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Oliver Sacks: Um Dicionário de Música

Ambulante
Martin A, de 66 anos, entrou no lar no final de 1983, tem
Parkinson e em criança sofreu uma meningite que levou a uma
deficiência mental, impulsividade, convulsões e espasmos de
um lado do corpo. Tinha também uma grande cultura musical,
porém os seus défices fizeram com que fosse incapaz de tomar
conta de si. Martin sempre viveu com os pais e após a sua
morte foi porteiro, cozinheiro, mensageiro, mas acabava
sempre por ser despedido devido à sua lentidão e
incompetência. Os seus dotes e sensibilidades musicais
tornavam a sua vida menos deprimente e mais alegre para si e
para os outros, sendo dotado de um ouvido excelente. Martin
tinha uma relação carinhosa com o seu pai que lhe transmitiu
os genes musicais e o amor pela música. Ele possuía uma
memória admirável, recordando-se não só da ópera toda à
primeira audição, mas de todos os detalhes da atuação. Era
reconhecido como uma "enciclopédia ambulante” por saber não
só a música de 2 mil óperas, como o nome dos cantores que a
desempenharam, os diversos papéis, os mais pequenos
pormenores do cenário, guarda-roupa, etc.
A verdadeira alegria da sua vida era quando participava em
eventos musicais como o coro da igreja (não podia cantar
sozinho por causa da sua disforia) e é nestes acontecimentos
musicais, Martin esquecia-se do seu atraso e das suas
incapacidades e de tudo o que é mau na vida. Martin sabia
pouco sobre o mundo no geral, mas ao ler-lhe uma página de
uma enciclopédia ou jornal, ou ao mostrar-lhe um mapa ele
gravava instantaneamente tudo na sua memória eidética. Esta
memória eidética não tinha sentimentos ou qualquer relação
com ele próprio, sendo apenas fisiológico como um banco de
memória e nada como um ser vivo real. A única memória da
qual tinha uma relação emotiva era que sabia de cor o
"Dicionário de Música e Músicos” da Grove, todas as 9 edições
publicadas em 1945. O pai de Martin leu-lhe em voz alta o
dicionário de música (todas as 6 mil páginas) ficando gravado
no córtex de Martin, nunca mais o dicionário fora recordado por
Martin sem emoção. Se não há profundidade ou sentimento
numa memória os eidéticos não sentem dor, servindo de
"escape" à realidade.
O mundo de Martin, à parte das suas façanhas eidéticas, era
pequeno, sórdido, mesquinho e escuro, muito por ter sido
deficiente dede criança e desde criança ter sido marginalizado
e posto de parte. Martin tinha um comportamento muito
infantil, às vezes maldoso, e tinha fúrias súbitas havendo
ocasiões em que cuspia ou tentava bater nos outros, limpava o
ranho na camisa tendo um aspeto ranhoso e malcriado,
levando a que os outros residentes do lar o reprimissem.
Martin piorava com o tempo sendo-lhe atribuído "dificuldade de
ajustamento", nada fora do comum para um paciente que
transita de uma vida independente para uma vida num lar. As
irmãs do lar estavam preocupadas, dizendo que era necessário
"fazer qualquer coisa”. A 2ª visita de Oliver Sacks ao lar
surpreendeu-o pois Martin estava totalmente diferente, estava
abatido devido a uma espécie de dor física e espiritual dizendo
que precisava desesperadamente de cantar. Algo curioso no
caso de Martin é que tinha súbitos acessos de memória em
que, do nada, debitava informação do dicionário da música:
“Para Bach a música era o aparato do culto, Grove, página
304”. Martin nunca tinha passado um domingo sem ir à igreja,
e afirmou que “Se não fosse iria morrer”. Oliver Sacks
tranquilizou-o dizendo que ele iria à igreja, e assim o fez,
Martin voltou a frequentar a igreja, onde foi muito bem
recebido, e tornando-se consultor do Coro tal como o seu pai
fora.
Martin retomou ao seu lugar, mudando a sua vida por
completo. Oliver Sacks releva o quão curioso é como um
deficiente mental tem tal paixão pelas obras de Bach e que,
apesar dos seus défices, estava intelectualmente apto para
apreciar a complexidade técnica de Bach. As pseudopessoas,
ou seja, o deficiente estigmatizado, o miúdo ranhoso, o rapaz
que cuspia desapareceu assim como a sua memória eidética
irritante, impessoal e sem emoção. A pessoa real reapareceu,
ou seja, um homem digno e decente que é apreciado e
respeitado pelos residentes do lar. Oliver Sacks Destaca ainda
que a comunhão de Martin com a música era verdadeiramente
maravilhosa e que ver a intensidade com que vivia a música
era fantástico, todas as suas patologias ou deficiências
desapareciam e restava apenas alegria, concentração e saúde.
Ricardo Álvaro nº20 12ºC

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