pr óprio
I Darwin não tenha tido que acrescentar um certo nú mero de outras
indivíduo - ou seja , é o indivíduo , no seu funcionamento real , que B transformações. Em particular , o que é pr óprio e o limite da trans-
vai trazer em si e no seio de seu mecanismo toda a sobreposição ,
todas as determinações , os comandos , as regulações , as correla- 1. Cuvier ( G . ) , Discours sur les ré volutions de la surface du globe et sur les chan-
ções que poderiam existir entre as diferentes instâncias do quadro . gements qu’ elles ont produits sur le rè gne animal , Paris, 1825: reed . Paris , L .
Para Cuvier , o indivíduo ser á constituído por uma articulação de Bourgois, col . “ Épistémè ” , 1985.
1 98 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1970 - A Posição de Cuvier na História da Biologia 1 99

formação Cuvier é que , para ajustar as duas linhas uma sobre a ou- Discussão
tra , Cuvier foi obrigado a admitir uma finalidade que faz com que ,
de qualquer forma, na criação , a classe , a ordem , o gênero , a espé- J. Piveteau : Os paleontologistas , os anatomistas que acompa-
cie tenham sido calculados de tal maneira que o indiví duo possa vi- nharam muito de perto a obra de Cuvier , que a lêem no laboratório ,
ver ; temos uma espé cie de predeterminação das condições reais de que a utilizam , jamais chegaram evidentemente a uma análise epis -
vida do indivíduo por esse sistema da finalidade . Por outro lado , temológica tão desenvolvida . Mas posso lhes dizer que todos esta -
segundo Cuvier , o indiví duo traz em si as características da espé- riam muito satisfeitos . É muito esclarecedor assistir a uma apre-
cie , do gê nero , que são , para ele , determinações intransponíveis . sentação como essa .
Daí , o fixismo . O fixismo e a finalidade são condições teóricas su- F . Dagognet : Através de suas observações , transparece uma ati-
plementares que Cuvier foi obrigado a introduzir para poder sus- tude muito negativa, creio , em relação à “ taxionomia” . Você não a
tentar seu sistema - esse sistema que condicionava o conjunto do toma como um saber abstrato , desvinculado da natureza?
seu saber . Essa análise da anatomia comparada com o fio condu- No entanto , nada me parece mais extraordinário . Jussieu , por
tor da finalidade define o que Cuvier chama de unidade de tipo . Em exemplo , reencontra , melhor do que ninguém , a realidade . Com
contrapartida , o movimento pelo qual Cuvier analisa , a partir de í seu sistema e seus balizamentos , ele necessita apenas de alguns si -
um indiví duo dado , a espécie , o gênero etc . , nas condições do meio nais para tudo conhecer , tudo derivar ou deduzir .
em que ele funciona , é a análise das condições de existência . Po- M. Foucault : Comecei lhes dizendo que havia um retorno de
de-se dizer que Cuvier só consegue sustentar o conjunto de seu sis- Darwin a Lamarck e a Jussieu . Talvez seja necessário introduzir
tema submetendo as condições de existê ncia à unidade de tipo . O uma correção . De fato é verdade que , desde a metade do século
que Darwin fez , ele o diz precisamente em L’ origine des esp èces ,
2 XVIII , sempre se procurou:
foi libertar as condições de existência da unidade de tipo. A unida- Ie ) fazer descer novamente o limiar epistemológico um pouco
de de tipo não passa , no fundo , do resultado de um trabalho sobre : abaixo da diferença específica; i

o indiví duo . Darwin foi obrigado a modificar o próprio sentido das í 2- ) fazer subir o limiar ontológico um pouco acima da espé cie .
condições de existência , já que , para Cuvier , as condições de exis- I Este foi o caso dos metodistas ; eles criticavam o sistema Lineu de
tência dependiam da confrontação desse equipamento anatomofi - I ser arbitrário e de colocar juntos seres que têm talvez as mesmas
siológico que caracteriza o indivíduo e que traz consigo a taxiono - I características , desde que se levem em conta , como características
mia à qual ele pertence e o meio em que ele vive . f diferenciadoras , apenas alguns elementos ( por exemplo , órgãos se -
A partir de Darwin , as condições , estando liberadas da unidade I xuais ) . Mas se fossem tomados critérios mais gerais , mais vis íveis e
I mais imediatos ( a morfologia geral da planta ou do animal ) , e se
de tipo , irão se tornar as condições de existê ncia dadas a um indiví -
duo vivo por seu meio . I fossç possível estabelecer grupos , gêneros , ordens , classes , grupos
Portanto , poderí amos descrever a transformação pela qual se | que levassem em conta o conjunto das semelhanças , seria obtida ,
passou dessa problemática espécie-indivíduo , na época clássica , à \ assim , uma classificação fundamentada . Quando digo Jundamen-
problemática espécie-indivíduo em Darwin . Parece-me que a pas- í fada , não quero dizer que ela se configure como uma descontinui -

sagem de uma à outra só foi possível por uma reorganização com- dade real . Dito de outra forma , não penso que Jussieu ou Lamarck
pleta do campo epistemológico da biologia , que vemos se operar na imaginam que os gêneros existam de uma maneira ní tida e separa-
obra de Cuvier . Quaisquer que tenham sido os erros de Cuvier , po- da, inscrita de alguma forma no próprio organismo do indivíduo .
de-se dizer que há a "transformação Cuvier ” . F. Dagognet : Infelizmente , sim . Para Jussieu , há uma caracte-
rística . . .
M. Foucault : Mas é preciso fazer uma distinção entre fundamen-
-
2. Darwin ( C . ) , On the origin of species by means of natural selection or the pre tada e real : uma caracter í stica taxionômica é fundamentada:
servation ojjavoured races in the struggleJor life , 1859 ( De l’origine des espèces l ~ ) se efetivamente , no continuum das diferenças , ela reagrupa
au moyen de la sélection naturelle ou la lutte pour l’existence dans la nature , os indiví duos que estão pr óximos nesse continuum ;
Paris, La Découverte , 1985 ) .
200 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1970 - A Posição de Cuvier na História da Biologia 201

22 ) se é possível , entre o último elemento que pertence a essa ca- ram estabelecidos . Isso não quer dizer que na histó ria da botânica
tegoria e o primeiro elemento da categoria seguinte , encontrar uma reconheceram-se sucessivamente todas as espécies , e depois houve
determinação que seja visível , indiscutível , determinável e reconhe- a preocupação de ordená-las e reagrupá-las. Procuro qual foi a lei
c ível por todos . Eis os dois crité rios da categoria fundamentada . de construção utilizada para constituir alguma coisa como a taxio-
À categoria fundamentada , os metodistas opõem a categoria não nomia. Quanto à história natural e à biologia, não sei o que você en -
fundamentada, tipo Lineu . O que se pode criticar em Lineu é ter es- tende por biologia. Da minha parte, talvez de uma maneira arbitrá-
tabelecido categorias retiradas de diferentes grupos de indivíduos , ria , concebo a história natural como o conjunto dos métodos pelos
ter reagrupado seres pertencentes a campos de semelhan ças sepa- quais se definiram os seres vivos como objeto de uma classificação
rados uns dos outros e , sob o pretexto de que eles tinham ó rgãos possível , e que relações de ordem se estabeleceram entre eles. Do
sexuais conformados da mesma maneira , estabelecer uma catego- fim do século XVII ao in ício do século XIX, para definir o objeto a
ria que ultrapassava , de qualquer forma , as semelhan ças imediata- classificar , para estabelecer os mé todos de classificação , para fazer
mente dadas ; ele constitu ía , assim , categorias abstratas , ou seja , descrições que permitem classificar etc . , construiu-se um certo n ú -
não fundamentadas. O que Jussieu , Lamarck , os metodistas que- mero de regras que caracterizam o que chamei de história natural ,
rem fazer é um gê nero fundamentado . retomando o termo que era freqüentemente empregado nesta épo-
J. -F. Leroy : Não compreendo. Você disse : para a taxionomia ca. Evidentemente , na época se faziam experiê ncias com o auxílio
clássica , o dado é a espé cie . O constru ído é o gê nero . Constato que do microscópio , numerosas pesquisas sobre a fisiologia animal e
a primeira entidade que apareceu para o naturalista foi o gê nero , humana . Mas sistematicamente negligenciei isso , e eu o disse de
particularmente para os botâ nicos . Pois , no fim do século XVII , maneira bastante clara: meu problema era saber a maneira pela
Tournefort delimitou o gê nero. Foram os gê neros que surgiram qual efetivamente se classificaram os seres vivos , durante um certo
para ele , e não as espécies. A espécie não era reconhecida até Tour - nú mero de anos . Conseqúentemente , em relação ao que você me
nefort . Quando se observa a natureza , são os gê neros e mesmo as diz quando assinala que a biologia começou antes de Cuvier , estou
fam ílias que aparecem , pois se está longe da espécie , ao ponto de a -
de acordo. Trata se do mesmo problema com relação à gramática .
Quando estudei a gramá tica , os filólogos me disseram que já se fa -
noção de fam ília ter sido descoberta muito precocemente . Havia fa-
m ílias de plantas , como as umbelíferas , as compostas . Os conjun- ziam estudos histó ricos sobre o latim . Este não era o meu proble -
tos chamavam mais atençã o do que a espé cie . Por outro lado , você ma . Era estudar o que era a gramática geral , ou seja , como a língua
fala da positividade trazida por Cuvier a propósito do gê nero . Você em geral foi tomada como objeto de análise possível.
n ão pensa que já havia uma positividade no final do século XVTI . J. -F. Leroy : Quando digo que se continua a fazer história natu -
Evidentemente , você me dir á que era história natural . Mas , em ral , quero dizer que se continua a classificar da mesma maneira ,
1969 , ainda fazemos história natural . N ão entendo por que você a ou quase .
det é m em Cuvier . Quanto à biologia , cuja existê ncia , de seu ponto M. Foucault : Sim , continua-se a classificar e de fato se recomeça
de vista , partiu de Cuvier , eu a vejo constituir -se bem antes do sé - a classificar usando um certo n ú mero de métodos que não deixam
culo XVIII e mesmo do sé culo XVII . Ela se desenvolveu progressiva- de ter analogia com os utilizados no século XVII . Cuvier classificava
mente . Os naturalistas faziam história natural . Eles não tinham suas espécies de maneira diferente . Acreditei reconhecer ali uma
consciê ncia de fazer biologia , mas , pouco a pouco , eles se aproxi- transformação caracter ística. Jamais pretendi que se parasse de
maram da biologia , que , em um certo momento , não podia deixar classificar os seres vivos depois de Cuvier . Chamei de história na-
de tomar consciê ncia de si mesma e de constituir -se como discipli- tural , convencionalmente talvez , um modo de classificação , mas
na autónoma . també m um certo modo de definição do objeto, dos conceitos e dos
M. Foucault : Subscrevo o que você acaba de dizer . Antes mesmo mé todos .
de Lineu , foram reconhecidas as grandes fam ílias como as umbelí- J. Piveteau : A classificação atual é totalmente diferente . Tenta -
feras . Onde foi que eu disse o contr ário? Eu tentei definir a maneira mos encontrar uma ordem de gé nese , enquanto no tempo de Cu -
pela qual , de Tournefort a Lamarck , os quadros taxion ômicos fo- vier procurava-se uma ordem l ógica. Pode-se transpor muito facil-
202 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1970 - A Posição de Cuvier na Hist ória da Biologia 203

mente a classificação cuvieriana para essa ordem de gé nese. É o Na taxionomia clássica , não se discutia a identidade dos elemen -
que , antigamente , Daudin mostrou muito bem e o que fazemos to- tos. Ela era imediatamente dada, já que era nela precisamente que
dos os dias . se tinha obtido apoio para classificar os seres. Ali onde um órgão
F. Dagognet : A ordem fundamentada não é a ordem preexisten- apresentava , entre um indivíduo e outro , entre uma variedade e ou -
te . Uma planta , que foi definitivamente classificada , tem uma ca- tra , elementos idê nticos - e muito visivelmente idê nticos , pelo ta-
racterística única que faz com que ela pertença a um conjunto e. . . manho , volume , configuração - então se tratava de uma caracterís-
M. Foucault : É a ordem fundamentada . tica: o problema era então saber se ela se limitava à espé cie , se valia
F. Dagognet : Por que não seria real? para todo o gê nero ou mesmo para alé m dele . Tratava-se de estabe-
M. Foucault : Na medida em que , nessa é poca , se admitia o con- lecer os limites de extensão de uma identidade imediatamente re-
tinuum natural. . . conhecida. Além disso , a taxionomia lineana estabelecia as variá-
F. Dagognet : Ele não era admitido. veis que , por si mesmas , deviam ser adequadas para definir uma
M . Foucault : . ..o corte entre os gêneros não passava de um corte diferen ça , e conseqüentemente um limite na identidade : apenas as
devido ao nosso conhecimento e não devido à pr ópria natureza . Ela variações de forma , de tamanho , de disposição e de n ú mero po-
não é absoluta nem invaríavel , diz Adanson. diam ser mantidas ( a cor , pelo contrário, não afetava a identidade
F. Dagognet : Jussieu diz claramente que esse corte está na na- de um elemento e não entrava na característica científica ) . Em suma ,
tureza , e que ele encontrou aí a sua chave . é possível dizer que a identidade nessa história natural é imediata -
M. Foucault : Que ele tenha encontrado a chave que lhe permite , mente visível e que seus limites são sistematicamente construí dos .
nesse continuum natural, utilizar um conjunto de critérios homo- Para Geoffroy Saint-Hilaire , a identidade pode estar escondida .
gé neos que , de uma ponta à outra , vão lhe permitir fixar os grupos Não é imediatamente visível que as pe ças do opé rculo que encon -
é sinal de que seu m é todo é fundamentado . Mas ele compara a con- tramos na frente das brânquias dos peixes possam corresponder
tinuidade natural seja a uma cadeia , seja a um mapa geogr áfico . aos ossículos do ouvido interno dos vertebrados superiores . Quan -
F. Dagognet : O gê nero e o indivíduo são nitidamente separados. to aos limites estabelecidos pelos sistematas, é preciso recusá-los
O indivíduo é o ser vivo quando desenvolvido . Mas a semente é o re- uns após os outros . Uma diferença de n ú mero não deve impedir a
sumo do indivíduo e do gê nero. Pode-se 1er o gê nero como se lê o identificação de um elemento id ê ntico ( o osso hi óide é composto de
indiví duo . cinco ossículos , no homem , de nove , no gato ) ; tampouco a diferen -
M. Foucault : “ Fundamentado" significa que o gênero não é arbi- ça de tamanho é necessariamente pertinente: é preciso reconhecer
tr á rio , em oposição ao gê nero arbitr á rio de Lineu . O gê nero funda- um polegar no tubé rculo rudimentar que se encontra em certos
mentado ser á natural . E a palavra natural retorna perpetuamente macacos-aranha ( Ateies ) ; a forma també m pode variar sobre um
quando se trata do m é todo. Creio que você não tem o direito de uti- fundo de identidade ( é preciso aprender a passar da pata do ca -
lizar a palavra “ real" ali onde os naturalistas empregam a palavra chorro à nadadeira da foca ); enfim , a disposição pode mudar , sem
fundamentado ou natural . Adanson fala certamente de divisões que a identidade desapareça ( o cefaló pode pode ser considerado
“ reais ” , mas para dizer que elas são reais apenas em relação a nós , como um vertebrado cujo dorso é dobrado de maneira que a bacia
e nã o em relação à natureza . Os cortes reais ser ão cortes ocasiona- e as pernas ficam próximas da cabeça ) . Geoffroy Saint-Hilaire nã o
dos pelas catástrofes em Buffon; para Lamarck , eles advêm das mántém nenhum dos critérios de identificação usualmente admiti-
condições de existê ncia . dos no século XVIII .
A grande discussão que , por volta de 1830, opôs Cuvier e Geof- Por outro lado , ele recusa da maneira mais direta o crité rio fun -
froy Saint-Hilaire versava , por um lado , sobre a maneira pela qual cional de identidade: uma mesma fun ção pode ser assegurada por
se pode identificar um elemento, um órgão , um segmento biológico elementos diferentes ( pode-se dizer que uma muleta é uma per -
através de um conjunto de espécies ou de gê neros: em que medida na? ) ; um mesmo conjunto de elementos pode ter fun ções bem dife-
e em nome de que se pode identificar a mão do homem , a pata do rentes no bebê e no adulto ( os pés da crian ça não servem para an -
gato , a asa do morcego? dar e , no entanto , são pés ) .
&

204 1970 - A Posiçã o de Cuvier na História da Biologia 205


Michel Foucault - Ditos e Escritos

2- ) Cuvier e Geoffroy Saint- Hilaire tê m , portanto , o mesmo pro-


Em contrapartida , Geoffroy Saint-Hilaire admite a identidade de
um elemento biológico em meio a muita diversidade , se é possível blema a resolver : reconhecer uma identidade orgânica seguindo
estabelecer a localização ou a transformação na espécie que permi- uma constante que não é imediatamente dada à percepção. Essa
te reconhecê-la. Assim , diz ele , chamo de pé todo conjunto de ele- constante , Cuvier vai buscar na Junção , que permanece a mesma
mentos anatômicos que suceder ão , em um animal , ao terceiro seg- através da diversidade dos instrumentos que a asseguram - a res-
tí pira ção , o movimento , a sensibilidade , a digestão , a circulaçã o .
mento do membro inferior . O pé é uma determinada situação ana-
tômica , ou ainda, posso reconhecer o osso hióide do homem no do Geoffroy Saint -Hilaire a recusa , pelas raz ões que lhes disse há pou -
co , substituindo-a pelo princípio da posição e da transformação no
gato , já que posso definir os elementos que se soldaram , os que de-
espaço .
sapareceram , os que se mantê m sob a forma de ligamentos etc . , os
que mudaram de apar ê ncia . A identidade não é um dado visível: é Temos duas solu ções: a solu ção funcionalista e a solu ção topoló-
o resultado de uma colocação em relação ( de uma “ analogia” , diz gica , para resolver o mesmo problema surgido da mesma transfor -
Geoffroy Saint-Hilaire ) e da verificação de uma transformação . mação , ou seja , do apagamento dos crité rios visíveis de identifica -
Como se operou a passagem entre a identidade “ taxionômica ” da ção dos segmentos biológicos . Duas solu ções que tiveram , na histó-
história natural e essa identidade analógica? Também aqui é preci- ria da ciê ncia , dois destinos diferentes . Por um lado , Cuvier , bus -
so referir -se a Cuvier . Assim como Geoffroy Saint-Hilaire , Cuvier cando na função o fator de individualização do órgão , permitiu
admite um princí pio geral de analogia: “ O corpo de todos os ani- acrescentar à anatomia uma fisiologia que iria se tornar cada vez
mais é formado pelos mesmos elementos e composto por órgãos mais autó noma . Por essa operação , Cuvier faz , de alguma maneira ,
análogos . ” Além disso , para ele , assim como para Geoffroy Saint- emergir a fisiologia da anatomia. Por outro , Geoffroy Saint- Hilaire ,
Hilaire , a correspond ê ncia entre dois órgãos não é estabelecida ao descobrir os crit é rios topológicos , introduziu uma certa análise
pela identidade das formas ( dos vermes aos vertebrados superio- do espaço interior ao indivíduo. Geoffroy Saint-Hilaire enriqueceu
res , elas aumentam em complexidade ) , nem pelas propor ções ( de a anatomia , Cuvier liberou a fisiologia .
acordo com os animais , as quantidades de respiração e de movi- De maneira que as duas solu ções propostas para o mesmo pro-
mento podem variar ) , nem pela posição ( no reino animal, há uma ; blema , proveniente da mesma transformação , tiveram sua funçã o
inversão espacial entre o sistema nervoso e o sistema digestivo ) . na história da biologia: uma , para o desenvolvimento da fisiologia ;
Nenhum dos critérios de identificação mantidos pelos clássicos é a outra , para a inserçã o da topologia na anatomia .
admitido por Cuvier , nem por Geoffroy Saint-Hilaire . O desapare- Evidentemente , a liberação da fisiologia foi de imediato mais en -
cimento desses crité rios é uma transformação comum a Cuvier e a riquecedora , pois a fisiologia nessa é poca , de Magendie a Claude
Geoffroy Saint-Hilaire . *
Bernard , tinha atingido um nível epistemológico que permitia sua
Ora , parece-me que essa transformação estava implícita no uso í utilização direta na biologia. Pelo contr á rio , Geoffroy Saint-Hilaire ,
da anatomia comparada , tal como a encontramos em Cuvier ; e que , f inserindo a an álise topológica na relação anatô mica , fazia uma ope -
por sua vez , ela tornou possíveis duas sistematizações diferentes: a ração mais arriscada que , na é poca , podia parecer quimé rica. Cu -
de Cuvier e a de Geoffroy Saint-Hilaire . vier , de fato , não compreendeu essa operação de Geoffroy Saint-
I 2 ) A anatomia comparada permitiu a comparação das espécies i Hilaire . Viu nela a reaparição do tema da Naturphilosophie . Na ver - !
t*‘
não do pr óximo ao pr óximo, mas de um extremo ao outro. Ela per - dade , era também outra coisa . A topologia como ciê ncia aplicável
mitiu conservar o que havia de comum em todos os seres vivos , só foi utilizável muito depois de 1830. Era normal que Cuvier fosse
sejam quais forem sua complexidade e seu grau de organização. eficaz e fecundo naquele momento. Pelo contrário , Geoffroy Saint-
Permitiu apreender cada conjunto de elementos em sua transfor - Hilaire , que permaneceu de qualquer forma no limbo da hist ó ria
mação máxima. E , conseqüentemente , os critérios de identificaçã o das ciê ncias , só pôde retomar efetivamente sua fecundidade a par -
( forma , tamanho, disposição , n ú mero ) que podiam valer para esta- tir do momento em que se encontrou o problema da topologia na
belecer diferen ças pr óximas deviam ser descartados. O espaço de anatomia normal , assim como na teratologia .
diferenciação mudou de escala .
206 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1970 - A Posição de Cuvier na História da Biologia 207

J. Piveteau : Acompanhando o destino desses dois grandes prin- gação interna, que faz com que as estruturas dependam umas das
cípios de Cuvier e de Geoffroy Saint-Hilaire , o princí pio das corre- outras, não está mais situada unicamente no nível das freqüências ;
lações e o princípio das conexões , temos cada vez mais consciência ela se torna o pró prio fundamento das correlações . ”
de que eles são , para nós, na pesquisa complementares . O princí- Estou convencido de que a passagem da problemática das classi-
pio das correlações d á a unidade do animal ; o das conexões d á a ficações do século XVIII para o problema da espécie em Darwin pas-
unidade da sé rie animal . Temos necessidade dos dois princípios. sa por uma nova concepção da ligação interna, por uma análise da
O princí pio das correlações é o que permite , com Cuvier , as recons- estrutura interna do organismo. Sobre esse ponto, o princípio de
tituições. O princípio das conexões permite seguir essas transfor - correlação em Cuvier desempenha um papel capital, e pode ter uma
importância que ultrapassa Cuvier . Coloco então o problema da na-
mações ao longo de uma sé rie gené tica. Atualmente , não vemos ne-
cessidade de opô-los. Conforme os momentos da pesquisa , po- tureza dessa ligação interna que , levando em conta o desenvolvimen-
dem-se fazer , de um ou de outro , dois princípios complementares
to do par ágrafo “ Cuvier " em As palavras e as coisas , conduz à ado-
ção por Cuvier de uma concepção finalista, vitalista e fixista.
não atuando no mesmo nível .
Donde o problema: a id éia de ligação interna exige um princípio
Y . Conry : l 2 ) Não há , nos trabalhos de Cuvier , uma condição de
impossibilidade para se pensar a evolu ção , especificada como teoria
das correlações , tal como proposto por Cuvier? Retomo a argu -
da evolução darwiniana? Essa condição de impossibilidade pode ser
mentação que eu fazia a partir da elaboração da teoria qu í mica .
Nas cartas a Pfaff , Cuvier mostrou -se precocemente interessado
enunciada assim: ser á que , no “ campo discursivo” de Cuvier , a re-
pela qu ímica , a de Lavoisier . Nessas cartas ele recomenda a leitura
presentação do organismo , sob a modalidade das correlações estri-
de Lavoisier e a leitura dos Annales de chimie . Recordo-me de uma
tas , não é um obstáculo , e até mesmo um obstáculo maior , a uma carta em que estão em pauta os seis primeiros volumes dos Anna-
teoria da evolu ção? - dito de outra forma , me inscrevo , nesse aspec- les de chimie , dos quais ele recomenda a leitura a Pfaff 4 e , no sé ti -
to , no contexto da conferê ncia , de hoje de manhã , do Sr . Limoges . mo volume , ele recomenda as análises que ele faz dos problemas
2- ) M . Foucault disse que as transformações propostas por Dar -
win se faziam através dos textos de Cuvier .
a ) Se essa afirmação é aceita , eu gostaria de saber como é possí- er. Les mots et les choses ( p. 276 ) : ‘A ligação interna, que faz com que as estruturas
dependam umas das outras , n ão está mais situada unicamente no n ível das
vel que o fundamento do pensamento darwiniano seja encontrado
freq üências; ela se torna o próprio fundamento das correlações.'
Jora , e n ão no campo discursivo de Cuvier . Faço alusão ao contexto Essa ligação interna parece remeter ao ‘cálculo’ da natureza dos seres. Cf . Histoire
ecológico e biogeogr áfico , que é o lugar da determinaçã o do pensa- des progrès des sciences naturelles , 1826 , 1.1, p. 249. O próprio cálculo parece ba -
mento de Darwin . Parece- me que se admitimos que Darwin se for - seado na respiração. Cf. Leçons d 'anatomie comparée , 1805, t . IV , 24- aula , p .
mou fora do campo de Cuvier , esse ú ltimo não poderia ser um rel é 168 : a importâ ncia da circulação baseada na do sangue , ve ículo do oxigénio. Essa
perspectiva da oxigenação permite a introdução do ponto de vista quantitativo . Cf .
em relação a uma teoria da evolução ulterior . ?
op . cit . , p . 172 e as dedu ções a seguir .
b ) Como explicar as resistê ncias ao darwinismo em nome da es- Essa problemá tica parece hom óloga à de Fourcroy . Cf . Syst è me des connaissances
cola de Cuvier ( por exemplo , a de Flourens , discí pulo de Cuvier )? chimiques , brum ário ano IX , seção VIII , ordem IV , art . 2 , § 7 ( t. X, p. 373 sq . ) , arts.
c ) O esquema de desaparecimento dos limiares , proposto por M . 11 e 12 ( ps . 405-413 ) .
Foucault , acabou por me convencer de que Cuvier é efetivamente Enfim , a teoria da combustão é apreciada por Cuvier como a mais importante revo-
um momento de ruptura em relação ao século XVIII . Mas ser á que lução que as ciências tinham experimentado desde o século XVIII . Cf . Histoire des
progr è s des sciences naturelles , 1826 , t. I , p. 62 sq .
esse esquema não continua sendo indiferente para um problema Consequê ncias: as rupturas n ão podem ser compreendidas como o resultado de
de evolução? um jogo de deslocamentos que produz articulações novas no interior de um sistema
B . Balan : l 2) A primeira questão se refere à natureza da ligação nocional prévio?
interna3 . Você havia dito em As palavras e as coisas ( p. 276 ) : “ A li- A existência de tal jogo de deslocamentos não torna impossível a consideração de
um dom ínio ou de uma pluralidade de dom ínios sem levar em conta , ao mesmo
3. ( N .A . ) Um texto mimeografado , distribu ído antes da sessão , enunciava a questão
tempo, a articulação do ou dos objetos de estudo escolhidos em relação à rede geral
de conceitos científicos disponíveis em um momento determinado?”
desta forma: "Cuvier , mais do que Lavoisier , é realmente o momento de ruptura en -
4. ( N . A. ) Carta de 31 de dezembro de 1790.
tre a história natural e a biologia ( se esta ruptura existiu )?
208 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1970 - A Posição de Cuvier na História da Biologia 209

da qu ímica do ponto de vista de Pfaff . Cuvier se distingue de Aristó- provar essa proposição , é necessário encontrar o tema de um texto
teles , que ignorou , com razão , as leis da f ísica e da quí mica . Isso em favor da mais surpreendente anomalia . Seria necessário fazer
i t
:
me permite considerar como muito importante o papel desempe- mais do que simplesmente sustentar a tese contrária, pois seria
nhado pela qu ímica nas Leçons d ' anatomie compar ée ( a primeira É
\ preciso admitir que esses órgãos só podem existir engendrados
aula e a 24-, t . IV ) e a carta a Lacépè de . Há em Cuvier uma possibili- l uns pelos outros , e que , por causa da conveniê ncia recíproca das
dade de interpretação da fisiologia a partir da química , a de Lavoi- ações nervosas circulatórias , renunciariam a se pertencerem , a es-
sier . Isso remete ao texto de Fourcroy5. tarem juntos em harmonia . Ora , tal hipótese não é absolutamente
Há textos , presentes na Histoire des progrès des sciences natu- admissível, pois , desde que não haja nenhuma harmonia entre os
relles , em que vemos que o princípio das correlações das formas órgãos , a vida cessa . Então , nada de animal , nenhum animal. . . Mas
foi precedido pelo problema das correlações das funções. Esse pro- se , ao contr ário , a vida persiste , é porque todos esses órgãos se
blema é o das relações circulação-respiração . Finalmente , a respi- mantê m em suas usuais e inevitáveis relações e atuam entre si
ração tomou a dianteira por causa de uma teoria da oxigenação que como de hábito , portanto , de conseqüê ncia em conseqüê ncia; isso
introduziu um ponto de vista quantitativo; mas esse ponto de vista porque eles estão encadeados pela mesma ordem de formação ,
foi , a seguir , eliminado. Quanto à moderna fisiologia científica , Cu - submetidos à mesma regra e porque , como tudo aquilo que é com-
vier pôde contribuir para fund á-la pela importância que ele dava à posição animal , eles não poderiam escapar às conseqüê ncias da
qu í mica em sua problemá tica . Mas tive a impressão de que , após universal lei da Natureza: a unidade de composição . ”
ter falado da fisiologia em toda a sua obra , ele de fato a evitou . A Por outro lado , a unidade de composi ção é um modelo transfor -
partir do momento em que a correlação das funções se transforma í macional que permite colocar os problemas de teratologia especial-
em correlação das formas , então , nesse preciso momento , penso i \ mente experimental . Conseq üentemente , a correlação entre os ó r -
que não se pode mais dizer que Cuvier introduz diretamente a fisio- 1
í gãos é justificada funcionalmente pela necessidade de sobrevivê n -
logia . Parece que a fisiologia experimental vai passar lateralmente . cia , e ela pode també m funcionar , independentemente da teoria fi-
F
Com Cuvier , pode-se conceber , com muitas nuan ças - em Dareste e 1 xista , no quadro de regras de desenvolvimento .
em Milne-Edwards seria diferente -, que uma fisiologia comparada Será que o problema das correlações das funções era necessá-
;
se funda . Mas essa fisiologia tende a se orientar para pseudo- rio? Ser á que , de fato , o princí pio das conexões de Geoffroy Saint -
explicações do tipo metaf órico que não tê m muita coisa a ver com a
:
Hilaire não podia preencher a mesma função?
experimentação , da forma como seu estatuto ser á fixado por Clau - Justificarei esse ponto de vista , mantido pelos alunos de Cuvier ,
-
de Bernard . Trata se , nesse caso , de uma experimentação fisiológi-
t- Richard Owen e Milne - Edwards. Do ponto de vista dos especialis-
ca , cujos princípios remontam há muito tempo. r tas em morfologia, anatomia comparada, embriologia etc. , parece
Mesmo que se considere o princípio das correlações como ne- que eles não tinham podido conservar o princípio das correlações Í
cessá rio para passar de uma teoria da espécie pr é-cuvieriana a l tal como Cuvier o havia desenvolvido , exceto em paleontologia.
uma teoria pós-cuvieriana , podemos nos perguntar se esse princí- !
Penso especialmente em Richard Owen . Nele , o abandono do prin-
pio justifica , por si mesmo , o finalismo e o fixismo . De fato , encon- i cípio de correlações funcionais se d á em proveito de uma utilização
trei um texto conjunto de Geoffroy Saint-Hilaire e Latreille sobre a sistemática dos princípios de conexões considerados como princí-
1
M é moire de Laurencet et Meyran ; nessa comunicação , Geoffroy
y

pios heur ísticos em anatomia comparada . E , inclusive , a maneira


-
Saint Hilaire e Latreille retomam o princ ípio das correlações con- M pela qual li as Leçons d ' anatomie comparée , de Richard Owen , e
tra o pr ó prio Cuvier ( in Procè s-Verbaux de l 'Acad é mie des scien- seu livro sobre o arqu é tipo e as homologias do esqueleto vertebra-
ces , 15 de fevereiro de 1830 , t . IX , 1828-1831 , p. 406 ) . O problema do. Existe uma transformação da problemática a partir da taxiono-
consiste em saber se , nos vertebrados e nos invertebrados, lida-se ! mia do século XVIII. Quais as condições dessa transformação , e
com um conjunto muito entrelaçado ou muito combinado . “ Para qual a filosofia que estar á implicada por elas? Penso que os rema-
nejamentos dos princípios que datam do início do sé culo tornaram
5 . ( N .A . ) Syst è me des connaissances chimiques , ano IX. t . X , ps . 363 sq . possíveis outras coisas , alé m da teoria da vida definida por uma in -
À
210 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1970 - A Posição de Cuvier na História da Biologia 211

terioridade . Pois não se pode falar de interioridade quando se lê Durante o século XVIII , um material de observação foi acumulado.
textos como os de Virchow ou de Haeckel e sua escola. F
Esse material desembocou em um ponto de ruptura, do qual Cuvier
2e ) A segunda questão diz respeito à escala dos seres6 . foi o primeiro beneficiário. Pois o conjunto de dados trazidos pelos
Continuo não convencido do problema da escala dos seres , pois especialistas em zoologia, em paleontologia não permitia mais pensar
é preciso distinguir , por um lado , entre o que um certo n ú mero de o mundo vivo no contexto da escala dos seres. Era preciso, portanto ,
autores afirma em um plano teórico e , por outro , os elementos que remanejar . Donde a questão: qual ser á esse sistema de conceitos que
eles recusam a levar em consideração , sobre os quais recusam fa- desembocará no remanejamento mais importante e eficaz no plano
lar , mas que parecem agir em profundidade, obrigando-os a intro- epistemológico? Há o problema de abertura de um novo campo epis-
duzir rupturas , complicações no esquema . Essas complicações do temológico. Existe o problema de como se fará esta abertura. Em Cu -
esquema podem , de qualquer forma , ser consideradas como ele - vier , há elementos ideológicos. Qual o papel desses elementos? Em
mentos de antecipação de rupturas ulteriores . De fato , penso que , que medida esses elementos subtenderam a pesquisa científica? Eles
!;1
no domí nio da neurologia , por exemplo , vocês tiveram um per íodo serviram de obstáculo para essa pesquisa científica?
caracterizado pelo princí pio das localizações , que se desenvolveu M. Foucault : Parece-me que há três questões técnicas sobre as
de uma maneira perfeitamente coerente e sistemática . Mas parece quais se podia debater .
que o aumento do material clínico redundou em complicações da 1-) Uma concerne à possibilidade ou à impossibilidade , a partir
teoria , e que , no momento em que a teoria se tornou de tal forma de Cuvier e de sua biologia , de pensar a história dos seres vivos .
complicada, justamente uma ruptura se produziu , e então um cer - 2- ) O problema da continuidade dos seres e da maneira pela
to n ú mero de autores se pôs de acordo para tentar enfocar esse qual Cuvier concebeu , exorcizou , perseguiu , reutilizou , fragmen -
problema de uma maneira completamente diferente . tou , como se queira , a escala dos seres .
32 ) A relação da biologia de Cuvier com certas ciê ncias conexas e ,
em particular , com a qu ímica.
6 . ( N .A . ) Um texto mimeografado , distribu ído antes da sessão , enunciava a seguinte
questão : Há també m duas séries de questões gerais, metodológicas.
"
O fracionamento da escala dos seres de Cuvier é um fato capital? Em Les mots et P) O problema do mé todo relativo ao pr ó prio funcionamento da
les choses , ps . 284-285. Cf. M é moire concernant l’ animal de l’ hyale , un nouveau história das ciê ncias . E , de in ício , a noção de obstáculo . O que se
genre de mollusques mais intermédiare entre Vhyale et le clio , et l' é tablissement quer dizer quando se diz que Cuvier foi obstáculo a.. . ou que a ca-
d ’ un nouvel ordre dans la classe des mollusques , 1817 , no qual se encontra
desenvolvida a id éia de que os vazios aparentes apenas se devem ao fato de não
deia dos seres foi um obstáculo a . . .?
conhecermos absolutamente todos os seres , Cf . , p. 10 : O pneumoderma : nem 2- ) O problema do indivíduo ou da individualidade. Dizemos o
cefalópode , nem gastrópode , nem acéfalo: tend ência da natureza de utilizar todas as tempo todo: “ Cuvier ” , “ Geoffroy Saint- Hilaire" ou “ Isso passa por
combinações possíveis . Cf . Coleman , G. Cuvier , Zoologist , ps. 172-173. Cuvier" ou “ Isso se encontra nas obras de Cuvier ” . O que é essa
Há a substituição do feixe pela escala em um contexto de plenitude . Essa plenitude curiosa individualização? Como se manipulam os conceitos de au -
surge como uma constante do pensamento de Cuvier . Cf . Daudin , Les classes
zoologiques et Vid ée de série animale, 1926, t. II, p. 249 sq. tores , obras , indivíduos quando se faz história das ciê ncias?
Consequê ncias: a introdução da diferença não é ocasionada de fato por um A ) Examinemos inicialmente o problema da qu ímica .
antagonismo entre , de um lado , a escala de seres e , de outro , a renovação da
combinatória vivente graças às perspectivas abertas pela qu ímica? O pr óprio Cuvier diz que Lavoisier foi um momento muito im-
Por outro lado , se a diferença assim introduzida constitui uma possibilidade de portante nas ciê ncias naturais .
pensar a vida , essa nova possibilidade n ão pertence a uma rede que a confronta com A partir disso , o Sr . Balan coloca os problemas de cálculo e de
o tema da escala dos seres e a concepção do plano em que se baseiam os quantificação; ele se pergunta se não teria havido a tentação em Cu -
morfologistas a partir de Goethe? vier , em um dado momento , a possibilidade aberta de se servir da
Dito de outra forma , temos um espaço fundador de novas oposições ou uma nova
oposição que aparece no interior de uma rede prévia que , por um lado , é tornada qu ímica no interior da biologia , para introduzir os mé todos experi-
insuficiente , mas que , por outro , constitui sempre e por longo tempo um sistema de ï mentais e as análises quantitativas.
ajustes eficazes?”
212 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1970 - A Posição de Cuvier na História da Biologia 213

Farei algumas observações. No texto citado , Cuvier fala de Lavoi- Não se pode definir, sem extrema confusão , que a consideração
sier e de sua importância nas “ ciências naturais ” . É uma coisa com- da qu ímica por Cuvier jamais tenha aberto para ele a possibilidade
pletamente diferente de “ história natural” . As ciências naturais são de uma biologia quantitativa e mensur ável.
uma categoria superior à história natural que comporta a física , a Gostaria de introduzir uma observação sobre esse tema. Na his-
qu ímica , a geografia etc. Lamarck faz inclusive esta distinção. As tória das ciê ncias é preciso fazer uma distinção muito nítida entre
ciê ncias naturais são tudo aquilo que não é matemática. Portanto , dois processos diferentes.
Cuvier pensa em Lavoisier e na química em sua relação não com a Constata-se , às vezes , a introdu ção efetiva de um campo episte-
história natural , mas com as ciê ncias experimentais . Eu aproxima- mológico constitu ído, alé m disso , em um outro campo epistemoló-
rei este texto de outro, em que Cuvier fala de algu é m que foi tão im- gico . Isso se produz , por exemplo , quando o campo epistemológico
portante para a história natural quanto Lavoisier para a qu ímica: relativamente fechado e autónomo , do qual tentei definir os princ í -
Jussieu . Cuvier coloca as ciê ncias naturais no cé u , em geral Lavoi- pios de fechamento e de autonomia , e que se pode chamar de taxio-
sier e Jussieu , Lavoisier na qu ímica e Jussieu na história natural . nomia , tinha sido , até o fim do sé culo XVIII , atravessado , penetra -
Mas a análise do Sr . Balan não poderia ser antecipadamente aceita , do por um outro campo epistemológico constitu ído em um outro
já que ela é relativa ao cálculo da quantificação em Cuvier . lugar , o da anatomia. A interseção dessas duas tramas epistemoló-
Há aí um problema muito importante . De fato , o termo cálculo é gicas diferentes determina um novo discurso , que pode ser caracte-
freqüentemente empregado por Cuvier . O que ele entende por cál- rizado como biologia. Não quero dizer que essa foi a única interfe-
culo? Nos textos do per íodo de 1789-1808 , ele diz que a taxionomia r ê ncia produzida. Que o campo fisiológico , na medida em que ele
calcula a natureza de cada espé cie , a partir do n ú mero de órgãos , existia neste momento , se tenha introduzido é um outro fato. De -
de seu tamanho , de sua forma , de suas conexões e direções . Em ve-se distinguir disso a possibilidade ( dada pela constituição , orga-
Cuvier , cálculo não é um cálculo de quantidade , mas um tipo de nização e distribuição de um campo epistemológico ) de utilizar
cálculo lógico de elementos estruturais variáveis . É um cálculo es- seja geralmente , seja localmente , seja no n ível dos mé todos , seja no
trutural , e não um cálculo quantitativo. Por outro lado , quando Cu- n ível dos conceitos , elementos epistemológicos que funcionam em
vier emprega o vocabulário de quantidade , ele fala em um contexto um outro lugar . Assim , parece-me que a biologia de Cuvier , tal
diferente daquele de cálculo; ele fala disso a propósito dos proces- como ela se constituiu e na medida em que propunha o problema
sos fisiológicos ou químicos da respiração . Mas , para dizer o quê? da respiração , colocava um problema que não poderia deixar de re-
Que a for ça dos movimentos dos vertebrados depende da quanti- correr , em um momento dado , à teoria química . E , nessa medida , a
dade de respiração; que a quantidade de respiração depende da biologia de Cuvier tornava possível , por seus limites , a constituição
quantidade de sangue que chega aos órgãos ; e que a quantidade de de uma bioqu ímica . Mas ela não a realizou .
sangue que chega aos órgãos depende da localização dos órgãos da
respiração e daqueles da circulação . Esses órgãos da circulação
B ) Examinemos agora o problema da escala dos seres .
podem ser duplos. A quantidade de sangue é então importante. Em certos textos teóricos , Cuvier diz que o reinado da cadeia
Eles podem ser simples e a quantidade de sangue é menor . De ma- dos seres está terminado. Essas proposições reflexivas traduzem
neira que quantidade aí é pura apreciação . Trata-se de graus . Há realmente a pr ática efetiva de Cuvier? Elas não são uma espé cie de
mais ou menos movimento , há mais ou menos sangue . Cuvier nun- reivindicação ideal? A pr ática científica de Cuvier não continua a se
ca utilizou medidas para calcular a quantidade . Conseqúentemen- servir , de uma maneira ou de outra , do tema da cadeia dos seres
te , essas tr ês noções por nós associadas: cálculo , quantidade , me- como fio condutor?
dida são em Cuvier muito curiosamente distintas . Temos: Cuvier critica a cadeia dos seres , e não a continuidade . De qual-
l 2 ) um cálculo que é o cálculo estrutural das variáveis orgânicas ; quer forma , ningu é m jamais admitiu , mesmo no â mbito da taxio-
2-) a consideração da quantidade que é , de qualquer forma , uma nomia clássica , uma continuidade efetiva dos seres uns ao lado dos
quantidade apreciativa ; outros . De uma maneira ou de outra , seja pelo viés das catástrofes,
32 ) uma ausê ncia de medida . seja pelo viés de uma perturbação proveniente do meio , admitia-se
214 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1970 - A Posição de Cuvier na História da Biologia 215

sempre algum tipo de descontinuidade. O que Cuvier critica é a do sistema digestivo. Podem-se obter , assim , várias sé ries , sendo
-
afirmação de que todo ser , seja ele qual for desde que ele não seja
o primeiro ou o mais simples , nem o mais complexo , o homem -, é
umas paralelas , enquanto outras se cruzam . De qualquer forma ,
não é possível localizar todas em uma ú nica linha e formar uma sé-
uma passagem; em outros termos, a afirmação de que se pode en- rie ininterrupta. Não se podem percorrer todas , sem descontinui-
contrar , de um lado e de outro, dois vizinhos , simultaneamente dade . Não se tem uma escala , mas uma rede .
imediatos e simé tricos. Cuvier recusa igualmente a idéia de uma Não haveria sentido dizer : antes de Cuvier tudo é contínuo; de-
gradação progressiva - a idéia de que há , entre os seres que se su- pois dele , tudo é descontínuo . Pois a taxionomia clássica admitia
cedem , uma diferen ça constante e de que todos os degraus dessa certas formas de descontinuidade e Cuvier , formas de continui-
escala estão , foram ou poder ão ser ocupados. Enfim , em ú ltimo lu- dade . Mas o que é importante e deve ser determinado é a maneira
gar , Cuvier recusa a idéia de uma sé rie ú nica sobre a qual todos os muito particular e nova pela qual Cuvier joga com o contínuo e o
y
seres, sejam quais forem os crité rios de classificação usados, pode- descontínuo.
riam ser uniformemente dispostos. Eis um exemplo preciso: a maneira pela qual Cuvier chegou a
Há , portanto , em Cuvier uma crítica a tr ês temas: o da passa- definir dois gê neros ao lado do gênero Clio ( hyale e pneumoder -
gem , o da gradação e o da unidade de sé rie. ma ) . O Sr . Balan vê nessa descoberta uma aplicação do velho prin-
Em contrapartida , o conceito do qual Cuvier faz constantemente cípio “ cadeia dos seres” . Estando o gê nero Clio isolado e situado
uso é o de hiato . O que ele entende por hiato? Ele não entende ( e ele vagamente entre os cefalópodes e os gastropodes , Cuvier teria bus-
o diz expressamente ) nem o desaparecimento catastr ófico de cer- cado os indispensáveis intermediários: ele teria tentado reconsti-
tas espécies que teriam assegurado a continuidade de uma cadeia tuir os degraus que permitem preencher a lacuna.
biológica unitá ria, nem a “ disseminação ao acaso” das diferenças . Ora , isso é desconhecer inteiramente o trabalho de Cuvier . O
Por hiato , Cuvier designa: que ele fez de fato?
1£ ) O efeito primeiro do princípio das correlações - se tal órgão Inicialmente , uma declaração de princípio. “ Parece que a nature-
está presente ( ou ausente ) , tais outros devem estar necessariamen- za foi extremamente fecunda para não haver criado nenhuma for -
te presentes ( ou ausentes ) . Não haverá, portanto, uma gradação ma principal sem desdobr á-la sucessivamente em todos os deta-
das espécies apresentando o quadro completo de todas as presen- lhes acessórios dos quais ela é capaz . " Esse texto , apesar da apa-
ças ou ausências possíveis , mas “ pacotes” indissociáveis de pre- r ência , não se refere a uma cadeia contí nua dos seres. Cuvier não
senças ou de ausências . Daí os hiatos da realidade biológica em re- afirma que deva haver , necessariamente , um intermediário entre o
lação ao cálculo abstrato das possibilidades. gastr ópode e o cefalópode . O que ele diz é que existe uma forma , a
2S ) O efeito do princí pio da unidade de plano: cada grande cate- do clio , e essa forma é ú nica , isolada . Ora , a partir do princípio da
goria obedece a um certo plano anatômico e funcional. Uma catego- riqueza da natureza, pode-se afirmar que, quando a natureza ad -
ria diferente seguirá um outro plano. De um ao outro , há toda uma quire uma forma , ela se aproveita variando-a e dando um certo n ú -
reorganização, uma redistribuição. Esses diversos planos não mero de submodelos a esse modelo geral. Não se trata da continui-
constituem uma sé rie linear de transformações pontuais. Os cefa- dade da cadeia , de uma passagem de uma extremidade a outra , de
lópodes , diz Cuvier , não são a passagem de nada para nada. Não se um ponto jogado entre uma margem da natureza e uma outra. Tra-
pode dizer que eles são mais ou menos perfeitos do que isso ou ta-se , simplesmente , de um princípio de preenchimento pela natu -
aquilo . Eles não resultam do desenvolvimento de outros animais e reza da forma que ela se deu . É a saturação de uma ordem em gê ne-
não se desenvolverão em animais mais aperfeiçoados. ros. Encontra-se um animal como o clio , cujo gê nero não se encaixa
32 ) O efeito do princípio de gradações heterogéneas: se é verdade perfeitamente nem nos cefalópodes nem nos gastropodes . Em fun -
que não se pode estabelecer uma escala ú nica e global , é possível, ção do princípio de que a natureza é avara e generosa ( avara no n ú -
no entanto , estabelecer gradações diversas: acompanhar , por mero de formas , generosa na maneira pela qual ela preenche cada
exemplo, através das espécies , o aumento da circulação e da quan-
uma dessas formas ) , devem existir certamente outros gêneros que
tidade de oxigé nio absorvido; ou , ainda, a complexidade crescente
216 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1970 - A Posição de Cuvier na História da Biologia 217

devem preencher esse tipo de forma que se vê aparecer no clio . Eis S. Delorme : Peço à Srta. Corny para expor suas objeções.
o princípio heur ístico de Cuvier . Ele não vai procurar outros gê ne- Y . Conry : l 2 ) Admitir que a cr ítica do darwinismo somente pôde
ros ao lado do clio para preencher essa família que está ainda va- ser feita através dos textos de Cuvier , ou seja , que as condições de
zia , ou ocupada por um gê nero . Ele busca a caracter ística pró pria possibilidade do darwinismo sejam o discurso de Cuvier , deixa
do clio e , fazendo isso , encontra outros dois animais , o hyale e o inexplicados , inclusive ininteligíveis, dois fatos:
pneumoderma , que se encaixam na mesma forma. Eles podem a ) o fato de que o campo discursivo de Darwin seja estranho ao
constituir uma fam ília , assim caracterizada: corpo livre e nadador ; de Cuvier , isto é , que ele tenha sido instaurado e desenvolvido a
li
cabeça distinta e sem outro membro a não ser as nadadeiras. Por- partir de uma problemá tica ecológica e biogeogr áfica;
tanto , o movimento de pesquisa para constituir essa nova família b ) o fato de que uma parte das resistê ncias ao darwinismo tenha
não era destinado a preencher uma lacuna da escala dos seres ; ele sido desenvolvida no pr ó prio âmbito da escola de Cuvier , tão am-
í
piamente quanto se entenda essa escola.
visava a mostrar como a natureza preenche uma forma , a partir do
22) O esquema de desarticulação dos limiares epistemológico e
momento em que ela cria essa forma . Não pode haver um gê nero
ontológico , se é de fato o momento e o lugar de ruptura no pensa-
ú nico em uma ordem - eis o postulado , e não: deve haver um inter -
mento clássico , não é indiferente a uma teoria da evolução? Em OU -
mediá rio entre dois gê neros diferentes. É preciso saturar a ordem , ;
tros termos, o estudo das transformações epistemológicas autoriza
chegar a constituir uma multiplicidade de gê neros que dizem efeti-
a considerar Cuvier como relé de Darwin?
vamente em que consiste a plena realidade da ordem .
M. Foucault: Sua segunda questão: “ como explicar as resistê n -
G. Canguilhem : Gostaria de acrescentar uma palavra sobre a
cias ao darwinismo dos discípulos de Cuvier , como Flourens , por
escala dos seres , relembrando a existê ncia do artigo “ Nature” no
exemplo , se é verdade que Cuvier foi a condição de possibilidade
Dictionnaire des sciences naturelles7 , em que Cuvier utiliza os
do darwinismo?” - toca em um problema de mé todo. N ão penso
tr ês conceitos escolásticos de salto , hiato e vazio , ou seja , os tr ês
que se possa dar o mesmo status , nem fazer funcionar da mesma
conceitos que aparecem nos axiomas que Kant comenta na Meto -
maneira no campo histórico , a resistê ncias que podem ser de n ível
dologia transcendental . Eis o que ele diz : n ão há salto , há hiato -
conceituai e resistê ncias “ arqueológicas” , que se situam no nível
apesar daqueles que dizem , referindo-se à escala dos seres , quan-
das formações discursivas.
do descobrem uma lacuna , que um intermediário deve ser encon-
1 ) Um conceito como o de fixidez das espécies se opõe , termo a
trado . No entanto , multiplicando por 100 o n ú mero das espécies
termo , ao de evolução das espécies e , conseq üentemente , pode lhe
conhecidas , esses vazios continuam a subsistir . O estranho é que
fazer obstáculo .
se possa fazer a Cuvier , por causa de seu suposto aristotelismo , a
2 ) Uma teoria como a de uma natureza em evolu ção histó rica é
cr í tica de pensar de uma maneira escolástica , quando a sua refuta-
oposta àquela de uma natureza criada de uma vez por todas por
ção e suas cr íticas precisamente se dirigiam aos tr ês conceitos fun-
uma mão toda- poderosa e , por esse fato, elas fazem resistê ncia
damentais que a filosofia escolástica utilizava quando se tratava de
uma à outra . Daí, essas duas ordens de resistê ncias não são as
mostrar a continuidade das formas.
mesmas, nem funcionam da mesma maneira. Em um terceiro n í-
J. Piveteau: Agradeço a M . Foucault e a todos aqueles que parti-
vel , que é o das formações discursivas , pode-se falar , igualmente ,
ciparam desse debate .
de fenômenos de resistê ncia. Mas eles são de uma ordem completa-
G. Canguilhem : Agradecemos ao Sr . Piveteau , em nome dos
mente diferente ; eles se desenrolam segundo processos muito dife-
professores e pesquisadores desse instituto , por ter aceito presidir
rentes ( como a resistê ncia de uma história natural , fundamentada
esse debate8.
na análise das caracter ísticas , a uma biologia , baseada na análise
das funções fisiológicas e das estruturas anatômicas ) . Ora , por um
7 . ( N .A . ) T. XXXIV , 1825, p . 261. lado , essa última forma de resistê ncia , apesar de ser mais impor -
8. ( N .A . ) Aqui terminam as exposições e discussões de sexta-feira , 30 de maio , à tante e mais maciça , não acarreta for çosamente as polêmicas mais
tarde. A discussão é remetida para a manh ã do dia seguinte . longas e ruidosas ; e , por outro lado, as duas primeiras formas de
218 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1970 - A Posição de Cuvier na Hist ória da Biologia 219

resistê ncia podem muito bem se produzir no interior de uma só e como ciê ncia integrável à taxionomia. A integração da anatomofi-
mesma formação discursiva . Tentei mostrar , a propósito de Cuvier siologia à taxionomia é realizada por Cuvier . A integração da ecolo-
e de Geoffroy Saint- Hilaire , como a oposição entre eles sobre os cri- gia à biologia é realizada por Darwin . Isso a partir das mesmas con -
té rios de identificação dos segmentos orgânicos tinha uma certa di ções epistemológicas.
condição de possibilidade nessa biologia , da qual eles foram os co- C. Limoges: Nada há aí que contrarie o que a Srta . Conry e eu
fundadores. pensamos. Fiquei bastante satisfeito com esta segunda resposta.
Podemos abordar agora a oposição Darwin-Cuvier e a fun ção de S. Delorme : A segunda questão colocada pelo Sr . Saint-Sernin
rel é que se pode atribuir à biologia de Cuvier na constituição do refere-se à diferença feita por M. Foucault entre fundamentado , í,
darwinismo . natural e real .
O conceito de condição de existê ncia é , sem d úvida , um dos con- M . Foucault : A partir do momento em que se admite um conti - >:

ceitos fundamentais da biologia do início do sé culo XIX. Ele não me nuum de variações de um indivíduo ao outro , os gêneros não po-
parece isomorfo , nem possível de sobrepor aos conceitos de in- dem ser demarcados e existir com limiares perfeitamente delimita -
flu ê ncias ou de meio , tais como podem ser encontrados na história dos . A natureza não isola os gêneros ; ela permite simplesmente , es-
natural do século XVIII . Essas noções estavam , de fato , destinadas tabelecendo regiões de semelhan ças, restabelecer os gê neros que
a dar conta de um suplemento de variedade ; elas concerniam a fa- ser ão bem fundamentados , se eles seguem o campo de semelhan -
tores de diversificação adicional ; serviam para dar conta do fato de ças dos indivíduos de morfologia diferente . Quando Lineu adota
que um tipo pode se transformar em um outro . Em contrapartida , um crité rio simples , constante para todos os vegetais , ele classifica
a noção de condição de existência se refere à impossibilidade even- todos os vegetais no interior do seu sistema . Mas , à medida que to-
tual em que se encontraria um organismo de continuar a viver se mou como variável apenas um pequeno setor do ser vegetal , ele
ele não fosse tal como ele é, ou não estivesse ali onde está: ela se re- classifica dentro da mesma categoria, por terem órgãos sexuais se-
fere ao que constitui o limite entre a vida e a morte . De uma manei-
,
melhantes , seres vivos que ter ão uma apar ê ncia geral diferente .
ra muito geral , o objeto da histó ria natural na é poca clássica é um Conseq üentemente , ele ter á tomado um crité rio de semelhan ça lo-
conjunto de diferen ças que se trata de observar ; no sé culo XIX , o calizada , não levando em conta a sé rie natural das semelhan ças
objeto da biologia é o que é capaz de viver e é suscetível de morrer . globais . É nesse sentido que as categorias de Lineu são arbitr á rias
Essa idéia de que o ser vivo está ligado à possibilidade de morrer e abstratas. O problema para os sucessores de Lineu , os metodis-
remete a dois sistemas possíveis de condições de existê ncia: tas - Jussieu , por exemplo -, era chegar a ter classificações tais que
- condições de existência concebidas como um sistema interno, só encontr ássemos no mesmo gê nero , na mesma classe , vegetais
ou seja , as correlações . Se você lhe retirasse as garras , ou se não que se pareçam efetivamente em todos os aspectos . É o gênero fun-
lhe colocasse dentes perfurantes , ele necessariamente morreria . damentado , em oposição ao gê nero abstrato de Lineu .
Eis a condição de existê ncia interna , e esta implica uma biologia B . Saint- Sernin: Pensei ter compreendido que “ fundamentado ”
que se articula diretamente com a anatomofisiologia ; era o que permitia operar uma repartição conveniente , natural ,
- condições de existência concebidas como ameaça proveniente uma repartição que correspondesse à observação e à experiê ncia .
do meio ou ameaça para o indivíduo de não mais poder viver se M. Foucault : . . .com a observação total das espécies .
esse meio muda. Articula-se a biologia com a análise das relações O real oferecido à intuição é observável como tal por um certo nú-
existentes entre o meio e o ser vivo , ou seja , com a ecologia . mero de procedimentos que podem ser metódicos ou sistemáticos.
A dupla articulação da biologia com a fisiologia , por um lado, e M. -D. Grmek : O esquema que M . Foucault nos propõe , e sua dis-
com a ecologia , por outro , está implícita nas condições de possibili- tin ção de dois limiares principais , é uma construção lógica. A ques-
dade a partir do momento em que se define o ser vivo pelas condi- tão que se coloca é : qual é seu conteú do histórico? E , no quadro
ções de existê ncia e suas possibilidades de morte . desse debate , a obra de Cuvier representa verdadeiramente um
A partir daí vemos que a ecologia , como ciê ncia integrável à bio- corte fundamental no processo de explicação histórica desse es-
logia , tem as mesmas condições de possibilidade do que a fisiologia quema?
220 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1970 - A Posição de Cuvier na História da Biologia 221

É verdade que esses dois limiares propostos - a saber : a passa- modificação relativamente fraco. Pelo contrário , se vocês tomam
gem da espécie ao gênero e do indivíduo à espécie - têm uma reali- Boissier de Sauvages e Bichat, vocês vêem que, em 40 anos, em 25
anos , tudo mudou e muito mais do que em vários séculos. ) Pode se
dade histórica, ou seja , representam há muito tempo um problema
encontrar um outro índice de corte em um fenômeno exatamente
-
que se tenta resolver. Entre par ênteses , eu me espanto que você tenha
chamado o primeiro limiar de “ ontológico” e o segundo de “ epistemo- oposto: o retorno e a repetição; bruscamente um estado de
saber
lógico” ; eu esperava o contrário, pois o primeiro limiar coloca o pro- imita , de alguma forma , um estado anterior . Estes são os sinais de
blema da classificação , e o segundo , o da existência , do ser . Para ul- corte que podem servir de primeiro balizamento . Mas a finalidade
trapassar esses dois limiares , várias soluções têm sido propostas na última da análise não consiste, do meu ponto de vista , em dizer
onde há corte ; consiste , a partir desses fen ô menos curiosos - quer
-
histó ria da biologia . Desde bem cedo , procuraram se quase todas as
de mudan ças bruscas , quer de sobreposições -, em se perguntar
possibilidades lógicas e não vejo o que a obra de Cuvier , do ponto de
vista epistemológico , traz de verdadeiramente novo. em que n ível se situa essa transformação que os tornou possíveis .
Certamente ela traz novidades do ponto de vista da classificação A análise , afinal de contas , não deve assinalar , depois reverenciar
concreta , dos detalhes taxionômicos , mas não há um verdadeiro perpetuamente , um corte ; ela deve descrever uma transformação.
franqueamento dos limiares dos quais você falou . Para a ciê ncia Parece-me que existe uma transformação Cuvier , e que ela era
atual , os dois limiares foram transpostos : para o primeiro limiar , a necessá ria para ir desse estágio de saber caracter ístico da época
solução está nos parentescos filogenéticos, ou seja , na teoria da -
clássica ( tentei defini lo abstratamente pelo esquema dos limiares )
a esse outro estágio de saber que podemos encontrar em Darwin .
evolução , e para o segundo , na gen é tica moderna. Para encontrar a
ruptura histó rica seria necessário buscar a origem dessas duas so- De fato , essa passagem implica uma homogeneização de todas as
luções e , no problema que nos interessa aqui , ver se a obra de Cu - categorias supra-individuais, da variedade à ordem , à classe , à fa-
vier faz parte desse processo de mudan ça radical. m ília ( essa homogeneização encontra-se efetuada , em Cuvier , com
M. Foucault : Não penso que se possa falar , na histó ria das ciê n- exceção da variedade ) ; ela implicava també m que o indivíduo fosse
cias , de mudan ça em termos absolutos . Conforme a maneira pela portador , no n ível das suas estruturas anatomofisiológicas e de
qual classificamos os discursos , o nível pelo qual os abordamos , suas condições internas de existê ncia , daquilo que o faz pertencer
ou a grade de análise que lhes impomos , veremos aparecer conti- ao conjunto de sua espé cie , de seu gê nero , de sua fam ília ( ora , é
nuidades , descontinuidades , constâncias , modificações . Se vocês certamente assim que Cuvier concebe a espécie , o gê nero etc . ) .
seguem a história do conceito de espécie , ou a da teoria da evolu- Para passar do estágio Lineu ao estágio Darwin do saber biológico ,
ção, Cuvier evidentemente não constitui uma mudança. Mas o nível a transformação Cuvier era necessária.
em que me coloco não é o das concepções , das teorias: é o das ope- M .- D . Grmek : Aqueles que fazem uma história das ciê ncias “ his-
rações a partir das quais , em um discurso científico , os objetos po- toriogr áfica” têm necessidade de vinculá-la à história “ epistemol ó-
dem aparecer , os conceitos podem ser postos em pr ática e as teo- gica” . Deve existir uma ligação entre os dois modos de apresenta-
rias podem ser constru ídas . Nesse n ível , podemos observar cortes: ção histó rica. Você deixou de lado a questão que mais toca o histo-
mas , por um lado , eles não coincidem necessariamente com os que riógrafo - ou seja , se uma mudan ça é produzida na solu ção de um
podem ser observados em outros lugares ( por exemplo , no n ível problema , é preciso especificar em que consiste essa mudança ,
dos pr óprios conceitos ou das teorias ) ; e , por outro , eles nem sem- quando e por que ela se produz. No caso que analisamos aqui , ser á
pre ocorrem , de uma maneira visível , na superf ície do discurso . E que Cuvier é o ponto de partida dessa mudança? Para mim , não é .
preciso detectá-los a partir de um certo n ú mero de signos . M. Foucault : O esquema proposto não é destinado a fechar , no
Pode-se encontrar um primeiro índice de corte em uma brusca interior de uma certa condição de existê ncia interna e intranspon í-
mudança afetando o conjunto dos objetos , dos conceitos , das teo- vel , todos os conceitos ou as teorias que puderam ser formadas em
rias que teriam aparecido em um dado momento. ( Assim , pode-se uma determinada época ; por exemplo , entre Lineu e Jussieu h á
dizer de modo geral que os objetos , os conceitos , as teorias médi- uma diferença de mé todos , de conceitos e quase de teorias pelo me-
cas de Hipocrates até o fim do século XVIII tiveram um índice de nos tão grande quanto a diferença existente entre Jussieu e Cuvier .
222 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1970 - A Posição de Cuvier na Hist ória da Biologia 223

Alé m disso , Cuvier repetiu sem cessar que foi Jussieu quem tinha Mas , quando se trata de estudar os estratos discursivos , ou os
descoberto tudo. No nível das distâncias conceituais ou te óricas , campos epistemológicos que compreendem uma pluralidade de
Jussieu está mais pr óximo de Cuvier que de Lineu . A história das conceitos e teorias ( pluralidade simultânea ou sucessiva ) , é evi-
teorias ou dos conceitos poderia estabelecer os encadeamentos e dente que a atribuição ao indivíduo se torna praticamente impos-
as distâncias e mostrar Jussieu muito pr óximo de Cuvier . sível . Da mesma forma, a análise dessas transformações dificil-
Mas meu problema não é esse. É ver como eles foram formados , mente pode ser referida a um indivíduo preciso. Isso porque a
a partir de que e segundo que regras de constituição. Chega-se a coi- transformação passa , em geral , por obras de diferentes indiví -
sas paradoxais: podem-se ter conceitos análogos , teorias isomor - duos e porque essa transformação não é alguma coisa como uma
fas e que , no entanto , obedecessem a sistemas , a regras de forma- descoberta , uma proposição , um pensamento claramente formu -
ção diferentes. Parece- me que a taxionomia de Jussieu é formada lado , explicitamente dado no interior de uma obra , mas a trans-
conforme o mesmo esquema que a de Lineu , embora e à medida formação é constatada , por quem a procura , como posta em açã o
mesmo que ele tenta ultrapassá-lo . Em contrapartida , a biologia de no interior de diferentes textos . De maneira que a descrição que
Cuvier me parece obedecer a outras regras de formação. Uma con- tento fazer deveria se abstrair , no fundo, de qualquer referê ncia a
tinuidade conceituai ou um isomorfismo te órico pode perfeitamen- uma individualidade , ou melhor , deveria retomar , de ponta a pon -
te recobrir um corte arqueológico no nível das regras de formação ta , o problema do autor .
dos objetos , dos conceitos e das teorias. Devo admitir que fiquei embaraçado ( e de um mal-estar que não
-
M. D. Grmek : Na história da biologia , Cuvier representa então pude superar ) já que , em As palavras e as coisas , coloquei em pri-
uma transformação , não uma revolu ção . meiro plano nomes. Eu disse “ Cuvier ” , “ Bopp ” , “ Ricardo ” , quando
M. Foucault : Sobre esse tema , sempre tenho feito economia da tentava de fato utilizar o nome não para designar a totalidade de
palavra revolu ção . Prefiro transformação . uma obra que corresponderia a uma determinada delimitação ,
Encontra -se , por outro lado , um problema metodológico impor - mas para designar uma certa transformação que ocorreu em uma
tante : o da atribuição. determinada época e que podemos ver em ação , em tal momento e
Esse problema não se coloca da mesma maneira em todos os ní- em particular nos textos em questão. O uso que fiz do nome pr ó-
veis. Suponhamos que se chame doxologia o estudo das opiniões de prio em As palavras e as coisas deve ser reformulado , e seria pre-
um ou vá rios indivíduos: o indivíduo é tomado , portanto , como ciso compreender Ricardo ou Bopp não como o nome que permite
constante: a questão é saber se podemos lhe atribuir de fato tal pen- classificar um certo n ú mero de obras , um certo conjunto de opi-
samento , tal formulação, tal texto. Problema de autenticidade . O niões , mas como a sigla de uma transformação , e seria necessário
erro maior é atribuir -lhe o que não lhe pertence , ou , ao contr á rio , dizer a “ transformação Ricardo” , como se diz “ o efeito Ramsay” .
deixar na sombra uma parte daquilo que ele disse , acreditou ou afir- Essa “ transformação Ricardo” , que vocês encontram em Ricardo ,
mou . Não é colocada ( ao menos em primeira instâ ncia ) a questão do quando vocês a reencontrarem em outro lugar , antes ou depois ,
que é um indivíduo , mas do que pode ser atribu ído a ele . isso não tem importância. Pois o meu problema é observar a trans-
Quando fazemos a análise epistemológica de um conceito ou de formação. Dito de outra maneira , o autor não existe .
uma teoria , há todas as chances de nos relacionarmos com um fe- J. -F. Leroy : Do ponto de vista histórico , o nome é um pouco in -
nômeno metaindividual ; e , ao mesmo tempo , é um fenômeno que cómodo.
atravessa e recorta o dom ínio do que pode ser atribu ído a um indi- M . Foucault : Reconhe ço isso de boa vontade . Creio que , tal
víduo. N ós somos levados a deixar de lado, na obra de um autor , como os lógicos e os lingúistas colocam o problema do nome pr ó-
textos que não são pertinentes ( as obras da juventude, os escritos prio , seria necessário, a propósito da histó ria das ciê ncias e da
pessoais , as opiniões emitidas em um momento e rapidamente epistemologia , tentar refletir sobre o uso dos nomes pr óprios . O
abandonadas ) . A partir disso , o que significa o autor? Que uso é fei- que se quer dizer , quando se diz Cuvier , Newton? No fundo , isso
to exatamente do nome pr óprio? O que se designa quando , nessas não é claro. Mesmo em história liter ária , seria necessário fazer
condições , se diz Darwin ou Cuvier? uma teoria do nome pr ó prio .

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224 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1970 - A Posição de Cuvier na História da Biologia 225

F. Dagognet : A expressão “ condições de possibilidade ” , à qual M. Foucault : A formulação é engraçada . Tomado talvez pelo pra-
você se referiu , assume um sentido “ teórico” . Mas ela não pode re - zer que experimento ao ouvi-la , percebo mal o cerne da questão .
ceber uma significação , um conteú do mais material? C. Salomon: . . .Você fala da “ biologia” de Cuvier . Quem diz “ bio-
Por que se passou repentinamente a listar ou a classificar os ani - logia ” tende a operar a passagem ou a ruptura de uma taxionomia
mais? Não é absolutamente para apreendê-los em sua diversidade clássica ( a classificação dos seres vivos ) para uma fisiologia que se
ou para poder representá-los. Não é uma questão de ordem , de di - preocupa com a vida, com um elemento comum à cortiça , ao ele -
vertimento ou de teorização. fante e ao homem , objeto de uma fisiologia celular ou de uma mi-
Pressões político-econ ómicas surdas são exercidas. No século crobiologia.
XVIII , toda a oficina e , através dela , a vida da nação dependem de- Para Cuvier , trata-se de semelhan ças de relações , não de objeto
les , vegetais ou animais . Busca-se escapar a certas sujeições . comum . As correlações são o pró prio objeto da taxionomia , não a
Assim , rapidamente tornaram-se capazes de substituir os “ seme - unidade vital: isso significaria que , em Cuvier , há apenas os seres
lhantes ” por outros , eventualmente pr óximos de n ós e suscetíveis vivos; não há ainda a vida, portanto , não há propriamente falando
dos mesmos “ empregos" ou usos . Uma vantajosa substituição . É uma “ biologia cuvieriana” .
ela que entusiasma e estimula o exame das semelhan ças e a criação M. Foucault : Isso nos remete às condições de existê ncia.
das fam ílias . De fato , descobriu -se o axioma promissor , segundo o B . Balan : As implicações filosóficas do princípio das correla -
qual , no dizer de Lineu e de Jussieu , um “ indivíduo ” não pode en - ções. Esse princípio implicando finalidade não é aquele de onde vai
-
trar em uma categoria ( da qual ele possui , alé m disso , um sinal ca se destacar o conceito de finalidade? :
racter ístico , que autoriza imediatamente a identificação ) sem pos - M . Foucault : Entenda bem . As determinações , as relações que
-
suir todas as suas caracter ísticas fundamentais . E se n ã o as desco tento estabelecer entre as teorias , os conceitos etc . e seus sistemas
brimos é porque não as procuramos bastante ou porque não sou- de formação não impedem , ao contr ário , que um conceito e uma teo-
bemos exprimi-las . Que se as procure novamente . ria possam ser destacados desse sistema . O conceito de organiza -
Assim , tal planta é uma leguminosa : nessas condições , deve-se ção que foi formado no interior da taxionomia clássica , já que é es-
aprender a servir -se dela . Ela deve , de uma maneira ou de outra , sencialmente em torno de Daubenton , de Jussieu que ele ganhou
nutrir . Deve -se , portanto , desenvolver sua produ ção. alcance , foi reutilizado pela biologia .
A partir da í , ser á possível escapar das importações ruinosas ou Parece-me que , no conjunto das análises e pesquisas que focali-
das depend ê ncias onerosas . Em suma , as condições de possibili- zavam essencialmente as classes , parentescos e semelhan ças entre
dade, os agentes das transformações remetem às exigê ncias nacio- os seres vivos , o que caracterizava propriamente o ser vivo era fi-
nais e industriais , a situações efetivas mais do que a preocupações nalmente o crescimento . Aquele que vive é o que cresce e que pode
teóricas ou a exames documentais ou escriturais . As modificações crescer em diferentes direções .
na escrita ou na organização correspondem a necessidades fre- I 2 ) Crescer no tamanho. O ser vivo é aquele que é suscetível de
q ú entemente tecnológicas ou agronómicas , à contingê ncia ou à ne- aumentar de tamanho. O tema era bastante importante para que se
cessidade das coisas . tenha admitido por muito tempo , na histó ria natural , que os mine-
M. Foucault : Se você fala das condições materiais , sociais , eco- rais cresciam e que , portanto , estavam vivos.
nómicas , técnicas de possibilidades , não penso tê-las ignorado. 22 ) Crescer de acordo com a variável do n ú mero. Esse cresci-
Em duas ocasiões - a propósito da psiquiatria e da medicina clíni- mento pela variável do n ú mero é a reprodução. E interessante no-
ca - me ocorreu procurar quais eram as condições de constituição tar que , durante muito tempo , acreditou-se que a reprodução por
e de transformação dessas duas ordens de saber . Dizer que me brotação ou pela sexualidade era , de qualquer forma , um fenôme-
ocupei das palavras às expensas das coisas é falar levianamente . no de crescimento. Não se atribu ía à sexualidade , em seu funciona -
C. Salomon : É legí timo , a propósito de Cuvier , empregar o ter - mento fisiológico , uma independ ê ncia real . Reproduzir -se era au -
mo biologia , na medida em que a biologia se interessa por qualquer mentar , mas não mais no contexto individual e pelo simples cresci -
coisa que é comum à cortiça , ao elefante e ao homem? mento de tamanho. Reproduzir -se era desenvolver -se para alé m de
1970 - A Posição de Cuvier na História da Biologia 227
226 Michel Foucault - Ditos e Escritos

seu pr óprio tamanho, através de uma procriação de novos indiví- 2e ) A sexualidade aparece como função biológica autónoma. Des-
duos. “ Crescei e multiplicai-vos. ” de então , a sexualidade seria preferencialmente considerada como
3-) O crescimento na ordem do ser vivo se situa em uma terceira uma espécie de aparelho suplementar , graças ao qual o indivíduo ,
dimensão , que é aquela não mais do indivíduo , nem mesmo da ge- tendo atingido um certo estágio , passaria para um outro modo de
ração , mas dessa vez do conjunto das espécies. O crescimento se crescimento: não mais o aumento de tamanho , mas a multiplica -
faz como aumento de complexidade. Crescimento da forma que se ção . A sexualidade era uma espécie de alternador de crescimento .
torna cada vez mais complexa . A partir do século XIX, vai se buscar o que ela pode ter de específi-
Dito de outra forma , o ser vivo é aquele que cresce de acordo co em relação ao crescimento . Pesquisa que conduzir á , por um
com a variação do tamanho, do n ú mero e a variabilidade da forma , lado , à descoberta da fusão dos gametas e da redução cromossômi-
ou seja , as tr ês variáveis que servem precisamente para classificar ca ( em um sentido , o contr ário de um crescimento ) e , por outro , à
os indivíduos , para caracterizar as espécies e situar os gê neros. -
idéia desenvolvida por Nussbaum e Weissmann de que o pró- -
prio indivíduo é apenas uma espécie de excrescê ncia sobre a conti-
Pode-se mesmo reconhecer nos naturalistas da época clássicaV

uma quarta variável de crescimento , a da posição no espaço. A me- nuidade da linhagem germinativa . A sexualidade , em vez de apare-
dida que os indivíduos se multiplicam e que se desenrolam as revo-
cer no limite do indivíduo como o momento em que seu crescimen -
lu ções da terra, o embaralhamento das espécies aumenta; indiví-
to se torna proliferação , transforma-se em uma função subjacente
duos , pertencentes a grupos muito diferentes e outrora separados ,
em relação a esse episódio que é o indivíduo.
se misturam , e assim surgem essas hibridações às quais Lineu , no -
3 ) Aparece també m o tema de uma história que não está mais li- !

fim de sua vida , dava grande importâ ncia ; assim , podem nascer ti- gada à continuidade: a partir do momento em que se confrontam , no
pos que , por sua vez , se correspondem etc. tempo , uma vida que não quer morrer e uma morte que ameaça a
Ora , podemos ver que essas quatro variáveis , de acordo com as vida, haver á descontinuidade. Descontinuidade das condições dessa
quais os indivíduos e as espécies crescem , são também , segundo a
luta , desses impasses, dessas fases. É o princípio das condições
história natural , as quatro variáveis segundo as quais podemos ca- anatomofisiológicas; é o tema das transformações e das mutações .
racterizá-los e classificá-los. Tudo isso faz da história natural um
O fato de que se vejam surgir no pensamento do século XIX os te -
mas da morte , da sexualidade e da história parece ser , do meu pon -
edif ício sólido e coerente . Isso implica :
a ) que a vida não se define mais por sua relação com a morte , to de vista , a sanção filosófica da transformação que se havia pro-
mas por sua possibilidade de extensão . A vida é aquilo que conti- duzido no campo das ciê ncias da vida. Essas tr ês noções: Morte ,
nua e se continua ; Sexualidade , História , que eram noções fracas , derivadas , secun -
b ) que essa continuidade não é simplesmente espacial , mas tem-
d árias nos séculos XVII e XVIII , fazem irrupção no campo do pen -
poral; samento do século XIX como noções maiores e autónomas , e pro-
c ) que a sexualidade não é reconhecida em sua especificidade , vocam no domí nio da filosofia um certo n ú mero de “ reações” , no
mas como um fenômeno de crescimento; sentido forte do termo - ou seja , no sentido nietzschiano. O proble-
d ) que a história natural encontra como problema epistemológi- ma de toda uma filosofia nos séculos XIX e XX foi o de recuperar as
noções que haviam acabado de surgir . Diante da irrupção da noção
co maior o da continuidade-aumento , que é també m um dos pro-
de morte , a filosofia reagiu pelo tema de que , antes de tudo, é nor -
blemas da física e da mecânica.
mal que a morte e a vida se confrontem , já que a morte é o cumpri-
A biologia , a partir do século XIX , se caracteriza por um certo
n ú mero de modificações essenciais .
mento da vida , pois é na morte que a vida toma seu sentido e a mor -
1-) O indivíduo não é mais definido tanto pela possibilidade de
te transforma a vida em destino. Ao tema da sexualidade como fun-
crescimento no interior de uma forma dada , mas como uma forma
ção autó noma em relação ao indivíduo ou ao crescimento indivi-
que apenas pode se manter sob condições rigorosas, cujo apaga- dual a filosofia respondeu pelo tema de que a sexualidade não era
mento não é apenas desaparecimento, mas morte ( de acordo com na realidade tão independente do indivíduo, já que , pela sexualida -
um processo que é ele mesmo de ordem biológica ) . de , o indivíduo pode , de qualquer forma , desenvolver -se , ir alé m
228 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1970 - A Posição de Cuvier na História da Biologia 229

dele mesmo , entrar em comunicação com os outros pelo amor , e , é a partir do fim do século XVII que a questão da sexualidade se tor -
com o tempo , por sua descend ê ncia. Quanto à história e à desconti- na essencial.
nuidade a ela associada , é in ú til dizer como e de que maneira o uso S. Delorme : Agradeço ao Instituto de História das Ciê ncias por
de uma determinada forma de dialé tica respondeu a isso , para ter permitido nos reunirmos para conhecer melhor a filosofia de
dar -lhe a unidade de um sentido e reencontrar aí a unidade funda- Cuvier . . . mas també m e sobretudo a filosofia de M . Foucault .
mental de uma consciê ncia livre e de seu projeto. G. Cangiiilhem ; Os pesquisadores e professores do Instituto de
Chamo dc filosofia humanista qualquer filosofia que pretende História das Ciências agradecem aos ouvintes , aos membros da
que a morte é o sentido último da vida. casa e aos visitantes ilustres que aceitaram nosso convite, com o
Filosofia humanista , qualquer filosofia que pensa que a sexuali- pesar , da nossa parte , de que tenham faltado outros visitantes ilus-
dade é feita para amar e proliferar . tres , como os Srs. Jacob e Vuillemin , do Coll è ge de France , que es-
Filosofia humanista , qualquer filosofia que cr ê que a história per ávamos ver aqui , e que se desculparam por motivos de for ça
está ligada à continuidade da consciência. maior . Quero agradecer aos oradores . E para que meus agradeci -
M. -D. Grmek : Admiro o quadro filosófico-histórico que você aca - mentos nã o assumam o ar de uma distribuição de pr é mios , eu lhes
ba de esboçar sobre o grande tema da vida , mas estou incomodado agradecerei na ordem crescente da distâ ncia que eles tiveram que
pelo fato de que , de Aristóteles ao sé culo XIX, as definições da vida , percorrer para chegar até aqui: o Sr . Michel Foucault , de Vincen -
formuladas pelos sábios mais influentes , não levam em conta nem nes; o Sr . François Dagognet, de Lyon; o Sr . Francis Courtes , de
o crescimento nem a sexualidade , mas apelam para outras caracte- Montpellier ; e o Sr . Camille Limoges , de Montreal.
r ísticas consideradas como o quid proprium do fen ômeno vital . Por fim , vocês me permitir ão ter um ú ltimo pensamento para
M. Foucault : Não me coloco no n ível das teorias e dos conceitos , aquele em nome de quem nos reunimos para escutar os Srs. Fou -
mas da maneira pela qual o discurso científico é praticado . Obser - cault , Dagognet , Courtès, Limoges , ou seja , o homem que , em 23 de
vem como efetivamente se distingue o ser vivo do que não é vivo . agosto de 1769 , recebeu para sempre como “ insígnia” o nome de
Observem o que se analisa no ser vivo , o que se destaca no ser vivo seu pai , ou seja , Cuvier .
para fazer disso um problema de história natural : trata-se sempre
de crescimento.
J.-F. Leroy : Nos séculos XVII e XVIII , o fundamental é o cresci-
-
mento ; é ele que permite chegar à noção de biologia ou seja , o
crescimento sob a forma de aumento de tamanho , de multiplica-
ção , de diferenciação.
Isso vai se prolongar por muito tempo , pois o encontramos na teo-
ria da pangê nese em Darwin . Nós o encontramos já em Buffon e ,
durante o século XVIII , tenta-se explicar a evolu ção pela alimenta-
ção e pelo crescimento de tamanho. Compara-se a evolução das es-
pécies à evolu ção dos indivíduos . N ão há d ú vida de que isso é o que
chamo de ponto de vista histórico da biologia antes do século XVIII.
A exposiçã o de M . Foucault foi esclarecedora. Não entendia por
que ele partia da biologia desde Cuvier . Agora , compreendo que ele
d á um determinado sentido à palavra biologia , que nós , biólogos ,
ampliamos. Para n ós , a biologia é alguma coisa mais ampla , e essa
primeira parte da biologia no decorrer da qual a passagem está em
questão faz parte ainda da biologia. É como tal que a biologia, em
um sentido , se define no século XVIII , e em botânica , por exemplo ,
1970 - Theatrum Philosophicum 231

todas em torno desse centro desejado-detestável? Digamos de prefe-


1970 r ência que a filosofia de um discurso é seu diferencial platónico. Um
elemento que está ausente em Platão, mas presente nele? Ainda não
é isso: um elemento cujo efeito de ausê ncia é induzido na sé rie plató-
nica pela existência dessa nova série divergente ( e ele desempenha
Theatrum Philosophicum então , no discurso platónico, a função de um significante simulta-
neamente em excesso e ausente em seu lugar ) ; també m um elemento
do qual a série platónica produz a circulação livre , flutuante , exce-
dente nesse outro discurso. Platão, pai excessivo e faltoso. Você não
"
Theatrum philosophicum" , Critique , n- 282 , novembro de 1970 , ps . 885- 908 . ( So- tentará então especificar uma filosofia pelo caráter do seu antiplato-
bre G . Deleuze , Diff é rence et r é pé tition , Paris , PUF , 1969 , e Logique du sens , Paris ,
Ed . de Minuit , col . “ Critique ” , 1969 . ) nismo ( como uma planta por seus órgãos de reprodu ção ) ; mas você
produzirá uma filosofia distinta, um pouco como se distingue um
fantasma pelo efeito de falta tal como ele se distribui nas duas sé ries
que o constituem , o “ arcaico” e o “ atual” ; e você sonhará com uma
É preciso que eu fale de dois livros que me parecem grandes en- história geral da filosofia que seria uma fantasmática platónica, nao
tre os grandes: Diferença e repetição , Lógica do sentido . Tão gran- absolutamente uma arquitetura de sistemas.
des que , sem d úvida , é dif ícil falar deles e pouco se o fez . Por muito Em todo caso, eis Deleuze1. Seu “ platonismo às avessas” consis-
tempo , acredito , essa obra pairar á acima de nossas cabeças , em te em se deslocar na sé rie platónica e nela fazer emergir um ponto
ressonâ ncia enigmática com a de Klossowski , outro signo maior e notável: a divisão. Platão não distingue imperfeitamente - como o
excessivo . Mas um dia , talvez , o século ser á deleuziano . dizem os aristotélicos - o gê nero “ caçador ” , “ cozinheiro” ou “ políti-
Umas após as outras , eu gostaria de explorar as inú meras vias de co” ; ele não quer saber o que caracteriza propriamente a espécie
acesso em direção ao cerne dessa obra tremenda . A metáfora não “ pescador ” ou “ caçador com rede ” ; ele quer saber quem é o verda-
vale nada, me diz Deleuze: nada de cerne , nada de cerne , mas um deiro caçador . Quem é , e não o que é . Buscar o autêntico , o puro
problema , ou seja , uma distribuição de pontos notáveis ; nenhum ouro. Em vez de subdividir , selecionar e seguir o bom filão; es-
centro , mas sempre descentramentos , mas séries , de uma à outra, colher entre os pretendentes sem distribu í-los conforme suas pro-
com a claudicação de uma presença e de uma ausência - de um ex- priedades cadastrais; submetê-los à prova do arco tenso , que os
cesso , de uma falta. Abandonem o círculo , mau princípio de retorno , descartará a todos, exceto um ( e justamente o sem-nome , o nóma -
abandonem a organização esf é rica do todo: é na reta que o todo re- de ) . Ora , como distinguir entre todos esses falsos ( os assim ditos
torna, a linha reta e labiríntica. Fibrilas e bifurcação ( seria interes- simuladores ) e o verdadeiro ( o sem-mistura , o puro )? Não desco-
sante analisar deleuzianamente as séries maravilhosas de Leiris ) . brindo uma lei do verdadeiro e do falso ( a verdade aqui não se opõe
ao erro, mas ao falso-semblante ) , mas procurando acima de todos
o modelo, um modelo de tal forma puro que a pureza do puro se
Derrubar o platonismo: qual filosofia ainda não o tentou? E se , no parece com ele , o aproxima e pode se comparar a ele ; e existindo
limite , se definisse como filosofia qualquer empreitada, seja ela qual tão intensamente que a vaidade simuladora do falso ser á imediata-
for , para subverter o platonismo? A filosofia começaria então a partir mente destituída como não-ser . Surgindo Ulysses , eterno marido,
de Aristóteles , não , desde Platão , no final do Sofista onde não é mais
os pretendentes se dissipam. Exeunt os simulacros.
Platão teria oposto , se diz , essência e apar ê ncia , mundo de cima
possível distinguir Sócrates do astucioso imitador ; desde os próprios
sofistas que faziam um grande alarde em torno do platonismo nas-
e mundo daqui de baixo , sol da verdade e sombras da caverna ( e a
cente e , com jogos de palavras , ridicularizavam sua futura grandeza.
Todas as filosofias , espécies do gênero “ antiplatoniáceas” ? Cada 1 . ( N .A . ) Diff é rence et ré pé tition , ps . 82-85 e ps . 165- 168: Logique du sens , ps .
uma começaria articulando a grande rejeição? Elas se distribuiriam 292- 300 .
232 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1970 - Theatrum Philosophicum 233

nós caberia restaurar as essê ncias sobre a terra , glorificar nosso da maldade dos sofistas, dos gestos rudes dos cínicos, dos argu -
mundo e localizar no homem o sol da verdade ... ) . Mas Deleuze si- mentos dos estoicos , das quimeras esvoaçantes de Epicuro . Leia-
tua a singularidade de Platão nessa minuciosa triagem , nessa fina mos Diógenes Laé rcio.
operação que precede a descoberta da essê ncia , justamente porque
ela a exige , e que visa a separar , da massa da apar ê ncia , os maus si-
mulacros . Para revirar o platonismo , in ú til , portanto , restituir os
direitos da apar ência , dar -lhe novamente solidez e sentido , aproxi-
Prestemos atenção nos epicuristas , em todos esses efeitos de su
perf ície onde age seu prazer 3: emissões que vê m da profundidade
-
má-la das formas essenciais dando-lhe como espinha dorsal o con- dos corpos e se elevam como farrapos de bruma - fantasmas do in-
ceito; não encorajemos a tí mida a se manter ereta . Tampouco ten- terior , rapidamente reabsorvidos em uma outra profundidade pelo
temos reencontrar o grande gesto solene que estabeleceu de uma olfato , pela boca , pelo apetite; películas absolutamente tê nues que
vez por todas a Id éia inacessível . Abramos de preferê ncia a porta a se destacam da superf ície dos objetos e vê m impor , ao fundo de
todos esses espertalhões que simulam e clamam à porta . E o que nossos olhos , cores e contornos ( epidermes flutuantes, ídolos do
vai entrar então , submergindo a apar ê ncia , rompendo suas alian - olhar ) ; fantasmas do medo e do desejo ( deuses de nuvens no cé u ,
ças com a essê ncia , é o acontecimento ; expulsando a densidade da belo rosto adorado , “ miser ável esperança trazida pelo vento” ) . É
maté ria , o incorpóreo; rompendo o círculo que imita a eternidade , toda essa pujança do impalpável que é preciso pensar hoje: enun-
a insistê ncia intemporal; purificando-se de todas as misturas com ciar uma filosofia do fantasma que não esteja, por intermédio da
a pureza , a singularidade impenetr ável; socorrendo a falsidade do percepção ou da imagem , a serviço de um dado originá rio , mas que
falso-semblante , a pr ópria semelhança do simulacro. O sofista sal- o deixe valer entre as superf ícies com as quais ele se relaciona , na
ta , impondo a Sócrates o desafio de demonstrar que ele é um pre- subversão que faz passar todo o interior para fora e todo o exterior
tendente usurpador . para dentro , na oscilação temporal que o faz sempre se preceder e
Subverter , com Deleuze , o platonismo é se deslocar nele insidio- se seguir , em suma , nisso que Deleuze talvez não permitisse que se
samente , descer um grau e ir até esse pequeno gesto - discreto , chame de sua "materialidade incorpórea” .
mas moral - que exclui o simulacro ; é també m dele se desviar ligei- In ú til , em todo caso , ir buscar por detr ás do fantasma uma ver -
ramente e abrir a porta , à direita e à esquerda , para o falatório ao dade mais verdadeira do que ele e da qual ele seria o signo emba -
lado ; é instaurar uma outra sé rie desarticulada e divergente ; é ralhado ( in ú til , portanto , “ sintomatiz á-lo ” ) ; in ú til també m ligá -lo
constituir , por esse pequeno salto lateral , um paraplatonismo des- de acordo com figuras estáveis e constituir n ú cleos sólidos de
coroado . Converter o platonismo ( um trabalho sé rio ) é fazê-lo incli- convergê ncia aos quais se poderia trazer , como aos objetos idê nti-
nar -se com mais piedade para o real , para o mundo e para o tempo. cos a si mesmos , todos os seus ângulos , fulgura ções , películas ,
Subverter o platonismo é tomá-lo do alto ( distâ ncia vertical da iro- emanações ( nada de “ fenomenologização” ) . É preciso deixá-los
nia ) e apreend ê-lo novamente em sua origem . Perverter o platonis- agir no limite dos corpos ; contra eles , porque eles se colam e se
mo é espreitá-lo até em seu mínimo detalhe , é descer ( conforme a projetam neles , mas també m porque eles os tocam , os cortam , os
gravitação caracter ística do humor ) até esse cabelo , até essa sujeira seccionam , os regionalizam e multiplicam suas superf ícies ; fora
debaixo da unha que não merecem de forma alguma a honra de deles tamb é m , já que eles agem entre eles , segundo leis de proxi -
uma id éia ; é descobrir através disso o descentramento que ele ope- midade , de tor ção , de distância variável , que eles absolutamente
rou para se recentrar em torno do Modelo , do Idê ntico e do Mesmo ; não conhecem . Os fantasmas não prolongam os organismos no
é se descentrar em relação a ele para fazer agir ( como em qualquer imagin á rio ; eles topologizam a materialidade do corpo . É preciso
perversão ) as superf ícies pr óximas. A ironia eleva e subverte; o hu- então libertá-la do dilema verdadeiro-falso, ser -não-ser ( que nã o
mor faz cair e perverte2 . Perverter Platão é deslocar -se na direção passa da repercussão da diferença simulacro-có pia levada ao ex-
2 . ( N .A. ) Sobre a ironia que se eleva e o mergulho do humor , cf . Diff é rence et ré pé-
tition , p. 12 , e Logique du sens , ps. 159-166 . 3. ( N.A. ) Logique du sens , ps. 307 321.
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234 Michel Foucault - Ditos e Escritos :

1970 - Theatrum Philosophicum 235


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tremo ) , e deixá-los dan çar suas danças , fazer suas m í micas , como fs
Acrescentemos que essa sé rie do simulacro liberto se realiza ou
“ extra-seres ” .
se mimetiza em dois cenários privilegiados: a psicanálise que , li-
Lógica do sentido pode ser lido como o livro mais afastado que dando com os fantasmas , dever á ser um dia entendida como pr áti-
se possa conceber da Fenomenologia da percepçã o : aqui , o cor - ca metaf ísica ; e o teatro , o teatro multiplicado , policê nico, simultâ-
po-organismo estava ligado ao mundo por uma rede de significa-
neo , esfacelado em cenas que se ignoram e se fazem signo , e onde
ções originárias que a própria percepção das coisas fazia emergir . sem nada representar ( copiar , imitar ) máscaras dançam , corpos
Em Deleuze , o fantasma forma a incorpórea e impenetr ável super -
gritam , m ãos e dedos gesticulam . E , em cada uma dessas duas no-
f ície do corpo; e é a partir de todo esse trabalho , simultaneamente
vas sé ries divergentes ( ingenuidade em um sentido notável dos que
topológico e cruel , que se constitui alguma coisa que se pretende
acreditaram “ reconciliá-las” , rebatê-las uma sobre a outra , e fabri-
organismo centrado, distribuindo em torno de si o afastamento car o ridículo “ psicodrama” ) , Freud e Artaud se ignoram e entram
progressivo das coisas. Mas Ló gica do sentido deve sobretudo ser em ressonância. A filosofia da representação , do original , da pri-
lido como o mais audacioso , o mais insolente dos tratados de meta-
meira vez , da semelhan ça , da imitação , da fidelidade se dissipa. A
f ísica - com a simples condição de que , em vez de denunciar uma
vez mais a metafísica como esquecimento do ser , lhe dá dessa vez a
flecha do simulacro epicurista , apontada em nossa direção , faz
tarefa de falar do extra -ser . Física : discurso da estrutura ideal dos
nascer , faz renascer um “ fantasma-físico” .
corpos , das misturas , das reações , dos mecanismos do interior e do
exterior ; metaf ísica: discurso da materialidade dos incorpó reos -
dos fantasmas, dos ídolos e dos simulacros . Do outro lado do platonismo , os estoicos . Observando Deleuze
A ilusão é certamente a desgraça da metaf ísica : não absoluta- colocar em cena , um após outro , Epicuro e Zenon , ou Lucr é cio e
mente porque a pr ópria metaf ísica seria dedicada à ilusão , mas Crisipo , n ã o posso me impedir de pensar que seu procedimento é
porque , durante muito tempo , foi assombrada por ela , e porque o rigorosamente freudiano. Ele n ã o se dirige , tambores rufando ,
medo do simulacro a colocou na pista do ilusó rio . Não é a metaf ísi- para o grande Recalcado da filosofia ocidental; ele sublinha, de
ca que é uma ilusão , como uma espé cie em um gê nero ; é a ilusão passagem , as omissões . Assinala as interrupções , as lacunas , as
que é uma metaf ísica , o produto de uma certa metaf ísica que mar - pequenas coisas nã o tão importantes que são neglicenciadas pelo
cou sua separação entre o simulacro , por um lado , e o original e a discurso filosófico . Ele destaca cuidadosamente as omissões pou -
boa có pia , por outro . Houve uma cr í tica cujo papel era designar a co perceptíveis, sabendo claramente que ali se joga o esquecimen -
ilusão metaf ísica e estabelecer a sua necessidade ; a metaf ísica de to desmedido . Tanta pedagogia nos tinha habituado a considerar
Deleuze , no entanto , empreende a cr í tica necessá ria para fazer per - os simulacros epicuristas in ú teis e um pouco pueris . Quanto a
der as ilusões dos fantasmas . A partir de então , o caminho está li- essa famosa batalha do estoicismo , a mesma que ocorreu na vés-
vre para que se persiga , em seu singular ziguezague , a sé rie epicu - pera e ocorrerá amanhã, ela se tornou jogo interminável para as
rista e materialista. Ela não conduz , apesar dela mesma , a uma
escolas . Acho bom que Deleuze tenha retomado todos esses fios
metaf ísica vergonhosa ; conduz alegremente a uma metaf ísica -
estendidos , que ele tenha posto em jogo ali , por sua vez , toda essa
uma metaf ísica liberta da profundidade originária assim como do
rede de discursos , de argumentações , de r é plicas , de paradoxos
ente supremo , mas capaz de pensar o fantasma fora de qualquer
que durante séculos circularam pelo Mediterr âneo. Mais do que
modelo e no jogo das superf ícies ; uma metaf ísica na qual não mais
para maldizer a confusão helen ística , ou para desdenhar da me -
está em questão o Um- Bom , mas a ausência de Deus e os jogos epi-
d érmicos da perversidade. Deus morto e a sodomia como focos da diocridade romana , ou çamos na grande superf ície do impé rio
nova elipse metaf ísica. Se a teologia natural trazia consigo a ilusão tudo o que se diz ; espreitemos o que ocorre : em mil pontos dis-
metaf ísica , e se esta era sempre mais ou menos aparentada à teolo- persos, por todo lado fulguram batalhas , generais assassinados ,
gia natural , a metaf ísica do fantasma gira em torno do ateísmo e da
galeras em chamas , rainhas se envenenando , a vitória que a cada
dia deflagra maior violê ncia amanhã , oActium infinitamente exem -
transgressão . Sade e Bataille e , um pouco mais longe , a palma da
plar , eterno acontecimento.
mão virada em um gesto de defesa que se oferece , Roberte.
1970 - Theatrum Philosophtcum 237
236 Michel Foucault - Ditos e Escritos

Pensar o puro acontecimento é dar -lhe de saída sua metaf ísica4 . e como aquilo que ocorre ( não o processo, não o estado ) . De uma
Ainda é preciso entrar em acordo sobre o que ela deve ser : não ab- maneira exemplar , a morte é o acontecimento de todos os aconteci-
solutamente metaf ísica de uma substâ ncia , que poderia servir de mentos , o sentido em estado puro: seu domínio é a circulação anó-
fundamento para todos os seus acidentes ; de forma alguma metaf í- nima do discurso . Ela é aquilo de que se fala , sempre já acontecida
sica de uma coer ê ncia , que os situaria em um nexus emaranhado e perpetuamente futura , e , no entanto , atinge o ponto extremo da
de causas e efeitos. O acontecimento - a ferida , a vitória-derrota , a singularidade . O sentido-acontecimento é neutro como a morte:
“ Não o té rmino , mas o interminável , não a morte pr ópria, mas uma
morte - é sempre efeito , inteiramente produzido por corpos que se
entrechocam , se misturam ou se separam ; mas esse efeito jamais é morte qualquer , não a verdadeira morte , mas, como diz Kafka , o
da ordem dos corpos: impalpável , inacessível batalha que gira e se escá rnio de seu erro capital. *6 »

repete mil vezes em torno de Fabricio , em cima do pr íncipe Andr é Esse acontecimento-sentido requer , enfim , uma gramá tica di-
ferido. As armas que dilaceram os corpos formam incessantemen- versamente centrada7; pois ele não se situa na proposição como
te o combate incorpóreo . A física se refere às causas; mas os acon- atributo ( estar morto , estar vivo , ficar vermelho ) , mas ele é fixado
tecimentos , que são seus efeitos , não mais lhe pertencem . Imagine- pelo verbo ( morrer , viver , ruborizar ) . Ora , o verbo assim concebi -
mos uma causalidade enlaçada; os corpos , ao se chocarem , ao se do tem duas formas principais em torno das quais as outras se
misturarem , ao sofrerem , provocam em sua superf ície aconteci- distribuem : o presente , que diz o acontecimento , e o infinitivo ,
mentos , que são sem densidade , mistura ou paixão e que , portan- que introduz o sentido na linguagem e o faz circular como esse neu -
to , não podem mais ser causa : eles formam entre si uma outra tra- tro que , no discurso, é isso de que se fala. Não é preciso buscar a
ma , na qual as ligações provêm de uma quase-f ísica dos incorpó- gramática do acontecimento nas flexões temporais ; nem a gramá -
tica do sentido em uma análise fictícia do tipo: “ viver estar
reos , da metaf ísica.
5 vivo" ; a gramá tica do sentido -acontecimento gira em torno de dois
O acontecimento també m exige uma lógica mais complexa . O
acontecimento não é um estado de coisas que poderia servir de re -
pólos dissimé tricos e claudicantes : modo infinitivo - tempo pre-
ferente a uma proposição ( o fato de estar morto é um estado de coi- sente . O sentido-acontecimento sempre é simultaneamente o limi-
sas em relação ao qual uma asserção pode ser verdadeira ou falsa ; te deslocado do presente e a eterna repetição do infinitivo. Morrer
morrer é um puro acontecimento que jamais verifica nada ) . E pre- jamais se localiza na densidade de nenhum momento , mas por
ciso substituir a lógica ternária , tradicionalmente centrada no refe - seu limite móvel partilha infinitamente do mais breve instante ;
rente , por um jogo de quatro termos . “ Marco Antônio está morto” morrer é ainda menor do que o momento de pensá-lo ; e , de um
designa um estado de coisas ; exprime uma opinião ou a cren ça lado e do outro dessa fenda sem densidade , morrer infinitamente
que tenho ; significa uma afirmação; e , por outro lado , tem um sen- se repete . Eterno presente? Apenas com a condição de conceber o
tido : o “ morrer " . Sentido impalpável , do qual uma face está voltada presente sem plenitude e o eterno sem unidade : Eternidade ( m ú l -
para as coisas , já que “ morrer ” ocorre , como acontecimento , a An- tipla ) do presente ( deslocado ) .
tônio , e a outra , para a proposição , pois morrer é o que se diz de Resumamos: no limite dos corpos densos , o acontecimento é um
Antô nio em um enunciado. Morrer : dimensão da proposição , efeito incorpóreo ( superf ície metafísica ) ; na superf ície das coisas e das pa-
incorpóreo produzido pela espada , sentido e acontecimento , ponto lavras , o incorpóreo acontecimento é o sentido da proposição ( di-
sem densidade nem corpo que é aquilo de que se fala e que percor - mensão lógica ) ; no desenrolar do discurso , o incorpóreo senti-
re a superf ície das coisas . Mais do que encerrar o sentido em um do-acontecimento é fixado pelo verbo ( ponto infinitivo do presente ) .
n ú cleo noemá tico que forma o cerne do objeto cognoscível , deixe- Houve , mais ou menos recentemente , acredito , tr ês grandes ten-
mo-lo flutuar no limite das coisas e das palavras como aquilo que tativas para pensar o acontecimento: o neopositivismo , a fenome-
se diz da coisa ( não aquilo que lhe é atribu ído , não a pr ópria coisa )
6. ( N .A . ) Blanchot ( M . ) , L’ espace litté raire , citado em Diff é rence et ré pé tition , p.
4 . ( N.A. ) Cf . Logique du sens , ps. 13-21. 149. Cf . também Logique du sens , ps . 175 179. -
5. ( N .A . ) Cf . Logique du sens , ps. 22 -35 . 7. ( N .A . ) Cf. Logique du sens , ps. 212-216 .
238 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1970 - Theatrum Philosophicum 239

das significações e do sujeito ) , um pensamento do presente infini-


nologia e a filosofia da história. Mas o neopositivismo fracassou no
tivo ( e nã o a emergê ncia do futuro conceituai na essê ncia do pas-
pró prio nível do acontecimento; confundindo-o logicamente com
um estado de coisas, ele foi obrigado a enterr á-lo na densidade dos sado ) , eis o que Deleuze , me parece , nos propõe para suspender a
tripla sujeição em que o acontecimento, ainda em nossos dias , é
.
corpos, a fazer dele um processo material e a associá-lo mais ou
menos explicitamente , a um fisicalismo ("esquizoidemente ” , ele re- mantido .
duzia a superf ície à profundidade ) ; e , na ordem da gramática , ele
deslocava o acontecimento para o lado do atributo . A fenomenolo-
gia , por sua vez , deslocou o acontecimento na direção do sentido : E preciso articular agora a sé rie do acontecimento e a do fantas-
ou ela colocava o acontecimento bruto na frente e à parte - rochedo ma. Do incorpóreo e do impalpável. Da batalha e da morte que sub -
da facticidade , inércia muda das ocorrências -, e então ela o sub- sistem e insistem , e do ídolo desejável que flutua no ar : para além
metia ao ágil trabalho do sentido que escava e elabora ; ou então ela do choque das armas , de forma alguma no fundo do coração dos
supunha uma significação prévia que , totalmente em torno do eu , homens , mas acima de suas cabeças , a sorte e o desejo . Não abso-
já teria disposto o mundo , traçando as vias e os lugares privilegia- lutamente que eles convirjam , em um ponto que lhes seria comum ,
dos , indicando por antecipação onde o acontecimento poderia se em qualquer acontecimento fantasmático ou na origem primá ria
produzir e que cara ele assumiria. Ou o gato que , com bom senso , de um simulacro. O acontecimento é o que sempre falta à sé rie do
precede o sorriso; ou o sentido comum do sorriso, que se antecipa fantasma - falta na qual se indica sua repetição sem original , fora
ao gato. Ou Sartre , ou Merleau-Ponty. Para eles , o sentido jamais de qualquer imitação e livre das imposições da semelhança. Dissi-
coincidia com o acontecimento. Donde , em todo caso , uma lógica mulação , portanto , da repetição , máscaras sempre singulares que
da significação, uma gramática da primeira pessoa , uma metaf ísica nada recobrem , simulacros sem dissimulação , heterogé neos ouro-
da consciência. Quanto à filosofia da história, ela volta a confinar o péis sobre uma inexistente nudez , pura diferença .
acontecimento no ciclo do tempo . Seu erro é gramatical ; ela faz do Quanto ao fantasma , ele é "excessivo" na singularidade do acon-
presente uma figura enquadrada pelo futuro e pelo passado; o pre- tecimento; mas esse "excesso” não designa um suplemento imagi-
sente é outra vez futuro que já se delineava em sua pr ópria forma ; é ná rio que viria se prender à realidade nua do fato ; ele tampouco
o passado a advir que conserva a identidade de seu conte ú do . Ela constitui uma espécie de generalidade embrionária da qual emergi -
exige portanto, por um lado , uma lógica da essência ( que a estabe- ria , pouco a pouco , toda a organização do conceito . A morte ou a
lece como memória ) e do conceito ( que a estabelece como saber do batalha como fantasma não é a velha imagem da morte pairando
futuro ) e , por outro , uma metaf ísica coerente e coroada do cosmo , sobre o estú pido acidente , nem o futuro conceito de batalha já ad -
do mundo em hierarquia. ministrando secretamente todo esse tumulto desordenado ; é a ba-
Tr ês filosofias , portanto , que fracassam em relação ao aconte- talha fulgurante de um golpe ao outro , a morte repetindo perpetua-
cimento. A primeira , a pretexto de que nada se pode dizer sobre o mente esse golpe que ela implica e que ocorre de uma vez por to-
que está "fora” do mundo , rejeita a pura superfície do aconteci- das . O fantasma , como encenação do acontecimento ( ausente ) e de
mento , e pretende encerr á -lo à for ça - como um referente - na ple- sua repetição , não deve receber a individualidade como forma ( for -
nitude esfé rica do mundo. A segunda , a pretexto de que só há sig- ma inferior ao conceito e , portanto , informal ) , nem a realidade
nificação para a consciê ncia , localiza o acontecimento fora e an- como medida ( uma realidade que imitaria uma imagem ) ; ele se diz
tes , ou dentro e depois , situando-o sempre em relação ao cí rculo como a universal singularidade: morrer , lutar , vencer , ser vencido .
do eu . A terceira , a pretexto de que só há acontecimento no tempo , Lógica do sentido nos diz como pensar o acontecimento e o fan-
define sua identidade e o submete a uma ordem bem centrada. O tasma , sua dupla afirmação disjunta , sua disjunção afirmada. De-
mundo , o eu e Deus , esfera , cí rculo e centro: tripla condição para I terminar o acontecimento a partir do conceito , suprimindo qual-
não poder pensar o acontecimento. Uma metaf ísica do aconteci- quer importância à repetição , é talvez o que se poderia chamar de
mento incorpóreo ( irredutível, portanto, a uma física do mundo ) , conhecer ; comparar o fantasma com a realidade, procurando sua
uma lógica do sentido neutro ( mais do que uma fenomenologia origem , é julgar . A filosofia tentou fazer ambas as coisas , desejan -
240 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1970 - Theatrum Philosophicum 241

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do-se ciê ncia , produzindo se como cr ítica . Pensar seria , ao contr á- análise freudiana do fantasma. O que é pensar? Ouçamos os estoicos ,
rio , fazer agir o fantasma na mí mica que uma vez o produziu ; seria que nos dizem como pode haver pensamento do pensado ; leiamos
tornar o acontecimento infinito , para que ele se repita como o sin- Freud , que nos diz como o pensamento pode pensar. Talvez alcance-
gular universal. Pensar de forma absoluta seria , portanto, pensar o mos aqui, pela primeira vez, uma teoria do pensamento que esteja to-
acontecimento e o fantasma . Ainda não é dizer o bastante : pois , se
talmente desvencilhada do sujeito e do objeto. Pensamento-aconteci-
o papel do pensamento é produzir teatralmente o fantasma , e repe-
mento tão singular quanto um lance de dados; pensamento-fantasma
tir o acontecimento universal em seu ponto extremo e singular , o
que não procura o verdadeiro, mas repete o pensamento.
que ser á esse pr óprio pensamento senão o acontecimento que
Em todo caso , se entende por que a boca retorna sem cessar , da
ocorre no fantasma , e a fantasmática repetição do acontecimento
primeira à última página de Lógica do sentido . Boca pela qual , í
ausente? Fantasma e acontecimento , afirmados em disjunção , são como Zenon bem sabia , passavam as “ carroças” da amamentação ,
o pensado e o pensamento; eles situam , na superfície dos corpos , tanto quanto as “ carretas” do sentido. ("Se você diz carroça, uma
o extra-ser que unicamente o pensamento pode pensar ; e delineiam
carroça passa pela sua boca . ” ) Boca , orif ício, canal por onde a crian -
o acontecimento topológico onde se forma o pr ó prio pensamento .
O pensamento tem a pensar aquilo que o forma , e se forma do que
ça engole* os simulacros, os membros despedaçados, os corpos sem
ele pensa. A dualidade cr ítica-conhecimento torna-se totalmente órgão ; boca onde se articulam as profundidades e as superfícies.
in ú til: o pensamento diz o que ele é.
Boca por onde també m cai a voz do outro, fazendo flutuar sobre a
crian ça os grandes ídolos , formando o superego. Boca onde os gritos
Essa fórmula , no entanto , é perigosa. Ela conota a adequação e
deixa imaginar uma vez mais o objeto id ê ntico ao sujeito. Ele não o é se recortam em fonemas, em morfemas, em semantemas: boca onde
de forma alguma . Que o pensado forme o pensamento implica , pelo a profundidade de um corpo oral se separa do sentido incorpóreo .
contrário , uma dupla dissociação : a de um sujeito central e funda- Nessa boca aberta , nessa voz alimentar , a génese da linguagem , a
dor , ao qual ocorreriam , de uma vez por todas , os acontecimentos ,
formação do sentido e a fulguração do pensamento fazem passar
suas sé ries divergentes8. Gostaria de falar do fonocentrismo rigoro-
enquanto ele desdobraria em torno dele significações ; e a de um ob-
so de Deleuze , se não se tratasse de um perpétuo fonodescentra-
jeto , que seria o foco e o lugar de convergência das formas que se re-
mento. Que Deleuze receba a homenagem do gramático fantástico,
conhecem e dos atributos que se afirmam. É preciso conceber a li-
do sombrio precursor que situou os pontos notáveis desse descen-
nha infinita e reta que , longe de conter em si os acontecimentos ,
como um fio seus nós , corta a cada instante e o recorta tantas vezes tramento:
- os dentes , a boca
que qualquer acontecimento parece ao mesmo tempo incorpóreo e
- os dentes a embucham
infinitamente m últiplo: é preciso conceber não o sujeito sintetizan-
- ajudando a boca
te-sintetizado , mas essa intransponível fenda ; alé m disso , é preciso
- indecê ncias na boca
conceber a série, sem ancoramento originário dos simulacros, dos
- leite na boca etc . * *
ídolos , dos fantasmas que , na dualidade temporal em que eles se
constituem , estão sempre de um lado e do outro da fenda, de onde
eles se fazem signo e passam a existir como signos. Fenda do Eu e * ( N .T . ) Possível jogo de palavras possibilitado pelo verbo entonner , que tem dois
sé rie de pontos significantes não formam essa unidade que permiti- significados: entoar e entornar na boca .
ria ao pensamento ser ao mesmo tempo sujeito e objeto; mas eles * * ( N .T. ) Jogo de palavras possível em francês pela homofonia entre: les dents , l 'aidant
pr óprios são o acontecimento do pensamento e o incorpóreo do pen- [ aider , v.) laides e lait E ainda entre la bouche e la bouchent (boucher , v. ):

sado , o pensado como problema ( multiplicidade de pontos disper - - les dents , la bouche ;
- les dents la bouchent ;
sos ) e o pensamento como mímica ( repetição sem modelo ) . - Vaidant la bouche ;
Eis por que Lógica do sentido poderia ter como subtítulo : o que é - laides en la bouche ;
pensar? Questão que Deleuze escreve duas vezes ao longo de seu li- - lait dans la bouche etc.
vro: no texto sobre a lógica estoica do incorpóreo e naquele sobre a -
8. ( N .A. ) Sobre esse tema , 1er particularmente Logique du sens , ps. 217 267. O que
eu disse é apenas uma alusão a essas an álises esplêndidas.
242 Michel Foucault - Ditos e Escritos
1970 - Theatrum Phllosophicum 243

Lógica do sentido nos permite pensar aquilo que a filosofia ti- crenças. .. Mas quais? A tirania de uma vontade boa, a obrigação de
nha deixado em compasso de espera por tantos séculos: o aconte- pensar “ em comum ” com os outros, o domínio do modelo pedagó-
cimento ( assimilado ao conceito , do qual, a seguir , se tentava em gico , e sobretudo a exclusão da tolice , eis toda a vilania moral do
vão extraí-lo sob as formas dofato , verificando uma proposição , do pensamento , da qual seria fácil sem d úvida decifrar o jogo em nos-
vivido , modalidade do sujeito , do concreto , conteú do empírico da sa sociedade . E preciso nos libertarmos disso. Ora , ao perverter
história ) e o fantasma ( reduzido ao nome do real e situado no extre- essa moral , é toda a filosofia que se desloca.
mo fim , na direção do polo patológico de uma seqüê ncia normati- Tomemos a diferen ça. Ela é analisada habitualmente como a di-
va: percepção-imagem-lembrança-ilusão ) . Afinal de contas , o que feren ça de ou em alguma coisa ; por trás dela , alé m dela - mas para
existir á de mais importante para se pensar , nesse século XX, do sustentá-la, situá-la, delimitá-la e , portanto , dominá-la - coloca-se ,
que o acontecimento e o fantasma? com o conceito, a unidade de um gênero que se supõe que ela fracio-
Homenagens sejam prestadas a Deleuze . Ele não retomou o slo- ne em espécies ( domí nio orgânico do conceito aristotélico ) ; a dife-
gan que nos cansa : Freud com Marx , Marx com Freud , e todos os rença se transforma então no que deve ser especificado no interior
dois , se lhes agrada , conosco . Ele analisou claramente o essencial do conceito , sem ultrapassá-lo. E , no entanto , acima das espécies ,
para pensar o fantasma e o acontecimento. Não procurou reconci- há todo um fervilhamento de indivíduos: essa diversidade inco-
liá-los ( ampliar o limite extremo do acontecimento com qualquer mensurável , que escapa à qualquer especificação e ultrapassa o
consistê ncia imaginária de um fantasma ; ou preencher a flutuação conceito , o que ela ser á senão o ressurgimento da repetição? Abai-
do fantasma adicionando um grão de história real ) . Ele descobriu a xo das espécies ovinas nada mais há a fazer do que contar carneiri-
filosofia que permite afirmá-los a ambos disjuntamente. Essa filo- nhos. Eis então a primeira forma de assujeitamento. a diferença
*

sofia , antes mesmo de Lógica do sentido , Deleuze a havia formula- como especificação ( no conceito ) , a repetição como indiferenciação
do , com uma aud ácia totalmente desprotegida , em Diferença e re - dos indivíduos ( fora do conceito ) . Mas assujeitamento a qu ê? Ao
peti ção . Precisamos agora retornar a esse livro. senso comum que , desviando-se da transformação louca e da anár -
quica diferença, sabe , em todos os lugares e da mesma forma em
todos , reconhecer o que é id êntico; o sentido comum extrai a gene-
ralidade de um objeto, no momento mesmo em que , por um pacto
Em vez de denunciar o grande esquecimento que o Ocidente te-
ria inaugurado , Deleuze , com uma paciê ncia de genealogista nie-
de boa vontade , ele estabelece a universalidade do sujeito do co-
tzschiano , aponta todo um cortejo de pequenas impurezas, de mes- nhecimento. Mas se , justamente , deixássemos agir a vontade má?
quinhos compromissos9. Ele acua as minúsculas , as repetitivas Se o pensamento ultrapassasse o senso comum e não quisesse
mais pensar a não ser no ponto extremo de sua singularidade? Se ,
fraquezas , todos esses traços de tolice , de vaidade , de complacê n-
cia que não cessam de nutrir , nos dias de hoje , o champignon filo- mais do que admitir complacentemente sua cidadania na doxa , ele
sófico . “ Ridículas radículas” , diria Leiris. Todos temos bom senso; praticasse cruelmente o viés do paradoxo? Se , em vez de procurar
podemos nos enganar , mas ningu é m é imbecil ( ningu é m entre nós, o comum sob a diferença , ele pensasse diferenciadamente a dife-
certamente ) ; sem boa vontade , não há pensamento; qualquer ver - ren ça? Esta , então , não seria mais uma característica relativamen-
dadeiro problema deve ter uma solução , pois pertencemos à escola te geral trabalhando a generalidade do conceito, ela seria - pensa-
de um mestre que só pergunta a partir das respostas inteiramente mento diferente e pensamento da diferença - um puro aconteci-
escritas em seu caderno; o mundo é nossa sala de aula. ínfimas mento. Quanto à repetição, ela não mais seria a morna ondulação
do id ê ntico , mas diferença deslocada. Desvencilhado da boa vonta-
de e da administração de um senso comum que divide e caracteri -
9 . ( N .A. ) Todo esse par ágrafo percorre , em uma ordem diferente do próprio texto ,
alguns dos temas que se cruzam em Diferença e repetição. Tenho consciência de
za , o pensamento não constr ói mais o conceito , ele produz um sen -
ter , sem d úvida , deslocado as ênfases , negligenciado sobretudo as inesgotáveis tido-acontecimento repetindo um fantasma. A vontade moralmente
riquezas . Reconstru í um dos modelos possíveis. Eis por que n ão indicarei referên - boa de pensar conforme o senso comum tinha no fundo a função de
cias precisas . proteger o pensamento de sua “ genitalidade ” singular .
244 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1970 - Theatrum Phtlosophicum 245

Mas retornemos ao funcionamento do conceito. Para que ele vermelho e do verde ( a partir da prova negativa da recognição ) ; fi-
possa domesticar a diferença, é preciso que a percepção , no cerne nalmente, a posição exc íusiua do vermelho e do verde ( no quadro
do que se chama o diverso, apreenda as semelhanças globais ( que em que se especifica o g ê nero cor ) . Assim , pela terceira vez , por é m
ser ão a seguir decompostas em diferenças e identidades parciais ) ; mais radicalmente ainda , a diferen ça se encontra dominada por
é preciso que cada nova representação seja acompanhada de repre- um sistema que é o do oposicional , do negativo e do contraditório.
sentações que revelem todas as semelhanças ; e , nesse espaço da u Para que a diferen ça ocorresse , foi preciso que o mesmo fosse divi-
representação ( sensação-imagem-lembrança ) , o semelhante ser á dido pela contradição ; foi preciso que sua identidade infinita fosse
submetido à prova da equalização quantitativa e ao exame das H limitada pelo não-ser ; foi preciso que sua positividade sem deter -
quantidades graduadas; o imenso quadro das diferen ças mensurá- minação fosse trabalhada pelo negativo . À supremacia do mesmo ,
I •

veis será constituído. E , no canto do gr áfico , lá onde , em abscissas , 1 a diferen ça só chegou por essas mediações . Quanto ao repetitivo ,
o menor desn ível das quantidades encontra a menor variação qua- ele se produz justamente ali onde a mediação apenas esboçada re-
litativa , no ponto zero , encontramos a semelhança perfeita, a exata m í:
cai sobre si mesma ; quando , em vez de dizer não , ela pronuncia
repetição . A repetição que , no conceito , era somente a vibração in- m . duas vezes o mesmo sim , e em vez de repartir as oposições em um
sistente do idêntico, torna-se na representação o princípio de orde- sistema de conclusões ela retorna perpetuamente para a mesma
ï
namento do semelhante . Mas quem reconhece o semelhante , o exa- T ?I posição. A repetição denuncia a fraqueza do mesmo no momento
l
tamente semelhante , depois o menos semelhante - o maior e o me- em que ele não é mais capaz de se negar no outro e de ali se redes-
nor , o mais claro e o mais obscuro? O bom senso. É ele que reco- cobrir . Ela , que tinha sido pura exterioridade , pura figura de ori -
nhece , estabelece as equivalê ncias , avalia as decalagens, mede as gem , se transforma em fraqueza interna , falha da finitude , espécie
distâncias , assimila e reparte , ele é a coisa mais compartilhada do de gagueira do negativo: a neurose da dialé tica . Pois é à dialé tica
mundo. É o bom senso que reina na filosofia da representação . Per- que a filosofia da representação levava .
vertamos o bom senso, e façamos jogar o pensamento fora do qua- E , no entanto , como não reconhecer em Hegel o filósofo das
dro ordenado das semelhanças; ele então aparece como a dimen- grandes diferenças, frente a Leibniz , pensador das pequenas dife-
são vertical de intensidades ; pois a intensidade , bem antes de ser renças? Na verdade , a dialé tica não libera o diferente; ela garante ,
graduada pela representação, é em si mesma uma pura diferença , ao contr ário , que ele ser á sempre recapturado. A soberania dialé ti-
diferença que se desloca e se repete , diferença que se contrai ou se ca do mesmo consiste em deixá-lo ser , mas sob a lei do negativo ,
expande , ponto singular que encerra ou descerra, em seu aconteci- como o momento do não-ser . Acredita-se ver resplandecer a sub-
mento agudo, indefinidas repetições. É preciso pensar o pensa- $ versão do Outro , mas em segredo a contradição trabalha para a
mento como intensa irregularidade. Dissolu ção do eu . preservação do id êntico. Ser á preciso lembrar a origem invariavel-
Por um instante ainda , deixemos valer o quadro da representa- mente pedagógica da dialética? O que sem parar a relança , fazendo
ção . Na origem dos eixos, a semelhança perfeita; depois se escalo- renascer perpetuamente a aporia do ser e do não-ser , é a tímida in -
nando , as diferenças, assim como tantas ínfimas semelhanças , de terrogação escolar , o diálogo fictício do aluno: “ Isso é vermelho ;
identidades distintas; a diferença se estabelece quando a represen- aquilo não é vermelho . Agora é dia? Não , agora é noite. ” No crep ús-
tação efetivamente não mais apresenta o que tinha estado presente , culo da noite de outubro, o pássaro de Minerva não voa bastante
e o teste do reconhecimento é colocado em cheque. Para ser dife- alto: “ Escrevam , escrevam , crocita ele , amanhã de manhã , não ser á
rente é preciso inicialmente não ser o mesmo , e é sobre esse fundo mais noite . ”
negativo , acima dessa parte sombria que delimita o mesmo, que Para liberar a diferença é preciso um pensamento sem contradi -
são em seguida articulados os predicados opostos. Na filosofia da ção , sem dialética , sem negação : um pensamento que diga sim à di-
representação , a relação de dois predicados, como vermelho/ver- vergência; um pensamento afirmativo cujo instrumento é a disjun-
de , é meramente o nível mais elevado de uma construção comple- ção ; um pensamento do m últiplo - da multiplicidade dispersa e nó-
xa : no nível mais profundo reina a contradição entre vermelho-não made que não é limitada nem confinada pelas imposições do mes-
vermelho ( ao modo de ser-ndo-ser ) ; acima , a não-identidade do mo ; um pensamento que não obedece ao modelo escolar ( que tru -
246 Michel Foucault - Ditos e Escritos -
1970 Theatrum Philosophicum 247

que a resposta pronta ) , mas que se dedica a insol úveis problemas ; Scot pensava que o ser era neutro , e Spinoza , substância; tanto
ou seja , a uma multiplicidade de pontos notáveis que se desloca à para um como para o outro, a eliminação das categorias, a afirma
ção de que o ser se diz da mesma maneira que todas as coisas , sem
-
medida que se distinguem as suas condições e que insiste , subsiste
em um jogo de repetições. Longe de ser a imagem ainda incompleta d úvida , não tinha outra finalidade senão manter , a cada
instante , a
e embaralhada de uma Id éia que , lá de cima , eterna, deteria a res- unidade do ser . Imaginemos pelo contr ário uma ontologia em que o
posta , o problema é a pr ópria id éia , ou melhor , a Id é ia não tem ou- ser se diria da mesma maneira que todas as diferenças , mas ape
nas diria diferenças; portanto, as coisas não seriam todas recober-
-
tro modo de ser senão o problemático: pluralidade distinta cuja
obscuridade sempre insiste de antemão , e na qual a questão não tas , como em Duns Scot , pela grande abstração monocromática do
cessa de se deslocar . Qual é a resposta para a questão? O proble- ser , e os modos spinozistas não girariam em torno da unidade
ma . Como resolver o problema? Deslocando a questão. O proble- substancial ; as diferenças girariam em torno delas mesmas , o ser
ma escapa à lógica do terceiro exclu ído, já que ele é uma multiplici- se dizendo , da mesma maneira , em todas , o ser não sendo absolu -
dade dispersa: ele não se resolver á pela clareza de distinção da tamente a unidade que as guia e as distribui, mas sua repetição
idéia cartesiana , já que ele é uma id éia distinta-obscura ; ele deso- como diferen ças. Em Deleuze , a univocidade não categórica do ser
bedece seriamente ao negativo hegeliano, pois é uma afirmação não vincula diretamente o múltiplo à própria unidade ( neutralida-
m ú ltipla ; ele não está submetido à contradição ser -não-ser , ele é de universal do ser ou for ça expressiva da substância ) ; ela faz jogar
o ser como aquilo que se diz repetitivamente da diferen ça ; o ser é o
ser. É preciso antes pensar problematicamente do que interrogar e
responder dialeticamente .
retornar da diferença , sem que haja diferença na maneira de dizer
o ser . Este não se distribui absolutamente em regiões: o real não se
As condições para pensar diferença e repetição assumem , como
subordina ao possível; o contingente não se opõe ao necessário. De
vimos , uma amplitude cada vez maior . Tinha sido preciso abando-
qualquer forma , tenham a batalha de Actium e a morte de Antônio
nar , com Aristóteles , a identidade do conceito ; renunciar à seme-
sido necessárias ou não , a partir desses puros acontecimentos - lu -
lhança na percepção , libertando-se, de uma só vez , de qualquer fi-
tar e morrer - o ser se diz da mesma maneira; tal como ele se conta
losofia da representação ; agora é preciso desprender-se de Hegel ,
essa castração fantasmá tica que ocorreu e não ocorreu . A supres-
da oposição dos predicados , da contradição , da negação , de toda a
dialé tica. Mas a quarta condição já se delineia , mais temível ainda .
são das categorias, a afirmação da univocidade do ser , a repetitiva
revolu ção do ser em torno da diferença , eis as condições para final-
O submetimento mais tenaz da diferença é , sem d ú vida , o das cate-
mente pensar o fantasma e o acontecimento.
gorias: pois elas permitem - mostrando de que diferentes maneiras
o ser pode se dizer , especificando previamente as formas de atribui-
ção do ser , impondo de qualquer forma seu esquema de distribui-
ções aos entes - preservar , no á pice mais alto , seu repouso sem di- Finalmente? Não , totalmente . É preciso voltarmos a esse “ retor -
feren ça. As categorias regem o jogo de afirmações e negações , esta- nar ” . Mas , inicialmente , um instante de descanso.
belecem a legitimidade das semelhanças da representação, garan- Pode-se dizer de Bouvard e Pécuchet que eles se enganam? Que
tem a objetividade do conceito e de seu trabalho; elas reprimem a eles cometem erros desde que a mínima ocasião lhes seja ofereci-
aná rquica diferença , a repartem em regiões , delimitam seus direi- da? Se eles se enganassem é porque haveria uma lei de seu fracasso
tos e lhe prescrevem a tarefa de especificação que elas tê m a cum- e porque , sob certas condições determináveis , eles teriam podido
prir entre os seres. Podem -se 1er as categorias , por um lado , como ter sucesso. Ora, o fracasso lhes vem de qualquer forma seja lá o
as formas a priori do conhecimento; mas, por outro, elas aparecem que eles façam , tenham eles sabido ou não, aplicado as regras ou
como a moral arcaica , como o velho decálogo que o id ê ntico impôs não , o livro consultado tenha sido bom ou ruim. Frente à sua em -
à diferença. Para ultrapassá-la é preciso inventar um pensamento preitada, não importa o que ocorra , o erro por certo, mas também
-
a categórico. Inventar , no entanto , não é a palavra, já que houve , o incê ndio , o gelo , a tolice e a maldade dos homens , a cólera de um
pelo menos duas vezes na histó ria da filosofia , formulações radi- cachorro. Não era falso , era falhado. Estar no falso é tomar uma cau -
cais da univocidade do ser : as de Duns Scot e Spinoza. Mas, Duns sa por outra ; é não prever acidentes; é conhecer mal as substâncias ,
248 Michel Foucault - Ditos e Escritos -
1970 Theatrum Philosophí cum 249

é confundir o eventual com o necessário; se está enganado quando, Grandeza de Warhol com suas latas de conserva, seus acidentes
distraído quanto ao uso das categorias , se as aplica na hora errada . estú pidos e suas séries de sorrisos publicitários: equivalência oral
Falhar , falhar em tudo é uma coisa bem diferente ; é deixar escapar e nutritiva desses lábios entreabertos , desses dentes, desses mo-
toda a armadura das categorias ( e não somente seu ponto de apli- lhos de tomate , dessa higiene de detergente ; equivalê ncia entre
cação ) . Se Bouvard e Pécuchet tomam como verdade o que é pouco uma morte e o oco de um carro eviscerado, a ponta de um fio telef ó-
provável , não é porque eles se enganem quanto ao uso distintivo do nico no alto de um poste , os braços brilhantes e azulados da cadei-
possível , mas porque confundem todo o real com todo o possível ( é ra elé trica. “ Isso se equivale ” , diz a tolice , soçobrando em si mes-
porque o mais improvável també m ocorre tanto quanto a mais na- ma , e prolongando infinitamente o que ela é pelo que ela diz de si :
“ Aqui ou ali , sempre a mesma coisa; que importam
tural de suas expectativas); eles confundem , ou melhor , se confun- algumas cores
dem através deles o necessário de seu saber e a contingê ncia das variadas e luminosidades maiores ou menores; como é boba a
estações , a existê ncia das coisas e todas essas sombras que po- vida , a mulher , a morte! Como é tola a tolice!” Mas , ao contemplar
voam os livros: o acidente para eles tem a obstinação de uma subs- bem de frente essa monotonia sem limites, o que subitamente se
tância , e as substâncias lhes saltam diretamente pela garganta em ilumina é a pr ópria multiplicidade - sem nada no centro , nem no
acidentes de alambique. Tal é sua grande idiotice paté tica , incom- ápice, nem além -, crepitação de luz que corre ainda mais r ápido
parável com a pequena tolice daqueles que os circundam , que se do que o olhar e que , a cada vez , ilumina essas etiquetas m óveis , es-
enganam e que eles têm certamente razão de menosprezar . Nas ca- ses instantâneos cativos que, desde então , para sempre , sem nada
tegorias , se erra ; fora delas , acima delas , abaixo delas , se é idiota . formular , se fazem signo: subitamente , sobre o fundo da velha iné r -
Bouvard e Pécuchet são seres a-categóricos . cia equivalente , o rastro do acontecimento dilacera a obscuridade,
Isso permite situar um uso pouco aparente das categorias ; fa- e o eterno fantasma se diz a partir dessa lata , desse rosto singular ,
zendo nascer um espaço do verdadeiro e do falso , dando lugar ao sem densidade .
livre suplemento do erro , elas rejeitam silenciosamente a tolice . A inteligê ncia não corresponde à tolice: ela é a tolice já vencida , a
Em voz alta , as categorias nos dizem como conhecer , e alertam so- arte catégorial de evitar o erro. O sábio é inteligente . Mas é o pensa-
lenemente para as possibilidades do engano ; mas , em voz baixa , mento que se confronta com a tolice , e é o filósofo que a olha . Há
elas lhes garantem que vocês são inteligentes ; elas formam o a prio- muito tempo eles estão frente a frente , seu olhar mergulhado nesse
ri da tolice exclu ída. É perigoso , portanto , querer livrar -se das cate- cr ânio sem chama . É sua caveira, a dele , sua tentação , seu desejo
gorias; apenas escapamos delas e nos confrontamos com o magma talvez , seu teatro catatônico. No limite , pensar seria contemplar in -
da tolice e nos arriscamos , uma vez abolidos esses princípios de tensamente , bem de perto , e até quase se perder , a tolice ; e a lassi-
distribuição , a ver crescer em torno de nós não a maravilhosa mul- dão , a imobilidade , uma grande fadiga , um certo mutismo obstina -
tiplicidade das diferen ças , mas o equivalente , o confuso , o “ tudo re- do , a inércia formam a outra face do pensamento - ou , antes , seu
torna ao mesmo” , o nivelamento uniforme e o termo-dinamismo de cortejo , o exercício cotidiano e ingrato que o prepara e que , de sú bi -
todos os esfor ços falhados . Pensar a partir da forma das categorias to , ele dissipa. O filósofo deve ter bastante má vontade para não jo-
é conhecer o verdadeiro para distingui-lo do falso; pensar a partir gar corretamente o jogo da verdade e do erro: esse mau-querer , que
de um pensamento “ a-categórico ” é se confrontar com a obscura to- se realiza no paradoxo, lhe permite escapar das categorias. Mas ,
lice e , no tempo de um relâmpago , dela se distinguir . A tolice se por outro lado, ele deve ter bastante “ mau humor ” para permane-
contempla: nela mergulhamos o olhar , deixamo-nos fascinar , e ela cer diante da tolice , para contemplá-la imóvel até a estupefação,
nos transporta com doçura , a imitamos , a ela nos abandonamos ; para se aproximar dela e imitá-la , para deixá-la lentamente crescer
apoiamo-nos em sua fluidez sem forma ; espreitamos o primeiro em si ( talvez seja isso o que se traduz educadamente: estar absorvi-
sobressalto da imperceptível diferença e , com o olhar vazio , espia- do em seus pensamentos ) , e esperar , no final jamais fixado dessa
mos sem paixão o retorno do relâmpago. Ao erro, dizemos não, e preparação cuidadosa , o impacto da diferen ça: a catatonia encena
falhamos: dizemos sim à tolice , a olhamos , a repetimos e , suave- o teatro do pensamento, uma vez que o paradoxo conturbou o qua-
mente , clamamos pela total imersão . dro da representação.
250 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1970 - Theatrum Philosophicum 251

Vê-se facilmente como o LSD inverte as relações entre o mau hu- nala , ao lado dos livros e da esfera, a profundidade dos pensamen
-
mor , a tolice e o pensamento: de prefer ê ncia , talvez ele não tenha tos e a diversidade do saber . Jogando com sua má vontade e com
colocado fora de circuito a soberania das categorias das quais ele seu mau humor , com esse exercício perverso e esse teatro , o pensa-
arranca o fundo em sua indiferença , reduzindo a nada a morna mí- mento aguarda uma saída: a brusca diferença do caleidoscó pio , os
mica da tolice ; e toda essa massa un ívoca e a-categó rica, ele a mos- signos que por um instante se iluminam , a face dos dados lança-
tra não somente como multicolorida , m óvel , assimé trica , descen- dos, a sorte de uma outra rodada. Pensar não consola , nem torna
trada , espiralada , sonora , mas a cada instante ele a faz pulular com feliz . Pensar se arrasta languidamente como uma perversão; pen -
acontecimentos-fantasmas; deslizando nessa superf ície simulta- sar se repete diligentemente em um teatro; pensar se joga em um
neamente pontual e imensamente vibratória , o pensamento , livre lance fora do copo de dados. E , quando o acaso, o teatro e a perver -
de sua crisálida catatô nica , contempla desde sempre a perpé tua são entram em ressonância , quando o acaso quer que haja entre os
equivalê ncia tornada acontecimento intenso e repetição suntuosa- três uma tal ressonância, então o pensamento é um transe ; e vale a
mente adornada . O ópio induz outros efeitos: graças a ele , o pensa- pena pensar .
mento aglutina, em seu limite, a única diferença , afastando o fundo
para mais longe , e retirando da imobilidade a tarefa de contemplar ,
e chamar para si, imitando-a, a tolice; o ópio assegura uma imobili- Que o ser seja unívoco , que ele só possa se dizer de uma única e
dade sem peso , um estupor de borboleta fora da rigidez catatônica ; mesma maneira, é paradoxalmente a condição maior para que a
e , muito longe abaixo dela , ele desdobra o fundo , um fundo que não identidade não domine a diferença, e para que a lei do Mesmo não a
absorve mais tolamente todas as diferen ças , mas as deixa surgir e fixe como simples oposição no elemento do conceito; o ser pode se
cintilar como tantos acontecimentos ínfimos , distanciados , sorri- dizer da mesma maneira , já que as diferenças não são reduzidas
dentes e eternos. A droga - se pelo menos é possível empregar , de previamente pelas categorias , já que elas não se repartem em um
forma aceitável , essa palavra no singular - não concerne de forma diverso sempre reconhecível pela percepção , já que elas não se or -
alguma ao verdadeiro e ao falso; ela apenas abre aos cartomantes ganizam conforme a hierarquia conceituai das espécies e gêneros .
um mundo “ mais verdadeiro do que o real” . De fato , ela desloca , O ser é o que se diz sempre da diferen ça , é o Voltar da diferen ça 1 \
uma em relação ao outro , a tolice e o pensamento , suspendendo a Essa palavra evita tanto Devir quanto Retorno. Pois as diferen -
velha necessidade do teatro do im óvel. Mas , talvez , se o pensamen- ças não são os elementos , mesmo fragmentá rios , mesmo mistura -
to se põe a olhar a tolice de frente , a droga , que a mobiliza , a colore , dos , mesmo monstruosamente confundidos , de um grande Devir
a agita, a sulca , a dissipa , a povoa de diferenças e substitui o raro que os conduziria em seu curso , fazendo-os em certos momentos
clar ão pela fosforescê ncia contínua , talvez a droga apenas d ê lugar reaparecer , mascarados ou nus. A síntese do Devir , que se com-
a um quase-pensamento . Talvez. 10 Pelo menos em estado de des- praz em ser frouxa, mantém , no entanto, sua unidade; não somen-
mame o pensamento tem duas vertentes: uma que se chama má te , não tanto a de um continente infinito , mas a do fragmento , do
vontade ( para desbaratar as categorias ) , a outra , mau humor ( para instante que passa e repassa , e a da consciência flutuante que o re -
apontar na direção da tolice e nela se fixar ) . Estamos distantes do conhece . Desconfiança , portanto , em relação a Dion ísio e suas Ba-
velho sábio que se põe de tão boa vontade a aguardar o verdadeiro cantes , mesmo quando eles estão bêbados. Quanto ao Retorno ,
que ele acolhe com um humor equivalente à diversidade indiferen- ser á ele o círculo perfeito, a mó bem azeitada que gira em torno de
te dos acasos afortunados e das coisas ; longe do mau gê nio de seu eixo e , na hora certa , traz novamente as coisas , as imagens e os
Schopenhauer , que se irrita com as coisas que não se encaixam de homens? Será preciso haver ali um centro e que na periferia os
forma alguma em sua indiferença ; mas distantes també m da “ me- acontecimentos se reproduzam? O pr óprio Zaratustra não podia
lancolia ” que se torna indiferente ao mundo , cuja imobilidade assi-

11 . Sobre esses temas , cf . Diff é rence et ré pé tition , ps . 52-61 , ps . 376- 384 ; Logique
10 . '“ O que vão pensar de nós?” ( nota de Gilles Deleuze ) .
du sens , ps . 190- 197 , ps . 208 -211 .
252 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1970 - Theatrum Philosoph í cum 253

suportar tal id éia: “ Toda verdade é curva, o pr óprio tempo é um diferen ça ; o que não volta é o análogo , o semelhante , o id ê ntico . A
círculo , murmura o anão com um tom de desd ém . Espí rito de diferen ça volta ; e o ser , que se diz da mesma maneira que a diferen -
pesadume , disse eu com ódio , não tome as coisas assim tão levia- ça , não é o fluxo universal do Devir , tampouco o ciclo bem centrado
namente ” ; e , convalescente , ele gemer á: “ Pois bem , o homem retor - do Idêntico; o ser é o Retorno libertado da curvatura do cí rculo ,
éo
nar á eternamente , o homem mesquinho voltará eternamente . ” Tal- -
Voltar . Tr ês mortes: a do Devir , Pai devorador mãe prestes a pa-
rir ; a do cí rculo, pelo qual o dom de viver , a cada primavera ,
vez o que anuncia Zaratustra não seja o círculo; ou talvez a imagem se ma-
insuportável do círculo seja o último sinal de um pensamento mais nifesta nas flores; a do retorno: fibrilação repetitiva do presente ,
elevado ; talvez seja preciso romper essa artimanha circular como o eterna e aleatória fissura ocorrida uma vez , e de um só golpe afir -
jovem pastor , como o próprio Zaratustra , cortando a cabe ça da mada de uma vez por todas.
serpente , para nela cuspir logo depois. Em sua fratura, em sua repetição, o presente é um lance de da-
Cronos é o tempo do devir e do recomeço. Cronos devora pedaço dos. Não que ele faça parte de um jogo , no interior do qual desliza-
por pedaço o que ele fez nascer e o faz renascer em seu tempo . O ria um pouco de contingê ncia , um grão de incerteza. Ele é simulta-
devir monstruoso e sem lei, a grande devoração de cada instante , a neamente o acaso no jogo , e o próprio jogo como acaso; ao mesmo
dissipação de toda vida , a dispersão de seus membros estão liga- tempo são lan çados os dados e as regras. Embora o acaso não seja
dos à exatid ão do recome ço : o Devir faz entrar nesse grande labi- absolutamente fragmentado e repartido aqui ou ali , mas inteira -
rinto interno , que não é absolutamente diferente em sua natureza mente afirmado de um só golpe . O presente , como voltar da dife-
do monstro que o habita ; mas , do fundo mesmo dessa arquitetura rença, como repetição se dizendo da diferença , afirma de uma vez o
totalmente conturbada e retorcida sobre si mesma , um fio sólido todo do acaso . A univocidade do ser em Duns Scot remetia à imobi-
permite reencontrar o rastro de seus passos anteriores e rever o lidade de uma abstração; em Spinoza , à necessidade da substâ ncia
mesmo dia. Dionísio com Ariadne: você é meu labirinto. Mas Aïon é e à sua eternidade; aqui, ao único golpe do acaso na fenda do pre-
o pr óprio voltar , a linha reta do tempo , essa fenda mais rá pida do sente . Se o ser se diz sempre da mesma maneira , não é porque o
que o pensamento , mais tê nue do que qualquer instante , que , de ser é um , é porque , no ú nico lance de dados do presente , o todo do
um lado e de outro de sua flecha perpetuamente cortante, faz surgir acaso é afirmado.
esse mesmo presente como já tendo sido infinitamente presente e Pode-se dizer então que , na história , a univocidade do ser foi
como infinitamente por vir . É importante apreender claramente pensada , uma após a outra , tr ês vezes: por Duns Scot , por Spinoza
que não se trata ali de uma sucessão de presentes , oferecidos por e , finalmente , por Nietzsche - teria sido ele o primeiro que a teria
um fluxo contínuo e que , em sua plenitude , deixaria transparecer a pensado não como abstração , nem como substância , mas como re-
densidade de um passado e se delinear o horizonte do futuro , do torno? Digamos de prefer ê ncia que Nietzsche chegou mesmo a pen-
qual eles seriam por sua vez o passado . Trata-se da linha reta do sar o eterno Retorno; mais precisamente , ele o indicou como sendo
futuro que corta ainda , e ainda recorta perpetuamente a menor o insuportável de pensar . Insuportável porque, apenas entrevisto
densidade de presente , a recorta perpetuamente a partir dela mes- através de seus primeiros sinais , ele se fixa nessa imagem do círcu -
ma : tão longe quanto se vá seguindo essa cesura , jamais se encon- lo que traz consigo a ameaça fatal do retorno de cada coisa - reite-
tra o átomo indivisível que se poderia enfim pensar como a unidade ração da aranha ; mas se trata de pensar este insuportável , pois ele
minusculamente presente do tempo ( o tempo é sempre mais desar - não é mais do que um signo vazio , um postigo a ultrapassar , essa
ticulado do que o pensamento ) ; encontra-se sempre sobre as duas voz sem forma do abismo, cuja aproximação é , indissociavelmente ,
bordas da ferida que já ocorreu ( e que já ocorreu , e que já ocorreu a felicidade e a infelicidade . Zaratustra , em relação ao Retorno , é o
que já tinha ocorrido ) , e que isso ocorrer á ainda ( e que ocorrer á F ü rsprecher , o que fala por .. . , no lugar de . . . , marcando o lugar em
ainda que isso ainda ocorra ) : menos corte do que perpé tua fibrila- que ele está ausente. Zaratustra não é a imagem , mas o signo de Nie -
ção; o tempo é o que se repete ; e o presente - fissurado por esta fle- tzsche . O signo ( a se distinguir bem do sintoma ) da ruptura: o signo
cha do futuro que o traz , deportando-o sempre de um lado e de ou- mais pr óximo da intolerabilidade do pensamento do retorno ; Nie-
tro -, o presente não cessa de voltar . Mas de voltar como singular tzsche permitiu pensar o eterno retorno . Após quase um século , a
254 Michel Foucault - Ditos e Escritos

mais elevada empreitada da filosofia foi exatamente pensar esse re-


torno. Mas quem seria bastante insolente para dizer o que ele havia
1970
pensado? O Retorno deveria ser , como no fim da História no século
XIX, o que só poderia vagar à nossa volta como uma fantasmagoria
do ju ízo final? Seria preciso que esse signo vazio e imposto por Nie-
tzsche como um excesso colocasse à disposição , a cada vez , os con-
Crescer e Multiplicar
teúdos místicos que o desarmam e o reduzem? Seria preciso , ao
contr ário , tentar burilá-lo para que ele pudesse tomar lugar e figu-
rar sem vergonha no curso de um discurso? Ou seria preciso reabi- “ Crescer e multiplicar” , Le monde , nü 8.037 , 15- 16 de novembro de 1970 , p. 13 .
litar esse signo em excesso , sempre deslocado , perpetuamente fal- ( Sobre F. Jacob , La logique du vivant . Une histoire de l ’ hé rédité , Paris , Gallimard
tante em seu lugar , e mais do que encontrar para ele o significado 1970 . )
arbitrá rio que lhe corresponde , mais do que construir para ele
uma palavra , fazê-lo entrar em ressonância com o grande significa-
do que o pensamento de hoje carrega como uma flutuação incerta e François Jacob acaba de escrever um verdadeiro e extraordiná -
submissa; fazer ressoar o voltar com a diferen ça? Não se deve com- rio livro de história. Ele não relata como se descobriram pouco a
preender que o retorno é a forma de um conteú do que seria a dife- pouco as leis e os mecanismos da hereditariedade , mas aquilo que
rença ; mas sim que , de uma diferença sempre nómade , sempre a genética subverteu no mais antigo saber do Ocidente: de in ício , si-
aná rquica , até o signo sempre em excesso , sempre deslocado do lenciosamente , no curso de um lento trabalho e como por solapas
retorno, produziu-se uma fulguração que levar á o nome de Deleu- subterr âneas preparadas no último século; e depois , repentina -
ze : um novo pensamento é possível; o pensamento , de novo , é pos- mente , com grande alarde , nos subtraindo hoje de nossas familia-
sível. ridades mais cotidianas . Esse livro notável nos diz como e por que
Ele não está por vir , prometido pelo mais longínquo dos recome- é preciso pensar de modo inteiramente diverso a vida , o tempo , o
ç . Ele está presente nos textos de Deleuze , pulando , dançando di-
os indivíduo , o acaso . E isso não nos confins do mundo , mas aqui
ante de nós, entre nós; pensamento genital , pensamento intenso , mesmo, na pequena maquinaria de nossas células .
pensamento afirmativo, pensamento a-categórico - todos os rostos
que não conhecemos, máscaras que jamais vimos; diferença que
nada deixava prever e que , no entanto , faz voltar como máscaras de
O saber não é feito para consolar : ele decepciona , inquieta , sec -
suas máscaras Platão , Duns Scot , Spinoza , Leibniz , Kant, todos os ciona , fere . François Jacob o mostra claramente: a biologia desde o
filósofos. A filosofia não como pensamento , mas como teatro: tea- final do século XVTII não foi indulgente com tudo aquilo que havía-
tro de m í micas , com cenas m ú ltiplas , fugidias e instantâneas , nas mos reunido à nossa volta para conjurar o imprevisível. Durante
quais os gestos , sem se verem , se fazem signo ; teatro em que , sob a séculos , o homem havia refeito com dificuldade o trabalho precoce
máscara de Sócrates , subitamente explode o riso do sofista ; em de Ad ão: ele havia nomeado e classificado os animais, as rochas e
que os modos de Spinoza conduzem a uma ronda descentrada, en- as plantas ; havia repartido, localizado , preenchido as lacunas, liga-
quanto a substância gira em torno deles como um planeta louco ; do essa grande cadeia de seres que devia , sem ruptura , conduzir
em que Fitchte manco anuncia: “ Eu dividido ^ eu dissolvido” ; em do mineral - vegetação negra no âmago quase imóvel das coisas -
que Leibniz, tendo atingido o topo da pir âmide , distingue na escu- ao animal racional, coroado por uma alma .
rid ão que a música celeste é o Pierrot lunaire . Na guarita de Lu- Em 150 anos , quatro abalos subverteram inteiramente esse rei-
xemburgo , Duns Scot enfia a cabeça na janela circular ; ele tem bi- no. François Jacob dá um nome a cada um: o do plano dos objetos
godes enormes; são os de Nietzsche disfarçado em Klossowski . que se constitui a cada vez , oferecendo à biologia um novo campo
de experiência e no qual se ordenam observações, conceitos , hipó-
teses - a organização , o tempo , o gene e a mol écula.
256 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1970 - Crescer e Multiplicar 257

A anatomia de Cuvier rompia a antiga cadeia dos seres e justapu - Sim , sim , o ovo é anterior à galinha. Quando se trata de um orga-
nha os grandes ramos . Darwin humilhava talvez o homem fazen- nismo relativamente tão simples como a bacté ria , pode-se falar ver -
do-o descender do macaco , mas - coisa muito mais importante - dadeiramente de indivíduo? Pode-se dizer que ela está no início , ela
ele desapropriava o indivíduo de seus privilégios estudando as va- que não passa antes de tudo da metade de uma célula anterior , ela
riações aleatórias de uma população ao longo do tempo. Mendel , pr ópria metade de uma outra , e assim por diante até a mais remota
depois os geneticistas decompunham o ser vivo em traços hereditá- antigü idade da mais antiga bacté ria do mundo? E pode-se dizer
rios , conduzidos pelos cromossomos , que a reprodução sexual que ela morre quando ela se divide , dando lugar a duas bacté rias ,
combina conforme probabilidades calculáveis e que apenas as mu - que , por sua vez , logo se obstinam em se dividir? A bacté ria: uma
tações podem , subitamente , modificar . Enfim , a biologia molecular máquina de reproduzir , que reproduz seu mecanismo de reprodu -
acaba de descobrir no n ú cleo da cé lula uma ligação , tão arbitr ária ção , um material de hereditariedade que infinitamente prolifera
quanto um código , entre ácidos nucléicos e prote ínas ; melhor ain- por si mesmo , uma pura repetição anterior à singularidade do indi-
da : ela localizou , na transcrição desse código , erros , esquecimen- víduo. No curso da evolu ção, o ser vivo foi uma má quina de redu -
tos , inversões, como mancadas ou achados involuntá rios de um es- plicação , bem antes de ser um organismo individual.
criba por um instante distraído . Ao longo da vida , o acaso joga com Mas ocorre que , para transmitir esse material hereditário , duas
o descontínuo. células distintas sejam necessá rias , cada uma trazendo seus cro-
Diz -se freq üentemente que , desde Copé rnico , o homem sofre mossomos que entram em combinação para formar o n úcleo de
por saber que ele não está mais no centro do mundo: grande decep- uma nova célula. Tal é o princípio da reprodução sexuada: por este
ção cosmológica . A decepção biológica e celular é de outra ordem : fato mesmo , pode-se falar da emergê ncia de um indivíduo que , por
ela nos ensina que o descontínuo nã o somente nos delimita , mas sua vez e segundo ciclos mais ou menos longos , trará em si células
nos atravessa: ela nos ensina que os dados nos governam . sexuais capazes de se combinarem ; a ele pr óprio então só restar á
Porque a gené tica ainda nos fere de muitas outras maneiras ; ela desaparecer . O nascimento e a morte dos indivíduos é a solu ção
atinge alguns dos postulados fundamentais nos quais , de uma ma- que foi selecionada pela evolu ção para acompanhar a reprodu ção
neira confusa , se formam nossas verdades transitórias e se concen- sexuada. A morte , diz F. Jacob , é “ uma necessidade prescrita des-
tram alguns de nossos sonhos imemoriais. O livro de F. Jacob os de o ovo pelo pró prio programa gené tico ” .
questiona novamente . É preciso , portanto , inverter a sé rie familiar : indivíduo ( que nasce
Eu me contentarei em evocar um dos mais arraigados: aquele e morre ) , sexualidade ( que lhe permite reproduzir-se ) , hereditarie-
que subordina a reprodução ao indivíduo , ao seu crescimento e à dade ( ligando pouco a pouco as gerações para além do tempo ) . De -
sua morte . Por muito tempo se acreditou que reproduzir era , para ve-se dizer que o ser vivo é , de início e antes de tudo , um sistema he-
o indivíduo que “ atingiu ” o término de seu crescimento, um meio reditário; que a sexualidade, o nascimento e a morte dos indivíduos
de se prolongar de qualquer forma para alé m dele mesmo e de não passam de maneiras veladas de transmitir a hereditariedade . A
compensar a morte , transmitindo ao futuro essa duplicação lon- velha lei prescrevia: “ Crescei e multiplicai-vos ” , como se ela deixasse
gínqua de sua forma . Cinqúenta anos foram necessá rios para sa- entender que a multiplicação vem depois do crescimento e para pro-
ber que o metabolismo da célula e os mecanismos de crescimento
do indivíduo são comandados por um código presente no ADN do
-
longá lo. O Novíssimo Testamento da biologia diz de preferência:
“ Multiplicai , multiplicai: vocês acabarão crescendo , como espécie e
n ú cleo e transmitido por elementos mensageiros , para saber que como indivíduos; a sexualidade , a morte d óceis lhes ajudar ão . ”
toda a pequena usina qu í mica de uma bacté ria está destinada a É preciso reconhecer aí uma segunda grande ferida , semelhante
produzir uma segunda ( este é o seu “ sonho” , diz F. Jacob ) , para sa- e , no entanto, diferente daquela que a psicanálise trouxe , quando
ber que as mais complexas formas de organização ( com a sexuali- ela fez falar o desejo , quando o homem queria fazê-lo calar ou fa -
dade , a morte , sua companheira , os signos e a linguagem , seus lon - -
zê lo falar por contrabando? Estamos agora diante da maravilhosa
gínquos efeitos ) não passam de desvios para assegurar ainda e “ desenvoltura” da biologia , que situa antes mesmo do indivíduo a
sempre a reprodução. obstinação em se reproduzir .
258 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1970 - Crescer e Multiplicar 259

O conhecimento da hereditariedade permaneceu durante muito A biologia manteve por muito tempo relações tumultuadas com
tempo marginal em relação às ciências da vida. Na metade do sécu- a qu ímica , a física , a tecnologia das máquinas . Às tentativas de re -
lo XIX não se sabia ainda ao certo através de que lei os traços here- du ção se opunha o princ í pio de irredutibilidade. Dizia-se que a qu í-
ditá rios se apagavam e reapareciam no decorrer das gerações e dos mica apenas estudava sobre a vida processos parciais e arbitraria-
cruzamentos. A formulação por Mendel dessa aritmética simples mente recortados; por observar somente o min úsculo , ela negligen -
permanecer á por muito tempo letra morta , mas tudo o que tinha ciava a especificidade do todo; mas , àqueles que não queriam olhar
sido analisado durante o século XIX pelos fisiologistas no n ível da apenas o todo do indivíduo ou a massa de uma população em seu
célula, pelos microbiologistas sobre as bactérias , pelos químicos e meio , se contrapunha que eles deixavam penetrar toda uma metaf í -
bioquímicos a respeito das diástases , das enzimas e das proteí nas , sica da vida. Foi no momento em que ela atingiu o nível ultrami -
tudo isso permitiu finalmente mostrar que o ser vivo é um sistema croscó pico da molécula que a biologia pôde finalmente compreen -
hereditário, e ao mesmo tempo localizou a genética na ponta de to- der como se efetuavam , no n ível das massas e na escala dos milé -
das as ciê ncias biológicas . Melhor ainda , tudo isso permitiu à gen é- nios , a transmissão da hereditariedade , o jogo das mutações e as
tica girar de alguma forma em torno de si mesma , retornar a todos leis da seleção evolutiva. São todas as pequenas maquinarias da fí-
esses domínios por tanto tempo preparados, definir seu lugar e se sico-química que fundam a teoria darwiniana e explicam a comple -
apresentar como a primeira teoria geral dos sistemas vivos. xidade crescente das espécies através da histó ria do mundo .
Eis o que F. Jacob analisa e explica em seu livro . “ História da he- Seria o retorno ao animal-máquina , o triunfo da existê ncia -
reditariedade” , diz o subtítulo , muito modesto: trata-se de fato de fermentação, a partir do momento em que se encontra elidida a es -
toda a histó ria da biologia ; trata-se de sua redistribuição global em pecificidade misteriosa da vida? Questão que quase não tem mais
nossa é poca ; trata-se da fundação , diante de nossos olhos , de uma sentido : mas se pode dizer agora em que medida a célula é um sis-
teoria tão importante e revolucionária quanto puderam ser , em sua tema de reações físico-químicas , em que medida ela funciona como
é poca , as de Newton ou de Maxwell ( e da qual o pr óprio F. Jacob to- uma calculadora. É a noção de programa que está agora no centro
mou uma parte essencial ) . Em suma , trata -se da grande subversão da biologia.
do saber que se opera à nossa volta . Uma biologia sem vida? Estamos pela terceira vez diante da ne-
E eis que surge ali , para nosso pensamento , um dos efeitos mais cessidade de pensar de forma totalmente diversa daquela de antiga -
-
estranhos o mais decepcionante à primeira vista , e no fundo o
mais maravilhoso - da biologia moderna : ela nos priva precisa-
mente . Pode-se comparar esse desencantamento tão fecundo com
aquele que se experimenta atualmente quando se percebe que é pre-
mente daquilo que , durante muito tempo , esper ávamos dela : a pr ó- ciso fazer economia do “ homem ” ou da “ natureza humana ” se qui-
pria vida em seu segredo . Ela analisa efetivamente o ser vivo ao sermos analisar os sistemas da sociedade e do homem? Escutemos
modo de um programa depositado no n ú cleo e que fixa para o orga- a lição luminosa de F. Jacob: “ Hoje , não se interroga mais a vida nos
nismo os limites de suas reações possíveis ; tudo se passa como se , laboratórios . Não se busca mais apreender os seus contornos .
na presen ça de uma estimulação qualquer , houvesse consulta ao Esfor ça-se somente para analisar os sistemas vivos , sua estrutura ,
programa , envio de indicações por intermédio de mensageiros , tra- sua função , sua história. .. Descrever um sistema vivo é referir-se
du ção das palavras de ordem e a execução das ordens dadas. tanto à lógica de sua organização quanto à de sua evolução. É pelos
Constata-se: o importante é inicialmente que o alfabeto do pro- algoritmos do mundo vivo que a biologia se interessa atualmente . ”
grama não pareça com o que ele prescreve ; o ser vivo não se escreve É preciso não mais sonhar com a vida como a grande criaçã o
em chin ês , diz aproximadamente F. Jacob ; o arbitr ário atravessa contínua e atenta dos indivíduos; é preciso pensar o ser vivo como
as estruturas fundamentais da célula viva , e isso de um modo abso- o jogo calculável do acaso e da reprodu ção. O livro de F. Jacob é a
lutamente universal . Mas alé m disso é preciso enfatizar que os in- mais notável histó ria da biologia jamais escrita: mas ele convida
té rpretes , aqui, são as pr ó prias reações: não há leitor , não há senti- també m a uma grande reaprendizagem do pensamento . A l ógica
do , mas um programa e uma produção. Inútil falar de uma lingua- da vida mostra ao mesmo tempo tudo o que foi preciso para a ciê n -
gem , mesmo que fosse “ da natureza ” . cia saber e tudo o que este saber custa ao pensamento.
3
k 1971 - Nietzsche , a Genealogia , a Hist ória 261
:
1971 tr ário , ao desdobramento metaistórico das significações ideais e
das indefinidas teleologias. Opõe-se à pesquisa da “ origem ” .

% 2 ) Em Nietzsche se encontram dois empregos da palavra


Ursprung . Um não é marcado ; é encontrado em alternância com
Nietzsche , a Genealogia , a História termos como Entstehung , Herkunft , Abkunft , Geburt A Genealo-
gia da moral , por exemplo , fala , a respeito do dever ou do senti-
mento da falta , tanto de sua Entstehung como de sua Ursprung 3;
em A gaia ciê ncia trata-se , a propósito da lógica e do conhecimen -
“ Nietzsche , a genealogia , a história ” , Hommage à Jean Hyppolite , Paris , PUF , col . to , seja de uma Ursprung , de Entstehung ou de Herkunft 4 .
"
.
É pimé th ée ” , 1971 ps. 145- 172 . h O outro emprego da palavra é marcado. Ocorre efetivamente que
Nietzsche a coloque em oposição a um outro termo: o primeiro par á -
grafo de Humano, demasiado humano coloca face a face a origem
1 ) A genealogia é cinzenta ; ela é meticulosa e pacientemente do- miraculosa (Wunderursprung ) buscada pela metaf ísica e as análises
cumentá ria . Trabalha com pergaminhos embaralhados, riscados, de uma filosofia histó rica que coloca questões ilber Herkunft und
muitas vezes reescritos. Anfang . Ursprung é també m utilizada de uma maneira iró nica e de -
Paul Ree se engana , como os ingleses , ao descrever gé neses linea- preciativa. Em que , por exemplo , consiste esse fundamento origin á -
res - ao ordenar , por exemplo, toda a história da moral apenas rio [ Ursprung ) da moral que se busca desde Platão? “ Em horr íveis
através da preocupação com o ú til : como se as palavras tivessem pequenas conclusões. Pudenda origo . ” 5 Ou ainda: onde é necessá rio
guardado seu sentido; os desejos , sua direção ; as idéias , sua lógica ; procurar essa origem da religião ( Ursprung ) que Schopenhauer si-
como se esse mundo das coisas ditas e desejadas não tivesse co- tuava em um certo sentimento metaf ísico do alé m? Simplesmente
nhecido invasões , lutas , rapinas , disfarces , artimanhas. Daí , para a em uma invenção ( Erfindung ) , em um passe de mágica , em um arti-
genealogia , um indispensável retardamento: para assinalar a sin- fício ( Kunststilck ) , em um segredo de fabricação , em um procedi-
gularidade dos acontecimentos , fora de qualquer finalidade mon ó-
mento de magia negra , no trabalho de Schwarzkiinstler 6 .
tona ; espreitá-los lá onde menos se espera e no que passa por não
Um dos textos mais significativos para o emprego de todas essas
ter história alguma - os sentimentos , o amor , a consciê ncia , os ins-
palavras e para os jogos pr óprios do termo Ursprung é o pref ácio
tintos ; apreender seu retorno , não absolutamente para traçar a len -
da Genealogia. No início do texto , o objeto de pesquisa é definido
ta curva de uma evolução , mas para reencontrar as diferentes ce-
como a origem dos preconceitos morais; o termo então utilizado é
nas em que eles desempenharam distintos papé is ; definir , at é o
Herkunft . Em seguida , Nietzsche volta atr ás e faz o histó rico dessa
ponto de sua lacuna , o momento em que eles não ocorreram ( Pla-
investigação em sua pr ópria vida; relembra o tempo em que ele "ca -
tão , em Siracusa , não se transformou em Maom é . . . ) .
ligrafava” a filosofia e se perguntava se era preciso atribuir a Deus a
A genealogia exige , portanto , a minú cia do saber , um grande n ú -
origem do mal . Questão que agora o faz sorrir e sobre a qual diz
mero de materiais acumulados, paciência. Ela não deve construir
justamente que era uma pesquisa de Ursprung ; usa a mesma pala -
seus “ monumentos ciclópicos ” 1 através de “ grandes erros benfaze-
vra para caracterizar um pouco melhor o trabalho de Paul Ree 7. A
jos ” , mas de “ pequenas verdades inaparentes , estabelecidas por
um método severo” 2. Em suma , uma certa obstinação na erudição .
A genealogia não se opõe à história como a visão altiva e profunda 3. ( N .A . ) La g é néalogie de la morale , II , § 6 e § 8.
do fil ósofo ao olhar de toupeira do cientista; ela se opõe , pelo con- 4. ( N .A. ) Le gai savoir , 110 , 111 , 300.
5. ( N .A. ) Aurore , § 102.
6 . ( N .A . ) Le gai savoir , § 151 e § 353. E também em Aurore , § 62 ; Gé néalogie , I , § 14 .
1 . ( N.A. ) Le gai savoir , § 7. Le cré puscule des idoles , “ Les grandes erreurs” , § 7.
2 . ( N .A. ) Humain , trop humain , § 3. 7. ( N .A . ) O livro de P. Ree se chamava Ursprung der moralischen Empjindungen .
262 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1 1971 - Nietzsche , a Genealogia , a História 263
t
seguir , ele evoca as análises propriamente nietzschianas iniciadas das classes dirigentes ” 12. O que se encontra no começo histórico
com Humano , demasiado humano ; para caracterizá-las , ele fala das coisas não é a identidade ainda preservada de sua origem - é a
de Herkunfthypothesen. Ora , aqui o emprego do termo Herkunft discórdia entre as coisas , o disparate .
*
não é certamente arbitr ário : ele serve para designar vá rios textos A história ensina també m a rir das solenidades da origem . A alta
de Humano , demasiado humano dedicados à origem da morali- origem é o “ exagero metafísico que ressurge na concepção de que
dade , da ascese , da justiça e do castigo . No entanto, em todos es- no começo de todas as coisas se encontra o que existe de mais pre-
ses desenvolvimentos, a palavra então empregada tinha sido Urs- cioso e de mais essencial” 13: deseja-se acreditar que , em seu início ,
prung 8. É como se , na época da Genealogia , e nesse ponto do tex- as coisas se encontravam em seu estado de perfeição; que elas saí-
to , Nietzsche quisesse enfatizar uma oposição entre Herkunft e ram resplandecentes das mãos do criador ou na luz sem sombra
Ursprung com a qual ele não trabalhava 10 anos antes. Mas , logo da primeira manhã . A origem está sempre antes da queda , antes do
depois do uso específico desses dois termos , Nietzsche retorna , corpo , antes do mundo e do tempo; está do lado dos deuses e , para
nos ú ltimos par ágrafos do prefácio , a um uso neutro e equivalente9 . narr á-la, sempre se canta uma teogonia. Mas o começo histórico é
Por que Nietzsche genealogista recusa , pelo menos em certas baixo. Não no sentido de modesto ou de discreto , como o passo da
ocasiões , a pesquisa da origem ( Ursprung )? Porque , primeiramen -
pomba , mas de derrisório , irónico , adequado para desfazer quais-
te , trata-se nesse caso de um esforço para nela captar a essência quer enfatuações: “ Buscava-se despertar o sentimento de sobera-
exata da coisa , sua mais pura possibilidade , sua identidade cuida- nia do homem mostrando seu nascimento divino ; isto se tornou
dosamente guardada em si mesma , sua forma imóvel e anterior a atualmente um caminho proibido , porque em seu limiar está o ma-
tudo o que é externo , acidental e sucessivo. Procurar tal origem é
caco . 1 4 O homem começou pela careta do que ele iria se tornar ; até
»

tentar recolher o que era “ antes” , o “ aquilo mesmo” de uma imagem mesmo Zaratustra ter á seu macaco , que saltar á por tr ás dele e ar -
*1
exatamente adequada a si; é tomar como acidentais todas as peri- rançar á o pano de sua vestimenta .
pécias que puderam ocorrer , todas as artimanhas , todos os disfar - Enfim , ú ltimo postulado da origem , ligado aos dois primeiros:
ces ; é querer tirar todas as máscaras para finalmente desvelar uma ela seria o lugar da verdade . Ponto completamente recuado e ante-
identidade primeira . Ora , se o genealogista tem o cuidado de escu - Î;, rior a qualquer conhecimento positivo , ela tornaria possível um sa -
tar a história em vez de crer na metaf ísica , o que ele aprende? Que ber que , no entanto, a recobre , e não cessa, em suafalação , de des-
por tr ás das coisas há “ algo completamente diferente ” : não absolu - conhecê -la ; ela estaria nessa articulação inevitavelmente perdida
tamente seu segredo essencial e sem data , mas o segredo de que em que a verdade das coisas se liga a uma verdade do discurso que
elas são sem essê ncia ou que sua essê ncia foi constru í da peça por
logo a obscurece e a perde . Nova crueldade da história que impõe
peça a partir de figuras que lhe eram estranhas . A razão? Mas ela
inverter a relação e abandonar a busca “ adolescente” : por tr ás da
nasceu , de forma inteiramente “ razoável ” , do acaso10. E o apego à
verdade , sempre recente , avara e comedida, há a proliferação mile-
verdade e o rigor dos mé todos científicos? Da paixão dos cientistas ,
nar dos erros. Não acreditamos mais “ que a verdade permaneça
de seu ódio recíproco, de seus debates faná ticos e infindáveis , da verdadeira quando lhe arrancamos o vé u: já vivemos bastante para
necessidade de vencer a paixão - armas lentamente forjadas ao lon-
crer nisto” 15. A verdade , espécie de erro que tem a seu favor o fato
go de lutas pessoais11. E seria a liberdade , na raiz do homem , o que de não poder ser refutada, sem d úvida porque a longa cocção da
o liga ao ser e à verdade? De fato ela não passa de uma “ invenção
12. ( N .A. ) Le voyageur et son ombre , § 9 .
8 . ( N .A . ) Em Humano , demasiado humano , o aforismo 92 intitulava-se Ursprung 13. ( N .A. ) Ibid . , § 3.
der Gerechtigkeit . 14 . ( N .A. ) Aurore , § 49.
9. ( N .A . ) No pró prio texto da Gé néalogie , Ursprung e Herkunft são empregadas 15. ( N.A. ) Nietzsche contre Wagner , p. 99. ( Nietzsche contre Wagner. Dossier d’un
vá rias vezes de maneira mais ou menos equivalente ( I , 2 ; II , 8 , 11, 12 , 16. 17 ) . psychologue , trad . J .-C . Hémery , in Oeuures philosophiques compl è tes , Paris ,
10 . ( N.A . ) Aurore , § 123. -
Gallimard , 1974 , t. VIII , ps. 343 372 ( N . E. ) . )
264 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1971 - Nietzsche , a Genealogia, a História 265

história a tornou inalterável 16. E , alé m disso , a pr ópria questão da traduzidos por “ origem ” , mas é preciso tentar restabelecer sua uti-
verdade , o direito que ela se d á de refutar o erro ou de se opor à lização pr ópria.
aparê ncia , a maneira pela qual alternadamente ela se tornou aces- Herkunft : é o tronco , a proveniê ncia; a antiga pertinência a um
sível aos sábios, depois reservada apenas aos homens piedosos , a grupo - o do sangue , da tradição, o que liga aqueles da mesma altu-
seguir retirada para um mundo fora de alcance , onde desempe- ra ou da mesma baixeza. Freq üentemente , a análise da Herkunft
nhou simultaneamente o papel de consolo e de imperativo , rejeita- coloca em jogo a raça18 ou o tipo social19. No entanto, não se trata
da , enfim , como idéia inútil , supérflua , contradita em todo lugar - tanto de reencontrar em um indivíduo, em um sentimento ou idéia
tudo isso não é uma história , história de um erro que tem o nome
de verdade? A verdade e seu reino originá rio tiveram sua história
as caracter ísticas gené ricas que permitem assimilá-los a outros e
de dizer : isto é grego ou isto é inglês, mas de descobrir todas as
-
na história . Mal saímos dela , “ na hora da sombra mais breve” , marcas sutis, singulares, subindividuais que podem se entrecruzar
quando a luz não mais parece vir do fundo do cé u e dos primeiros nele e formar uma rede dif ícil de desembaralhar . Longe de ser uma
l
momentos do dia17. categoria da semelhança, tal origem permite ordenar , para colo-
Fazer a geneologia dos valores , da moral, do ascetismo, do co- cá-las à parte , todas as marcas diferentes: os alemães imaginam ter
nhecimento nunca ser á , portanto, partir em busca de sua “ origem ” , k atingido o ápice de sua complexidade quando disseram que tinham
k
neglicenciando como inacessíveis todos os episódios da história ; a alma dupla ; eles se enganaram redondamente ou , melhor , tenta-
ser á , ao contr ário , deter -se nas meticulosidades e nos acasos dos ram como podiam dominar a confusão das raças pelas quais são
come ços ; prestar uma atenção escrupulosa em sua derrisória mal- constituídos20. Ali onde a alma pretende se unificar , ali onde o Eu
dade ; esperar para vê-los surgir , máscaras finalmente retiradas , se inventa uma identidade ou uma coer ê ncia , o genealogista parte à
com o rosto do outro ; não ter pudor de ir buscá-los lá onde eles es- procura do começo - dos inumer áveis come ços que deixam essa
tão , “ escavando as profundezas” ; dar-lhes tempo para retornarem k suspeita de cor , essa marca quase apagada que não poderia enga-
do labirinto onde nenhuma verdade jamais os manteve sob sua nar um olho por pouco histórico que ele fosse ; a análise da prove -
proteção. O genealogista tem necessidade da história para conjurar niê ncia permite dissociar o Eu e fazer pulular , nos lugares e recan -
a ilusão da origem , um pouco como o bom filósofo tem necessidade tos de sua síntese vazia, mil acontecimentos agora perdidos.
do mé dico para conjurar a sombra da alma . É preciso saber reco- A proveniê ncia também permite reencontrar , sob o aspecto ú ni -
nhecer os acontecimentos da história , seus abalos , suas surpresas , co de uma característica ou de um conceito , a proliferação dos
as vacilantes vitórias , as derrotas mal digeridas que d ão conta dos acontecimentos através dos quais ( graças aos quais , contra os
começos , dos atavismos e das hereditariedades ; assim como é ne- quais ) eles se formaram . A genealogia não pretende recuar no tem -
cessário saber diagnosticar as doenças do corpo , os estados de fra- po para estabelecer uma grande continuidade para alé m da disper -
queza e energia , seus colapsos e resistê ncias para avaliar o que é são do esquecimento; sua tarefa não é mostrar que o passado está
um discurso filosófico. A história , com suas intensidades , seus ainda ali, bem vivo no presente , animando-o ainda em segredo,
desfalecimentos, seus furores secretos , suas grandes agitações fe- após ter imposto a todos os obstáculos de percurso uma forma es-
bris , assim como suas sí ncopes, é o pr ó prio corpo do devir . É pre- boçada desde o início. Nada que se assemelharia à evolução de
ciso ser metaf ísico para procurar sua alma na idealidade longínqua uma espécie, ao destino de um povo. Seguir o filão complexo da
da origem . proveniê ncia é , pelo contr á rio , manter o que se passou na disper -
são que lhe é pr ópria ; é situar os acidentes , os ínfimos desvios - ou ,
3) Termos como Entstehung ou Herkunft indicam melhor do pelo contr ário , as completas inversões -, os erros , as falhas de
que Ursprung o objeto pr óprio da genealogia. São freqüentemente

16 . ( N .A.) Le gai sauoir , § 265 e § 110. 244; Gé néalogie , I , § 5 .


-
18. ( N .A. ) Por exemplo , Le gai savoir , § 135; Par del à le bien et le mal , § 200 , 242 ,

17. ( N .A . ) Le cré puscule des idoles , ‘‘Comment le monde-vérité devient enfin une -
19. ( N .A. ) Le gai savoir , § 348-349; Par del à... , § 260.
fable ” . 20. ( N .A. ) Par-del à ... , § 244 .
266 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1971 - Nietzsche , a Genealogia, a História 267

apreciação , os cálculos erró neos que fizeram nascer o que existe e que nos desviamos da verdade originária , mas porque é o corpo
tem valor para nós; é descobrir que , na raiz do que conhecemos e que sustenta, em sua vida e sua morte , em sua for ça e fraqueza , a
do que somos, não há absolutamente a verdade e o ser , mas a exte- sanção de qualquer verdade e de qualquer erro , tal como ele sus-
rioridade do acidente21. Eis por que , sem d úvida , qualquer origem tenta também , e inversamente, a origem - proveniência. Por que os
da moral , a partir do momento em que ela não é vener ável - e a 1
i
homens inventaram a vida contemplativa? Por que atribuíram um
Herkunft nunca o é - é crí tica22. valor supremo a este tipo de existência? Por que atribuíram verda-
Perigosa herança, esta que nos é transmitida por tal proveniên- de absoluta às imaginações que nela se formam? “ Durante as épo-
cia. Nietzsche associa , em várias ocasiões , os termos Herkunft e cas bárbaras ( . .. ) se o vigor do indivíduo decai , se ele se sente fatiga-
Erbschaft . Mas não nos enganemos - essa heran ça não é de forma do ou doente , melancólico ou saciado e , conseq üentemente , de for -
alguma adquirida , um ter que se acumula e se solidifica; é antes ma tempor ária , sem desejos e sem apetites , ele se torna um homem
um conjunto de falhas , fissuras , estratos heterogé neos que a tor - relativamente melhor , ou seja, menos perigoso e suas id éias pessi-
nam instável e , do interior ou de baixo, ameaçam o fr ágil herdeiro : mistas se formulam apenas por palavras e reflexões . Nesse estado
“ A injustiça e a instabilidade no espírito de
alguns homens , sua de- de espírito , ele se tornará um pensador e anunciador , ou então sua
sordem e falta de medida são as conseqüê ncias ú ltimas de inume- i imaginação desenvolverá suas superstições.” 26 O corpo - e tudo o
r áveis inexatid ões lógicas, de falta de profundidade , de conclusões i que se refere ao corpo: a alimentação , o clima , o solo - é o lugar da
prematuras das quais seus ancestrais se tornaram culpados . ” 23 A Herkunft : no corpo se encontra o estigma dos acontecimentos pas-
investigação da proveniê ncia não funda , muito pelo contr á rio : ela sados , assim como dele nascem os desejos, os desfalecimentos e os
agita o que antes se percebia como imóvel , fragmenta o que se pen- erros ; nele também se ligam e subitamente se exprimem , mas nele
sava unificado ; mostra a heterogeneidade do que se imaginava con- també m se desligam , entram em luta , se apagam uns e outros e
forme a si mesmo. Que convicção resistiria a ela? Mais ainda , que prosseguem seu insuperável conflito.
saber ? Façamos um pouco a análise geneal ógica dos cientistas - O corpo: superf ície de inscrição dos acontecimentos ( enquanto a
daquele que coleciona fatos e os manté m cuidadosamente registra- linguagem os marcam e as id éias os dissolvem ) , lugar de dissocia-
dos , ou daquele que demonstra e refuta; sua Herkunft revelará ra- F ção do Eu ( ao qual ele tenta atribuir a ilusão de uma unidade subs-
pidamente a papelada do escrivão ou as defesas do advogado - pai tancial ) , volume em perpé tua pulverização . A genealogia , como
deles24 - em sua aten ção aparentemente desinteressada , em sua análise da proveniê ncia , está , portanto , na articulação do corpo
“ pura” ligação com a objetividade . com a história . Ela deve mostrar o corpo inteiramente marcado
Enfim , a proveniê ncia se relaciona com o corpo25. Ela se inscreve pela história , e a história arruinando o corpo .
no sistema nervoso , no humor , no aparelho digestivo . Má respira- 4 ) Entstehung designa antes a emerg ê ncia , o ponto de surgi-
ção , má alimentação , corpo d é bil e vergado daqueles cujos ances- mento . É o princípio e a lei singular de um aparecimento. Tal como
trais cometeram erros ; que os pais tomem os efeitos por causas ,
se tenta muito freq üentemente buscar a proveniê ncia em uma con -
que acreditem na realidade do alé m ou coloquem o valor do eterno ,
tinuidade ininterrupta , també m se estaria enganado em dar conta
é o corpo da crian ça que sofrer á com isSo . A covardia , a hipocrisia , da emergê ncia pelo termo final. Como se o olho tivesse surgido ,
simples crias do erro; não no sentido socrático, não porque seja
desde tempos imemoriais , para a contemplação , como se o castigo
necessário se enganar para ser malvado, não absolutamente por - sempre estivesse destinado a dar o exemplo. Esses fins, aparente-
mente últimos , não passam do episódio atual de uma sé rie de sub-
21. ( N.A . ) Gé néalogie , III , 17. Abkunft do sentimento depressivo. k missões: o olho foi submetido de início à caça e à guerra; o castigo
22. ( N .A . ) Le cré puscule ... , “ Raisons de la philosophie ” .
23. ( N .A . ) Aurore , § 247.
foi alternadamente submetido à necessidade de se vingar , de ex
cluir o agressor , de libertar -se da vítima , de aterrorizar os outros.
-
24. ( N.A. ) Le gai savoir , § 348-349.
.
25. ( N .A . ) Ibid . : ‘‘Der Mensch aus einem Auflosungszeitalters.. der die Erbschaft
einer vielf áltigere Herkunft im Leibe hat ” (§ 200 ) . 26 . ( N .A. ) Aurore , § 42 .

k
268 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1971 - Nietzsche , a Genealogia, a História 269

Localizando o presente na origem , a metafísica faz crer no trabalho A emergê ncia é , portanto , a entrada em cena das forças; é sua ir -
obscuro de uma destinação que procuraria emergir desde o primei- rupção , o salto pelo qual elas passam dos bastidores ao palco , cada
ro momento. A genealogia restabelece os diversos sistemas de sub- uma com o vigor e a jovialidade que lhe é pró pria. O que Nietzsche
missão: não absolutamente a potência antecipadora de um senti- chama da Entstehungsherd 30 do conceito de bom não é exatamente
do, mas o jogo casual das dominações. nem a energia dos fortes nem a reação dos fracos, mas essa cena
A emergê ncia sempre se produz em um determinado estado de em que eles se distribuem uns diante dos outros, uns acima dos
for ças. A análise da Entstehung deve mostrar seu jogo , o modo outros ; é o espaço que os divide e se abre entre eles , o vazio através
pelo qual elas lutam umas contra as outras , ou o combate que tra- do qual eles trocam suas ameaças e suas palavras. Enquanto a pro-
vam diante de circunstâncias adversas, ou ainda sua tentativa - di- veniência designa a qualidade de um instinto, sua intensidade ou
vidindo-se contra si mesmas - de escapar à degenerescê ncia e reco- seu desfalecimento e a marca que ele deixa em um corpo , a emer -
brar o vigor a partir de seu pr óprio enfraquecimento. Por exemplo , gê ncia designa um lugar de confrontação ; ainda é preciso evitar
a emergê ncia de uma espécie ( animal ou humana ) e sua solidez são concebê-la como um campo fechado no qual se desenrolaria uma
asseguradas “ por um longo combate contra as condições constante luta , um plano em que os adversários estariam em igualdade ; é an -
e essencialmente desfavor áveis". Efetivamente , "a espécie teve ne- tes - o exemplo dos bons e dos maus o prova - um “ não-lugar ” , uma
cessidade da espé cie enquanto espécie , como de alguma coisa que , pura distância, o fato de os adversá rios não pertencerem ao mes-
graças à sua dureza , à sua uniformidade , à simplicidade de sua for - mo espaço . Ningué m é , portanto , responsável por uma emergê ncia ,
ma pôde se impor e se tornar durável na luta perpé tua com os vizi- ningu ém pode se atribuir a glória por ela ; ela sempre se produz no
nhos ou os oprimidos em revolta” . Em contrapartida , a emergê ncia interstício .
das variações individuais se produz em um outro estado de forças , Em certo sentido, a peça representada nesse teatro sem lugar é
quando a espécie triunfou , quando o perigo externo não mais a sempre a mesma: aquela que os dominadores e dominados repe-
ameaça e se desenvolve a luta “ dos egoísmos voltados uns contra os tem perpetuamente . Homens dominam outros homens , e assim
outros que eclodem de alguma forma , lutando juntos pelo sol e pela nasce a diferenciação dos valores31 ; classes dominam outras clas-
luz ” 27. Ocorre també m que a for ça lute contra si mesma: e não so- ses , e assim nasce a id éia de liberdade32 . Os homens se apoderam
mente na embriaguez de um excesso que lhe permite dividir -se , das coisas de que têm necessidade para viver , impondo-lhes uma
mas no momento em que ela enfraquece . Ela reage contra sua las- duração que elas não tê m , ou eles as assimilam pela for ça , e é o
sid ão , retirando sua força dessa pró pria lassid ão que , no entanto , nascimento da lógica33. A relação de dominação não é mais uma
não deixa de crescer e , voltando-se contra ela para abatê-la mais “ relação ” , nem o lugar onde ela se exerce é mais um lugar . E é por
ainda , vai lhe impor limites , suplícios e macerações, investi-la de isso precisamente que , em cada momento da história , ela se fixa
um alto valor moral e assim , por sua vez , ela recobrará vigor . Tal é em um ritual; ela impõe obrigações e direitos , constitui cuidadosos
o movimento pelo qual nasce o ideal ascé tico “ no instinto de uma procedimentos. Ela estabelece marcas , grava lembran ças nas coi-
vida em degeneração que . . . luta pela existê ncia” 28. Esse é també m o sas e até nos corpos ; ela se responsabiliza por dívidas . Universo de
movimento pelo qual nasceu a Reforma, ali onde precisamente a regras que não é de forma alguma destinado a apaziguar mas, ao
Igreja estava menos corrompida 29 ; na Alemanha do século XVI , o contr ário , a satisfazer a violê ncia. Seria um erro acreditar , segundo
catolicismo ainda tinha bastante força para voltar -se contra si mes- o esquema tradicional , que a guerra geral , esgotando-se em suas
mo, castigar seu próprio corpo e sua própria história e espirituali- próprias contradições , acaba por renunciar à violência e aceita se
zar-se em uma pura religião da consciência . suprimir nas leis da paz civil * A regra é o prazer calculado da obsti-

-
27 . ( N .A . ) Par del à ... , § 262.
30 . ( N .A . ) G é néalogie , I , 2 .
28. ( N .A. ) Généalogie , III , 13.
29 . ( N .A. ) Le gai savoir , § 148. É também a uma anemia da vontade que é preciso
31 . . . .
( N .A. ) Par-del à .. , § 260 Cf também a G é néalogie , II , 12.
32 . ( N .A. ) Le voyageur et son ombre , § 9.
atribuir a Entstehung do budismo e do cristianismo , § 347.
33. .
( N .A. ) Le gai savoir , § 111
270 Michel Foucault - Ditos e Escritos
1971 - Nietzsche , a Genealogia, a História 271

nação, é o sangue prometido. Ela permite relançar ininterrupta- 5 ) Quais são as relações entre a genealogia, definida como pes-
mente o jogo da dominação; ela encena uma violência minuciosa- quisa áaHerkunft e da Entstehung , e o que se chama habitualmen -
mente repetida. O desejo de paz , a serenidade do compromisso , a te de história? Conhecemos as cé lebres apóstrofes de Nietzsche
aceitação tácita da lei, longe de serem a grande conversão moral ou contra a história e ser á preciso retomá-las agora. No entanto , a ge-
o cálculo utilitário que deram nascimento à regra, são apenas seu nealogia é às vezes designada como wtrkliche Historie: em vários
resultado e , propriamente falando , sua perversão: “ Falta , cons- momentos ela é caracterizada pelo “ espírito” ou “ sentido históri-
ciê ncia , dever têm sua emergência no direito de obrigação ; e em i .gfc
co 35 . De fato o que Nietzsche não parou de criticar , desde a segun-
»»

seus começos , como tudo o que é grande na terra, foi banhado de da das Intempestivas , é essa forma de história que reintroduz ( e
sangue. ” 34 A humanidade não progride lentamente, de combate em supõe sempre ) o ponto de vista supra-histórico: uma história que
combate , até uma reciprocidade universal, na qual as regras subs- teria por função recolher , em uma totalidade bem fechada em si
tituiriam , para sempre , a guerra ; ela instala cada uma dessas vio- mesma , a diversidade finalmente reduzida do tempo; uma história
lências em um sistema de regras, e prossegue assim de dominação que permitiria nos reconhecermos em todo lugar e dar a todos os
r .
em dominação. t- deslocamentos passados a forma da reconciliação ; uma história
A
i' -
E justamente a regra que permite que seja feita violê ncia à vio- que lançaria sobre o que está atrás dela um olhar de fim do mundo .
lê ncia e que uma outra dominação possa dobrar aqueles mesmos ll Essa histó ria dos historiadores constr ói para si um ponto de apoio
que dominam . Em si mesmas , as regras são vazias, violentas , não fora do tempo; ela pretende tudo julgar de acordo com uma objeti-
finalizadas ; são feitas para servir a isto ou àquilo ; elas podem ser vidade apocalí ptica; isso porque ela supôs uma verdade eterna ,
burladas ao sabor da vontade de uns ou de outros . O grande jogo uma alma que não morre , uma consciê ncia sempre idê ntica a si
da história ser á de quem se apossar das regras , de quem tomar o r
mesma . Se o sentido histórico se deixa dominar pelo ponto de vista
lugar daqueles que as utilizam, de quem se disfarçar para perver- supra-histórico , a metafísica pode então retomá-lo por sua conta e ,
tê-las , utilizá-las pelo avesso e voltá-las contra aqueles que as ti- fixando-o sob as formas de uma ciê ncia objetiva , impor -lhe seu
nham imposto; de quem , introduzindo-se no complexo aparelho , o I pr ó prio “ egipcianismo” . Em contrapartida , o sentido histórico es-
far á funcionar de tal forma que os dominadores se encontrar ão do- capar á da metaf ísica para se tornar o instrumento privilegiado da
minados por suas próprias regras. As diferentes emergências que genealogia se ele não se apoia em nenhum absoluto. Ele deve ter
podem ser destacadas não são figuras sucessivas de uma mesma í
apenas essa acuidade de um olhar que distingue , reparte , dispersa ,
significação: são efeitos de substituições , reposições e deslocamen- deixa agir as separações e as margens - uma espécie de olhar que
tos , de conquistas disfar çadas, de inversões sistemáticas. Se inter- dissocia , capaz de se dissociar dele mesmo e apagar a unidade des -
pretar fosse focalizar lentamente uma significação oculta na ori- se ser humano que , supostamente , o conduz soberanamente na di-
gem , apenas a metaf ísica poderia interpretar o devir da humanida- reção do seu passado .
de . Mas se interpretar é apoderar -se , pela violê ncia ou sub-repção , ! O sentido histórico , e é nisto que ele pratica a wirkliche Historie ,
de um sistema de regras que não tem em si a significação essencial reintroduz no devir tudo aquilo que se havia acreditado imortal no
e impor -lhe uma direção, dobrá-lo a uma nova vontade , fazê-lo en- homem . Cremos na perenidade dos sentimentos? Mas todos, e so-
trar em um outro jogo e submetê-lo a novas regras , então o devir da bretudo aqueles que nos parecem os mais nobres e os mais desin-
humanidade é uma sé rie de interpretações . E a genealogia deve ser teressados, tê m uma história. Cremos na surda constância dos ins-
a sua história: história das morais, dos ideais, dos conceitos meta- I tintos , e imaginamos que eles estão sempre em ação, aqui e lá, ago-
f ísicos , história do conceito de liberdade ou da vida ascética , como ra como antigamente . Mas o saber histórico não tem dificuldade
emergências de diferentes interpretações. Trata-se de fazê-las sur- -
em esfacelá-los em mostrar seus avatares, demarcar seus mo-
gir como acontecimentos no teatro dos procedimentos . mentos de for ça e de fraqueza , identificar seus reinos alternantes ,

34. ( N .A . ) Gé néalogie , II , 6.
í 35. ( N .A. ) Généalogie , prefácio, § 7; e I , 2. Par-delà ... , § 224 .
272 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1971 - Nietzsche , a Genealogia , a História 273

apreender sua lenta elaboração e os movimentos pelos quais , vol- um vocabulário retomado e voltado contra seus utilizadores , uma
tando-se contra eles mesmos , eles podem obstinar-se em sua pr ó- dominação que se enfraquece , se amplia e se envenena e uma outra
pria destruição36 . Pensamos, em todo caso, que o corpo não tem que faz sua entrada, mascarada. As forças que estão em jogo na
outras leis a não ser as de sua fisiologia, e que ele escapa à história. história não obedecem nem a uma destinação nem a uma mecâni-
Novo erro ; ele é dominado por uma sé rie de regimes que o cons- ca , mas ao acaso da luta38. Elas não se manifestam como as formas
%
troem ; é destroçado por ritmos de trabalho, de repouso e de festas; i sucessivas de uma intenção primordial ; tampouco têm a apar ência
é intoxicado por venenos - simultaneamente alimentos ou valores , de um resultado. Elas surgem sempre no aleatório singular do aconte-
hábitos alimentares e leis morais; ele cria resistências37. A história ll cimento. Diferentemente do mundo cristão, universalmente tecido
“ efetiva ” se distingue daquela dos historiadores por não se pela aranha divina , diferentemente do mundo grego , dividido entre
apoiar
em nenhuma constância: nada no homem , nem seu próprio corpo , 1 o reino da vontade e o da grande besteira cósmica , o mundo da his-
é bastante fixo para compreender os outros homens e neles se reco- tória efetiva conhece apenas um reino , no qual não há provid ê ncia
nhecer . Tudo aquilo em que o homem se apoia para se voltar na di- nem causa final , mas somente “ a mão de ferro da necessidade que
! r '

reção da história e apreendê-la em sua totalidade , tudo aquilo que ï sacode o copo de dados do acaso” 39. Ainda é preciso compreender
permite retraçá-la como um paciente movimento contí nuo , trata-se 1
? esse acaso não como simples sorteio , mas como o risco sempre re-
de sistematicamente destruir tudo isso . É preciso destruir tudo novado da vontade de potê ncia que , a todo surgimento do acaso ,
aquilo que o jogo apaziguante dos reconhecimentos permitia. Sa- opõe , para controlá-lo , o risco de um acaso ainda maior 40 . Embora
ber , mesmo na ordem histórica, não significa “ reencontrar ” e so- o mundo , tal como o conhecemos , não seja essa figura simples em
bretudo nã o significa “ nos reencontrarmos” . A história ser á “ efeti- li que todos os acontecimentos se apagaram para que se apresentem
va ” à medida que reintroduzir o descontínuo em nosso pr óprio ser . pouco a pouco os traços essenciais , o sentido final , o valor primei -
Ela dividir á nossos sentimentos; dramatizar á nossos instintos ; ro e ú ltimo ; é , ao contr á rio , uma miríade de acontecimentos entre-
multiplicar á nosso corpo e o opor á a ele mesmo. Ela não deixar á laçados; se ele nos parece hoje ‘‘maravilhosamente matizado , pro-
debaixo de si nada que tivesse a estabilidade asseguradora da vida I fundo , pleno de sentido” é porque uma “ multid ão de erros e fantas-
ou da natureza; não se deixar á levar por nenhuma obstinação mas” o fez nascer e o povoa ainda em segredo41 . Acreditamos que
muda na direção de um fim milenar . Ela ir á esvaziar aquilo sobre o nosso presente se apoia em intenções profundas , em necessidades
que se costuma fazê-la repousar , e se obstinar á contra sua preten- estáveis ; pedimos aos historiadores para nos convencer disso . Mas
sa continuidade . Porque o saber não é feito para compreender ; ele F o verdadeiro sentido histó rico reconhece que vivemos , sem refe-
é feito para cortar. rê ncias nem coordenadas originá rias, em mir íades de aconteci-
A partir daí , se podem apreender os traços característicos do P mentos perdidos.
sentido histórico , tal como Nietzsche o entende , e que opõe à histó- l
Ele tem també m o poder de inverter a relação entre o pr óximo e
ria tradicional a wirkltche Historie . Esta inverte a relação habitual- o longí nquo tal como eles foram estabelecidos pela hist ó ria tradi-
mente estabelecida entre a irrupção do acontecimento e a necessi- 1 cional , em sua fidelidade à obediê ncia metaf ísica . Esta na verdade
dade contínua. Há toda uma tradição da história ( teológica ou racio- se compraz em lançar um olhar para o longínquo e para as alturas:
nalista ) que tende a dissolver o acontecimento singular em uma as é pocas mais nobres , as formas mais elevadas , as id é ias mais
continuidade ideal - movimento teleológico ou encadeamento natu- abstratas , as individualidades mais puras. E , para fazê-lo , tenta se
ral. A história “ efetiva” faz surgir o acontecimento no que ele pode 5
P.: aproximar o mais possível delas , colocar -se ao pé desses cumes ,
ter de ú nico e agudo. Acontecimento: é preciso entend ê-lo não Í
L em condições de ter sobre eles a famosa perspectiva das r ãs. A his-
como uma decisão, um tratado , um reino ou uma batalha , mas
f
como uma relação de forças que se inverte , um poder confiscado ,
38. ( N .A. ) G é néalogie , II , 12.
i 39. ( N .A. ) Aurore , § 130.
36. ( N.A . ) Le gai savoir , § 7 . 40 . .
( N .A ) G é néalogie , II , 12.
37 . ( N .A . ) Ibid . 41 . .
( N A . ) Humain , trop humain , § 16.
274 Michel Foucault - Ditos e Escritos % 1971 - Nietzsche , a Genealogia, a História 275

tória efetiva , ao contr ário , lança seus olhares sobre o mais pr óximo olha , em vez de ali buscar sua lei e de submeter a isso cada um de
ï
- sobre o corpo, o sistema nervoso , a nutrição e a digestão , as ener - seus movimentos , é um olhar que sabe de onde olha , assim como o
gias; ela perscruta as decadências; e se ela afronta as altas épocas é que olha. O sentido histórico dá ao saber a possibilidade de fazer ,
i-
com a suspeita , não rancorosa mas alegre , de uma agitação bárba- no pr óprio movimento de seu conhecimento , sua genealogia . A
ra e inconfessável. Ela não teme olhar embaixo , mas olha do alto , wirkliche Historie efetua uma genealogia da história como a proje-
mergulhando para apreender as perspectivas, desdobrar as dis- ção vertical do lugar em que ela se sustenta.
persões e as diferenças , deixar a cada coisa sua medida e sua inten-
sidade . Seu movimento é oposto ao dos historiadores , que operam 6 ) Nessa genealogia da história que esboça em diversas ocasiões ,
-
sub repticiamente: eles fingem olhar para mais longe de si mes- Nietzsche liga o sentido histórico à história dos historiadores. Um e
mos , mas de modo baixo , rastejando, aproximam -se desse longí n- outra têm um ú nico começo, impuro e misturado. Saíram de um
quo promissor ( no que eles são como os metaf ísicos que vêem , mesmo signo , no qual se podem reconhecer tanto o sintoma de
bem acima do mundo , um alé m , apenas para prometê-lo a si mes- uma doen ça como o germe de uma flor maravilhosa45 ; eles surgi -
mos a título de recompensa ) ; a história efetiva olha para o mais ram ao mesmo tempo e é em seguida que terão que se distribuir .
pr óximo , mas para dele afastar-se bruscamente e apreend ê -lo a Sigamos , ainda sem diferenciá-los , sua genealogia comum .
distância ( olhar semelhante ao do m édico que mergulha para diag- A proveniência ( Herkunft ) do historiador é inequívoca: ela é de
nosticar e dizer a diferença ) . O sentido histórico é muito mais pr ó- baixa extração. Um dos traços da história é o de não escolher: ela
ximo da medicina do que da filosofia . “ Historicamente e fisiologica- se impõe o dever de tudo conhecer , sem hierarquia de importância ;
mente ” , diz às vezes Nietzsche 42. Nada há nisso de espantoso , já de tudo compreender , sem distinção de altura ; de tudo aceitar ,
que , na idiossincrasia do filósofo, encontra-se també m a denega- sem fazer diferença. Nada deve lhe escapar , mas também nada
ção sistemática do corpo e “ a falta de sentido histórico , o ódio con- deve ser exclu ído. Os historiadores dir ão que isso é uma prova de
tra a id éia do devir , o egipcianismo” , a obstinação em "colocar no tato e de discrição: com que direito fariam intervir seu gosto , quan -
começo o que vem no fim" e "as coisas últimas antes das primei- í do se trata dos outros, de suas preferê ncias , quando se trata do
ras » 43. A história tem mais a fazer do que ser a serva da filosofia e que realmente se passou? Mas , na verdade , é uma total ausê ncia de
narrar o nascimento necessário da verdade e do valor ; ela deve ser gosto , uma certa grosseria que tenta manter , com o que é mais eleva-
r do, ares de familiaridade, uma satisfação em encontrar o que é bai-
o conhecimento diferencial das energias e dos desfalecimentos , das
alturas e das profundezas , dos venenos e dos antídotos . Ela deve xo. O historiador é insensível a todos os nojos : ou melhor , ele tem
ser a ciê ncia dos remédios44 . prazer com aquilo mesmo que o coração deveria afastar . Sua apa-
Finalmente, a última característica desta história efetiva. Ela rente serenidade se obstina em nada reconhecer de grande e reduzir
não teme ser um saber perspectivo. Os historiadores buscam , na tudo ao mais fraco denominador . Nada deve ser mais elevado do que
medida do possível , apagar o que pode revelar , em seu saber , o lu- ele. Se ele deseja tanto saber , e tudo saber , é para surpreender os se-
gar de onde eles olham , o momento em que eles estão, o partido gredos que rebaixam. “ Baixa curiosidade.” De onde vem a história?
que eles tomam , o incontornável de sua paixão. O sentido históri- Da plebe. A quem se dirige? À plebe . E o discurso que ele lhe dirige
co , tal como Nietzsche o entende , se sabe perspectiva , e não recusa se assemelha muito ao do demagogo: “ Ninguém é maior do que vo-
o sistema de sua própria injustiça. Ele olha sob um certo ângulo , cês” , diz este , "e aquele que tiver a presunção de ser superior a vo-
com o propósito deliberado de apreciar , de dizer sim ou não, de se- cês, a vocês que são bons , é malvado” ; e o historiador , que é seu du -
guir todos os traços do veneno , de encontrar o melhor antídoto . plo , lhe faz eco: "Nenhum passado é maior do que o seu presente , e
Em vez de fingir um discreto apagamento diante daquilo que ele de tudo o que na história pode se apresentar com o ar da grandeza ,
meu saber meticuloso lhes mostrará a pequenez , a crueldade e a in-
felicidade . ” O parentesco do historiador remonta a Sócrates .
42 . ( N .A . ) Le cré puscule des idoles , “ Flâneries inactuelles” , § 44.
43. ( N.A. ) Ibid ., “ La raison dans la philosophie" , § 1 e 4.
44 . ( N .A . ) Le voyageur et son ombre , § 188. 45. ( N .A. ) Le gai savoir , § 337.

j
276 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1971 - Nietzsche , a Genealogia , a História 277

Mas esta demagogia deve ser hipócrita . Ela deve esconder seu mais: o europeu não sabe quem é ; ignora que raças nele se mistu -
singular rancor sob a máscara do universal . E , exatamente como o raram ; busca o papel que poderia ter sido o seu ; ele não tem indivi-
demagogo deve invocar a verdade , a lei das essê ncias e a verdade dualidade . Compreende-se então por que o século XIX é esponta-
eterna , o historiador deve invocar a objetividade , a exatidão dos fa- neamente historiador : a anemia de suas for ças , as misturas que
tos, o passado inamovível . O demagogo é conduzido à denegação apagaram todas as suas características produzem o mesmo efeito
do corpo para estabelecer a soberania da idéia intemporal ; o histo-
g que as macerações do ascetismo ; a impossibilidade em que ele se
riador é levado ao apagamento de sua pr ópria individualidade para encontra de criar , sua ausê ncia de obra , a obrigação em que ele se
que os outros entrem em cena e possam tomar a palavra. Ele ter á , encontra de se apoiar no já feito e em outros lugares o constrangem
portanto, que se obstinar contra ele mesmo: fazer calar suas prefe- 5* à baixa curiosidade do plebeu.
.
r ê ncias e superar suas aversões, embaralhar sua própria perspec- Mas , se esta é a genealogia da histó ria , como é possível que ela se
tiva para substituí-la por uma geometria ficticiamente universal , torne análise genealógica? Como não permanecer um conhecimen-
imitar a morte para entrar no reino dos mortos , adquirir uma qua- to demagógico e religioso? Como ela pode , nesta mesma cena , tro-
se-existê ncia sem cara e sem nome. E , nesse mundo em que ele ter á car de papel? Apenas se nos apoderarmos dela , a dominarmos e a
refreado sua vontade individual, ele poder á mostrar aos outros a * voltarmos contra seu nascimento. Este é de fato o pr ó prio da
lei inevitável de uma vontade superior . Tendo pretendido apagar de Entstehung : não é o surgimento necessário daquilo que , durante
seu pr óprio saber todos os traços do querer , ele reencontrará , do bastante tempo , tinha sido preparado antecipadamente ; é a cena
lado do objeto a conhecer , a forma de um querer eterno. A objetivi- em que as forças se arriscam e se confrontam , em que podem triun-
dade no historiador é a interversão das relações do querer no saber far , mas na qual se pode també m confiscá-las. O lugar de emergên-
e , ao mesmo tempo, a crença necessária na Provid ê ncia, nas cau- cia da metaf ísica foi a demagogia ateniense , o rancor plebeu de So-
sas finais e na teleologia. O historiador pertence à família dos asce- crates, sua crença na imortalidade . Mas Platão teria podido apode-
tas . Não posso mais suportar esses eunucos concupiscentes da rar -se dessa filosofia socr ática , teria podido voltá-la contra ela
história , todos os parasitas do ideal ascé tico ; nao posso mais su - mesma , e sem d ú vida mais de uma vez ele foi tentado a fazê-lo . Sua
portar esses sepulcros caiados que produzem a vida; não posso su - derrota foi ter conseguido fundá-la . O problema do século XIX é
portar esses seres fatigados e enfraquecidos que se cobrem de sa- nao fazer , pelo ascetismo popular dos historiadores, o que Platão
bedoria e se atribuem um olhar objetivo. ” 46 fez pelo de Sócrates . É preciso não fund á-lo em uma filosofia da
1
Passemos à Entstehung da história ; seu lugar é a Europa do sé- história , mas despedaçá-lo a partir do que ele produziu; tornar -se
culo XIX: pátria das misturas e das bastardias; época do ho- 1
tr mestre da história para fazer dela um uso genealógico , ou seja um
mem-mistura . Em relação aos momentos de alta civilização , ei-nos uso rigorosamente antiplatônico. Só então o sentido histórico ir á
aqui como bárbaros: temos diante dos olhos cidades em ruínas e se libertar da história supra-histórica.
monumentos enigmáticos ; somos detidos por muralhas abertas .
7 ) O sentido histórico comporta tr ês usos que se opõem , termo
Perguntamo-nos que deuses puderam habitar todos esses templos
por termo, às três modalidades platónicas da história. Um é o uso
vazios . As grandes épocas não tinham tais curiosidades nem tão
par ódico e destruidor da realidade , que se opõe ao tema da histó-
grandes respeitos; elas não reconheciam predecessores ; o classi-
cismo ignorava Shakespeare. A decadê ncia da Europa nos oferece -
ria reminiscê ncia ou reconhecimento ; outro é o uso dissociativo e
destruidor da identidade , que se opõe à história-continuidade ou
um espetáculo imenso, cujos momentos mais fortes são omitidos I. tradição; o terceiro é o uso sacrificial e destruidor da verdade , que
ou dispensados. O pr óprio da cena em que nos encontramos hoje é
se opõe à história-conhecimento. De qualquer forma , trata-se de fa-
representar um teatro ; sem monumentos que sejam nossa obra e
zer da história um uso que a liberte para sempre do modelo , simul-
que nos pertençam , vivemos em uma multid ão de cená rios. Há
taneamente metaf ísico e antropológico , da memória. Trata-se de fa-
zer da história uma contramemória e de desdobrar , conseqüente-
46. ( N.A . ) Gé né alogie , III , 25. mente , uma forma totalmente diferente do tempo .
278 Michel Foucault - Ditos e Escritos
1971 - Nietzsche , a Genealogia, a História 279

Primeiramente , o uso par ódico e burlesco. A esse homem confu- 1' trecruzam e dominam uns aos outros. Quando estudamos a histó-
so e an ónimo que é o europeu - e que não sabe mais quem ele é , ria nos sentimos “ felizes , ao contrário dos metafísicos , por abrigar
qual nome deve usar - o historiador oferece identidades sobressa- em nós não uma alma imortal , mas muitas almas mortais ” 48. E , em
lentes , aparentemente melhor individualizadas e mais reais do que cada uma dessas almas , a história não descobrir á uma identidade
a sua. Mas o homem do sentido histórico não deve se enganar a res- esquecida sempre pronta a renascer , mas um sistema complexo de
peito desse substituto que ele oferece : este n ão passa de um
disfar - elementos por sua vez múltiplos , distintos e que não é dominado
ce . Alternadamente se ofereceu à Revolução o modelo romano ; ao por nenhum poder de síntese: “ É um sinal de cultura superior
romantismo , a armadura do cavaleiro; à é poca wagneriana , a espa- manter em toda consciência certas fases da evolução que os ho-
da do herói germânico; mas esses são ouropéis cuja irrealidade re- mens menores atravessam sem pensar .. . O primeiro resultado é
mete à nossa própria irrealidade. Deixa-se a alguns a liberdade de I que compreendemos nossos semelhantes como sistemas inteira-
venerar essas religiões e de celebrar em Bayreuth a memória desse mente determinados e como representantes de culturas diversas ,
novo além; a eles é dada a liberdade de se fazerem vendedores am- ou seja , como necessários e modificáveis. E, em contrapartida:
bulantes de identidades vazias. O bom historiador , o genealogista , que , em nossa pr ópria evolução , somos capazes de separar peda -
saber á o que é preciso pensar de toda essa mascarada. Não absolu- ços e consider á-los à parte. ” 49 A histó ria, genealogicamente dirigi -
tamente que ele a recuse por espírito de seriedade; ao contrário , ele í da , não tem por finalidade reencontrar as raízes de nossa identida-
quer levá-la ao extremo: quer encenar um grande carnaval do tem- de , mas , ao contr ário , obstinar -se em dissipá-la; não busca demar -
po em que as máscaras retornam incessantemente . Em vez de car o territó rio ú nico de onde viemos, essa primeira pátria à qual
identificar nossa pálida individualidade às identidades intensa- os metaf ísicos nos prometem que voltaremos; ela pretende fazer
mente reais do passado , trata-se de nos irrealizarmos em identida- aparecer todas as descontinuidades que nos atravessam . Esta fun -
i
II
des reaparecidas; e retomando todas essas m áscaras - Frederico
ção é o oposto da que queria exercer , conforme as Intempestivas , a
de Hohenstaufen , César , Jesus , Dionísio e talvez Zaratustra -, re- “ histó ria-antiqu ário” . Tratava-se ali de reconhecer as continuida-
come çando nelas a farsa da história , retomaremos em nossa irrea- des nas quais se enraíza nosso presente: continuidades de solo, de
lidade a identidade mais irreal do Deus que a traçou , “ Talvez des-
lí ngua, de cidade ; tratava-se , “ cultivando-se com uma mão delicada
cubramos aqui o dom ínio em que a originalidade é ainda possível o que sempre existiu, de conservar para aqueles que virão as condi-
para n ós , talvez como parodistas da histó ria e como polichinelos
ções sob as quais se nasceu ” 50. A tal história , as Intempestivas ob-
de Deus . ** 47 Reconhece-se aqui o duplo par ódico do que a segunda
jetavam que ela corre o risco de impedir qualquer criação em nome
Intempestiva chamava de “ história monumental” : histó ria que se
da lei de fidelidade . Um pouco mais tarde - já em Humano , dema -
atribu ía a tarefa de restituir os grandes á pices do devir , susten-
siado humano -, Nietzsche retoma a tarefa antiquária, mas na di-
tá-los em uma presença perpétua, reencontrar as obras , as ações ,
reção totalmente oposta. Se a genealogia coloca por sua vez a ques-
as criações conforme o monograma de sua íntima essê ncia. Mas ,
tão do solo que nos viu nascer , da língua que falamos ou das leis
em 1874 , Nietzsche criticava essa histó ria totalmente dedicada à
que nos regem é para evidenciar os sistemas heterogéneos que , sob
veneração , por obstruir o acesso às intensidades atuais da vida e às
a máscara de nosso eu , nos proíbem de qualquer identidade.
suas criações. Trata-se , ao contr ário , nos ú ltimos textos , de paro-
Terceiro uso da histó ria : o sacrif ício do sujeito do conhecimen - J
diá-la para tornar assim evidente que ela pr ópria não passa de uma 4
to. Aparentemente , ou melhor , conforme a máscara que ela usa , a
paródia . A genealogia é a histó ria como um carnaval orquestrado.
consciê ncia histó rica é neutra , despojada de qualquer paixão , obs-
Outro uso da história: a dissociação sistemá tica de nossa identi-
tinada somente com a verdade. Mas , se ela se interroga e se , de i
dade. Pois essa identidade , no entanto bem fr ágil , que tentamos as-
uma maneira mais geral , interroga toda consciê ncia científica em
segurar e reunir sob uma máscara , não passa de uma paródia: o
plural a habita , inumeráveis almas nela disputam ; sistemas se en-
48. ( N .A. ) Le voyageur et son ombre ( Opinions et sentences mêl ées ) , § 17.
49. ( N .A. ) Humain, trop humain , § 274.
-
47. ( N .A . ) Par del à... . § 223. 50 . ( N .A. ) Consid é rations intempestives , II , 3.
280 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1971 - Nietzsche, a Genealogia , a História 281

sua história , descobre as formas e as transformações da vontade luto ) , os dois temas principais legados por Fichte e Hegel , pelo
de saber que é instinto , paixão , obstinação inquiridora , refinamen- tema segundo o qual “ morrer pela consciê ncia absoluta certamente
to cruel, maldade ; ela descobre a violê ncia das opiniões preconce- poderia fazer parte do fundamento do ser ” 54 . O que não quer dizer ,
bidas: o preconceito contra a felicidade ignorante , contra as ilusões no sentido da crítica, que a vontade de verdade seja limitada pela fi-
vigorosas pelas quais a humanidade se protege , preconceito contra ni tude do conhecimento , mas que ela perde qualquer limite e qual-
tudo aquilo que há de perigoso na pesquisa e de inquié tante na des- quer intenção de verdade no sacrif ício que ela deve fazer do sujeito
coberta51. A análise histórica desse grande querer -saber que per - do conhecimento . “ E talvez haja uma só idéia prodigiosa que , ainda
corre a humanidade faz simultaneamente aparecer que não há co- agora , poderia aniquilar qualquer outra aspiração, de modo que
nhecimento que não repouse na injustiça ( que não há , portanto , no *- ela superaria as mais vitoriosas - quero dizer , a id éia da humani-
pr ó prio conhecimento um direito à verdade ou um fundamento do Et
dade que sacrifica a si mesma. Pode-se jurar que se a constelação
verdadeiro ) e també m que o instinto de conhecimento é mau ( que dessa id é ia jamais aparecesse no horizonte , o conhecimento da
há nele alguma coisa de assassino e que ele não pode , que ele nada verdade permaneceria a ú nica grande meta à qual um sacrif ício se-
quer fazer para a felicidade dos homens ) . Assumindo , como o faz melhante seria proporcionado , porque pelo conhecimento nenhum
hoje , suas mais amplas dimensões , o querer -saber não se aproxi- sacrif ício é bastante grande . Esperando , o problema nunca foi colo-
ma de uma verdade universal ; ele não dá ao homem um exato e se- cado.. . ” 55
reno domínio sobre a natureza; ao contr ário, não cessa de multipli- As Intempestivas falavam do uso crítico da história: tratava-se
car os riscos; por todo lado faz nascer os perigos ; derruba as prote- de colocar o passado no banco dos r é us , de cortar suas raízes a
ções ilusórias ; desfaz a unidade do sujeito ; nele libera tudo o que se faca , de apagar as venerações tradicionais a fim de libertar o ho-
obstina em dividi-lo e em destruí-lo . Em vez de o saber separar -se mem e não lhe deixar outra origem senão aquela em que ele quer se
pouco a pouco de suas raízes empí ricas , ou das primeiras necessi- reconhecer . Nietzsche reprovava esta história crí tica por nos desli-
dades que o fizeram nascer , para se tornar pura especulação sub- gar de todas as nossas fontes reais e sacrificar o pr óprio movimen -
metida unicamente às exigê ncias da razão , em vez de estar ligado , to da vida unicamente à preocupação com a verdade. Vê-se , um
em seu desenvolvimento , à constituição e à afirmação de um sujei- pouco mais tarde , que ele retoma por conta pr ópria o que antes re-
to livre , ele traz consigo uma obstinação cada vez maior ; nele, a vio- cusava. Ele o retoma, mas com uma finalidade totalmente diversa:
lê ncia instintiva se acelera e cresce ; outrora as religiões pediam o não se trata mais de julgar nosso passado em nome de uma verda-
sacrif ício do corpo humano; hoje , o saber conclama a fazer expe- de que nosso presente seria o ú nico a deter ; trata-se de arriscar a
riê ncias sobre n ós mesmos52 , ao sacrif ício do sujeito do conheci- destruição do sujeito do conhecimento na vontade , infinitamente
mento. “ O conhecimento se transformou em nós em uma paixão desdobrada , de saber .
que não se aterroriza com nenhum sacrif ício , que no fundo tem Em certo sentido , a genealogia retorna às três modalidades da
apenas um só temor , o de se extinguir . . . A paixão do conhecimento história que Nietzsche reconhecia em 1874. Ela as retoma supe-
talvez faça perecer a humanidade .. . Se a paixão não matar a huma- rando as objeções que lhes fazia então em nome da vida, de seu po-
nidade , ela morrerá de fraqueza. Que preferimos? Eis a principal der de se afirmar e de criar . Mas retorna a elas , metamorfosean- i
questão . Queremos que a humanidade acabe no fogo e na luz , ou na do-as: a veneração dos monumentos se torna par ódia ; o respeito às
areia?” 53 Já é tempo de substituir os dois grandes problemas que antigas continuidades se transforma em dissociação sistemática ; a
dividiram o pensamento filosófico do século XIX ( fundamento recí- cr ítica das injustiças do passado pela verdade que o homem detém
proco da verdade e da liberdade , possibilidade de um saber abso- hoje se torna destruição do sujeito do conhecimento pela injustiça
pr ó pria da vontade de saber .
51. Cf. Aurore , § 429 e 432 ; Le gai savoir , § 333; Par- del à le bien et le mal , § 229 e ?
230.
52. Aurore , § 501. -
54. ( N.A. ) Par delà le bien et le mal , § 39.
53. Ibid . , § 429 . 55. ( N.A. ) Aurore , § 45.
M
1972 - Retornar à História 283

1972 ?
Essencialmente , uma maneira de criticar uma determinada forma
de história etnológica que era feita em sua época . Tylor havia forne-
§.
cido o seu modelo2 . Esta história pretendia que todas as socieda-
des humanas seguiam uma mesma curva de evolução , indo das for -
Retornar à História mas mais simples às mais complexas. Essa evolução apenas varia-
ria de uma sociedade para outra pela velocidade das transforma -
ções. Por outro lado , as grandes formas sociais , como, por exem-
plo, as regras de casamento ou as técnicas agr ícolas , seriam no fun-
“ Rekishi heno
kaiki ” ( “ Retornar à história” ) , Paideia , n2 11 : Michel Foucault , 1 - de do tipos de espé cies biológicas , e sua extensão , seu crescimento ,
fevereiro de 1972 , ps . 45-60 . (Conferência pronunciada na Universidade de Keio em seu desenvolvimento, sua distribuição também obedeceriam às
9 de outubro de 1970 . Texto estabelecido a partir de um dactilograma revisto por M . mesmas leis e aos mesmos padr ões que o crescimento e o desdo-
Foucault . )
bramento das espé cies biológicas . De qualquer forma, o modelo
que Tylor concebia para analisar o desenvolvimento e a história
i
das sociedades era o biológico . É a Darwin , e de uma maneira mais
As discussões sobre as relações entre o estruturalismo e a histó - geral ao evolucionismo , que Tylor se referia para relatar a histó ria
ria foram , não somente na França, mas na Europa , também na das sociedades.
Am é rica e talvez no Japão , não sei ao certo , numerosas, densas e O problema de Boas era libertar o m é todo etnológico desse velho
freq ü entemente confusas. E elas o foram por um certo n ú mero de modelo biológico e mostrar como as sociedades humanas , fossem
razões que são simples de enumerar. elas simples ou complexas , obedeciam a certas relações internas
A primeira é que ningu é m concorda com quem quer que seja so- que as definiam em sua especificidade ; esse processo interno a
bre o que é o estruturalismo. Em segundo lugar , a palavra “ histó- cada sociedade é o que Boas chamava de a estrutura de uma socie-
ria” , na França , significa duas coisas: aquilo de que falam os histo- dade , estrutura cuja análise devia lhe permitir fazer uma histó ria
riadores e o que eles fazem em sua pr ática. A terceira razão , a mais não mais biológica , mas realmente histó rica das sociedades huma -
importante , é que muitos temas ou preocupações polí ticas atraves-
nas. Para Boas , tratava-se , portanto, não absolutamente de uma
saram essa discussão sobre as relações entre a história e o estrutu -
supressão do ponto de vista histórico em proveito de um ponto de
ralismo. Não desejo de modo algum desvincular a discussão de
vista , digamos , anti -histó rico ou a- histó rico .
hoje do contexto político em que ela está inserida, muito ao contr á
rio . Em uma primeira parte , gostaria de apresentar a estratégia ge-
- Tomei o exemplo de Boas, mas poderia ter usado da mesma for -
ma o exemplo da linguística e especialmente o da fonologia. Antes
ral , o plano de batalha desse debate entre os estruturalistas e seus
de Troubetskoï , a fon é tica histórica enfocava a evolu ção de um fo-
adversários a respeito da história.
nema ou de um som através de uma língua3 . Ela não tendia a dar
A primeira coisa a constatar é que o estruturalismo , ao menos
conta da transformação de todo um estado de uma língua em um
em sua forma inicial , foi uma empreitada cujo propósito era ofere-
dado momento: o que Troubetskoï pretendeu fazer com a fonologia
cer um método mais preciso e mais rigoroso às pesquisas históri-
cas. O estruturalismo não se desviou , ao menos em seu começo , da
2 . Tylor ( E . B . ) , Researches into the early history of mankind and the development
histó ria : ele pretendeu fazer uma história , e uma história mais ri-
of civilization , Londres , J . Murray , 1865 ; Primitive culture : researches into the
gorosa e sistemática. Tomarei simplesmente tr ês exemplos. Po
de -se considerar que o norte-americano Boas foi o fundador do mé-
- development of mythology , philosophy , religion , art and custom , Londres , J .
Murray , 1871 , 2 vol . ; Anthropology : an introduction to the study of man and
todo estrutural em etnologia1 . Ora , o que esse mé todo era para ele? civilization , Londres , McMillan , 1881 .
3. Troubetskoï ( N . ) , Zur allgemeinen Theorie der phonologischen Vokalsysteme ,
Trabalhos do Círculo Linguístico de Praga , Praga , 1929 , t . 1 , ps . 39-67 ; Grundzilge
1 . Boas ( F . ) , The mind of primitive man , Nova Iorque , McMillan , 1911 ; Race , der Phonologie , Trabalhos do Cí rculo Linguístico de Praga , Praga , 1939 , t . VII
language and culture , Nova Iorque , McMillan , 1940 . ( Principes de phonologie ) , trad . J . Cantineau , Paris , Klincksieck , 1949 ) .
284 Michel FoucauLt - Ditos e Escritos 1972 - Retornar à História 285

era criar o instrumento que permitisse passar da história de qual- Observou -se que , quaisquer que tenham sido suas boas inten ções ,
quer forma individual de um som à história bem mais geral do sis
tema foné tico de toda uma língua .
- o estruturalismo foi obrigado a abandoná-las ; ele teria dado de fato
um privilégio absoluto ao estudo das relações simultâneas ou sin -
Poderia tomar um terceiro exemplo que evocarei brevemente , o da cr ônicas em detrimento do estudo das relações evolutivas . Quan-
aplicação do estruturalismo à literatura. Quando Roland Barthes , há do , por exemplo, os fonologistas estudam as leis fonológicas , eles
alguns anos , definiu o que ele chamou de nível de escrita em oposição estudam os estados da língua sem levar em conta sua evolução
ao nível do estilo ou ao nível da língua, o que ele queria fazer4? Pois temporal. Como é possível fazer história , se não se leva em conta o
bem , isso se esclarece ao se observar qual era a situação e o estágio tempo? Mas há mais. Como se poderia dizer que a análise estrutu-
dos estudos de história literária na França, por volta de 1950-1955. ral é histórica, se ela privilegia não somente a simultaneidade sobre
Nessa época , fazia-se ou história individual , psicológica, eventual- o sucessivo , mas , por outro lado , o lógico sobre o causal? Por
mente psicanalítica do escritor , do seu nascimento à conclusão de exemplo , quando Lévi-Strauss analisa um mito , o que ele busca
sua obra, ou uma história global , geral de uma época, de todo um não é saber de onde vem esse mito , por que ele nasceu , como foi
conjunto cultural , de uma consciência coletiva , se quiserem . transmitido, quais as razões pelas quais uma determinada popula-
No primeiro caso , apenas se reencontravam o indivíduo e seus ção recorreu a esse mito ou por que tal outra foi levada a transfor -
problemas pessoais , no outro , atingiam-se somente níveis muitos má-lo. Ele se contenta , pelo menos em um primeiro momento , em
gerais. O que Barthes quis fazer , introduzindo a noção de escrita , estabelecer relações lógicas entre os diferentes elementos desse
era descobrir um certo n ível específico a partir do qual se pudesse mito e , no espaço dessa lógica , é possível estabelecer determina-
fazer a história da literatura enquanto literatura , enquanto ela tem ções temporais e causais. Por fim , outra objeção : a de que o estru -
uma especificidade particular , enquanto ultrapassa os indivíduos e turalismo não leva em conta a liberdade ou a iniciativa individual .
nela se situam os indivíduos e , de outro lado , na medida em que ela
Sartre critica os lingüistas, afirmando que a língua é apenas o re-
sultado , a crista , a cristalização de uma atividade humana funda -
é , dentre todas as outras produções culturais , um elemento perfei-
mental e primeira . Se não houvesse sujeito falante para retomar a
tamente específico , tendo suas leis pr ó prias de condicionamento e
cada instante a língua , habitá-la no seu interior , contorná-la , defor -
de transformação. Introduzindo essa noção de escrita , Barthes
má-la , utilizá-la , se não houvesse esse elemento da atividade huma-
quis estabelecer uma nova possibilidade de história liter ária .
na , se não houvesse a palavra no pr óprio cerne do sistema da lín-
Creio então que o necessário a guardar na cabeça é que , em seus
gua , como a língua poderia evoluir? Ora , a partir do momento em
projetos iniciais , os diferentes empreendimentos estruturalistas
que se deixa de lado a prática humana para considerar apenas a es-
( sejam eles etnológicos , lingúísticos ou liter ários , e poder -se-ia
trutura e as regras de coer ção , é evidente que se falha novamente
dizer a mesma coisa a respeito da mitologia e da história das ciê n-
em relação à história .
cias ) foram sempre , em seu ponto de partida , tentativas para criar
As críticas feitas pelos fenomenologistas ou existencialistas são
um instrumento de uma análise histórica precisa. Ora , é preciso geralmente retomadas por um certo n ú mero de marxistas , que
reconhecer que essa empreitada , não digo de todo que fracassou ,
chamarei de marxistas sumários , ou seja , marxistas cuja refer ê n-
mas que ela não foi reconhecida como tal , e a maioria dos adversá- cia teórica não é o pr óprio marxismo , mas precisamente as ideolo-
rios dos estruturalistas entrou em acordo pelo menos em um pon-
gias burguesas contemporâneas. Em contrapartida, de um marxis-
to: o estruturalismo tinha desconhecido a pr ó pria dimensão da mo mais sé rio , ou seja, de um marxismo realmente revolucioná rio
história e ele seria de fato anti-histórico. chegam cr íticas. Estas objeções se apoiam no fato de que os movi -
Essa cr ítica vem de dois horizontes diferentes . Há , inicialmente , mentos revolucionários que ocorreram , que ainda se produzem en-
uma cr ítica teórica de inspiração fenomenológica ou existencial. tre os estudantes e os intelectuais , não devem quase nada ao movi-
mento estruturalista . Talvez haja apenas uma ú nica exceção a esse
4. Barthes ( R. ) , Le degré z é ro de l ' écriture , Paris , Ed . du Seuil , col. “ Pierres vives” ,
princípio , o caso de Althusser , na Fran ça . Althusser foi um marxis-
1953. ta que aplicou à leitura e à análise de textos de Marx um certo n ú -
286 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1972 - Retornar à História 287

mero de mé todos que podem ser considerados como estruturalis- ria devem ser agora revisados se quisermos separar a história do
tas , e a análise de Althusser foi muito importante na história recen
te do marxismo europeu 5. Essa importância está ligada ao fato de
- sistema ideológico em que ela nasceu e se desenvolveu . Ela deve ser
preferencialmente compreendida como a análise das transforma-
que Althusser libertou a interpretação marxista tradicional de todo ções das quais as sociedades são efetivamente capazes. As duas no-
humanismo , de todo hegelianismo , também de toda fenomenologia §) ções fundamentais da história , tal como ela é praticada atualmen -
que pesavam sobre ele , e, nessa medida , Althusser tornou nova
mente possível uma leitura de Marx que não era mais universitária ,
- te , não são mais o tempo e o passado, mas a mudança e o aconteci-
mento. Citarei dois exemplos: um tomado emprestado dos méto-
mas efetivamente polí tica ; mas essas análises althusserianas, em dos estruturalistas , o outro, dos mé todos propriamente históricos ; \\
que pese sua importância no começo , foram ultrapassadas muito o primeiro tem por finalidade mostrar-lhes como o estruturalismo I
rapidamente por um movimento revolucionário que , desenvolven
do-se inteiramente entre os estudantes e intelectuais , torna-se ,
- deu , ou , em todo caso, se esforça para dar , uma forma rigorosa à
análise das mudanças; o segundo visa a mostrar como certos mé to- 1
como vocês sabem , um movimento essencialmente antiteórico. dos da nova história são tentativas para dar um estatuto e um sen -
Alé m disso , a maioria dos movimentos revolucionários que se de- tido novos à velha noção de acontecimento .
senvolveram recentemente no mundo está mais pr óxima de Rosa Como primeiro exemplo tomarei a análise feita por Dum ézil da
de Luxemburgo do que de Lenine : eles dão mais cr é dito à esponta- lenda romana de Horácio6. Ela é , creio , a primeira análise estrutu - I !
neidade das massas do que à análise teórica. ral de uma lenda indo-européia. Dumézil encontrou tr ês versões
Parece-me que , até o século XX, a análise histórica teve essen
cialmente por finalidade reconstruir o passado dos grandes con-
- isomorfas dessa história muito conhecida em muitos países, parti-
cularmente na Irlanda. Há de fato um relato irland ês no qual se en -
contra um personagem , um her ói chamado C û chulainn ; esse Cú -
juntos nacionais , conforme os quais a sociedade industrial capita
lista se dividia ou se agrupava. Após os séculos XVII e XVIII, a socie-
- chulainn é uma criança que recebeu um poder mágico dos deuses
dade industrial capitalista se estabeleceu na Europa e no mundo que lhe d á uma for ça extraordiná ria . Certo dia , quando o reino em
conforme o esquema das grandes nacionalidades. A história teve que ele vivia se encontrava ameaçado , C ûchulainn parte em expedi-
por fun ção , no interior da ideologia burguesa , mostrar como essas ção contra os inimigos . No portão do palácio do chefe adversário ,
grandes unidades nacionais, das quais o capitalismo necessitava , encontra um primeiro inimigo que ele mata. A seguir , continua
vinham de longa data e tinham , através de diversas revoluções , avan çando. Encontra um segundo adversá rio e o mata ; depois um
afirmado e mantido sua unidade . terceiro , que també m mata . Após essa tr í plice vitória , Cû chulainn
pode voltar para casa ; mas o combate o colocou em tal estado de
A história era uma disciplina graças à qual a burguesia mostra
va , de in ício , que seu reino era apenas o resultado , o produto, o fru-
- excitação , ou melhor , o poder mágico recebido dos deuses se en -
to de uma lenta maturação e que , nessa medida , esse reinado era contra de tal forma exacerbado no curso da batalha ao ponto de
perfeitamente justificado , já que ele vinha da bruma dos tempos ; a torná-lo rubro e em brasas ; se entrasse em sua cidade , ele seria um
seguir , a burguesia mostrava que , já que esse reinado vinha de tem- perigo para todos. É para aplacar essa for ça ardente e fervente que
os cidad ãos decidem enviar -lhe , no caminho de volta , uma mulher .
pos imemoriais , não era possível ameaçá-lo por uma nova revolu
ção. A burguesia simultaneamente justificava o seu direito de ocu-
- Mas ocorre que esta mulher é a esposa de seu tio e as leis contra o
par o poder e conjurava as ameaças de uma revolução em ascen- incesto proí bem tal relação sexual ; portanto , ele não pode arrefecer
seu ardor dessa maneira , e se é obrigado a mergulhá-lo em um ba -
são , e a história era certamente o que Michelet chamava de “ ressur
reição do passado ” . A histó ria se atribuía a tarefa de tornar viva a
- nho de água fria. Mas ele está de tal forma quente que faz ferver a
água do banho , e se é obrigado a temper á-lo sucessivamente em
totalidade do passado nacional. Essa vocação e esse papel da histó - sete banhos até que ele adquira a temperatura normal e possa en -
trar em sua cidade sem constituir um perigo para os outros.
5 . Althusser ( L. ) , Pour Marx , Paris , Maspero, 1965; Du “ Capital” à la philosophie
de Marx , in Althusser ( L. ) , Macherey ( P. ) , Rancière ( J . ) , Lire “ Le Capital” , Paris ,
Maspero , 1965, t . I , ps . 9-89 ; L’ objet du “ Capital" , in Althusser ( L. ) , Balibar ( E. ) , 6. Dumézil [ G . ) , Horace et les Curiaces , Paris , Gallimard , col. “ Les mythes
Establet ( R . ) , ibid . , t . Il , ps. 7- 185. romains” , 1942 .

i
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I
288 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1972 - Retornar à História 289

A análise de Dumézil difere das análises de mitologias compara- enfrentar sozinho seus tr ês adversários , pois necessariamente um
das feitas anteriormente . No sé culo XIX, tinha existido toda uma homem normal frente a três adversários normais deveria perder ;
escola de mitologia comparada; restringia-se a mostrar as seme- conseqüentemente, o relato romano acrescenta em torno do herói
lhan ças existentes entre tal e qual mito , e foi assim que alguns his
toriadores das religiões tinham chegado a encontrar o mesmo mito
- Horácio dois parceiros , os dois irmãos que vê m equilibrar , em face
dos tr ês Curiácios, o her ói romano. Se o her ói fosse dotado de um
solar em quase todas as religiões do mundo . Dumézil , ao contr ário
n
poder mágico , seria muito fácil vencer seus tr ês adversários ; a par -
- e é nisso que sua análise é estrutural -, apenas compara esses tir do momento em que ele é um homem como os outros , um solda-
dois relatos para estabelecer quais são exatamente as diferen ças do como os outros, subitamente se é obrigado a colocá-lo entre ou -
entre o primeiro e o segundo. Ele identifica essas diferenças com tros dois soldados , e sua vitória será obtida apenas por uma espé-
bastante precisão. No caso de Cûchulainn , o irlandês, o herói é cie de virada , enfim , de estratagema tático. O relato romano tornou
uma criança ; por outro lado , ele é dotado de um poder mágico; fi- natural a façanha do her ói irland ês ; a partir do momento em que
nalmente , ele está só . Observem o lado romano : o her ói , Horácio , é os romanos introduziram a diferen ça que consiste em colocar um
um adulto , está em idade de carregar as armas, não tem nenhum r
her ói adulto no lugar de um her ói criança, a partir do momento em
poder mágico - é simplesmente um pouco mais esperto do que os que eles apresentaram um herói normal , e não mais um persona -
outros , já que ele inventa o estratagema de fingir que foge para rea- gem dotado de poder mágico , era necessário que eles fossem tr ês , e
parecer , simples pequena distinção no interior da estratégia , mas não mais um contra três . Temos , portanto , não somente o quadro
ele não tem poder mágico algum. Outro conjunto de diferenças no das diferenças , mas a conexão das diferenças umas com as outras.
caso da lenda irlandesa: o her ói tem um poder mágico muito forte e Finalmente , a análise de Dumézil consiste em mostrar quais são as
esse poder mágico é de tal forma exacerbado na batalha que ele se condições de tal transformação .
torna portador de um perigo para sua própria cidade. No caso do Através do relato irlandês, vemos se delinear o perfil de uma so-
relato romano, o her ói retorna vitorioso e , dentre os que ele encon- ciedade cuja organização militar repousa essencialmente nos indi -
tra , vê algu é m que em seu coração traiu sua pr ó pria pá tria : sua víduos , que receberam seu poder e sua for ça do seu nascimento ;
irm ã , que se aliou aos adversários de Roma . O perigo foi , portanto , sua for ça militar está ligada a um certo poder mágico e religioso . Ao *
deslocado do exterior da cidade para o interior . Não é mais o her ó i contr á rio , no relato romano , o que se vê aparecer é uma sociedade
que é portador do perigo; é algu é m diferente dele , apesar de perten- na qual o poder militar é um poder coletivo ; há tr ês her ó is Hor á -
cer à sua fam ília. Finalmente , o terceiro conjunto de diferen ças: no cios ; esses tr ês her óis Horácios são , de qualquer forma , apenas
relato irlandês, apenas o banho mágico nas sete cubas de água fria funcionários, já que eles são delegados pelo poder , enquanto o pr ó-
pode chegar a apaziguar o her ói ; no relato romano, é preciso um ri- prio herói irland ês havia tomado a iniciativa de sua expedição . É no
tual , não mais mágico ou religioso , mas jur ídico , ou seja , um julga- interior de uma estratégia comum que o combate se desenrola ; dito
mento, seguido de um procedimento de apelo e de uma absolvição, de outra forma, a transformação romana do velho mito indo-euro-
para que o her ói recupere seu lugar no seio dos seus contempo- peu é o resultado da transformação de uma sociedade essencial-
r â neos. mente constituída, ao menos em seu estrato militar , por individua-
Portanto , a análise de Dumézil , e essa é a primeira de suas ca- lidades aristocr áticas em uma sociedade cuja organização militar é
racterísticas , não é uma análise de uma semelhança , mas de uma coletiva , e até certo ponto democr ática . Vocês vêem como a análise
diferen ça e de uma interação de diferen ças. Por outro lado , a análi- estrutural, não digo resolve os problemas da história de Roma ,
se de Dumézil não se restringe a construir um quadro das diferen- mas se articula muito diretamente com a história efetiva do mundo
ças; ela estabelece o sistema de diferenças, com sua hierarquia e romano. Dumézil mostra como não é preciso buscar no relato dos
sua subordinação. Por exemplo , Dumézil mostra que , no relato ro- Hor ácios e dos Curiácios alguma coisa como a transposição de um
mano , a partir do momento em que o her ói não é mais essa criança acontecimento real que teria ocorrido nos primeiros anos da histó-
de tenra idade , portador de um poder mágico , mas um soldado ria romana ; mas , no momento mesmo em que mostra o esquema
como os outros , nesse exato momento fica claro que ele não pode da transformação da lenda irlandesa em um relato romano , ele evi-
290 Michel Foucault - Ditos e Escritos
1972 - Retornar à História 291

dencia qual foi o princípio da transformação histórica da velha so- vios , das classificações segundo os países , das divisões conforme
ciedade romana em uma sociedade controlada pelo Estado. Vocês as mercadorias; a partir das relações que puderam ser estabeleci-
vêem que uma análise estrutural como a de Dumézil pode se articu-
lar com uma análise histó rica. A partir desse exemplo , poder íamos
- das , foi possível também desenhar as curvas de evolução, as flutua-
ções , os crescimentos , as paradas , os decréscimos; puderam -se
dizer : uma análise é estrutural quando ela estuda um sistema descrever os ciclos , estabelecer enfim as relações entre esse con-
transform ável e as condições nas quais suas transformações se junto de documentos que concernem ao porto de Sevilha e outros
realizam . documentos do mesmo tipo relativos aos portos da Amé rica do
Gostaria agora , tomando um exemplo bastante diferente , de Sul , das Antilhas , da Inglaterra , aos portos mediterrâneos. O histo-
mostrar como certos métodos utilizados atualmente pelos historia-
dores permitem dar um sentido novo à noção de acontecimento.
-
riador observem - não interpreta mais o documento para apreen -
der por tr ás dele uma espécie de realidade social ou espiritual que
i
Há o hábito de dizer que a história contempor ânea se interessa nele se esconderia ; seu trabalho consiste em manipular e tratar
cada vez menos pelos acontecimentos e cada vez mais por certos fe- uma sé rie de documentos homogéneos concernindo a um objeto
n ômenos amplos e gerais que atravessariam de qualquer forma o particular e a uma época determinada, e são as relações internas 1
tempo e se manteriam , através dele , inalterados. Mas , já há algu - ou externas desse corpus de documentos que constituem o resulta-
mas d écadas , começou-se a praticar uma história dita “ serial ” , na do do trabalho do historiador . Graças a este método , e essa é a ter -
qual acontecimentos e conjuntos de acontecimentos constituem o ceira caracter ística da histó ria serial , o historiador pode fazer
tema central.
emergir acontecimentos que , de outra forma , não teriam apareci-
A histó ria serial não focaliza objetos gerais e constitu ídos por an- do . Na histó ria tradicional , considerava-se que os acontecimentos
tecipação , como o feudalismo ou o desenvolvimento industrial. A eram o que era conhecido , o que era visível , o que era identificável
histó ria serial define seu objeto a partir de um conjunto de docu -
direta ou indiretamente, e o trabalho do historiador era buscar sua
mentos dos quais ela dispõe. Assim se estudaram , há uma d écada , causa ou seu sentido . A causa ou o sentido estavam essencialmente
os arquivos comerciais do porto de Sevilha durante o século XVI : escondidos. O pr óprio acontecimento era basicamente visível , mes-
tudo o que se relaciona com a entrada e a saída dos navios , sua mo se ocorria não se dispor de documentos para estabelecê-lo de
quantidade , sua carga , o preço de venda de suas mercadorias, sua uma forma inquestionável . A história serial permite de qualquer
nacionalidade , o lugar de onde eles vinham e para onde iam . São forma fazer aparecer diferentes estratos de acontecimentos , dos
todos esses dados , mas estes são os ú nicos dados que constituem o quais uns são visíveis , imediatamente conhecidos até pelos con -
objeto de estudo. Dito de outra forma , o objeto da história não é temporâneos , e em seguida, debaixo desses acontecimentos que
mais dado por uma espécie de categorização prévia em per íodos ,
são de qualquer forma a espuma da história , há outros aconteci-
é pocas , nações , continentes , formas de cultura.. . Não se estudam mentos invisíveis , imperceptíveis para os contempor âneos , e que
mais a Espanha e a Amé rica durante o Renascimento ; estudam -se ,
são de um tipo completamente diferente . Retomemos o exemplo do
e este é o ú nico objeto , todos os documentos que concernem à vida
trabalho de Chaunu . Em certo sentido , a entrada e a saída de um
do porto de Sevilha de tal data a tal outra . A conseqüê ncia , e esse é
navio do porto de Sevilha é um acontecimento que os contempor â -
o segundo traço da histó ria serial , é que essa história não tem , des- neos habitantes de Sevilha conhecem perfeitamente e que podemos
de então , absolutamente por função decifrar , através desses docu-
reconstituir sem muitas dificuldades . Por baixo desse estrato de
mentos , alguma coisa como o desenvolvimento económico da acontecimentos , existe um outro tipo de acontecimentos um pouco
Espanha ; o objeto da pesquisa histórica é estabelecer , a partir des- mais difusos: acontecimentos que não são percebidos exatamente
ses documentos, um certo número de relações. Assim foi possível da mesma forma pelos contempor âneos, mas dos quais , no entan -
estabelecer - refiro-me sempre ao estudo de Chaunu sobre Sevilha1 to , todos tinham uma certa consciência ; por exemplo , uma baixa
- estimativas estatísticas , ano a ano, das entradas e saídas dos na- ou um aumento dos preços que vai mudar sua conduta económica.
Depois , ainda por baixo desses acontecimentos , vocês têm outros
-
7. Chaunu ( H . ) e ( P. ) , S é ville et VAtlantique , Paris , Sevpen , 1955 1960 , 12 vol . que são difíceis de localizar , que são com freq úê ncia dificilmente
292 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1972 - Retornar à História 293

perceptíveis pelos contempor âneos, que não deixam de constituir car . Tradicionalmente, os historiadores assinalavam as desconti-
rupturas decisivas. Assim , a inversão de uma tend ê ncia , o ponto a nuidades nos acontecimentos , como a descoberta da Amé rica ou a
partir do qual uma curva económica que tinha sido crescente torna- queda de Constantinopla. É verdade que tais acontecimentos po-
se estável ou entra em declínio , esse ponto é muito importante na dem concernir às descontinuidades , mas , por exemplo , a grande
história de uma cidade , de um país, eventualmente de uma civiliza- inversão da tend ência econó mica , presente no crescimento na Eu -
ção , mas as pessoas que lhe são contempor âneas não se d ão conta ropa do século XVI , que se estabilizou e entrou em regressão no
dele . No nosso caso , apesar de termos uma contabilidade nacional curso do século XVII, assinala uma outra descontinuidade que não
relativamente precisa, não sabemos exatamente que ocorreu a in- é exatamente contemporânea da primeira. A história aparece então
versão de uma tendê ncia económica. Os pr óprios economistas não não como uma grande continuidade sob uma descontinuidade apa- ,3
sabem se um ponto de deten ção em uma curva econ ómica assinala rente , mas como um emaranhado de descontinuidades sobrepos-
uma grande inversão geral da tend ê ncia ou simplesmente um pon- tas . A outra conseq üê ncia é que , por isso , se foi levado a descobrir ,
to de parada , ou um pequeno interciclo no interior de um ciclo no interior da histó ria, tipos de durações diferentes. Tomemos o
mais geral. Cabe ao historiador descobrir esse estrato escondido exemplo dos preços. Há o que se chama de ciclos curtos: os preços
de acontecimentos difusos , “ atmosf é ricos” , policéfalos que , afinal , sobem um pouco; depois , tendo alcançado um certo teto , eles se
determinam , e profundamente, a história do mundo. Pois se sabe chocam contra o limite do consumo e , neste momento, descem um
claramente agora que a inversão de uma tendê ncia econ ómica é pouco , depois tornam a subir . São ciclos curtos que podem ser
muito mais importante do que a morte de um rei . perfeitamente isolados . Abaixo dessa curta duração , dessa dura -
Estuda-se da mesma forma , por exemplo , o crescimento popula- ção de qualquer forma vibratória , vocês têm ciclos mais importan -
cional : o fato de que a curva demogr áfica da Europa , que era quase tes que atingem 25 ou 50 anos , e depois , ainda mais embaixo , há o
estável durante o século XVIII , tenha crescido abruptamente no fim que se chama, em inglês, de trends seculares ( a palavra está pres-
do sé culo XVIII e tenha continuado a crescer durante o século XIX tes a passar para a língua francesa ) , ou seja , tipos de grandes ciclos
foi o que tornou , em parte , possível o desenvolvimento industrial de expansão ou de recessão que , em geral , em todo lugar onde eles
da Europa no século XIX; mas ningu é m viveu este acontecimento foram observados , englobam um período de 80 a 120 anos. Por bai-
como se puderam viver as revoluções de 1848 . Iniciou -se uma pes- xo ainda desses ciclos , há o que os historiadores franceses cha-
quisa sobre os modos de alimentação das populações européias no mam de “ inércias” , ou seja , esses grandes fenômenos que atuam
século XIX: percebe-se que , em um dado momento , a quantidade por séculos e séculos: por exemplo , a tecnologia agrí cola da Euro-
de proteínas absorvidas pelas populações européias começou a pa , os modos de vida dos agricultores europeus que permanece-
crescer bruscamente. Acontecimento prodigiosamente importante ram em grande parte estagnados do final do sé culo XVI ao início e
para a história do consumo , da saú de , da longevidade . O aumento mesmo à metade do século XIX - in é rcia do campesinato e da eco-
brusco da quantidade de prote í nas ingeridas por uma população é , nomia agr ícola sob a qual houve grandes ciclos econ ómicos e , no
de certo modo , muito mais significativo do que uma mudança de interior desses grandes ciclos , ciclos menores e , finalmente , no á pi-
Constituição e do que a passagem de uma monarquia à república , ce, as pequenas oscilações de preço, de mercado , que podem ser
por exemplo. É um acontecimento , mas um acontecimento que não observadas . A histó ria não é , portanto , uma duração; é uma multi-
pode ser atingido pelos métodos clássicos ou tradicionais. Ele é so- plicidade de tempos que se emaranham e se envolvem uns nos ou -
mente atingido pela análise de séries , tão contínuas quanto possí- tros. É preciso , portanto , substituir a velha noção de tempo pela
vel , de documentos freqúentemente negligenciados . Vemos , por- noção de duração m últipla ; quando os adversários dos estrutura-
tanto , na histó ria serial , não absolutamente o acontecimento se listas lhes dizem : “ Mas vocês neglicenciam o tempo ” , esses adver -
dissolver em proveito de uma análise causal ou de uma análise con - sá rios não parecem se dar conta de que faz muito tempo , se ouso
tínua, mas os estratos de acontecimentos se multiplicarem. dizê-lo , que a história se desembaraçou do tempo, ou seja, que os
Donde duas grandes conseqüê ncias , que são inter-relacionadas : historiadores não reconhecem mais essa grande duração ú nica que
a primeira é que as descontinuidades da história irão se multipli- englobava , em um só movimento , todos os fen ômenos humanos :
294 Michel Foucault - Ditos e Escritos I
1972 - Retornar à História 295

na raiz do tempo da história não há alguma coisa como uma evolu- sociedades humanas não têm outra legalidade , não têm outra de-
ção biológica que englobaria todos os fenômenos e todos os aconte- 6 terminação ou regularidade senão a da pr ópria vida. E , tal como
cimentos ; há, na verdade , durações m últiplas, e cada uma delas é não há revolu ção violenta na vida, mas simplesmente uma lenta
portadora de um certo tipo de acontecimentos . É preciso multipli- acumulação de mutações min úsculas , da mesma forma a história
car os tipos de acontecimentos como se multiplica os tipos de dura- humana não pode realmente trazer em si revolu ção violenta , ela
ção . Eis a mutação que está em vias de se produzir atualmente nas apenas trar á em si pequenas mudanças imperceptíveis . Metafori-
disciplinas da história. zando a história pelas formas de vida, garantir -se-ia assim que as
Chegarei finalmente à minha conclusão, me desculpando por che- sociedades humanas não seriam suscetíveis de revolu ção. Creio
gar aí tão tarde. Creio que , entre as análises estruturalistas da mu- que o estruturalismo e a história permitem abandonar essa grande
dança ou da transformação e as análises históricas dos tipos de mitologia biológica da história e da duração. O estruturalismo , de-
acontecimentos e dos tipos de duração, há , não digo exatamente finindo as transformações , a história, descrevendo os tipos de
identidade nem mesmo convergência, mas um certo nú mero de pon- acontecimentos e os tipos de duração diferentes , tornam possíveis
tos importantes de contato . Para terminar , eu os assinalarei. Quan- simultaneamente o aparecimento das descontinuidades na história
do os historiadores tratam os documentos, eles não visam a inter - e o aparecimento de transformações regradas e coerentes. O estru -
pretá-los , ou seja, não procuram por tr ás ou alé m deles um sentido turalismo e a história contempor ânea são os instrumentos teóricos
escondido . Eles tratam o documento do ponto de vista de suas rela- graças aos quais se pode , contrariamente à velha idéia da continui-
ções internas e externas. Da mesma forma, quando o estrutur alista dade , pensar realmente a descontinuidade dos acontecimentos e a
estuda os mitos ou a literatura, ele não pede a esses mitos ou a essa transformação das sociedades .
literatura o que eles podem traduzir ou exprimir da mentalidade de
uma civilização ou da história de um indivíduo. Ele se esfor ça para
fazer surgir as relações e o sistema das relações características des-
se texto ou desse mito. A rejeição da interpretação e do procedimen-
to exegético que vai buscar por trás dos textos ou dos documentos o
que eles significam é um elemento que , atualmente , se encontra tan-
to nos estruturalistas quanto nos historiadores .
O segundo ponto , acredito , é que os estruturalistas , assim como
os historiadores , são levados , no curso do seu trabalho , a abando-
nar a grande e velha metáfora biológica da vida e da evolu ção. Des-
de o século XDí, a id éia da evolu ção e dos conceitos adjacentes foi
bastante utilizada para retraçar ou analisar as diferentes mudan-
ças nas sociedades humanas ou nas pr áticas e atividades do ho-
mem . A metáfora biológica que permitia pensar a história apresen-
tava uma vantagem ideológica e uma vantagem epistemológica . A
vantagem epistemológica é que se tinha na biologia um modelo ex-
plicativo que bastava transpor , termo a termo , para a história ; es-
perava-se , através disso , que essa história , tornada evolutiva , fosse
finalmente tão científica quanto a biologia. Quanto à vantagem ideo-
lógica, muito fácil de situar , se é verdade que a história é tomada
em uma duração análoga à do vivente , se são os mesmos processos
de evolução que estão em ação na vida e na história , então as socie-
dades humanas não tê m uma especificidade particular , então as
1975 - Com o Que Sonham os Filósofos? 297

1975 que é preciso não perder , e conseqüentemente é necessário agen-


dar sua noite .
E , depois, haver á Le pain noir na segunda-feira. Resultado: to-
das as segundas estão ocupadas. Nesse caso , penso que pouquíssi-
Com o Que Sonham os Filósofos? mas televisões no mundo teriam s
estômago e dinheiro para produ-
/

zir uma sé rie dessa ordem . E incrível! E isso que constitui a for ça
da televisão. Todas as pessoas acabam vivendo no seu ritmo. O te-
lejornal foi atrasado em um quarto de hora: ora , sabe-se que os res-
"Com o que sonham os filósofos?" ( entrevista com E . Lossowsky ) , L ' impré vu , n- 2 ,
taurantes vêem chegar seus clientes um quarto de hora mais tarde .
28 de janeiro de 1975, p. 13. - E quando você sai , pelo que você se interessa , com o que você
sonha?
- Com o que eu sonho? Essa agora! Não sei muito bem. Afinal , eu
devo sonhar com pouquíssimas coisas , pois sou muito pouco ca-
- Michel Foucault, você l ê jornais? O que procura neles? Por paz de prazer . Eu tenho uma incapacidade profunda de ter prazer .
onde você começa? - Você não perde tempo?
- Oh , bah , você sabe , creio que minha leitura é muito banal . Mi- - Não , não dessa maneira . E não sou muito orgulhoso . Gostaria
nha leitura começa pelo corriqueiro , pelo mais cotidiano. Olho a de poder dizer como um dos meus amigos: “ Não estou livre antes
crise prestes a eclodir e depois , pouco a pouco , giro em torno dos
do meio-dia ; de manhã eu perco meu tempo!” Não , não sou capaz
grandes n ú cleos , das páginas principais um pouco eternizadas , um disso . E quando saio, encontro um meio de não sonhar : ando de bi-
pouco teóricas , sem dia nem data . ..
cicleta, não me desloco sem ela . Esporte maravilhoso em Paris!
- Le monde? É també m a sua bí blia? Você partilha da paixão Mas , mesmo assim , há pessoas que circulam de bicicleta e vêem
dos intelectuais de esquerda? coisas maravilhosas. Parece que a ponte Royal às sete horas da noi-
- Os artigos do Monde , sempre bem-informado , que poderiam te , em setembro , quando há um pouco de bruma , é extraordinária .
ter sido escritos dois meses antes ou quatro anos depois. De qual- Eu não vejo absolutamente isso ; luto com os engarrafamentos , com
i quer forma , o jornalista que chega a Manilha , ao Cairo ou a Oslo e , os carros , sempre a relação de for ças .
no aeroporto , o chofer de táxi já lhe diz em uma frase , ao mesmo
tempo banal e fulgurante , o que lhe ser á repetido em um discurso
- Nos lugares em que você passa seus dias , você não presta
atenção na paisagem? Você não olha a pintura , por exemplo?
altamente solene pelo ministro das Relações Exteriores. . . Seguem- - O que me agrada justamente na pintura é que verdadeiramente
se em geral muito , muito boas análises . Mas , ali então , eu tento fa- se é obrigado a olhar . Nela reside então o meu repouso. É uma das
zer com que elas sejam lidas por algum outro que me contar á de raras coisas sobre a qual escrevo com prazer e sem me bater com
novo aproximadamente do que se trata. quem quer que seja. Acredito não ter nenhuma relação tá tica ou es-
- E a televisão , sempre pronta a ser ligada? tratégica com a pintura.
- O que me incomoda é a qualidade da televisão francesa. É ver - - Você está sempre pronto para olhar tudo?
dade! E uma das melhores do mundo , infelizmente! Aprendi a ma-
- Acredito que sim; há truques que me fascinam , me intrigam com-
nejar a televisão nos Estados Unidos. Até então , eu achava que era
pletamente, como em Manet. Nele tudo me impacta . A feiú ra , por
um pouco degradante oferecer ao intelecto olhar isso. Mas nos
exemplo. A agressividade da feiúra, como em O Balcão . E depois a
Estados Unidos , na medida em que ela é de muito má qualidade , é
inexplicabilidade , já que ele pr óprio nada disse sobre a sua pr ópria
muito agrad ável conviver com a televisão o tempo todo . Há 10 ca-
pintura. Manet fez na pintura um certo número de coisas em relação
nais , há de tudo , e se pode pular de um canal para o outro.
às quais os “ impressionistas” estavam absolutamente em atraso.
Mas o que me incomoda e irrita horrivelmente na França é que - O que você chama de fei úra? Trata-se de uma forma de vul -
se é obrigado a consultar de antemão a programação para saber o garidade?
298 Michel Foucault - Ditos e Escritos

F
- Não , absolutamente . Como voc ê sabe , é muito difí cil definir a 1980
fei úra . Pode tratar-se da destruição total , da indiferença sistemáti-
ca a todos os cânones esté ticos , e não somente aos de sua época .
Manet foi indiferente aos cânones estéticos que estão tão enraiza-
dos em nossa sensibilidade que , mesmo atualmente , não se com- O Filósofo Mascarado
preende por que ele fez isso e como o fez . Há uma feiúra profunda
que continua hoje a urrar , a gritar . V

- E entre os contemporâ neos , por quem você se interessa


mais?
“Ofilósofo mascarado” ( entrevista com C . Delacampagne , fevereiro de 1980 ) , Le
- Essencialmente , pelos pintores americanos . No ano passado , monde , n- 10.945, 6 de abril de 1980; Le monde- dimanche , ps . I e XVII.
ï
com o dinheiro da reedição da Hist ó ria da loucura realizei o sonho
da minha vida: comprei um Tobey . Depois fiquei enfurnado em Em janeiro de 1980 , Christian Delacampagne decidiu pedir a M. Foucault uma
grande entrevista para Le monde , cujo suplemento dominical era então amplamen -
casa , convencido de que não sairia mais .
te dedicado aos debates de idéias. M. Foucault aceitou imediatamente , mas colocou
E , depois , há os hiper-realistas . Eu não havia me dado conta mui- uma condição prévia: essa entrevista deveria permanecer anónima ; nela , seu nome
to bem do que me agradava neles . Estava sem dúvida ligado ao fato -
não apareceria e todos os ind ícios que permitiriam adivinhá lo deveriam ser elimi-
de eles lidarem com a restauração dos direitos da imagem . E isso nados . M. Foucault justificou sua posição da seguinte forma : estando o cená rio inte-
após uma longa desqualificação . Por exemplo , quando , em Paris , lectual sob o domínio da mídia, as estrelas prevalecendo sobre as idéias e o pensa-
onde se está sempre muito atrasado , surgiram as telas de alguns mento como tal não sendo mais reconhecido , o que se diz conta menos do que a per -
sonalidade daquele que fala. E mesmo esse tipo de cr ítica sobre o predomí nio da
pintores acadê micos como Clovis Trouille , fiquei simultaneamente
surpreso com meu prazer em olhá-las e com o prazer que as pes-
m ídia pode ser desvalorizado - pode inclusive alimentar aquilo que ele busca de -
nunciar - se é proferido por alguém que , sem o querer , já ocupa um lugar no siste-
soas tinham . Era a glória ! A corrente passava corporalmente , se- ma da m ídia -, o caso de M. Foucault . É preciso então , para romper com esses efei-
xualmente . Subitamente , saltava aos olhos o incr í vel jansenismo tos perversos e tentar fazer ouvir uma palavra que n ão possa ser banalizada em fun -
que a pintura nos tinha imposto por décadas e décadas . -
ção do nome de quem ela procede , decidir se a entrar no anonimato . A idé ia agra -
- Você é mais sens í vel ao trabalho da pintura do que dou a C. Delacampagne . Foi combinado que a entrevista seria feita com um “ filósofo
ao da lite - mascarado” , privado de identidade precisa. Restava convencer Le monde - que que -
ratura? ria uma entrevista com M. Foucault - a aceitar um texto de "ningu é m ” . Isso foi dif í -
- Sim , muito nitidamente . Devo dizer que nunca
gostei da mes - -
cil , mas M . Foucault mostrou se irredutível .
ma forma da literatura . Na pintura , há a materialidade que me fas- O segredo foi bem guardado até a morte de M . Foucault. Rar íssimos , parece , foram »
aqueles que conseguiram desvend á-lo. A seguir , Le monde e La d é couverte decidi-
\
cina .
ram republicar em um volume essa entrevista e outras que pertencem à mesma sé-
rie . Como ocorre em tal situação , Le monde decidiu , então , unilateralmente , revelar
o verdadeiro nome do "filósofo mascarado” . O texto dessa entrevista retornou inte-
gralmente para Michel Foucault , que também elaborou as questões com C . Dela-
campagne e escreveu com extremo cuidado cada uma de suas respostas .
!

- Permita - me perguntar - lhe inicialmente por que voc ê esco -


lheu o anonimato?
- Você conhece a história desses psicólogos que tinham ido apre -
sentar um pequeno filme - teste em um vilarejo nos confins da Áfri -
ca. A seguir , eles pediram aos espectadores para relatar a história
da forma como eles a haviam compreendido . Pois bem , dessa ane -
300 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1980 - O Filósofo Mascarado 301

dota com tr ês personagens, apenas uma coisa lhes havia interessa- primeiro as palavras que eles empregam : “ demolir ” , “ destruir ” , “ re-
do: a passagem das sombras e das luzes através das á rvores. duzir ao silêncio” , “ enterrar ” . E vejo entreabrir -se a radiosa cidade
Entre nós, os personagens impõem sua lei à percepção. Os olhos na qual o intelectual seria posto na prisão , e enforcado certamente,
se lançam preferencialmente sobre as figuras que vão e vê m , sur - se ele fosse , além do mais , um teórico. É verdade , não estamos em
gem e desaparecem . um regime no qual se enviam os intelectuais para “ os arrozais” ;
Por que eu lhe sugeri que utilizássemos o anonimato? Pela nos - mas , me diga , você ouviu falai de um tal Toni Negri? Ele não está na
'

talgia do tempo em que , sendo de fato desconhecido , o que eu dizia prisão por ser intelectual1?
tinha algumas chances de ser ouvido. Com o leitor eventual , a su - - Mas ent ão , o quejez você se entrincheirar por detr ás do ano-
perf ície de contato era sem arestas. Os efeitos do livro surgiam em nimato? Um certo uso publicit ário que , hoje , osfil ósofosfazem ou
lugares inesperados e delineavam formas nas quais eu não havia deixam jazer de seu nome?
pensado. O nome é uma facilidade . - Isso não me choca absolutamente . Vi , nos corredores da escola
Vou propor uma brincadeira: a do “ ano sem nome ” . Durante um no colegial, grandes homens de gesso. E , agora , vejo embaixo da
ano , os livros seriam editados sem o nome do autor . Os cr í ticos te - primeira página dos jornais a fotografia de um pensador . Não sei se
riam que se virar com uma produção inteiramente anónima. Mas a esté tica foi melhorada. Mas a racionalidade económica, certa-
devo estar sonhando , pois talvez eles nada tivessem a dizer : então mente . . . .
todos os autores esperariam o ano seguinte para publicar seus li - No fundo me toca muito uma carta que Kant escreveu quando já
vros . . . estava muito velho: ele se apressava , conta ele , apesar da idade e da
- Você acha que , hoje , os intelectuais falam demais? Que eles vista cansada , das idéias que se embaralhavam , para terminar um
nos sufocam com seus discursos a propósito de qualquer coisa e , de seus livros para a feira de Leipzig. Conto este fato para mostrar
mais freq üentemente , fora de propósito? que isso não tem nenhuma importância. Publicidade ou não , feira
- A palavra intelectual me parece estranha. Intelectuais , jamais ou não , o livro é outra coisa. Nunca me far ão acreditar que um livro
os encontrei. Encontrei pessoas que escrevem romances e outras é ruim porque seu autor aparece na televisão. Mas tampouco que
que cuidam de doentes . Pessoas que fazem estudos económicos e
ele é bom apenas por essa razão.
outras que compõem música eletr ónica. Encontrei pessoas que en - Se escolhi o anonimato , não é então para criticar esse ou aquele ,
sinam , pessoas que pintam e pessoas que não compreendi bem se
coisa que nunca faço . É uma maneira de me dirigir mais direta -
elas faziam seja lá o que for . Mas intelectuais, jamais.
mente ao eventual leitor , o ú nico personagem que me interessa
Em contrapartida , encontrei muitas pessoas que falam do inte - aqui : “ Já que você não sabe quem eu sou , você não ter á a tentação
lectual. E , por ouvi-las , constru í uma idéia do que podia ser esse
de procurar os motivos pelos quais digo o que você lê ; permita-se
animal . Não é difícil - ele é aquele que é culpado. Culpado um pou - dizer a você mesmo simplesmente: é verdadeiro , é falso. Gosto dis-
co de tudo: de falar , de se calar , de nada fazer , de embaralhar
tudo. . . Em suma , o intelectual é a maté ria primeira de veredicto , de so ou não gosto daquilo . Um ponto , é tudo . ”
sentença , de condenação , de exclusão.. . - Mas o público não espera da crí tica que elaforneça aprecia-
ções precisas sobre o valor de uma obra?
Não acho que os intelectuais falam demais, já que eles não exis -
tem para mim . Mas considero o discurso sobre os intelectuais bem
invasivo , e não muito tranq úilizador . 1 . Filósofo italiano , professor da Universidade de Pádua , ideólogo do movimento de
Eu tenho uma mania desagrad ável. Quando as pessoas falam extrema esquerda Autonomia Operária . Cumpriu quatro anos e três meses de
detenção preventiva por rebelião armada contra o Estado , associação subversiva e
dessa forma , jogando palavras ao vento, tento imaginar no que isso formação de quadrilha. Foi libertado em 8 de julho de 1983, após ter sido eleito
resultaria se fosse transcrito na realidade . Quando eles “ criticam ” deputado pelo Partido Radical durante sua prisão . Tendo sido suspensa sua
alguém , quando “ denunciam ” suas idéias , quando eles “ condenam ” imunidade parlamentar , foram expedidos contra ele novos mandatos de prisão , e
aquele que escreve , eu os imagino em uma situação ideal na qual ele se refugiou na França .
teriam total poder sobre essa pessoa. Deixo retornar a seu sentido
302 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1980 - O Filósofo Mascarado 303

- Não sei se o p ú blico espera ou não que o cr í tico julgue as obras Fenômeno parisiense , se diz , e superficial. Vejo nisso , antes , os
e os autores. Os juízes já estavam lá , antes que ele tivesse podido efeitos de uma inquietação profunda. O sentimento do “ não-lugar ” ,
dizer do que precisava . do “ ou ele ou eu ” , “ a cada um , a sua vez ” . Estamos em fila indiana
Parece que Courbet tinha um amigo que acordava à noite ber- por causa da extrema exigúidade dos lugares onde é possível se fa-
rando: “ Julgar , eu quero julgar . ” É louco isso de as pessoas adora- zer ouvir ou se fazer entender .
rem julgar . Julga-se em todos os lugares , todo o tempo . Sem d ú vi- Daí uma espécie de angústia , que se difunde em mil sintomas ,
da , é uma das coisas mais simples que podem ser dadas para a hu - divertidos ou menos engraçados. Daí , naqueles que escrevem , o
manidade fazer . E você sabe perfeitamente que o ú ltimo homem , sentimento de sua impotência diante da mídia , a qual eles criticam
quando , finalmente , a última radiação tiver reduzido a cinzas seu de reger o mundo dos livros e de fazer existir ou eliminar aqueles
ú ltimo adversário , se postar á detr ás de uma mesa capenga e inicia- que lhe agrada ou desagrada. Daí , també m , o sentimento nos críti-
r á o processo contra o culpado. cos de que eles não se farão ouvir , a não ser que aumentem o tom e
N ão posso me impedir de pensar em uma cr í tica que não procu- tirem um coelho da cartola, a cada semana . Daí ainda uma pseudo-
raria julgar , mas procuraria fazer existir uma obra , um livro , uma politização, que mascara , sob a necessidade de fazer avançar o
frase , uma idé ia; ela acenderia os fogos , olharia a grama crescer , “ combate ideológico” ou desalojar as “ id éias perigosas ” , a profunda
escutaria o vento e tentaria apreender o vôo da espuma para se- ansiedade de não ser lido , nem entendido . Daí também a fobia fan -
meá-la. Ela multiplicaria não os julgamentos , mas os sinais de exis- tástica do poder : toda pessoa que escreve exerce um inquiétante
tência; ela os provocaria, os tiraria de seu sono. Às vezes, ela os in- poder , ao qual é preciso se esforçar para colocar senão um fim ,
ventaria? Tanto melhor , tanto melhor . A cr ítica por senten ça me pelo menos limites. Daí igualmente a afirmação um tanto encanta-
faz dormir . Eu adoraria uma cr ítica por lampejos imaginativos . Ela tória de que , atualmente , tudo é vazio , desolação , sem interesse
não seria soberana , nem vestida de vermelho. Ela traria a fulgura- nem importância: afirmação que vem evidentemente daqueles que ,
ção das tempestades possíveis. nada fazendo eles pró prios , acham que os outros estão sobrando .
- Então , há muitas coisas a dar a conhecer , tantos trabalhos in- - No entanto , você não acha que nossa é poca carece de inteli -
teressantes que a mídia deveria falar o tempo todo da filosofia... g ê ncias que estejam à altura de seus problemas e de grandes es -
- É verdade que existe um mal-estar tradicional entre a “ cr ítica ” critores?
e aqueles que escrevem livros. Uns se sentem mal compreendidos , - Não , não acredito nessa cantilena da decad ê ncia , da ausê ncia
ou outros creem que se quer mantê-los sob o tacão. Mas esse é o de escritores , da esterilidade do pensamento , do horizonte fechado
jogo . e morno.
Parece-me que hoje a situação é bastante particular . Há institui- Acredito , ao contr ário , que há pletora . E que não padecemos do
ções na pen ú ria , enquanto nos encontramos em uma situação de vazio , mas de muito poucos meios para pensar tudo o que ocorre .
superabundância. Há então uma abundância de coisas a saber : essenciais ou terr í-
Todo mundo enfatizou a exaltação que freqúentemente acompa- veis , ou maravilhosas , ou cómicas , ou min úsculas e capitais simul- i
1
nha a publicação ( ou a reedição ) de obras , aliás , às vezes , interes- taneamente . Reclamamos sempre que os meios de comunicação de
santes . Elas nunca são menos do que a “ subversão de todos os có- u massa entopem a cabeça das pessoas. Nessa id éia , há misantropia.
digos” ou “ o esteio da cultura contempor ânea” , o “ questionamento Creio , ao contr ário , que as pessoas reagem ; quanto mais se tenta
radical de todas as nossas maneiras de pensar ” . Seu autor deve ser convencê-las, mais elas se interrogam . A inteligência das pessoas 1
um marginal desconhecido. não é uma cera moldável. É uma substâ ncia que reage . O desejo de
E , inversamente , é preciso certamente que os outros sejam re- saber mais , e melhor , e outra coisa cresce à medida que se quer en-
metidos para a sombra da qual eles jamais deveriam ter saído; eles tupir as cabeças das pessoas.
não passam da espuma de “ uma moda rid ícula ” , um simples pro- Se vocês admitem isso, e se acrescentam que na universidade se
duto da instituição etc. forma uma multid ão de pessoas que podem servir de permutado-
res entre essa massa de coisas e essa avidez por saber , vocês dedu -
304 Michel Foucault - Ditos e Escritos
1980 - O Fil ósofo Mascarado 305

zirão daí que o desemprego dos estudantes é a coisa mais absurda


que existe . O problema é multiplicar os canais, as vias de acesso , os
- Arrisquemos fazer algumas propostas concretas. Se tudo vai
mal , por onde começar?
meios de informação , as redes de televisão e de r ádio , os jornais.
A curiosidade é um vício que foi estigmatizado alternativamente
- Não , tudo não vai mal. Em todo caso , acredito que é preciso
não confundir uma crítica ú til contra determinadas coisas com as
pelo cristianismo , pela filosofia e mesmo por uma certa concepção lam ú rias repetitivas contra as pessoas. Quanto às propostas con-
da ciê ncia. Curiosidade , futilidade. A palavra , no entanto , me agra - cretas , elas só podem surgir como objetos de consumo se alguns
da ; ela me sugere uma coisa totalmente diferente: evoca “ inquieta- princípios gerais não são admitidos de saída. E , antes de tudo, isto :
ção"; evoca a responsabilidade que se assume pelo que existe e po- que o direito ao saber não deve ser reservado a uma etapa da vida e
deria existir ; um sentido agudo do real mas que jamais se imobiliza a certas categorias de indivíduos ; mas que se deve poder exercê-lo
diante dele ; uma prontid ão para achar estranho e singular o que incessantemente e sob múltiplas formas.
existe à nossa volta ; uma certa obstinação em nos desfazermos de - Mas esse desejo de saber não é ambíguo? No fundo, o que as
nossas familiaridades e de olhar de maneira diferente as mesmas pessoas far ão com todo esse saber que irão adquirir? Para o que
coisas ; uma paixão de apreender o que se passa e aquilo que passa ; tudo isso lhes servirá? i
uma desenvoltura, em relação às hierarquias tradicionais , entre o
importante e o essencial.
- Uma das principais fun ções do ensino era que a formação do ï
indivíduo fosse acompanhada da determinação de seu lugar na so-
Sonho com uma nova era da curiosidade . Temos os meios técni- ciedade . Seria preciso concebê-lo hoje de tal forma que ele permita
cos ; o desejo está aí ; as coisas a saber são infinitas; existem as pes- ao indivíduo modificar -se a seu gosto , o que somente é possível
soas que podem empreender esse trabalho. De que se sofre? De mui- desde que o ensino seja uma possibilidade aberta “ permanente-
to pouco : de canais estreitos , afunilados , quase monopolistas , insu- mente ” .
ficientes . Não se deve adotar uma atitude protecionista para impedir - Em suma , você é a favor de uma sociedade sábia?
que a “ má” informação invada e sufoque a “ boa” . É preciso antes - Digo que a distribuição das pessoas em uma cultura deve ser
multiplicar os caminhos e as possibilidades de idas e vindas. Nada incessante e tão polimorfa quanto possível. Não deveria haver , por \
de colbertismo nesse domínio! O que não quer dizer , como se acre- um lado , essa formação à qual nos submetemos e , por outro , essa :

dita freq ü entemente , uniformização e nivelamento por baixo . Mas , informação à qual se é submisso .
pelo contrá rio , diferenciação e simultaneidade de diferentes redes. - Nessa sociedade sábia , o que se torna a filosofia eterna?...
- Imagino que , nesse ní vel , os meios de comunicação e a uni - Temos ainda necessidade dela , de suas questões sem resposta e
versidade , em vez de continuarem a se opor , poderiam começar de seus sil ê ncios diante do incognoscí vel?
a desempenhar papé is complementares. - O que é a filosofia senão uma maneira de refletir , não exata-
- Você se lembra do dito admirável de Sylvain Lévi: ensino é mente sobre o que é verdadeiro e sobre o que é falso, mas sobre
quando há um ouvinte ; desde que haja dois , é vulgarização . Os li-
vros , a universidade , as revistas científicas també m são meios de
-
nossa relação com a verdade? Lamenta se às vezes que não haja fi-
losofia dominante na França. Tanto melhor . Nenhuma filosofia so-
comunicação de massa. Seria preciso evitar chamar de mídia todo berana , é verdade , mas uma filosofia , ou melhor , a filosofia em ati- I
canal de informação ao qual não se pode ou não se quer ter acesso. i*. vidade. É filosofia o movimento pelo qual , não sem esforços , hesi-
O problema é saber como fazer agir as diferen ças ; é saber se é pre- tações , sonhos e ilusões , nos separamos daquilo que é adquirido
ciso instaurar uma zona reservada , um “ parque cultural” para as como verdadeiro , e buscamos outras regras de jogo . E filosofia o
espécies fr ágeis de sábios ameaçados pelos grandes predadores da deslocamento e a transformação dos par âmetros de pensamento , a
informação , enquanto todo o restante do espaço seria um vasto modificação dos valores recebidos e todo o trabalho que se faz para
mercado para os produtos descartáveis. Tal partilha não me pare- pensar de outra maneira , para fazer outra coisa, para tornar -se di-
ce corresponder à realidade . Pior : não é absolutamente desejável. ferente do que se é. Desse ponto de vista , os 30 ú ltimos anos foram
Para que atuem as diferenciações ú teis, é preciso que não haja essa um per íodo de intensa atividade filosófica. A interferência entre a
partilha. análise , a pesquisa , a cr í tica “ sábia” ou “ teó rica” e as mudan ças no

i
306 Michel Foucault - Ditos e Escritos

comportamento, na conduta real das pessoas, em sua maneira de


ser , em sua relação consigo mesmas e com os outros foi constante e 1983
consider ável.
Eu dizia há pouco que a filosofia era uma maneira de refletir so-
bre nossa relação com a verdade. É preciso acrescentar ; ela é uma
maneira de nos perguntarmos: se esta é a relação que temos com a Estruturalismo e Pós-estruturalismo
verdade , como devemos nos conduzir? Acredito que se fez e que se
faz atualmente um trabalho consider ável e m ú ltiplo , que modifica
simultaneamente nossa relação com a verdade e nossa maneira de
nos conduzirmos. E isso em uma conjunção complexa entre toda - -
“ Structuralism and post structuralism ” ( "Estruturalismo e pós estruturalismo ” ; en
-
trevista com G. Raulet ) , Te íos , vol . XVI , n2 55, primavera de 1983, ps. 195- 211.
uma série de pesquisas e todo um conjunto de movimentos sociais.
É a pr ó pria vida da filosofia.
Compreende-se que alguns se lamentem sobre o vazio atual e de-
sejem , no âmbito das id éias, um pouco de monarquia. Mas aqueles - Como começar? Pensei em duas perguntas: primeiramente ,
que , uma vez em suas vidas , encontraram um tom novo, uma nova qual é a origem dessa denominação muito geral de pós-estru -
maneira de olhar , uma outra maneira de fazer , estes , acredito, ja- turalismo?
mais experimentarão a necessidade de se lamentarem de que o - Enfatizarei inicialmente que , no fundo, no que se refere ao que
mundo é erro , a história , saturada de inexistências, e já é hora de foi o estruturalismo , não somente - o que é normal - nenhum dos
os outros se calarem para que , finalmente , se possa ouvir a sineta atores desse movimento , mas també m nenhum daqueles que , por
de sua reprovação. . . vontade ou à força, receberam a etiqueta de estruturalista sabiam
exatamente do que se tratava. Certamente , aqueles que aplicavam o
método estrutural em domínios muito precisos , como a lingiiística ,
a mitologia comparada, sabiam o que era o estruturalismo , mas ,
desde que se ultrapassavam esses domínios muito precisos , nin-
guém sabia ao certo o que isso era. Não tenho certeza de que seria
muito interessante tentar redefinir o que se chamou , nesta época ,
de estruturalismo. O que me parece , em contrapartida, interessan-
te - e , se eu dispusesse de tempo , adoraria fazê-lo - seria estudar o
que foi o pensamento formal , o que foram os diferentes tipos de
formalismo que atravessaram a cultura ocidental durante todo o
;
século XX. Quando se pensa no extraordinário destino do formalis-
mo na pintura e das pesquisas formais na m úsica , na importância
do formalismo na análise do folclore e das lendas , na arquitetura ,
em sua aplicação, em algumas de suas formas no pensamento teó-
rico , fica patente que o formalismo em geral foi verdadeiramente
uma das correntes mais fortes e , ao mesmo tempo , mais variadas
que a Europa do século XX conheceu. E , a propósito do formalis-
mo , creio que é preciso também enfatizar que ele tem sido muito
freq úentemente associado a situações e mesmo a movimentos polí-
* ticos ao mesmo tempo precisos e , a cada vez , interessantes . As re-
lações entre o formalismo russo e a Revolução russa deveriam cer -

i
308 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1983 - Estruturalismo e Pós-estruturaLismo 309

tamente ser reexaminadas mais atentamente. O papel que tiveram tremamente interessante e muito ambíguo ; e ambíguo porque inte- !
o pensamento e a arte formais no início do século XX, seu valor ideo- ressante: trata-se , por um lado , de movimentos que freqüentemen-
lógico , suas ligações com os diferentes movimentos polí ticos , tudo te estavam impregnados de uma forte refer ência ao marxismo e
isso deveria ser analisado. que, simultaneamente , exerciam uma crítica violenta ao marxismo
O que me surpreende no que se chamou de movimento estrutu - dogmá tico dos partidos e das instituições. E o jogo que pôde existir
ralista na França e na Europa Ocidental por volta dos anos 60 é de fato entre uma certa forma de pensamento não marxista e essas !
que ele era efetivamente um eco do esfor ço realizado em certos paí- refer ê ncias marxistas foi o espaço no qual se desenvolveram os mo-
ses do Leste , e em particular na Tchecoslováquia , para se libertar vimentos estudantis , que levaram o discurso revolucionário mar -
do dogmatismo marxista. E , por volta dos anos 55 ou 60, enquanto xista ao c ú mulo do exagero e que eram , ao mesmo tempo, freqü en -
em um país como a Tchecoslováquia a velha tradição do formalis- temente inspirados por uma violê ncia antidogmática contradizen-
mo europeu do pr é-guerra estava renascendo, viu -se surgir quase do esse tipo de discurso.
ao mesmo tempo na Europa Ocidental o que se chamou de estrutu - - Violê ncia antidogmática que buscava referê ncias...
ralismo - ou seja , do meu ponto de vista , uma nova forma , uma - . .. que as buscava às vezes em um dogmatismo exasperado .
nova modalidade desse pensamento , dessa pesquisa formalista . - Do lado de Freud ou do lado do estruturalismo.
Eis como eu situaria o fenômeno estruturalista , relocalizando-o - É isso. Então, uma vez mais, eu adoraria refazer de maneira di-
nessa grande corrente do pensamento formal . ferente essa história do formalismo, e recolocar esse pequeno epi-
- Na Europa Ocidental , a Alemanha dispunha , para pensar o sódio do estruturalismo na França - que foi relativamente breve ,
movimento estudantil que havia começado mais precocemente com formas difusas - no interior desse grande fenômeno do forma-
do que entre nós ( desde 1964 - 1965 havia uma certa agitação lismo do século XX , a meu ver tão importante em seu gê nero quan-
universitária ) , da teoria crí tica. to o romantismo ou, ainda, o positivismo do século XIX.
- Sim . ..
/
- Retornaremos talvez um pouco mais tarde a este termo , posi -
- E claro que tampouco há relações necessárias entre a teoria tivismo , que você acaba de introduzir . Primeiramente , gostaria
cr í tica e o movimento estudantil . Talvez tenha sido mais o movi - de seguir a trilha dessa espécie de panorama da evolução fran-
mento estudantil que utilizou a teoria cr í tica como um instru- cesa que você acaba de retraçar ; o das referê ncias , ao mesmo
mento , que recorreu a ela. Da mesma maneira , talvez tampouco tempo muito dogmáticas e inspiradas por uma vontade antidog -
haja causalidade direta entre o estruturalismo e 1968 ... mática , a Marx , a Freud , ao estruturalismo , com a esperança , às
- Correto. vezes , de encontrar em pessoas como Lacan aquele que poriafim
1

- Você queria dizer que , de certa forma , o estruturalismo foi ao sincretismo e conseguiria unificar essas correntes ; o que inclu -
um preâmbulo necessário? sive valeu aos estudantes de Vincennes essa resposta magistral
- Não, nada há de necessário nessa ordem de idéias. Mas, para de Lacan , em essê ncia: “ Vocês querem combinar Freud e Marx. O
dizer as coisas muito, muito grosseiramente , a cultura , o pensa- que a psicanálise pode lhes ensinar é que você s procuram um
mento e a arte formalistas no primeiro ter ço do século XX foram mestre . E esse mestre , você s o terão ” 1 , um tipo de desengajamen-
em geral associados a movimentos políticos, digamos cr íticos , de to muito violento em relação a essa tentativa de combinação , que
esquerda e mesmo , em certos casos , revolucionários , e o marxis- li no livro de Vincent Descombes , que você sem d ú vida conhece ,
mo ocultou tudo isso ; ele fez uma crítica violenta ao formalismo na Le mê me et l’autre . . .2
arte e na teoria, que aparece claramente a partir da década de 30.
Trinta anos depois , vocês vêem , em certos países do Leste e em um
1 . Lacan ( JJ , “ Analyticon . Impromptu sur la psychanalyse ” , Centro Universitário de
país como a Fran ça , pessoas começarem a abalar o dogmatismo Vincennes , 3 de dezembro de 1969. Reeditado em Le magazine litté raire , n 2 121 ,
marxista a partir de formas de análise , de tipos de análise que são -
fevereiro de 1977 , ps. 21 25.
obviamente inspirados pelo formalismo . O que se passou em 1968 2. Descombes ( V. ) , Le mê me et Vautre: quarante-cinq ans de philosophie
na França, e creio também em outros países, é ao mesmo tempo ex- française , Paris , Ed . de Minuit , 1979 .
310 Michel Foucault - Ditos e Escritos
-
1983 - Estruturalismo e Pós estruturalismo 311

- N ão. Sei que esse livro existe, mas não o li. inicialmente casar o marxismo com a fenomenologia , e a seguir ,
- .. .quando no fundo teria sido preciso esperar 1972 para se justamente quando toda uma certa forma de pensamento estrutu -
sair dessa v ã tentativa de combinação do marxismo e dofreudis- ral , de mé todo estrutural começou a se desenvolver , viu -se o estru -
mo e para que essa saí da tiuesse sido concluí da por Deleuze e turalismo substituir a fenomenologia para fazer par com o marxis-
Guattari , que vinham da escola lacaniana. Eu me permiti escre - mo. A passagem se deu da fenomenologia para o estruturalismo e
ver em algum lugar que , certamente , se tinha saí do dessa v ã ten- essencialmente em torno do problema da linguagem; houve ali ,
tativa de combinação, mas por um meio que Hegel teria reprova- penso , um momento bastante importante , aquele em que Merleau-
do , ou seja , se tinha ido buscar o terceiro homem , Nietzsche , para Ponty se deparou com o problema da linguagem . Você sabe que os
colocá-lo no lugar da sí ntese impossí vel ; fazia-se referê ncia a ú ltimos esfor ços de Merleau-Ponty foram nessa direção ; lembro- \
Nietzsche no lugar dessa combinação imposs í vel do freudo- me muito bem dos cursos em que Merleau-Ponty começou a falar
marxismo 3. Ora , em todo caso poderia parecer , a partir do livro de Saussure que , apesar de estar morto há quase 50 anos , era de
de Descombes, que seria preciso datar de 1972 , ou por volta fato desconhecido , não digo dos filólogos e lingüistas franceses ,
disso , essa corrente que recorria a Nietzsche . O que você pensa mas do p úblico erudito. Então, o problema da linguagem veio à
disso? tona, e pareceu que a fenomenologia não era capaz de dar conta ,
- Não , não creio que isso seja totalmente correto. Primeiramen- tão bem quanto uma análise estrutural, dos efeitos de sentido que
te , você sabe como sou : fico sempre um pouco desconfiado dessas podiam ser produzidos por uma estrutura de tipo lingúística , es-
formas de síntese nas quais se apresenta um pensamento francês trutura em que o sujeito no sentido da fenomenologia não intervi-
que teria sido freudo-marxista em um dado momento , e que depois nha como aquele que confere o sentido. E , muito naturalmente , es-
teria descoberto Nietzsche , em um outro . De fato , desde que se ob- tando a esposa fenomenológica desqualificada por sua incapacida-
serve um pouco mais atentamente , estamos em um mundo plural, de de falar da linguagem, o estruturalismo tornou-se a nova noiva .
no qual os fen ômenos aparecem deslocados , produzindo encon- Eis como eu contaria as coisas. Assim sendo , a psicanálise , que es-
tros bastante imprevistos. Tomemos o freudo-marxismo . Desde tava em grande parte sob a influ ê ncia de Lacan , també m fazia apa-
1945, é verdade que , por toda uma sé rie de razões políticas e cultu- recer um problema que , apesar de ser muito diferente desse , não
rais , o marxismo constitu ía na Fran ça uma espécie de horizonte deixava de ter analogia com ele . O problema era precisamente o in -
que Sartre considerou em certa época como intranspon ível ; na consciente , o inconsciente que não podia ser encaixado em uma
é poca era de fato um horizonte muito fechado , em todo caso bas- análise de tipo fenomenológico. A melhor prova de que ele não po-
tante dominante . É preciso também não esquecer que , na França , * dia se encaixar na fenomenologia , ao menos como os franceses a
durante o per íodo de 1945 a 1955, a universidade francesa como r concebiam , é que Sartre ou Merleau -Ponty - não me refiro aos ou -
um todo - eu não diria a jovem universidade francesa , para distin- tros - não pararam de tentar reduzir o que era, para eles , o positi-
gui-la do que foi a tradição da universidade - esteve muito preocu- ï vismo , o mecanicismo ou o coisismo de Freud em nome da afirma-
pada , bastante ocupada mesmo em construir alguma coisa que era ção de um sujeito constitutivo. Foi quando Lacan , aproximada-
não Freud -Marx, mas Husserl-Marx , a relação fenomenologia- mente no momento em que as questões da linguagem começaram a
marxismo. Essa foi a aposta da discussão e dos esforços de uma ser colocadas, disse; “ Por mais que vocês se esforcem , o incons-
sé rie de pessoas ; Merleau-Ponty, Sartre , indo da fenomenologia ao ciente tal como ele funciona não pode ser reduzido aos efeitos de
marxismo, tinham essa perspectiva, Desanti també m .. . ï atribuição de sentido dos quais o sujeito fenomenológico é capaz . "
- Dufresne , o próprio Lyotard ... Lacan propunha um problema absolutamente simétrico ao coloca -
- Ricoeur , que não era marxista , certamente , mas que era feno- do pelos lingü istas . O sujeito fenomenológico era , pela segunda vez ,
menologista e estava longe de ignorar o marxismo. Então , tentou -se í pela psicanálise , desqualificado, tal como o fora pela teoria lingúís-
tica. E compreende-se bem por que Lacan pôde dizer nesse mo-
3. Raulet ( G. ) , Mater í alien zur Krtttschen Théorie , Frankfurt , Suhrkamp Verlag ,
mento que o inconsciente era estruturado como uma linguagem :
1982. tanto para uns como para os outros , tratava-se do mesmo tipo de

i
Á
312 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1983 - Estruturalismo e Pós-estruturalismo 313

problema . Houve , portanto , um freudo-estruturalo-marxismo: onde um ato fundador e primeiro do sujeito racionalista . Eu havia lido
a fenomenologia estava desqualificada , pelas razões que acabo de Nietzsche um pouco por acaso , e me surpreendi ao ver que Cangui-
dizer , há apenas pretendentes que tomam , cada uma , a mão de lhem , o mais influente historiador das ciê ncias da França da época ,
Marx, e fazem uma bela roda. Só que isso não anda muito bem . também estava bastante interessado por Nietzsche e acolheu perfei-
Evidentemente , descrevo como se fosse um movimento absoluta- tamente bem o que eu tentava fazer .
mente geral ; o que descrevo de fato ocorreu e implicou um certo - Mas nele , pelo contrário , ndo há traços not áveis de Nie -
n ú mero de pessoas , mas houve da mesma forma toda uma sé rie de tzsche...
pessoas que não seguiram o movimento. Penso naqueles que se in- - Há . Muito nítidos. Existem mesmo referê ncias explícitas, mais
teressavam pela história das ciências, que , na França, foi uma tra- explícitas em seus últimos textos do que nos primeiros. A relação
dição muito importante , sem d úvida a partir de Comte . Particular - com Nietzsche na França , e inclusive a relação de todo o pensamento
mente em torno de Canguilhem , que foi , na universidade francesa , do século XX com Nietzsche , era dif ícil , por razões compreensíveis.
ná jovem universidade francesa, extremamente influente. Ora , mui- Mas , se comecei a falar de mim , també m seria necessário falar de
tos de seus alunos não eram nem marxistas , nem freudianos, nem Deleuze . Ele escreveu seu livro sobre Nietzsche nos anos 604. Estou
estruturalistas . E ali , se você quiser , me refiro a mim. quase certo de que Deleuze o deveu , ele que se interessava pelo em-
- Ent ã o você se inclui entre essas pessoas. pirismo , a Hume5, e justamente també m a essa mesma questão :
- Nunca fui freudiano , nunca fui marxista e jamais fui estrutura-
lista .
será que essa teoria do sujeito de que dispomos , com a fenomenolo-
gia , é satisfatória? - questão da qual ele escapava pelo viés do empi-
- Inclusive aqui també m, em nome da verdade , epara que o lei-
tor alemã o nã o se engane em relação a isso , basta conferir as da-
rismo de Hume -, e estou convencido de que ele encontrou Nietzsche
nas mesmas condições . Diria então que tudo o que ocorreu por volta
.
tas Você começou em... dos anos 60 advinha dessa insatisfação com a teoria fenomenológica
- Escrevi meu primeiro livro quando estava terminando minha do sujeito , com diferentes escapadas , diferentes escapatórias , dife-
vida de estudante , por volta dos anos 1956 ou 1957. Trata-se da rentes avanços , conforme usemos um termo negativo ou positivo , na
Hist ó ria da loucura , escrito entre 1955-1960. Ele não é um livro direção da lingúística, da psicanálise , de Nietzsche.
freudiano , nem estruturalista , nem marxista . Ora , ocorre que eu ha- - Em todo caso , Nietzsche representou uma experiê ncia deter -
via lido Nietzsche em 1953 e , por mais curioso que isso pareça , minante para abolir o ato fundador do sujeito.
nessa perspectiva de interrogação sobre a história do saber , a his- ~ Exato. E é nisso que escritores franceses como Blanchot e Ba-
tória da razão: como é possível fazer a história de uma racionalida- taille foram importantes para nós . Dizia há pouco que eu me per -
de. Este era o problema do século XIX. guntava por que havia lido Nietzsche . Mas sei muito bem por que o
- Saber , raz ão , racionalidade . li: li Nietzsche por causa de Bataille , e li Bataille por causa de Blan -
- Saber , razão , racionalidade , possibilidade de fazer uma histó-
ria da racionalidade , e eu diria que aqui também se encontra a fe-
chot . Portanto , não é totalmente verdade que Nietzsche aparece em
1972; ele aparece em 1972 nos discursos de pessoas que eram
nomenologia , com algué m como Koyr é , historiador das ciê ncias , marxistas por volta dos anos 60 e que saíram do marxismo através
de formação germâ nica , que se instala na França , creio , por volta de Nietzsche ; mas os primeiros que recorreram a Nietzsche não
de 1930-1935 , e desenvolve uma análise histórica das formas de buscavam sair do marxismo: eles não eram marxistas . Eles procu -
racionalidade e de saber em uma perspectiva fenomenológica . Para ravam escapar da fenomenologia .
mim , o problema se colocou em termos análogos aos que evoquei - Você falou sucessivamente dos historiadores das ci ê ncias ,
há pouco: ser á que um sujeito do tipo fenomenológico , transistóri- após descrever uma hist ória do saber , uma hist ória da racionali -
co é capaz de dar conta da historicidade da razão? Eis o ponto em
que a leitura de Nietzsche implicou , para mim , uma ruptura: há 4 . Deleuze ( G. ) , Nietzsche et la philosophie , Paris, PUF, 1962.
uma histó ria do sujeito assim como há uma história da razão , e 5 . Deleuze ( G . ) , Empirisme et subjectivit é . Essai sur la nature humaine selon
desta , a história da razão , não se deve exigir o desdobramento até Hume , Paris, PUF , col . “ Épimé thée ” , 1953.

I
314 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1983 - Estruturalismo e Pós-estruturalismo 315

dade , uma história da razão. Seria possíuel precisar , resumida- tória das formas de racionalidade na Europa não se manifestou
mente - antes de voltar a Nietzsche , que interessará , creio , aos tanto na história das ciê ncias , mas antes na corrente de pensa-
leitores alemães -, esses quatro termos , que se poderia crer , a mento que vai esquematicamente de Max Weber à teoria cr í tica .
partir do que você acabou de dizer , serem quase sinónimos? - Sim. A reflexão sobre as normas , sobre os valores. í
- N ã o , eu descrevia um movimento que envolve muitos compo- - De Max Weber a Habermas . Parece-me que aqui se coloca a
nentes e problemas diferentes . Não identifico os problemas . Falo mesma questão: o que ocorreu na história da razão , no predomínio *
do parentesco das pesquisas e da proximidade dos que as reali- da razão e nas diferentes formas pelas quais se exerce esse domí-
zavam . nio da razão? Ora , o surpreendente é que a França não conheceu
y

- E poss í vel ao menos precisar suas relações? E verdade que y


absolutamente - ou muito mal , muito indiretamente - a corrente
isso se encontra expressamente em seus livros , pr í ncí palmente do pensamento weberiano , ela conheceu muito mal a teoria cr ítica
em A arqueologia do saber , mas seria poss í vel , no entanto, tentar e praticamente ignorou totalmente a Escola de Frankfurt. Isso colo-
precisar as relações entre ciê ncia , saber e razão? ca inclusive um pequeno problema histórico que me apaixona e
- Isso não é muito fácil em uma entrevista. Eu diria que a histó- que ainda não consegui resolver : todos sabem que muitos repre-
ria das ciê ncias desempenhou um papel muito importante na filo- sentantes da Escola de Frankfurt chegaram a Paris em 1935 para
sofia na Fran ça. Diria talvez que , se a filosofia moderna , a dos sé- buscar refúgio e que eles partiram muito rapidamente , aparente- i
culos XIX e XX , deriva em grande parte da questão kantiana : 5 mente escorraçados - alguns o disseram -, de qualquer forma tris- «

“ Was ist Aufkl á rung ?" , ou seja , se admitimos que a filosofia mo- * tes , magoados por não terem encontrado mais eco . Depois chegou
derna teve , dentre suas principais funções , a de se interrogar so- 1940 , mas eles já tinham partido para a Gr ã-Bretanha e para a
bre o que foi esse momento histó rico em que a razão pôde apare- Am é rica , onde foram efetivamente melhor recebidos . O entendi- I
cer em sua forma “ adulta ” e “ sem tutela ” , a função da filosofia do mento , que poderia ter sido estabelecido entre a Escola de Frank -
&
século XIX consiste em se perguntar o que é esse momento em furt e um pensamento filosófico francês através da história das
que a razão conquista a autonomia, o que significa a história da ciências, e portanto da questão da história da racionalidade , não se
razão e qual o valor que é preciso dar ao predomí nio da razão no deu . E posso assegurar-lhes que , quando fiz meus estudos , jamais
mundo moderno , através dessas tr ês grandes formas : do pensa- ouvi nenhum dos professores pronunciar o nome da Escola de
?
mento científico, do aparato técnico e da organização política6 . 4:
Frankfurt .
y

Creio que uma das grandes fun ções da filosofia era a de se interro- í - E efetivamente bastante surpreendente .
gar sobre esses tr ês dom í nios , ou seja , fazer de alguma maneira o - Ora , certamente se eu tivesse podido conhecer a Escola de
inventário ou inserir uma questão inquié tante no reino da raz ão. Frankfurt , se eu a tivesse conhecido nessa é poca, muito trabalho
Continuar , perseguir a questão kantiana: “ Was ist Aufkl árung?" me teria sido poupado, muitas bobagens eu não teria dito e muitos
Essa retomada , essa reiteração da questão kantiana tomou , na desvios eu não teria feito na minha tentativa de seguir calmamente
Fran ça , uma forma precisa e , inclusive , talvez insuficiente: “ O que no meu caminho , pois as vias já tinham sido abertas pela Escola de
é a história da ciência? O que ocorreu , da matemática grega à físi- Frankfurt. Há um problema curioso de não-penetração entre duas
ca moderna , quando se construiu esse universo da ciê ncia? ” De formas de pensamento que eram muito pr óximas , e talvez a pr ó-
Comte aos anos 60 , creio que a história das ci ê ncias teve por fun- pria proximidade explique a não- penetração. Nada dissimula mais
ção filosófica retomar essa questã o. Ora , acredito que , na Alema- a existência de um problema comum do que duas maneiras muito
nha , a questão sobre o que tinha sido a história da raz ão ou a his- pr óximas de abord á-lo.
- O que você acaba de dizer sobre a Escola de Frankfurt , di -
6. Kant ( I. ) , “ Beantwortung der Frage: Was ist Aufklárung?” ( setembro de 1784 ) , N
gamos , sobre a teoria cr í tica , que lhe teria poupado , eventual -
Berlinische Monatsschrift , IV, n- 6, dezembro de 1784 , ps. 491-494 ( Ré ponse à la mente , algumas hesitações , me interessa ainda mais já que se
question: Qu'est -ce que les Lumières? , trad . S. Piobetta , in Kant ( I. ) , La philosophie encontram, em muitas ocasi ões , seja em Habermas , seja em
de l' histoire ( Opuscules ) , Paris , Aubier , 1947, ps. 81-92 ) . Negt , elogios à sua abordagem . Em uma entrevista que fiz com

1
316 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1983 - Estruturalismo e Pós-estruturalismo 317

ele7 , Habermas elogiava sua “ descrição magistral da bifurcaçã o há a razão moral . Para julgar essa bifurcação , é preciso situar -se
da raz ão” : a raz ão teria se bifurcado em um dado momento . Eu evidentemente do ponto de vista da razão prática , da razão mo-
me perguntei se você estaria de acordo com essa bifurcação da ral - prática. Portanto , uma bifurcação única, um ponto de partida
raz ão , tal como a teoria cr í tica a concebe ; ou seja , com a “ dial é - entre técnica e prática que continua a dominar toda a histó ria das
tica da raz ã o” , segundo a qual a raz ã o se perverte sob o efeito id é ias na Alemanha; e , como você disse há pouco , é essa tradição
de sua pr ó pria força , se transforma e se reduz a um tipo de sa- que vem da questão: ‘Was ist Aufklàrung?” . Ora, penso que esse
ber , que é o saber técnico. A id éia dominante na teoria cr í tica é elogio parece reduzir a sua abordagem da história das id é ias.
a de uma continuidade dial é tica da raz ã o , com uma perversã o - E verdade que eu não falaria de uma bifurcação da razão , mas
que , em um dado momento , a modifica completamente e que antes sobretudo de uma bifurcação m ú ltipla , incessante , de um
hoje seria preciso retificar ; esta seria a aposta da luta pela tipo de ramificação abundante . Não falo do momento em que a ra-
emancipação . No fundo , pelo que você escreve , a vontade de sa- z ão se tornou técnica. Atualmente , para dar um exemplo , estou co-
ber nã o parou de se bifurcar desta forma , ela se bifurcou um me çando a estudar o problema das técnicas de si na antigü idade
monte de vezes na hist ória . A palavra bifurcar talvez não seja helen ística e romana , ou seja , como o homem , a vida humana, o si
adequada... A raz ã o recortou o saber em v á rias ocasi ões... foram objetos de um certo n ú mero de tekhnai que , em sua raciona-
- Sim , sim . Creio que a chantagem que muito freqúentemente se lidade exigente , eram perfeitamente compar áveis com uma técnica
exerceu em relação a qualquer crí tica da razão , ou a qualquer inter - de produ ção .
rogação crítica sobre a história da racionalidade ( ou você aceita a ra- - Mas sem englobar a sociedade inteira.
zão , ou cai no irracionalismo ) , faz crer que não seria possível fazer - Sim , sem englobar toda a sociedade . E o que fez se desenvolver
uma crítica racional da racionalidade , que não seria possível fazer uma tekhnê do si , tudo o que permitiu o desenvolvimento de uma
uma história racional de todas as ramificações e de todas as bifurca- tecnologia do si é um fenômeno histórico perfeitamente analisável ,
ções, uma história contingente da racionalidade. Ora , creio que , des- acredito , e perfeitamente localizável , que não constitui a bifurcação
de Max Weber , na Escola de Frankfurt e , em todo caso , em muitos da razão . Nessa abund â ncia de ramos , ramificações , cortes , cesu -
historiadores da ciê ncia como Canguilhem , trata-se de destacar a ras , esse foi um acontecimento , um episódio importante , que teve
forma de racionalidade que é apresentada como dominante e à qual conseqüê ncias consider áveis , mas que não é um fenômeno ú nico .
se dá o status da razão para fazê-la aparecer como uma das formas - Mas , desde que se considere que o fenômeno de autoperver -
possíveis do trabalho sobre a racionalidade . Nessa história das ciê n- são da raz ão não foi único , que ele não ocorreu uma vez na histó -
cias francesa, que, acredito, é muito importante, o papel de Bache- ria, em um momento no qual a raz ão teria perdido alguma coisa
lard , de quem não falei até agora , foi també m capital. de essencial , de substancial , como seria preciso dizer com Weber ,
- Esses elogios cont ê m , no entanto , um pouco de veneno . Se - você diria que seu trabalho visa a restabelecer uma raz ão mais
gundo Habermas , você teria descrito magistralmente “ o momen- rica, será que , por exemplo, haveria implicitamente em sua abor -
to em que a raz ão se bifurcou” . Essa bifurcaçã o seria única; ela dagem uma outra id é ia da raz ão , um outro projeto de racionalida-
teria ocorrido certa vez , no momento em que a raz ã o deu uma de que não essa racionalidade a que chegamos atualmente?
guinada que a teria conduzido , na dire çã o de uma racionalidade
técnica , para uma auto- redução , uma autolimitação. Essa bifur-
-
- Sim , mas e talvez aqui, mais uma vez , eu tentaria tomar dis-
tâ ncia da fenomenologia , que era meu horizonte inicial - não penso
cação , se ela també m é uma divisã o , teria ocorrido uma s ó e úni - que tenha havido uma espécie de ato fundador , pelo qual a razão
ca vez na hist ó ria , separando os dois domí nios que são conheci - em sua essência teria sido descoberta ou instaurada , e que tal ou
dos desde Kant. Essa análise da bifurcação é kantiana: há o sa- tal acontecimento teria depois conseguido desviá-la: penso de fato
ber do entendimento , há o saber da raz ã o , há a raz ã o técnica e que há uma autocriação da razão e , por isso , o que tento analisar
4
l são formas de racionalidade: diferentes instaurações , diferentes
7. Para L' express , no qual a entrevista jamais foi publicada. Ela foi retomada em criações , diferentes modificações pelas quais as racionalidades se
Allemagnes d ’aujourd ’ hui , n- 73 , 1980 . engendram umas às outras , se opõem e se perseguem umas às ou -
318 Michel Foucault - Ditos e Escritos -
1983 - Estruturalismo e Pós estruturalismo 319

tras, sem que, no entanto, se possa assinalar um momento em que sobre ele mesmo enquanto louco? Ao preço de constituir o louco
se teria passado da racionalidade à irracionalidade. Ou ainda , para como o outro absoluto , e pagando n ão apenas esse preço teórico ,
falar muito esquematicamente , o que eu quis fazer , nos anos 60 , mas também um preço institucional e mesmo um preço económi -
era partir tanto do tema fenomenológico , segundo o qual teria havi- co , tal como determinado pela organização da psiquiatria. Um con-
do uma fundação e um projeto essencial da razão - do qual estaría- junto de coisas complexas, escalonadas , no qual vocês têm um jogo
mos distanciados por um esquecimento sobre o qual é preciso re- institucional , relações de classes , conflitos profissionais , modali -
tornar agora -, como do tema marxista ou lukacsiano: haveria uma dades de saber e , finalmente , toda uma história do sujeito e da ra-
racionalidade que seria a forma por excelê ncia da própria razão , zão que estão aí envolvidos . Foi isso que tentei restituir . Talvez seja
mas um certo número de condições sociais ( o capitalismo, ou me- um projeto totalmente louco , muito complexo , do qual eu pude evi-
lhor , a passagem de uma forma para outra de capitalismo ) introdu- denciar apenas , em certos momentos , alguns pontos particulares ,
ziu uma crise nessa racionalidade , ou seja , um esquecimento da como o problema do que é o sujeito louco : como se pode dizer a
razão e uma queda no irracionalismo. Esses são os dois grandes verdade sobre o sujeito doente? Como se pode dizer a verdade so-
modelos , apresentados de uma maneira muito esquemática e in- bre o sujeito louco? Foram meus dois primeiros livros. As pala -
justa , em relação aos quais tentei me discriminar . vras e as coisas se perguntava : a que preço se pode problematizar
- Segundo esses modelos, existe seja uma única bifurcação , e analisar o que é o sujeito falante , o sujeito que trabalha , o sujeito
seja um esquecimento em um dado momento , após o confisco da «ã
. que vive? Por isso tentei analisar o nascimento da gramá tica , da
raz ão por uma classe. Portanto , o movimento de emancipação gramá tica geral , da história natural e da economia . E , depois , me
atrav é s da histó ria consistiria nã o somente em retomar o que ti - coloquei o mesmo tipo de questões a respeito do criminoso e do
nha sido confiscado para confiscá-lo de volta , mas , ao contr á rio , sistema punitivo: como dizer a verdade sobre si mesmo , na medida
em restituir à razão sua verdade inteira, dando-lhe um estatuto em que se pode ser um sujeito criminoso? É o que vou fazer a res-
de ci ê ncia absolutamente universal É claro que , no seu caso, nã o peito da sexualidade , remontando a muito mais atrás: como o sujei-
*

há - e você o escreveu com todas as letras - o projeto de uma ciê n- ? to pode dizer a verdade sobre ele mesmo , na medida em que ele é
cia nova ou de uma ciê ncia mais ampla. um sujeito de prazer sexual , e a que preço?
- De forma alguma. £ - Conforme a relação do sujeito com o que ele é através, a cada
- Mas você mostra que , a cada vez que um tipo de racionalida- vez , da constituição de uma linguagem ou da constituiçã o de um
de se afirma , ele o faz por recorte , ou seja , por exclusão ou se dis- saber .
criminando , marcando uma fronteira entre ele e um outro . H á , ?
- E a análise das relações entre as formas de reflexividade - rela-
em seu projeto , a vontade de reabilitar esse outro? Por exemplo , t
£
ção de si consigo -, portanto , as relações entre essas formas de re-
ao se colocar na escuta do sil ê ncio do louco , você pensa que nele flexividade e o discurso da verdade , as formas de racionalidade e
haveria uma linguagem que teria mais a dizer sobre as condi- os efeitos de conhecimento.
ções de criação das obras? I - Mas não se trata absolutamente - você vai entender por que
- Sim . O que me interessou , partindo do quadro geral evocado faço essa pergunta que se relaciona muito diretamente com cer -
há pouco , eram justamente as formas de racionalidade que o sujei- tas leituras feitas da corrente “ nie tzschiana” francesa na Alema -
to humano aplicava a si mesmo. Enquanto os historiadores das nha - de exumar , atrav é s de uma arqueologia , um arcaico que
ciê ncias na França estavam interessados essencialmente no pro- seria pr é - histó rico.
blema da constituição de um objeto científico , a questão que me co- - Não, de forma alguma , de jeito nenhum . Se empreguei esse ter -
loquei foi a seguinte: como ocorre que o sujeito humano se torne ele mo arqueologia , que já não uso atualmente , era para dizer que o tipo
pr óprio um objeto de saber possível , através de que formas de racio- de análise que eu fazia estava deslocado , não no tempo , mas pelo n í-
nalidade , de que condições históricas e, finalmente , a que preço? vel em que ele se situa. Meu problema não é estudar a história das
Minha questão é a seguinte: a que preço o sujeito pode dizer a ver - id éias em sua evolu ção , mas sobretudo ver debaixo das id éias como
dade sobre si mesmo , a que preço o sujeito pode dizer a verdade puderam surgir tais ou tais objetos como objetos possíveis de co-
1
'
320 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1983 - Estruturalismo e Pós-estruturalismo 321

nhecimento. Por que , por exemplo, a loucura tornou-se , em um -


Não, eu não diria isso; é muito complicado. Meu problema é a
dado momento , um objeto de conhecimento correspondendo a um relação do si consigo e do dizer verdadeiro. Minha relação com Nie-
certo tipo de conhecimento. Usando a palavra “ arqueologia” em vez tzsche , o que devo a ele , eu devo muito aos seus textos do período
de “ história” , eu quis marcar essa decalagem entre as idéias sobre a de 1880 , nos quais a questão da verdade e a história da verdade e
loucura e a constituição da loucura como objeto. da vontade de verdade eram para ele centrais. Não sei se você sabe
- F i z essa pergunta porque , atualmente , se tem a tend ê ncia , que o primeiro escrito de Sartre , quando era um jovem estudante ,
sob o pretexto de que existe també m a referê ncia a Nietzsche era um texto nietzschiano: La légende de la v é rité , pequeno texto
pela nova direita alemã , de colocar tudo no mesmo saco e de que foi publicado pela primeira vez em uma revista para colegiais
considerar que o nietzsche í smo francê s , se ele existe - pare - por volta dos anos 308. Ele havia partido desse mesmo problema .
ce - me que você confirmou há pouco que Nietzsche havia desem- O curioso é que sua abordagem acabou indo da história da verdade *
penhado um papel determinante -, segue a mesma inspiraçã o . à fenomenologia , enquanto a abordagem da geração seguinte , à
Associa - se tudo isso com afinalidade de recriar , no fundo , fren- qual pertencemos, partiu da fenomenologia para retomar essa
tes de uma luta de classes teó rica que , hoje , dificilmente encon- questão da história da verdade .
tramos . - Creio que se pode começar a esclarecer o que você entende
- Não creio que haja , de fato , um ú nico nietzscheísmo; não é pos- por vontade de saber , essa referê ncia a Nietzsche . Parece - me
sível dizer que existe um nietzscheísmo verdadeiro ou que o nosso que você admite de fato um certo parentesco com Deleuze , at é
seja mais verdadeiro do que o dos outros . Mas aqueles que encon- certo ponto. Esse parentesco se estenderia à concepção do desejo
traram em Nietzsche , há mais de 25 anos , um meio para se distan- deleuziano?
ciar de um horizonte filosófico dominado pela fenomenologia e - Não , nesse ponto não .
pelo marxismo , estes, me parece, nada tê m a ver com os que utili- - Explico por que coloco essa questão , o que talvez seja anteci -
zam o nietzscheísmo atualmente . Em todo caso , se Deleuze escre- par a resposta. Parece - me que o desejo deleuziano , que é um de -
veu um soberbo livro sobre Nietzsche , no restante de sua obra a sejo produtivo , torna-se precisamente essa espécie de fundo ori -
presen ça de Nietzsche é certamente sensível, mas não há nela , sem ginário que se põe a gerar formas.
dúvida , nenhuma referência retumbante , nenhuma vontade de le-
vantar bem alto a bandeira nietzschiana com fins retóricos ou polí-
- Não quero tomar posição, nem dizer o que Deleuze queria di-
zer . As pessoas falam o que elas querem ou o que podem dizer . A (

ticos. O surpreendente é que algué m como Deleuze tenha tomado I


partir do momento em que um pensamento se constituiu , se fixou e
Nietzsche seriamente , e ele o tomou a sé rio . Foi també m o que eu se identificou no interior de uma tradição cultural , é completamen -
quis fazer ; que uso sério se pode fazer de Nietzsche? Dei cursos so- te normal que essa tradição cultural o retome , faça dele o que ela í
bre Nietzsche , mas escrevi muito pouco sobre ele . A ú nica homena- quiser e lhe faça dizer o que ele não disse , dizendo que ele não pas-
1
gem um pouco mais retumbante que lhe prestei foi intitular o pri- sa de uma outra forma do que ela quis dizer . Isso faz parte do jogo
meiro volume da Histó ria da sexualidade de Vontade de saber . cultural , mas minha relação com Deleuze não pode ser evidente -
- Justamente a propósito dessa vontade de saber , creio que mente desse tipo; não direi, portanto, o que ele quis dizer . No en -
se percebeu claramente , pelo que você acaba de dizer , que ela -
tanto, parece me que seu problema tem sido, de fato , ao menos há
era sempre uma relação . Creio que você detestaria esta pala- bastante tempo, formular a questão do desejo ; e é provavelmente
vra , porque ela é marcada de hegelianismo . Talvez fosse me- na teoria do desejo em que se vê , nele , os efeitos de sua relação com
lhor dizer “ avaliaçã o” , como diz Nietzsche , uma maneira de Nietzsche , enquanto meu problema nunca deixou de ser a verdade ,
avaliar a verdade e , em todo caso , uma maneira que tem a for -
ça , que não existe como arcaí smo ou como um fundo originá rio i
ou original , de se atualizar , portanto , uma relação de forças e -
8 . Sartre ( J . P. ) , La l é gende de la v é rité . Texto escrito em 1929 , do qual um
fragmento foi publicado no primeiro n úmero de Bifur , n- 8, junho de 1931, ps.
talvez mesmo uma relação de poder no ato de constitui ção de ?
qualquer saber?
-
77 96. Reeditado in Contât ( M. ) e Rybalka ( M. ) , Les écrits de Sartre , Paris ,
-
Gallimard , 1970 , apêndice II , ps. 531 545.

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322 Michel Foucault - Ditos c Escritos
1983 - Estruturalismo e Pós-estruturalismo 323

o dizer verdadeiro , o wahr -sagen - o que é dizer verdadeiro - e a que se acha em Lyotard , segundo a qual a modernidade , a ra -
relaçã o entre o dizer verdadeiro e formas de reflexividade , reflexivi- z ão , teria sido um “ grande relato ” do qual se seria finalmente li -
dade de si sobre si. bertado por uma espécie de despertar salutar . A pós-moder -
- Sim. Mas me parece que Nietzsche não distingue fundamen- nidade seria umafragmentaçã o da raz ão , a esquizofrenia deleu -
talmente a vontade de saber da vontade de pot ê ncia. ziana; em todo caso , a p ós- modernidade revelaria que , na hist ó -
- Acredito haver um deslocamento bastante sensível nos textos ria , a raz ão foi apenas um relato dentre outros , um grande rela-
de Nietzsche entre os que são amplamente dominados pela questão to , ao qual se poderia hoje fazer suceder outros relatos. Em seu
da vontade de saber e os dominados pela vontade de potência. Mas vocabulário , a raz ão teria sido uma forma da vontade de saber.
nã o quero entrar nesse debate por uma razão muito simples: há Você admite que se trata de uma corrente , você se situa nela , e
anos não releio Nietzsche . como?
- Acho que seria muito importante tentar esclarecer esse pon- I - Devo dizer que estou bastante embaraçado para responder . De
to , por causa justamente desse saco de gatos que caracteriza in ício porque nunca entendi muito bem qual era o sentido que se
como você é lido no estrangeiro , assim como no resto da França. dava na França à palavra modernidade ; em Baudelaire , sim : mas a
- Diria que , de qualquer forma , minha relação com Nietzsche seguir , me parece que o sentido se perdeu um pouco . N ã o sei qual o
nã o foi uma relação histórica: não é tanto a pr ópria história do pen- sentido que os alemães d ão à modernidade . Sei que os americanos
samento de Nietzsche que me interessou , mas essa espécie de de- programaram uma espécie de seminá rio do qual participaria Ha-
safio que senti no dia , faz muito tempo , em que li Nietzsche pela :
bermas e no qual eu també m estaria . E sei que Habermas propôs
primeira vez . Quando se abre a Gaia ci ê ncia ou Aurora , e se é for - como tema a modernidade . Sinto-me embaraçado porque não vejo
mado pela grande e velha tradição universitá ria , Descartes , Kant , claramente o que isso quer dizer , nem mesmo - pouco importa a
Hegel , Husserl , quando nos debru çamos sobre esses textos um tan- palavra , sempre se pode usar uma etiqueta arbitr ária - qual o tipo
to espirituosos , estranhos e desenvoltos , nos dizemos: pois bem , de problemas que é visado através dessa palavra , ou o que haveria
não farei como meus amigos , meus colegas ou meus professores , de comum entre as pessoas chamadas pós-modernas. Enquanto
que tratam disso de qualquer jeito. Qual o máximo de intensidade fi- percebo claramente que , atr ás do que se chamou de estruturalis -
losófica e quais sã o os efeitos filosóficos atuais que podem ser tira- mo , havia um certo problema , que era em geral o do sujeito e o do
dos desses textos? Eis o que era para mim o desafio de Nietzsche . remanejamento do sujeito , não vejo , nos chamados pós-modernos
- H á , na leitura atual de sua obra , me parece , um segundo ou pós-estruturalistas , que tipo de problema lhes seria comum .
saco de gatos , a pós- modernidade , que um bom nú mero de pes- - Evidentemente , a referê ncia ou a oposição à modernidade
soas se atribuem , e que desempenha na Alemanha um certo pa- nã o somente é ambí gua , mas restringe a modernidade . Ela tem
pel desde que Habermas retomou esse termo para criticá - lo , pelo menos trê s defini ções: uma definição de historiador , a defi -
para criticar essa corrente sob todos os seus aspectos ... nição de Weber , a defini çã o de Adorno e o Baudelaire de Benja-
- O que se chama pós-modernidade? Não estou atualizado . min , ao qual você fez alusã o9. H á entã o pelo menos trê s refer ê n-
- . . .como a sociologia norte-americana ( D . Bell ) , o que se cha- cias. A que Habermas parece privilegiar , contra o pró prio Adorno ,
ma p ó s- modernidade na arte e que exigiria uma outra defini çã o é ainda a tradição da raz ã o , ou seja , a definição weberiana da
( um retorno talvez a um certo formalismo ). Enfim , Habermas
atribui esse termo pó s- modernidade à corrente francesa , à tradi -
modernidade . É a partir dela que ele v ê , na pós modernidade , a -
derrocada da raz ão , seu estilhaçamento , e que ele se autoriza a
çã o , diz ele em seu texto sobre a pós- modernidade , “ que vai de dizer que uma dasformas da pós- modernidade , a que se relacio -
Batalhe a Derrida , passando por Foucault” , Tema importante na
Alemanha , j á que a reflexão sobre a modernidade existe há bas-
tante tempo , desde Max Weber . O que seria a pós - modernidade , 9. Benjamin ( W. ) , “ Uber einige Motive bei Baudelaire ” , Zeitschrift f ü r Sozial -
em relaçã o ao ponto que nos concerne aqui , nesse fenômeno en- Jorschung , n2 VIII , 1939 , ps. 50-89 ( “ Sur quelques th èmes baudelairiens” , trad . J .
Lacoste , in Charles Baudelaire . Un poète lyrique à l’ é poque du capitalisme , Paris ,
globando pelo menos tr ê s coisas? Seria principalmente a id é ia , Payot , col . " Petite Biblioth èque Payot ” , n239 , 1979 , ps. 147- 208 ) .

À
324 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1983 - Estruturalismo e Pós-estruturalismo 325

naria com a definição weberiana da modernidade , seria essa dos grandes papé is do pensamento filosófico , justamente a partir
corrente que considera que a raz ão é nofundo umaforma de von- da questão kantiana “ Was ist Aufkl árung?” , dizendo que a tarefa
tade de saber dentre outras , que a raz ão é um longo relato , mas da filosofia é dizer o que é a atualidade , dizer o que é esse “ nós
um relato dentre outros ... hoje ” . Mas não se permitindo a facilidade um pouco dramá tica e
- Esse não pode ser meu problema, na medida em que não ad- teatral de afirmar que esse momento em que vivemos é , no oco da
mito de forma alguma a identificação da razão com o conjunto de noite , aquele da maior perdição ou , ao contr ário , aquele em que o
formas de racionalidade que puderam , em um dado momento , em sol triunfa etc . Não , é um dia como os outros , ou melhor , um dia
nossa é poca e mais recentemente também , ser dominantes nos ti- que jamais é realmente como os outros .
pos de saber , nas formas técnicas e nas modalidades de governo ou - Isso remete a inúmeras questões, em todo caso àquelas que
de dominação , domínios em que se fazem as aplicações maiores da você pró prio colocou: o que é a atualidade? Será que nossa é poca
racionalidade ; coloco à parte o problema da arte , que é complica- no entanto pode ser caracterizada , apesar de tudo , por um esfa-
do. Para mim , nenhuma forma dada de racionalidade é a razão . celamento maior do que o de outras , por uma “ desterritorializa-
Portanto , não vejo por que motivo se poderia dizer que as formas ção” , por uma esquizofrenia? - sem que você tenha que tomar
de racionalidade que foram dominantes nos tr ês setores que men - uma posição em relação a esses termos.
cionei , todas estão ameaçadas de sucumbir e de desaparecer ; não - O que eu gostaria também de dizer , a propósito dessa função
vejo desaparecimentos desse tipo. Observo múltiplas transforma- do diagnóstico sobre o que é a atualidade , é que ela não consiste
ções , mas não vejo por que chamar essa transformação de uma simplesmente em caracterizar o que somos , mas, seguindo as li -
derrocada da razão; outras formas de racionalidade se criam , sem nhas de vulnerabilidade da atualidade , em conseguir apreender
cessar ; portanto , não há sentido na proposição segundo a qual a por onde e como isso que existe hoje poderia não ser mais o que é .
razão é um longo relato que agora terminou , com um outro relato E é nesse sentido que a descrição deve sempre ser feita de acordo
que começa . com essa espécie de fratura virtual , que abre um espaço de liberda -
- Digamos que o campo está aberto a in úmeras formas de re - de , entendido como espaço de liberdade concreta , ou seja , de !
i
lato. transformação possível .
- Creio que aqui tocamos em uma das formas, talvez fosse preci- - Será que é aí , no lugar dessas fissuras , que se situa o traba-
so dizer hábitos mais nocivos do pensamento contempor âneo , tal- lho do intelectual , um trabalho evidentemente prático?
vez do pensamento moderno , em todo caso , do pensamento pós- - Creio que sim . E diria que o trabalho do intelectual é certamen-
hegeliano: a análise do momento presente como sendo precisa- te , em um sentido , dizer o que existe , fazendo-o aparecer como po-
mente , na história , aquele da ruptura ou o do á pice , o da realização dendo não ser , ou podendo não ser como ele é . Eis por que essa de -
ou o da aurora que retorna. A solenidade com que qualquer pessoa signação e essa descrição do real jamais tê m valor de uma descri-
que sustenta um discurso filosófico reflete sobre seu pr óprio mo- ção , do tipo : “ já que isso existe , isto existir á ” ; eis també m por que ,
mento me parece um estigma. Posso afirmar isso com proprieda- me parece, o recurso à história - um dos grandes fatos no pensa-
de , porque me ocorreu fazer isso ; eu o digo , na medida em que , em
algu é m como Nietzsche , encontramos isso sem cessar , ou pelo me-
mento filosófico da Fran ça há pelo menos duas d écadas toma seu
sentido na medida em que a história tem por função mostrar que o
-
nos de maneira bastante insistente . Creio que é preciso ter a mo- que é jamais foi , ou seja , é sempre na conflu ê ncia dos encontros ,
d éstia de dizer que , por um lado , o momento em que se vive não é dos acasos , no curso da história frágil , precária , que são formadas
esse momento ú nico , fundamental ou irruptivo da história , a partir as coisas que nos d ão a impressão de serem as mais evidentes . O
do qual tudo se realiza ou tudo recomeça ; é preciso ter a mod éstia que a razão experimenta como sua necessidade , ou melhor , aquilo
de se dizer ao mesmo tempo que - mesmo sem essa solenidade - o que as diferentes formas de racionalidade apresentam como lhes
momento em que se vive é muito interessante e exige ser analisado , sendo necessário , podemos fazer perfeitamente a sua história e en -
decomposto , e que de fato saibamos nos colocar a questão: o que é contrar as redes de contingê ncias de onde isso emergiu ; o que , no
a atualidade? Eu me pergunto se não seria possível caracterizar um entanto , não quer dizer que essas formas de racionalidade sejam t
1
s
326 Michel Foucault - Ditos c Escritos -
1983 - Estruturalismo e Pós estruturalismo 327

irracionais ; isso quer dizer que elas repousam em uma base de - Gostaria de voltar daqui a pouco a essa questão , porque eu ti-
pr ática e de história humanas, e já que essas coisas foram feitas, nha começado a dizer duas ou três coisas. A primeira é que , estu -
elas podem , com a condição de que se saiba como foram feitas , ser dando a racionalidade das dominações , tentei estabelecer inter -
desfeitas. relações que não são isomorfismos . Em segundo lugar , quando
- Esse trabalho sobre asfissuras , ao mesmo tempo descritivo e falo dessas relações de poder , das formas de racionalidade que po-
pr ático , é um trabalho de campo. dem regulá-las e regê-las , não é me referindo a um Poder ( com P
1 mai úsculo ) que dominaria o conjunto do corpo social e que lhe im -
- Talvez um trabalho de campo e talvez um trabalho que , a partir
das questões colocadas pelo campo, pode avan çar bastante em ter - i poria sua racionalidade . De fato , são as relações de poder , que são
mos de análise histórica . m últiplas e tê m diferentes formas , que podem atuar nas relações
- O trabalho sobre esses pontos defissuras, o trabalho de cam- familiares, no interior de uma instituição ou em uma administra-
po , é o que você chama de microf í sica do poder ou de anal í tica do ção , entre uma classe dominante e uma classe dominada , relações
poder? de poder que tê m formas específicas de racionalidade , formas que
- E um pouco isso . Pareceu -me que essas formas de racionali- lhes são comuns . É um campo de análise , e não absolutamente a
dade , que são as que atuam nos processos de dominação , merece- referência a uma instância única. Em terceiro lugar , se estudo es-
riam ser analisadas em si mesmas , sabendo-se que essas formas sas relações de poder , não faço de forma alguma a teoria do poder ,
de racionalidade não são alheias a outras formas de poder coloca- mas , na medida em que minha questão é saber como estão ligados
das em ação , por exemplo , no conhecimento ou na técnica . Há , ao entre si a reflexividade do sujeito e o discurso da verdade , se minha
contrário , uma troca, transmissões , transferências , interferê ncias , questão é: “ Como o sujeito pode dizer a verdade sobre ele mes-
mas gostaria de enfatizar que não me parece possível designar uma mo?” , parece-me que as relações de poder são um dos elementos
ú nica e mesma forma de racionalidade nesses tr ês domí nios , que determinantes nessa relação que tento analisar . Isso é evidente ,
se encontram os mesmos tipos mas deslocados , e que há , simulta- por exemplo , no primeiro caso que estudei, o da loucura. É através
de um certo modo de dominação exercido por alguns sobre outros
neamente , interconexão fechada e m ú ltipla , mas não isomorfismo. i
que o sujeito pode tentar dizer a verdade sobre sua loucura apre-
- Em qualquer é poca ou especficamente?
sentada sob as espécies do outro. Portanto , não sou de forma algu -
- N ão há lei geral dizendo quais são os tipos de relações entre as
ma um teórico do poder . Eu diria que o poder , em ú ltima instância ,
racionalidades e os procedimentos de dominação postos em ação .
não me interessa como questão autónoma e se, em várias ocasiões,
- Fiz essa pergunta porque um esquema retorna em um certo
fui levado a falar da questão do poder , é na medida em que a análi-
n ú mero de cr í ticas que lhe são feitas , ou seja , que você falaria de se polí tica que era feita dos fen ômenos do poder não me parecia ser
um momento preciso , e que você refletiria ( essa é , por exemplo , a capaz de dar conta desses fen ô menos mais sutis e mais detalhados
cr í tica de Baudrillard ) sobre um momento no qual o poder se tor - que quero evocar ao colocar a questão do dizer verdadeiro sobre si
nou “ nã o localiz ável pela disseminaçã o ” 10; seria , no fundo , essa mesmo . Se digo a verdade sobre mim mesmo como eu o faço , é por -
disseminação nã o identificá vel , essa multiplicação necessá ria que , em parte , me constituo como sujeito através de um certo n ú-
que a abordagem microf í sica rejletiria. Da mesma maneira , um mero de relações de poder que são exercidas sobre mim e que exer -
alemão chamado Alexander Schubert , de um outro ponto de vis- ço sobre os outros. Isso para situar o que é, para mim , a questão do
ta , diz que você fala de um momento em que o capitalismo dissol - poder . Retornando à questão que você evocou a pouco , reconheço
veu de tal forma o sujeito que é possí vel admitir que o sujeito que não vejo muito claramente onde está a objeção. Eu não fazia
sempre tenha sido apenas uma multiplicidade de posiçõ . esn uma teoria do poder . Eu fazia história , em um momento dado , da
maneira pela qual foram estabelecidos a reflexividade de si sobre si
e o discurso da verdade a ela ligado. Quando falo das instituições
i

10 . Baudrillard ( J . ) , Oublier Foucault , Paris , Galilée , 1977.


de internação no século XVIII , falo das relações de poder tais como í
11 . Schubert ( A . ) , Die Decodierung des Menschen , Frankfurt , Focus Verlag , 1981. elas existiam naquele momento. Não compreendo de forma alguma
i
328 Michel Foucault - Ditos e Escritos -
1983 - Estruturalismo e Pós estruturalismo 329

a crítica, salvo se me atribuíram um projeto inteiramente diferente - Sim. Assiste -se nofundo a esse espetáculo bastante espanto -
do meu e que seria fazer uma teoria geral do poder , ou ainda fazer a so de um poder que , privado de sua log í stica intelectual , recorre
análise do poder tal como ele é atualmente . De forma alguma! Eu a temas de legitimação bastante obsoletos. Quanto a essa log í sti -
tomo a psiquiatria , de fato, como ela é agora. Vejo aparecer um cer - ca intelectual , no momento em que a esquerda chega ao poder
to n ú mero de problemas, no funcionamento mesmo da instituição , parece que nada mais há a dizer a ela.
que me parecem remeter a uma história, a uma história relativa- - É uma pergunta muito boa. Primeiramente , lembraria o se-
mente longínqua; ela data de vários séculos. Tentei fazer sua histó- guinte : se a esquerda existe na Fran ça - e digo “ a esquerda” em
ria e sua arqueologia ; se vocês querem , da maneira pela qual se um sentido geral , ou seja , se há pessoas que se sentem de esquer -
tentou dizer a verdade sobre a loucura nos séculos XVII e XVIII , e da , que votam na esquerda , se pode existir um grande partido de
adoraria mostr á-la tal como ela existia nesta época . A respeito dos esquerda - o que se tornou o Partido Socialista - creio que é em
criminosos , por exemplo , e do sistema de punições que caracteriza grande parte por causa da existência de um pensamento de es-
nosso sistema penal e que se estabeleceu no século XVIII , não des- querda , de uma reflexão de esquerda , de uma análise , de uma
crevi absolutamente os poderes tais como eles se exerciam no sécu - multiplicidade de análises que foram feitas pela esquerda , de es-
lo XVIII , mas busquei, em um certo nú mero de instituições que colhas polí ticas feitas pela esquerda desde , ao menos , 1960 e que
existiam nesta época e que puderam servir de modelo, quais eram foram feitas fora dos partidos . Não é de forma alguma graç as ao
as formas de poder que se exerciam e como elas puderam atuar . PC , gra ças à antiga SFIO - que não estava morta antes de 1972 , ao
Portanto , não encontro nenhuma pertinê ncia no fato de se dizer menos ; ela levou muito tempo para morrer -, que existe uma es-
que o poder não é , atualmente , da mesma forma. querda viva na Fran ça ; é porque através da guerra da Argélia , por »

- Duas questões ainda um pouco descosidas , mas que , no en- exemplo , em todo um setor da vida intelectual també m , nos seto-
tanto , me parecem importantes. Talvez se possa começar pelo es- res que lidavam com os problemas da vida cotidiana, como aque-
tatuto do intelectual . Definiu-se deforma geral como você concebe les da análise econ ómica e social , houve um pensamento de es-
o seu trabalho , inclusive a sua prática , caso deva haver uma. Você querda extraordinariamente vivo e que não foi morto , ao contr á- i
se disporia a falar aqui da situação filosó fica na França , muito rio , no momento mesmo em que os partidos de esquerda se des-
globalmente , por exemplo , a partir do seguinte tema: o intelectual qualificavam por diferentes razões .
!
não tem mais por função opor ao Estado uma razão universal , - Não , naquele momento , não . í
nem lhe fornecer sua legitimação? Isso se relacionaria com a situa- - E , pode-se dizer que se , durante 15 anos - os primeiros 15 I
ção tão estranha e preocupante , a que assistimos hoje : uma espé- anos do gaullismo e do regime que conhecemos a seguir -, a es-
cie de consenso , mas muito tácito , dos intelectuais em relação à querda sobreviveu , foi graças a todo esse trabalho . Em segundo lu -
esquerda , e ao mesmo tempo um silê ncio completo do pensamen- gar , é preciso notar que se o Partido Socialista obteve a repercus-
to de esquerda , do qual se estaria tentado dizer que ele obriga um são que o tornou um grande partido , foi em grande parte porque
poder de esquerda a recorrer a temas de legitimação muito arcai- ele foi bastante permeável a essas novas atitudes , aos novos proble-
cos: que se pense no congresso de Val ê ncia do Partido Socialista12 mas e às novas questões. Ele estava aberto para as questões relacio-
com seus excessos retóricos , a luta de classes... nadas com a vida cotidiana , a vida sexual , os casais , as questões
- ...a proposta recente do presidente da Assembléia Nacional, di- das mulheres, ele foi sensível aos problemas relativos à autogestão,
zendo que era importante substituir um modelo cultural burguês, por exemplo, todos temas do pensamento de esquerda , de um pen-
egoísta e individualista por um novo modelo cultural de solida- samento de esquerda não incrustado nos partidos e não tradicio-
riedade e de sacrif ício. Eu não era muito velho quando o marechal nal em relação ao marxismo. Novos problemas , novo pensamento ,
Pé tain tomou o poder na França, mas reconheci esse ano , na boca isso foi crucial . Creio que um dia , quando olharmos esse episódio
desse socialista, o que havia embalado minha infância. da história da França , veremos a emergência de um novo pensa-
mento de esquerda , que , sob múltiplas formas e sem unidade - tal- 5
12. Em 1981. vez um de seus aspectos positivos -, mudou completamente o hori- *
I
330 Michel Foucault - Ditos e Escritos
-
1983 - Estruturalismo e Pós estruturalismo 331

zonte no qual se situam os movimentos de esquerda contempor â- soa . É verdade que se trata de reações que não são da ordem de
neos . Poder íamos pensar que essa forma de cultura de esquerda uma escolha fundamentalmente afirmada ; são intervenções nuan -
seria totalmente alé rgica à organização de um partido e que ela ape- çadas, hesitantes , ligeiramente duvidosas , um pouco encorajado-
nas poderia encontrar sua verdadeira expressão em grupelhos ou ras , mas que correspondem ao estado atual da situação , e , em vez
em individualidades . E se provou que não ; finalmente , tinha havi- de se queixar do silê ncio dos intelectuais , é preciso reconhecer mui-
do - eu o dizia a pouco - uma espécie de simbiose que fez com que o to mais sua reserva refletida diante de um acontecimento recente e
novo Partido Socialista fosse bastante impregnado por essas idéias . de um processo que não se sabe ainda muito bem para onde ele vai
Houve , em todo caso - coisa suficientemente interessante e atraen- virar .
te para que a notemos -, um certo n ú mero de intelectuais , não mui- - Portanto , nada de relação necessária entre essa situação po-
to numeroso aliás, que se aproximou do Partido Socialista. Foi cer - l í tica , esse tipo de discurso que é mantido e a tese que , no entan-
tamente graças a táticas políticas , a estratégias políticas muito há- to , é largamente difundida: a raz ão é o poder, então , desinvista-
beis - e eu o digo sem conotação pejorativa - que o Partido Socialis- mos ao mesmo tempo o saber e o poder?
ta foi alçado ao poder ; mas , ainda uma vez , foi absorvendo um cer - - Não , não. É preciso compreender que isso faz parte do destino
to n ú mero de formas dessa cultura de esquerda que ele conquistou
o poder , e é verdade que , após o congresso de Mertz13 , e afortiori
-
de todos os problemas colocados serem reduzidos a slogans .
Ningu é m disse: “ A razão é o poder ” ; creio que ningu ém disse que o
do congresso de Valê ncia - no qual se pôde ouvir coisas como as re- saber era um poder .
latadas há pouco -, certamente esse pensamento de esquerda se in- - Diz-se isso.
terroga um pouco. - Diz-se isso , mas, você compreende , quando eu leio a tese “ o sa-
- Ser á que ele existe ainda? ber é o poder ” ou “ o poder é o saber ” - e sei bem que ela me é atri-
- N ão sei . É preciso levar em conta coisas muito complexas . É bu ída - pouco importa , eu morro de rir , pois o meu problema é
necessá rio ver , por exemplo , que no Partido Socialista esse novo precisamente estudar as suas relações . Se fossem duas coisas
pensamento de esquerda foi mais ativo em torno de algu é m como id ê nticas , eu não teria que estudar suas relações e me cansaria
Rocard . O “ congelamento ” de Rocard , de seu grupo e de sua cor - bem menos. O simples fato de colocar a questão de suas relações
rente no PS contribuiu bastante . A situação atual é muito comple- prova seguramente que eu não as identifico.
xa . Mas acredito que os discursos um tanto estereotipados manti- - Ú ltima pergunta , O marxismo vai muito mal hoje por ter ido
dos por muitos líderes do PS denunciam o que foi a esperan ça de beber nas fontes das Luzes : no entanto - esse é um tema que do -
uma grande parte desse pensamento de esquerda ; eles denunciam minou o pensamento , se o queira ou não , durante os anos 70 -,
a histó ria recente do PS , que se beneficiou desse pensamento de es- ainda que fosse porque um certo n úmero de indiv í duos , de inte -
querda ; eles fizeram calar , de uma maneira bastante autoritá ria , lectuais , como sã o chamados os novos fil ósofos , vulgarizaram
correntes que existem no interior do PS. Diante desse fenômeno , os esse tema. Então , o marxismo anda muito mal .
intelectuais se calaram um pouco. Digo um pouco , porque é um ~ Não sei se ele anda mal ou bem . Restrinjo- me , se você quer , à
erro de jornalista dizer que os intelectuais se calaram . Eu conheço f órmula : é uma id éia que dominou o pensamento ou a filosofia .
mais de um que reagiu , deu sua opinião a respeito de tal ou tal me -
Creio que você tem razão de colocar a questão , de colocá-la dessa
dida , de tal ou tal decisão , ou sobre tal ou tal problema. E acredito
forma . Eu diria , estaria tentado a dizer que - seria necessá rio deter
que , se fosse feito o inventá rio exato das intervenções dos intelec-
você neste momento - o marxismo não dominou o pensamento ,
tuais no curso desse últimos meses , elas não seriam sem dúvida
mas o submundo do pensamento. Mas isso seria fácil, inutilmente
menos numerosas do que em outros momentos. Em todo caso ,
polê mico , e não é verdadeiramente justo. Creio que , na Fran ça , é
pessoalmente , nunca escrevi tantos artigos nos jornais quanto de-
preciso se levar em conta a seguinte situação : existiam na Fran ça ,
pois que disseram que me calei . Enfim , pouco importa minha pes-
por volta da d écada de 50 , dois circuitos de pensamento que eram
praticamente senão estranhos um ao outro , pelo menos indepen -
13. Em 1979. dentes um do outro - de um lado , o que eu chamaria de um circuito

i
332 Michel Foucault - Ditos e Escritos -
1983 - Estruturalismo e Pós estruturalismo 333

universitário ou acadêmico e , de outro, de um circuito do pensa- televisão , consegue-se chegar a reduzir um livro , um trabalho , um
mento aberto ou corrente; quando digo “ corrente” , não quero dizer problema a slogans . Essa passagem da questão filosófica ao slo-
em absoluto necessariamente de baixa qualidade , mas que um li- gan , essa transformação da questão do marxismo tornando-se “ o
vro universitário, uma tese , um curso eram coisas que ficavam nas marxismo acabou ” , não se trata de atribuir a responsabilidade dis-
editoras universitárias , à disposição dos leitores universitários, so a esse ou àquele , mas é preciso que se perceba o tobogã sobre o
quase só tendo repercussão nas universidades. Houve o caso parti- qual desliza o pensamento filosófico ou a questão filosófica , trans-
cular de Bergson , que foi uma exceção. Do pós-guerra em diante - formando-se assim em matéria de consumo corrente; se antiga-
e , sem d úvida , o existencialismo teve sua participação nisso -, vi- mente existiam dois circuitos diferentes , e se o circuito institucio-
ram-se pensamentos que eram de origem , de enraizamento profun- nal , que tinha seus inconvenientes - seu fechamento , seu dogmatis-
damente universitário - antes de tudo , o enraizamento de Sartre , mo , seu academicismo -, não evitava todas as perdições , sofria um
Husserl e Heidegger , que não eram dan çarinas p úblicas - se dirigi- desperd ício menor , a tend ê ncia à entropia era menor , ao passo que
rem para além do pú blico universitário . Ora, esse fenômeno , mes- agora a entropia se realiza com uma rapidez espantosa. Eu poderia
mo se não havia mais na França algué m do porte de Sartre para dar dois exemplos pessoais: 15 anos foram necessários para se
sustentá-lo , democratizou -se. Apenas Sartre , ou talvez Sartré e transformar meu livro sobre a loucura num slogan: “ Todos os lou -
Merleau-Ponty podiam fazê-lo , e depois se tornou um pouco ao al- cos eram encarcerados no século XVHI” , mas não foi preciso nem
cance de todo mundo, por um certo n úmero de razões , dentre as 15 meses, bastaram três semanas, para transformar meu livro so-
quais , primeiramente , o deslocamento da universidade , a multipli- bre a vontade de saber no seguinte slogan: “ A sexualidade jamais
cação do n ú mero de estudantes , de professores, que constitu íam , foi reprimida . ” Vi , em minha pr ó pria experiê ncia , a aceleração des-
finalmente , uma espécie de massa social , o deslocamento das es- se fenômeno de entropia, em um sentido detestável para o pensa-
truturas internas e um crescimento do pú blico universitário , a di- mento filosófico, mas també m é preciso dizer que isso responsabi-
fusão da cultura també m , que está longe de ser um fenômeno nega- liza mais ainda aqueles que escrevem. 4
tivo. O nível cultural médio da população , no entanto , aumentou k - Fiquei tentado , por um momento , a dizer , para concluir , mas
consideravelmente e , seja lá o que se diga , a televisão desempenha sob a forma de pergunta e sem querer substituir um slogan por
um importante papel: as pessoas aprendem que há uma nova his- outro: afinal , o marxismo acabou? No sentido em que você diz ,
tória etc . Acrescentemos a isso todos os fenômenos políticos , os em A arqueologia do saber , que um “ Marx não falsificado ajuda-
grupos, os movimentos que estavam a cavaleiro , no interior e no ria a formular uma teoria geral da descontinuidade , das sé ries ,
exterior da universidade . Tudo isso deu repercussão ao trabalho dos limites , das unidades , das ordens espec í ficas , das autonomias
universitário que ultrapassava amplamente a instituição universi- e das depend ê ncias diferenciadas” .
tá ria ou , mesmo, que ultrapassava o grupo de intelectuais especia- - Sim. Não quero prejulgar qual será a forma de cultura que virá.
lizados , profissionais. Constata-se atualmente um fenômeno carac- Veja bem , tudo é presente , ao menos como objeto virtual , no inte-
ter ístico na França: quase não temos mais revistas especializadas rior de uma cultura dada ; ao menos tudo o que já ocorreu uma vez .
em filosofia , ou elas praticamente desapareceram . Quando se quer O problema dos objetos que jamais figuraram na cultura é um ou -
escrever alguma coisa, onde se escreve , pode-se escrever? Afinal, tro problema. Mas faz parte do funcionamento da memória e da
existem apenas semanários de grande difusão ou revistas de inte- cultura poder reatualizar qualquer dos objetos que nela figuraram
resse geral em que se pode conseguir colocar alguma coisa . É um uma vez ; a repetição é sempre possível , a repetição com aplicação ,
fenômeno muito importante. Então ocorreu que - o que é inevitável transformação. Deus sabe que Nietzsche podia parecer em 1945
em situações como essas - um discurso pouco elaborado , em vez como definitivamente desqualificado . . . É certo que Marx, mesmo
de substituído por um trabalho suplementar , que , em resposta a se admitamos que Marx vai desaparecer agora, reaparecer á um
ele e lhe fazendo cr ítica o aperfeiçoa , o torna mais dif
ícil , o refina , dia . O que desejo - e é por isso que mudei minha formulação em re-
faça ao contrário a repercussão desabar ; e , pouco a pouco , do livri- lação àquela que você citava - não é tanto desfazer a falsificação , a
nho ao artigo , do artigo ao comentá rio nos jornais, e dos jornais à restituição de um verdadeiro Marx, mas , certamente , a diminuição
*

Â
\
334 Michel Foucault - Ditos e Escritos

do peso , a liberação de Marx em relação à dogmá tica de partido


que simultaneamente o fechou , veiculou e brandiu durante 1984
tanto
tempo . Pode-se dar à frase: “ Marx está morto” um sentido conjun-
tural , dizer que é verdade relativamente , mas dizer que Marx vai
desaparecer dessa maneira. . .
- Mas essa referê ncia em A arqueologia do saber queria dizer O Que São as Luzes?
que , de certa forma, Marx operava em sua metodologia? ;
-7
- Sim , totalmente . Você compreende que, como na época em que
eu escrevia esses livros era de bom-tom , para ser bem visto pela es-
£ "What
querda institucional , citar Marx no rodapé , eu evitei isso. Mas is Enligthenment?" ( “ O que sã o as Luzes? ” ) in Rabinow ( . ) ,
eu P ed . , The Fou-
poderia encontrar - o que não tem nenhum interesse - várias
pas-
. .
cault reader Nova Iorque , Pantheon Books 1984 , ps , 32 50 .
-
sagens que escrevi me referindo a Marx, e se Marx não tivesse sido
esse autor , funcionando dessa forma na cultura francesa e com
uma tal sobrecarga política , eu o teria citado em pé de página . Não Quando, nos dias de hoje , um jornal propõe uma pergunta aos
o fiz para me divertir e para preparar armadilhas para aqueles que , r seus leitores , é para pedir -lhes seus pontos de vista a respeito de
dentre os marxistas , pin çavam justamente essas frases. Isso fazia > . um tema sobre o qual cada um já tem sua opinião: não nos arrisca -
parte do jogo. mos a aprender grande coisa. No século XVIII , se preferia interro-
i , . gar o p ú blico sobre problemas para os quais justamente ainda não
í ; havia resposta . Não sei se era mais eficaz ; era mais divertido .
ï:
; Assim , em virtude desse há bito , um periódico alemão, a Berlinis -
: che Monatsschrift , publicou , em dezembro de 1784 , uma resposta à i
1
pergunta: Was ist Aufklárung?1 E essa resposta era de Kant.

^
{
h
t Texto menor , talvez . Mas me parece que , com ele , entra discreta -
$ mente na história do pensamento uma questão que a filosofia mo-
1
'

derna não foi capaz de responder , mas da qual ela nunca conseguiu
se desembaraçar . E há dois séculos , de formas diversas , ela a repe-
Ih te . De Hegel a Horckheimer ou a Habermas, passando por Nie-
£ tzsche ou Max Weber , não existe quase nenhuma filosofia que , dire -
ta ou indiretamente, não tenha sido confrontada com essa mesma
I questão: qual é então esse acontecimento que se chama a Aufkl á-
£•
rung e que determinou , pelo menos em parte , o que somos , pensa-
mos e fazemos hoje? Imaginemos que a Berlinische Monatsschrift
1
ainda existe em nossos dias e que ela coloca para seus leitores a
questão: “ O que é a filosofia moderna?” Poderíamos talvez respon-
i der -lhe em eco: a filosofia moderna é a que tenta responder à ques-
tão lançada , há dois séculos , com tanta imprud ência : Was ist Aufk -
l árung?
^
1 . In Berlinische Monatsschrift , dezembro de 1784 , vol . IV, ps. 481- 491 ( “ Qu ’est - ce
i
1

que les Lumières?” , trad. Wismann , in Oeuvres, Paris, Gallimard , col. "Biblio-
th è que de la Plé iade ” , 1985 , t. II ) .

ï. 1
1
336 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1984 - O Que São as Luzes? 337

- pode-se igualmente analisar o presente como um ponto de


transição na direção da aurora de um mundo novo. É isso que des-
Detenhamo-nos por alguns instantes nesse texto de Kant . Por creve Vico no último capítulo dos Principes de la philosophie de
muitas razões , ele merece reter a atenção . l’ histoire 4 ; o que ele vê “ hoje ” é a “ mais completa civilização propa -
1 ) A essa mesma pergunta, o pr óprio Moses Mendelssohn tinha gando-se entre os povos , na maioria subjugados por alguns gran-
acabado de responder no mesmo jornal , dois meses antes. Mas Kant des monarcas"; é també m “ a Europa resplandecente de uma in-
desconhecia esse texto quando havia redigido o seu . Certamente , cqmparável civilização” , abundante enfim “ de todos os bens que
não é desse momento que data o encontro do movimento filosófico compõem a felicidade da vida humana ” .
alemão com os novos desenvolvimentos da cultura judaica. Já há Ora , a maneira pela qual Kant coloca a questão da Aufkl árung é
uns 30 anos Mendelssohn estava nessa encruzilhada, em compa- totalmente diferente: nem uma época do mundo à qual se perten-
nhia de Lessing. Mas, até então, tratava-se de dar direito de cidada- ce , nem um acontecimento do qual se percebe os sinais , nem a au-
nia à cultura judaica no pensamento alemão - o que Lessing havia rora de uma realização{kant define a Aufkl á rung de uma maneira
tentado fazer em Die Juden2 -, ou ainda de desembaraçar o pensa- quase inteiramente negativa , como uma Ausgang , uma “ saída ” ,
mento judaico e a filosofia alemã dos problemas comuns: é o que uma “ solu ção ” . Em seus outros textos sobre a história , ocorre a
'

Mendelssohn havia feito nas Entretiens sur l’ immortalité de l’âme3 . Kant colocar questões sobre a origem ou definir a finalidade inte-
Com os dois textos publicados na Berlinische Monatsschrift , a. Aufk - rior de um processo histórico. [ No texto sobre a Aufkl árung , a
l árung alemã e a Haskala judaica reconheciam que elas pertenciam questão se refere à pura atualidade . Ele não busca compreender o
à mesma história ; buscam determinar de que processo comum elas presente a partir de uma totalidade ou de uma realização futura.
decorrem . Talvez fosse uma maneira de anunciar a aceitação de um Ele busca uma diferen ça: qual a diferença que ele introduz hoje
destino comum, do qual se sabe a que drama ele devia conduzir . em relação a ontem?]
2 ) Entretanto , há mais. Em si mesmo e no interior da tradição 3 ) Não entrarei nos detalhes do texto, que não é muito claro , ape-
cristã , esse texto coloca um problema novo . ‘
; sar de sua brevidade . Gostaria simplesmente de me deter em tr ês i
Certamente não é a primeira vez que o pensamento filosófico
^
procura refletir sobre seu pr óprio presente. Mas , esquematicamen-
ou quatro pontos que me parecem importantes para compreender
como Kant colocou a questão filosófica do presente s
te , pode-se dizer que , até então , essa reflexão tinha tomado tr ês for - [kant indica imediatamente que a “ saída” que caracteriza a Aufk -
mas principais:J l árung é um processo que nos liberta do estado de “ menoridade ” .
í
- pode-se representar o presente como pertencendo a uma certa E por “ menoridade” ele entende um certo estado de nossa vontade
é poca do mundo , distinta das outras por algumas caracter ísticas que nos faz aceitar a autoridade de algum outro para nos conduzir
pr ó prias , ou separada das outras por algum acontecimento dramá- nos dom ínios em que convé m fazer uso da razão. Kant dá três

^
tico Assim , em O polí tico , de Platão, os interlocutores reconhecem
que eles pertencem a uma dessas revolu ções do mundo em que
este gira ao contr ário , com todas as conseqúê ncias negativas que
issojíode ter ;
exemplos: estamos no estado de menoridade quando um livro
toma o lugar do entendimento , quando um orientador espiritual
toma o lugar da consciê ncia , quando um médico decide em nosso
lugar a nossa dieta ( observamos de passagem que facilmente se re-
'
-
- pode se também interrogar o presente para nele tentar decifrar conhece aí o registrg das tr ês cr íticas , embora o texto não o mencio-
os sinais que anunciam um acontecimento iminente .; Temos aqui o ne explicitamente ) . iDm todo caso , a Aufklárung é definida pela mo-
princípio de uma espécie de hermenêutica histórica , da qual Agos- dificação da relação preexistente entre a vontade , a autoridade e o
tinho poderia dar um exemplo ; uso da razão ;

2. Lessing ( G. j, Die Juden , 1749. 4 . Vico ( G. ) , Principii di una scienza nuoua d ’ interno alla comune natura delle
3. Mendelssohn (M . ) , Phádon Oder iiber die Unsterbfichkeit der Seele , Berlim , nazioni , 1725 [ Principes de la philosophie de l’ histoire , trad . Michelet , Paris , 1835 ; !
1767 , 1768 , 1769. reed . , Paris, A. Colin , 1963 ) . 4

à
\

338 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1984 - O Que São as Luzes? 339

E preciso també m enfatizar que essa saída é apresentada por mas quando se disser a ela: “ Obedeçam , e vocês poderão racioci-
Kant de maneira bastante ambígua. Ele a caracteriza como um nar tanto quanto quiserem . ” É preciso observar que a palavra ale-
fato, um processo em vias de se desenrolar ; mas a apresenta tam- mã empregada aqui é rdzonieren; esta palavra, que é também em-
bé m como uma tarefa e uma obrigação. Desde o primeiro par ágra- pregada nas Critiques , não se relaciona com um uso qualquer da
fo , enfatiza que o pr óprio homem é responsável por seu estado de razão , mas com um uso da razão no qual esta não tem outra finali-
menoridade . E preciso conceber então que ele não poder á sair dele dade senão ela mesma; r á zonieren é raciocinar por raciocinarjE
a não ser por uma mudan ça que ele pr óprio operar á em si mesmo . Kant d á exemplos , eles também completamente triviais , aparente-
De uma maneira significativa, Kant diz que essa Aufklárung tem mente: pagar seus impostos , mas poder raciocinar tanto quanto se
queira sobre a fiscalização , eis o que caracteriza o estado de maio-
uma “ divisa ” (Wahlspruch ) : ora , a divisa é um traço distintivo atra-
vés do qual algué m se faz reconhecer ; é també m uma palavra de or - ridade ; ou ainda assegurar , quando se é pastor , o serviço de uma
dem que damos a nós mesmos e que propomos aos outros. E qual paróquia de acordo com os princípios da Igreja à qual se pertence ,
é essa palavra de ordem? Aude saper , “ tenha coragem , a aud ácia mas raciocinar como se quiser sobre o tema dos dogmas religiosos .
de saber ” . Portanto, é preciso considerar que a. Aufkl árung é ao / Seria possível pensar que nada há aí de muito diferente do que
mesmo tempo um processo do qual os homens fazem parte coleti- se entende, desde o século XVI, por liberdade de consciê ncia: o di-
reito de pensar como se queira , desde que se obede ça como é preci-
vamente e um ato de coragem a realizar pessoalmente . Eles são si-
so . Ora , é ali que Kant faz intervir uma outra distinção e a faz inter -
multaneamente elementos e agentes do mesmo processo. Podem
vir de uma maneira bastante surpreendente . Trata-se da distin ção
ser seus atores à medida que fazem parte dele ; e ele se produz à
medida que os homens decidem ser seus atores voluntários .
Surge uma terceira dificuldade no texto de Kant. Ela reside no ^
entre o uso privado e o uso p úblico da razãõ Mas ele acrescenta
logo a seguir que a razão deve ser livre em seu uso p úblico e que
deve ser submissa em seu uso privado. O que é , palavra por pala-
emprego da palavra Menschheit . Sabe-se a importância deste ter - vra , o contr ário do que usualmente se chama liberdade de cons-
mo na concepção kantiana da história . Ser á preciso compreender ciê ncia
que é o conjunto da espécie humana que está envolvido no proces- Mas é necessário precisar um pouco . Qual é , segundo Kant , esse
so da Aufkl árung? E , nesse caso , é preciso conceber que a Aufkl á- uso privado da raz ão? Em que domínio ele se exerce? O homem ,
rung é uma mudan ça histórica que atinge a vida política e social de diz Kant , faz um uso privado de sua razão quando ele é “ uma peça
todos os homens sobre a superf ície da Terra. jOu se deve entender de uma máquina” ; ou seja , quando ele tem um papel a desempe-
que se trata de uma mudança que afeta o que constitui a humanida- nhar na sociedade e fun ções a exercer : ser soldado , ter impostos a
de do ser humano? E se coloca então a questão de saber o que é pagar , dirigir uma par óquia , ser funcioná rio de um governo , tudo
^
essa mudan ça Ali , també m , a resposta de Kant não é desprovida
de certa ambigúidade . Em todo caso, sob uma apar ê ncia simples ,
ela é bastante complexa .
isso faz do ser humano um segmento particular na sociedade ; por
aí , ele se encontra colocado em uma posição definida , em que ele
deve aplicar as regras e perseguir fins particulares. Kant não pede
[ Kant define duas condições essenciais para que um homem saia que se pratique uma obediência cega e tola ; mas que se faça um uso
de sua menoridade . E essas duas condições são simultaneamente da razão adaptado a essas circunstâncias determinadas ; e a razão

^
espirituais e institucionais , éticas e políticas
>qA primeira dessas condições é que seja bem discriminado o que
decorre da obediê ncia e o que decorre do uso da razão Para carac-
deve submeter -se então a esses fins particulares . Não pode haver
portanto , aí , uso livre da razão]
! Em compensação , quando se raciocina apenas para fazer uso de
^
terizar resumidamente o estado de menoridade , Kant cita uma ex- sua razão, quando se raciocina como ser racional ( e não como peça
pressão de uso corrente : “ Obedeçam , não raciocinem . ” Tal é , se- de uma máquina ) , quando se raciocina como membro da humani-
gundo ele , a forma pela qual se exercem habitualmente a disciplina dade racional , então c uso da razão deve ser livre e p úblico A Aufk - 5

militar , o poder político , a autoridade religiosa:. A humanidade ter á


adquirido maioridade não quando não tiver mais que obedecer , procurariam garantir sua liberdade pessoal de pensamento . Há
^
l árung não é , portanto , somente o processo pelo qual os indivíduos

á
}
¥
340 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1984 - O Que São as Luzes? 341

Aufklàrung quando existe sobreposição do uso universal, do uso li- mente definido em seus princípios que sua autonomia pode ser as-
vre e do uso pú blico da razão . segurada. A Cr ítica é , de qualquer maneira , o livro de bordo da ra-
Ora, isso nos conduz a uma quarta questão que é preciso colocar zão tornada maior na Aufkl árung ; e , inversamente , a Aufkl á rung é
para esse texto de Kant . Compreende-se que o uso universal da ra- a era da Criticar]
zão ( fora de qualquer fim particular ) é assunto do próprio sujeito É preciso também , creio , enfatizar a relação entre esse texto de
como indivíduo ; percebe-se também que a liberdade desse uso Kant e os outros textos consagrados à história . Estes , em sua maio-
pode ser assegurada de maneira puramente negativa pela ausência ria, buscam definir a finalidade interna do tempo e o ponto para o
de qualquer acusação contra ele ;[mas , como assegurar um uso pú- qual se encaminha a história da humanidade . Ora ,[a análise da
blico dessa razão? A Aufkl àrung - vemos aqui - não deve ser conce- Aufkl àrung , definindo-a como a passagem da humanidade para
bida simplesmente como um processo geral afetando toda a huma- seu estado de maioridade , situa a atualidade em relação a esse mo-
nidade ; ela não deve ser concebida somente como uma obrigação vimento do conjunto e suas direções fundamentais . Mas , simulta -
prescrita aos indivíduos: ela aparece agora como um problema po- neamente , ela mostra como , nesse momento atual , cada um é res-
lí ticoj pm todo caso, coloca-se a questão de saber como o uso da ra- ponsável de uma certa maneira por esse processo do conjunto]
zão pode tomar a forma pública que lhe é necessária , como a audá-
cia de saber pode se exercer plenamente , enquanto os indivíduos
TA hipótese que eu gostaria de sustentar é de que esse pequeno
texto se encontra de qualquer forma na charneira entre a reflexão
^
obedecer ão tão exatamente quanto possível . E Kant , para terminar , crítica e a reflexão sobre a história] É uma reflexão de Kant sobre a
propõe a Frederico II , em termos pouco velados , uma espécie de atualidade de seu trabalho. Sem d úvida , não é a primeira vez que
contrato . O que poder íamos chamar de contrato do despotismo ra- um filósofo expõe as razões que ele tem para empreender sua obra
cional com a livre razão : o uso p úblico e livre da razão autónoma em tal ou tal momento. Mas me parece que é a primeira vez que um
será a melhor garantia da obediência, desde que , no entanto, o pr ó- filósofo liga assim, de maneira estreita e do interior , a significação :
prio princípio político ao qual é preciso obedecer esteja de acordo de sua obra em relação ao conhecimento , uma reflexão sobre a his-
com a razão universal. tória e uma análise particular do momento singular em que ele es-
creve e em função do qual ele escreve . A reflexão sobre “ a atualida- !
de ” como diferen ça na história e como motivo para uma tarefa filo-
sófica particular me parece ser a novidade desse texto^
Deixemos de lado esse texto . N ão pretendo absolutamente consi-
E , encarando-o assim , jne parece que se pode reconhecer nele
der á-lo como podendo constituir uma descrição adequada da um ponto de partida: o esboço do que se poderia chamar de atitude
Aufkl á rung ; e nenhum historiador , penso , poderia se satisfazer
de modernidade . \
com ele para analisar as transformações sociais, polí ticas e cultu- Sei que se fala freqúentemente da modernidade como uma é po-
rais produzidas no fim do século XVIII.
ca ou , em todo caso , como um conjunto de traços caracter ísticos de
Contudo , apesar de seu caráter circunstancial e sem querer lhe uma é poca ; ela é situada em um calendário , no qual seria precedi-
dar um lugar exagerado na obra de Kant, creio que é preciso enfati-
da de uma pré-modernidade , mais ou menos ingénua ou arcaica , e
^
zarja ligação existente entre esse pequeno artigo e as três Critiques .\ seguida de uma enigmática e inquiétante “ pós-modernidade ” . E
í Ele descreve de fato a Aufkl àrung como o momento em que a hu- nos interrogamos então para saber se a modernidade constitui a
Tnanidade far á uso de sua pr ópria razão , sem se submeter a nenhu- conseqúê ncia da Aufkl árung e seu desenvolvimento , ou se é preci-
ma autoridade ; ora , é precisamente neste momento que a Cr ítica é so ver nela uma ruptura ou um desvio em relação aos princípios
necessária, já que ela tem o papel de definir as condições nas quais fundamentais do século XVIII .
o uso da razão é legítimo para determinar o que se pode conhecer , ^
Referindo-me ao texto de Kant , pergunto-me se não podemos en-
o que é preciso fazer e o que é permitido esperar . É um uso ilegíti- carar a modernidade mais como uma atitude do que como um pe- *
mo da razão que faz nascer , com a ilusão , o dogmatismo e a heter o- r íodo da história. Por atitude , quero dizer um modo de relação que
nomia ; ao contr ário, é quando o uso legí timo da razão foi clara-
concerne à atualidade ; uma escolha voluntária que é feita por al -

Â
i

342 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1984 - O Que São as Luzes? 343

guns ; enfim , uma maneira de pensar e de sentir , uma maneira tam- to público ; um imenso desfile de coveiros, políticos , amantes , bur -
bé m de agir e de se conduzir que , tudo ao mesmo tempo , marca gueses. Celebramos todos algum enterro .” 6 Para designar essa ati-
uma pertinê ncia e se apresenta como uma tarefa. Um pouco, sem tude de modernidade , Baudelaire utiliza, às vezes, uma litotes que
d úvida , como aquilo que os gregos chamavam de ê thos . Conse- é muito significativa , porque ela se apresenta sob a forma de um
q üentemente , mais do que querer distinguir o “ per íodo moderno” preceito : “ Vocês não tê m o direito de menosprezar o presente. ”
das é pocas “ pr é ” ou “ pós-modernas” , creio que seria melhor procu - 2 ) Essa heroificação é irónica, bem entendido. Não se trata abso-
rar entender como a atitude de modernidade , desde que se formou , lutamente , na atitude de modernidade , de sacralizar o momento
pôs-se em luta com as atitudes de “ contramodernidade ” . j que passa para tentar mantê-lo ou perpetuá-lo. Não se trata sobre-

^ Para caracterizar resumidamente essa atitude de modernidade ,


tomarei um exemplo que é quase obrigatório: trata-se de Baudelai-
reQjá que em geral se reconhece nele uma das consciê ncias mais
tudo de recolhê-lo como uma curiosidade fugidia e interessante:
isso seria o que Baudelaire chama de uma atitude de “ flanar ” .
Aquele que flana se contenta em abrir os olhos , prestar atenção e
agudas da modernidade do século XIX. colecionar na lembrança. Ao homem que flana , Baudelaire opõe o
1 ) Tenta-se freqüentemente caracterizar a modernidade pela homem de modernidade : “ Ele vai , corre , procura . Seguramente ,
consciê ncia da descontinuidade do tempo : ruptura da tradição , esse homem , esse solitário dotado de uma imaginação ativa , sem-
sentimento de novidade , vertigem do que passa . É certamente isso pre viajando através do grande deserto de homens, tem um objeti-
que Baudelaire parece dizer quando ele define a modernidade vo mais elevado do que o daquele que flana , um objetivo mais geral ,
como “ o transitório, o fugidio, o contingente ” 5. Mas , para ele , ser diferente do prazer fugidio da circunstância . Ele busca essa alguma
moderno não é reconhecer e aceitar esse movimento perpé tuo ; é , coisa que nos permitir ão chamar de modernidade . Trata-se para
ao contr á rio , assumir uma determinada atitude em relação a esse ele de destacar da moda o que ela pode conter de poético no históri-
movimento; e essa atitude voluntária , dif ícil , consiste em recuperar co . ” E , como exemplo de modernidade , Baudelaire cita o desenhista
alguma coisa de eterno que não está alé m do instante presente , Constantin Guys. Aparentemente , ele é um sujeito que flana, um co-
nem por tr ás dele , mas nele . A modernidade se distingue da moda lecionador de curiosidades: ele é sempre “ o último em todos os luga-
que apenas segue ó curso do tempo ; é essa atitude que permite res onde pode resplandecer a luz , ressoar a poesia, fervilhar a vida ,
apreender o que há de “ heroico ” no momento presente . A moderni- vibrar a m úsica, em todos os lugares onde uma paixão pode pousar
dade não é um fato de sensibilidade frente ao presente fugidio ; é seu olhar , em todos os lugares onde o homem natural e o homem
uma vontade de “ heroificar” o presente .\ convencional se mostram em uma beleza bizarra, em todos os luga- «
Eu me contentarei em citar o que diz Baudelaire da pintura dos res onde o sol clareia as joias fugidias do animal depravado” 7 .
personagens contemporâneos . Baudelaire ridiculariza esses pinto- Mas não devemos nos enganar . Constantin Guys não é um sujei-
res que , achando muito antiestética a maneira de se vestir dos ho- to que flana; de fato , aos olhos de Baudelaire , o pintor moderno por
mens do século XIX , só querem representá-los com togas antigas . excelê ncia é aquele que , na hora em que o mundo inteiro vai dor -
Mas , para ele , a modernidade da pintura não consistir á apenas em mir , se põe ao trabalho , e o transfigura. Transfiguração que não é
introduzir vestes negras em um quadro . O pintor moderno ser á anulação do real , mas o difícil jogo entre a verdade do real e o exer -
aquele que mostrar á essa escura sobrecasaca como “ a vestimenta cício da liberdade ; as coisas “ naturais” tornam-se então “ mais do
necessária de nossa é poca". É aquele que saber á fazer valer , nessa que naturais” , as coisas “ belas” tornam-se “ mais do que belas” , e as
última moda, a relação essencial , permanente , obsédante que nos- coisas singulares aparecem “ dotadas de uma vida entusiasta como
sa é poca mantém com a morte. “ A vestimenta negra e a sobrecasa- a alma do autor ” 8£Para a atitude de modernidade , o alto valor do
ca têm não somente sua beleza poética, que é a expressão da igual- presente é indissociável da obstinação de imaginar , imaginá-lo de
dade universal, mas ainda sua poé tica , que é a expressão do espíri-

6. Id . , “ De l’ héroïsme de la vie moderne” , op. cit . , p . 494 .


5. Baudelaire ( C. ) , Le peintre de la vie moderne , in Oeuvres compl ètes , Paris , 7 . Baudelaire ( C . ) , Le peintre de la vie moderne , op. cit . , ps. 693 694.
-
Gallimard , col. “ Bibliothèque de la Pléiade” , 1976, t. II , p. 695.
8. Ibid . , p . 694 .
\
344 Michel Foucault - Ditos e Escritos i
1984 - O Que São as Luzes? 345

modo diferente do que ele não é , e transformá-lo não o destruindo , constituição de si pr óprio como sujeito autónomo ; gostaria de enfa-
mas captando-o no que ele é. A modernidade baudelairiana é um ' tizar , por outro lado, que o fio que pode nos atar dessa maneira à
exercício em que a extrema atenção para com o real é confrontada Aufkl árung não é a fidelidade aos elementos de doutrina , mas , an -
com a pr ática de uma liberdade que , simultaneamente , respeita
, tes , a reativação permanente de uma atitude ; ou seja, um ê thos filo-
esse real e o viola . \ sófico que seria possível caracterizar como crítica permanente de
3) Ísío entanto, para Baudelaire , a modernidade não é simples- V
— J

nosso ser historicqjE esse éthos que eu gostaria de caracterizar


mente forma de relação com o presente; é també m um modo de re- muito resumidamente .
lação que é preciso estabelecer consigo mesmo . A atitude voluntá- A. Negativamente . 1 ) Esse ê thos implica inicialmente que se re-
ria de modernidade está ligada a um ascetismo indispensável . Ser cuse o que chamarei de boa vontade de “ chantagem ” em relação à
moderno não é aceitar a si mesmo tal como se é no fluxo dos mo- Aufklárung . Penso que a Aufklárung , como conjunto de aconteci-
mentos que passam ; é tomar a si mesmo como objeto de uma ela- mentos polí ticos, económicos , sociais , institucionais , culturais dos
boração complexa e dura: é o que Baudelaire chama , de acordo quais somos ainda em grande parte dependentes , constitui um do-
com o vocabulá rio da é poca , de “ dandismo jNão lembrarei as pági- mínio de análise privilegiado. Penso também que , como empreen-
nas muito conhecidas: aquelas sobre a natureza “ grosseira, terres- dimento para ligar por um laço de relação direta o progresso da
tre , imunda ” ; aquelas sobre a indispensável revolta do homem em verdade e a história da liberdade , ela formulou uma questão filosó-
relação a ele mesmo ; aquelas sobre a “ doutrina da elegância ” , que
impõe “ a esses ambiciosos e apagados sectários ” uma disciplina
fica que ainda permanece colocada para nós . Penso , enfim tentei-
mostr á-lo a propósito do texto de Kant -, que ela definiu uma certa
mais despótica do que a das mais terr íveis religiões ; as páginas , en- maneira de filosofar .
fim , sobre o ascetismo do d â ndi que faz de seu corpo , de seu com- Mas isso não quer dizer que é preciso ser a favor ou contra a
portamento , de seus sentimentos e paixões , de sua existê ncia , uma Aufkl árung . Isso quer dizer precisamente que é necessário recusar
obra de arte . jo homem moderno , para Baudelaire , não é aquele tudo o que poderia se apresentar sob a forma de uma alternativa
que parte para descobrir a si mesmo , seus segredos e sua verdade simplista e autoritária: ou vocês aceitam a Aufkl árung , e permane- 4

escondida ; ele é aquele que busca inventar -se a si mesmo . Essa cem na tradição de seu racionalismo ( o que é considerado por al-
modernidade nã o liberta o homem em seu ser pr óprio ; ela lhe im- guns como positivo e , por outros , ao contr ário , como uma censu -
põe a tarefa de elaborar a si mesmoj ra ) ; ou vocês criticam a Aufkl árung , e tentam escapar desses prin-
4 ) Finalmente , acrescentarei apenas uma palavra.* Essa heroifi- cípios de racionalidade ( o que pode ser ainda uma vez tomado
ca ção ir ónica do presente , esse jogo da liberdade com o real para como positivo ou como negativo ) . E não escaparemos dessa chan -
sua transfiguração , essa elaboração ascé tica de si , Baudelaire não tagem introduzindo nuan ças “ dialé ticas” , buscando determinar o
concebe que possam ocorrer na pr ópria sociedade ou no corpo po- que poderia haver de bom ou de mau na Aufkl árung .
lí tico . Eles só podem produzir -se em um lugar outro que Baudelai-
re chama de arte .
T É preciso tentar fazer a análise de n ós mesmos como seres histo-
ricamente determinados , até certo ponto , pela Aufkl árung
implica uma série de pesquisas históricas tão precisas quanto
Jo que
^ pos-
sível ; e essas pesquisas não serão orientadas retrospectivamente
N ão pretendo resumir nesses poucos traços o acontecimento na direção do “ núcleo essencial da racionalidade ” que se pode
histórico complexo que foi a Aufkl árung no fim do século XVIII , encontrar na Aufkl árung e que se poderia salvar inteiramente no
nem tampouco as diferentes formas que a atitude de modernidade estado de causa ; elas seriam orientadas na direção dos “ limites
pôde assumir durante os dois últimos séculos. atuais do necessário” : ou seja , na direção do que não é , ou não é
(Gostaria, por um lado, de enfatizar o enraizamento na Aufklá- mais , indispensável para a constituição de nós mesmos como sujei-
tos autónomos
rung de um tipo de interrogação filosófica que problematiza simul-
taneamente a relação com o presente , o modo de ser histórico e a ^
2 ) Essa crítica permanente de nós mesmos deve evitar as confu -
sões sempre muito fáceis entre o humanismo e a Aufkl árung . \ É
]
:
346 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1984 - O Que São as Luzes? 347

preciso jamais esquecer que a Aufkl árung é um acontecimento ou Deste ponto de vista , eu veria mais uma tensão entre a Aufkl árung
um conjunto de acontecimentos e de processos históricos comple- ; e o humanismo do que uma identidade .
xos , que se situaram em um determinado momento do desenvolvi- Em todo caso, confundi-los me parece perigoso ; e , alé m disso ,
mento das sociedades européiasjEsse conjunto inclui elementos historicamente inexato. Se a questão do homem , da espécie huma -
de transformações sociais , tipos de instituições políticas , formas na, do humanista foi muito importante ao longo do século XVIII ,
de saber , projetos de racionalização dos conhecimentos e das pr á- muito raramente , creio, a própria Aufkl árung se considerou como
ticas , mutações tecnológicas , que são muito dif íceis de resumir em um humanismo. Vale a pena notar també m que , ao longo do século
uma palavra , embora muitos desses fenômenos sejam ainda im-
^ XIX, a historiografia do humanismo no século XVI , que tinha sido
portantes no momento atual. Aquele que eu já destaquei, e que me tão importante em pessoas como Sainte-Beuve ou Burckhardt ,
parece ter sido fundador de toda uma forma de reflexão filosófica , sempre foi distinta e , às vezes, explicitamente oposta às Luzes e ao
concerne somente ao modo de relação de reflexão com o presente J século XVIII . O século XIX teve a tend ência a opô-los, ao menos tan-
O humanismo é uma coisa completamente diferente : é um tema , to quanto a confundi-los.
ou melhor , um conjunto de temas que reapareceram em várias oca- Em todo caso , creio que é preciso escapar tanto da chantagem
siões através do tempo , nas sociedades européias ; esses temas , intelectual e política de “ ser a favor ou contra a Aufkl árung" , como
permanentemente ligados a julgamentos de valor , tiveram eviden- també m da confusão histórica e moral que mistura o tema do hu -
temente sempre muitas variações em seu conte údo, assim como manismo com a questão da Aufkl árung . Uma análise de suas rela-
nos valores que eles mantiveram . Mais ainda , serviram de princí- ções complexas ao longo dos dois últimos séculos deveria ser feita ,
pio cr í tico de diferenciação: houve um humanismo que se apresen- e esse seria um trabalho importante para desembaralhar um pou -
tava como cr í tica ao cristianismo ou à religião em geral ; houve um co a consciê ncia que temos de nós mesmos e de nosso passado .
humanismo cristão em oposição a um humanismo ascé tico e muito B. Positivamente . Mas, levando em conta essas precauções, ; é pre-
mais teocê ntrico ( no século XVII ) . No século XIX , houve um huma- ciso evidentemente dar um conteúdo mais positivo ao que pode ser
nismo desconfiado , hostil e cr ítico em relação à ciê ncia ; e um outro um êthos filosófico consistente em uma crítica do que dizemos, pen-
que colocava ( ao contrário ) sua esperança nessa mesma ciê ncia . O samos e fazemos , através de uma ontologia histórica de nós mesmos.)
marxismo foi um humanismo , o existencialismo , o personalismo 1 ) Esse ê thos filosófico pode ser caracterizado como uma atitu -
també m o foram ; houve um tempo em que se sustentavam os valo- de -limite . jNão se trata de um comportamento de rejeição. Deve-se
res humanistas representados pelo nacional-socialismo , e no qual escapar a alternativa do fora e do dentro ; é preciso situar -se nas
os pr óprios stalinistas se diziam humanistas. fronteiras.[Ã cr í tica é certamente a análise dos limites e a reflexão
N ã o se deve concluir daí que tudo aquilo que se reivindicou sobre eles."Mas , se a questão kantiana era saber a que limites o co-
como humanismo deva ser rejeitado , mas que a temática humanis- nhecimento deve renunciar a transpor , parece- me que , atualmente ,
ta é em si mesma muito maleável , muito diversa , muito inconsis- a questão crítica deve ser revertida em uma questão positiva : no
tente para servir de eixo à reflexão. E é verdade que , ao menos des- que nos é apresentado como universal , necessário , obrigatório ,
de o século XVII , o que se chama de humanismo foi sempre obriga- qual é a parte do que é singular , contingente e fruto das imposições
do a se apoiar em certas concepções do homem que são tomadas arbitrárias. Trata-se , em suma, de transformar a cr ítica exercida
emprestadas da religião , das ciências , da polí tica. O humanismo sob a forma de limitação necessária em uma cr ítica pr ática sob a
serve para colorir e justificar as concepções do homem às quais ele forma de ultrapassagem possíveLj
foi certamente obrigado a recorrer . [Àquilo que, nós o vemos, traz como conseqüência que a cr ítica
Ora, creio que justamente se pode opor a essa temática , tão fre- vai se exercer não mais na pesquisa das estruturas formais que têm
qüentemente recorrente e sempre dependente do humanismo , [o valor universal, mas como pesquisa histórica através dos aconteci-
princípio de uma cr ítica e de uma criação permanente de n ós mes- mentos que nos levaram a nos constituir e a nos reconhecer como
mos em nossa autonomia; ou seja, um princípio que está no cerne
da consciê ncia histórica que a Aufklárung tinha tido dela mesma . ^
sujeitos do que fazemos , pensamos, dizemos Nesse sentido , essa
cr ítica não é transcendental e não tem por finalidade tornar possí-
i
348 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1984 - O Que São as Luzes? 349

vel uma metaf ísica: ela é genealógica em sua finalidade e arqueoló- 3 ) Mas , sem dúvida, seria totalmente legítimo fazer a seguinte
gica em seu mé todq?\Arqueológiça - e não transcendental - no sen- objeção: limitando-se a esse tipo de pesquisas e de provas sempre
tido de que ela não procurar á depreender as estruturas universais parciais e locais , não há o risco de nos deixarmos determinar por
de qualquer conhecimento ou de qualquer ação moral possível; estruturas mais gerais, sobre as quais tendemos a não ter nem
mas tratar tanto os discursos que articulam o que pensamos , dize- consciê ncia nem domínio?
mos e fazemos como os acontecimentos históricos. E essa cr ítica Sobre isso , duas respostas . É verdade que é preciso renunciar à ^

será genealógica no sentido de que ela não deduzirá da forma do esperança de jamais atingir um ponto de vista que poderia nos dar ;
que somos o que para nós é impossível fazer ou conhecer ; mas ela acesso ao conhecimento completo e definitivo do que pode consti- \
deduzir á da contingê ncia que nos fez ser o que somos a possibili- tuir nossos limites históricos . E , desse ponto de vista , a experiência
dade de não mais ser , fazer ou pensar o que somos, fazemos ou teórica e prática que fazemos de nossos limites e de sua ultrapassa-
pensamos . gem possível é sempre limitada , determinada e , portanto , a ser re-
Ela não busca tornar possível a metaf ísica tornada enfim ciê n- começada .
cia ; [ela procura fazer avan çar para tão longe e tão amplamente [Mas isso não quer dizer que qualquer trabalho só pode ser feito
quanto possível o trabalho infinito da liberdade j na desordem e na contingê ncia. Esse trabalho tem sua generalida -
2 ) Mas , para que não se trate simplesmente da afirmação e do de , sua sistematização , sua homogeneidade e sua aposta .
sonho vazio de liberdade , parece-me que essa atitude histó ri- Sua aposta . É indicada pelo que poder íamos chamar de “ o para -
co-cr í tica deve ser també m uma atitude experimental . Quero dizer doxo ( das relações ) da capacidade e do poder ” . Sabe-se que a gran -
que esse trabalho realizado nos limites de nós mesmos deve , por de promessa ou a grande esperan ça do século XVIII , ou de uma
um lado, abrir um dom í nio de pesquisas históricas e , por outro , parte do século XVIII , estava depositada no crescimento simultâ-
colocar-se à prova da realidade e da atualidade , para simultanea- neo e proporcional da capacidade técnica de agir sobre as coisas e
mente apreender os pontos em que a mudança é possível e desejá- da liberdade dos indivíduos uns em relação aos outros. Alé m dis-
vel e para determinar a forma precisa a dar a essa mudança .|o que so , podemos ver que , através de toda a história das sociedades oci-
quer dizer que essa ontologia histórica de nós mesmos deve desvi-
^
dentais ( talvez ali se encontre a raiz de seu singular destino históri-
ar -se de todos esses projetos que pretendem ser globais e radicais . co - tão particular , tão diferente ( dos outros ) em sua trajetória e tão
De fato , sabe-se pela experiê ncia que a pretensão de escapar ao sis- universalizante , dominante em relação aos outros ) , a aquisição de
tema da atualidade para oferecer programas de conjunto de uma capacidades e a luta pela liberdade constituí ram os elementos per -
outra sociedade , de um outro modo de pensar , de uma outra cultu - manentes . Ora , as relações entre crescimento das capacidades e
ra , de uma outra visão do mundo apenas conseguiu reconduzir às crescimento da autonomia não são tão simples para que o século
mais perigosas tradições. XVIII pudesse acreditar nelas. Pode-se ver que formas de relações
! Prefiro as transforma
ções muito precisas que puderam ocorrer , de poder eram veiculadas pelas diversas tecnologias ( quer se tra-
há 20 anos , em um certo n ú mero de domí nios que concernem a tasse de produções com finalidades económicas , de instituições vi-
nossos modos de ser e de pensar , às relações de autoridade , às re- sando a regulações sociais, de técnicas de comunicação ) : como
lações de sexos , à maneira pela qual percebemos a loucura ou a do- exemplo , as disciplinas simultaneamente coletivas e individuais , os
ença , prefiro essas transformações mesmo parciais , que foram fei- procedimentos de normalização exercidos em nome do poder do
tas na correlação da análise histórica e da atitude pr á tica , às pro- Estado , as exigências da sociedade ou de faixas da população.{ A
messas do novo homem que os piores sistemas políticos repetiram aposta é então : como desvincular o crescimento das capacidades e
ao longo do século XX. \
'
Caracterizarei então o ê thos filosófico pr óprio à Ontologia cr ítica
de nós mesmos como uma prova histórico-prática dos limites que
a intensificação das relações de poder?
^
Homogeneidade . Conduz ao estudo do que poder íamos chamar
de “ conjuntos pr áticos” . Trata-se de tomar como domínio homogé-
i

podemos transpor , portanto , como o nosso trabalho sobre nós neo de referê ncia não as representações que os homens se dão de-
mesmos como seres livres. les mesmos , não as condições que os determinam sem que eles o
?

II
f
ill 1984 - O Que São as Luzes? 351
350 Michel Foucault - Ditos e Escritos

( ou seja, do que não é constante antropológica nem variação crono-


saibam , mas o que eles fazem e a maneira pela qual o fazem . Ou
seja , as formas de racionalidade que organizam as maneiras de fa-
lógica ) é , portanto, a maneira de analisar , em sua forma historica -
zer ( o que poder íamos chamar de seu aspecto tecnológico ) , e a li- mente singular , as questões de alcance geral.
) berdade com a qual eles agem nesses sistemas pr áticos, reagindo
ao que os outros fazem , modificando até certo ponto as regras do
jogo ( é o que poder íamos chamar de versão estratégica dessas pr á- Um pequeno resumo para terminar e retornar a Kant. Não sei se
ticas ) . A homogeneidade dessas análises histórico-cr íticas é asse- algum dia nos tornaremos maiores. Muitas coisas em nossa expe-
gurada , portanto , por esse domínio das práticas, com sua versão riê ncia nos convencem de que o acontecimento histórico da Aufklá-
tecnológica e sua versão estratégica.
^
Sistematização. Esses conjuntos pr áticos decorrem de três
grandes domí nios: o das relações de domí nio sobre as coisas , o das
rung não nos tornou maiores; e que nós não o somos ainda. Entre-
tanto, parece-me que se pode dar um sentido a essa interrogação
crítica sobre o presente e sobre nós mesmos formulada por Kant
relações de ação sobre os outros, o das relações consigo mesmo . O ao refletir sobre aAufkl árung . Parece-me que esta é , inclusive , uma
que não quer dizer que esses tr ês domínios sejam completamente maneira de filosofar que não foi sem importância nem eficácia nes-
estranhos uns aos outros . Sabemos que o domí nio sobre as coisas ses dois últimos séculos. É preciso considerar a ontologia cr ítica de
passa pela relação com os outros; e esta implica sempre as rela- nós mesmos não certamente como uma teoria , uma doutrina, nem
ções consigo mesmo ; e vice-versa. Mas trata-se de tr ês eixos dos mesmo como um corpo permanente de saber que se acumula; é
quais é preciso analisar a especificidade e o intricamento : o eixo do preciso concebê-la como uma atitude , um éthos , uma via filosófica
saber , o eixo do poder e o eixo da é tica./ Em outros termos , a ontolo- em que a crítica do que somos é simultaneamente análise histórica
gia histórica de nós mesmos deve responder a uma série aberta de dos limites que nos são colocados e prova de sua ultrapassagem
questões ; ela se relaciona com um n ú mero não definido de pesqui- possível]
sas que é possível multiplicar e precisar tanto quanto se queira; Essa atitude filosófica deve se traduzir em um trabalho de pes-
mas elas responder ão todas à seguinte sistematizaçãorfcomo nos quisas diversas : estas tê m sua coer ê ncia metodológica no estudo
constituímos como sujeitos de nosso saber ; como nos constituí- tanto arqueológico quanto genealógico de práticas enfocadas si-
mos como sujeitos que exercem ou sofrem as relações de poder ; multaneamente como tipo tecnológico de racionalidade e jogos es-
como nos constituí mos como sujeitos morais de nossas ações
Generalidade. Finalmente , essas pesquisas histórico-crí ticas
são bem particulares no sentido de se referirem sempre a um mate-
^ tratégicos de liberdades ; elas têm sua coer ê ncia teórica na defini-
ção das formas historicamente singulares nas quais tê m sido pro-
blematizadas as generalidades de nossa relação com as coisas ,
rial , a uma época , a um corpo de pr áticas e a discursos determina- com os outros e conosco. Elas têm sua coerê ncia pr ática no cuida-
dos. Mas, ao menos na escala das sociedades ocidentais da qual de - do dedicado em.colocar a reflexão histórico-cr ítica à prova das prá-
rivamos, elas tê m sua generalidade : no sentido de que , até agora , ticas concretasLNão sei se é preciso dizer hoje que o trabalho cr íti-
elas tê m sido recorrentes; assim , o problema das relações entre ra- co també m implica a fé nas Luzes ; ele sempre implica, penso , o tra-
zão e loucura , entre doença e saúde, crime e lei , ou o problema do balho sobre nossos limites, ou seja, um trabalho paciente que d á
lugar a dar às relações sexuais etc.
Mas , se evoco essa generalidade não é para dizer que é preciso
retraçá-la em sua continuidade metaistórica através do tempo ,
nem tampouco acompanhar suas variações. O que é preciso apre-
forma à impaciência da liberdade
^
ender é em que medida o que sabemos , as formas de poder que aí
se exercem e a experiê ncia que fazemos de nós mesmos constituem
apenas figuras históricas determinadas por uma certa forma de
problematização , que definiu objetos , regras de ação , modos de re-
lação consigo mesmo. O estudo ( dos modos ) de problematizações
í
1985 - A Vida : a Experiência e a Ciência 353

1985 quais ele pr óprio sempre evitou participar . Mas suprimam Can-
guilhem e vocês não compreenderão mais grande coisa de toda
uma sé rie de discussões que ocorreram entre os marxistas fran-
ceses ; vocês não mais apreender ão o que há de específico em so-
A Vida: a Experiência e a Ciência ciólogos como Bourdieu , Castel , Passeron , e que os marca tão in -
tensamente no campo da sociologia ; vocês negligenciar ão todo
um aspecto do trabalho teórico feito pelos psicanalistas , especi-
almente os lacanianos . Mais: em todo o debate de id éias que pre-
"
.
A vida: a experiê ncia e a ciência ” Revue de métaphysique et de morale , 90- ano , n- cedeu ou sucedeu o movimento de 1968 , é f á cil reencontrar o lu -
1 : Canguilhem , janeiro-março de 1985, ps. 3-14. gar daqueles que , direta ou indiretamente , haviam sido forma-
M . Foucault desejava oferecer um texto inédito à Revue de métaphysique et de mo- dos por Canguilhem .
raie , que dedicava um n úmero especial ao seu mestre , Georges Canguilhem . Esgo- Sem desconhecer as dissensões que puderam , durante esses ú l-
tado , ele pôde apenas modificar o pref ácio que havia escrito para a tradu ção ameri- timos anos e desde o final da guerra, opor marxistas e não-mar -
cana de O normal e o patol ógico ( ver n 2 219 , vol. III da edição francesa desta obra ) . xistas , freudianos e não-freudianos , especialistas de uma discipli-
Ele enviou esse texto no final de abril de 1984 ; foi , portanto , o último ao qual deu
na e filósofos, universitários e não- universitários , teóricos e políti-
seu imprim á tur .
cos , me parece que se poderia reencontrar uma outra linha divisó-
ria que atravessa todas essas oposições. É a que separa uma filoso- j
fia da experiê ncia , do sentido , do sujeito e uma filosofia do saber » »,
Todos sabem que , na Fran ça , há poucos lógicos , mas que houve
da racionalidade e do conceito. De um lado, uma filiação que é a de \
um n ú mero razoável de historiadores das ciê ncias. Sabe-se tam-
Sartre e de Merleau-Ponty; e depois uma outra, a de Cavaillès, Ba-
bé m que eles ocuparam na instituição filosófica - ensino ou pesqui-
chelard , Koyr é e Canguilhem . Sem d ú vida , essa divisão vem de lon- i
sa - um lugar consider ável. Mas talvez se saiba com menos clareza
ge , e se poderia restabelecer seu rastro através do século XIX: Berg-
o que foi ao certo , durante esses ú ltimos 20 ou 30 anos , e até para son e Poincar é , Lachelier e Couturat , Maine de Biran e Comte . E ,
al é m das fronteiras da instituição , um trabalho como o de G . Can-
em todo caso, foi através desse ponto estabelecido no século XX
guilhem . Houve , sem d úvida , espetáculos bem mais ruidosos: psi- que a fenomenologia foi aceita na Fran ça . Pronunciadas em 1929 ,
canálise , marxismo , lingúística , etnologia . Mas não esqueçamos modificadas , traduzidas e publicadas pouco depois , as Medita -
esse fato que se destaca, como se queira , da sociologia dos meios çõ es cartesianas 1 foram precocemente o que esteve em jogo em
intelectuais franceses , do funcionamento de nossas instituições duas leituras possíveis : uma que , na direção de uma filosofia do
universitá rias ou de nosso sistema de valores culturais: em todas
sujeito, procurava radicalizar Husserl e não devia tardar a reen-
as discussões políticas ou científicas desses estranhos anos 60 , o contrar as questões de Sein and Zeit 2 ; trata-se do artigo de Sartre
papel da filosofia - não quero dizer simplesmente daqueles que ti- sobre a “ Transcendance de 1’ ego” 3, em 1935 ; a outra que vai remon-
nham recebido sua formação universitária nos departamentos de tar aos problemas fundadores do pensamento de Husserl , os do
filosofia - foi importante . Demasiadamente importante , talvez , na formalismo e do intuicionismo ; e que redundará, em 1938, nas
opinião de alguns . Ora , direta ou indiretamente , todos ou quase to-
dos esses filósofos tinham relação com o ensino ou com os livros de
1. Husserl ( E . ) , Cartesianische Meditationen. Eine Einle í tung in die Phànomeno-
G . Canguilhem . logie , 1931, í n Gesammelte Werke , 1.1, La Haye , Martin Nijhoff , 1950 [ M éditations
Donde um paradoxo : esse homem , cuja obra é austera , delibe - cartésiennes. Introduction à la phé nomé nologie , trad. G. Peiffer e E . Levinas ,
radamente bem delimitada e cuidadosamente dedicada a um do- Paris , Vrin , 1953 ) .
m í nio particular em uma histó ria das ciê ncias que , de qualquer 2 . Heidegger (M . ) , Sein und Zeit , Tubingen , MaxNiemeyer , 1927 ( L'ê tre et le temps ,
trad . R . Boehm e A. de Waelhens , Paris, Gallimard , 1964 ) .
forma , n ão se apresenta como uma disciplina dada a grandes 3. Sartre ( J .- P. j, ‘‘La transcendance de l’ego. Esquisse d’une description ph énom élo-
exibicionismos , esteve de certa forma presente nos debates dos gique", Recherches philosophiques , n2 6 , 1935; reed . , Paris , Vrin , 1988.

À
354 Michel Foucault - Ditos e Escritos
1985 - A Vida: a Experiência e a Ciência 355
*

duas teses de Cavaillès sobre o M é thode axiomatique e sobre La Essa questão foi, sem d úvida, entendida inicialmente como uma
formation de ia théorie des ensembles4 . Quaisquer que tenham
interrogação relativamente acessória: através dela , questionava-se
sido , a seguir , as ramificações , as interfer ê ncias , as aproximações , a filosofia sobre a forma que ela podia assumir , sobre seu aspecto
essas duas formas de pensamento constituíram , na França, duas naquele momento e sobre os efeitos que se devia esperar dela . Mas
tramas que permaneceram , ao menos durante um certo tempo , rapidamente se revelou que a resposta dada tendia a ir bem mais
profundamente heterogéneas. longe . Fazia-se da Aufkl àrung o momento em que a filosofia encon-
Aparentemente , a segunda permaneceu ao mesmo tempo a mais trava a possibilidade de se constituir como a figura determinante
teórica, a mais regrada em relação às tarefas especulativas , também de uma época, e em que essa é poca se tornava a forma de realiza-
a mais afastada das interrogações polí ticas imediatas . E , no entanto , ção dessa filosofia . A filosofia podia ser lida também como sendo
foi ela que , durante a guerra, tomou parte de maneira muito direta apenas a composição dos traços particulares do per íodo em que
no combate , como se a questão do fundamento da racionalidade não ela aparecia, sendo dele a figura coerente , sua sistematização e sua
pudesse ser dissociada da interrogação sobre as condições atuais de forma conceituai; mas, por outro lado , a é poca aparecia como sen -
sua existência. Foi ela também que desempenhou no curso dos anos do apenas a emergê ncia e a manifestação , em seus traços funda-
60 um papel decisivo em uma crise que não era simplesmente a da mentais , do que era em sua essê ncia a filosofia. A filosofia també m
universidade , mas a do status e do papel do saber . Podemos nos aparece como um elemento mais ou menos revelador das significa-
perguntar por que tal tipo de reflexão pôde , seguindo sua lógica pr ó- ções de uma é poca ou , ao contr ário , como a lei geral que fixava a
pria , encontrar-se tão profundamente ligado ao presente. forma que cada época devia assumir . A leitura da filosofia no con-
texto de uma história geral e sua interpretação como princípio de
decifração de qualquer sucessão histórica se tornam , então , simul-
Uma das principais razões reside , sem d úvida , nisto : a história taneamente possíveis. E , conseqüentemente , a questão do “ mo-
das ciê ncias deve sua dignidade filosófica ao fato de ela colocar em mento presente ” se transforma , para a filosofia , em uma interroga - ?

ação um dos temas que foi introduzido , de maneira sem d úvida um ção da qual ela não pode mais se separar : até que ponto esse “ mo-
pouco sub- reptícia e como por acidente , na filosofia do século mento” decorre de um processo histórico geral e em que medida a
XVIII . Pela primeira vez , nessa é poca , questionou-se o pensamento filosofia é o ponto em que a pr ópria história deve se decifrar em
racional não somente sobre sua natureza , seu fundamento , seus suas condições?
poderes e direitos, mas sobre sua história e sua geografia , sobre A história se transforma , então , em um dos problemas maiores
seu passado imediato e suas condições de exercício , sobre seu mo- da filosofia. Seria sem d úvida necessá rio tentar verificar por que
mento , lugar e atualidade. Dessa questão pela qual a filosofia fez , essa questão da Aufklàrung teve , sem jamais desaparecer , um des-
de sua forma presente e de sua ligação com seu contexto , uma in- tino tão diferente nas tradições da Alemanha , da França e dos paí-
terrogação essencial , pode-se tomar como sí mbolo o debate asso- ses anglo-saxões; por que , aqui e ali , ela é investida em domínios
ciado à Berlinische Monatsschrift e que tinha por tema: Was ist tão diversos e segundo cronologias tão variadas . Digamos , em todo
Aufkl à rung? A essa questão, Mendelssohn e depois Kant , cada um caso , que a filosofia alemã lhe deu corpo sobretudo em uma refle-
por seu lado , deram uma resposta5 . xão histórica e política sobre a sociedade ( com um problema cen-
tral: a experiê ncia religiosa , em sua relação com a economia e o
Estado ) ; dos pós-hegelianos à Escola de Frankfurt e a Luk ács , pas-
4 . Cavaillès ( J . ) , M éthode axiomatique et formalisme . Essai sur le problè me du
sando por Feuerbach , Marx, Nietzsche e Max Weber , todos deram
fondement des mathé matiques , Paris, Hermann , 1937 ; Remarques sur la forma-
tion de la théorie abstraite des ensembles . Étude historique et critique , Paris , testemunho disso. Na França , é sobretudo a história das ciê ncias
Hermann , 1937.
5 . Meldelssohn ( M. ) , ‘‘Ueber die Frage: Was heisst Aufklàren?” , Berlinische Mo -
-
natsschrift , IV , n2 3, setembro de 1784 , ps . 193 200 . Kant ( I . ) , “ Beantwortung -
de 1784 , ps. 491-494 ( Ré ponse à la question : Qu’ est ce que les Lumiè res? , trad . S.
der Frage : Was ist Aufklàrung?” , Berlinische Monatsschrift , IV , n 2 6 , dezembro Piobetta , in Kant ( I. ) , La philosophie de l’ histoire ( Opuscules ) , Paris , Aubier , 1947,
-
ps. 81 92 ) .

À
356 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1985 - A Vida: a Experiência e a Ci ência 357

que serviu de suporte para a questão filosófica sobre o que tinha racionalidade que aspira ao universal desenvolvendo-se inteira-
sido a Aufkl àrung ; as críticas de Saint-Simon , o positivismo de mente na contingência, que afirma sua unidade e que , no entanto ,
Comte e seus sucessores foram , de certa forma , uma maneira de procede apenas por modificações parciais; que valida a si mesma
retomar a interrogação de Mendelssohn e a de Kant na dimensão através de sua pr ó pria soberania , mas que não pode ser dissocia-
de uma história geral das sociedades. Saber e crença , forma cientí- da , em sua história , das iné rcias , dos embotamentos ou das coer -
fica do conhecimento e conte údos religiosos da representação, ou ções que a submetem . Na história das ciê ncias na França , assim
passagem do pr é-científico ao científico, constituição de um poder como na teoria crítica alemã , o que se trata no fundo de examinar é
racional sobre um fundo de uma experiê ncia tradicional , apareci- uma razão , cuja autonomia de estrutura traz consigo a história dos
mento , no seio da história , das id éias e das crenças, de um tipo de dogmatismos e dos despotismos - conseqúentemente , uma razão
história característica do conhecimento científico , origem e limiar que só tem efeito de libertação desde que ela consiga libertar -se de
da racionalidade: é sob essa forma que , através do positivismo - e si mesma.
daqueles que se opuseram a ele -, através dos debates acalorados Vários processos que marcam a segunda metade do século XX
sobre o cientificismo e das discussões sobre a ciê ncia medieval , a reconduziram a questão das Luzes ao âmago das preocupações
questão da Aufkl àrung foi transmitida na Fran ça. E se a fenomeno- contemporâneas. O primeiro é a importância assumida pela racio-
logia , após um período bem longo em que ela se manteve à mar - nalidade científica e técnica no desenvolvimento das for ças produ -
gem , acabou por sua vez por penetrar , foi sem d úvida a partir do tivas e no jogo das decisões políticas. O segundo é a pr ó pria histó-
dia em que Husserl , nas Meditações cartesianas e na Krisis6 , colo- ria de uma “ revolu ção ” cuja esperan ça havia sido conduzida , após
cou a questão das relações entre o projeto ocidental de um desdo- o fim do século XVIII , por todo um racionalismo , ao qual se tem o
bramento universal da razão , a positividade das ciê ncias e a radica- direito de perguntar que participação ele pode ter tido nos efeitos
lidade da filosofia. de despotismo onde essa esperança foi perdida. O terceiro , enfim ,
Há um século e meio , a história das ciê ncias traz em seu bojo as é o movimento pelo qual se começou a perguntar , no Ocidente e ao .i
apostas filosóficas que são facilmente reconhecidas . Obras como Ocidente , que tí tulos sua cultura , sua ciê ncia , sua organiza çã o so-
as de Koyr é , Bachelard , Cavaillès ou Canguilhem podem ter como cial e , finalmente , sua pró pria racionalidade podiam deter para rei-
centro de referê ncia dom ínios bem precisos , “ regionais” , cronologi- vindicar uma validade universal : ela não é apenas uma miragem li -
camente bem determinados da história das ciê ncias , e elas funcio- gada a uma dominação e a uma hegemonia política? Dois séculos
naram como focos importantes de elaboração filosófica , à medida após sua aparição , a Aufkl àrung retorna: ao mesmo tempo como
que faziam atuar , sob diferentes facetas , essa questão da Aufkl à- uma maneira de o Ocidente tomar consciê ncia de suas possibilida -
rung , essencial para a filosofia contempor ânea. des atuais e das liberdades às quais ele pode ter acesso , mas tam-
Se fosse preciso buscar fora da França alguma coisa que corres- bém como uma maneira de se interrogar sobre seus limites e os po-
pondesse ao trabalho de Koyr é , Bachelard , Cavaillès ou Cangui- deres que ele usou. A razão ao mesmo tempo como despotismo e
lhem , é sem d úvida do lado da Escola de Frankfurt que se a encon- como esclarecimento.
traria . E , no entanto , os estilos são bem diferentes , assim como as Não nos surpreendemos de que a história das ciê ncias , sobre-
maneiras de fazer e os dom ínios tratados . Mas uns e outros colo- tudo na forma particular que lhe deu Canguilhem , tenha podido
cam finalmente o mesmo tipo de questões , mesmo se , aqui , eles ocupar na França , nos debates contempor â neos , um lugar tão
são obcecados pela lembran ça de Descartes , e , ali , pela sombra de central.
i Lutero . Essas interrogações são aquelas que é preciso dirigir a uma

6. Husserl ( E . ) , Die Krisis der europàischen Wissenschqften und die transzen


dentale Phànomenologie . Einleitimg in die Phánomenologie , Belgrado, Philoso-
- Dizendo as coisas de forma muito grosseira , a histó ria das ciê n-
-
phia , t . I , 1936 , ps. 77 176 (La crise des sciences européennes et la phénomé nolo- cias ocupou -se por muito tempo ( de prefer ê ncia , senão exclusiva-
gie transcendantale , trad . G. Granel , Paris , Gallimard , 1976 ) . mente ) de algumas disciplinas “ nobres” e que sustentavam sua dig-
: 1
! 358 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1985 - A Vida: a Experiência e a Ci ê ncia 359
*
î
i
i; nidade na antigüidade de sua fundação, em seu elevado grau de for- fazer ” , um procedimento que se integrou à história das ciê ncias ,
ii
p malização , em sua aptid ão para matematizar -se e no lugar privile- porque ele é requisitado pelo próprio objeto do qual ela deve tratar .
giado que elas ocupavam na hierarquia positivista das ciências. Por A história das ciências não é a história do verdadeiro , de sua lenta
permanecer muito próxima desses conhecimentos que , dos gregos epifania; ela não poderia pretender relatar a descoberta progressi-
a Leibniz , tinham , em suma , sido incorporados à filosofia , a histó- va de uma verdade inscrita desde sempre nas coisas e no intelecto ,
ria das ciê ncias evitava a questão , central para ela , e que concernia salvo se se pensasse que o saber atual a possui finalmente de ma-
à sua relação com a filosofia. G. Canguilhem reverteu o problema ; neira tão completa e definitiva que ele pode usá-la como um padrão
centrou o essencial de seu trabalho na história da biologia e na da para mensurar o passado. E , no entanto , a história das ciê ncias
medicina , sabendo claramente que a importância teórica dos pro- não é uma pura e simples história das id éias e das condições em
blemas levantados pelo desenvolvimento de uma ciência não é ne- que elas surgiram antes de se apagarem . Na história das ciências,
cessariamente diretamente proporcional ao grau de formalização não se pode conceber a verdade como adquirida, mas tampouco se
por ela atingido. Ele fez a história das ciê ncias descer dos pontos pode fazer economia de uma relação com o verdadeiro e da oposi-
culminantes ( matemática, astronomia, mecânica galileana , física ção do verdadeiro e do falso. É essa referência à ordem do verda-
de Newton , teoria da relatividade ) para regiões em que os conheci- deiro e do falso que d á a essa história sua especificidade e sua im -
mentos são muito menos dedutíveis , onde eles permaneceram as- portância . De que forma? Concebendo que ela se relaciona com a
sociados, durante muito mais tempo, aos fascínios da imaginação , história dos “ discursos verídicos ” , ou seja , com os discursos que se
e onde colocaram uma série de questões muito mais alheias aos há- retificam , se corrigem , e que operam em si mesmos todo um traba-
bitos filosóficos. lho de elaboração finalizado pela tarefa do “ dizer verdadeiro” . As li-
Mas , operando este deslocamento , G . Canguilhem fez bem mais gações históricas , que os diferentes momentos de uma ciê ncia po-
do que assegurar a revalorização de um domínio relativamente ne- dem ter uns com os outros, têm , necessariamente , essa forma de
gligenciado. Ele não ampliou simplesmente o campo da história descontinuidade que constituem os remanejamentos , as reorgani-
das ciê ncias; remanejou a própria disciplina em relação a um de- zações , a revelação de novos fundamentos, as mudan ças de nível , a
terminado n úmero de pontos essenciais.
passagem para um novo tipo de objetos - “ a perpétua revisão dos
1 ) Inicialmente , ele retomou o tema da “ descontinuidade ” . Velho conte údos pelo aprofundamento e pelo cancelamento” , como dizia
tema que se delineou precocemente , ao ponto de ser contempor â- Cavaillès . O erro não é eliminado pela for ça surda de uma verdade !
neo, ou quase, do nascimento de uma história das ciências. O que que , pouco a pouco , sairia da sombra , mas pela formação de uma j
marca tal história, já dizia Fontenelle , é a sú bita formação de certas nova forma de “ dizer verdadeiro” 8. Umas das condições de possibi-
ciê ncias “ a partir do nada” , a extrema rapidez de certos progressos
lidade para que se forme , no início do sé culo XVTIÏ , uma histó ria
das ciê ncias , foi , observa Georges Canguilhem , a consciê ncia que
que quase não eram esperados, também a distância que separa os
se havia adquirido das recentes “ revoluções científicas” - a da geo-
conhecimentos científicos do “ uso comum ” e dos motivos que pu -
metria algébrica e do cálculo infinitesimal , a da cosmologia coper -
deram incitar os cientistas; é ainda a forma polê mica dessa histó-
nicana e newtoniana9.
ria que não cessa de relatar os combates contra os “ preconceitos ” ,
2 ) Quem diz “ história do discurso verídico” diz também método
as “ resistê ncias” e os “ obstáculos” 7. Retomando esse mesmo tema ,
recorrente . Não no sentido de que a história das ciê ncias diria:
elaborado por Koyr é e por Bachelard , Georges Canguilhem insiste
dada a verdade , finalmente reconhecida hoje , a partir de que mo-
no fato de que a identificação das descontinuidades não é , para ele ,
nem um postulado nem um resultado; é, antes, uma “ maneira de
mento ela foi pressentida, que caminhos foi preciso percorrer , que

8. ( N .A. ) Sobre esse tema , ver Id éologie et rationalité dans Vhistoire des sciences
7. N.A. ) Fontenelle ( B. Le Bovier de ) , Préface à Vhistoire de l’ Acad é mie , in Oeuvres , de la vie , Paris, Vrin , 1977, p. 21.
ed . de 1790 , t. VI , ps. 73- 74 . Georges Canguilhem cita esse texto na Introduction à 9. ( N .A. ) Cf. É tudes d ’ histoire et de philosophie des sciences , Paris, Vrin , 1968 , p .
l’ histoire des sciences , Paris , 1970, t. I . É l éments et instruments , ps . 7-8. 17.
360 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1985 - A Vida: a Experiência e a Ciê ncia 361

grupos conjurar para descobri-la e demonstrá-la? Mas no sentido tífico , “ um encaminhamento ordenado latente ” : o que quer dizer
de que as transformações sucessivas desse discurso ver ídico pro- que os processos de eliminação e de seleção dos enunciados, das
duzem , ininterruptamente , remanejamentos em sua pr ó pria histó- teorias , dos objetos se fazem a cada instante em fun ção de uma cer -
ria ; o que , por muito tempo , tinha se mantido como impasse se tor- ta norma ; e esta não pode ser identificada a uma estrutura teórica
na um dia solução; um experimento lateral se transforma em um ou a um paradigma atual , porque a pr ópria verdade científica de
problema central em torno do qual todos os outros passam a gravi- hoje não passa de um episódio ; digamos ainda mais: o resultado
tar ; um procedimento ligeiramente divergente torna-se uma ruptu- provisório . Não é se apoiando em uma “ ciê ncia normal” que se
ra fundamental: a descoberta da fermentação não celular - fenôme- pode retornar ao passado e traçar validamente sua história; é reen-
no acessório no reino da microbiologia pasteuriana - só marcou contrando o processo “ normativo” , do qual o saber atual não passa
uma ruptura essencial no dia em que a fisiologia das enzimas foi de um momento, sem que se possa , salvo profetismo , predizer o fu -
desenvolvida 10 . Em suma , a história das descontinuidades não é turo . A história das ciê ncias , diz Canguilhem citando Suzanne Ba -
adquirida de uma vez por todas ; ela é “ impermanente ” por si mes- chelard , não poderia construir seu objeto em nenhum outro lugar a
ma , ela é descontínua; deve ser ininterruptamente retomada atra- n ão ser em um “ espaço-tempo ideal” 12 . E esse espaço- tempo não
vés de novos esfor ços. lhe é dado pelo tempo “ realista” acumulado pela erudição históri-
Seria preciso concluirmos daí que a ciê ncia faz e refaz a cada ca , nem pelo espaço de idealismo que a ciê ncia de hoje recorta au -
instante , de uma maneira espontânea, sua pr ópria história, ao toritariamente , mas pelo ponto de vista da epistemologia. Esta não
ponto de que o ú nico historiador autorizado de uma ciê ncia apenas é a teoria geral de qualquer ciência e de qualquer enunciado cientí-
poderia ser o pr óprio cientista reconstituindo o passado do que ele fico possível ; ela é a pesquisa da normatividade interna às diferen -
está fazendo? Para Georges Canguilhem , o problema não é de pro- tes atividades científicas, tais como foram efetivamente operadas .
fissão: é de ponto de vista. A história das ciências não pode se con- Trata-se , portanto , de uma reflexão teórica indispensável que per -
tentar em reunir o que os cientistas do passado puderam pensar mite à história das ciê ncias constituir-se de uma maneira diferente
ou demonstrar ; não se descreve uma história da fisiologia vegetal da história em geral ; e , inversamente , a histó ria das ciê ncias abre o
reexaminando “ tudo aquilo que os chamados botânicos , médicos , dom ínio de análise indispensável para que a epistemologia seja ou -
qu ímicos , horticultores, agr ónomos , economistas puderam escre- tra coisa que a simples reprodução dos esquemas internos de uma
ver , a respeito de suas conjecturas , observações ou experiê ncias ci ê ncia em um dado momento13. No mé todo utilizado por Georges
quanto às relações entre estrutura e função sobre objetos chama- Canguilhem , a elaboração das análises “ descontinuístas” e a eluci-
dos tanto de ervas, como de plantas ou vegetais ” 11. Mas tampouco daçã o da relação histórica entre as ciê ncias e a epistemologia se-
se faz história das ciê ncias filtrando novamente o passado através guem lado a lado.
do conjunto de enunciados ou das teorias atualmente válidas , de- 3 ) Ora , recolocando as ciê ncias da vida nessa perspectiva histó-
tectando assim no que era “ falso” o verdadeiro a advir , e no que era rico-epistemológica , Georges Canguilhem faz aparecer um certo
verdadeiro o erro ulteriormente manifesto . Eis um dos pontos fun- n ú mero de traços essenciais, que singularizam seu desenvolvimen-
damentais do mé todo de G . Canguilhem . to em relação ao das outras ciências e que colocam problemas es-
A história das ciê ncias só pode se constituir no que ela tem de es- pecíficos para os seus historiadores . Acreditou -se de fato que , no
pecífico levando em conta , entre o puro historiador e o pr ó prio ci- fim do século XVIII , entre uma fisiologia estudando os fenômenos
entista , o ponto de vista do epistemólogo . Esse ponto de vista é o da vida e uma patologia dedicada à análise das doen ças , poder -
que faz aparecer , através dos diversos episódios de um saber cien-
12. Bachelard ( S. ) , “ É pistémologie et histoire des sciences” ( XII Congresso Interna -
10 . ( N .A . )G . Canguilhem retoma o exemplo tratado por M. Florkin em A history qf —
cional de História das Ciê ncias , Paris, 1968 ) , Reuue de synthè se , III série , n 49 -52 ,
biochemistry , Amsterdam , Elsevier , partes 1 e II, 1972, parte III, 1975; cf . Id éologie -
janeiro dezembro de 1968, p. 51.
et rationalité , op . cit . , p. 15. 13. ( N .A. ) Sobre a relação entre epistemologia e história , ver em particular a
11. ( N .A. ) Id éologie et rationalité dans l’ histoire des sciences de la vie , op. cit ., p. 14 . -
Introdu ção à Id éologie et rationalit é . .. , op . cit . , ps . 11 29 .

à
1985 - A Vida: a Experiência e a Ciência 363
362 Michel Foucault - Ditos e Escritos

tui a originalidade da vida , sem que ela constitua de maneira algu -


se-ia encontrar o elemento comum que permitiria pensar como
ma um impé rio independente na natureza ) ; indicador cr í tico das
uma unidade os processos normais e aqueles que marcam as mo-
redu ções a evitar ( ou seja, todas aquelas que tendem a fazer desco-
dificações mórbidas. De Bichat a Claude Bernard , da análise das
nhecer que as ciê ncias da vida não podem se abster de uma certa
febres à patologia do fígado e de suas funções , estava aberto um
posição de valor que marca a conservação , a regulação, a adapta-
imenso domínio que parecia prometer a unidade de uma fisiopato-
ção , a reprodução etc. ) ; “ mais uma exigência do que um métodò,
logia e um acesso à compreensão dos fenômenos mórbidos a partir
mais uma moral do que uma teoria” 15.
da análise dos processos normais. Do organismo sadio se esperava
4 ) As ciê ncias da vida exigem uma certa maneira de fazer sua
que ele oferecesse o quadro geral em que os fenômenos patológicos
história. Elas colocam também , de uma maneira singular , a ques-
se enraizariam e assumiriam , por um per íodo, sua forma pr ópria.
tão filosófica do conhecimento .
Essa patologia baseada na normalidade caracterizou , parece, du-
A vida e a morte jamais são em si mesmas problemas de física ,
rante muito tempo , todo o pensamento médico .
embora o físico , em seu trabalho , possa arriscar sua pr ópria vida
Mas há , no conhecimento da vida , fenômenos que a mantê m
ou a de outros ; trata-se , para ele , de uma questão moral ou política ,
afastada de qualquer conhecimento que pode se referir aos domí-
não de uma questão científica . Como diz A. Lwoff , letal ou não, uma
nios fisico-químicos ; porque ela só pode encontrar o princípio de
mutação genética não é , para o físico, nem mais nem menos do que
seu desenvolvimento na interrogação sobre os fenômenos patológi- a substituição de uma base nucléica por uma outra. Mas, nessa di-
cos . Foi impossível constituir uma ciência do vivente sem que fosse feren ça, o biólogo reconhece a marca de seu próprio objeto . E um
levada em conta , como essencial ao seu objeto , a possibilidade da
tipo de objeto ao qual ele pró prio pertence , já que ele vive e essa na-
doença , da morte , da monstruosidade , da anomalia e do erro . Po-
tureza de vivo ele a manifesta, a exerce , a desenvolve em uma ativi-
dem-se conhecer , cada vez com mais precisão , os mecanismos físi-
dade de conhecimento que é preciso entender como “ um método
co-qu ímicos que os determinam; eles também encontram seu lugar
geral para a resolu ção direta ou indireta das tensões entre o ho-
em uma especificidade que as ciê ncias da vida tiveram que levar
mem e o meio” . O biólogo busca apreender o que faz da vida um ob -
em conta , salvo para elas pró prias apagarem o que justamente
jeto específico de conhecimento e , portanto , o que faz com que exis-
constitui seu objeto e seu domínio pr óprio.
tam , no seio dos vivos , seres que , por estarem vivos , são capazes de
Daí , nas ciê ncias da vida , um fato paradoxal. Porque , se o pro-
conhecer , e de conhecer afinal de contas a pró pria vida .
cesso de sua constituição se realizou pelo esclarecimento dos me-
A fenomenologia solicitou ao “ vivido ” o sentido originário de
canismos f ísicos e qu ímicos , pela constituição de dom ínios como a
qualquer ato de conhecimento . Mas não se pode ou não é preciso
qu ímica das células e das moléculas , pela utilização de modelos
buscá-lo do lado do próprio “ vivente ” ?
matemáticos etc. , em contrapartida , ele apenas pôde se desenvol-
G. Canguilhem quer reencontrar , pela elucidação do saber sobre
ver à medida que era ininterruptamente relançado, como um desa- a vida e dos conceitos que articulam esse saber , o que foi feito do
fio , o problema da especificidade da doença e do limiar que ela de-
conceito na vida . Ou seja, do conceito enquanto ele é um dos mo-
termina para todos os seres naturais14 . Isso não quer dizer que o vi-
dos dessa informação que todo vivente extrai de seu meio e pela
talismo seja verdadeiro , ele que fez circular tantas imagens e per - qual , inversamente , ele estrutura seu meio. O fato de o homem vi-
petuou tantos mitos. Isto não quer dizer tampouco que ele deva ver em um meio conceitualmente arquitetado não prova que ele se
constituir a insuper ável filosofia dos biólogos , ele que tão freqüen- desviou da vida por qualquer esquecimento ou que um drama his-
temente se enraizou nas filosofias menos rigorosas. Mas que ele tórico o separou dela; mas somente que ele vive de uma certa ma-
teve , e ainda continua tendo na história da biologia , um papel es- neira , que ele tem , com seu meio , uma tal relação que ele não tem
sencial como “ indicador ” . E isso de duas maneiras: indicador teó- sobre ele um ponto de vista fixo , que ele é móvel sobre um território
rico de problemas a resolver ( ou seja , de forma geral o que consti- indefinido ou muito amplamente definido , que ele tem que se des-

14. ( N.A . ) É tudes d’ histoire et de philosophie des sciences , op . cit . , p. 239 . 15. ( N .A. ) La connaissance de la vie , 1952 , 2- edição , Paris , Vrin , 1965, p . 88.

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364 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1985 - A Vida: a Experi ê ncia e a Ciê ncia 365

locar para recolher informações , que tem que mover as coisas , que as diferentes sociedades e instituições associam a essa parti-
umas em relação às outras , para torná-las ú teis . Formar conceitos lha , tudo isso talvez seja apenas a resposta mais tardia a essa pos-
é uma maneira de viver , e não de matar a vida ; é uma maneira de vi- sibilidade de erro intrínseca à vida. Se a história das ciê ncias é des-
ver em uma relativa mobilidade e não uma tentativa de imobilizar a contí nua , ou seja , se ela só pode ser analisada com uma sé rie de
vida ; é mostrar , entre esses milhares de seres vivos que informam “ correções” , como uma nova distribuição que
nunca libera final-
seu meio e se informam a partir dele , uma inovação que se poder á mente e para sempre o momento terminal da verdade , é que ainda
julgar como se queira , í nfima ou considerável : um tipo bem parti- ali o “ erro” constitui não o esquecimento ou o atraso da realização
cular de informação. prometida , mas a dimensão peculiar da vida dos homens e indis-
Donde a importância que G. Canguilhem concede ao encontro , pensável ao tempo da espécie .
nas ciê ncias da vida , da velha questão do normal e do patológico Nietzsche dizia da verdade que ela era a mais profunda mentira .
com o conjunto das noções que a biologia , durante as últimas d éca- Canguilhem diria talvez , ele que estava ao mesmo tempo afastado e
das , tomou emprestado da teoria da informação : códigos , mensa- pr óximo de Nietzsche , que ela é , no enorme calend ário da vida , o
gens , mensageiros etc. Desse ponto de vista , O normal e o patol ógi - mais recente erro; ou , mais exatamente , ele diria que a dicotomia
co * , do qual uma parte foi escrita em 1943 e a outra no per í odo en- verdadeiro-falso , assim como o valor atribu ído à verdade consti -
tre 1963-1966 , constitui , sem nenhuma d ú vida , a mais significati- tuem a maneira mais singular de viver que foi inventada por uma
va obra de G . Canguilhem . Ela mostra como o problema da especi- vida , que do âmago de sua origem trazia em si a potencialidade do
ficidade da vida foi recentemente desviado em uma direção , na erro . Para Canguilhem , o erro é a contingência permanente em tor -
qual se encontram alguns dos problemas que se acreditava perten- no da qual se desenrola a história da vida e o futuro dos homens. É
cerem propriamente às formas mais desenvolvidas da evolu ção . essa noção de erro que lhe permite ligar o que ele sabe da biologia e
No centro desses problemas , há o do erro . Pois , no n ível mais a maneira pela qual ele faz sua história , sem que jamais ele tenha
fundamental da vida , os jogos do código e da decodificação abrem querido , como se fazia no tempo do evolucionismo , deduzir esta
lugar para um acaso que , antes de ser doença , d éficit ou monstruo- daquela . E ela que lhe permite enfatizar a relação entre a vida e o
sidade , é alguma coisa como uma perturba çã o no sistema informa- conhecimento da vida e seguir , como um fio vermelho , a presen ça
tivo , algo como um “ equ ívoco ” . No limite , a vida - daí seu car áter ra- do valor e da norma .
dical - é o que é capaz de erro. E é talvez a esse dado , ou melhor , a Esse historiador das racionalidades , ele mesmo tão “ racionalis -
essa eventualidade fundamental que é preciso pedir explicações so- ta” , é um filósofo do erro ; quero dizer que é a partir do erro que ele ;
bre o fato de a questão da anomalia atravessar de ponta a ponta coloca os problemas filosóficos , digamos mais exatamente o pro-
toda a biologia . A ela é preciso pedir explicações sobre as mutações blema da verdade e da vida. Toca-se aí , sem d úvida , em um dos
e os processos evolutivos que elas induzem . També m é preciso in - acontecimentos fundamentais da histó ria da filosofia moderna : se
terrogá-la sobre esse erro singular , mas hereditá rio , que faz com a grande ruptura cartesiana questionou as relações entre a verdade
que a vida desemboque , com o homem , em um vivente que nunca e o sujeito , o século XVIII introduziu , quanto às relações da verda -
se encontra completamente adaptado, em um vivente condenado a de e da vida , uma sé rie de questões das quais Cr í tica da faculda -
“ errar ” e a “ se enganar ” . de do juí zo 16 e Fenomenologia do esp í rito 17 foram as primeiras
Se admitimos que o conceito é a resposta que a pr ó pria vida d á a
esse acaso , é preciso convir que o erro é a raiz do que constituiu o pen-
samento humano e sua história . A oposição do verdadeiro e do fal- 16. Kant ( I. ) , Kritikder Urteilskraft , 1790 , Gesammelte Schriften , t. V , Berlim , K ò-
so, os valores que são abribuídos a um e a outro, os efeitos de poder . -
niglich Preussichen Akademie der Wissenschaften 1902 , ps. 165 486 (Critique de
lajaculté de juger , trad. Alexis Philonenko , Paris , Vrin , 1965) .
( N . R . ) Traduzido e publicado pela Editora Forense Universitária .
* ( N . R . ) A tradu ção brasileira desta obra foi publicada pela Editora Forense
17. Hegel ( G . W. FJ , Phanomenologie des Geistes , Wurtzbourg, Anton Goebhardt ,
1807 { La phé nomé nologie de Vesprit , trad . Jean Hyppolite , Paris , Aubier - Mon -
Universitá ria , na Coleção Campo Teórico , com Posf ácios de L . Althusser e P .
Macherey. taigne , col . “ Philosophie de l'esprit ” , t. I , 1939 , t. II , 1941 ) .
3
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*
366 Michel Foucault - Ditos e Escritos -
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i
grandes formulações. E , após esse momento , foi essa uma das
apostas da discussão filosófica: será que o conhecimento da vida Organização da Obra
deve ser considerado apenas como uma das regiões que decorrem Ditos e Escritos
da questão geral da verdade , do sujeito e do conhecimento? Ou
ser á que ele obriga a colocar de outra forma essa questão? Ser á que
toda a teoria do sujeito não deve ser reformulada , já que o conheci-
mento, mais do que se abrir à verdade do mundo, se enraíza nos
"erros ” da vida?
Compreende-se por que o pensamento de G. Canguilhem , seu Volume I
trabalho de historiador e de filósofo, pôde ter uma importância tão
decisiva na Fran ça para todos aqueles que , a partir de pontos de 1954 - Introdu ção { in Binswanger )
vista tão diferentes , tentaram repensar a questão do sujeito. A feno- 1957 - A Psicologia de 1850 a 1950
menologia podia introduzir , no campo de análise , o corpo , a sexua- 1961 - Pref ácio ( Folie et d é raison )
lidade , a morte , o mundo percebido; o Cogito aí permaneceria cen- A Loucura Só Existe em uma Sociedade
tral ; nem a racionalidade da ciê ncia nem a especificidade das ciê n- 1962 - Introdu ção { in Rousseau )
O “ Não” do Pai
cias da vida podiam comprometer seu papel fundador . A essa filo-
O Ciclo das Rãs
sofia do sentido, do sujeito e do vivido G . Canguilhem opôs uma fi-
1963 - A Água e a Loucura
losofia do erro , do conceito do vivente , como uma outra maneira de 1964 - A Loucura , a Ausência da Obra
abordar a noção de vida. 1965 - Filosofia e Psicologia
1970 - Loucura , Literatura , Sociedade
A Loucura e a Sociedade
1972 - Resposta a Derrida
O Grande Internamento
1974 - Mesa Redonda sobre a Expertise Psiquiá trica
1975 - A Casa dos Loucos
Bancar os Loucos
1976 - Bruxaria e Loucura
1977 - O Asilo Ilimitado
1981 - Lacan , o “ Libertador ” da Psican álise
1984 - Entrevista com Michel Foucault

Volume II

1961 - “ Alexandre Koyr é: a Revolução Astronómica , Copérnico,


Kepler , Borelli”
1964 - Informe Histórico
1966 - A Prosa do Mundo
Michel Foucault e Gilles Deleuze Querem Devolver a
Nietzsche Sua Verdadeira Cara
O Que É um Filósofo?
1967 - Introdu ção Geral ( às Obras Filosóficas Completas de Nietzsche )
Nietzsche, Freud , Marx

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368 Michel Foucault - Ditos e Escritos Organização da Obra Ditos e Escritos 369
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1971 - As Monstruosidades da Cr ítica ï


A Filosofia Estruturalista Permite Diagnosticar o Que É
“ a Atualidade" | 1974 - ( Sobre D. Byzantios )
Sobre as Maneiras de Escrever a História I Anti- retro
j As Palavras e as Imagens 1975 - A Pintura Fotogênica
i'
1968 - Sobre a Arqueologia das Ciências. Resposta ao Círculo de Sobre Marguerite Duras
Epistemologia Sade , Sargento do Sexo
1969 - Introdu çã o ( í n Arnauld e Lancelot ) 1977 - As Manh ãs Cinzentas da Toler ância
Ariadne Enforcou -se 1978 - Eugè ne Sue Que Eu Amo
Michel Foucault Explica Seu Último Livro 1980 - Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse e os Vermes Cotidianos
Jean Hyppolite . 1907-1968 A Imagina ção do Século XIX
Lingü istica e Ciê ncias Sociais 1982 - Pierre Boulez , a Tela Atravessada
1970 - Prefácio à Edição Inglesa 1983 - Michel Foucault/Pierre Boulez - a M úsica Contempor ânea e
( Discussão) o Público
A Posição de Cuvier na História da Biologia 1984 - Arqueologia de uma Paixão
Theatrum Philosophicum Outros Espaços
Crescer e Multiplicar
1971 - Nietzsche , a Genealogia , a Histó ria Volume IV
1972 - Retornar à História
1975 - Com o Que Sonham os Filósofos? 1971 - ( Manifesto do GIP )
1980 - O Filósofo Mascarado ( Sobre as Prisões )
1983 - Estruturalismo e Pós-estruturalismo Inquirição sobre as Pris ões: Quebremos a Barreira do Silê ncio
1 1984 - O Que São as Luzes? Conversação com Michel Foucault
1985 - A Vida: a Experiência e a Ciê ncia A Prisão em Toda Parte
Prefácio a Enquê te dans Vingt Prisons
Volume III Um Problema Que me Interessa Há Muito Tempo
E o do Sistema Penal
1962 - Dizer e Ver em Raymond Roussel 1972 - Os Intelectuais e o Poder
Um Saber Tão Cruel 1973 - Da Arqueologia à Din ástica
1963 - Pref ácio à Transgressão Prisões e Revoltas nas Prisões
A Linguagem ao Infinito Sobre o Internamento Penitenciário
Distâ ncia , Aspecto , Origem Arrancados por Interven ções Ené rgicas de Nossa
1964 - Posfácio a Flaubert ( A Tentação de Santo Ant ônio ) Perman ê ncia Euf órica na Histó ria , Nós
A Prosa de Acteão Pomos Mãos à Obra às “ Categorias Lógicas ”
Debate sobre o Romance 1974 - Da Natureza Humana: Justiça contra Poder
Por Que se Reedita a Obra de Raymond Roussel? Sobre a Prisão de Attica
Um Precursor de Nossa Literatura Moderna 1975 - Prefácio ( in Jackson )
O Mallarmé de J .-P. Richard A Prisão Vista por um Filósofo Francês
1965 - “ As Damas de Companhia" Entrevista sobre a Prisão: o Livro e o Seu Método
1966 - Por Tr ás da Fábula 1976 - Perguntas a Michel Foucault sobre Geografia
O Pensamento do Exterior Michel Foucault: Crimes e Castigos na URSS e em Outros
Um Nadador entre Duas Palavras Lugares.. .
1968 - Isto Não É um Cachimbo 1977 - A Vida dos Homens Infames
|1969 - O Que É um Autor? Poder e Saber
1970 - Sete Proposições sobre o Sé timo Anjo Poderes e Estratégias *
Haver á Escândalo , Mas.. . 1978 - Diálogo sobre o Poder

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370 Michel Foucault - Ditos e Escritos
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A Sociedade Disciplinar em Crise
Precisões sobre o Poder . Resposta a Certas Cr íticas
-*
A “ Governamentalidade ”
M . Foucault . Conversa ção sem Complexos com um Filósofo
Que Analisa as “ Estruturas do Poder ”
1979 - Foucault Estuda a Razão de Estado
1980 - A Poeira e a Nuvem
Mesa Redonda em 20 de Maio de 1978
Posfácio de L’ Impossible Prison
1981 - “ Omnes et Singulatim” : uma Cr ítica da Razão Política

Volume V

1978 - A Evolu ção do Conceito de “ Indivíduo Perigoso ”


na Psiquiatria Legal do Século XIX
Sexualidade e Pol ítica
A Filosofia Anal í tica da Política
Sexualidade e Poder
1979 - É In ú til Revoltar -se?
1980 - O Verdadeiro Sexo
1981 - Sexualidade e Solid ão
1982 - O Combate à Castidade
O Triunfo Social do Prazer Sexual: uma Conversa ção
com Michel Foucault
1983 - Um Sistema Finito Diante de um Questionamento Infinito
A Escrita de Si
Sonhar com Seus Prazeres . Sobre a “ Onirocr í tica" de Artemidoro
O Uso dos Prazeres e as Té cnicas de Si
1984 - Polí tica e É tica : uma Entrevista -
Polêmica , Política e Problematizações
Foucault
O Cuidado com a Verdade
A Volta da Moral
A É tica do Cuidado de Si como Pr á tica da Liberdade
Uma Esté tica da Existê ncia
\ 1988 - Verdade , Poder e Si Mesmo
i A Tecnologia Política dos Indivíduos

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