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A

ÉTICA DA CRENÇA
W. K. CLIFFORD WILLIAM JAMES ALVIN PLANTINGA
Organização de

DESIDÉRIO MURCHO

Tradução de

VÍTOR GUERREIRO
A ÉTICA DA CRENÇA
Copyright

Prefácio

Sobre os autores

1. Fé, epistemologia e virtude

2. A ética da crença

3. A vontade de acreditar

4. Será a crença em Deus apropriadamente básica?

Notas

Origem dos ensaios

Leituras recomendadas

Expressões estrangeiras

Sobre o organizador

Copyright © 2010 Desidério Murcho e Editorial Bizâncio (compilação) Copyright © 2010 Vítor Guerreiro e Editorial Bizâncio (tradução) Todos os direitos
reservados.

Versão de 18 de Junho de 2016

Imagem da capa de Ryan McGuire.

Todos os direitos para a publicação desta obra em Portugal reservados por Editorial Bizâncio.

Largo Luís Chaves, 11-11A, 1600-487 Lisboa Tel.: 21 755 02 28/Fax: 21 752 00 72

E-mail: bizancio@editorial-bizancio.pt

ISBN: 978-972-53-0458-7

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PREFÁCIO

A religião pode ser estudada de diferentes pontos de vista. Podemos estudar os seus aspectos psicológicos, históricos,
sociológicos ou políticos. Mas também podemos estudar os problemas filosóficos que suscita. Esta pequena antologia oferece uma
amostra de uma área da filosofia da religião conhecida por «epistemologia da fé». Nela, estuda-se aspectos epistemológicos da
crença religiosa, ou fé. Difere, por isso, de outras áreas da filosofia da religião, nomeadamente a área metafísica central, que trata
da discussão dos argumentos a favor e contra a existência de Deus.

Muitos crentes sentem que esta última discussão é algo irrelevante — pois não é em função de argumentos ou provas que têm fé.
Apesar de poder haver algo de errado nesta posição (confundir o que faz alguém ter fé com a sua justificação), há também algo
que aponta para um aspecto que não é estudado nessa área mais tradicional da filosofia da religião, mas sim na epistemologia da
fé. Trata-se de saber se haverá justificação para ter fé sem provas, argumentos ou indícios. Sem muita reflexão, muitos descrentes
responderão que não; muitos crentes responderão, talvez também sem muita reflexão, que sim. Que razões haverá para cada uma
destas posições? É este o nosso tema.

W. K. Clifford defende a primeira posição, a que se chama indiciarista: é epistémica ou racionalmente ilegítimo acreditar em algo
se não tivermos provas ou indícios a favor disso. William James e Alvin Plantinga defendem versões diferentes da segunda posição:
é legítimo acreditar sem provas. No meu texto, apresento várias distinções e ideias que dão ao leitor instrumentos que lhe
permitem entrar na discussão. No final do volume, apresento também um conjunto de leituras recomendadas.

Este livro nasceu em parte da disciplina de Filosofia da Religião que leccionei na Universidade Federal de Ouro Preto em 2009.
Tive a felicidade de contar com alunos interessados, inteligentes e imaginativos, que tornaram as aulas vivas e estimulantes.
Agradeço a todos o que me ensinaram; a minha compreensão deste tema seria bastante diferente sem as suas objecções e contra-
exemplos.

O meu ensaio foi meticulosamente lido e corrigido por vários amigos e colegas, a quem agradeço calorosamente: Artur Polónio,
Aires Almeida, Sagid Salles Ferreira, Faustino Vaz, Pedro Merlussi e Luiz Helvécio Marques Segundo. As objecções que me
levantaram permitiram melhorar bastante o texto original, para benefício do leitor.

Finalmente, agradeço a Vítor Guerreiro, pela tradução atempada e esmerada dos textos, assim como a Alvin Plantinga, que
prontamente acedeu à publicação do seu texto.

Desidério Murcho

Ouro Preto, 28 de Junho de 2010


SOBRE OS AUTORES

W illiam Kingdon Clifford nasceu no dia 4 de Maio de 1845, na Inglaterra, e morreu na Ilha da Madeira no dia 3 de Março de
1879, com apenas 34 anos. Apesar disso, deixou uma obra matemática considerável, assim como palestras influentes de divulgação
científica, ensino e filosofia. Antecipou Albert Einstein (1879-1955), explorando as geometrias não-euclidianas. Das suas ideias
filosóficas, as mais influentes hoje são as que estão presentes no ensaio aqui publicado, apresentando com grande clareza a
posição de que só é legítimo acreditar em algo se tivermos indícios a seu favor. Mas defendeu também teorias filosóficas na área
da filosofia da mente e da ética. Das suas obras, quase todas publicadas postumamente, destaca-se Elements of Dynamic, 2 vols.
(1878, 1887), Seeing and Thinking (1879), Lectures and Essays (1879), Mathematical Papers (1882) e The Common Sense of the
Exact Sciences (1885).

William James, irmão do famoso romancista norte-americano Henry James (1843-1916), nasceu no dia 11 de Janeiro de 1842, na
cidade de Nova Iorque, e morreu no dia 26 de Agosto de 1910, em Chocorua. Ajudou a fundar e desenvolver a psicologia científica,
e foi um dos proponentes do movimento filosófico norte-americano conhecido como pragmatismo. Os seus interesses eram
simultaneamente científicos e filosóficos; ao mesmo tempo, era muito sensível às manifestações religiosas, sendo autor do que é
ainda hoje uma importante fonte de informação antropológica sobre a diversidade religiosa, The Varieties of Religious Experience
(1902). Na esteira de C. S. Peirce (1839-1914), e juntamente com John Dewey (1859-1952), defendeu o pragmatismo. Deste ponto
de vista, a verdade é seja o que for que funcione na prática. Da sua vasta obra destaca-se The Principles of Psychology (1890), The
Will to Believe and Other Essays in Popular Philosophy (1897), Pragmatismo: Um Nome Novo para Algumas Formas Antigas de
Pensar (1907; trad. F. Martinho, INCM, 1997), The Meaning of Truth (1909), Some Problems of Philosophy (1911) e Essays in
Radical Empiricism (1912).

Alvin Plantinga (n. 1932) é um dos mais influentes filósofos actuais, com trabalhos muitíssimo discutidos nas áreas da metafísica,
filosofia da religião e teoria do conhecimento. Cristão protestante, destacou-se por sustentar as suas ideias religiosas de um modo
não só integrado nas outras perspectivas metafísicas e epistemológicas que defende, mas também com a mesma precisão analítica.
Das suas obras, destaca-se God and Other Minds (1967; ed. rev. 1990), The Nature of Necessity (1974), Deus, a Liberdade e o Mal
(1974; trad. D. Murcho, Vida Nova, 2012), Does God Have A Nature? (1980), Warrant: the Current Debate (1993), Warrant and
Proper Function (1993), Warranted Christian Belief (2000) e Essays in the Metaphysics of Modality (2003).

1

FÉ, EPISTEMOLOG IA E VIRTUDE


DESIDÉRIO MURCHO

Neste capítulo, começa-se por esclarecer a natureza da filosofia da religião. De seguida, esclarece-se várias noções centrais de
epistemologia, para então se proceder a uma análise preliminar do conceito de fé. Finalmente, discute-se o tema central do livro:
será legítimo acreditar sem provas?

O objectivo é triplo. Sem maçar o leitor com referências bibliográficas, que se encontram no final do volume, oferece-se um
conjunto de noções instrumentais, cujo domínio é importante para poder discutir proficientemente o tema. Mas o objectivo é
também incitar o leitor a raciocinar e teorizar intensamente; daí que o texto seja, sobretudo, argumentativo e teorizador, e não
descritivo ou histórico. Estes dois objectivos ajudam a concretizar o terceiro: ajudar o leitor não só a compreender os textos de
Clifford, James e Plantinga, mas também a discuti-los activamente. Contudo, os textos destes autores têm muito mais a dizer do
que o que é discutido aqui; não se pretende esgotá-los, caso em que a sua publicação seria redundante, mas antes explorar alguns
dos seus temas.

A possibilidade da filosofia da religião

Alguns problemas centrais da filosofia da religião têm a vantagem, relativamente a problemas de outras áreas da filosofia, de ser
imediatamente compreensíveis para qualquer pessoa. É fácil compreender em que consiste o problema da existência de Deus, por
exemplo: será que Deus existe? Mas pensa-se por vezes que nunca iremos saber se Deus existe ou não, invocando-se até Immanuel
Kant (1724–1804) — como se este importante filósofo tivesse descoberto que não se pode saber se Deus existe ou não, mais ou
menos como um cientista descobre o ADN ou a composição química da água.

Ao longo da nossa escolaridade e estudo individual habituámo-nos a compreender resultados científicos, cuja paternidade ou
maternidade é atribuída a este ou àquele cientista ou intelectual. Transferindo esta atitude para a filosofia, encara-se Kant, ou
outro filósofo, não como alguém que apresentou teorias e argumentos que devemos analisar e discutir de maneira cuidadosa, mas
antes como uma espécie de cientista, que provou qualquer coisa mais ou menos definitivamente. Assim, se Kant declarou que o
problema da existência de Deus é insusceptível de ser resolvido (pela razão teórica), isso é imprudentemente considerado um
resultado definitivo da filosofia, um pouco como a descoberta que um cientista pode fazer de quantas luas tem Júpiter. O resultado
desta atitude é afastar a atenção dos problemas centrais da filosofia da religião, como a existência de Deus. Fixa-se então a
atenção sobre problemas de sociologia da religião, história das religiões, psicologia e hermenêutica das religiões, etc. — sobre
tudo o que é susceptível de ser estudado empiricamente, recorrendo aos métodos aprovados pela ciência.

Uma breve reflexão, contudo, mostra a instabilidade teórica desta posição. Se não se pode saber que Deus existe nem que não
existe, como sabemos que não se pode saber? Será a teoria do conhecimento de Kant mais plausível do que as posições de outros
filósofos, tanto antigos como contemporâneos, que defendem que podemos saber que Deus existe, ou que não existe? Poderá
parecer-nos que sim, sobretudo se desconhecermos a bibliografia da área; mas tal como o desconhecimento da lei não iliba o
prevaricador, também o desconhecimento da bibliografia não fundamenta aquele que a ignora.

Imagine-se alguém que, nomeadamente por ser um cientista, está habituado a distinguir cuidadosamente as opiniões descuidadas
que as pessoas têm sobre biologia, por exemplo, de opiniões fundamentadas no conhecimento da bibliografia relevante. Essa
mesma pessoa pode considerar que, no que respeita à filosofia, as coisas são diferentes, sendo desnecessário conhecer a
bibliografia relevante. Só aceitaria a ilegitimidade de ter opiniões descuidadas, que ignoram a bibliografia, sobre filosofia da
religião, epistemologia ou metafísica, se nessa bibliografia se encontrasse o género de resultados que se encontra na bibliografia
científica.

Contudo, esta posição assenta numa confusão. Mesmo que em filosofia não tenhamos o género de resultados que temos na ciência,
temos outro tipo de resultados: alternativas teóricas sofisticadas cuidadosamente pensadas, argumentos rigorosamente
explorados, distinções e análises clarificadoras. Se ignorarmos a bibliografia relevante, estaremos a fazer filosofia outra vez como
os primeiros filósofos faziam, repetindo-lhes os passos — o que é desavisado porque podemos fazer melhor do que eles se
partirmos das suas investigações.

Não se deve confundir progresso com resultados. O progresso cognitivo numa área não depende exclusivamente do género de
resultados que há nas ciências. Podemos saber muito, e muito sofisticadamente, sobre um problema, sem saber resolvê-lo, caso em
que temos progresso sem resultados. Recusar ler a bibliografia filosófica relevante porque esta não apresenta resultados
científicos é recusar o progresso filosófico entretanto alcançado. Ironicamente, se todos os cientistas se tivessem recusado a
estudar a bibliografia da sua área antes de esta apresentar resultados, nenhuns resultados teriam sido alcançados.

Há duas maneiras comuns de argumentar a favor da ideia de que o problema filosófico da existência ou inexistência de Deus é
insolúvel, pelo que deve ser abandonado, e nenhuma é plausível. No primeiro caso, argumenta-se que só podemos saber o que
podemos saber pela experiência; dado que não podemos saber pela experiência que Deus existe, segue-se que não podemos saber
se Deus existe. No segundo, defende-se que os argumentos a favor e contra a existência de Deus se anulam mutuamente.

O primeiro argumento enfrenta a seguinte dificuldade: a ideia de que só podemos conhecer o que podemos conhecer pela
experiência não pode ser conhecida ou sustentada pela experiência. Nenhuma experiência laboratorial, por exemplo, permite
determinar que só podemos conhecer o que podemos conhecer pela experiência. Para estabelecer esta tese é necessário
argumentar filosoficamente, e uma parte importante dessa argumentação não será baseada na experiência. Por exemplo, pode-se
argumentar que todo o conhecimento implica justificação, e que a única justificação disponível é empírica. Mas o próprio princípio
de que o conhecimento implica justificação não é algo que se conheça pela experiência, nem pela experiência se conhece a ideia
de que só há justificações empíricas — na verdade, a experiência parece até mostrar-nos o contrário, pois os matemáticos não
recorrem à experiência para estabelecer os seus resultados, que estão entre os mais sólidos resultados de sempre da empresa
cognitiva humana.

Isto significa que a ideia de que só podemos saber o que podemos saber pela experiência é, se não incoerente, pelo menos
teoricamente instável — pois, se for verdadeira, parece que não podemos saber que é verdadeira. Uma saída para esta dificuldade
é sublinhar, como Kant, a diferença entre saber ou conhecer algo, por um lado, e pensar algo ou levantar conjecturas, por outro.
Assim, podemos argumentar que a nossa posição, pelos seus próprios critérios, não pode obviamente ser conhecida, porque não
pode ser conhecida pela experiência; no entanto, pode ser pensada ou conjecturada. Um problema desta resposta é tornar
aparentemente a posição original arbitrária. Pois se a posição original pode ser conjecturada com densidade suficiente para em
função dela se recusar a possibilidade de saber se Deus existe ou não, então também podemos conjecturar que Deus existe (ou que
não existe), apesar de reconhecermos que essa é uma mera conjectura, e não conhecimento propriamente dito.
Quanto ao segundo argumento, enfrenta a seguinte dificuldade: para os argumentos a favor e contra a existência de Deus se
anularem mutuamente não basta contá-los, ou apresentar objecções a cada um dos argumentos a favor ou contra a existência de
Deus — é preciso mais. Nomeadamente, duas coisas, pelo menos: primeiro, é preciso mostrar que os argumentos a favor e contra a
existência de Deus são rigorosamente de igual força; segundo, que quaisquer argumentos concebíveis contra ou a favor da
existência de Deus terão sempre os seus opostos, e de força rigorosamente igual. Ora, mostrar qualquer uma destas duas coisas é
cognitivamente mais exigente do que argumentar apenas que Deus existe ou que não existe. Além disso, se todos os argumentos a
favor e contra a existência de Deus se anulam porque não têm base experimental, então também os argumentos a favor dessa
mesma posição se anulam perante os argumentos da posição rival, pois também aqui não há base experimental.

Além disso, é defensável que ambos os argumentos confundem o problema da existência de Deus com o problema de saber se
Deus existe. A diferença torna-se clara se pensarmos em extraterrestres. Neste caso, é óbvio que há uma grande diferença entre
saber se existem e existirem efectivamente ou não. Podemos facilmente imaginar cenários em que os extraterrestres existem, mas,
por não quererem dar-se a conhecer ou porque, querendo, não podem fazê-lo por se encontrarem demasiado longe de nós, não
podemos saber da sua existência. Mas da impossibilidade de saber que os extraterrestres existem não se segue que não existem,
apesar de ser verdadeiro que se não existirem extraterrestres se segue que não podemos saber que existem. No que respeita a
Deus, mesmo que tivéssemos razões para pensar que não podemos saber se existe, isso não constitui em si razões para pensar
nem que Deus não existe nem que a própria existência de Deus é irrelevante. Mesmo sem saber se Deus existe, podemos querer
pensar na hipótese de que existe ou que não existe, e, caso exista, que género de características poderá ou não poderá ter.

Ambos os argumentos são, pois, improcedentes, pelo menos sem reformulações cuidadosas. Mas as ideias subjacentes a estes
argumentos desempenham o seu papel habitual: fazem parar de pensar e de investigar ainda antes de se dar os primeiros passos.

Metafísica, epistemologia e lógica

A filosofia da religião ocupa-se de problemas metafísicos, epistemológicos e lógicos suscitados pelas religiões. Esta é uma
caracterização razoavelmente neutra da filosofia da religião, mas para a compreender é necessário saber o que se entende em
filosofia por problemas metafísicos, epistemológicos e lógicos.

O problema intuitivamente óbvio da existência de Deus, por exemplo, é metafísico. Um problema filosófico é metafísico quando diz
respeito aos aspectos mais gerais da realidade — e não quando diz respeito ao oculto ou ao misterioso, como popularmente se
pensa, nem quando diz respeito ao que não pode ser conhecido pela experiência. A ontologia é a subdisciplina da metafísica que
procura estabelecer as categorias mais gerais da existência. Isto implica discutir se há realmente números, por exemplo, ou
proposições, ou se estas são meras projecções mentais dos seres humanos. Num certo sentido, todos os problemas são metafísicos,
porque todos os problemas são sobre a realidade (incluindo os problemas sobre o conhecimento da realidade, pois tal
conhecimento é também parte da realidade). Mas é óbvio que não consideramos que um físico está a fazer metafísica ao teorizar
sobre átomos, por exemplo. A razão é que consideramos que pertencem à província da metafísica apenas aqueles problemas
fundacionais sobre a realidade que não são susceptíveis de estudo científico (ou seja, experimental ou matemático).

Enquanto que a metafísica se ocupa de problemas fundacionais sobre a realidade, a epistemologia ocupa-se de problemas
fundacionais sobre o conhecimento e outros fenómenos cognitivos centrais, como a crença e a fé. Por isso, chama-se «teoria do
conhecimento» à epistemologia.

Usa-se por vezes o termo «epistemologia» para falar exclusivamente de filosofia da ciência. A generalidade dos autores não faz tal
coisa, porque a filosofia da ciência em si não trata apenas de problemas epistemológicos suscitados pelas ciências, mas também de
problemas lógicos (como o problema da indução) e metafísicos (como o problema da existência ou inexistência de entidades
científicas postuladas, mas nunca directamente observadas, como os quarks).

O estudo filosófico do conhecimento, da crença e da fé difere do estudo científico, psicológico ou sociológico destes mesmos
fenómenos. Em sociologia pode-se perguntar, por exemplo, em que condições sociais determinadas teorias — científicas, por
exemplo — são vistas como verdadeiras; em psicologia pode-se perguntar que tipo de processamento cognitivo ocorre quando se
raciocina com base na experiência, por oposição ao que ocorre quando se raciocina matematicamente apenas; mas em
epistemologia pergunta-se, por exemplo, se sabemos o que pensamos saber, em que condições há conhecimento genuíno, o que é
afinal o conhecimento em si, o que é a fé e se esta é epistemicamente íntegra.

A lógica é uma disciplina transdisciplinar, no sentido em que usa recursos matemáticos, linguísticos e filosóficos, e é também uma
disciplina que tem aplicações em áreas diversas, como a filosofia, a computação e a matemática. O objecto central de estudo da
lógica é a argumentação e o raciocínio — não estudando os aspectos psicológicos, retóricos, históricos ou sociológicos da
argumentação e do raciocínio, mas antes os aspectos relevantes para a cogência da argumentação e do raciocínio. «Central»
porque a lógica acaba por se interessar pela estrutura da linguagem, seja ou não argumentativa. Por exemplo, em lógica queremos
saber se a frase «O actual rei de França é careca» é uma expressão puramente quantificada, como «Há cidades bonitas», ou uma
expressão denotativa, como «Asdrúbal é bonito».

Os argumentos e os raciocínios têm simultaneamente aspectos em comum e aspectos diferentes. Tanto num caso como no outro se
trata de articular informações para delas extrair conclusões; a diferença é que num argumento se pretende persuadir alguém, ao
passo que num raciocínio estamos apenas a tentar obter conclusões a partir de informações.

Em filosofia da religião estuda-se problemas de carácter lógico suscitados pelas religiões; mas não se estuda o tipo de problemas
que se estuda na lógica propriamente dita. Um problema de carácter lógico não é do interesse da própria lógica se depender
fortemente de conceitos que pertencem a outras áreas que não a lógica. É o que acontece no caso do problema do mal, em filosofia
da religião. Este é um problema de carácter lógico, no sentido em que se trata de saber se as seguintes afirmações são
consistentes entre si:

Deus é omnipotente, omnisciente e sumamente bom.


O mal gratuito existe.

Um conjunto de afirmações é consistente quando todas podem ser simultaneamente verdadeiras. Aquilo a que em filosofia da
religião se chama «o problema do mal» é, então, o seguinte: a existência de mal gratuito parece incompatível com um Deus que
pode impedir o mal porque é omnipotente, que sabe que o mal existe e sabe como o impedir porque é omnisciente, e que quer
impedi-lo porque é sumamente bom. Fala-se de mal gratuito porque alguns males não são gratuitos, mas antes meios para bens
maiores — por exemplo, o mal de sofrer as dores de uma intervenção cirúrgica é um meio para o bem maior de ficar saudável.
Distingue-se também o mal moral do mal natural. O mal moral resulta da actividade humana, como é o caso dos roubos ou
homicídios; o mal natural não resulta da actividade humana, como é o caso dos terramotos, das secas ou da maior parte das
doenças. Pelo menos à primeira vista, é mais difícil responder ao problema do mal natural do que ao problema do mal moral.

O problema do mal tem um carácter lógico, porque é um problema de consistência entre afirmações e a consistência é um conceito
lógico; mas não é um problema da lógica porque depende crucialmente de conceitos extralógicos, como o conceito de mal, de
Deus, de omnipotência, de omnisciência e de suma bondade. E cada um destes conceitos levanta igualmente problemas lógicos
que são estudados em filosofia da religião e não em lógica, tratando-se de saber se, por exemplo, é possível articular
coerentemente os conceitos de omnipotência ou de omnisciência.

As distinções entre problemas metafísicos, epistemológicos e lógicos não devem ser entendidas como se fossem estanques, claras
e inequívocas. Os problemas lógicos, por exemplo, são metafísicos ou epistémicos, consoante dizem respeito ao que pode ou não
existir na realidade (poderá existir um ser omnipotente?) ou ao que podemos ou não concluir (será que da existência do mal
gratuito se pode concluir que Deus não existe?); e, como deveria ser evidente, todos os problemas epistémicos dizem respeito a um
determinado aspecto da realidade: a actividade cognitiva de agentes capazes de ter estados cognitivos sofisticados. Em todo o
caso, é importante distinguir, ao abordar um dado problema, os seus aspectos metafísicos, epistemológicos e lógicos.

Epistemologia

Conhecimento, crença e fé são conceitos distintos. Definir rigorosamente o conhecimento é um dos problemas em aberto da
epistemologia, mas algumas distinções cruciais podem ser dadas como razoavelmente seguras.

Quando se fala de crença em filosofia não se tem em mente apenas a crença religiosa, caso em que esta última expressão seria um
pleonasmo. Por crença entende-se em filosofia qualquer representação, susceptível de ser verdadeira ou falsa, que um agente
cognitivo faz de seja o que for. As crenças podem ser muito sofisticadas ou muitíssimo elementares: temos crenças sobre a
natureza dos átomos, mas também sobre a localização dos nossos joelhos. As opiniões são crenças razoavelmente sofisticadas e
articuladas; crianças de seis anos, por exemplo, podem ter crenças fortes sobre o que gostam ou não de comer, mas não têm
opiniões, políticas ou outras. O termo crença é usado em filosofia no sentido em que muitos filósofos gregos usavam o termo δόξα
(doxa). Já o termo fé é usado em filosofia no sentido do termo grego πίστις (pistis) e do termo latino fides.

Podemos distinguir três tipos de conhecimento ou saber (as duas palavras são usadas como aproximadamente sinónimas):

1. Conhecimento proposicional ou de verdades (saber-que);


2. Conhecimento por contacto; e
3. Saber-fazer.

O conhecimento proposicional é o que temos quando «sabemos que»: sabemos que Lisboa é uma cidade portuguesa, que Marte é
um planeta deserto e que a água é H2O. O objecto de conhecimento, neste caso, é uma verdade ou uma proposição. (A noção de
proposição será esclarecida de seguida.)

O conhecimento por contacto é o que temos quando sabemos algo directamente, ainda que não tenhamos conhecimento de
verdades claramente articuladas sobre isso: conhecemos Londres por contacto quando visitámos Londres, mas só temos
conhecimento por descrição de Londres (conhecimento proposicional ou de verdades) se nunca visitámos a cidade, mas sabemos
várias coisas sobre Londres. Também temos conhecimento por contacto de nós mesmos, apesar de muitas vezes ser bastante difícil
articular o que sabemos realmente de nós mesmos: «Quando olho para mim, não me percebo», escreveu Álvaro de Campos.

Finalmente, o saber-fazer é o que sabemos quando sabemos fazer algo, como andar de bicicleta, raciocinar cogentemente ou
pintar um quadro. O saber-fazer ou conhecimento como habilidade ou competência não parece reduzir-se ao conhecimento
proposicional ou de verdades e parece marcadamente distinto deste: podemos saber muitas coisas sobre bicicletas e não saber
andar de bicicleta, e podemos saber andar de bicicleta sabendo quase nada sobre bicicletas (também é argumentável que se pode
saber muitas coisas sobre filosofia sem saber fazer filosofia).

O conhecimento é factivo, o que provoca por vezes confusões desnecessárias. Quando se diz que no tempo de Ptolomeu se sabia
que a Terra estava imóvel e agora se sabe que a Terra não está imóvel, vive-se em plena confusão conceptual. Se a Terra está
imóvel, nós hoje não podemos realmente saber que se move — apenas podemos considerar erradamente que sabemos isso. E se a
Terra sempre se moveu, ninguém pôde algum dia saber que estava imóvel — apesar de muitas pessoas poderem ter tido essa
crença falsa.

O conceito de factividade não é exclusivamente filosófico: é também linguístico, dizendo respeito ao tipo de pressuposições
associadas a certos termos e às suas regras de funcionamento. As definições rigorosas de factividade, infactividade e
contrafactividade são as seguintes, sendo x uma pessoa qualquer, V um verbo e p uma afirmação ou proposição:

Um verbo V é factivo se, e só se, «x V que p» implica p.


Um verbo V é infactivo (ou não factivo) se, e só se, «x V que p» não implica p.
Um verbo V é contrafactivo se, e só se, «x V que p» implica a negação de p.

Por exemplo, o verbo ver é factivo porque se o Asdrúbal vê que está a chover, então está a chover. Claro que o Asdrúbal pode
acreditar erradamente que está a ver chover quando na realidade está a sonhar ou a ter uma alucinação ou a confundir a água de
rega com chuva — mas em nenhum desses casos está realmente a ver que está a chover. O mesmo acontece com o conhecimento:
Asdrúbal só pode saber que há vida em Marte se houver vida em Marte; se não houver vida em Marte, pode acreditar muito
firmemente que há vida em Marte, mas não pode saber tal coisa.

Ao contrário do conhecimento, a crença não é factiva — mas também não é contrafactiva, pois tanto podemos ter crenças
verdadeiras como falsas. Não são só os verbos que são factivos: advérbios, adjectivos e quaisquer modificadores ou operadores
podem ser ou não factivos. Pseudo- é contrafactivo porque, se Asdrúbal for um pseudopintor, não é um pintor. Fingir é
aparentemente contrafactivo, mas de facto é apenas infactivo, pois uma pessoa pode estar a fingir que é rica acreditando que é
pobre quando, sem o saber, lhe saiu ontem a lotaria.

Em suma, ao passo que a crença não é factiva, o conhecimento é factivo. Insistir na factividade do conhecimento por oposição à
infactividade da crença pode parecer um exagero de exactidão, mas trata-se apenas de rigor conceptual elementar. Tal como em
física a massa não é esparguete, e a nenhuma pessoa culta ocorre tratar esse conceito como se fosse tal coisa, também o conceito
de conhecimento é factivo e é escusado insistir que é possível saber que a Terra está imóvel não estando a Terra imóvel.

Não adianta também argumentar que há um conceito de conhecimento que não é factivo, diferente do conceito filosófico, sendo
esse o conceito que as pessoas sem formação filosófica adequada usam, pois seria como argumentar que na verdade há um
conceito de massa, diferente do conceito físico, sendo esse o conceito que as pessoas que não sabem física usam quando falam de
pedras a cair e de carros em movimento. Com certeza que tanto num caso como no outro esses conceitos populares são usados
pelas pessoas, mas se estamos realmente interessados em estudar o conhecimento ou a massa, temos de abandonar essas noções,
que só produzem confusão.

Todo o conhecimento proposicional — assim como a crença — é uma relação entre uma pessoa que conhece e uma proposição ou
verdade conhecida. Portanto, quando não havia pessoas ou outros agentes cognitivos, não podia haver conhecimento proposicional
— ainda que existissem árvores e pedras e planetas e átomos disponíveis para serem conhecidos caso existissem agentes
cognitivos. E é também óbvio que sem agentes cognitivos não havia conhecimento por contacto nem saber-fazer.
Por proposição entende-se geralmente o que é expresso por uma frase verdadeira ou falsa. A frase «Está calor» exprime a
proposição de que está calor em Ouro Preto no dia 1 de Março de 2009, mas exprime outra proposição se for proferida noutro dia
ou noutro local. Portanto, a mesma frase pode exprimir diferentes proposições. E diferentes frases podem exprimir a mesma
proposição: «A neve é branca» e «Snow is white» exprimem ambas a proposição de que a neve é branca.

As frases são inequivocamente entidades espácio-temporais — um certo conjunto de sons articulados num dado intervalo de tempo
ou um certo conjunto de traços inscritos num papel. Mas as proposições não são inequivocamente entidades espácio-temporais.
Isto porque as proposições não se confundem com os pensamentos, no sentido psicológico do termo, enquanto ocorrências físicas
num cérebro. Quando penso que está a chover e outra pessoa pensa o mesmo, o meu pensamento enquanto ocorrência física no
meu cérebro é diferente do pensamento dela enquanto ocorrência física no seu cérebro; mas ambos estamos a pensar, num certo
sentido, o mesmo pensamento — ou seja, estamos a pensar na mesma proposição. A existência de proposições não é pacífica:
alguns filósofos consideram que não existem tais coisas, sendo forçados então a explicar o que há de comum entre várias frases ou
pensamentos que exprimem o mesmo (a via mais óbvia é insistir que tudo o que há de comum nas várias frases e pensamentos que
dizem que a neve é branca é representarem a neve como branca).

Que há pelo menos três tipos centrais de conhecimento (proposicional, por contacto e saber-fazer), que o conhecimento é factivo e
a crença não, e que o conhecimento e a crença proposicionais são relações entre pessoas e proposições são aspectos elementares
dos conceitos de conhecimento e de crença. Contudo, é muito difícil saber precisamente o que é o conhecimento, com o mesmo
tipo de precisão com que sabemos o que é a massa em física. O problema da definição de conhecimento é muitíssimo difícil,
precisamente por se tratar de um conceito muito básico. Apesar disso, é comum aceitar que há três condições necessárias para o
conhecimento proposicional, ainda que não sejam suficientes: para que algo seja conhecimento proposicional é preciso que seja

1. uma crença,
2. verdadeira
3. e justificada.

Efectivamente, se concebemos a crença como qualquer representação, susceptível de ser verdadeira ou falsa, que uma pessoa faz
da realidade, certamente que todo o conhecimento proposicional é uma crença, porque é uma representação da realidade: saber
que Londres é uma cidade é uma representação da realidade. E dado que o conhecimento é factivo, segue-se que só podemos
saber algo se isso for verdadeiro. Esta segunda condição separa o conhecimento da crença, pois podemos evidentemente ter
crenças falsas. A terceira condição, a justificação, é a mais problemática e, ao mesmo tempo, a mais frutuosa filosoficamente.

Para haver conhecimento não basta haver crença verdadeira, porque podemos ter crenças verdadeiras por sorte — e certamente
que isso não é conhecimento. Por exemplo, imagine-se que tenho a crença de que são 16:55 horas porque olhei para o relógio, e
imagine-se que realmente são 16:55 horas. Acontece que, sem eu saber, o meu relógio avariou-se e está parado — mas, por
coincidência, olhei para ele quando era 16:55. Não parece razoável dizer que sei que são 16:55 horas, apesar de ter essa crença e
de isso ser verdadeiro — não parece razoável, porque a minha justificação para essa crença não é adequada. Não é adequada
porque não é fidedigna: a mesmíssima justificação exactamente produziria uma crença falsa, apenas meia hora antes ou depois, e
não uma crença verdadeira. Assim, apesar de ser razoável pensar que todo o conhecimento é uma crença verdadeira justificada,
parece razoável que nem toda a crença verdadeira justificada é conhecimento.

A noção de justificação é crucial para o conhecimento. Para um agente saber realmente algo tem de ter uma crença verdadeira
adequadamente justificada sobre isso. Saber exactamente o que distingue uma justificação adequada de uma justificação
inadequada é um problema filosófico em aberto, como tantos outros. Contudo, podemos avançar na compreensão da justificação
sem nos embrenharmos nos seus aspectos mais complexos. Uma alternativa que poderemos querer evitar é conceber a justificação
de um modo tão forte que implique a verdade, excluindo por isso a possibilidade de se ter uma justificação adequada a favor de
uma crença falsa.

Um exemplo ilustrativo do que está em causa é o seguinte: Cláudio Ptolomeu (100–170 d.C.) tinha a crença de que a Terra estava
imóvel, girando todo o restante universo em seu torno. Imagine-se, contudo, que Ptolomeu não tinha essa crença por ser
cognitivamente preguiçoso, preconceituoso ou hipócrita: formou essa crença cuidadosamente, analisando dados e fazendo
observações. Se isto for verdadeiro, então é razoável afirmar que Ptolomeu tinha uma justificação adequada para a sua crença —
que, contudo, era falsa. Ptolomeu teve azar epistémico: estava numa situação epistémica em que não podia saber que a sua crença
era falsa e que os dados em que se apoiava eram enganadores. O mesmo acontece a um detective, por exemplo, que investiga um
crime: pode ficar convencido de que o criminoso foi o Vilaça, não por preguiça, preconceito ou hipocrisia, mas por azar epistémico:
todas pistas apontam, por azar, para o Vilaça, mas não foi ele realmente o criminoso.

Assim, seja qual for a nossa noção sofisticada de justificação, é defensável que tem de permitir casos em que um agente tem
justificação para acreditar em falsidades. Daí que ter uma crença justificada seja defensavelmente uma condição necessária para
saber algo, mas não suficiente.

Se aceitarmos um conceito de justificação que permita a existência de crenças falsas justificadas, como parece plausível, é natural
passar a dar atenção aos procedimentos epistémicos e até ao carácter epistémico da própria pessoa. Repensemos nos exemplos
acima de Ptolomeu e do detective: não estaremos dispostos a dizer que as suas crenças estão justificadas se as formaram ao acaso,
sem darem atenção aos indícios disponíveis, por preguiça ou preconceito, ou cometendo erros grosseiros de raciocínio ou de
análise dos indícios disponíveis. Na verdade, nesse caso diremos até que as suas crenças não tinham justificação, mesmo que
fossem verdadeiras. Assim, o conceito de virtude epistémica torna-se rapidamente central em epistemologia.

Uma perspectiva inicialmente plausível é defender que uma crença está justificada, ainda que seja falsa, desde que quem tem essa
crença tenha sido epistemicamente virtuoso, ao invés de ser preconceituoso, tendencioso, preguiçoso ou pura e simplesmente
falho de raciocínio. Nesta perspectiva, a justificação adequada não é primariamente uma propriedade das crenças, mas antes das
atitudes epistémicas das pessoas; só derivadamente a justificação adequada é uma propriedade das crenças. Esta abordagem deu
origem à chamada epistemologia das virtudes, que ao analisar o problema central da justificação epistémica põe a ênfase no
carácter epistemicamente virtuoso ou não das pessoas, e não nas propriedades intrínsecas da justificação.

Uma vantagem desta abordagem é o seu particularismo. Dada a complexidade da realidade, é argumentável que não é possível
estabelecer condições gerais, aplicáveis a qualquer caso, do que constitui ou não uma justificação adequada. Aristóteles (384–322
a.C.) considerava que não poderíamos ter uma teoria moral que nos dissesse, por si, o que é correcto fazer em cada caso, sendo
antes importante esclarecer o que é uma pessoa virtuosa; a acção correcta é então o que, em cada caso, a pessoa virtuosa decide
fazer. A epistemologia das virtudes pode ser entendida do mesmo modo: em vez de tentarmos em vão estabelecer condições
necessárias e suficientes do que constitui uma justificação adequada, tentaremos estabelecer algumas virtudes epistémicas;
compete depois à pessoa epistemicamente virtuosa dizer-nos, em cada caso, que procedimentos investigativos devemos adoptar,
em função do contexto e do que estamos a tentar descobrir.

A justificação e a racionalidade são conceitos subtilmente relacionados, apesar de diferentes. Ter uma crença injustificada, à qual
nos apegamos firmemente, rejeitando que seja posta em causa, é ser irracional; e justificar cuidadosamente as nossas crenças,
estando dispostos a revê-las e a abandoná-las, é parte integrante do que é ser racional.

Finalmente, note-se que qualquer concepção excessivamente restritiva da justificação é implausível, porque tornaria a maior parte
das nossas crenças injustificadas. Caso se considerasse que só é racional o agente que souber justificar cientificamente todas as
suas crenças, seriam irracionais quase todas as crenças das pessoas — incluindo as crenças científicas dos cientistas. Isto porque
ninguém dispõe do tempo nem das energias nem das competências para analisar e testar cientificamente todas as suas crenças. A
maior parte das pessoas tem a crença de que a água é H2O, que Marte é um planeta desértico ou que ocorreu a segunda guerra
mundial, sem ter justificações adequadas para estas crenças — na maior parte dos casos, limitamo-nos a aceitar o testemunho de
outras pessoas, nomeadamente os cientistas. Uma maneira errada de acusar os crentes religiosos de albergarem crenças
irracionais é argumentar que são incapazes de justificar as suas crenças religiosas — pois, nesse caso, todas as pessoas seriam
irracionais porque são incapazes de justificar as suas crenças químicas, físicas, astronómicas, históricas ou até quotidianas. E se o
testemunho dos cientistas é suficiente para justificar crenças, o testemunho dos livros sagrados e dos profetas também o será — a
menos que encontremos diferenças relevantes.

Uma análise da fé

O que é exactamente a fé? Mesmo que não possamos responder a esta pergunta apresentando condições necessárias e suficientes,
é iluminante ter pelo menos uma caracterização razoavelmente precisa da fé. Sem essa compreensão, a análise da epistemologia
da fé poderá ser desadequada — exigindo-lhe, por exemplo, padrões epistemológicos desadequados à sua natureza.

Há pelo menos duas concepções cruciais de fé: a objectal e a fenomenológica. A objectal é a ideia de que a fé é apenas uma crença
fenomenologicamente como as outras, cuja diferença reside exclusivamente no seu objecto. A crença de que ontem foi Domingo,
por exemplo, só diferiria da fé numa divindade porque a primeira tem por objecto uma banalidade e a segunda uma divindade. A
concepção fenomenológica é a ideia de que a fé é uma crença diferente das outras não apenas por ter um objecto diferente, mas
também por envolver atitudes diferentes por parte da pessoa. Segundo esta concepção, a fé numa dada divindade é diferente da
crença de que ontem foi Domingo não apenas por ter uma divindade por objecto, mas por envolver reverência, testemunho,
entrega, mistério e outras atitudes próprias da fé. Exploremos cada uma destas concepções.

Se a concepção objectal de fé for verdadeira, ter fé em Deus é como ter outra crença qualquer: esta crença estará justificada ou
não do mesmo modo que qualquer outra crença. Se houver razões para pensar que é irracional acreditar em algo sem provas, será
irracional ter fé em deuses sem provas.

Há dois argumentos centrais contra a concepção objectal de fé. Em primeiro lugar, não parece fazer jus à experiência da fé que os
crentes religiosos efectivamente têm, e que a concepção fenomenológica destaca. A fé não parece ser para quem a tem uma
crença como qualquer outra, mesmo que a comparemos com crenças muitíssimo importantes e valiosas, como a crença de que os
nossos filhos nos amam. Além de mais intensa, parece mais valiosa.

Em resposta a esta objecção podemos argumentar que as diferenças entre a fé e as outras crenças resultam precisamente da
natureza do objecto da crença. Sendo a fé uma crença que tem por objecto divindades, é natural que, por isso mesmo, as atitudes
associadas à fé sejam adequadamente diferentes das atitudes associadas a qualquer outro tipo de crença. Mas as atitudes
associadas a uma crença não são constitutivas dessa crença.

A segunda objecção é mais promissora: se a fé fosse como qualquer outra crença, teria de ser possível uma pessoa ter fé na
existência de uma divindade depois de saber que essa divindade existe. Na verdade, depois de uma pessoa saber que uma
divindade existe, teria de lhe ser impossível não ter fé na sua existência, tal como é defensavelmente impossível que não
acreditemos que a neve é branca quando sabemos que a neve é branca. Contudo, parece implausível defender sequer que é
possível ter fé que uma divindade existe depois de sabermos que existe, e mais implausível ainda defender que saber que uma
divindade existe implica ter fé nessa divindade. Isto porque a fé é o género de atitude que se tem perante o que se desconhece:
antes de uma intervenção cirúrgica delicada, uma pessoa pode ter fé de que tudo irá correr bem, mas não pode ter fé de que tudo
correu bem depois de tudo ter corrido bem. No entanto, há efectivamente um sentido em que se pode ter fé no que se conhece —
no sentido de se ter confiança nisso.

Assim, podemos rejeitar a objecção acima distinguindo dois sentidos de fé: a fé como crença proposicional e a fé como confiança.
Há um sentido no qual não só temos fé em alguém ou algo mesmo sabendo que isso existe como só é racional ter fé nesse alguém
ou algo se acreditarmos que existe. Por exemplo, uma pessoa só pode ter fé no amor dos seus filhos se acreditar que tem filhos. Fé,
neste contexto, quer dizer confiança: ter fé em alguém ou em algo é confiar nessa pessoa ou nesse algo. Nesta acepção, todos
temos fé diariamente em muitas coisas — na gravidade, por exemplo, no poder nutritivo do que comemos e na medicina — porque
todos confiamos nessas coisas. Mas é possível ter fé no sentido da crença proposicional sem ter fé no sentido da confiança: uma
pessoa pode saber que o primeiro-ministro existe, mas não confiar nele. Na Bíblia afirma-se: «Tu crês que há um só Deus? Fazes
bem. Também o crêem os demónios, mas enchem-se de terror» (Tiago, 2:19) — o que poderá significar que os demónios acreditam
que Deus existe, mas não confiam nele.

A componente da confiança é sem dúvida uma das mais importantes da fé. Mas a perspectiva objectal sobre a natureza da fé não
se lhe adequa muito bem — pois, nessa perspectiva, só o objecto da fé a distingue de outras crenças, e não as atitudes do agente.
Ora, a confiança é precisamente uma atitude particular que podemos ter perante objectos diferentes. E ainda que objectos
diferentes possam alterar a fenomenologia da confiança, é argumentável que há algo de comum a todas ou, pelo menos, à maioria
das atitudes de confiança; seria esse aspecto fenomenológico da confiança que a caracterizaria, e não o objecto da confiança. Em
conclusão, tentar defender a perspectiva objectal da fé socorrendo-se de uma acepção de fé que a aproxima da confiança tem um
efeito contrário ao pretendido, pois conduz-nos à perspectiva fenomenológica da natureza da fé.

Acresce que apesar de a confiança ser uma componente importante da fé, não é nem poderia ser a única. Parece impossível ou
irracional ter confiança em algo e não acreditar pelo menos na possibilidade de isso existir. Podemos, evidentemente, ter confiança
em algo que não sabemos se existe, mas gostaríamos que existisse — pois nesse caso a nossa confiança é condicional. Por
exemplo, um náufrago pode não saber se o desaparecimento do seu veleiro foi registado, mas ter a esperança que o tenha sido e
confiar que, nesse caso, os serviços de emergência náutica acabarão por salvá-lo. Mas é impossível ou irracional o náufrago
confiar que os serviços de emergência náutica acabarão por salvá-lo se souber que o desaparecimento do seu veleiro não foi
registado. Ou seja, a confiança parece envolver uma componente proposicional, pelo menos quando não estamos em contacto com
o objecto da confiança e quando não se trata de um saber-fazer. Logo, ainda que a confiança seja uma componente importante da
fé, é defensável que tem de haver nesta uma componente proposicional: quem tem fé numa dada divindade tem de acreditar que
essa divindade existe ou, pelo menos, desejar que exista ou ter esperança que exista, e em qualquer destes casos estamos perante
atitudes proposicionais. Esta é a designação que se dá a qualquer atitude que tenha por objecto uma proposição: recear que esteja
a chover, ter medo de perder o comboio ou ter a esperança de chegar a horas são atitudes que têm como objecto, respectivamente,
as proposições expressas pelas frases «Está a chover», «Vou perder o comboio» e «Chegarei a horas».

É ilusório pensar que a perspectiva objectal da fé fica vindicada se admitirmos que a fé tem necessariamente uma componente
proposicional. Na verdade, a perspectiva fenomenológica de fé não está comprometida com a exclusão da componente
proposicional da fé: limita-se a sustentar que não é apenas a diferença de objecto que caracteriza a fé, mas também e sobretudo a
atitude do agente. Nada na concepção fenomenológica de fé a impede de aceitar que a atitude do agente é uma atitude
proposicional.

A concepção fenomenológica de fé

Passemos então à análise da concepção fenomenológica de fé. Deste ponto de vista, a fé não é como qualquer outra crença,
diferindo apenas quanto ao objecto; ao invés, além da diferença de objecto, envolve aspectos que as outras crenças não envolvem.
Um desses aspectos é a força da convicção: a fé exibe a força da convicção do conhecimento, apesar de não ser conhecimento (ou,
pelo menos, não é como os outros conhecimentos comuns, como o conhecimento de que a água é H2O, por exemplo; exploraremos
já de seguida a ideia de que a fé é um tipo especial de conhecimento). E por não ser conhecimento, a fé é, nesse aspecto, como a
mera crença. Portanto, deste ponto de vista, a fé é como o conhecimento num aspecto e como a mera crença noutro. Assim, a fé
não é apenas uma crença que tem por objecto um certo tipo de entidades: é uma crença que tem características próprias, que a
distinguem de muitas outras crenças, ou mesmo de todas.

Comparar a força da convicção da fé com a força da convicção associada ao conhecimento é esclarecedor. Efectivamente, quando
sabemos algo, temos uma forte adesão psicológica ao conteúdo do nosso conhecimento, bastante mais forte do que quando temos
uma mera crença, ainda que parcialmente justificada. Quando acredito meramente que a Joana está na praia porque me disseram,
a força da minha convicção é muitíssimo menor do que quando sei que ela está lá porque acabei de a ver.

Contudo, será a fé como o conhecimento em todos os aspectos, caso em que a fé seria conhecimento? Podemos defender que a fé é
conhecimento — mas um tipo diferente de conhecimento — ou defender que a fé não é conhecimento, apesar de ser
fenomenologicamente como o conhecimento no que respeita à força da convicção.

A primeira coisa a fazer quando se defende que a fé é conhecimento é esclarecer de que género de conhecimento se trata:
proposicional, saber-fazer ou por contacto. Defender que a fé é conhecimento proposicional implica defender que só há fé quando
há justificação, pois só há conhecimento proposicional quando há justificação. No caso da fé, a justificação seria a revelação: a
ideia de que Deus se deu a conhecer a algumas pessoas especiais, que depois transmitiram por testemunho essa ocorrência. Um
argumento contra esta perspectiva é que, se fosse verdadeira, quase nenhumas pessoas religiosas teriam de facto fé — só a teriam
aqueles teólogos e filósofos que sabem justificar adequadamente a sua crença numa divindade. A maior parte das pessoas que
acredita no Deus cristão, por exemplo, pouco ou nada sabe sobre os supostos testemunhos da revelação que sustentariam a sua fé.
Como isto é implausível, a perspectiva seria falsa.

Este argumento, contudo, não é convincente, pois ignora uma diferença entre haver justificação e o agente do conhecimento ou da
crença em causa conseguir articular essa justificação. Por exemplo, uma criança forma a crença de que está uma maçã em cima da
mesa ao vê-la lá; a justificação da sua crença é muitíssimo mais sofisticada do que o mero «Vi-a lá» que ela é capaz de articular,
pois envolve coisas como condições normais de luz e o funcionamento correcto do seu aparato visual e cognitivo. Parece excessivo
exigir que um agente tenha de conseguir articular uma justificação adequada das suas crenças para estas poderem constituir
conhecimento proposicional, dado que, na sua maior parte, as pessoas têm grande dificuldade em fazer tal coisa. (Contudo,
podemos insistir que as pessoas quase nada sabem, na sua maior parte, vivendo apenas com base em meras crenças.) Uma
alternativa é então aceitar que um agente tem conhecimento proposicional desde que tenha uma crença verdadeira que se pode
justificar adequadamente, ainda que ele mesmo não o saiba fazer ou não o tenha efectivamente feito. Chama-se externismo a esta
posição sobre a justificação, e internismo à posição oposta.

Aplicando esta distinção à fé, poder-se-ia então insistir que as pessoas só podem ter realmente fé numa divindade caso seja
possível justificar tal crença, ainda que elas mesmas sejam incapazes de o fazer. Ter fé numa divindade seria, assim, análogo a
muitas outras crenças que somos incapazes de justificar adequadamente, mas que pensamos que outros seres humanos sabem
justificar adequadamente. Por exemplo, na sua maior parte, as pessoas são incapazes de justificar adequadamente a crença na
cosmologia do Big Bang, pois não têm os conhecimentos nem os recursos necessários para justificar esta teoria: limitam-se, por
isso, a transferir para os especialistas relevantes a tarefa da justificação.

Esta perspectiva implica que caso não exista justificação adequada para crer numa divindade, ninguém teve jamais fé nessa
divindade, apesar de ter pensado que a tinha. Note-se que isto é compatível com a diversidade de religiões e de divindades; pois
apesar de as diversas divindades que são objecto de fé em diferentes religiões serem incompossíveis (ou seja, não são
conjuntamente possíveis: não podem existir todas simultaneamente), é perfeitamente possível que existam justificações adequadas
para as crenças religiosas nessas divindades. Recorde-se que podemos defender que a justificação não é factiva, o que significa
que diferentes pessoas em diferentes contextos epistémicos podem ter justificação adequada para crer em divindades diferentes e
incompossíveis.

Contudo, a perspectiva que estamos a explorar não defende apenas que só há fé quando há justificação: defende também que a fé
é factiva, pois defende que a fé é conhecimento, ou um tipo de conhecimento. E é isto que torna esta concepção implausível, pois
significaria que caso a única divindade que realmente existe seja Diana, por mais genuína que fosse a fé dos antigos egípcios no
deus Rá, por exemplo, ou dos actuais cristãos em Deus, nenhuma dessas pessoas tinha realmente fé — apenas acreditava
erradamente que a tinha. Isto parece excessivo: quem tem fé numa divindade que, sem ela o saber, não existe, não parece ter uma
fé menos genuína do que quem tem fé numa divindade que realmente existe. Assim, a fé, ao contrário do conhecimento, não
parece factiva.

Uma saída para esta dificuldade seria sustentar que a fé é um tipo diferente de conhecimento, que não envolve factividade. Mas
isto seria presumivelmente um mero jogo de palavras, dado que conhecimento infactivo não é conhecimento, em qualquer acepção
relevante do termo: é mera crença (que pode até estar justificada).

Dado que tanto o conhecimento proposicional como o conhecimento por contacto são factivos, o mesmo argumento se aplica para
refutar a ideia de que a fé poderia ser conhecimento por contacto: aceitar que a fé é conhecimento por contacto implica a tese
implausível de que a maior parte da humanidade ao longo da maior parte da história não teve realmente fé, apesar de pensar que
a tinha.

Testemunho e risco epistémico

Note-se, contudo, que há pelo menos um aspecto crucial que o conhecimento por contacto partilha com a fé. No conhecimento por
contacto não há apenas uma forte convicção acompanhada muitas vezes de uma incapacidade para articular uma justificação
adequada — isto também acontece no conhecimento proposicional. Um traço central do conhecimento por contacto que o
distingue do proposicional é o aspecto pessoal, subjectivo ou testemunhal: quando conhecemos algo por contacto não se trata
apenas de sermos muitas vezes incapazes de articular uma justificação adequada desse conhecimento; há aparentemente um
aspecto fenomenológico irredutível a qualquer justificação cuidadosamente articulada.

Este aspecto do conhecimento por contacto envolve o que se chama qualia: a qualidade interna da experiência. É este aspecto do
conhecimento por contacto que está em causa nos famosos artigos «Como é Ser um Morcego?», de Thomas Nagel, e «What Mary
Didn’t Know», de Frank Jackson.

No primeiro caso, Nagel faz notar que temos muito conhecimento proposicional sobre a ecolocalização usada pelos morcegos, e
usamo-la também em navios, recorrendo a radares: um sinal sonoro é enviado e o tempo decorrido entre o seu envio e o eco
devolvido permite determinar a distância e parcialmente a forma do que se encontra na direcção relevante. Contudo, argumenta
Nagel, num certo sentido não podemos saber como é percepcionar objectos dessa maneira, não sabemos como é a experiência
interna da ecolocalização: não sabemos como é ser um morcego.

No exemplo de Jackson, imagina-se uma neurocientista da cor, a Maria, que tem um conhecimento proposicional exaustivo do
mecanismo da visão de cores que ocorre nos seres humanos. Contudo, nunca viu cores porque viveu sempre num quarto a preto e
branco. (Será também preciso imaginar que tinha uma doença da pele que a tornava completamente branca, que o seu cabelo era
completamente preto, que não podia ficar menstruada, porque nesse caso veria a cor do seu sangue, etc., o que torna tudo isto
uma fantasia filosófica, mas que serve correctamente os seus propósitos.) Um dia, a Maria pôde finalmente sair do seu quarto e viu
uma rosa vermelha ou um pôr-do-sol radioso. Apesar de ter um conhecimento proposicional exaustivo do processamento visual e
cognitivo das cores, havia algo que a Maria não sabia, pois parece óbvio que há algo que ela aprendeu quando viu a rosa ou o pôr-
do-sol. O conhecimento que não tinha era o conhecimento por contacto, o conhecimento íntimo, subjectivo ou testemunhal do que
é ver cores.

Este aspecto testemunhal do conhecimento por contacto parece crucial na fenomenologia da fé. Ter fé numa divindade é talvez
mais do que ter uma convicção forte na sua existência: é ter como que um contacto íntimo com essa divindade; é ter uma
experiência defensavelmente irredutível a todo o conhecimento proposicional. Contudo, levar a sério a ideia de que a fé é
conhecimento por contacto implica, uma vez mais porque o conhecimento é factivo, que a maior parte da humanidade ao longo da
maior parte da história não teve experiência da fé genuína, mas apenas a ilusão de que a teve, dado que as muitas divindades que
foram objecto de fé ao longo da história humana são incompossíveis.

Não é, pois, plausível que a fé seja conhecimento proposicional nem por contacto. Contudo, é inegável que há algo na
fenomenologia da fé irredutível às crenças proposicionais, pelo simples facto de que toda a atitude proposicional tem uma
fenomenologia própria, irredutível às crenças proposicionais. Por exemplo, ter medo de dragões tem uma fenomenologia própria,
diferente de ter a esperança de haver dragões, que não depende do objecto, mas sim da própria atitude. Assim, ter fé terá sem
dúvida uma fenomenologia distinta, mas não implica de modo algum que tenha de existir a divindade que é objecto da fé. A
impressão subjectiva do conhecimento por contacto, testemunhal e subjectivo que se associa à fé pode ser independente da
existência da divindade que é objecto da fé em causa: pode ser uma peculiaridade da atitude. A peculiaridade da fé, uma vez mais,
é não ser fenomenologicamente como uma mera crença, como as muitas crenças que temos e a que não damos muita importância:
a fé é uma crença considerada e sentida como muitíssimo importante pelos crentes.

Uma objecção imaginativa a esta última ideia insiste que, apesar de historicamente a fé ter sido considerada e sentida como
muitíssimo importante pelos crentes, poderia não o ser. Podemos imaginar pessoas que têm fé numa divindade menor, digamos,
com poucos poderes ou com poderes limitados, e que intervém apenas em trivialidades do quotidiano — como nunca deixar uma
pessoa esquecer-se de fechar a tampa da sanita, por exemplo. Estas pessoas teriam uma fé banal, digamos, neste tipo de divindade
menor, precisamente por ser uma divindade menor.

Esta objecção insiste na conexão entre o objeto da fé e a atitude do crente: a ideia é que a atitude de extrema importância
associada à fé resulta da natureza da divindade que é objecto da fé.

A resposta a esta objecção é a seguinte: do mesmo modo que ter medo de escorregar quando neva é diferente de ter medo quando
um leão corre na nossa direcção, porque os objectos do medo são diferentes, persistindo todavia algo em comum (caso contrário
não seria medo), também a fé será inevitavelmente influenciada pela natureza do objecto da fé. Quem tiver fé numa divindade
menor, terá presumivelmente uma fé diferente de quem tiver fé numa divindade omnipotente, mas algo em comum terá de haver
em ambos os casos para que sejam ambos fé. E apesar de ser evidentemente possível imaginar cenários em que já duvidamos se
estamos perante fé ou perante uma mera crença banal e quotidiana, o objectivo da nossa investigação é a fé que de facto as
pessoas têm, e não a que conseguimos imaginar, mas que depois nem sabemos bem se é ainda fé ou outra atitude. Ora, nas
manifestações conhecidas de fé, esta não é uma crença banal, como as outras crenças quotidianas; é uma crença a que o próprio
crente dá extrema importância.

Afastadas as hipóteses de que a fé seja conhecimento proposicional ou conhecimento por contacto, resta ver se poderá ser um
saber-fazer. Esta ideia também não é plausível, pois saber fazer algo como andar de bicicleta envolve uma actividade, mas não
necessariamente uma atitude, ao passo que ter fé numa divindade envolve necessariamente um tipo de atitude, mas pode ou não
envolver uma actividade. É certamente verdadeiro que os crentes religiosos consideram que o seu modo de vida é profundamente
afectado pela sua fé, mas não parece verdadeiro que esse modo de vida constitua a fé. Uma vida dedicada à bondade e a aliviar o
sofrimento alheio pode coincidir exteriormente com uma vida religiosa; mas muitos ateus escolhem esse género de vida, sem
terem, portanto, qualquer atitude análoga à atitude de uma pessoa de fé. Por outro lado, mesmo que todas as pessoas de fé
desenvolvam um tipo de actividades, estas parecem consequência da sua fé, não constituindo a fé em si.

Podemos então concluir preliminarmente que a fé não é conhecimento, nomeadamente porque a fé é infactiva e o conhecimento é
factivo. Mas esta não é a única razão. Mesmo que a fé implicasse conhecimento, nunca poderia ser conhecimento,
constitutivamente, dada a diferença entre as fenomenologias da fé e do conhecimento. Vimos que a fé se assemelha ao
conhecimento proposicional por envolver uma forte convicção, e que se assemelha ao conhecimento por contacto por envolver um
aspecto testemunhal. Mas noutros aspectos a fé é profundamente diferente desses tipos de conhecimento.

Para ver porquê, considere-se o que aconteceria se uma divindade se manifestasse inequivocamente junto dos seres humanos.
Alguns ateus, perante tal manifestação, passariam evidentemente a acreditar que essa divindade existe, precisamente porque
passariam a saber que existe. Mas teriam fé? Poderiam ganhar fé no sentido de terem confiança na divindade, se soubessem que
essa divindade estaria a zelar por eles, sendo sumamente boa e sumamente poderosa. Contudo, alguns aspectos que parecem
constitutivos da fenomenologia da fé poderiam não se manifestar, tornando implausível afirmar que esses ateus passaram a ter fé.
Os sentimentos de reverência, ligação profunda, êxtase e mistério que parecem estar associados à fé poderiam perfeitamente estar
ausentes das atitudes epistémicas desses ateus relativamente a essa divindade. Parece, por isso, conceptualmente possível saber
que uma divindade existe sem ter fé na sua existência (mesmo que nela se tenha fé, no mero sentido da confiança).

Søren Kierkegaard (1813–1855) foi um dos filósofos que mais claramente sublinhou este aspecto da fé, que a torna incompatível
com o conhecimento — e, por isso, com as provas, argumentos ou justificações. Este aspecto da fé parece corresponder à
desvalorização, por parte de alguns crentes, dos intrincados argumentos filosóficos a favor e contra a existência de Deus. Talvez
isso ocorra por considerarem, como Kierkegaard, que a fé é precisamente o género de confiança ou convicção profunda que se tem
numa divindade quando não temos provas da sua existência:

Em nome de quem se procura a prova? A fé não precisa dela. Sim, tem de encará-la como inimiga. Mas quando a fé
começa a ter vergonha, como uma rapariga para quem o amor deixa de ser suficiente, que secretamente tem vergonha
do seu namorado e tem por isso de confirmar junto de outros que ele é realmente notável, quando a fé vacila e começa a
perder a sua paixão, então a prova torna-se necessária para parecer respeitável da perspectiva do descrente. (Pós-
Escrito Anti-Científico Final, p. 27)

Sem risco não há fé. A fé é precisamente a contradição entre a paixão infinita da interioridade e a incerteza objectiva. Se
posso compreender Deus objectivamente, não acredito; mas porque não posso conhecer Deus objectivamente, tenho de
ter fé; e se for firme na fé, tenho de estar constantemente determinado a agarrar-me à incerteza objectiva, para
permanecer sobre as profundezas do oceano, sobre setenta mil braças de água, e continuar a acreditar. (Pós-Escrito Anti-
Científico Final, pp. 171-172)

Kierkegaard considera a fé incompatível com o conhecimento, por este último implicar a justificação, ao passo que a fé implica o
risco epistémico. Podemos fazer uma analogia com o que ocorre quando encontramos um desconhecido e o ajudamos, sem ter
provas da sua probidade, descobrindo mais tarde com gosto que ele nos procurou para nos restituir o dinheiro emprestado, por
exemplo, ou para nos manifestar a sua gratidão. Esta analogia permite compreender o tipo de valor que é possível ver na fé
quando esta é concebida como crença injustificada ou sem provas. Num certo sentido, tem mais valor confiar num desconhecido,
sem provas da sua probidade, do que confiar nele quando temos essas provas. Confiar nele quando temos essas provas não
envolve qualquer risco, nem é um gesto particularmente generoso da nossa parte. Kierkegaard parece defender algo análogo
relativamente à fé: se procuramos provas da existência da divindade, é porque de algum modo não queremos arriscar ter fé na sua
existência; mas se tivermos provas de que essa divindade existe, a fé parece não poder ter lugar, tal como nada arriscamos ao
ajudar uma pessoa quando sabemos que ela nos recompensará.

Será realmente defensável o risco epistémico de crer no que não temos provas que existe? William James argumenta que sim.

Aposta momentosa

James sublinha que em alguns casos as nossas crenças são motivadoras: um desportista ganha em acreditar que consegue obter
um resultado; um estudante ganha em acreditar que conseguirá bons resultados num exame difícil. Nestes casos, precisamos de
acreditar sem provas, de maneira a ter motivação para tentar: não faria sentido treinar ou estudar se não confiássemos na
possibilidade de obter os resultados desejados, ainda que não tenhamos realmente provas de que os conseguiremos obter. Será a
fé análoga a este género de casos? Tratar-se-ia nesse caso de ter confiança em algo que não sabemos bem se ocorrerá ou se existe.
A fé ficaria assim mais próxima da esperança.

Sem dúvida que este tipo de crenças motivadoras e sem grandes provas existem, e são constitutivas da nossa vida. É difícil
imaginar como seria a nossa vida sem elas. Mas não é claro que este facto acerca da nossa vida cognitiva tenha relevância para a
legitimidade da fé sem provas, ao contrário do que James parecia pensar. Vejamos dois argumentos contra a posição de James.

Em primeiro lugar, as crenças motivadoras só são racionais porque têm efeitos causais: se um estudante acreditar que com o seu
esforço irá conseguir obter um certo resultado, isso tem o efeito causal de lhe dar mais ânimo, o que contribui para obter o
resultado desejado. Mas no caso da crença religiosa não há qualquer nexo causal, nem pode haver, entre a força da convicção e a
existência ou inexistência de divindades: estas não existem ou deixam de existir consoante as pessoas estão mais ou menos
fortemente convictas da sua existência.

Em segundo lugar, é irracional ter confiança quando a possibilidade de realização do que se almeja é demasiado improvável. Uma
pessoa em risco de morte pode ganhar em ter confiança que conseguirá ser bem-sucedida num salto difícil que poderá salvar a sua
vida, se o salto que tem de dar for de, digamos, um metro e meio. Mas, se for de dez metros, nenhuma confiança lhe dará energia
suficiente para conseguir salvar-se. O mesmo ocorre todos os finais de semestre com demasiados estudantes: não estudaram ao
longo do semestre e depois vão fazer os exames cheios de confiança que, naquele momento, algo de mágico ocorra e subitamente
sejam capazes de responder a perguntas sobre matérias que desconhecem quase por completo: o resultado inevitável, apesar de
tanta confiança, é a reprovação. E esses estudantes teriam ganho mais em reconhecer a verdade da situação, ficando em casa
tranquilamente. Portanto, este género de confiança na ausência de provas só pode ter relevância caso não estejamos perante uma
impossibilidade ou quase impossibilidade.

Blaise Pascal (1623–1662), contudo, ficou famoso por defender que, bem vistas as coisas, temos tudo a ganhar e nada a perder em
apostar na existência de Deus. Chama-se aposta de Pascal ao seu argumento, que pertence à mesma família da posição de James:
trata-se de dizer que, na ausência de provas a favor ou contra a existência de Deus, temos um argumento a favor da crença sem
essas provas.

No caso da versão de Pascal, a ideia é fazer uma matriz para revelar as quatro combinações possíveis que resultam de se acreditar
ou não e de Deus existir ou não:

1. Caso não acreditemos e Deus não exista, nada de especial ganhamos. Apenas não perdemos tempo, por exemplo, em rituais
religiosos.
2. Caso não acreditemos e Deus exista, perdemos a possibilidade do paraíso, o que é terrível.
3. Caso acreditemos e Deus não exista, nada de especial perdemos. Apenas perdemos tempo, por exemplo, em rituais religiosos.
4. Caso acreditemos e Deus exista, ganhamos o paraíso, o que é maravilhoso.

Portanto, continua o argumento, é irracional não escolher acreditar. Porque se acreditarmos, o pior que pode acontecer é termos
perdido tempo; e podemos ganhar o paraíso. Mas se não acreditarmos, o melhor que pode acontecer é não termos perdido tempo;
e podemos perder o paraíso.

Este género de argumento pode ser visto como desprezível por muitos crentes. Pois o seu efeito é retirar à fé o elemento de risco
epistémico que Kierkegaard considerava importante: a fé torna-se o mero resultado do calculismo egoísta, e não uma atitude de
risco epistémico que nos dá confiança perante a «incerteza objectiva».

O pior do argumento, contudo, é precisar admitir pressupostos pouco razoáveis sobre Deus. Por que razão haveria Deus de
castigar quem não acredita que ele existe precisamente por falta de provas? E por que razão haveria Deus de recompensar com o
paraíso o calculista? A ideia de que ter fé é em si importante porque Deus castiga quem não a tem é praticamente indefensável. Se
Deus for sumamente bom e sábio, não pode ser o género de ser que exige dos seres humanos crenças arbitrárias; pelo contrário,
será o género de ser que exige que os seres humanos sejam virtuosos, e ser epistemicamente virtuoso parece incluir não acreditar
sem provas.

O defensor da aposta de Pascal pode responder que não temos de ter uma concepção primitiva de um Deus castigador: podemos
entender a própria vida do crente, com a graça da fé, como uma dádiva de imenso valor, e a vida do descrente como um deserto
espiritual que ninguém quererá viver. Assim, apostar em Deus faz sentido não porque a divindade recompense a credulidade e
castigue a racionalidade, mas antes porque a própria vida sem fé em Deus é um martírio, ao passo que uma vida com fé em Deus é
graciosa e compensadora.

William James tem em mente algo como esta caracterização da vida de fé. Antes de analisarmos brevemente as suas ideias,
importa esclarecer as seguintes diferenças:

1. Acreditar que Deus existe.


2. Não acreditar que Deus existe.
3. Acreditar que Deus não existe.

Confunde-se por vezes 2 com 3. 2 é mais fraco do que 3, no sentido em que 3 implica 2, mas 2 não implica 3: quem acredita que
Deus não existe, não acredita que Deus existe, mas quem não acredita que Deus existe pode não acreditar que Deus não existe.
Suspender o juízo quanto à existência de Deus é rejeitar 1 e 3: é o que faz o agnóstico. O crente, claro, aceita 1 e rejeita as outras;
o ateu aceita 3, o que implica aceitar 2, e rejeita 1. Estas relações lógicas dizem respeito a qualquer crença, e não especificamente
à crença de que Deus existe. A maior parte das pessoas, por exemplo, nem acredita que existem extraterrestres nem que não
existem extraterrestres; considera as duas hipóteses interessantes e até momentosas, mas limita-se a suspender o juízo.

Esta atitude de suspensão do juízo na ausência de provas é precisamente o que propõe um indiciarista, como Clifford. Na verdade,
é o género de atitude que temos relativamente às mais diversas matérias. James, todavia, discorda. Do seu ponto de vista, é
legítimo crer em Deus, quando a sua existência é intelectualmente indecidível, desde que a opção pela crença seja viva, forçosa e
momentosa.

Uma opção é viva quando não é uma mera hipótese intelectual vaga, mas antes algo que realmente nos importa: supostamente,
para quem se debate com a questão de Deus, a hipótese de acreditar ou não é para ela uma opção viva. Essa mesma pessoa pode
não se debater com a questão de acreditar ou não em Apolo, por exemplo. Uma opção é forçosa quando não tomar partido é o
mesmo que tomar partido. Suspender a crença quanto à existência de Deus tem o mesmo efeito que não acreditar na existência de
Deus, pensa James. Finalmente, uma opção é momentosa quando é de extrema importância, e não uma questão trivial.

James argumenta então que, reunidas estas condições, é epistemicamente legítimo acreditar sem provas, quando a questão é
intelectualmente indecidível. A razão é que não o fazer priva-nos de algo importante — uma vida religiosa, a perspectiva de uma
vida eterna — sem nada de importante nos dar em troca, excepto a garantia de não crer em falsidades. O argumento de James
pertence, pois, à mesma família da aposta de Pascal; mas em vez de se basear directamente na ideia de que, sob a hipótese de
Deus existir, os descrentes ou os agnósticos serão enviados para o inferno, indo os crentes para o paraíso, permite dar ênfase ao
ganho que o crente tem nesta vida. A ideia torna-se mais vívida se imaginarmos casos em que uma mentira piedosa poderá salvar
alguém de sofrimento inconsequente: por exemplo, uma mãe a quem, no leito de morte, se oculta a tragédia do seu filho que acaba
de falecer de acidente.

Contudo, o argumento de James enfrenta uma dificuldade relacionada. É verdadeiro que não dependemos de uma concepção
brutal de um Deus que quer ser objecto de culto na ausência de provas da sua existência, castigando quem suspender o juízo. Mas
estamos perante uma concepção provinciana da vida humana — como se uma vida humana plenamente realizada só pudesse
ocorrer na presença da fé. Pelo contrário, muitos artistas, cientistas, filósofos e filantropos viveram vidas preenchidas e felizes,
sem qualquer crença em divindades. Para essas pessoas, a questão de haver ou não divindades poderá ser intelectualmente
interessante, mas nenhuma consequência prática tem para qualquer lado. Isto porque nenhuma pessoa genuinamente boa pode
acreditar que Deus, se existir, é um ser malévolo, que castiga quem nele não acredita, ainda que essa pessoa tenha uma vida
virtuosa, sob todos os aspectos.

A ideia de que uma vida virtuosa não é possível sem crer em divindades é uma manifestação de provincianismo — ou de um mau
íntimo: alguém que só não trapaceia, mente, rouba e mata por ter medo de ser castigado na outra vida. Kant, que era religioso,
considerava que uma acção feita com vista à recompensa ou com medo do castigo não é moralmente correcta, ainda que
exteriormente o pareça. E não é preciso invocar Kant para compreender que quem não mata o seu semelhante por medo do
inferno e não por respeitá-lo, não é o género de pessoa que queiramos ter por semelhante.

James poderia aceitar que é possível ter uma vida compensadora e virtuosa sem qualquer crença religiosa, mas insistir que uma
vida religiosa permite a qualquer pessoa, por mais culturalmente carenciada que seja, o género de vida compensadora que um
artista ou cientista pode ter. A vida religiosa colocaria ao alcance de qualquer pessoa o género de vida compensadora a que, de
outro modo, só alguns poderiam almejar.

A ideia de que a religião permite às pessoas culturalmente mais carenciadas ter uma vida mais compensadora do que de outro
modo teriam é plausível. Tal como é plausível que a religião pode oferecer conforto emocional a pessoas cujas vidas são
desagradáveis em quase todos os aspectos. Contudo, este género de argumentação não é particularmente promissora, pois não só
implicaria que a religião seria apenas um paliativo para o infortúnio, como tornaria difícil explicar a fé de pessoas muitíssimo
cultas, como cientistas, filósofos, artistas ou outros intelectuais. A verdade é que tanto se encontra pessoas descrentes e crentes
entre os cultos como entre os incultos; e a verdade é que a vida religiosa tanto oferece conforto emocional como opressão.

James precisa de defender que a crença na existência de divindades é forçosa. Mas ou é forçosa porque se concebe Deus como um
ser castigador, como Pascal, e nesse caso aplica-se-lhe o mesmo contra-argumento; ou o é porque se tem uma concepção
provinciana, e historicamente falsa, do que é uma vida humana generosa, bem-aventurada, virtuosa e realizada, considerando
erradamente que sem a crença em Deus esse tipo de vida não é possível. Em qualquer caso, não temos razão para pensar que a
opção entre crer ou não em Deus é forçosa. Suspender o juízo por falta de provas só é equivalente a não crer quando a
consequência de ambas é aproximadamente igual. Mas as duas opções só são equivalentes caso um Deus ciumento castigue quem
nele não crê, ou caso nenhuma vida humana agnóstica ou ateia possa ser plena e digna. Quem rejeitar estas duas hipóteses, rejeita
a ideia de James de que a opção da crença é forçosa. Poderá até aceitar que é uma questão momentosa, que nos dispomos a
estudar e discutir com sobriedade, como estudamos e discutimos a cura do cancro, sem que tenhamos de acreditar sem provas.

Podemos insistir na ideia original de James concedendo que é perfeitamente possível ter uma vida humana digna e realizada sem
crer em Deus; mas sublinhar que, mesmo assim, acrescentar a crença religiosa a uma vida humana que já é digna e realizada sob
todos os outros aspectos é fazer algo de importância superlativa. Uma vida humana digna em todos os outros aspectos, mas a que
se acrescenta a crença religiosa, é uma vida ainda mais digna e rica, adquirindo uma textura e dimensão que nenhuma vida de
agnóstico pode ter. Neste sentido, portanto, é forçosa a opção entre crer ou não em Deus.

Concedendo que a opção é forçosa neste sentido, o problema é que agora o agnóstico ou o ateu têm uma resposta demasiado fácil.
Podem responder que só é forçosa a decisão de ter ou não uma vida de crente religioso porque ou é verdadeiro ou não é
verdadeiro que Deus existe. O que torna forçosa a opção é que se Deus existir, vivemos na verdade se formos crentes — e a
verdade é de importância primordial para seres como nós. Uma vida de crente não pode ser uma coisa boa por ser boa apenas
internamente — isto é, por fazer o crente sentir-se melhor. Isso torna de tal modo subjectiva a crença religiosa que faz dela uma
opção não momentosa mas mesquinha, ainda que seja forçosa: trata-se de escolher o que me faz sentir bem, como quem escolhe os
sapatos mais confortáveis, e não o que é superlativamente real e importante. Para que a minha escolha seja superlativamente
importante não pode ser apenas uma escolha do que me faz sentir bem. Tem de ser também uma escolha do que me conecta com
uma realidade de superlativa importância — recorde-se que o sentido do étimo da palavra religião é religação. É mesquinho
escolher uma vida religiosa pressupondo que a existência ou inexistência dessa realidade de superlativa importância é irrelevante
porque tudo o que conta é que me sinta bem. Escolher ou não escolher uma vida religiosa só é de suprema importância porque
isso me abre ou não a uma realidade de suprema importância.

Assim, a ideia é que, precisamente por prezar a verdade, o ser humano não deve aderir sem provas, sobretudo quando se trata de
matérias de importância superlativa. É verdadeiro que muitas vezes temos de assumir riscos epistémicos, mas estes casos só são
razoáveis quando há uma relação causal entre a crença e o que dela resulta: cremos, sem grandes provas, que somos capazes de
fazer um curso universitário, e isso motiva-nos de tal modo que contribui para o sucesso dos nossos estudos. No que respeita a
Deus, não há tal relação causal: crer em Deus não o faz existir magicamente. O único poder causal dessa crença diz respeito à
nossa vida, e não é óbvio que, sob a hipótese de Deus não existir, uma vida de crente seja realmente melhor do que uma vida
virtuosa e realizada, aberta à possibilidade de existir Deus, mas que não a aceita sem provas.

Assim, o argumento de James implica que a questão da existência ou inexistência de Deus tem prioridade sobre a opção de crer ou
não. Optar pela crença no caso de Deus não existir é tão grave quanto optar pela descrença caso Deus exista, e precisamente pela
mesma razão: porque em ambos os casos a crença é falsa. A nossa melhor atenção cognitiva deve, assim, dirigir-se para os
argumentos a favor e contra a existência de Deus, porque é isso que é decisivo; e sem argumentos suficientes para um ou outro
lado, a opção epistemicamente virtuosa é suspender o juízo e continuar a investigar.

James enfrenta outra dificuldade. Uma opção é forçosa quando não tomar partido é, na prática, a mesma coisa que tomar partido.
O problema é que não é fácil encontrar casos neutros de opções forçosas. Um caso de uma opção forçosa é alguém dar-nos um
prazo de dois dias para decidir comprar ou não uma casa, por exemplo. Mas estamos indecisos e deixamos passar o prazo. A
indecisão, neste caso, é equivalente à decisão de não comprar a casa. O problema deste tipo de exemplos é que só se aplica ao
Deus mesquinho referido. Pois seria como se Deus nos desse nesta vida a oportunidade de optar sem provas pela crença,
acabando-se o prazo quando morremos. Pelo contrário, um Deus razoável consideraria sensato que não decidíssemos tão
momentosa questão sem provas fortes; e se só na outra vida tais provas surgissem, essa seria a altura para crer na sua existência.

Este tipo de argumento põe em causa frontalmente a ideia central do fideísmo de que é virtuoso crer sem provas. O fideísta
poderia rejeitar o argumento por essa razão. Mas isto seria confundir as coisas. O argumento conclui que não há virtude em crer
sem provas, pois é isso mesmo que estamos a discutir. Se o fideísta discorda desta conclusão, tem de mostrar o que há de errado
com o argumento apresentado, e não apenas insistir que esta conclusão contraria a sua ideia de que é virtuoso crer sem provas.

Acresce que a ideia de que crer sem provas é virtuoso poderá ser uma forma subtil de impor a crença religiosa, um pouco como
jogar um jogo viciado em que se sair caras ganho eu, se sair coroas perdes tu. Pois se alguém declarar que algo existe, fica a
dever-nos evidentemente algumas provas, sobretudo se for algo momentoso e não uma trivialidade. Se essa pessoa declarar que
não tem provas, mas que é bom acreditar sem provas nisso que ela diz que existe porque nessa circunstância coisas maravilhosas
irão acontecer-nos, está a trapacear-nos. O que lhe pedimos, muito razoavelmente, foram provas. A sua resposta, muito
insensatamente, foi uma ameaça. Perante a incerteza da vida humana, sobretudo onde os níveis de bem-estar são muitíssimo
baixos (por falta de cuidados de saúde, protecção no emprego, recursos económicos adequados, etc.), este género de resposta
torna a aposta de Pascal muito vívida: nada se tem a perder e pode-se ganhar muito em crer sem provas. Mas o preço a pagar,
como vimos, é uma concepção de uma divindade brutal. Concepção que é difícil crer que uma pessoa genuinamente boa e
epistemicamente virtuosa possa aceitar.

Voltemos ao aspecto forçoso da opção quanto à crença na existência de Deus. É iluminante pensar noutros casos em que a opção é
forçosa. Por exemplo, não sabemos se conseguiremos realmente salvar uma criança que acaba de cair no rio; mas não decidir
tentar é igual a decidir não tentar. Por isso, a virtude exige que tentemos. Mas pensemos melhor no que está oculto neste tipo de
exemplo. Não seria uma exigência da virtude decidir tentar se fosse impossível ou quase impossível salvá-la; e ainda menos se ao
tentar fosse inevitável ou quase inevitável que nós mesmos pereceríamos, privando assim os nossos filhos do apoio que lhes
devemos. Isto significa que quando se pressupõe que crer ou não em Deus é uma opção forçosa é porque se aceita duas coisas, e
James só explicitou uma delas: aceita-se que a questão é intelectualmente indecidível, mas aceita-se também que o preço por
acreditar não é demasiado elevado. Ora, não podemos em rigor pressupor que crer é melhor, exista ou não Deus, do que não crer.
Clifford argumenta que crer na ausência de provas é sempre pior, porque contribui para a crendice, e a crendice tem
inevitavelmente, e a longo prazo, más consequências. Este argumento, que é crucial para a posição de Clifford, nunca é enfrentado
por James, que se limita a pressupor que crer em Deus é sempre melhor do que não crer.

James argumenta, com alguma plausibilidade inicial, que a posição de Clifford nos afasta da verdade, por estar demasiado
preocupado com o erro. Compara Clifford a um general que, por querer provas cabais da vitória antes de enviar as suas tropas,
nunca ganha qualquer batalha, porque nunca envia as suas tropas. A ideia é que por vezes é preciso aceitar o risco epistémico.
Clifford concorda com a ideia, mas rejeita que o risco epistémico implique crença sem provas: apenas implica que, quando é
necessário agir sem certezas, devemos agir em função do que é mais provável.

O problema é que nada disto se aplica à crença em Deus. Esta crença não é urgente: não temos de decidir, aqui e agora, crer ou
não crer em Deus: podemos perfeitamente continuar à procura. É o que fazemos com muitas outras crenças momentosas:
queremos saber o que poderá curar uma doença grave, por exemplo, e é extremamente difícil decidir. Mas se pararmos de tentar
decidir porque consideramos virtuoso o risco epistémico de apostar numa das hipóteses sem provas, não estamos a contribuir para
a descoberta da verdade, mas antes a dificultá-la. Se o que realmente nos interessa é saber se Deus existe ou não, e isso qualquer
crente terá de aceitar, a menos que tenha uma concepção de tal modo subjectiva da crença que torne irrelevante a existência de
Deus, não é uma boa ideia decidir de antemão e sem provas que existe. Se Deus realmente existir, acertámos na verdade por sorte
apenas, o que não constitui conhecimento — privámo-nos assim de conhecer uma verdade de superlativa importância. Se não
existir, fomos crédulos e impedimos a descoberta de que não existe. Assim, a acusação central que James faz a Clifford — que está
tão preocupado em evitar o erro que não permite acertar na verdade — aplica-se facilmente a James, que parece ter pensado que
tudo o que conta no que respeita à verdade é acertar nela, ainda que por acaso, e não conhecê-la.

Racionalidade distribuída

A objecção de Plantinga a Clifford é uma objecção geral a qualquer posição indiciarista. Consiste em defender que, pelo próprio
critério indiciarista, não devemos acreditar em coisa alguma sem provas; mas não há provas de que o indiciarismo seja verdadeiro;
logo, não devemos acreditar no indiciarismo.

Esta objecção depende, contudo, de uma concepção muito rígida de prova, concepção que o próprio Clifford não defendia.
Certamente que Clifford não pensava que o único género de provas eram provas matemáticas ou científicas. Em muitas matérias,
prova-se ideias argumentando, e os argumentos podem ser muito complexos. Aquilo a que Clifford claramente se opunha era a
crença sem provas, sem quaisquer razões, só porque se decide arriscar acreditar.
Quando perguntamos se a fé é aceitável na ausência de provas, o termo «aceitável», neste contexto, quer dizer «epistemicamente
legítimo». Esta expressão é melhor do que «prova», que tem um significado demasiado restrito. Mas não é fácil saber o que é
epistemicamente legítimo e o que o não é. Para esclarecer este conceito, podemos recorrer a alguns paradigmas de atitudes
epistemicamente legítimas e ilegítimas.

Antes, porém, é importante fazer notar que é argumentável que nem tudo o que é epistemicamente ilegítimo ou incorrecto é
moralmente ilegítimo ou incorrecto. Sem dúvida que há alguma conexão entre os dois conceitos; em alguns casos, uma atitude
pode ser moralmente incorrecta precisamente por ser epistemicamente incorrecta; Clifford, todavia, ou confundia ambos os
conceitos ou estabelecia entre ambos uma conexão excessivamente forte. O argumento de Clifford a favor da ideia de que é
sempre moralmente incorrecto acreditar em algo sem provas é que, mesmo no caso de uma crença trivial e meramente pessoal, o
facto de se acreditar sem provas torna-nos crédulos e isso acabará por ter efeitos moralmente maus. Isto é um exagero: é fácil
pensar em contextos em que ser crédulo não terá quaisquer consequências para a humanidade em geral: numa pequena ilha, um
ancião doente alimenta a crença injustificada de que os seus companheiros serão salvos, mas nada lhes diz e morre pacificamente.
O máximo que se pode defender é que na maior parte dos contextos é uma má ideia criar hábitos de credulidade, em vez de
hábitos de análise cuidadosa das coisas, porque as consequências, directas ou indirectas, a curto ou longo prazo, são quase
sempre desastrosas.

Por outro lado, podemos considerar que os deveres epistémicos — procurar honestamente a verdade, não ser tendencioso, etc. —
são casos especiais de deveres morais. Neste caso, é verdadeiro que qualquer violação de um dever epistémico é, eo ipso, a
violação de um dever moral. Mas isto é um pouco enganador, pois quer apenas dizer que descurar um dever epistémico é descurar
um dever moral: não quer dizer que, ao fazê-lo, descuramos um dever moral de outra categoria. Por isso, é menos enganador falar
apenas do que é epistemicamente legítimo ou não, em vez de usar a linguagem de Clifford, na qual não atender aos indícios é
moralmente incorrecto.

Voltemos ao esclarecimento do que é epistemicamente legítimo e ilegítimo, recorrendo a exemplos claros de ambos. Começando
pelo último caso, é claramente ilegítimo rejeitar quaisquer argumentos contra uma dada posição, ao mesmo tempo que se aceita o
mesmo género de argumentos a favor dela. Este tipo de ilegitimidade epistémica ocorre quando uma pessoa põe em causa a
ciência ou a lógica, por exemplo, quando estas parecem militar contra as suas crenças mais queridas, ao mesmo tempo que abraça
ambas calorosamente quando parecem militar a seu favor. Esta arbitrariedade é claramente ilegítima, epistemicamente, ainda que
não consigamos estabelecer condições necessárias e suficientes do que é uma atitude epistemicamente legítima. Se uma pessoa
considerar que acreditar sem provas só é epistemicamente legítimo no caso da crença religiosa, há alguma probabilidade de não
ser epistemicamente virtuosa. James, note-se, apresenta critérios suficientemente gerais que tornariam epistemicamente legítimo
ter qualquer crença, religiosa ou não, sem provas. (A dificuldade, como vimos, é que em todos os casos não religiosos a crença sem
provas só é legítima quando crer tem uma conexão causal com um resultado desejável, coisa que não há razões para pensar que
ocorre no caso da crença religiosa.)

Quanto à legitimidade epistémica, esta parece manifestar-se mais claramente quando alguém muda de ideias por se deparar com
razões adequadas para isso: por exemplo, o João pensava que a Francisca tinha ido ao cinema, mas ao chegar a casa encontra-a lá
e muda por isso de ideias.

Contudo, nem toda a mudança de ideias é epistemicamente legítima: só o é quando há razões adequadas para isso. Uma pessoa
que acreditava em Deus e deixa de acreditar só porque assistiu a uma palestra de uma hora sobre o tema poderá não ser
epistemicamente virtuosa, mas antes viciosa — neste caso, por ser leviana.

Assim, o problema é saber o que são «razões adequadas» para mudar de ideias. No caso do João, a razão adequada é ter visto a
Francisca em casa; mas a visão só em certos casos é fidedigna. Na seguinte imagem, por exemplo, a segunda linha parece maior
do que a primeira, mas ambas têm o mesmo comprimento:

Assim, nem sempre a simples visão nos dá razões adequadas para acreditar no que vemos: nos sonhos, também nos parece que
vemos muitas coisas, mas essas coisas podem não existir. Distinguir as condições em que os dados dos sentidos são fidedignos dos
casos em que não o são é por isso crucial.

A tentação a evitar aqui é pensar como os cépticos, que negam a possibilidade do conhecimento genuíno. Uma maneira de
argumentar a favor do cepticismo é que as ilusões cognitivas, como as visuais, são recorrentes e não temos um modo de ter a
certeza, perante uma dada crença ou percepção, se é uma ilusão ou não.

A primeira crítica a fazer ao argumento céptico é que o conceito de certeza é epistemicamente irrelevante e confuso. O conceito de
certeza pode ser entendido de duas maneiras. Por um lado, podemos conceber a certeza meramente como uma forte convicção.
Neste caso, a certeza é irrelevante para o que está em causa, porque se podemos estar enganados quando vemos, também
podemos estar enganados quando temos uma forte convicção de que não estamos enganados quando vemos. É argumentável que,
nesta acepção, a certeza é apenas mais um nível de ilusão epistémica — como se a forte convicção fosse garantia de que não
estamos enganados.

Outra maneira de conceber a certeza é pensar que se trata de estar certo, no sentido de acertar. Nesta acepção de certeza, por
definição, quando se tem a certeza de algo, é porque se acertou na verdade. Mas nesta acepção podemos sempre estar enganados:
quando pensamos que acertámos, podemos não ter acertado.

Assim, seja a certeza concebida do primeiro modo ou do segundo, é irrelevante para a discussão em causa. Parece relevante,
porque se confunde e mistura os dois sentidos: como se acertar implicasse uma convicção mais forte, e como se esta implicasse
acertar. Mas isto é falso: na melhor das hipóteses, uma convicção mais forte, que se mantém depois de uma investigação
cuidadosa, está correlacionada com maior probabilidade de se ter acertado, o que é muito diferente de implicar que se acertou.

Seja qual for a concepção de legitimidade epistémica que tenhamos, a mera certeza não parece relevante: podemos ter a certeza
por sermos casmurros, por exemplo, defendendo firmemente uma ideia contra a qual há excelentes indícios ou argumentos.
Também a mera possibilidade de estarmos enganados, explorada pelo céptico, não parece relevante para a ilegitimidade
epistémica: do facto de podermos estar enganados não se segue que estamos enganados, e do facto de não se poder garantir que
não estamos enganados não se segue que qualquer maneira de investigar as coisas e de formar crenças tem o mesmo grau de
legitimidade epistémica.

Não parece haver receitas automáticas para determinar quando um dado processo de formação de crenças é epistemicamente
legítimo, e este é um dos problemas centrais da epistemologia da fé. Quem defende o indiciarismo, como Clifford, tende a pensar
que nenhuma crença é epistemicamente legítima sem provas, incluindo as crenças religiosas, porque tem em mente o género de
processo de estabelecimento de verdades que se usa em medicina, física, biologia, matemática, etc. Quem defende a posição
contrária tem em mente os processos mais quotidianos de formação de crenças, que incluem coisas como a experiência pessoal, a
tradição e a confiança nos outros, além do poder motivador das crenças.

O indiciarismo está por vezes associado a uma certa ingenuidade epistémica. A essa ingenuidade epistémica podemos chamar o
mito do investigador solitário. Esta ingenuidade epistémica dá origem a uma versão infantil de indiciarismo, que é fácil refutar: a
ideia de que cada um de nós só tem legitimidade epistémica para aceitar o que nós mesmos somos capaz de provar. Muitos crentes
consideram, com razão, que esta posição é insustentável, além de algo cega.

Para ver porquê, considere-se o memorável ensaio de George Orwell, de 1946, em que ele se pergunta «Como sei que a terra é
redonda?». Rapidamente nos apercebemos que só por testemunho sabemos que a Terra é esférica, ou que a água é H2O: os
professores ou cientistas escreveram isso ou disseram isso, e nós acreditamos. Não só não temos provas directas dessas coisas,
como a maior parte de nós não saberia estabelecer tais coisas, mesmo que tivéssemos os meios para isso: eu, por exemplo, não
saberia estabelecer que a água é H2O, mesmo que tivesse acesso a um laboratório de química. E, apesar de poder viajar num avião
ou outro meio de transporte para poder ver directamente que a Terra é esférica, não saberia dizer se o que me pareceria
visualmente evidente não ficaria a dever-se a alguma ilusão perceptiva, dado que neste caso eu estaria muito afastado do meu
ambiente perceptivo comum.

Estas considerações parecem militar contra Clifford, mas a sua posição é mais sofisticada do que isso. Na segunda parte do seu
ensaio, Clifford aborda explicitamente o que acontece quando temos de nos apoiar em terceiros para justificar as nossas crenças.
Este problema torna-se mais vívido se compararmos estes dois casos: no primeiro, a Josefa vem do supermercado e diz ao marido:
«Afinal, não havia leite, esgotou-se»; no segundo, a Marília vem também do supermercado e diz ao marido «Afinal, não havia leite;
vieram uns extraterrestres e levaram-no todo». No primeiro caso, o marido aceita o testemunho da Josefa, sem mais perguntas, e
será capaz de dizer com toda a segurança a outra pessoa, alguns minutos depois, que não há leite no supermercado porque se
esgotou. Mas, no segundo, o marido da Marília fica estupefacto e começa imediatamente a fazer perguntas; muitas perguntas.
Qual é a diferença?

No primeiro caso, o testemunho da Josefa é banal; no segundo, não é banal. Aceitamos informações banais por testemunho, sem
mais perguntas; mas quando o testemunho transmite supostas informações que não são banais, queremos razões mais fortes do
que a mera confiança na pessoa. Neste último caso, queremos algumas razões para pensar que a pessoa não está a enganar-nos;
ou que não se enganou ela, sendo vítima de uma ilusão. O caso caricatural mais óbvio que esclarece o que está em causa é o
seguinte: passamos na rua e perguntamos as horas a alguém, e confiamos na resposta; mas perguntamos a essa mesma pessoa se
há extraterrestres e, seja a resposta afirmativa ou não, não confiamos na resposta. Porquê? Clifford viu porquê: porque num caso a
pessoa está a dizer-nos algo que nós próprios sabemos como podemos saber; no outro, está a dizer-nos algo que nós mesmos não
sabemos como poderíamos saber. Acreditar no testemunho de alguém que afirma saber algo que não fazemos ideia como nós
mesmos poderíamos saber é credulidade; e, claro, a credulidade é mais tentadora quando o que essa pessoa nos diz é o que
queremos ouvir.

Contudo, não é num certo sentido verdadeiro que muitos de nós não fazem ideia como seria possível descobrir a composição
química da água? No entanto, confiamos no testemunho dos cientistas. Será isso credulidade? Se não o for, por que razão seria
credulidade acreditar num profeta que afirma ter tido contacto directo com uma divindade?

Há duas respostas a este desafio. Primeiro, o género de experiência em causa é muitíssimo diferente. Num caso, trata-se apenas
de estudar química, e isso não exige quaisquer capacidades especiais da nossa parte. Quem estuda química tem um acesso
privilegiado à verdade, mas apenas num sentido fraco: no mesmo sentido em que se eu estiver a ver uma árvore e a outra pessoa
não, eu tenho um acesso privilegiado à árvore — mas a outra pessoa teria exactamente o mesmo acesso caso estivesse na minha
situação, vendo a árvore. Contudo, no que respeita a subir a uma montanha e ouvir a palavra de Deus, as coisas são muito
diferentes: não basta subir e ficar à espera. Milhões de pessoas podem fazer isso e nenhuma voz ouvir. Quem ouve tais vozes tem
um acesso privilegiado à intimidade dos deuses, acesso que os outros não têm.

Assim, a primeira resposta é que seremos crédulos se acreditarmos num testemunho que pressupõe que a outra pessoa tem um
acesso privilegiado à verdade, no sentido forte. Isto é credulidade porque a pessoa poderá ser vítima de alucinação, ainda que seja
sincera; ou poderá estar a mentir, por qualquer motivo. Acresce que qualquer pessoa que pense ouvir a voz de uma divindade terá
pelo menos de levantar a hipótese de estar a ser vítima de ilusão, se for epistemicamente virtuosa, tal como olhamos com
estupefacção quando vemos coisas incomuns — uma mulher a ser aparentemente serrada ao meio, num circo, e que, no entanto,
continua a mexer os pés no outro lado da caixa. O que poderá fazer-nos aceitar prontamente a nossa experiência religiosa, sem um
exame cuidadoso, ao mesmo tempo que não aceitamos a nossa experiência visual de ver uma mulher ser serrada ao meio e
sobreviver, é a credulidade: a vontade de acreditar no que gostaríamos que fosse verdadeiro.

Um antídoto à credulidade é o seguinte: quanto mais gostaríamos que algo fosse verdadeiro, mais razões temos para ver
cuidadosamente se é mesmo verdadeiro, ou se estamos a enganar-nos a nós mesmos, nomeadamente por sermos vítimas da
superstição comum de que acreditar em algo muito firmemente contribui para a sua verdade, ainda que nenhuma relação causal
exista entre uma coisa e outra. Rejeitar este princípio é incompatível com a virtude epistémica.

A segunda resposta é que a estrutura epistémica da comunidade em causa é crucial. Tenho razões para aceitar as afirmações de
um cientista, afirmações que pessoalmente não posso testar, se as próprias instituições científicas tiverem uma estrutura
epistémica adequada. Essa estrutura epistémica resume-se na máxima de John Stuart Mill:

«As nossas crenças mais justificadas não têm qualquer outra garantia sobre a qual assentar, senão um convite
permanente ao mundo inteiro para provar que carecem de fundamento» (Sobre a Liberdade, 1859, p. 58).

Dada a falibilidade humana, precisamos de testar cuidadosa e permanentemente as nossas crenças — todas elas. Quando as
instituições têm este género de estrutura epistémica, convidando o mundo inteiro, permanentemente, a provar que as suas
afirmações carecem de fundamento, dão-nos razões para aceitá-las. Isto porque torna menos provável que resultem da ilusão ou
da mentira, pois se podem ser continuamente postas em causa e discutidas abertamente, é mais provável que as ilusões e os erros
sejam detectados. Não significa, contudo, que tais afirmações são imutáveis: na verdade, no caso das instituições científicas, é o
próprio facto de terem permitido ao longo do tempo a revisão das crenças científicas fundamentais que nos dá razão para aceitar
as afirmações científicas actuais — porque quando houver boas razões para pensar que são falsas, essas razões serão difundidas e
discutidas e assumir-se-á que são falsas.

Note-se que isto não significa que os membros dessas instituições sejam tão abertos à discussão quanto seria desejável. Alguns
poderão não o ser; mas isso é irrelevante se outros o forem e se estes não forem impedidos de apresentar as suas ideias
discordantes. Analogamente, numa instituição que não permite a crítica aberta, alguns dos seus membros podem ser-lhe
favoráveis — mas isso não torna as afirmações dessa instituição dignas de crédito. Só o serão se as vozes discordantes não forem
silenciadas, mas antes acolhidas, levadas a sério e frontalmente discutidas.

Assim, a nossa estrutura epistémica é eminentemente social não apenas no sentido trivial de que só em conjunto sabemos o que
nenhum de nós sabe isoladamente: não se trata apenas de precisarmos de vários cérebros para armazenar quantidades
gigantescas de informação, como quem precisa de vários armazéns de fruta. A nossa estrutura epistémica é eminentemente social
no sentido mais profundo de precisarmos de vários olhares críticos para diminuir a probabilidade de sermos vítimas de erro e
ilusão — diminuir, note-se, e não eliminar. Em seres falíveis, dificilmente haverá maneiras de eliminar o erro e a ilusão. Mas se
tentarmos activamente encontrar os erros e ilusões uns dos outros, teremos mais probabilidades de os descobrir.

Mesmo intuitivamente, sem qualquer discussão epistemológica sobre as consequências da nossa óbvia falibilidade, damos bastante
importância ao controlo social dos erros. Isto é bom, por um lado, mas mau, por outro. É bom porque nos faz dar muita
importância ao que as outras pessoas afirmam; e se o que eles afirmam colide com o que nos parece que é verdade, desconfiamos
que poderemos ter errado. Mas também é mau porque uma crença amplamente partilhada socialmente pode estar apesar de tudo
errada, tendo razão o ser humano isolado que contraria o que todos os outros aceitam. Comecemos com o primeiro caso.

Imagine-se que, sem a Josefa saber, uma equipa de psicólogos decide fazer uma experiência com ela. Falam com as pessoas do
escritório de advogados onde trabalha e, na hora do almoço, transformam o escritório num consultório de dentista. Quando ela
chega do almoço, entra no prédio, entra no elevador e carrega no número 5. Chegado ao andar correcto, entra no seu escritório e
fica perplexa: não vê o que esperava ver, mas sim um consultório desconhecido de dentista. A sua primeira reacção será
provavelmente duvidar de que esteja no andar correcto. Isso parece-lhe mais provável, e é, do que a hipótese doida de o escritório
onde trabalha há mais de cinco anos ter desaparecido durante a hora do almoço. De modo que sai do consultório e volta ao
elevador. Para seu espanto, está mesmo no quinto andar. Agora as coisas começam a ficar mais estranhas para ela. O que poderá
haver de errado? Fica ligeiramente desorientada: poderão todas as suas memórias de que trabalha naquele prédio estar erradas?
Será que está a enlouquecer?

Um pouco desorientada, considera então que poderá ter-se enganado no prédio. Entra no elevador, chega ao rés-do-chão e sai do
prédio. O resultado é assustador: é realmente aquele o prédio em que ela trabalha. Pelo menos, tanto quanto se recorda. Muito
provavelmente, a Josefa voltará a entrar no elevador, porque duvida agora de que tenha realmente estado ao quinto piso, apesar
de o ter verificado há menos de cinco minutos. Irá de novo ao quinto piso e, ao ver uma vez mais o estranho consultório de
dentista, começará a duvidar de que o seu escritório de advogados esteja afinal no quinto andar. Não seria antes no 15.º?

O significado desta história é que o nosso contexto epistémico quotidiano é feito de controlos e ajustes. Isso inclui não apenas a
observação directa das coisas, mas também as informações que os outros nos transmitem. Em nenhuma acreditamos em absoluto;
a todas damos algum crédito. Quando vemos algo à nossa frente, em certas condições, acreditamos que aquilo está mesmo ali.
Quando vemos uma mulher a ser serrada num número de circo, contudo, não acreditamos que está a ser serrada. Quando falamos
com as pessoas, acreditamos à partida no que nos dizem; mas muitas vezes pensamos que têm razões para nos mentir, ou que
estão enganadas. Quando nos lembramos de coisas, como o andar em que trabalhamos há cinco anos, acreditamos na nossa
memória; mas por vezes temos razões para duvidar dela. Quando ouvimos vozes, acreditamos geralmente que algumas pessoas
estão do outro lado a conversar; mas desconfiamos que podemos estar a ficar esquizofrénicos se ouvirmos vozes num deserto ou
noutro lugar sem pessoas à nossa volta.

A ciência e a filosofia nada fazem de extraordinário excepto alargar esta prática epistémica de controlos e ajustes a questões que
são mais difíceis de conhecer. Mas o princípio geral é o mesmo: avanços e recuos, controlos e ajustes. Nem crendice nem
cepticismo, mas algo no meio: estudar pacientemente as coisas, formular hipóteses, testar ideias e argumentos. Leva-se a sério o
que nos diz um colega cientista, mas precisamos conseguir reproduzir a experiência que diz ter feito ontem e ter dado um
resultado extraordinário; precisamos ver o que poderá ter corrido mal, onde poderá esconder-se uma ilusão. Se o resultado é bom
de mais para ser verdadeiro, é provável que seja realmente bom de mais para ser verdadeiro — e somos tanto mais rigorosos nos
testes que fazemos e exigimos.

Passemos agora para o segundo caso. As pessoas mentem e enganam-se. Mas se forem erros epistemicamente comuns, as outras
pessoas irão ter a ilusão de estar a confirmá-los, precisamente por serem comuns. Sem estudar cuidadosamente astronomia,
nenhum ser humano tem razões directas e óbvias para pensar que a Terra se move, ou que é esférica. E terá uma razão acrescida
para pensar que está imóvel: todas as outras pessoas à sua volta pensam o mesmo. Parece improvável que todas estejam erradas,
ainda que o estejam de facto. Nessa circunstância, não é óbvio que seja epistemicamente vicioso um ser humano crer que a Terra
está imóvel e que não é esférica, mas antes plana, ainda que tais crenças sejam falsas.

Se aceitarmos isto, teremos de aceitar a tese de Plantinga: em certos contextos é epistemicamente legítimo acreditar em Deus sem
provas — ou melhor, sem provas cabais. Na realidade, haverá nesse contexto o mesmo género de provas não cabais que temos
para acreditar que a Terra é plana e está imóvel: todas as pessoas à nossa volta acreditam em Deus e podemos ter experiências
religiosas ao contemplar a natureza ou ao ler livros sagrados. É o que acontece a uma criança de doze anos, por exemplo, que
cresceu numa comunidade de adoradores do deus Rá. Todas as pessoas à sua volta acreditam nessa divindade e ela sente uma
comunhão com Rá em certas circunstâncias. Quando lê os textos sagrados, sente certas emoções que interpreta como um contacto
com Rá. Ninguém na sua comunidade põe em causa a existência nem as intervenções milagrosas de Rá. Ela acredita em Rá, e a
sua crença não parece epistemicamente ilegítima.

Diversidade epistémica

As considerações da secção anterior dão uma imagem da legitimidade epistémica muito diferente do que por vezes se pensa. A
ideia de que somos agentes epistémicos sociais e de que estamos continuamente a fazer controlos e ajustes nas nossas crenças
colide com um ponto de vista comum, na história da filosofia, no que respeita à justificação última das nossas crenças. Esse ponto
de vista tradicional tem a designação de fundacionalismo. A ideia é que as nossas crenças só têm justificação, na sua maioria,
porque se baseiam noutras, das quais são inferidas. Assim, acreditamos que não nascemos ontem, por exemplo, porque nos
lembramos de existir há vários anos. Portanto, a crença de que não nascemos ontem baseia-se noutras crenças. Mas nem todas as
crenças poderão basear-se noutras, sob pena de regressão infinita; logo, algumas crenças são básicas: crenças que não se baseiam
noutras.

Às crenças básicas que são epistemicamente legítimas chama-se crenças apropriadamente básicas. Determinar que crenças são
apropriadamente básicas é o que o fundacionalista terá de fazer. Quando o fundacionalista considera que essas crenças básicas
não incluem senão crenças empíricas, é um empirista; quando considera que só incluem crenças que não são empíricas, é um
racionalista.

O fundacionalismo é um ponto de vista muito natural. E parece particularmente apelativo a quem tem uma mentalidade científica.
Neste caso, a ideia é que as crenças apropriadamente básicas serão perceptivas. A ciência é então vista como um desenvolvimento
de teorias que se baseiam em crenças perceptivas apropriadamente básicas. Suspeita-se que poderá haver algo de errado nesta
ideia quando consideramos que a agricultura empírica, pré-científica, se baseia em crenças perceptivas básicas, mas não tem o
poder explicativo nem o grau de sofisticação e precisão que permita afirmar que é científica. Um agricultor empírico sabe como
cultivar um terreno, mas não sabe explicar por que razão fazendo as coisas de uma maneira tudo corre bem, mas tudo corre mal se
fizermos de outra. Um agricultor científico sabe explicar, pelo menos parcialmente, por que razão as coisas funcionam de uma
maneira e de outra não.

O que faz a diferença é que a agricultura científica resulta de se testar explicitamente ideias diferentes e de se procurar
activamente explicações melhores, ao passo que a agricultura empírica consiste quase exclusivamente na aceitação do que a
tradição nos ensinou a fazer, e no que podemos ver sem recorrer à observação sistemática nem a testes e controlos explícitos.
Assim, o que parece crucial é o carácter activo e temporal dos nossos procedimentos epistémicos, num caso, e passivo e
atemporal, no outro. O que parece crucial não é, então, o carácter apropriadamente básico das crenças de partida, nem o seu
carácter observacional, mas antes a atitude activa de procurar controlos e ajustes, ao longo do tempo.

Se rejeitarmos o fundacionalismo, contudo, não teremos de dizer que a estrutura das nossas crenças é viciosamente circular?
Afinal, se não há crenças apropriadamente básicas com base nas quais estabelecemos as outras, o que estabelece a verdade de
uma crença? Chama-se coerentista à ideia de que as nossas crenças podem justificar-se entre si sem que tal círculo seja vicioso.
Na teoria coerentista pode-se aceitar que algumas crenças são mais básicas ou elementares do que outras; mas nega-se que
existam crenças rigorosamente básicas, com base nas quais todas as outras se justifiquem.

O caso da Josefa, acima, ajuda a compreender o coerentismo: em alguns contextos, confiamos na nossa memória; noutros, pomos a
memória em causa. Há uma dialéctica contínua entre o que está em causa, o contexto em que estamos e muitas outras crenças
relacionadas com o que está em causa. Quotidianamente, não parece sensato pôr em causa que a Terra está imóvel; mas a
continuação do nosso estudo da natureza pode fazer-nos rever esta crença. Para o fazermos, contudo, teremos de ter um conjunto
de outras crenças que julgamos mais sólidas do que essa: podemos rever qualquer crença, mas não as revemos todas ao mesmo
tempo nem à toa, sem ter em consideração as outras crenças relacionadas. E este processo de rever crenças é contínuo,
decorrendo ao longo do tempo.

Porque somos falíveis, a virtude epistémica exige que estejamos dispostos a pôr em causa as nossas crenças, incluindo as mais
queridas. E é difícil imaginar contextos epistémicos nos quais a falibilidade humana não seja evidente. Contudo, em muitos
contextos epistémicos, a falibilidade humana é objecto de ocultação, fingindo-se que certas pessoas ou instituições são infalíveis,
sendo impróprio e até ofensivo e blasfemo pôr em causa o que essas pessoas e instituições afirmam. Se levarmos a sério a
falibilidade humana, um agente terá tanto menos legitimidade epistémica para aceitar o que afirma um grupo de pessoas quanto
mais essas pessoas procuram impedir que as suas afirmações sejam postas em causa. E, em muitos casos, basta que nos
perguntemos se as pessoas que afirmam algo não poderão estar enganadas para destruir a aparência de autoridade epistémica
que fingem deter.

Considere-se o Adelino. Vive numa comunidade tradicional, sem conhecimentos científicos. Não faz a mínima ideia sobre a
constituição da água, nem sobre a natureza do Sol. Ignora que a Terra não está imóvel, e parece-lhe óbvio que está imóvel. Mas
mesmo ele sabe que somos falíveis, pois muitas vezes lhe parecia ver ao longe alguém, quando afinal era só uma árvore; ou parece
recordar-se de ter visto uma árvore num dado lugar, e depois descobre que afinal estava noutro. Além disso, vê que o mesmo
ocorre com as outras pessoas da sua comunidade. Por isso, se reflectir cuidadosamente, verá que não é só ele que não tem
realmente razões de muito peso para pensar que a Terra está imóvel: ninguém na sua comunidade as tem. Com respeito a uma
crença inócua como esta, o Adelino talvez esteja disposto a abandoná-la, se com o decorrer do tempo começar a ter razões para
pensar que é falsa. E se não estiver disposto a isso, será epistemicamente vicioso.

Se considerarmos agora o género de interlocutor que Clifford tem em mente, vemos muitas diferenças. Clifford fala para ingleses
do séc. XIX. Nesta altura, muitas crenças tradicionais foram postas em causa, à medida que os estudos cada vez mais complexos
prosseguiam. Neste contexto epistémico, já não é verdadeiro que toda a gente pensa que Deus existe, por exemplo. Neste
contexto, muitos estudiosos declaram-se descrentes. Neste contexto, nenhum Adelino, educado na fé cristã, pode ficar indiferente
perante a hipótese de estar enganado quando pensa que a divindade cristã existe; e se o ficar, é porque não é epistemicamente
virtuoso.

O primeiro resultado desta análise é que aceitar a tese de Plantinga tem consequências menos fortes do que se poderia pensar.
Tudo o que Plantinga defende é que em certos contextos é epistemicamente legítimo crer em Deus sem provas. Mas não mostra
que é epistemicamente legítimo crer em Deus sem provas num contexto em que muitos outros agentes epistémicos põem a
existência de Deus em causa. Só conseguiria mostrar isso se conseguisse mostrar que as crenças ateias não devem ser tidas em
conta pelos crentes, por qualquer razão. Mas que razão poderemos invocar?

Podemos defender que falta aos descrentes uma faculdade especial, o sensus divinitatis; ou que esta faculdade foi corrompida pelo
pecado. O problema de qualquer uma destas ideias é não ser mais evidentemente verdadeira do que a hipótese de que são as
pessoas crentes que são vítimas de ilusão, ou que são epistemicamente viciosas, crendo ser verdadeiro o que lhes dá jeito crer que
é verdadeiro.

Esta será outra discussão; para já, importa apenas mostrar o papel da diversidade e da tolerância na nossa estrutura epistémica. A
diversidade de pontos de vista é uma ameaça a sistemas de crenças que se protegem precisamente porque as pessoas que têm
essas crenças desconfiam que são falsas, mas gostariam que fossem verdadeiras. É difícil conceber qualquer virtude epistémica
nesta atitude. Trata-se tão-somente de evitar o incómodo de ter de mudar de ideias. Quem crê sinceramente que as suas ideias são
verdadeiras não pode sentir-se assustado quando alguém as põe em causa. E quem ao mesmo tempo crê na sua óbvia falibilidade
epistémica, quererá pô-las em causa, pois se não resistirem ao exame crítico é porque são provavelmente falsas e devem ser
abandonadas.

A diversidade epistémica é por isso saudável, e terá de ser acolhida com agrado por quem for epistemicamente virtuoso. Cada um
de nós pode pôr em causa as ideias em que acredita, mas a melhor pessoa para o fazer é o nosso semelhante que desde o início
não acredita nessas ideias. Assim, qualquer crente epistemicamente virtuoso acolhe com agrado os descrentes que argumentam
contra a sua fé; e qualquer descrente epistemicamente virtuoso acolhe com agrado os crentes que argumentam a favor da fé. O
valor epistémico da diversidade de opiniões é permitir que as ideias mais díspares sejam defendidas por quem genuinamente
acredita nelas. E o primeiro sinal de vício epistémico é a falta de tolerância, que se revela na vontade de eliminar ou silenciar
quem pensa de maneira diferente de nós, ou na manipulação da discussão, tornando-a um exercício performativo que visa cativar e
seduzir, e não descobrir a verdade e detectar o erro.

Admitindo que James e Plantinga conseguem resolver as dificuldades discutidas, o que se segue da aceitação das suas posições é a
legitimidade epistémica de crer sem provas; não se segue das suas posições a legitimidade de crer com imensa convicção sem
provas. Se considerarmos que crer com imensa convicção é constitutivo da fé, então nenhum destes dois filósofos foi bem-sucedido
em defender a legitimidade epistémica da fé sem provas.

Conclusão

Ambrose Bierce (1842–1914) definiu a fé como «Crença sem indícios no que diz quem fala sem conhecimento de coisas sem
paralelo».1 Esta humorística definição caracteriza bem a atitude de muitos descrentes, que consideram por vezes a fé um
paradigma de vício epistémico. Muitos crentes, por sua vez, consideram que esta atitude é insensível a realidades mais
importantes e profundas, incluindo os aspectos vivenciais de quem tem uma vida e atitude religiosa. O exame preliminar aqui
realizado de algumas ideias e conceitos centrais desta área poderá ajudar crentes e descrentes a discutir melhor o tema. Outro
não era o objectivo.

2

A ÉTICA DA CRENÇA
W. K. CLIFFORD

1. O dever de investigar

Um armador preparava-se para enviar para o mar um navio com emigrantes. Sabia que o navio estava velho e tinha defeitos de
construção; que conhecera já muitos mares e climas e teve de ser reparado muito mais de uma vez. Alguém sugeriu ao armador
que o navio talvez não estivesse em condições de navegar. Estas dúvidas pesavam-lhe na consciência e deixavam-no infeliz; pensou
que talvez devesse mandar inspeccionar e renovar completamente o navio, embora isto provavelmente ficasse bastante caro. Antes
de o navio zarpar, contudo, o armador conseguiu deixar para trás estes pensamentos melancólicos. Disse para consigo que o navio
enfrentara com êxito tantas viagens e resistira a tantas tempestades que não havia razão para supor que não regressaria ileso
também desta viagem. O armador confiaria na providência, que seguramente não deixaria de proteger todas aquelas infelizes
famílias que abandonavam a pátria em busca de uma vida melhor alhures. Silenciaria todas as dúvidas mesquinhas acerca da
honestidade dos construtores e dos empreiteiros. Assim, alcançou uma certeza sincera e confortável de que o seu navio era
completamente seguro e estava em condições de navegar; viu-o partir com despreocupação e desejos caridosos de que os exilados
fossem bem-sucedidos no novo e estranho lar que os esperava; e recebeu o dinheiro do seguro quando o navio se afundou em
pleno mar sem deixar rasto.

O que diremos do armador? Seguramente, que é muitíssimo culpado pela morte daqueles homens. Admitindo-se que acreditava
sinceramente no bom estado do seu navio, a sinceridade da sua convicção, porém, não lhe pode valer de maneira alguma, porque
não tinha o direito de acreditar com base nos indícios de que dispunha. Não adquiriu a sua crença por mérito honesto, através da
investigação paciente, mas silenciando as suas dúvidas. E embora no final a sua certeza sobre o assunto fosse porventura tão
grande que não era capaz de pensar de outra maneira, temos de o considerar responsável pelo sucedido, na medida em que se
colocou deliberada e voluntariamente naquele estado de espírito.

Alteremos um pouco a história e suponhamos que o navio não estava, afinal, em mau estado; suponhamos que fez a viagem em
segurança, e muitas outras viagens após aquela. Será que isso diminui a culpa do seu proprietário? Nem um pouco. Quando se
pratica uma acção uma vez, esta é correcta ou incorrecta para sempre; nenhuma falha acidental das suas boas ou más
consequências pode alterar isso. O homem não seria inocente; apenas não teria sido descoberto. A questão do correcto e do
incorrecto tem a ver com a origem da crença do armador, e não com o seu conteúdo; não é a crença que conta, mas o modo como a
adoptou; não se trata de a crença ser afinal verdadeira ou falsa, mas de o armador ter ou não o direito a acreditar com base nos
indícios de que dispunha.

Era uma vez uma ilha onde alguns dos habitantes seguiam uma religião que não pregava a doutrina do pegado original nem a
doutrina do castigo eterno. Espalhou-se a suspeita de que os seguidores desta religião se tinham servido de meios desonestos para
ensinar as suas doutrinas às crianças. Acusaram-nos de violar as leis do país de maneira a afastar as crianças da vigilância de
quem tinha a sua custódia natural e legal; e até de as roubar e manter escondidas dos amigos e familiares. Algumas pessoas
formaram uma associação com o objectivo de provocar a agitação do público a respeito deste assunto. Publicaram acusações
graves contra cidadãos individuais do mais elevado estatuto e reputação, e fizeram tudo o que estava em seu poder para lesar
estes cidadãos no exercício das suas profissões. Fizeram tamanho barulho que foi nomeada uma comissão para investigar os
fac tos; mas após a comissão ter averiguado cuidadosamente todos os indícios que se podia obter, parecia que os acusados
estavam inocentes. Não só foram acusados com base em indícios insuficientes, como os indícios da sua inocência eram tais que os
agitadores os podiam ter facilmente obtido, se tivessem procurado fazer uma investigação imparcial. Após estas revelações, os
habitantes daquele país passaram a encarar os membros da associação agitadora não só como pessoas em cujo discernimento não
se devia confiar, mas também como indivíduos que não mais podiam considerar honestos. Pois embora acreditassem sincera e
diligentemente nas acusações que fizeram, não tinham todavia o direito de acreditar com base nos indícios de que dispunham. As
suas convicções sinceras, em vez de merecidas pela investigação paciente, foram roubadas, dando ouvidos à voz do preconceito e
da paixão.

Introduzamos uma variação também neste caso e suponhamos, deixando o resto na mesma, que uma investigação ainda mais
meticulosa provava que os acusados eram realmente culpados. Faria isto diferença alguma para a culpa dos acusadores?
Evidentemente que não; a questão não é a de a sua crença ser ou não verdadeira, mas a de a terem ou não sustentado sem razões
adequadas. Sem dúvida diriam: «Agora vêem que afinal de contas tínhamos razão; talvez para a próxima acreditem em nós.» E
talvez acreditassem neles, mas não se tornariam homens honestos por causa disso. Não estariam inocentes, apenas não teriam
sido descobertos. Se cada um deles, sem excepção, decidisse examinar-se in foro conscientiae, saberia que tinha adquirido e
acalentado uma crença, quando não tinha o direito de acreditar com base nos indícios de que dispunha; e assim saberia ter feito
uma coisa incorrecta.

Dir-se-á, todavia, que em ambos estes casos hipotéticos não se considera errada a crença mas a acção que dela decorre. O
armador pode afirmar: «Tenho a absoluta certeza de que o meu navio está em bom estado, mas ainda assim sinto que é meu dever
mandar examiná-lo, antes de lhe confiar as vidas de tanta gente.» E poder-se-ia dizer ao agitador: «Por muito convencido que
estejas da justeza da tua causa e da verdade das tuas convicções, não devias ter atacado publicamente o carácter de uma pessoa
antes de teres examinado os indícios de ambos os lados com a máxima paciência e cuidado.»

Em primeiro lugar, admitamos que, no que diz respeito ao nosso assunto, esta perspectiva é correcta e necessária; correcta,
porque mesmo quando um homem tem uma crença tão firme que o torna incapaz de pensar de outra maneira, continua a ter
escolha relativamente à acção que a crença lhe sugere e, portanto, não pode escapar ao dever de investigar o fundamento da força
das suas convicções; e necessária, porque aqueles que não são ainda capazes de controlar os seus sentimentos e pensamentos
precisam de uma regra clara para lidar com actos inequívocos.

Mas tendo-a formulado como necessária, torna-se claro que não é suficiente, e que é preciso complementá-la com o nosso juízo
anterior. Pois não é possível separar assim a crença da acção que aquela sugere, de maneira a condenar uma, mas não a outra.
Ninguém que sustente uma crença forte sobre um dos lados de uma questão, ou mesmo deseje sustentar uma crença sobre um
desses lados, pode investigá-la com a mesma imparcialidade e meticulosidade que teria se realmente duvidasse e fosse isento; pelo
que a existência de uma crença que não é sustentada por uma investigação imparcial torna um homem inapto para a realização
deste dever necessário.

Tão-pouco é uma crença aquilo que não influencia de modo algum as acções de quem o sustenta. Quem verdadeiramente acredita
naquilo que o encoraja a realizar uma acção contemplou já a acção com um desejo intenso, já a realizou no seu coração. Se uma
crença não se realiza imediatamente em acções inequívocas, é reservada para orientação no futuro. Passa a fazer parte daquele
agregado de crenças que é o elo entre a sensação e a acção em cada momento de todas as nossas vidas, e que está de tal maneira
organizado e compactado que nenhuma parte deste se pode isolar do resto, cada novo acrescento modificando a estrutura do todo.
Nenhuma crença genuína, por mais superficial e fragmentária, é, em circunstância alguma, realmente insignificante; prepara-nos
para receber mais crenças semelhantes, confirma as crenças semelhantes anteriores, e enfraquece outras; e assim, gradualmente,
estabelece um fio condutor implícito nos nossos pensamentos mais íntimos, que pode um dia manifestar-se em acções inequívocas
e deixar a sua marca no nosso carácter para sempre.

Em circunstância alguma a crença de um homem é um assunto privado, que apenas diga respeito ao próprio. As nossas vidas
guiam-se por essa concepção geral da ordem das coisas que a sociedade criou para fins sociais. As nossas palavras, as nossas
expressões, as nossas formas, processos e modos de pensamento, são propriedade comum, modificados e aperfeiçoados de época
para época; um legado que cada geração sucessiva herda como um depósito precioso e uma doação sagrada a transmitir à geração
seguinte, não sem modificações, mas alargado e depurado, com algumas marcas distintas do seu engenho específico. Nisto, para o
bem e para o mal, se entretece cada crença de cada homem que partilha a língua dos seus semelhantes. É um terrível privilégio e
uma terrível responsabilidade, ajudarmos a criar o mundo no qual viverão as gerações do futuro.

Nos dois casos hipotéticos que temos vindo a ponderar, considerou-se incorrecto acreditar com base em indícios insuficientes, ou
acalentar crenças suprimindo as dúvidas e evitando a investigação. A razão deste juízo não é difícil de ver: é que em ambos os
casos a crença sustentada por um homem era de grande importância para outros homens. Mas na medida em que nenhuma crença
sustentada por um homem, por muito trivial que a crença pareça e por muito obscuro que seja o crente, é na realidade
insignificante ou desprovida de consequências para o destino da humanidade, não temos escolha senão alargar o nosso juízo a
todos e quaisquer casos de crença. A crença, essa faculdade sagrada que impulsiona as decisões da nossa vontade e une num
funcionamento harmonioso todas as energias compactas do nosso ser, pertence-nos não para nosso usufruto, mas para a
humanidade. É correctamente usada em verdades que foram estabelecidas pela longa experiência e pelo trabalho persistente, que
enfrentaram a luz intensa do questionamento livre e intrépido. Além disso, ajuda a unir os homens, a fortalecer e orientar a sua
acção comum. Profana-se a crença ao concedê-la a afirmações improvadas e inquestionadas, para consolo e prazer privado do
crente; para acrescentar um falso esplendor à estrada simples e directa da nossa vida e exibir para além dela uma miragem
radiosa; ou mesmo para afogar as angústias comuns da nossa espécie através de um auto-engano que lhes permite não só
deprimir-nos como rebaixar-nos. Quem desejar bem aos seus semelhantes nesta matéria guardará a pureza da sua crença com o
fanatismo próprio de um zelo ciumento, para que a dada altura não recaia sobre um objecto indigno, ganhando uma mancha que
jamais se poderá remover.

Não é só o líder de homens, o estadista, o filósofo, ou o poeta, que tem este dever moral perante a humanidade. Cada campónio
que debita na taberna da aldeia as suas frases lentas e esporádicas pode ajudar a matar ou a manter vivas as superstições fatais
que toldam o seu género. Cada diligente esposa de artesão pode transmitir aos filhos crenças que manterão a sociedade coesa ou a
farão em pedaços. Nenhuma ingenuidade, nenhuma obscuridade de estatuto, podem escapar ao dever universal de questionar
tudo aquilo em que acreditamos.

É verdadeiro que este dever é difícil e a dúvida que dele nasce é muitas vezes amarga. Deixa-nos desprotegidos e impotentes
quando nos julgávamos seguros e fortes. Saber tudo acerca de qualquer coisa é saber como lidar com isso em todas as
circunstâncias. Sentimo-nos muito mais felizes e seguros quando julgamos saber exactamente o que fazer, independentemente do
que acontece, do que quando nos perdemos e não sabemos por onde ir. E se pensávamos saber tudo acerca de alguma coisa e nos
julgávamos capazes de agir adequadamente a esse respeito, é natural que não nos agrade descobrir que na verdade somos
ignorantes e impotentes, que temos de voltar mais uma vez ao início e daí partir, tentar aprender o que a coisa é e como se deve
lidar com ela — se é que na verdade podemos conhecer algo acerca disso. É o sentido do poder ligado a um sentido do
conhecimento que deixa os homens desejosos de acreditar e receosos de duvidar.

Este sentido do poder é o mais elevado e o melhor dos prazeres, quando a crença em que se funda é verdadeira e foi honestamente
alcançada pela investigação. Pois então podemos sentir com justiça que é propriedade comum e se aplica aos outros bem como a
nós mesmos. Então podemos alegrar-nos, não porque eu tenha aprendido segredos que me dão maior segurança e força, mas
porque nós, homens, ganhámos domínio sobre uma maior porção do mundo; e seremos fortes, não por nós próprios, mas em nome
do Homem e da sua força. Mas se a crença foi aceite com base em indícios insuficientes, é um prazer roubado. Não só nos engana
ao dar-nos um sentido do poder que efectivamente não temos, como é pecaminoso, porque é roubado em desprezo pelo nosso
dever perante a humanidade. Esse dever consiste em precaver-nos de tais crenças como de uma epidemia, que pode em pouco
tempo tomar conta do nosso próprio corpo e então propagar-se para o resto da cidade. O que se pensaria daquele que, por causa
de um fruto doce, corresse deliberadamente o risco de trazer uma epidemia à sua família e aos seus vizinhos?

E, como acontece noutros casos, não é apenas o risco o que se tem de considerar; pois uma má acção é sempre má no momento
em que é praticada, independentemente do que aconteça depois. Sempre que nos permitimos acreditar por razões indignas,
enfraquecemos os nossos poderes de autocontrolo, de dúvida, de avaliação imparcial e honesta dos indícios. Todos sofremos
gravemente com a sustentação de crenças falsas e as acções fatalmente incorrectas a que conduzem, e o mal que decorre de se
sustentar tal crença é grande e vasto. Mas surge um mal maior e mais vasto quando o temperamento crédulo é mantido e apoiado,
quando se acalenta e perpetua o hábito de acreditar por razões indignas. Se roubo dinheiro a uma pessoa qualquer, talvez não
resulte um grande mal da mera transferência de posse; ela pode não sentir a perda, ou talvez isto a impeça de dar mau uso ao
dinheiro. Mas não deixo de fazer este grande mal à humanidade: o de me tornar desonesto. O que lesa a sociedade não é a perda
da propriedade, mas o de se tornar um covil de ladrões; pois então deixará forçosamente de ser uma sociedade. Por esta razão não
devemos fazer um mal para que dele resulte um bem; pois em todo o caso daí resulta este grande mal: que fiz um mal e que por
isso me tornei malvado. De igual modo, se me permito acreditar seja no que for com indícios insuficientes, da mera crença pode
não resultar grande mal; pode afinal ser verdadeira, ou posso nunca ter ocasião de a manifestar em acções públicas. Mas não
deixo de cometer este grande mal contra o Homem: o de me tornar crédulo. O perigo para a sociedade não é meramente o de
acreditar em coisas erradas, embora isso seja suficientemente mau; mas o de se tornar crédula e perder o hábito de testar as
coisas e de as investigar; pois então reincidirá forçosamente na selvajaria.

O mal que a credulidade faz num homem não se limita à estimulação de um carácter crédulo nos outros e à decorrente defesa de
crenças falsas. O hábito de ser descuidado com aquilo em que acredito leva os outros a serem por hábito descuidados com a
verdade daquilo que me é dito. Os homens dizem a verdade uns aos outros quando cada um respeita a verdade na sua própria
mente e na mente do outro; mas como poderá o meu amigo respeitar a verdade na minha mente quando eu próprio sou descuidado
com ela, quando acredito em coisas porque quero acreditar nelas, porque são reconfortantes e agradáveis? Não aprenderá ele a
exclamar «paz», na minha presença, quando não há qualquer paz? Adoptando tal caminho, envolver-me-ei numa atmosfera
carregada de falsidade e fraude e aí tenho de viver. Talvez seja de pouca importância para mim, no meu castelo nas nuvens, feito
de doces ilusões e mentiras queridas; mas para a humanidade é de enorme importância que eu tenha preparado os meus vizinhos
para enganarem. O homem crédulo é o pai do mentiroso e do batoteiro; vive no seio da sua família, e não é de admirar que fique
igualzinho a eles. Tão intimamente unidos estão os nossos deveres que quem observa a lei em geral e, no entanto, a transgride
num ponto particular, é culpado de tudo.

Resumindo: é sempre incorrecto, em todo o lado, para qualquer pessoa, acreditar seja no que for com base em indícios
insuficientes.
Se um homem, ao manter uma crença que lhe foi ensinada em criança ou da qual o persuadiram mais tarde, reprime e afasta
quaisquer dúvidas que lhe surgem na mente a esse respeito, evita intencionalmente a leitura de livros e a companhia de homens
que questionam ou discutem essa crença, e considera ímpias as perguntas que não se pode colocar facilmente sem a perturbar —
a vida desse homem é um enorme pecado contra a humanidade.

Se este juízo parece severo quando aplicado àquelas almas simples que nunca conheceram outra coisa, que desde o berço foram
educadas no horror à dúvida, a quem ensinaram que o seu bem-estar eterno depende daquilo em que acreditam, então leva-nos à
questão muito grave: Quem fez Israel pecar?

Talvez se me permita reforçar este juízo com o veredicto de Milton:2

«Um homem pode ser um herético na verdade; e se acredita nas coisas apenas porque o seu pastor o afirma, ou a
assembleia assim o determina, sem conhecer outra razão, embora a sua crença seja verdadeira, a própria verdade que
sustenta torna-se a sua heresia.»

E com este famoso aforismo de Coleridge:3

«Quem começa por amar mais o cristianismo do que a verdade, começará a amar mais a sua própria seita ou igreja do
que o cristianismo, e acabará por se amar a si próprio mais do que a tudo.»

A investigação dos indícios respeitantes a uma doutrina não se faz de uma vez por todas para então se assumir como
definitivamente resolvida. Nunca é legítimo silenciar uma dúvida; pois que ou se lhe pode responder honestamente através da
investigação já feita, ou então a dúvida é a prova de que a investigação não está completa.

«Mas», dir-se-á, «sou um homem ocupado; não tenho tempo para os demorados estudos que seriam necessários para me dar
alguma competência para avaliar certas questões, ou mesmo para me tornar capaz de compreender a natureza dos argumentos.»
Nesse caso, não deveria ter tempo para acreditar.

II. O peso da autoridade

Teremos então de nos tornar cépticos universais, duvidando de tudo, sempre receosos de pôr um pé à frente do outro antes de
termos testado pessoalmente a solidez do pavimento? Teremos de nos privar da ajuda e orientação daquele vasto corpo de
conhecimento que cresce diariamente em todo o mundo, porque nem nós nem qualquer outra pessoa pode em circunstância
alguma testar a centésima parte desse conhecimento por experiência imediata ou por observação, e porque não estaria
completamente provado se o fizéssemos? Roubaremos e pregaremos mentiras por não termos tido uma experiência pessoal
suficientemente vasta para justificar a crença de que é incorrecto fazê-lo?

Não há qualquer perigo prático de que tais consequências alguma vez decorram do cuidado escrupuloso e do autocontrolo em
matéria de crença. Aqueles homens que mais se aproximaram de cumprir o seu dever a este respeito consideraram que certos
princípios muito importantes, sendo estes os mais apropriados para a orientação da vida, se destacaram cada vez mais nitidamente
em proporção ao cuidado e honestidade com que foram testados, e adquiriram assim uma certeza prática. As crenças acerca do
que é correcto ou incorrecto, que orientam as nossas acções ao lidar com os homens em sociedade, e as crenças acerca da
natureza física que orientam as nossas acções ao lidar com corpos animados e inanimados, nunca são prejudicadas pela
investigação; estas sabem tomar conta de si próprias, sem serem sustentadas com «actos de fé», com o alarido de apologistas
remunerados ou com a supressão de indícios contrários. Além disso, há muitos casos em que temos o dever de agir com base em
probabilidades, embora os indícios não sejam tais que justifiquem a crença em causa; porque é precisamente por tal acção e pela
observação dos seus resultados que se obtém indícios que podem justificar a crença futura. Pelo que não temos qualquer razão
para temer que um hábito de investigação escrupulosa paralise as acções da nossa vida quotidiana.

Mas porque não basta afirmar «É incorrecto acreditar com base em indícios indignos» sem explicar também que indícios são
dignos, passamos agora a investigar as circunstâncias em que é legítimo acreditar com base no testemunho de outros; e depois,
além disso, investigaremos mais em geral quando e por que razão podemos acreditar naquilo que ultrapassa a nossa experiência,
ou mesmo a experiência da humanidade.

Assim, perguntemos, antes de mais, em que casos o testemunho de um homem não é digno de crédito. Este pode afirmar o que é
contrário à verdade, sabendo-o ou não. No primeiro caso, mente, e o seu carácter moral é culpável; no segundo, é ignorante ou
está equivocado, e apenas o seu conhecimento ou discernimento estão em falta. De maneira a podermos ter o direito de aceitar o
seu testemunho como base para acreditar no que afirma, precisamos de uma justificação razoável para confiar na sua veracidade:
que ele procura realmente dizer a verdade na medida em que a conhece; no seu conhecimento: que teve oportunidade de conhecer
a verdade acerca deste assunto; e no seu discernimento: que fez um uso apropriado dessas oportunidades ao chegar à conclusão
que anuncia.

Por muito simples e óbvias que sejam estas razões, de modo que nenhum homem de inteligência mediana, ao reflectir no assunto,
pode deixar de alcançá-las, é ainda assim verdadeiro que um grande número de pessoas tem por hábito desconsiderá-las ao avaliar
um testemunho. Das duas questões, igualmente importantes para a credibilidade da testemunha, «É desonesto?» e «Pode estar
enganada?», os membros da humanidade, na sua maioria, ficam perfeitamente satisfeitos se a uma delas se pode, com alguma
probabilidade, responder pela negativa. O excelente carácter moral de um homem é apresentado como justificação para aceitar as
suas declarações acerca de coisas que não pode de maneira alguma conhecer. Um maometano, por exemplo, dir-nos-á que o
carácter do seu Profeta era tão nobre e majestoso que impõe reverência mesmo àqueles que não acreditam na sua missão. Tão
admirável foi o seu ensinamento moral, tão sabiamente edificada a máquina social que criou, que não só uma grande parcela da
humanidade aceitou os seus preceitos, como lhes tem efectivamente obedecido. As suas instituições, por outro lado, fizeram o
negro sair da selvajaria e por outro lado ensinaram a civilização ao Ocidente em desenvolvimento; e embora os povos que
detinham as formas mais elevadas da sua fé, e que mais plenamente davam corpo aos seus ideais e pensamento, tenham todos sido
conquistados e dizimados por tribos bárbaras, a história dos seus feitos maravilhosos permanece uma glória imperecível para o
Islão. Poderemos duvidar da palavra de um homem tão grandioso e tão bom? Poderemos supor que este magnífico génio, este
esplêndido herói moral, nos mentiu acerca das matérias mais solenes e sagradas? O testemunho de Maomé é claro: que não há
senão um Deus, e que ele, Maomé, é o seu Profeta; que se acreditarmos nele, gozaremos da felicidade perpétua, mas que se não
acreditarmos, seremos condenados. Este testemunho assenta no mais terrível dos alicerces, a revelação dos próprios céus; pois
não foi ele visitado pelo anjo Gabriel, enquanto jejuava e rezava na sua gruta no deserto, tendo-lhe sido permitida a entrada nos
campos abençoados do Paraíso? Seguramente que Deus é Deus e Maomé é o Profeta de Deus.

O que deveríamos responder a este muçulmano? Em primeiro lugar, sem dúvida, talvez nos sintamos tentados a protestar contra a
sua perspectiva do carácter do Profeta e da influência uniformemente benigna do Islão: antes de o acompanharmos
completamente nestes assuntos, parece que talvez tivéssemos de esquecer muitas coisas terríveis de que ouvimos falar ou que
lemos. Mas se decidimos conceder-lhe estes pressupostos, para fins de argumentação, e porque é difícil tanto para o fiel como
para os infiéis discuti-los imparcial e desapaixonadamente, ainda assim teríamos algo a dizer que lhe retira a base da sua crença,
mostrando, portanto, que é incorrecto sustentá-la. Nomeadamente, o seguinte: o carácter de Maomé é um excelente indício de que
era honesto e dizia a verdade tanto quanto a sabia; mas não é indício, de todo em todo, de que soubesse o que era a verdade. Que
meios teria de saber que a forma que lhe pareceu o anjo Gabriel não era uma alucinação e que a sua aparente visita ao Paraíso não
foi um sonho? Conceda-se que ele próprio estava plenamente persuadido e acreditava honestamente que tinha a orientação dos
céus e era o veículo de uma revelação sobrenatural, como podia saber que esta forte convicção não era um equívoco? Coloquemo-
nos no seu lugar; veremos que quanto mais nos esforçarmos por compreender plenamente o que lhe passava pela mente, mais
claramente veremos que o Profeta não podia ter qualquer sustentação adequada para a crença na sua própria inspiração. É
muitíssimo provável que ele próprio nunca tenha duvidado do assunto, ou sequer pensasse em colocar a questão; mas nós falamos
do ponto de vista daqueles a quem foi colocada a pergunta e que têm de lhe dar uma resposta. É do conhecimento dos
observadores médicos que a solidão e a carência alimentar são meios poderosos de produzir a delusão e de fomentar uma
tendência para a doença mental.4 Suponhamos então que, como Maomé, vou para lugares desertos jejuar e rezar; que coisas me
podem acontecer que me darão o direito de acreditar que recebi a inspiração divina? Suponhamos que recebo informação,
aparentemente de um visitante celestial, que, ao ser testada, se considera correcta. Não posso ter a certeza, em primeiro lugar, de
que o visitante celestial não é um produto da minha própria imaginação e que a informação não me chegou, sem que na altura
tivesse consciência disso, através de um qualquer meio sensorial subtil. Mas se o meu visitante era um visitante real e durante
muito tempo me deu informação que se concluiu ser fidedigna, isto constituiria de facto uma justificação para confiar nele
futuramente, no que diz respeito a assuntos que entram no âmbito da capacidade humana de verificação; mas não seria
justificação para confiar no seu testemunho em quaisquer outros assuntos. Pois embora o seu carácter comprovado me desse
justificação para acreditar que dizia a verdade tanto quanto a sabia, colocar-se-ia a mesma questão: que justificação há para supor
que ele sabe?

Mesmo que o meu hipotético visitante me tivesse dado tal informação, subsequentemente verificada por mim, probatória de que
dispunha de meios de conhecimento, acerca de assuntos verificáveis, muitíssimo superiores aos meus, isto não me daria
justificação para acreditar no que ele afirmava acerca de assuntos que de momento não são susceptíveis de verificação pelo
homem. Daria suporte a uma conjectura interessante e à esperança de que, em resultado da nossa investigação paciente,
pudéssemos eventualmente conseguir tais meios de verificação, que justificadamente transformariam a conjectura em crença. Pois
a crença pertence ao homem e à orientação dos assuntos humanos: nenhuma crença é real a menos que oriente as nossas acções,
e essas mesmas acções fornecem um teste da sua verdade.

Mas, replicar-se-á, a aceitação do Islão como um sistema é precisamente a acção que é encorajada pela crença na missão do
Profeta, e que servirá para um teste da sua verdade. Será possível acreditar que um sistema que prosperou tanto está realmente
fundado numa delusão? Não só os santos individuais encontraram alegria e paz na crença, e verificaram essas experiências
espirituais que são prometidas aos fiéis, como também se ergueu nações da selvajaria e do barbarismo até um estado social mais
elevado. Seguramente podemos afirmar que se agiu com base na crença e que foi verificada.

Não se exige, todavia, senão alguma ponderação para mostrar que aquilo que realmente se verificou não é de todo em todo o
carácter celestial da missão do Profeta, ou a fidedignidade da sua autoridade em assuntos que nós próprios não temos como testar,
mas apenas a sua sabedoria prática em certas coisas bastante mundanas. O facto de que os crentes encontraram alegria e paz na
crença dá-nos o direito de afirmar que a doutrina é confortável, agradável à alma; mas não nos dá o direito de afirmar que é
verdadeira. E a questão que a nossa consciência levanta sempre acerca daquilo em que nos sentimos tentados a acreditar não é
«Será confortável e agradável?», mas «Será verdadeira?». Que o Profeta pregou determinadas doutrinas e previu que nelas se
encontraria o conforto espiritual, prova apenas a sua compaixão pela natureza humana e o seu conhecimento da mesma; mas não
prova o seu conhecimento sobre-humano da teologia.

E se admitimos para fins de argumentação (pois parece que mais não podemos fazer) que o progresso feito pelas nações
muçulmanas em certos casos se deve realmente ao sistema formado e lançado no mundo por Maomé, não nos é permitido concluir
a partir daqui que ele foi inspirado a declarar a verdade acerca de coisas que não podemos verificar. Só nos é permitido inferir a
excelência dos seus preceitos morais, ou dos meios que concebeu para levar os homens a obedecer-lhes, ou da maquinaria social e
política que estabeleceu. E seria preciso examinar muito cuidadosamente a história destas nações para determinar quais destas
coisas influenciaram mais o resultado. Pelo que, mais uma vez, é o conhecimento do Profeta acerca da natureza humana e a sua
compaixão pela mesma que se verificam; e não a sua inspiração divina ou o seu conhecimento da teologia.

Se houvesse apenas um Profeta, com efeito, podia muito bem parecer uma tarefa difícil e mesmo desagradável decidir os aspectos
com base nos quais confiaríamos nele e os aspectos com base nos quais duvidaríamos da sua autoridade, vendo a ajuda e o
progresso que todos os homens ganharam em todas as épocas com os que viam mais claramente, sentiam mais fortemente e
procuravam a verdade com maior dedicação do que os seus irmãos mais fracos. Mas não há só um Profeta; e ao passo que o
consentimento de muitos naquilo que, como homens, tinham meios genuínos de conhecer e conheciam, persistiu até ao fim e foi
honrosamente integrado na grande estrutura do conhecimento humano, o testemunho divergente de alguns acerca daquilo que
não conheciam nem podiam conhecer é um aviso permanente de que exagerar a autoridade profética é usá-la indevidamente e
desonrar aqueles que apenas nos procuraram ajudar e fazer avançar com o seu poder. Dificilmente faz parte da natureza humana
que um homem avalie com bastante precisão os limites da sua própria sagacidade; mas é o dever daqueles que beneficiam com o
seu trabalho considerar cuidadosamente onde poderá ele ter sido levado a ultrapassar esses limites. Se temos de preservar os seus
possíveis erros juntamente com as suas sólidas realizações e usar a sua autoridade como uma desculpa para acreditar naquilo que
não pode ter sabido, fazemos da sua bondade uma ocasião para pecar.

Considerando apenas um de tais testemunhos: os seguidores do Buda têm pelo menos o mesmo direito de apelar à experiência
individual e social em defesa da autoridade do salvador do Oriente. Consta que a marca distintiva da sua religião, na qual nunca
foi ultrapassada, é o conforto e consolo que dá aos doentes e infelizes, a compaixão afectuosa com que suaviza e alivia todas as
dores naturais dos homens. Seguramente que nenhum triunfo de moralidade social pode ser maior ou mais nobre do que aquele
que tem evitado que quase metade do género humano se dedique a perseguições em nome da religião. A confiarmos nos relatos
dos seus primeiros seguidores, Buda acreditava que viera à Terra com a missão divina e cósmica de pôr em movimento a roda da
lei. Sendo príncipe, despojou-se do seu reino e, de livre vontade, conheceu a miséria, para aprender a lidar com ela e a subjugá-la.
Poderia tal homem falar falsamente acerca de coisas solenes? E no que diz respeito ao seu conhecimento, não era ele um homem
milagroso com poderes sobre-humanos? Nasceu de uma mulher sem a ajuda de um homem; levitou e transfigurou-se à frente dos
seus familiares; por fim ascendeu em forma corpórea aos céus a partir do topo do Pico de Adão.5 Não haverá que acreditar na sua
palavra quando testemunha acerca de coisas celestiais?

Se apenas ele, e nenhum outro, fizesse tais afirmações! Mas há Maomé com o seu testemunho; não temos escolha senão escutar
ambos. O Profeta diz-nos que há um Deus e que viveremos na alegria ou na infelicidade eternas, consoante acreditamos ou não no
Profeta. O Buda afirma que não há qualquer Deus e que seremos completamente aniquilados se formos suficientemente bons. Não
podem ambos ser objecto de uma inspiração infalível; um ou outro teve de ter sido vítima de uma delusão, pensando saber o que
na realidade não sabia. Quem se atreverá a afirmar qual dos dois? E como poderemos ter justificação para acreditar que o outro
não estava também deludido?

Chegamos assim aos juízos que se seguem. A bondade e a grandeza de um homem não nos dão justificação para aceitar uma
crença com base na sua autoridade, a menos que haja uma base razoável para supor que conhece a verdade daquilo que afirma. E
não pode haver bases para supor que um homem sabe aquilo que não se pode supor que nós, sem deixarmos de ser homens,
podemos verificar.

Se a mim, que não sou químico, um químico afirmar que se pode obter uma determinada substância combinando outras
substâncias em certas proporções e sujeitando-as a um processo conhecido, tenho toda a justificação para acreditar nisto com
base na sua autoridade, a menos que tenha conhecimento de algo desfavorável a respeito do seu carácter ou discernimento. Pois o
seu treino profissional é tal que tende a encorajar a veracidade e a procura honesta da verdade, e a produzir um desprezo por
conclusões precipitadas e pelo desleixo investigativo. Tenho uma base razoável para supor que ele conhece a verdade daquilo que
afirma, pois embora eu não seja um químico, podem-me fazer compreender o suficiente acerca dos métodos e processos da ciência
de maneira a que me seja possível, sem deixar de ser um homem, verificar a afirmação. Posso nunca a verificar efectivamente, ou
mesmo ver qualquer experiência tendente a verificá-la; mas ainda assim tenho razão suficiente para justificar a minha crença de
que a verificação está ao alcance dos instrumentos e capacidades humanas, e em particular que foi efectivamente realizada pelo
meu informante. O resultado, a crença a que foi conduzido pelas suas investigações, é válida não só para ele, mas também para os
outros; é observada e testada pelos que trabalham no mesmo campo, e estes sabem que não se pode prestar maior serviço à
ciência do que depurar os resultados aceites dos erros que neles se podem ter introduzido. É desta maneira que o resultado se
torna património comum, um objecto apropriado de crença, a qual é uma preocupação social e um assunto de interesse público.
Assim, há que observar que a autoridade do químico é válida porque há quem a questione e verifique; é precisamente este
processo de exame e depuração que mantém vivo entre os investigadores o amor àquilo que suportará todos os testes possíveis, o
sentido de responsabilidade pública por parte daqueles cujo trabalho, se for bem feito, persistirá como a herança duradoura da
humanidade.

Mas se o meu químico me diz que um átomo de oxigénio existiu desde sempre, inalterado em peso e taxa de vibração, não tenho o
direito de acreditar nisto com base na sua autoridade, pois se trata de algo que ele não pode conhecer sem deixar de ser um
homem. Pode muito honestamente acreditar que esta afirmação é uma inferência legítima a partir das suas experiências, mas
nesse caso o seu juízo está em falta. Uma reflexão muito simples acerca do carácter das experiências mostrar-lhe-ia que estas
nunca podem conduzir a resultados desse tipo; que, sendo elas mesmas meramente aproximadas e limitadas, não nos podem dar
conhecimento exacto e universal. Nenhuma eminência de carácter e génio pode dar a um homem a autoridade suficiente para
justificar que acreditemos nele quando faz afirmações que implicam conhecimento exacto ou universal.

Uma vez mais, um explorador do árctico pode relatar-nos que, numa dada latitude e longitude, teve experiência de um certo grau
de frio, que o mar tinha uma certa profundidade e que o gelo tinha um certo carácter. Teríamos toda a razão em acreditar nele, na
ausência de algo que comprometa a sua veracidade. É concebível podermos, sem deixarmos de ser homens, ir ao local e verificar a
sua afirmação; pode ser testada pelo testemunho dos seus companheiros e há uma base adequada para supor que conhece a
verdade daquilo que afirma. Mas se um velho baleeiro nos diz que o gelo tem 90 metros de espessura até ao pólo, não teremos
justificação para acreditar nele. Pois embora a afirmação seja susceptível de ser verificada pelo homem, seguramente que não é
susceptível de ser verificada por ele, com quaisquer meios e instrumentos de que dispusesse; e deve ter-se persuadido da verdade
daquilo que afirma por meios que não dão crédito algum ao seu testemunho. Ainda que, portanto, o conteúdo do que se afirma
esteja ao alcance do conhecimento humano, não temos o direito de aceitá-lo com base na autoridade a menos que esteja ao
alcance do conhecimento do nosso informante.

O que diremos daquela que é a autoridade mais venerável e augusta do que qualquer testemunho individual, a tradição,
consagrada pelo tempo, do género humano? Uma atmosfera de crença e concepções que se formou pelos esforços e lutas dos
nossos antepassados, que nos permite respirar por entre as diversas e complexas circunstâncias da nossa vida. Está à nossa volta,
perto de nós, e dentro de nós; não podemos pensar senão nas formas e processos de pensamento que nos proporciona. Será
possível duvidar dela e testá-la? E se for, será correcto fazê-lo?

Veremos razões para responder que não só é possível e correcto, como também é o nosso dever incontornável; que o principal
objectivo da própria tradição é dar-nos os meios de colocar questões, de testar e investigar as coisas; que se lhe damos mau uso e
a vemos como uma colecção de frases feitas a ser aceites sem investigação complementar, não só nos prejudicamos a nós próprios,
como, ao recusar contribuir com a nossa parte para aumentar a estrutura que será herdada pelos nossos filhos, contribuímos para
nos apartarmos a nós e ao nosso género da linhagem humana.

Tomemos em primeiro lugar o cuidado de distinguir um tipo de tradição que urge examinar e pôr em causa, por ser
particularmente esquiva à investigação. Suponhamos que um curandeiro na África Central declara à sua tribo que na sua tenda se
propiciará uma certa poção poderosa se matarem o gado da tribo, e que esta acredita nele. Não há maneira de verificar se a poção
se propiciou ou não, mas o gado foi-se. Ainda assim, pode-se manter na tribo a crença de que a propiciação se realizou desta
maneira; e numa geração posterior será tanto mais fácil a outro curandeiro persuadi-los de um acto semelhante. Aqui a única
razão para acreditar é que toda a gente acreditou durante tanto tempo na mesma coisa que deve ser verdadeiro. E, no entanto, a
crença foi fundada numa fraude e propagada pela credulidade. Sem dúvida que agirá correctamente e será amigo dos homens
aquele que a questionar e vir que não há indícios a seu favor, que ajudar os seus vizinhos a ver como ele, e até, se for preciso, que
entrar na tenda sagrada e destruir a poção.

A regra que nos devia orientar em tais casos é bastante simples e óbvia: que o testemunho conjunto dos nossos vizinhos está
sujeito às mesmas condições que o testemunho de qualquer um deles em separado. Nomeadamente, não temos o direito de
acreditar que algo é verdadeiro porque toda a gente diz que é, a menos que haja boas razões para acreditar que pelo menos uma
dessas pessoas tem os meios de conhecer a verdade, e que fala a verdade tanto quanto a conhece. Por muitas nações e gerações
de homens que se traga ao banco das testemunhas, não podem testemunhar coisa alguma de que não tenham conhecimento. Todo
aquele que tenha aceitado a afirmação de outrem, sem ele próprio a verificar, está excluído do tribunal; a sua palavra não vale, em
rigor, coisa alguma. E quando finalmente regressamos à verdadeira origem da afirmação, temos de tirar duas questões do
caminho, a respeito da primeira pessoa que fez a afirmação: estaria ela enganada ao pensar que sabia algo acerca deste assunto,
ou estaria a mentir?

Esta última questão é infelizmente muitíssimo actual e prática, mesmo para nós, nesta época e neste país. Não é preciso ir a La
Salette, ou à África Central, ou a Lourdes, para ter exemplos de superstição imoral e degradante. É muito bem possível que uma
criança cresça em Londres rodeada de uma atmosfera de crenças unicamente apropriadas a selvagens, que nos nossos dias se
fundaram na fraude e propagaram pela credulidade.

Pondo então de lado as tradições que passam sucessivamente de geração para geração sem serem testadas, consideremos aquilo
que é verdadeiramente construído a partir da experiência comum da humanidade. Esta grandiosa estrutura serve-nos para
orientar os nossos pensamentos e, por meio deles, as nossas acções, tanto no mundo moral como no material. No mundo moral,
por exemplo, dá-nos as concepções da rectidão em geral, da justiça, da verdade, da beneficência, e coisas semelhantes. Estas
apresentam-se como concepções, e não como afirmações ou proposições; respondem a certos instintos definidos que seguramente
se encontram em nós, seja por que meio lá foram parar. Que é correcto ser beneficente é objecto da experiência pessoal imediata;
pois quando um homem se recolhe ao seu íntimo e aí encontra algo mais vasto e mais duradouro do que a sua personalidade
solitária, algo que afirma «Quero agir rectamente», bem como «Quero fazer bem ao homem», pode verificar por observação
directa que um instinto se funda no outro e concorda inteiramente com ele. E o seu dever é verificar esta afirmação e outras
semelhantes.
A tradição afirma também, num local e época específicos, que determinadas acções são justas, ou verdadeiras, ou beneficentes.
Para todas essas regras se precisa de uma investigação complementar, pois são por vezes estabelecidas por uma autoridade que
não o sentido moral fundado na experiência. Até recentemente, a tradição moral do nosso próprio país — e na verdade de toda a
Europa — ensinava que era beneficente dar indiscriminadamente dinheiro aos pedintes. Mas o questionamento desta regra, e a
investigação da mesma, levaram os homens a ver que a verdadeira beneficência é aquela que ajuda um homem a fazer o trabalho
para o qual é mais apto e não aquilo que o mantém na inactividade e a encoraja; e que descurar esta distinção no presente
equivale a preparar a indigência e a miséria no futuro. Por este exame e discussão não só a prática se depurou e tornou mais
beneficente, como a própria concepção de beneficência se tornou mais lata e mais sábia. Agora a grande herança social consiste
em duas partes; o instinto de beneficência, que, quando predomina, leva certa faceta da nossa natureza a desejar fazer bem aos
homens; e a concepção intelectual da beneficência, que podemos comparar com qualquer conduta que se apresente e perguntar:
«Será isto beneficente ou não?». Ao colocar tais perguntas e responder-lhes continuamente, a concepção cresce em fôlego e
clareza e o instinto reforça-se e purifica-se. Parece, portanto, que a grande utilidade da concepção, a parte intelectual da herança,
é permitir-nos fazer perguntas; através dessas perguntas, cresce e mantém-se recta; e se não a usamos para este fim perdê-la-
emos completamente e ficaremos com um mero código prescritivo a que já não se pode chamar, de todo em todo, «moralidade».

Tais considerações aplicam-se de uma maneira ainda mais clara e óbvia, se tal é possível, à reserva de crenças e concepções que
os nossos pais acumularam para nós a respeito do mundo material. Estamos prontos a rir do hábito do australiano que continua a
amarrar o machado ao cabo, embora o serralheiro de Birmingham lhe tenha feito propositadamente um buraco para aí inserir o
cabo. Os do seu povo amarram assim os machados há gerações: quem é ele para se opor à sua sabedoria? Desceu tanto que não
consegue fazer aquilo que alguns deles tiveram de fazer no passado distante — pôr em causa um uso estabelecido e inventar ou
aprender algo melhor. No entanto, aqui, no amanhecer do conhecimento, onde a ciência e a arte são uma só, encontramos apenas
a mesma regra simples que se aplica às mais elevadas e às mais profundas ramificações daquela Árvore cósmica; aos seus mais
imponentes ramos floridos bem como às mais profundas das suas raízes escondidas; a regra, nomeadamente, de que quem faz um
uso apropriado daquilo que foi acumulado e que nos foi transmitido é quem age da mesma maneira que os criadores agiram,
quando o acumularam; os que o usam para fazer mais perguntas, para examinar, para investigar; que procuram com honestidade e
seriedade descobrir qual a maneira correcta de ver as coisas e de lidar com elas.

Uma pergunta apropriadamente colocada é já metade da resposta, afirmou Jacobi; podemos acrescentar que o método de a
solucionar é a outra metade da resposta, e que o resultado efectivo para nada conta ao lado destas duas. Tomemos como exemplo
o telégrafo, onde a teoria e a prática, ambas desenvolvidas discretamente ao longo dos anos, se unem para servir vantajosamente
o homem. Ohm descobriu que a intensidade de uma corrente eléctrica é directamente proporcional à potência da bateria que a
produz, e inversamente proporcional à extensão do fio condutor que tem de percorrer. A isto se chama «lei de Ohm»; mas o
resultado, encarado como uma afirmação na qual acreditar, não é a parte valiosa do mesmo. A primeira metade é a pergunta «Que
relação se verifica entre estas quantidades?» Assim formulada, a pergunta envolve já a concepção de intensidade da corrente e da
potência da bateria, como quantidades a medir e comparar; sugere claramente que são estas as coisas com que se tem de lidar no
estudo das correntes eléctricas. A segunda metade é o método de investigação: como medir estas quantidades, de que
instrumentos se precisa para a experiência e como devem ser usados? Não se pede ao estudante, que começa a sua aprendizagem
na electricidade, que acredite na lei de Ohm; fazem-no compreender a pergunta, colocam-no diante dos instrumentos e ensinam-no
a verificá-la. Aprende a fazer coisas, e não a pensar que sabe coisas; a usar os instrumentos e a fazer perguntas, e não a aceitar
uma afirmação tradicional. A pergunta que para ser apropriadamente colocada exigiu um génio é respondida por um principiante.
Se a lei de Ohm subitamente se perdesse e fosse esquecida por todos os homens, mas preservando-se a pergunta e o método de
solução, o resultado podia ser redescoberto numa hora. Mas o resultado por si só, se conhecido por um povo que não pudesse
compreender o valor da questão ou os meios de a resolver, seria como um relógio nas mãos de um selvagem que não lhe soubesse
dar corda ou um navio a vapor manobrado por maquinistas espanhóis.

A respeito, portanto, da sagrada tradição da humanidade, aprendemos que não consiste em proposições ou afirmações que se tem
de aceitar e nas quais se tem de acreditar com base na autoridade da tradição, mas em perguntas apropriadamente colocadas, em
noções que nos permitem levantar perguntas complementares, e em métodos de lhes responder. O valor de todas estas coisas
depende de serem testadas quotidianamente. O próprio carácter sagrado do precioso depósito impõe-nos o dever e a
responsabilidade de o testar, de o depurar e alargar até ao máximo das nossas capacidades. Aquele que se serve dos resultados
desta tradição para silenciar as próprias dúvidas, ou para impedir a investigação por parte dos outros, é culpado de um sacrilégio
que os séculos jamais apagarão. Quando os trabalhos e as investigações de homens honestos e corajosos tiverem elevado a
estrutura da verdade conhecida a uma glória que nós nesta geração nem podemos esperar nem imaginar, naquele templo puro e
sagrado não terá ele parte nem quinhão, mas o seu nome e as suas obras serão lançados nas trevas do esquecimento para sempre.

III. Os limites da inferência

A questão dos casos em que podemos acreditar naquilo que ultrapassa a nossa experiência é muito ampla e delicada, abarcando
toda a extensão do método científico, e exigindo um aumento considerável da sua aplicação antes de lhe podermos dar alguma
resposta que seja mais ou menos completa. Mas pode-se aqui aflorar e formular brevemente uma regra de extrema simplicidade e
enorme importância prática, que se situa no limiar deste tema.

Um pouco de reflexão mostrar-nos-á que todas as crenças, até as mais simples e mais fundamentais, ultrapassam a nossa
experiência quando são encaradas como guias para as nossas acções. Uma criança que se queimou teme o fogo, porque acredita
que o fogo a queimará hoje tal como ontem; mas esta crença vai além da experiência e pressupõe que o desconhecido fogo de hoje
é como o fogo de ontem. Mesmo a crença de que a criança se queimou ontem vai além da experiência presente, que contém
apenas a memória de uma queimadura, e não a própria queimadura; pressupõe, portanto, que esta memória é fidedigna, embora
saibamos que uma memória pode amiúde estar incorrecta. Mas se há que a usar como guia para a acção, como uma pista daquilo
que será o futuro, tem de pressupor algo acerca desse futuro, nomeadamente, que será consistente com a suposição de que a
queimadura realmente ocorreu ontem; o que é ir além da experiência. Mesmo o fundamental «Eu sou», de que não se pode
duvidar, não é um guia para a acção até se tornar «Eu serei», que vai além da experiência. A questão não é, portanto, «Podemos
acreditar no que ultrapassa a experiência?» pois isto está envolvido na própria natureza da crença; mas «Até que ponto e de que
maneira podemos alargar a nossa experiência ao formar as nossas crenças?»

E o exemplo que considerámos — uma criança que se queimou teme o fogo — sugere uma resposta extremamente simples e
universal. Podemos ir além da experiência pressupondo que aquilo que não sabemos é como aquilo que sabemos; ou, por outras
palavras, podemos alargar a nossa experiência pressupondo a uniformidade da natureza. O que esta uniformidade é exactamente,
como adquirimos maior conhecimento dela de geração para geração, são questões que de momento deixamos de lado,
contentando-nos em examinar dois exemplos que poderão servir para tornar mais clara a natureza da regra.

A partir de certas observações feitas ao espectroscópio, inferimos a existência de hidrogénio no Sol. Olhando para o
espectroscópio quando o Sol incide na sua abertura, vemos determinadas linhas luminosas: e experiências realizadas com corpos
na Terra ensinaram-nos que quando se vê estas linhas luminosas a fonte delas é o hidrogénio. Pressupomos, portanto, que as
linhas luminosas desconhecidas no Sol são como as linhas luminosas conhecidas do laboratório, e que o hidrogénio no Sol se
comporta como o hidrogénio se comportaria na Terra em circunstâncias idênticas.
Mas não estamos a confiar demasiado no nosso espectroscópio? Seguramente que tendo-o considerado fidedigno para substâncias
terrestres, onde as suas asserções podem ser verificadas pelo homem, temos justificação para aceitar o seu testemunho noutros
casos semelhantes; mas não quando nos dá informação acerca de coisas que estão no Sol, onde o seu testemunho não pode ser
directamente verificado pelo homem, certo?

Queremos sem dúvida saber um pouco mais antes de se poder justificar esta inferência; e felizmente sabemo-lo. O espectroscópio
testemunha exactamente a mesma coisa nos dois casos; nomeadamente, que através dele passam vibrações de luz de dada
proporção. A sua construção é tal que se estivesse errado acerca disto num caso, estaria errado no outro. Quando começamos a
examinar o assunto, descobrimos que pressupomos realmente que a matéria do Sol é como a matéria da Terra, composta por dado
número de substâncias distintas; e que cada uma destas, quando muito quente, tem uma taxa de vibração distinta, pela qual se
pode reconhecer e isolar do resto. Mas este é o tipo de pressuposto que temos justificação para usar quando alargamos a nossa
experiência. É um pressuposto de uniformidade na natureza, e só se pode verificar por comparação com muitos pressupostos
semelhantes que temos de fazer noutros casos semelhantes.

Mas será verdadeira a crença na existência de hidrogénio no Sol? Poderá ajudar na orientação correcta da acção humana?

Certamente que não, se as bases para a aceitar forem indignas e desprovidas de qualquer compreensão do processo pelo qual se
obtém essa crença. Mas quando se compreende este processo como a base para a crença, torna-se uma questão bastante séria e
prática. Pois se não há hidrogénio no Sol, o espectroscópio — o que é o mesmo que dizer, a medida das taxas de vibração — terá de
ser um guia inexacto no reconhecimento de substâncias diferentes; e consequentemente não se deveria usá-lo na análise química
— nos ensaios químicos, por exemplo — para maior economia de tempo, dificuldades e dinheiro. Ao passo que a aceitação do
método espectroscópico como fidedigno não só nos enriqueceu com novos metais, o que é óptimo, mas também com novos
processos de investigação, o que é ainda melhor.

Para outro exemplo, consideremos o modo como inferimos a verdade de um acontecimento histórico — por exemplo, o cerco de
Siracusa durante a guerra do Peloponeso. A nossa experiência é existirem manuscritos dos quais se afirma serem os manuscritos
da história de Tucídides e que se referem a si próprios desse modo; que noutros manuscritos, atribuídos a historiadores
subsequentes, se afirma que viveu durante o período em que se deu a guerra; e que livros que supostamente datam do renascer do
saber nos dizem como estes manuscritos foram preservados e onde foram adquiridos. Depreendemos também que em geral os
homens não forjam livros e histórias sem um motivo especial; pressupomos que neste aspecto os homens do passado eram como os
homens do presente; e observamos que neste caso não se apresentava qualquer motivo especial. Isto é, alargamos a nossa
experiência no pressuposto de uma uniformidade nos caracteres do homem. Porque o nosso conhecimento desta uniformidade é
muitíssimo menos completo e exacto do que o nosso conhecimento daquilo que se verifica na física, as inferências do tipo histórico
são mais instáveis e menos exactas do que as inferências em muitas outras ciências.

Mas se há alguma razão especial para suspeitar do carácter das pessoas que escreveram ou transmitiram certos livros, o caso
muda de figura. Se um grupo de documentos apresenta indícios internos de terem sido produzidos entre pessoas que forjavam
livros em nome de outras, e que, ao descrever os acontecimentos, suprimiam as coisas que não lhes convinham, enquanto
engrandeciam o que lhes convinha; que não só cometeram estes crimes, como se regozijaram neles como provas de humildade e
de zelo; temos então de afirmar que não se pode basear em tais documentos qualquer inferência histórica genuína, mas apenas
conjecturas insatisfatórias.

Podemos, então, alargar a nossa experiência no pressuposto de uma uniformidade na natureza; podemos preencher a nossa
imagem daquilo que é e daquilo que foi, à medida que a experiência a fornece, de maneira a tornar o todo consistente com esta
uniformidade. E a inferência praticamente demonstrativa — o que nos dá o direito de acreditar no seu resultado — é uma amostra
clara de que só pela verdade deste resultado se pode salvaguardar a uniformidade da natureza.

Nenhum indício, portanto, pode dar-nos justificação para acreditar na verdade de uma afirmação que seja contrária ou exterior à
uniformidade da natureza. Se a nossa experiência é tal que não a podemos preencher consistentemente com uniformidade, tudo o
que temos direito a concluir é que ocorreu um erro algures; mas a possibilidade da inferência é afastada; temos de nos apoiar na
nossa experiência, e não ir além dela de maneira alguma. Se de facto ocorresse um acontecimento que não fizesse parte da
uniformidade da natureza, teria duas propriedades: nenhum indício poderia dar fosse a quem fosse o direito de acreditar nele
excepto àqueles que efectivamente tiveram a experiência; e nenhuma inferência digna de crédito se podia fundar nela, de todo em
todo.

Teremos então forçosamente de acreditar que a natureza é absoluta e universalmente uniforme? Certamente que não, não temos
direito de acreditar em seja o que for deste género. A regra apenas nos diz que ao formar crenças que vão além da experiência
temos de pressupor que a natureza é, para efeitos práticos, uniforme, no que nos diz respeito. No âmbito da acção e verificação
humanas, podemos formar, com a ajuda deste pressuposto, as crenças propriamente ditas; para lá dele, só podemos formar
aquelas hipóteses que servem para a colocação mais precisa das perguntas.

Resumindo:

Podemos acreditar no que ultrapassa a nossa experiência apenas quando o inferimos a partir dessa experiência pelo pressuposto
de que aquilo que não conhecemos é como aquilo que conhecemos.

Podemos acreditar na afirmação de outra pessoa, quando há uma base razoável para supor que ela conhece o assunto de que fala,
e que fala a verdade tanto quanto a sabe.

É incorrecto em todas as circunstâncias acreditar com base em indícios insuficientes; e onde duvidar e investigar é uma
presunção, acreditar é aí pior do que uma presunção.

3

A VONTADE DE ACREDITAR
WILLIAM JAMES

Na biografia recentemente publicada que Leslie Stephen escreveu sobre o seu irmão, Fitzjames, há o relato de uma escola que
este frequentou em criança. O professor, um tal Sr. Guest, tinha o hábito de falar com os seus alunos nestes termos: «Gurney, qual
é a diferença entre justificação e santificação? Stephen, prova a omnipotência de Deus!», etc. No seio do nosso livre-pensamento e
indiferença de Harvard, tendemos a imaginar que aqui, no nosso bom velho colégio ortodoxo, a conversa continua mais ou menos
nestes parâmetros; e para vos mostrar que em Harvard não perdemos todo o interesse nestes assuntos vitais, trouxe comigo esta
noite algo de semelhante a um sermão acerca da justificação pela fé, para vo-lo ler — falo de um ensaio sobre a justificação da fé,
uma defesa do nosso direito a adoptar uma atitude crente em assuntos religiosos, apesar de o nosso intelecto meramente lógico
poder não ter sido compelido. «A Vontade de Acreditar», consequentemente, é o título do meu artigo.

Há muito que defendo perante os meus próprios alunos a legitimidade da fé adoptada voluntariamente; mas assim que ficam bem
adentrados no espírito lógico, têm por norma recusar admitir a legitimidade filosófica da minha asserção, embora eles mesmos, na
verdade, estejam todos, pessoalmente e a cada momento, repletos de uma fé ou outra. Mantive-me sempre, contudo, tão
profundamente convicto de que a minha posição está correcta, que o vosso convite me pareceu uma boa ocasião para esclarecer as
minhas afirmações. Talvez as vossas mentes estejam mais abertas do que aquelas com que até agora tive de lidar. Serei o menos
técnico possível, embora tenha de começar por estabelecer algumas distinções técnicas que acabarão por nos ajudar.

Chamemos hipótese a qualquer coisa que se proponha como objecto da nossa crença; e tal como os linguistas6 falam em metáforas
vivas e mortas, diremos que uma hipótese qualquer está viva ou morta. Uma hipótese está viva se parece uma possibilidade real à
pessoa a quem se apresenta. Se vos peço que acreditem no Mádi, esta noção não estabelece qualquer conexão vívida com a vossa
natureza — escusa-se de todo em todo a pulsar com alguma credibilidade. Como hipótese, está completamente morta. Para um
árabe, contudo, (mesmo que não pertença aos seguidores do Mádi), esta hipótese encontra-se entre as possibilidades da mente:
está viva. Isto mostra que a morbidez e a vividez numa hipótese não são propriedades intrínsecas, mas relações entre a hipótese e
o pensador individual. São aferidas pela sua inclinação para agir. O máximo de vividez numa hipótese significa inclinação para agir
irrevogavelmente. Na prática, isto quer dizer crença; mas há uma tendência para acreditar onde quer que haja disposição para
agir.

Em seguida, chamemos opção à decisão entre duas hipóteses. As opções podem ser de tipos diferentes. Podem ser: 1) vivas ou
mortas, 2) forçosas ou evitáveis, 3) momentosas ou triviais; e para o que nos interessa, podemos chamar genuína a uma opção
quando pertence ao tipo das opções que são forçosas, vivas e momentosas.

1. Uma opção viva é uma opção em que ambas as hipóteses estão vivas. Se vos digo: «Sejam teosofistas ou maometanos», trata-
se provavelmente de uma opção morta, porque para vós nenhuma das hipóteses tem probabilidade de estar viva. Mas se
afirmo: «Sejam agnósticos ou cristãos», a história é outra: dada a vossa formação, cada hipótese apela, por muito pouco que
seja, à vossa crença.
2. De seguida, se vos digo: «Escolham entre sair com ou sem a vossa umbrela», não vos ofereço uma opção genuína, pois não é
forçosa. Podem facilmente evitá-la não saindo sequer. De igual modo, se digo «Ou me amam ou me odeiam», «ou consideram
a minha teoria verdadeira ou a consideram falsa», a vossa opção é evitável. Podem permanecer indiferentes a mim, nem me
amando nem me odiando, e podem recusar-se a emitir qualquer juízo a respeito da minha teoria. Mas se digo «Ou aceitam
esta verdade ou lhe passam ao lado», coloco-vos uma opção forçosa, pois não há lugar fora da alternativa. Todos os dilemas
baseados numa disjunção lógica completa, sem a possibilidade de não escolher, são opções deste tipo forçoso.
3. Finalmente, se eu fosse o Dr. Nansen e vos convidasse a juntarem-se à minha expedição ao Pólo Norte, a vossa opção seria
momentosa; pois provavelmente não voltariam a ter uma oportunidade semelhante, e o que escolhessem agora ou vos
excluiria completamente do tipo de imortalidade norte-polar ou colocaria pelo menos essa hipótese nas vossas mãos. Quem
recusa uma oportunidade única perde tão seguramente o prémio como se tivesse tentado e falhado. Per contra, a opção é
trivial quando a oportunidade não é única, quando o que está em causa é insignificante, ou quando a decisão é reversível se
mais tarde se mostrar insensata. Tais opções triviais abundam na vida científica. Um químico considera que uma hipótese está
suficientemente viva para passar um ano a verificá-la: acredita nela até esse ponto. Mas se as suas experiências se mostram
duplamente inconclusivas, perdoa-se a sua perda de tempo, não resultando daí qualquer mal vital.

A nossa discussão será mais fácil se tivermos bem presentes estas distinções.

II

A questão seguinte a considerar é a psicologia propriamente dita da opinião humana. Quando olhamos para determinados factos,
parece que a nossa natureza passional e volitiva está na raiz de todas as nossas convicções. Quando olhamos para outros factos,
parece que essa natureza nada pode fazer depois do intelecto se ter pronunciado. Consideremos antes de mais estes últimos
factos.

Não parece absurdo, à primeira vista, afirmar que as nossas opiniões são modificáveis segundo a nossa vontade? Poderá a nossa
vontade ajudar ou estorvar o nosso intelecto na sua percepção da verdade? Será que podemos, querendo-o apenas, acreditar que a
existência de Abraham Lincoln é um mito e que os seus retratos na McClure’s Magazine são de outra pessoa? Será que podemos,
por qualquer esforço da vontade, ou por força de desejar que fosse verdadeiro, acreditar que estamos de boa saúde quando
estamos acamados a berrar com reumatismo, ou ter a certeza de que a soma das duas notas de dólar que temos no bolso perfaz
cem dólares? Podemos afirmar qualquer destas coisas, mas não temos de modo algum o poder de acreditar nelas; e é
precisamente de tais coisas que se faz o tecido das verdades em que realmente acreditamos — questões de facto, imediatas ou
remotas, como afirmou Hume, e relações entre ideias, que ou estão lá para nós ou não se as encararmos desse modo, e que não
estando não podem ser colocadas lá por qualquer acção nossa.

Nos Pensamentos de Pascal há uma passagem célebre, conhecida na bibliografia como a «aposta de Pascal». Aí, Pascal tenta
compelir-nos ao cristianismo argumentando como se a nossa preocupação com a verdade se assemelhasse ao interesse que
teríamos num jogo de azar. Traduzidas livremente, eis as suas palavras: têm ou de acreditar ou de não acreditar que Deus existe —
o que escolhem? A vossa razão humana não pode decidir. Decorre um jogo entre vocês e a natureza das coisas que no dia do juízo
vai dar caras ou coroas. Ponderem quais seriam os vossos ganhos e perdas se apostassem tudo em caras, ou na existência de Deus:
ao ganhar nessas circunstâncias, ganhariam a beatitude eterna; perdendo, nada perderiam sequer. Se nesta aposta houvesse uma
infinidade de possibilidades e só uma favorável a Deus, deviam ainda assim apostar tudo em Deus; pois embora agindo desta
maneira arrisquem seguramente uma perda finita, qualquer perda finita é razoável, até mesmo uma perda finita certa, se há
sequer a possibilidade de um ganho infinito. Vão, pois, tomar a água benta e mandar recitar a missa; a crença virá entorpecer-vos
os escrúpulos — Cela vous fera croire et vous abêtira. Por que não? No fundo, o que têm a perder?

Provavelmente sentem que quando a fé religiosa se exprime assim, na linguagem da mesa de jogo, está a lançar os seus últimos
trunfos. Seguramente que a própria crença pessoal que Pascal tem nas missas e na água benta teve uma origem muito diferente; e
esta sua célebre página não é senão um argumento para outros, uma última tentativa desesperada de deitar mão a uma arma
contra a dureza do coração do descrente. Sentimos que uma fé nas missas e na água benta adoptada voluntariamente depois de
um cálculo tão mecânico careceria da alma interior da realidade da fé; e se estivéssemos nós próprios no lugar da divindade,
provavelmente teríamos um prazer especial em impedir a crentes deste calibre o acesso à recompensa infinita. É evidente que a
menos que haja uma tendência preexistente para acreditar nas missas e na água benta, a opção que Pascal oferece à vontade não
é uma opção viva. Certamente que nenhum turco, por sua própria conta, veria com bons olhos as missas e a água benta; e mesmo
para nós, protestantes, estes meios de salvação parecem impossibilidades de tal maneira ultrapassadas que a lógica de Pascal,
invocada especificamente a favor destes meios, nos deixa indiferentes. De igual modo podia o Mádi escrever-nos, afirmando: «Sou
o Esperado a quem Deus, no seu esplendor, criou. Serão infinitamente felizes se me reconhecerem; de contrário serão afastados da
luz do Sol. Ponderem então o vosso ganho infinito no caso de eu ser genuíno, contra o vosso sacrifício finito no caso de não o ser!»
A sua lógica seria a de Pascal; mas seria vão usá-la em nós, pois a hipótese que nos oferece está morta. Não há em nós qualquer
tendência para agir com base nela, em grau algum.

Falar em acreditar segundo a nossa vontade parece, assim, de certo ponto de vista, simplesmente tolo. De outro ponto de vista, é
pior do que tolo: é vil. Quando nos voltamos para o magnífico edifício das ciências físicas e vemos como foi erguido; quantos
milhares de vidas morais humanas desinteressadas jazem só nos seus alicerces; quanta paciência e adiamento, quanto abafar das
preferências, quanta submissão às leis gélidas do facto exterior, talhada na própria pedra e na argamassa; como se mantém de pé,
absolutamente impessoal na sua vasta majestade — como parece então enfatuado e desprezível cada pequeno sentimentalista que
vem soprar as suas espirais de fumo voluntárias, fingindo decidir as coisas a partir do seu sonho privado! Será que nos podemos
sentir surpresos, se os que foram criados na escola austera e viril da ciência tenham vontade de cuspir tal subjectivismo das suas
bocas? Todo o sistema de lealdades que cresce nas escolas de ciência se opõe completamente a que se tolere tal coisa; de modo
que é perfeitamente natural que quem contraiu a febre científica passe ao extremo oposto e por vezes escreva como se o intelecto
incorruptivelmente honesto devesse preferir em absoluto a amargura e a inaceitabilidade ao coração inebriado.

«Fortifica-me a alma saber

Que, embora eu pereça, a verdade é o que é»,

canta Clough, enquanto Huxley exclama:

«O meu único consolo está em observar que, por muito má que a nossa posteridade venha a ser, enquanto se ativerem à
regra simples de não fingir acreditar naquilo para o qual não dispõem de quaisquer razões, por lhes poder ser vantajoso
fingi-lo [a palavra «fingir» é seguramente redundante aqui], não terão chegado ao patamar mais baixo da imoralidade.»

E Clifford, o delicioso enfant terrible, escreve:

«Profana-se a crença ao concedê-la a afirmações improvadas e inquestionadas, para consolo e prazer privado do crente
[…] quem desejar bem aos seus semelhantes nesta matéria guardará a pureza da sua crença com o fanatismo próprio de
um zelo ciumento, para que a dada altura não recaia sobre um objecto indigno, ganhando uma mancha que jamais se
poderá remover […] Mas se a crença foi aceite com base em indícios insuficientes [ainda que a crença seja verdadeira,
como Clifford explica na mesma página], é um prazer roubado […] É pecaminoso, porque é roubado em desprezo pelo
nosso dever perante a humanidade. Esse dever consiste em precaver-nos de tais crenças como de uma epidemia, que
pode em pouco tempo tomar conta do nosso próprio corpo e então propagar-se para o resto da cidade […] É sempre
incorrecto, em todo o lado, para qualquer pessoa, acreditar seja no que for com base em indícios insuficientes.»

III

Tudo isto nos parece saudável, mesmo quando expresso, como o faz Clifford, com uma paixão demasiado vocal. O livre-arbítrio e o
mero desejo, no que diz respeito às nossas crenças, parecem estar a mais. No entanto, se alguém pressupõe de imediato que a
penetração intelectual é o que resta depois de o desejo, a vontade e a preferência sentimental terem partido, ou que as nossas
opiniões passam a ser decididas pela razão pura, opor-se-ia directamente à realidade dos factos.

São só as nossas hipóteses já mortas que a nossa natureza volitiva é incapaz de trazer de novo à vida. Mas o que as fez morrer
para nós é, na sua maior parte, uma acção prévia, de tipo antagónico, da nossa natureza volitiva. Quando digo «natureza volitiva»,
não me refiro apenas a volições deliberadas que podem ter estabelecido hábitos de crença aos quais agora não conseguimos
escapar — refiro-me a todos os factores de crença, como o medo e a esperança, o preconceito e a paixão, a imitação e o
partidarismo, a pressão envolvente da nossa classe e grupo. Na verdade, damos connosco a acreditar sem saber ao certo como
nem porquê. O Sr. Balfour dá o nome de «autoridade» a todas estas influências, nascidas do clima intelectual, que tornam as
hipóteses possíveis ou impossíveis para nós, vivas ou mortas. Aqui nesta sala, todos acreditamos em moléculas e na conservação
da energia, na democracia e no progresso necessário, no cristianismo protestante e no dever de lutar pela «doutrina do imortal
Monroe», tudo por nenhuma razão digna do nome. A claridade interior com que discernimos estes assuntos não é maior, e talvez
até seja menor, do que aquela que qualquer descrente nos mesmos pode ter. A sua inconvencionalidade teria provavelmente
algumas razões a mostrar a favor das suas conclusões; mas para nós, não é a ideia sagaz e sim o prestígio das opiniões o que as faz
soltar uma centelha e acender os nossos paióis adormecidos da fé. A nossa razão satisfaz-se cabalmente, novecentas e noventa e
nove em cada mil de nós, se encontrar alguns argumentos que se possa recitar no caso de alguém criticar a nossa credulidade. A
nossa fé é fé na fé de outrem e, nas questões mais importantes, é isto sobretudo o que acontece. A nossa crença na própria
verdade, por exemplo, de que há uma verdade, e de que esta e as nossas mentes foram feitas uma para a outra — o que é senão
uma afirmação apaixonada de desejo, em que o nosso sistema social nos apoia? Queremos ter uma verdade; queremos acreditar
que as nossas experiências, estudos e discussões têm de nos colocar numa posição cada vez melhor em direcção à verdade; e nesta
linha concordamos resolver as nossas vidas pensantes. Mas se um céptico pirrónico nos perguntar como podemos saber tudo isto,
poderá a nossa lógica dar-lhe uma resposta? Não! Certamente que não. Trata-se apenas de uma volição contra outra — nós
dispostos a avançar para uma vida com base numa confiança ou pressuposto que ele, por sua parte, não se preocupa em fazer.7

Por regra, rejeitamos a crença em todos os factos e teorias para as quais não temos uso. As emoções cósmicas de Clifford não
vêem qualquer utilidade nos sentimentos cristãos. Huxley ataca duramente os bispos porque no seu esquema de vida o sacerdócio
não tem qualquer utilidade. Newman, pelo contrário, passa para o catolicismo romano, e encontra todo o género de boas razões
para aí permanecer, porque um sistema sacerdotal é para ele uma necessidade orgânica e um deleite. Por que são tão poucos os
«cientistas» que chegam sequer a olhar para os indícios a favor da chamada «telepatia»? Porque pensam que, como um importante
biólogo já falecido me disse uma vez, mesmo se tal coisa fosse verdadeira, os cientistas deviam unir-se para a manter reprimida e
escondida. Esta desfaria a uniformidade da natureza e todo o género de outras coisas sem as quais os cientistas não podem levar a
cabo as suas actividades investigativas. Mas se a este mesmo homem se mostrasse algo que ele, como cientista, pudesse fazer com
a telepatia, talvez não só examinasse os indícios como até os considerasse suficientemente bons. Esta mesma lei que os lógicos nos
impõem — se me permitem chamar «lógicos» a todos os que nesta questão excluiriam a nossa natureza volitiva — em nada se
baseia senão no seu próprio desejo natural de excluir todos os elementos nos quais, na sua qualidade profissional de lógicos, não
conseguem ver qualquer utilidade.

É claro, portanto, que a nossa natureza inintelectual influencia as nossas convicções. Há tendências passionais e volições que
ocorrem antes da crença, outras que surgem depois, e só as últimas entram em cena demasiado tarde; e não entram demasiado
tarde quando o trabalho passional prévio já as vinha preparando. O argumento de Pascal, em vez de não ter força, parece assim
um tira-teimas como os outros, e é a última estocada necessária para tornar completa a nossa fé nas missas e na água benta. É
evidente que este estado de coisas nada tem de simples; a mera penetração intelectual e a lógica, seja o que for que possam fazer
idealmente, não são as únicas coisas que de facto produzem as nossas crenças.

IV

O nosso dever seguinte, tendo reconhecido este estado de coisas misturado, é perguntar se é ou não simplesmente repreensível e
patológico, ou se, pelo contrário, temos ou não de o tratar como um elemento normal ao tomar decisões. A tese que defendo é, em
poucas palavras, a seguinte: A nossa natureza passional não só pode, legitimamente, como deve decidir uma opção entre
proposições, sempre que se trata de uma opção genuína que não pode, pela sua natureza, ser decidida numa base intelectual; pois
afirmar, em tais circunstâncias, «Não decidas, deixa a questão em aberto», é em si uma decisão passional — tal como decidir pelo
sim ou pelo não — e tem o mesmo risco de perder a verdade. A tese aqui expressa abstractamente tornar-se-á em breve, espero,
bastante clara. Mas antes tenho de me demorar um pouco mais no trabalho preliminar.

Observar-se-á que, para o que interessa a esta discussão, estamos em terreno «dogmático» — terreno, quero dizer, que deixa
completamente de parte o cepticismo filosófico sistemático. O postulado de que há a verdade e que o destino das nossas mentes é
alcançá-la, estamos deliberadamente resolvidos a aceitar, embora o céptico não o faça. Afastamo-nos da sua companhia, portanto,
absolutamente, daqui para a frente. Mas a fé, segundo a qual a verdade existe e as nossas mentes a podem descobrir, pode ser
defendida de duas maneiras. Podemos falar no modo empirista e no modo absolutista de acreditar na verdade. Os absolutistas
neste assunto afirmam que não só conseguimos chegar ao conhecimento da verdade, como podemos saber quando alcançámos
esse conhecimento; ao passo que os empiristas pensam que embora o possamos alcançar, não podemos saber infalivelmente
quando o fizemos. Saber é uma coisa e saber com certeza que sabemos é outra. Pode-se defender que a primeira é possível sem a
segunda; é por isto que os empiristas e os absolutistas, embora nenhum seja céptico no sentido filosófico usual do termo, exibem
nas suas vidas graus de dogmatismo muito diferentes.

Se olharmos para a história das opiniões, vemos que a tendência empirista prevaleceu em grande medida na ciência, ao passo que
na filosofia a tendência absolutista tem feito tudo à sua maneira. O género característico de felicidade, de facto, que as filosofias
produzem, tem consistido, sobretudo, na convicção, sentida por cada escola ou sistema sucessivos, de que, por meio dessa escola
ou sistema, se alcançara a certeza definitiva. «As outras filosofias são colecções de opiniões, na sua maioria falsas; a minha
filosofia dá-nos um ponto fixo para sempre» — quem não reconhece nisto a tónica de todo o sistema digno desse nome? Um
sistema, para sequer ser um sistema, tem de se apresentar como um sistema fechado, reversível neste ou naquele detalhe, talvez,
mas nunca nas suas características essenciais!

A ortodoxia escolástica, a que sempre temos de recorrer quando desejamos encontrar uma afirmação perfeitamente clara,
elaborou belissimamente esta convicção absolutista na chamada doutrina dos «indícios objectivos». Se, por exemplo, sou incapaz
de duvidar de que existo agora perante vós, que dois são menos do que três, ou que se todos os homens são mortais, então
também sou mortal, é porque estas coisas iluminam o meu intelecto irresistivelmente. A justificação última destes indícios
objectivos que certas proposições têm é a adequatio intellectus nostri cum re. A certeza que traz envolve uma aptitudinem ad
extorquendum certum assensum por parte da verdade visada e, por parte do sujeito, uma quietem in cognitione, assim que o
objecto é mentalmente apreendido, não deixando lugar a qualquer possibilidade de dúvida; e em todo este processo nada opera
senão a entitas ipsa do objecto e a entitas ipsa da mente. A nós, desleixados pensadores modernos, desagrada-nos a conversa em
latim — na verdade, desagrada-nos conversar com termos bem definidos de todo em todo; mas no fundo o nosso próprio estado de
espírito é muito semelhante a isto sempre que nos deixamos ir acriticamente: vocês acreditam nos indícios objectivos, e eu
também. De algumas coisas sentimos que estamos certos: sabemos, e sabemos que sabemos. Algo ressoa em nós, um sino que bate
as doze badaladas, quando os ponteiros do nosso relógio mental deram a volta ao mostrador e se encontram ao meio-dia. Os
maiores empiristas entre nós só o são quando reflectem: abandonados aos seus instintos, dogmatizam como papas infalíveis.
Quando os Clifford nos dizem como é pecaminoso ser cristão com base em tão «insuficientes indícios», a insuficiência é na verdade
a última coisa que têm em mente. Para eles, os indícios são absolutamente suficientes, só que em sentido contrário. Acreditam tão
completamente numa ordem anticristã do universo que não há qualquer opção viva: a hipótese do cristianismo está morta à
partida.

VI

Mas agora, visto que todos somos tais absolutistas por instinto, o que devemos fazer, na qualidade de estudantes de filosofia,
acerca deste facto? Devemos defendê-lo e sancioná-lo? Ou tratá-lo-emos como uma fraqueza da nossa natureza, da qual temos de
nos libertar, caso o possamos fazer?

Creio sinceramente que o último procedimento é o único que podemos adoptar enquanto homens de reflexão. Os indícios
objectivos e a certeza são sem dúvida excelentes ideais com que brincar, mas onde, neste planeta iluminado pela Lua e visitado por
sonhos, os encontramos? Eu próprio sou, portanto, um completo empirista no que diz respeito à minha teoria do conhecimento
humano. Vivo, certamente, de acordo com a fé prática de que temos de continuar a experimentar e a reflectir sobre a nossa
experiência, pois só assim as nossas opiniões se podem aproximar da verdade; mas creio que a atitude de adoptar qualquer uma
delas — é-me de todo indiferente qual — como se jamais pudesse ser reinterpretável ou corrigível, é um tremendo equívoco, e
penso que toda a história da filosofia me irá corroborar. Não há senão uma verdade indefectivelmente certa, que o próprio
cepticismo pirrónico deixa de pé — a verdade de que o fenómeno presente da consciência existe. Isso, contudo, é o ponto de
partida nu do conhecimento, a mera admissão de uma matéria acerca da qual filosofar. As diversas filosofias são meras tentativas
de exprimir o que esta matéria realmente é. E se vamos às nossas bibliotecas quanto desacordo descobrimos! Onde se encontra
uma resposta indubitavelmente verdadeira? Além de proposições abstractas comparativas (tais como «dois mais dois é igual a
quatro»), proposições que em si mesmas nada nos dizem acerca da realidade concreta, não encontramos qualquer proposição que
alguém tenha considerado evidentemente certa ao ponto de nunca a terem declarado uma falsidade, ou pelo menos cuja verdade
nunca foi seriamente questionada por outrem. Transcender os axiomas da geometria, não a brincar, mas a sério, por parte de
alguns dos nossos contemporâneos (como Zöllner e Charles H. Hinton), e a rejeição de toda a lógica aristotélica pelos hegelianos,
são exemplos flagrantes a este respeito.
Nenhum teste concreto daquilo que é realmente verdadeiro foi alguma vez objecto de consenso. Alguns tornam o critério externo
ao momento da percepção, colocando-o na revelação, no consensus gentium, nos instintos do coração ou na experiência
sistematizada do género humano. Outros transformam o momento perceptivo em teste de si próprio — Descartes, por exemplo,
com as suas ideias claras e distintas garantidas pela veracidade de Deus; Reid com o seu «senso comum»; e Kant com as suas
formas do juízo sintético a priori. O carácter inconcebível do oposto; a capacidade de ser verificado pelos sentidos; a posse de
unidade orgânica completa ou auto-relação, realizada quando uma coisa é o seu próprio outro — são cânones que foram, por sua
vez, usados. Os louvadíssimos indícios objectivos não estão, triunfalmente, em lado algum; é uma mera aspiração ou Grenzbegriff,
assinalando o ideal infinitamente remoto da nossa vida pensante. Afirmar que determinadas verdades agora o possuem é
simplesmente afirmar que, quando as consideramos verdadeiras, e são verdadeiras, os indícios a seu favor são objectivos e de
contrário não. Mas na prática, a nossa convicção de que os indícios por que nos guiamos são da variedade genuinamente objectiva,
é apenas mais uma opinião subjectiva que se acrescenta às outras. Pois já se reivindicou a objectividade dos indícios favoráveis e a
certeza absoluta para uma tão grande variedade de opiniões contraditórias! O mundo é inteiramente racional — a sua existência é
um facto bruto último; há um Deus pessoal — um Deus pessoal é inconcebível; há um mundo físico extramental imediatamente
conhecido — a mente apenas pode conhecer as suas próprias ideias; existe um imperativo moral — a obrigação é apenas o
resultado dos desejos; há em todos um princípio espiritual permanente — há apenas estados mentais inconstantes; há uma cadeia
interminável de causas — há uma primeira causa absoluta; uma necessidade eterna — uma liberdade; um propósito — nenhum
propósito; um Uno primordial — um Múltiplo primordial; uma continuidade universal — uma descontinuidade essencial nas coisas;
uma infinidade — nenhuma infinidade. Há isto — há aquilo; nada há, na verdade, que alguém não tenha considerado
absolutamente verdadeiro, ao passo que o seu vizinho o considerou absolutamente falso; e nenhum absolutista entre eles parece
ter alguma vez considerado que o problema pode ter sido sempre essencial e que o intelecto, mesmo com a verdade directamente
ao seu alcance, pode não ter qualquer sinal infalível para saber se é ou não verdadeiro. Efetivamente, quando recordamos que a
mais flagrante aplicação prática à vida da doutrina da certeza objectiva foi o trabalho consciencioso do Santo Ofício da Inquisição,
sentimo-nos menos tentados do que nunca a ouvir com bonomia tal doutrina.

Mas observem agora, peço-vos, que quando, na qualidade de empiristas, abandonamos a doutrina da certeza objectiva, não
deixamos por isso de procurar a verdade em si ou ter esperança nela. Ainda depositamos a nossa fé na sua existência e ainda
acreditamos que conseguimos progredir cada vez mais na sua direcção, continuando sistematicamente a acumular experiências e
a pensar sobre elas. A grande diferença entre nós e o escolástico está no lado para o qual nos voltamos. A força do seu sistema
está nos princípios, na origem, no terminus a quo do seu pensamento; para nós a força está no resultado, no desfecho, no terminus
ad quem. O decisivo não é de onde vem, mas aonde conduz. Não importa a um empirista qual a procedência de uma hipótese que
se lhe depara: pode tê-la obtido por meios justos ou ilícitos; pode ter-lhe sido sussurrada pela paixão ou sugerida pelo acaso; mas
se a direcção total do pensamento continuar a confirmá-lo, é isso o que significa dizer que é verdadeiro.

VII

Um aspecto ainda, pequeno, mas importante, e concluímos os nossos preliminares. Há duas maneiras de encarar o nosso dever, no
que diz respeito à opinião — maneiras completamente diferentes e, no entanto, maneiras a cuja diferença a teoria do
conhecimento parece ter dado até agora muito pouca atenção. Temos de saber a verdade; temos de evitar o erro — estes são os
nossos primeiros e grandiosos mandamentos, como pretendentes ao conhecimento; mas não são duas maneiras de afirmar um
mesmo mandamento, são duas leis distintas. Embora possa de facto acontecer que acreditar na verdade A tenha a consequência
lateral de nos livrarmos de acreditar na falsidade B, quase nunca se dá o caso de acreditarmos necessariamente em A apenas por
não acreditarmos em B. Podemos, ao evitar B, acabar acreditando noutras falsidades, C ou D, tão más como B; ou podemos evitar
B tão-pouco acreditando seja no que for, nem mesmo em A.

Acreditem na verdade! Evitem o erro! — Estas, como se vê, são duas leis materialmente diferentes; e ao escolher entre elas
podemos acabar por dar uma tonalidade diferente a toda a nossa vida intelectual. Podemos encarar a caça à verdade como
primordial e a fuga ao erro como secundária; ou podemos, por outro lado, tratar a fuga ao erro como algo mais imperativo e deixar
a verdade correr os seus riscos. Clifford, na instrutiva passagem que citei, exorta-nos a escolher o segundo caminho. Não
acreditem em coisa alguma, diz-nos, mantenham para sempre a mente em suspenso, em vez de, cingindo-se a indícios
insuficientes, incorrer no terrível risco de acreditar numa mentira. Vocês, por outro lado, podem pensar que o risco de cair em erro
é algo de somenos importância por comparação à bênção do conhecimento genuíno, e aceitar serem enganados muitas vezes na
vossa investigação em vez de adiar indefinidamente a hipótese de acertar na verdade. Por mim considero impossível acompanhar
Clifford. Temos de recordar que estes sentimentos sobre o nosso dever perante a verdade ou o erro são, em todo o caso, apenas
expressões da nossa vida passional. Biologicamente consideradas, as nossas mentes são tão aptas a destilar a falsidade como a
veracidade, e quem afirma «Antes passar toda a vida sem crenças do que acreditar numa mentira!» apenas mostra o seu
preponderante horror privado de se tornar um palerma. Pode ser crítico relativamente a muitos dos seus desejos e medos, mas a
este medo obedece servilmente. Não pode imaginar que alguém questione a sua força vinculadora. Da minha parte, tenho também
horror a ser intrujado; mas acredito que neste mundo podem acontecer coisas piores a um homem além de ser intrujado: pelo que
a exortação de Clifford tem uma ressonância completamente fantástica nos meus ouvidos. É como um general que diz os seus
soldados que mais vale evitar eternamente a batalha do que arriscar uma única ferida. Não se consegue assim vitórias sobre
inimigos ou sobre a natureza. Os nossos erros não são com certeza coisas tão horrivelmente solenes. Num mundo onde estamos
tão certos de incorrer neles, por muito prudentes que sejamos, uma certa ligeireza de espírito parece mais saudável do que este
nervosismo exagerado por sua causa. Em todo o caso, parece o mais apropriado ao filósofo empirista.

VIII

E agora, depois de toda esta introdução, passemos de imediato à nossa questão. Afirmei, e agora repito, que não só vemos que, na
realidade, a nossa natureza passional influencia as nossas opiniões como que há opções entre opiniões em que se tem de encarar
esta influência como um factor determinante, tanto inevitável como legítimo, da nossa escolha.

Receio neste ponto que alguns dos que me ouvem começarão a farejar o perigo, interpretando-me então de modo não caridoso.
Dois primeiros passos da paixão tiveram de facto de admitir como necessários — temos de pensar de maneira a evitar a intrujice, e
temos de pensar de modo a obter a verdade; mas o caminho mais seguro para essas consumações ideais, considerarão muito
provavelmente, é de agora em diante não dar mais passos passionais.

Bom, claro que concordo, tanto quanto os factos o permitirem. Sempre que a opção entre perder a verdade e ganhá-la não é
momentosa, podemos deitar fora a hipótese de obter a verdade e, em qualquer circunstância, salvaguardar-nos de qualquer
hipótese de acreditar em falsidades, não decidindo sequer antes de haver indícios objectivos disponíveis. Nas questões científicas,
isto é quase sempre assim; e mesmo nos assuntos humanos em geral, poucas vezes a necessidade de agir é tão urgente que faça
uma falsa crença sobre a qual basear a acção ser melhor do que nenhuma crença sequer. Os tribunais, de facto, têm de decidir
com base nos melhores indícios que se pode obter no momento, porque o dever de um juiz é tanto fazer a lei como averiguá-la, e
(como me disse em tempos um juiz de grande erudição) poucos são os casos em que vale a pena perder muito tempo: o importante
é decidi-los com base em qualquer princípio aceitável, e passar adiante. Mas na nossa relação com a natureza objectiva somos
obviamente registadores e não produtores da verdade; e decisões tomadas apenas em função de decidir prontamente e passar à
próxima tarefa seriam completamente deslocadas. Em toda a amplitude da natureza física os factos são o que são,
independentemente de nós, e raramente há a propósito deles uma urgência tal que tenha de se enfrentar os riscos de ser
enganado por acreditar numa teoria prematura. As questões aqui são sempre opções triviais, as hipóteses dificilmente estão vivas
(em todo o caso, não estão vivas para nós espectadores), a escolha entre acreditar na verdade ou na falsidade raramente é forçosa.
A atitude do equilíbrio céptico é, portanto, absolutamente sensata, para que evitemos os erros. Que diferença realmente fará para
a maior parte de nós se temos ou não uma teoria dos raios Röntgen, se acreditamos ou não na substância mental, se temos ou não
convicções acerca da causalidade dos nossos estados conscientes? É indiferente. Tais opções não são forçosas para nós. Em todos
os aspectos, é melhor não as fazer, continuando, todavia, a pesar as razões pro et contra de modo indiferente.

Falo aqui, é claro, da mente puramente judicativa. No que interessa à descoberta, tal indiferença não é tão fortemente
recomendável, e a ciência estaria muito menos avançada do que está se se mantivesse fora de cena os desejos inflamados dos
indivíduos em ver confirmada a sua própria fé. Veja-se, por exemplo, a sagacidade que Spencer e Weismann agora exibem. Por
outro lado, se querem um perfeito bronco a investigar, têm, afinal, de escolher o homem que não tem qualquer interesse nos
resultados: é o inepto autorizado, o tolo genuíno. O investigador mais útil, porque é o observador mais sensível, é sempre aquele
cujo interesse ardente num dos lados da questão é equilibrado por um nervosismo igualmente intenso, para que não se deixe
iludir.8 A ciência organizou este nervosismo tornando-o uma técnica normal, o seu chamado «método de verificação»; e apaixonou-
se tão profundamente pelo método que se pode mesmo afirmar que parou de se preocupar com a verdade por si, de todo em todo.
É apenas a verdade enquanto tecnicamente verificada que lhe interessa. A verdade das verdades podia assumir uma forma
meramente afirmativa e ela recusaria tocar-lhe. A ciência podia repetir com Clifford que tal verdade seria roubada em desrespeito
ao seu dever perante a humanidade. As paixões humanas, todavia, são mais fortes do que as regras técnicas. «Le coeur a ses
raisons», como afirma Pascal, «que la raison ne connaît point»; e por muito que o árbitro, o intelecto abstracto, seja indiferente a
tudo excepto as simples regras do jogo, os jogadores concretos que lhe dão os materiais para julgar estão normalmente, cada um
deles, apaixonados pela sua própria «hipótese viva» de estimação. Concordemos, todavia, que sempre que não haja uma opção
forçosa, o intelecto friamente judicativo, desprovido de qualquer hipótese de estimação, salvaguardando-nos, como faz, do engano,
em todo o caso, deve ser o nosso ideal.

Levanta-se em seguida a questão: não haverá algures opções forçosas nas nossas questões especulativas, e será que podemos
(como homens que talvez estejam pelo menos tão interessados em obter positivamente a verdade como em meramente evitar o
engano) esperar sempre impunemente até que tenham chegado os indícios coercivos? Parece a priori improvável que a verdade se
ajustasse assim tão bem às nossas necessidades e poderes. Na grande hospedaria da natureza, raramente os bolos, a manteiga e o
xarope ficam tão suaves e deixam os pratos tão limpos. Na verdade, devíamos encará-los com desconfiança científica se o
fizessem.

IX

As questões morais apresentam-se imediatamente como questões cuja solução não pode esperar por uma prova tangível. Uma
questão moral não é sobre o que tangivelmente existe, mas sobre o que é bom, ou seria bom se existisse. A ciência pode dizer-nos
o que existe; mas para comparar os valores, tanto daquilo que existe como do que não existe, temos de consultar não a ciência mas
aquilo a que Pascal chama o nosso «coração». A própria ciência consulta o coração quando estabelece que a infinita averiguação
dos factos e a correcção das crenças falsas são os bens supremos para o homem. Desafie-se a afirmação e a ciência só pode repeti-
la de modo oracular, ou então prová-la, mostrando que tal confirmação e correcção trazem ao homem todo o género de outros bens
que o coração do homem por sua vez declara. A questão de ter crenças morais, de todo em todo, ou de não as ter, é decidida pela
nossa vontade. Serão as nossas preferências morais verdadeiras ou falsas, ou serão apenas fenómenos biológicos peculiares,
tornando as coisas boas ou más para nós, mas indiferentes em si? Como pode o vosso puro intelecto decidir? Se o vosso coração
não quer um mundo de realidade moral, a vossa cabeça seguramente nunca vos fará acreditar num. O cepticismo mefistofélico, na
verdade, satisfará os instintos lúdicos da cabeça muito melhor do que qualquer idealismo rigoroso. Alguns homens (mesmo em
idade estudantil) são tão naturalmente frios que a hipótese moral nunca tem para eles qualquer vida pungente, e na sua presença
altiva o moralista ardente sente-se sempre estranhamente pouco à vontade. A aparência de conhecimento está do lado daqueles, a
naiveté e a credulidade do lado deste. Contudo, no seu coração mudo, este agarra-se à convicção de que não é um palerma e que
há um domínio em que (como afirma Emerson) toda a perspicácia e superioridade intelectual daqueles não valem mais do que a
astúcia de uma raposa. O cepticismo moral não é mais fácil de refutar ou provar através da lógica do que o cepticismo intelectual.
Quando sustentamos que há verdade (seja de que tipo for), fazemo-lo com toda a nossa natureza, e decidimos ficar de pé ou cair,
consoante os resultados. O céptico, com toda a sua natureza, adopta a atitude da dúvida: mas qual de nós é o mais sensato, só a
Omnisciência sabe.

Passemos agora destas questões amplas sobre o bem para certa classe de questões de facto, questões respeitantes a relações
pessoais, estados mentais entre um homem e outro. Gostam de mim ou não? — por exemplo. Se gostam ou não, dependerá, em
inúmeras circunstâncias, de chegar a acordo convosco, da minha disposição para pressupor que devem gostar de mim e de vos
mostrar alguma confiança e expectativa. O que vos faz simpatizar comigo, em muitos casos, é a fé prévia que tenho em como o
farão. Mas se me mantenho à distância e recuso mover-me um só centímetro antes de ter indícios objectivos, antes de terem feito
algo apropriado, como dizem os absolutistas, ad extorquendum assensum meum, aposto que a vossa simpatia nunca se
manifestará. Quantos corações de mulher se deixam conquistar pela mera insistência confiante de um homem em como têm de o
amar! Não aceitará a hipótese de que não o podem fazer. O desejo por certo tipo de verdade provoca aqui a existência dessa
verdade especial; e assim é em inúmeros casos diferentes. Quem ganha promoções, favores, nomeações, senão o homem em cuja
vida se vê que estas coisas desempenham o papel de hipóteses vivas, que conta com elas, sacrifica outras coisas por causa delas
antes de as ter à vista e se arrisca de antemão por elas? A sua fé age sobre os poderes acima de si como uma reivindicação, e cria
a sua própria verificação.

Um organismo social de qualquer género que seja, pequeno ou grande, é o que é porque cada membro cumpre o seu dever
confiante de que os outros cumprirão o deles. Sempre que se alcança um resultado desejado pela cooperação de muitas pessoas
independentes, a sua existência factual é uma pura consequência da fé prévia que as pessoas imediatamente envolvidas têm umas
nas outras. Um governo, um exército, um sistema comercial, um navio, um colégio, uma equipa de atletas, todos existem sob esta
condição, sem a qual não só nada se alcança, como nada alguma vez se procura alcançar. Um comboio inteiro de passageiros (que
individualmente são bastante corajosos) será saqueado por um punhado de salteadores, simplesmente porque os últimos podem
contar uns com os outros, enquanto cada passageiro receia que ao encetar um movimento de resistência, será baleado antes que
mais alguém o ajude. Se acreditássemos que todos os passageiros se levantariam ao mesmo tempo connosco, cada um levantar-se-
ia individualmente, e jamais se tentaria assaltar comboios. Há, portanto, casos em que um facto não se pode sequer dar a menos
que exista uma fé preliminar no seu advento. E onde a fé num facto pode ajudar a criar esse facto, uma lógica segundo a qual a fé
que se adianta aos indícios científicos é o «tipo mais baixo de imoralidade» em que um ser pensante pode incorrer, seria uma
lógica doente. No entanto, tal é a lógica pela qual os nossos absolutistas científicos pretendem regular as nossas vidas!

Nas verdades que dependem da nossa acção pessoal, portanto, a fé baseada no desejo é certamente algo legítimo e possivelmente
indispensável.

Mas agora, dir-se-á, tudo isto são puerilidades humanas, e nada têm a ver com as grandes questões cósmicas, como a questão da
fé religiosa. Passemos então a essas. As religiões diferem tanto nas suas características acidentais que ao discutir a questão
religiosa temos de a tornar muito genérica e lata. O que entendemos então agora por «hipótese religiosa»? A ciência diz que as
coisas são; a moralidade diz que umas coisas são melhores do que outras; e a religião diz essencialmente duas coisas.

Em primeiro lugar, a religião afirma que as coisas melhores são as mais eternas, as que se sobrepõem, as coisas que no universo
lançam a última pedra, por assim dizer, e dão a última palavra. «A perfeição é eterna» — esta expressão de Charles Secrétan
parece uma boa maneira de colocar esta primeira afirmação da religião, uma afirmação que obviamente não pode ainda ser
cientificamente verificada, de todo em todo.

A segunda afirmação da religião é que mesmo agora ficamos melhor se acreditarmos na sua primeira afirmação.

Consideremos agora quais são os elementos lógicos desta situação no caso de a hipótese religiosa em ambas as suas ramificações
ser realmente verdadeira. (Evidentemente, temos de admitir à partida essa possibilidade. Para discutirmos a questão, de todo em
todo, esta tem de envolver uma opção viva. Se para qualquer um de vocês a religião é uma hipótese que não pode ser verdadeira
segundo qualquer possibilidade viva, não precisam de ir mais longe. Falo apenas para as «excepções que restarem».) Procedendo
assim, vemos, em primeiro lugar, que a religião se oferece como uma opção momentosa. Supostamente ganhamos, agora mesmo,
ao acreditar, e perdemos ao não acreditar, um certo bem vital. Em segundo lugar, a religião é uma opção forçosa, no que diz
respeito a esse bem. Não podemos evitar a questão permanecendo cépticos e esperando que se faça mais luz, porque, embora
assim evitemos realmente o erro no caso de a religião ser contrária à verdade, perdemos o bem, no caso de ser verdadeira, tão
seguramente como se de facto escolhêssemos não acreditar. É como se um homem hesitasse indefinidamente em pedir uma
mulher em casamento, por não ter a certeza absoluta de que depois de a levar para casa ela continua a ser um anjo. Não estará a
privar-se dessa possibilidade angélica particular tão decisivamente como se casasse com outra pessoa? O cepticismo, portanto,
não consiste em evitar a opção; é a opção por certo tipo particular de risco. Antes arriscar não acertar na verdade do que a
hipótese de cair em erro — esta é a posição exacta do nosso vetante da fé. Arrisca-se activamente tanto quanto o crente; está a
apostar todos os cavalos contra o cavalo da hipótese religiosa, tal como um crente aposta na hipótese religiosa contra todos os
outros cavalos. Pregar-nos o cepticismo como um dever até se encontrar «indícios suficientes» a favor da religião, equivale,
portanto, a dizer-nos que, na presença da hipótese religiosa, é mais sensato e melhor ceder ao nosso medo de que esta seja
errónea do que ceder à nossa esperança de que pode ser verdadeira. Não se trata do intelecto contra todas as paixões, portanto;
trata-se apenas do intelecto com uma paixão impondo a sua lei. E por que meio, em boa verdade, se garante a suprema sabedoria
desta paixão? Logro por logro, que prova há de que o logro que resulta da esperança é pior do que o que resulta do medo? Por
mim, não vejo prova alguma; e simplesmente recuso obedecer à ordem do cientista para imitar o seu tipo de opção, num caso em
que o meu próprio interesse é suficientemente importante para me dar o direito de escolher a minha própria forma de risco. Se a
religião for verdadeira e os indícios a seu favor ainda insuficientes, não desejo, deixando que extingam as chamas da minha
natureza (que me parece afinal ter algo a ver com este assunto), abdicar da minha única oportunidade na vida de entrar para o
lado vencedor — dependendo essa oportunidade, evidentemente, da minha disposição para correr o risco de agir como se a minha
necessidade passional de compreender religiosamente o mundo possa ser profética e correcta.

Tudo isto supondo que pode realmente ser profética e correcta, e que, mesmo para nós, que discutimos o assunto, a religião é uma
hipótese viva que pode ser verdadeira. Para a maioria de nós, a religião surge-nos de outra maneira ainda, que torna ainda mais
ilógico um veto à nossa fé activa. O aspecto mais perfeito e eterno do universo é representado nas nossas religiões como algo que
tem uma forma pessoal. Quando se é religioso, o universo não é mais um mero Isso, mas um Tu, para nós; e qualquer relação que
pode ser possível entre pessoas pode também ser possível aqui. Por exemplo, embora num sentido sejamos parcelas passivas do
universo, noutro sentido mostramos uma curiosa autonomia, como se fôssemos pequenos centros activos autónomos. Sentimos,
além disso, que é como se o apelo que sentimos da religião se exercesse sobre a nossa boa vontade activa, como se os indícios
pudessem ficar para sempre escondidos de nós a menos que percorramos metade do caminho na sua direcção. Tomando numa
ilustração trivial: tal como um homem que numa companhia de cavalheiros não tomasse quaisquer iniciativas, pedisse uma
garantia por cada concessão, e não acreditasse na palavra de quem quer que fosse sem provas, privar-se-ia, com tal rudeza, de
qualquer gratificação social a que um espírito mais confiante teria acesso — também aqui, quem se fecha numa atitude lógica
resmungona e tenta fazer os deuses arrancar o seu reconhecimento contra a sua vontade, não o obtendo de outro modo, pode
perder para sempre a sua única oportunidade de travar conhecimento com os deuses. Este sentimento, que nos é imposto sem que
saibamos de onde vem, de que ao acreditar obstinadamente que há deuses (embora não o fazer fosse tão fácil tanto para a nossa
lógica como para a nossa vida) prestamos ao universo o mais profundo serviço de que somos capazes, parece parte da essência
viva da hipótese religiosa. Se a hipótese fosse verdadeira em todas as suas partes, incluindo esta, então o puro intelectualismo,
com o seu veto a que tomemos iniciativas voluntárias, seria um absurdo; e exigir-se-ia logicamente alguma participação da nossa
empatia natural. Eu, portanto, por mim, não consigo ver-me aceitar as regras agnósticas para a procura da verdade, ou concordar
voluntariamente em manter a minha natureza volitiva fora de jogo. Não o posso fazer por esta razão simples: uma regra de
pensamento que me impediria em absoluto de reconhecer certos tipos de verdade se esses tipos de verdade estiverem realmente
lá, seria uma regra irracional. Isto, para mim, é tudo o que há a dizer sobre a lógica formal da situação, independentemente dos
tipos de verdade que possam materialmente existir.

Confesso que não vejo como se pode escapar a esta lógica. Mas a triste experiência faz-me recear que alguns de vocês ainda
possam inibir-se de afirmar radicalmente comigo, in abstracto, que temos o direito de acreditar por nossa conta e risco em
qualquer hipótese que esteja suficientemente viva para ser uma tentação para a nossa vontade. Suspeito, contudo, que se isto for
assim, é porque se afastaram completamente do ponto de vista lógico abstracto e pensam (talvez sem se aperceberem) em alguma
hipótese religiosa particular que para vós está morta. Aplicam a liberdade de «acreditar no que se quer» a alguma superstição
patente; e a fé em que pensam é a fé definida pelo aluno quando disse: «A fé é quando acreditamos numa coisa que sabemos não
ser verdadeira». Não posso senão repetir que isto é um equívoco. In concreto, a liberdade de acreditar só pode abranger opções
vivas que o intelecto do indivíduo não pode resolver por si; e as opções vivas nunca parecem absurdas a quem as tem em
consideração. Quando olho para a questão religiosa tal como se coloca realmente a homens concretos, e quando penso em todas as
possibilidades que envolve, tanto prática como teoricamente, esta ordem de pôr um travão ao nosso coração, instintos e coragem,
e esperar — agindo evidentemente entretanto mais ou menos como se a religião não fosse verdadeira9 — até ao dia do juízo, ou até
ao dia em que o nosso intelecto e sentidos, trabalhando conjuntamente, possam ter adquirido indícios suficientes — esta ordem,
digo, parece-me o ídolo mais bizarro que se fabricou na caverna filosófica. Fôssemos absolutistas escolásticos, talvez tivéssemos
uma desculpa maior. Se tivéssemos um intelecto infalível, com as suas certezas objectivas, podíamo-nos sentir desleais perante um
órgão de conhecimento tão perfeito ao não confiar exclusivamente nele, não esperando pela sua palavra libertadora. Mas se somos
empiristas, se acreditamos não haver em nós quaisquer sinos a tocar a rebate quando estamos perante a verdade, parece que
pregar tão solenemente que temos o dever de aguardar pelo toque do sino não passa de uma excentricidade vã. Na verdade,
podemos aguardar, se quisermos — espero que não pensem que o nego — mas se o fizermos, fazemo-lo por nossa conta e risco, tal
como se acreditássemos. Em todo o caso agimos, tomando as rédeas da nossa própria vida. Nenhum de nós devia impor vetos aos
outros, nem trocar palavras agressivas. Devemos, pelo contrário, respeitar delicada e profundamente a liberdade mental de cada
um: só então realizaremos a república intelectual, só então teremos aquele espírito de tolerância interior sem o qual toda a
tolerância exterior se torna oca, e que é a glória do empirismo; só então viveremos e deixaremos viver, tanto nas coisas
especulativas como nas práticas.
Comecei com uma referência a Fitzjames Stephen; permitam-me que termine citando-o:

«O que pensas de ti mesmo? O que pensas do mundo? […] São questões com que todos têm de lidar como lhes parecer
melhor. São charadas esfíngicas e, de uma maneira ou doutra, temos de lidar com elas […] Em todo o comércio
importante da vida, temos de dar um salto no escuro […] Se decidimos deixar as adivinhas sem resposta, é uma escolha.
Se hesitamos na nossa resposta, também isso é uma escolha; mas seja qual for a escolha que fazemos, fazemo-la por
nossa conta e risco. Se um homem escolhe voltar completamente as costas a Deus e ao futuro, ninguém o pode impedir.
Ninguém pode mostrar para lá da dúvida razoável que está enganado. Se um homem pensa o contrário, e se age tal
como pensa, não vejo como alguém pode provar que ele está enganado. Cada qual tem de agir como acha melhor, e se
está errado tanto pior para ele. Estamos num desfiladeiro, no meio de um turbilhão de neve e um nevoeiro denso,
através do qual entrevemos de vez em quando caminhos que podem ser enganadores. Se ficamos quietos, morremos
congelados. Se escolhemos a estrada errada, somos feitos em pedaços. Não sabemos com certeza se há ou não uma
estrada certa. O que temos de fazer? “Ser fortes e corajosos”. Ajam pelo melhor, esperem o melhor, aceitem o que vier
[…] Se a morte a tudo põe fim, não há maneira melhor de ir ao seu encontro.»10

4

SERÁ A CRENÇA EM DEUS APROPRIADAMENTE BÁSICA?


ALVIN PLANTINGA

Muitos filósofos têm apelado à objecção indiciarista à crença teísta; argumentam que a crença em Deus é irracional ou
irrazoável ou racionalmente inaceitável ou intelectualmente irresponsável ou noeticamente inferior, porque, segundo afirmam, os
indícios a favor desta crença são insuficientes.11 Muitos outros filósofos e teólogos — em particular os que se inserem na grande
tradição da teologia natural — afirmam que a crença em Deus é intelectualmente aceitável, mas apenas pelo facto de haver
indícios suficientes a seu favor. Estes dois grupos unem-se na defesa de que a crença teísta só é racionalmente aceitável se houver
indícios suficientes a seu favor. Mais exactamente, defendem que uma pessoa só é racional ou razoável em aceitar a crença teísta
se dispuser de indícios suficientes a favor dessa crença — isto é, só se a pessoa conhece ou crê racionalmente noutras proposições
que sustentam a proposição em causa, e acredita na última com base nas primeiras. Em «Is Belief in God Rational?» argumentei
que a objecção indiciarista enraíza no fundacionalismo clássico, uma imagem muitíssimo popular ou uma perspectiva total acerca
da fé, do conhecimento, da crença justificada, da racionalidade e de tópicos relacionados. Esta imagem tem sido amplamente
aceite desde Platão e Aristóteles; as suas familiares próximas continuam talvez a ser os modos dominantes de pensar acerca
destes tópicos. Podemos imaginar o fundacionalista clássico a começar com a observação de que algumas das nossas crenças se
podem basear noutras; pode dar-se o caso de haver um par de proposições A e B tal que acredito em A com base em B. Embora
não seja fácil caracterizar esta relação de uma maneira reveladora e intrivial, é ainda assim familiar. Acredito que a palavra
«umbroso» se soletra u-m-b-r-o-s-o: esta crença baseia-se noutra crença minha: a crença de que é assim que o dicionário mostra
como se soletra. Acredito que 72 × 71 = 5112. Esta crença baseia-se em diversas outras crenças que tenho: que 1 × 72 = 72; 7 ×
2 = 14; 7 × 7 = 49; 49 + 1 = 50; e outras. Contudo, há crenças que aceito, mas não com base em quaisquer outras. Chamemos-
lhes «básicas». Acredito que 2 + 1 = 3, por exemplo, e não o acredito com base noutras proposições. Também acredito que estou
sentado à minha secretária e que tenho uma ligeira dor no joelho direito. Também estas são básicas para mim; não acredito nelas
com base em quaisquer outras proposições. Segundo o fundacionalista clássico, algumas proposições são apropriadamente ou
adequadamente básicas relativamente a uma pessoa e outras não. As que não são, só são racionalmente aceites com base em
indícios, em que os indícios se têm de reportar, em última análise, ao que é apropriadamente básico. A existência de Deus, além
disso, não está entre as proposições que são apropriadamente básicas; pelo que uma pessoa só é racional ao aceitar a crença teísta
se tiver indícios a seu favor.

Ora, muitos pensadores e teólogos reformistas12 rejeitaram a teologia natural (concebida como a tentativa de fornecer provas ou
argumentos a favor da existência de Deus). Não só afirmaram que os argumentos apresentados não são bons, mas que toda a
empresa está, de alguma maneira, radicalmente equivocada. Em «The Reformed Objection to Natural Theology» (Proceedings of
the American Catholic Philosophical Association, 1980), argumento que se interpreta melhor a objecção reformista à teologia
natural como uma rejeição incipiente e imprecisa do fundacionalismo clássico. O que estes pensadores reformistas realmente têm
em mente sustentar, penso, é que a crença em Deus não tem de se basear, de todo em todo, em argumentos ou indícios dados por
outras proposições. Têm em mente sustentar que o crente está inteiramente no seu direito intelectual ao acreditar do modo como
o faz, mesmo que não conheça qualquer bom argumento teísta (dedutivo ou indutivo), mesmo que não acredite que haja qualquer
argumento desse género, e mesmo que não haja de facto qualquer argumento assim. Defendem que é perfeitamente racional
aceitar a crença em Deus sem que o façamos sequer com base em quaisquer outras crenças ou proposições. Numa palavra,
defendem que a crença em Deus é apropriadamente básica. Neste ensaio tentarei desenvolver e defender esta posição.

Mas primeiro temos de ganhar uma compreensão mais profunda da objecção indiciarista. É importante ver que se trata de uma
discussão normativa. O objector indiciarista defende que quem aceita a crença teísta é de alguma maneira irracional ou
noeticamente inferior. Aqui deve-se entender «racional» e «irracional» como termos normativos ou avaliativos; segundo o objector,
o teísta não consegue satisfazer um cânone ao qual se deveria conformar. No que diz respeito às crenças, como no que diz respeito
às acções, há um procedimento correcto e um incorrecto; temos deveres, responsabilidades, obrigações a respeito das primeiras,
tal como no que diz respeito às segundas. Assim, segundo o Professor Blanshard:

[…] em todo o lado e sempre a crença tem um aspecto ético. Há uma ética geral do intelecto. Defendo que o princípio
fundamental dessa ética é o mesmo na religião e fora dela. Este princípio é simples e arrebatador: faça corresponder o
assentimento aos indícios. (Brand Blanshard, Reason and Belief. Londres: Allen & Unwin, 1974, p. 401.)

Pode-se interpretar de diferentes modos esta «ética do intelecto»; muitas questões fascinantes — nas quais temos de nos abster de
entrar — surgem quando tentamos formular mais precisamente as diversas opções que o indiciarista pode querer adoptar.
Inicialmente parece defender que há um género de dever ou obrigação de não aceitar sem indícios proposições como a que afirma
que Deus existe — dever desprezado pelo teísta que não dispõe de indícios. Se não dispõe de indícios, então tem o dever de
suspender a crença. Mas há uma dificuldade frequentemente apontada: as nossas crenças, na sua maioria, não estão directamente
sob o nosso controlo. Maioritariamente, quem acredita em Deus não consegue despojar-se dessa crença apenas tentando fazê-lo,
tal como não conseguiriam dessa maneira livrar-se da crença de que o mundo existe há muito tempo. Pelo que talvez a obrigação
relevante não seja a de despojar-me da crença teísta se não disponho de indícios (isso está para lá do meu poder), mas a de tentar
cultivar o género de hábitos intelectuais que tendem (esperamos) a fazer-me aceitar como básicas apenas as proposições que são
apropriadamente básicas.

Talvez se deva conceber esta obrigação teleologicamente: é uma obrigação moral que surge de uma conexão entre determinados
bens e males intrínsecos e a maneira como as nossas crenças se formam e sustentam. (W. K. Clifford parece interpretar desta a
maneira a questão.) Talvez se deva conceber areteticamente: há estados noéticos ou intelectuais valiosos (sejam intrínseca ou
extrinsecamente valiosos); há também virtudes intelectuais correspondentes, hábitos de agir de maneira a promover e melhorar
tais estados virtuosos. Entre as nossas obrigações, portanto, está o dever de tentar promover e cultivar estas vir tudes em nós ou
noutros. Ou talvez se deva conceber deontologicamente: esta obrigação cabe-nos apenas em virtude de termos o género de
equipamento noético que os seres humanos de facto exibem; não surge de uma conexão com estados de coisas valiosos. Tal
obrigação, além disso, podia ser um género especial de obrigação moral; por outro lado, talvez seja uma obrigação amoral sui
generis.

Mais ainda, talvez o indiciarista não tenha de falar aqui em dever ou obrigação de todo em todo. Considere-se alguém que acredite
que Vénus é menor do que Mercúrio, não porque tenha indícios de qualquer género, mas porque acha divertido sustentar uma
crença que ninguém mais sustenta — ou considere-se alguém que defende esta crença com base num qualquer argumento
escandalosamente mau. Talvez não haja qualquer obrigação que ele não tenha cumprido. Não obstante, a sua condição intelectual
é de algum modo imperfeita; ou então, talvez, haja uma excelência comummente alcançada que ele é incapaz de exibir. E a
objecção indiciarista à crença teísta, portanto, pode ser compreendida não como a afirmação de que o teísta que não dispõe de
indícios não cumpriu uma obrigação, mas como a afirmação de que o teísta sofre de um determinado género de imperfeição
intelectual (de modo que a atitude apropriada a adoptar quanto a ele seria a compaixão e não a censura).
Estas são algumas das formas, portanto, de desenvolver a objecção indiciarista; e evidentemente há ainda outras possibilidades.
Para facilidade de exposição, tomemos a afirmação deontologicamente; o que direi aplicar-se-á, mutatis mutandis, se o tomarmos
de uma das outras maneiras. A objecção indiciarista, portanto, pressupõe uma perspectiva acerca de que género de proposições se
aceita correcta, devida ou justificadamente como básicas; pressupõe uma perspectiva acerca do que é apropriadamente básico. E a
afirmação minimamente relevante para o objector indiciarista é que a crença em Deus não é apropriadamente básica.
Tipicamente, esta objecção enraíza numa forma de fundacionalismo clássico, segundo a qual uma proposição p é apropriadamente
básica para uma pessoa S se, e só se, p é ou auto-evidente ou incorrigível para S (fundacionalismo moderno) ou, alternativamente,
se é ou auto-evidente ou «evidente sensorialmente» para S (fundacionalismo antigo e medieval). Em «Is Belief in God Rational?»
argumentei que ambas as formas de fundacionalismo são auto-referencialmente incoerentes e têm, portanto, de ser rejeitadas.

Enquanto a objecção indiciarista enraizar no fundacionalismo clássico, estará efectivamente mal fundada: e tanto quanto sei,
ninguém desenvolveu e articulou qualquer outra razão para supor que a crença em Deus não é apropriadamente básica. Claro que
não se segue que é apropriadamente básica; talvez a classe das proposições apropriadamente básicas seja mais lata do que
supõem os fundacionalistas clássicos, mas ainda assim não lata o suficiente para admitir a crença em Deus. Mas porquê pensar
assim? Quais poderiam ser as objecções à perspectiva reformista, de que a crença em Deus é apropriadamente básica?

Já ouvi argumentar que se não tenho quaisquer indícios a favor da existência de Deus, então se aceito aquela proposição, a minha
crença será infundada, ou gratuita ou arbitrária. Penso que isto é um erro; permita-se-me que explique.

Suponha-se que consideramos as crenças perceptivas, crenças de memória e crenças que atribuem estados mentais a outras
pessoas: crenças como

1. Vejo uma árvore,


2. Tomei o pequeno-almoço esta manhã, e
3. Aquela pessoa está zangada.

Embora as crenças deste género sejam típica e apropriadamente aceites como básicas, seria um erro descrevê-las como
infundadas. Ao ter uma experiência de certo género, acredito que estou a percepcionar uma árvore. No caso típico não adopto esta
crença com base noutras; ainda assim não é infundada. O facto de ter uma experiência daquele género característico — usando a
linguagem do Professor Chisholm, o aparecer-me arbóreo — desempenha um papel crucial na formação e justificação dessa
crença. Podemos dizer que esta experiência, juntamente, talvez, com outras circunstâncias, é o que me dá justificação para a
adoptar; este é o fundamento da minha justificação, e, por extensão, o fundamento da própria crença.

Se vejo alguém exibir um comportamento típico de dor, depreendo que a pessoa está com dores. Mais uma vez, não aceito o
comportamento exibido como um indício a favor dessa crença; não infiro essa crença a partir de outras crenças que tenho; não a
aceito com base noutras crenças. Ainda assim, o facto de percepcionar o comportamento de dor desempenha um papel único na
formação e justificação dessa crença; como no caso anterior, constitui o fundamento da minha justificação para a crença em causa.
O mesmo se aplica às crenças de memória. Parece que me recordo de tomar o pequeno-almoço esta manhã; isto é, tenho uma
inclinação para acreditar na proposição segundo a qual tomei o pequeno-almoço, juntamente com uma experiência com sabor a
passado, que a todos é familiar, mas difícil de descrever. Talvez devêssemos dizer que as coisas me aparecem preteritamente; mas
talvez isto distinga insuficientemente a experiência em causa daquelas crenças concomitantes acerca do passado que não se
fundam na minha própria memória. A fenomenologia da memória é um domínio rico e inexplorado; não disponho aqui de tempo
para a explorar. Neste como noutros casos, todavia, verifica-se uma circunstância justificante, uma condição que constitui o
fundamento da minha justificação para aceitar a crença de memória em causa.

Em cada um destes casos se aceita uma crença como básica, e em cada caso se a aceita apropriadamente como básica. Há em
cada caso uma circunstância ou condição que confere a justificação; há uma circunstância que serve como o fundamento da
justificação. Pelo que em cada caso haverá uma proposição verdadeira do género:

4. Na condição C, S tem justificação para aceitar p como básica.

Claro que C variará com p. Para um juízo perceptivo como

5. Vejo uma parede cor-de-rosa à minha frente.

C incluirá o aparecer-me de certa maneira. Sem dúvida que C incluirá mais. Se algo me aparece da maneira habitual, mas sei que
estou a usar óculos cor-de-rosa, ou que sofro de uma doença que causa o aparecer-me assim, independentemente da cor dos
objectos próximos, então não tenho justificação para aceitar 5 como básica. De igual modo para a memória. Suponha-se que sei
que a minha memória não é fiável; que me prega frequentemente partidas. Em particular, quando pareço recordar-me de ter
tomado o pequeno-almoço, então, não raro, não tomei o pequeno-almoço. Sob estas condições, não tenho justificação para aceitar
como básica a crença de que tomei o pequeno-almoço, embora pareça recordar-me de que tomei.

Pelo que aparecer-me da maneira apropriada, no caso perceptivo, não é suficiente para dar justificação; uma condição ulterior —
difícil de explicar detalhadamente — é claramente necessária. O aspecto central aqui, contudo, é que uma crença só é
apropriadamente básica em determinadas condições; estas condições são, digamos, o fundamento da sua justificação e, por
extensão, o fundamento da própria crença. Neste sentido, as crenças básicas não são, ou não são necessariamente, crenças
infundadas.

Pode-se afirmar coisas similares a propósito da crença em Deus. Quando os reformistas afirmam que esta crença é
apropriadamente básica, não pretendem, evidentemente, afirmar que não há circunstâncias justificantes para essa crença, ou que
nesse sentido é infundada ou gratuita. Muito pelo contrário. Calvino defende que Deus «se revela e mostra diariamente a toda a
construção do universo», e a arte divina «revela-se na inumerável e, no entanto, distinta e bem ordenada variedade da multidão
celestial». Deus criou-nos de tal maneira que temos uma tendência ou disposição para ver a sua mão no mundo à nossa volta. Mais
precisamente, há em nós uma disposição para acreditar em proposições do género: esta flor foi criada por Deus ou este universo
vasto e intricado foi criado por Deus quando contemplamos a flor ou observamos os céus estrelados ou pensamos nos vastos
recantos do universo.

Calvino reconhece, pelo menos implicitamente, que esta disposição pode ser despoletada por condições de outro género. Ao ler a
Bíblia, pode-se ficar impressionado com o profundo sentido de que Deus nos fala. Depois de fazer o que considero reles, ou imoral
ou malévolo, posso sentir-me culpado aos olhos de Deus e formar a crença Deus desaprova o que fiz. Ao confessar-me e
arrepender-me, posso sentir-me perdoado formando a crença Deus perdoa-me o que fiz. Uma pessoa em grave perigo pode voltar-
se para Deus, pedindo-lhe protecção e ajuda; e claro que ele ou ela formará então a crença de que Deus é de facto capaz de ouvir e
ajudar se o considerar apropriado. Quando a vida é doce e gratificante, um sentido espontâneo de gratidão pode ascender na alma;
alguém nesta condição pode agradecer e louvar o Senhor pela sua bondade e formará evidentemente a crença concomitante de
que na verdade há que agradecer ao Senhor e louvá-lo.

Há, portanto, muitas condições e circunstâncias que evocam a crença em Deus: culpa, gratidão, perigo, a sensação da presença de
Deus, um sentimento de que Deus fala, a percepção de diversas partes do universo. Um trabalho completo explorará a
fenomenologia de todas estas condições e de outras. Trata-se de um tópico vasto e importante; mas aqui posso apenas indicar a
existência destas condições.

Claro que nenhuma das crenças que mencionei ainda há pouco é a crença simples de que Deus existe. O que temos, ao invés, são
crenças como

6. Deus fala-me,

7. Deus criou tudo isto,

8. Deus desaprova o que fiz,

9. Deus perdoa-me, e

10. Há que agradecer a Deus e louvá-lo.

Estas proposições são apropriadamente básicas nas circunstâncias adequadas. Mas é bastante consistente com isto supor que a
proposição há uma pessoa que é Deus nem é apropriadamente básica nem é aceite como básica por quem acredita em Deus.
Talvez o que aceitam como básico sejam proposições como as de 6 a 10, acreditando na existência de Deus com base em
proposições como aquelas. Deste ponto de vista, não é exactamente correcto afirmar que é a crença em Deus que é
apropriadamente básica; mais exactamente, são proposições como as de 6 a 10 que são apropriadamente básicas, cada uma das
quais implica auto-evidentemente que Deus existe. Não é a proposição relativamente de ordem superior e geral Deus existe que é
apropriadamente básica, mas, ao invés, proposições que discriminam alguns dos seus atributos e acções.

Suponha-se que regressamos à analogia entre a crença em Deus e a crença na existência de objectos perceptuais, de outras
pessoas e do passado. Também aqui se trata de proposições relativamente específicas e concretas, em vez das suas companheiras
mais gerais e abstractas, que são apropriadamente básicas. Talvez itens como

11. Há árvores,

12. Há outras pessoas, e

13. O mundo existe há mais de 5 minutos.

não sejam de facto apropriadamente básicas; sendo, ao invés, proposições como

14. Vejo uma árvore,

15. Aquela pessoa está contente, e

16. Tomei o pequeno-almoço há mais de uma hora,

que merecem tal reconhecimento. Claro que proposições do último género implicam imediata e auto-evidentemente proposições
do género anterior; e talvez não haja assim mal em falar nas anteriores como apropriadamente básicas, ainda que isso seja falar
sem grande exactidão.

O mesmo tem de se afirmar acerca da crença em Deus. Podemos afirmar, grosso modo, que a crença em Deus é apropriadamente
básica; estritamente falando, contudo, não é provavelmente essa proposição, mas proposições como as de 6 a 10 que gozam desse
estatuto. Mas a ideia fundamental aqui é que a crença em Deus ou as de 6 a 10 são apropriadamente básicas; afirmá-lo, contudo,
não é negar que haja circunstâncias justificantes para estas crenças, ou condições que conferem justificação a quem as aceita
como básicas. Não são, consequentemente, infundadas ou gratuitas.

Uma segunda objecção, que ouço frequentemente: se a crença em Deus é apropriadamente básica, por que não pode qualquer
crença ser apropriadamente básica? Não podemos afirmar o mesmo acerca de qualquer aberração bizarra que nos ocorresse? E
quanto ao vudu e à astrologia? E quanto à crença de que a Grande Abóbora regressa em todos os dias das bruxas? Poderia eu
aceitar essa crença como básica? E se não posso, por que posso aceitar apropriadamente a crença em Deus como básica?
Suponhamos que acredito que se agitar os braços com vigor suficiente posso descolar e voar à volta da sala; poderia defender-me
da acusação de irracionalidade afirmando que esta crença é básica? Se afirmamos que a crença em Deus é apropriadamente
básica, não estaremos comprometidos a defender que qualquer coisa, ou quase, pode ser apropriadamente aceite como básica,
escancarando assim a porta ao irracionalismo e à superstição?

Certamente que não. O que nos poderia levar a pensar que o epistemólogo reformista se encontra neste tipo de dificuldade? O
facto de rejeitar os critérios para a basicidade apropriada fornecidos pelo fundacionalismo clássico? Mas porquê pensar que isso o
compromete com tal tolerância perante a irracionalidade? Considere-se uma analogia. Nos dias felizes do positivismo, os
positivistas andavam confiantemente de um lado para o outro, brandindo o seu critério de verificabilidade e declarando sem
sentido muitas coisas que obviamente tinham sentido. Suponha-se agora que alguém rejeitou uma formulação desse critério — a
que se encontra na segunda edição da obra de A. J. Ayer, Linguagem, Verdade e Lógica, por exemplo. Significará isso que a pessoa
se compromete a defender que

17. Estava abrásigo; e os viscágeis xugaios moinhavam e esfuavam no ensouteiro.

ao contrário do que parece, tem sentido? Claro que não. Mas nesse caso o mesmo se aplica ao epistemólogo reformista; o facto de
rejeitar o critério da basicidade apropriada do fundacionalista clássico não significa que está obrigado a supor que qualquer coisa
é apropriadamente básica.

Mas qual é então o problema? Será porque o epistemólogo reformista não só rejeita aqueles critérios para a basicidade
apropriada, como não parece sentir qualquer urgência de apresentar aquilo que considera um melhor substituto? Se não tem
qualquer critério semelhante, como pode rejeitar honestamente a crença na Grande Abóbora como apropriadamente básica?

Esta objecção trai um importante erro de perspectiva. Como chegamos correctamente a critérios de significado, ou crença
justificada, ou basicidade apropriada? De onde vêm? Será que temos de ter tal critério antes de podermos sensatamente fazer
quaisquer juízos — positivos ou negativos — acerca da basicidade apropriada? Seguramente que não. Suponhamos que não
conheço um substituto satisfatório para os critérios propostos pelo fundacionalismo clássico; estou, não obstante, inteiramente no
meu direito ao defender que determinadas proposições não são apropriadamente básicas em determinadas condições. Algumas
proposições parecem auto-evidentes quando na verdade não são; é essa a lição de alguns dos paradoxos de Russell! Não obstante,
seria irracional aceitar como básica a negação de uma proposição que nos parece auto-evidente. De igual modo, suponha que lhe
parece ver uma árvore; seria então irracional aceitar como básica a proposição segundo a qual não vê uma árvore; ou de que não
há quaisquer árvores. Da mesma maneira, ainda que não conheça qualquer critério de significado esclarecedor, posso declarar
bastante apropriadamente que 17, acima, não significa coisa alguma.

E isto levanta uma importante pergunta — que Roderick Chisholm nos ensinou a fazer. Qual é o estatuto dos critérios para o
conhecimento, ou basicidade apropriada, ou crença justificada? Tipicamente, são afirmações universais. O critério fundacionalista
moderno para a basicidade apropriada, por exemplo, é duplamente universal:

18. Para qualquer proposição A e pessoa S, A é apropriadamente básica para S se, e só se, A é incorrigível para S ou
auto-evidente para S.

Mas como se pode saber tal coisa? Quais são as suas credenciais? Sem sombra de dúvida, 18 não é auto-evidente ou apenas
obviamente verdadeira. Mas se não é, como se chega a ela? De que género são os argumentos apropriados? Claro que um
fundacionalista pode achar 18 tão atraente que simplesmente a aceita como verdadeira, nem apresentando argumentos a seu
favor, nem a aceitando com base noutras coisas em que acredita. Se o faz, todavia, a sua estrutura noética será auto-
referencialmente incoerente. Em si, 18 nem é auto-evidente nem é incorrigível; daí que ao aceitar 18 como básica o
fundacionalista moderno viole a condição da basicidade apropriada que ele próprio estabeleceu ao aceitá-la. Por outro lado, talvez
o fundacionalista tente apresentar algum argumento a seu favor a partir de premissas que são auto-evidentes ou incorrigíveis: é
extremamente difícil ver, todavia, como poderia ser tal argumento. E até que o fundacionalista apresente algum argumento, o que
farão os restantes de nós — que não consideramos 18 óbvia ou convincente, de todo em todo? Como pode o fundacionalista usar
18 para nos mostrar que a crença em Deus, por exemplo, não é apropriadamente básica? Por que acreditaríamos em 18, ou lhe
daríamos qualquer atenção?

O facto é que, penso, nem 18 nem qualquer outra condição esclarecedora necessária e suficiente para a basicidade apropriada se
segue de premissas claramente auto-evidentes através de argumentos claramente aceitáveis. E assim a maneira apropriada de
chegar a tal critério é, grosso modo, indutiva. Temos de reunir exemplos de crenças e condições tais que as primeiras sejam, de
uma maneira óbvia, apropriadamente básicas sob as segundas, e exemplos de crenças e condições tais que as primeiras, de uma
maneira óbvia, não sejam apropriadamente básicas sob as segundas. Temos então de enquadrar hipóteses quanto às condições
necessárias e suficientes da basicidade apropriada e testar estas hipóteses por referência àqueles exemplos. Sob condições
adequadas, por exemplo, é claramente racional acreditar que o leitor vê uma pessoa humana à sua frente: um ser que tem
pensamentos e sentimentos, que conhece e acredita, que toma decisões e age. É evidente, além disso, que o leitor não tem
qualquer obrigação de defender argumentativamente esta crença a partir de outras que tem; sob aquelas condições, essa crença é
apropriadamente básica para si. Mas então 18 tem de estar errada; a crença em questão, sob essas circunstâncias, é
apropriadamente básica, embora não seja auto-evidente nem incorrigível para o leitor. De igual modo, talvez pareça recordar-se de
ter tomado o pequeno-almoço esta manhã, e talvez desconheça qualquer razão para supor que a sua memória lhe prega partidas.
Sendo assim, tem toda a justificação para aceitar essa crença como básica. Claro que não é apropriadamente básica à luz dos
critérios dados pelos fundacionalistas clássicos; porém, esse facto não conta contra si, mas contra aqueles critérios.

Em conformidade, tem de se obter os critérios para a basicidade apropriada a partir de baixo e não a partir de cima; não se os
devia apresentar como ex cathedra, mas sujeitos à argumentação e ao teste por um conjunto relevante de exemplos. Mas não há
razão para supor, antecipadamente, que todos irão concordar com os exemplos. O cristão irá com certeza supor que a crença em
Deus é inteiramente apropriada e racional; se não aceita esta crença com base noutras proposições, concluirá que é básica para si,
bastante apropriadamente. Os seguidores de Bertrand Russell e de Madelyn Murray O’Hare podem discordar, mas como será isso
relevante? Terão os meus critérios, ou os da comunidade cristã, de conformar-se aos seus exemplos? Certamente que não. A
comunidade cristã é responsável pelo seu conjunto de exemplos, não do deles.

Em conformidade, o epistemólogo reformista pode defender apropriadamente que a crença na Grande Abóbora não é
apropriadamente básica; apesar de defender que a crença em Deus é apropriadamente básica e apesar de não ter qualquer
critério, com pernas para andar, da basicidade apropriada. Claro que está comprometido com o pressuposto de que há uma
diferença relevante entre a crença em Deus e a crença na Grande Abóbora, se defende que a primeira é apropriadamente básica,
mas não a segunda. Mas isto não deverá ser um grande constrangimento; há bastantes candidatos. Estes candidatos encontram-se
na proximidade das condições que mencionei na última secção, que justificam e fundamentam a crença em Deus. Assim, por
exemplo, o epistemólogo reformista pode concordar com Calvino na afirmação de que Deus implantou em nós uma tendência
natural para ver a sua mão no mundo à nossa volta; o mesmo não se pode afirmar da Grande Abóbora; não existindo qualquer
Grande Abóbora nem qualquer tendência natural para aceitar crenças acerca da Grande Abóbora.

Em jeito de conclusão, portanto: ser auto-evidente ou incorrigível, ou evidente sensorialmente, não é uma condição necessária da
basicidade apropriada. Além disso, quem defende que a crença em Deus é apropriadamente básica não está por isso
comprometido com a ideia de que a crença em Deus é infundada ou gratuita ou que não tem circunstâncias justificantes. E mesmo
que careça de um critério geral para a basicidade apropriada, não está obrigado a supor que qualquer crença ou quase — a crença
na Grande Abóbora, por exemplo — é apropriadamente básica. Como toda a gente o devia fazer, começa com exemplos; e pode
aceitar a crença na Grande Abóbora como um paradigma da crença irracional básica.

NOTAS

1. The Devil’s Dictionary, 1906. Há uma tradução portuguesa, na Tinta da China.


2. Areopagitica.
3. Aids to Reflection.
4. É preciso não confundir ilusão com delusão. Enquanto a ilusão tem como resultado uma crença ou conjunto de crenças do
indivíduo, não pondo em causa a sua compreensão global da realidade, a delusão é um estado mental em que a compreensão
da realidade pelo indivíduo está inteiramente comprometida. Um bom exemplo de ilusão é pensar que estamos a ver uma
pessoa ao longe quando na verdade é uma árvore; um bom exemplo de delusão é o fanatismo político que pode distorcer
totalmente a compreensão da realidade. (N. do T.)]
5. O monte Sri Pada, no Sri Lanka (antigo Ceilão). Local de importância religiosa para diversas tradições. (N. do T.)
6. James faz originalmente uma analogia com a electricidade, e não com a linguística, pois em inglês chama-se respectivamente
live wire e dead wire a um fio com e sem electricidade, ou positivo e negativo. (N. do T.)
7. Compare-se com a admirável página 310 na obra de S. H. Hodgson, Time and Space, Londres, 1865.
8. Compare-se com o ensaio de Wilfrid Ward, «The Wish to Believe», no seu Witness to the Unseen, McMillan & Co., 1893.
9. Como a crença se mede pela acção, quem nos proíbe de acreditar na verdade da religião, proíbe-nos também
necessariamente de agir como deveríamos se acreditássemos na sua verdade. Toda a defesa da fé religiosa depende da acção.
Se a acção exigida ou inspirada pela hipótese religiosa não for de modo algum diferente da que é ditada pela hipótese
naturalista, a fé religiosa é uma pura superfluidade, que é melhor podar, e a controvérsia acerca da sua legitimidade é uma
frivolidade, indigna de mentes sérias. Eu próprio acredito, obviamente, que a hipótese religiosa dá ao mundo uma expressão
que determina especificamente as nossas reacções, e as torna em grande parte diferentes daquilo que podiam ser num
esquema de crença puramente naturalista.
10. Liberty, Equality, Fraternity, p. 353, 2.ª edição, Londres, 1874.
11. Ver, por exemplo, Brand Blanshard, Reason and Belief (Londres: Allen & Unwin, 1974), pp. 400 ss, W. K. Clifford, «A Ética da
Crença» (Cap. 2 deste volume), A. G. N. Flew, The Presumption of Atheism (Londres: Pemberton Publishing Co., 1976), p. 22,
Bertrand Russell, «Why I am not a Christian», in Why I am Not a Christian (Nova Iorque: Simon & Schuster, 1957), pp. 3 ss. e
Michael Scrivin, Primary Philosophy (Nova Iorque: McGraw-Hill, 1966), pp. 87 ss. Em «Is Belief in God Rational?» in
Rationality and Religious Belief, org. C. Delaney (Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1979), considero e rejeito a
objecção indiciarista à crença teísta.
12. Um pensador ou teólogo reformista é alguém intelectualmente afecto à tradição protestante que remonta a João Calvino (e
não alguém que foi anteriormente teólogo e que depois viu a luz).

ORIGEM DOS ENSAIOS

«A Ética da Crença» é a tradução de «The Ethics of Belief», originalmente publicado em Contemporary Review, Janeiro de 1877.
O texto foi retirado de The Ethics of Belief and Other Essays, de W. K. Clifford (Amhest, NY: Prometheus Books, 1999) e
confrontado com a edição organizada por Leslie Stephen e Sir Frederick Pollock, publicada em Londres em 1901 (Vol. 2, pp. 163–
205).

«A Vontade de Acreditar» é a tradução de «The Will to Believe», palestra apresentada aos Clubes Filosóficos das Universidades de
Yale e Brown. Publicada originalmente em New World, Junho de 1896. O texto foi retirado de Writings: 1878–1899, de William
James (Nova Iorque, NY: The Library of America, 1992, segunda impressão). Esta cuidada edição foi preparada por Gerald E.
Myers, baseando-se na edição crítica da Harvard University Press das obras de James, corrigindo alguns erros que nela se
encontram.

«Será a Crença em Deus Apropriadamente Básica?» é a tradução de «Is Belief in God Properly Basic?» (Noûs, Vol. 15, N.º 1, 1981,
pp. 41–51), publicada aqui com a autorização do autor.

LEITURAS RECOMENDADAS

Adams, R. M. (1987) The Virtue of Faith and Other Essays in Philosophical Theology. Oxford: Oxford University Press.
Adler, J. (2002) Belief’s Own Ethics. Cambridge, MA: Bradford/MIT Press.
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EXPRESSÕES ESTRANGEIRAS

Ad extorquendum assensum meum — Que me obrigue ao assentimento


Adequatio intellectus nostri cum re — Adequação do intelecto à coisa
Aptitudinem ad extorquendum certum assensum — Aptidão para extrair assentimento certo
Cela vous fera croire et vous abêtira — Isso vos fará crer e vos embotará
Consensus gentium — Consenso dos povos
Entitas ipsa — A entidade em si
Extorquendum assensum meum — Que me obrigue ao assentimento
Grenzbegriff — Conceito regulador
In foro conscientia e — No seu foro íntimo
Le coeur a ses raisons que la raison ne connaît point — O coração tem razões que a razão desconhece
Mutatis mutantis — Mudando o que deve ser mudado
Naiveté — Ingenuidade
Quietem in cognitione — Tranquilidade cognitiva
Sui generis — Peculiar
Terminus a quo — Extremo inicial
Terminus ad quem — Extremo final

SOBRE O ORGANIZADOR
Desidério Murcho é professor de filosofia na Universidade Federal de Ouro Preto (Brasil). É autor de vários livros, destacando-se Essencialismo Naturalizado
(2002), O Lugar da Lógica na Filosofia (2003), Filosofia em Directo (2011), Sete Ideias Filosóficas que Toda a Gente Deveria Conhecer (2011) e Todos os Sonhos
do Mundo e Outros Ensaios (2016). Traduziu vários artigos e livros, incluindo obras de George Orwell, Thomas Nagel, Bertrand Russell, Alvin Plantinga, Susan
Wolf, W. O. Quine, Nelson Goodman e Simon Blackburn. Fundou a revista Crítica e escreveu para o jornal Público.

dmurcho.com

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Table of Contents
Copyright

Prefácio

Sobre os autores

Fé, epistemologia e virtude

A ética da crença

A vontade de acreditar

Será a crença em Deus apropriadamente básica?

Notas

Origem dos ensaios

Leituras recomendadas

Expressões estrangeiras

Sobre o organizador

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