Resenha do texto “As Quarenta Horas de Angicos: uma experiência
pioneira de educação” de Carlos Lyra
A experiência de alfabetização em Angicos foi um grande marco
educacional para o Brasil e o mundo. Tomando como base a teoria elaborada por Paulo Freire, educadores voluntários se propuseram a alfabetizar os moradores interessados da pequena cidade em apenas 40 horas de aula. Seu sucesso poderia alavancar uma campanha de letramento em grande escala no país. Essa ação teve início no ano de 1963, época em que pairava um grande otimismo em relação ao futuro do país, fruto de uma crescente industrialização e modernização da sociedade brasileira. A educação, então, era concebida como a grande ponte para o futuro da nação. É isso que nos conta Carlos Lyra, autor da obra “As quarenta horas de Angicos” ao contextualizar o ambiente de produção de sua obra, escrita concomitantemente com a execução do projeto. No entanto, o autor revela o motivo da prorrogação de mais de 30 anos de sua efetiva publicação: a virada autoritária que tomou o posto do presidente João Goulart e instaurou uma ditadura militar no país.
Com essa quebra de expectativas em relação ao futuro, veio junto a
perseguição política. Na ótica dos militares, o ensino politizado e crítico proposto por Paulo Freire era subversivo e danoso aos projetos nacionais. Como consequência, a alcunha de comunista foi distribuída a todos aqueles envolvidos na experiência educacional no Rio Grande do Norte. Em uma exposição na praça André de Albuquerque, Natal, estavam dispostas obras perseguidas pelos militares. Entre elas, em destaque o livro A experiência de Angicos, ladeado pelo O Capital, de Karl Marx, e Recordação da Casa dos Mortos, de Dostoievsky. Deu-se início então a uma verdadeira caça às bruxas. Muitos dos registros sobre o projeto realizado em 63 foram queimados pelos próprios ex-alunos, temerosos pelos rumores que chegavam até eles. É dessa escassez de registros que surge, segundo o autor, a necessidade de publicar a obra. Devido ao silencio imposto pelos militares, as muitas obras acadêmicas realizadas na época tinham pouco lastro documental. A conservação de diversos documentos utilizados por Lyra em sua obra se devem ao esconderijo cedido pelo irmão de sua madrasta às papeladas: o sótão.
Dado o contexto de produção e motivação de sua obra, o autor passa a
relatar o próprio processo de ensino que foi realizado pelo projeto. Logo na primeira hora de aula, o objetivo era levar aos alunos o conceito de cultura. Para atingir essa compreensão, foram utilizadas diversas imagens projetadas contrapondo artefatos construídos por humanos, portanto, fruto de uma cultura, e objetos do mundo natural. Esse conhecimento basilar, além de colocar a escrita como meio privilegiado de transmissão e recepção de conhecimento, explicita o agir sobre o mundo tão característico do ser-humano. Com isso, os alunos são confrontados com os deveres e direitos que norteiam a ação humana em sociedade, que são os princípios formativos de um cidadão pleno. O aspecto da cidadania é a diferença essencial entre massa e povo, recordada por muitos dos ex-alunos no documentário “40 horas na memória”: o povo é formado por indivíduos conscientes e autodeterminados enquanto a massa segue cegamente seus tutores.
Outro aspecto muito relevante da prática educativa realizada é a
utilização e apropriação do universo vocabular dos locais pelos educadores. Por meio da seleção de palavras geradoras que estão presentes no cotidiano dos angicanos, é possível tornar mais palpável os conteúdos linguísticos necessários para uma efetiva alfabetização. Além disso, se valoriza a cultura única dos educandos, um remédio contra a tendência homogeneizante e assimiladora da educação nacional. Essa posição de respeito em relação aos costumes dos alunos é o cerne da horizontalidade na relação professor-aluno que garante um ensino profundamente dinâmico e transformador para todos os envolvidos. Ainda no âmbito da diversidade cultural, é interessante notar o trabalho na superação de preconceitos por meio da oferta de imagens que retratam outras culturas, como o exemplo do gaúcho projetado ainda na primeira aula. Com essa pequena resenha sobre o texto de Carlos Lyra, pretendi apenas levantar alguns dos pontos centrais da prática educacional exercida no experimento que podem ser de grande utilidade para os educadores da atualidade que acreditam no potencial mobilizador do ensino. É, portanto, muito significativa a perseguição dos militares a esses educadores e ao método de Paulo Freire. Fica explícito o perigo que uma educação crítica, politizada e integral representa para as classes dominantes. Sobre o tema, Freire pontua:
É reacionária a afirmação segundo a qual o que interessa aos
operários, é alcançar o máximo de sua eficácia técnica e não perder tempo com debates ‘ideológicos’ que a nada levam” pois “a sua cidadania não se constrói apenas com eficácia técnica, mas também com sua luta política em favor da recriação da sociedade injusta [...]” 1
1 FREIRE, Paulo . Pedagogia da autonomia: saberes necessários a prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2004, p.75.
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