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Causas históricas da economia informal.

O caso de Angola*
Francisco Queiroz**

1. As Várias Designações Usadas na Literatura


Neste primeiro ponto desta abordagem fazemos uma análise das
várias designações usadas na literatura para referir a economia informal,
procurando clarificar a importância e o interesse da designação econo-
mia informal e o alcance das designações mercado paralelo e economia
subterrânea, enquanto expressões mais utilizadas na literatura.
O método de estudo é basicamente comparativo, procurando mostrar
o panorama terminológico usado pelos cultores deste tema e as conexões
entre a realidade económica informal e as tendências na literatura sobre
as várias formas de conceber a economia informal.
A generalidade dos autores que se dedica ao estudo desta matéria é
unânime em reconhecer a existência de uma grande pluralidade de termos
e expressões para referir o processo económico desenvolvido fora dos
circuitos e regras oficiais.
Num estudo realizado no âmbito de uma tese em Ciências Econó-
micas, o espanhol SANTOS M. RUESGA arrolou nada menos do que
31 designações diferentes para significar aquilo a que em Espanha se

* Extraído da Dissertação de Mestrado em Ciências Jurídico-Económicas do Autor,


intitulada «A Economia Informal em Angola – Contributos para a sua Compreensão
Jurídico-Económica», Universidade Clássica de Lisboa, 1996 (ainda não publicada).
** Professor Associado da UAN.
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chama frequentemente «economía sumergida»1. E não esgotou a lista


possível de designações.
Qualquer que seja a expressão utilizada pelos autores, no essencial
todos querem dizer a mesma coisa. Há, todavia, diferenças de linguagem
nos termos utilizados que podem induzir à preferência de uns desses
termos em vez de outros, consoante as situações concretas em análise.
Porventura, a opção por um dos termos poderá partir de considerações
culturais, estruturais e de desenvolvimento da economia, mas estes critérios
de escolha não são, só por si e isoladamente, absolutamente determinantes
do rigor técnico da designação economia informal.
A maior ou menor correção da designação há de ser avaliada por
considerações técnicas acerca da natureza do fenómeno em causa e da
sua relação com os valores jurídico-económicos e culturais de uma for-
mação social em concreto.
O estudo comparado de várias experiências de economia informal no
hemisfério norte ou no hemisfério sul, a leste ou a ocidente, mostra que
o uso de uma ou de outra designação para referir a economia informal
numa determinada realidade económico-social está relacionado com
fatores sociais idiossincráticos, culturais e linguísticos, mais do que com
preocupações de natureza científica e teórica.
Normalmente, os que se dedicam ao estudo da economia informal
absorvem da linguagem comum os nomes com que se tornaram conhecidos
certos aspetos da economia informal em cada país ou região, operando
depois com esses nomes, de forma generalizada, no tratamento teórico
desse tema. Este facto explica as diferenças de designação e a grande
diversidade terminológica entre elas, verificada na literatura sobre a
matéria, mesmo no interior da mesma formação social e económica.
O clássico termo «mercado negro» foi usado nos períodos de crise
que se seguiram às guerras mundiais, na Europa, e, ainda hoje, tem
sido utilizado nos países francófonos (marchais noir) e anglo-saxões
(black market), para referir o comércio de artigos que não estão dispo-
níveis nos circuitos oficiais de comércio. Outra expressão conhecida na

RUESGA, Santos M., Al otro lado de la economia, Como funciona la economía


1 

sumergida en España, Ediciones Pirámede, SA, Madrid 1988, p. 18. Este Autor enumera
os seguintes termos, utilizados para referir o que designa de «economía sumergida»: clan-
destina, ilegal, oculta o escondida, atípica, subterránea, paralela, segunda, no oficial, no
reglamentaria, al margen, fantasma, crepuscular, marginal, doméstica, familiar, periférica,
bis, dual, sumergida, en la sombra, invisible, intersticial, informal, a escondidas, bajo
mano, sin factura, en trastienda, en dinero efectivo, residual, a domicilio, no observada.
CAUSAS HISTÓRICAS DA ECONOMIA INFORMAL. O CASO DE ANGOLA 93

Europa é «moonlighting», usada no Reino Unido e nos Estados Unidos


da América para referir os negócios feitos por comerciantes legalmente
estabelecidos, mas que não passam faturas ou não registam as operações
comerciais, numa relação de cumplicidade com o cliente passada num
ambiente «escuro ou à luz da lua» iludindo, dessa forma, o fisco. Tam-
bém se conhece a expressão «sem contrato», usada nos países ibéricos
(sin contrato, em Espanha) para significar o emprego clandestino de
imigrantes em situação ilegal, emprego de menores, de aposentados ou
de trabalhadores com dificuldades de emprego e que, por isso, não se
importam com a informalidade e fuga aos impostos que dessa situação
resultam. Outra expressão largamente utilizada na literatura é «economia
subterrânea», empregue por autores que estudam a economia informal
nos países da OCDE.

2. Causas Gerais da Economia Informal


2.1 O Papel Económico do Estado e o Surgimento do Setor Informal
de Economia
Alguns autores consideram que a atividade económica informal constitui
um fenómeno típico das economias modernas. No entendimento que se
pode colher da leitura dos pontos de vista defendidos por esses autores,
a economia informal resultaria, em termos gerais, da pressão reguladora
exercida sobre a atividade económica nas sociedades de economia de
mercado e socialistas.
Segundo VICTOR TOKMAN, a existência do setor informal de eco-
nomia é o resultado da procura de flexibilidade e de redução dos custos
laborais por agentes da economia regulada. Esta procura forçaria tais
agentes a operar fora do sistema oficial regulado de economia2.
Na mesma linha de pensamento situa-se VITO TANZI, um consagrado
estudioso da economia informal e adepto da designação economia subter-
rânea3. Num estudo realizado em 1982, sobre a «economia subterrânea»

2  TOKMAN, Victor, The Informal Sector in Latin America: from underground to

legality, in Towards Social Adjustment, International Labour Office, Geneve, 1991,


VIII, pp. 141 e ss.
3  Ver TANZI, Vito, The underground economy, the causes and consequences of this

worldwide phenomenon, in Finance & Development / December, 1983, pp. 10 e ss., num
artigo cujo material é baseado no livro do mesmo autor, intitulado The Underground
Economy in the United States and Abroad, edição da Lexington Books, 1982. No entender
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nos Estados Unidos, Inglaterra, Itália, Noruega, Suécia, União Soviética,


Canadá, Colômbia, Austrália e Israel, VITO TANZI analisa a economia
informal nesses países e aponta as suas principais causas, classificando-as
sob quatro ordens de fatores condicionantes: taxas, regulação, proibições
e corrupção burocrática.
Mas é o economista peruano HERNANDO DE SOTTO4, um dos
principais cultores do tema economia informal na América Latina, e apa-
rentemente o mais inovador em termos de soluções para este fenómeno,
que defende de forma mais radical o ponto de vista da relação causal
entre a intervenção do Estado e a economia informal.
As medidas que DE SOTTO defende podem sintetizar-se na solução
lapidar que ele advoga para resolver os problemas da economia informal
nos países em desenvolvimento: remoção de restrições legais e saída
do Estado do mercado. DE SOTTO defendeu esta teoria num livro que
publicou em 19895. Este livro causou sensação e tornou-se referência
obrigatória no estudo da economia informal nos países da América Latina.
Refutando os modelos mercantilistas de organização e funciona-
mento da economia herdados das potências colonizadoras pelos países
da América Latina, DE SOTTO argumentou que não era a liberalização
capitalista a causa da pobreza e da informalidade económica no Peru e
noutros países em desenvolvimento, mas a ausência de uma verdadeira
economia de mercado livres nesses países. Este autor refuta, e bem, a
solução socialista para o problema da economia informal e atribui, pelo
contrário, à estatização e às barreiras legais e administrativas da economia
a responsabilidade pela existência do setor informal. DE SOTTO tem sido
acusado de defender soluções de tipo liberal para combater a economia
informal e a pobreza nos países em desenvolvimento6.
Na mesma linha de pensamento, embora numa abordagem menos
radical, situa-se SANTOS M. RUESGA7, para quem a economia sub-

deste autor, «In a well-working market economy, without a public sector, there would
be no underground activities. Incentives for the grouth of these activities increase with
greater regulation of the economy, larger public sectors, and higher levels of taxation».
4  DE SOTTO, Hernando, El otro Sendero, Editorial Sudamericana, Buenos Aires,

1978, 3.ª ed., pp 225 e ss.


5  Cfr. nota anterior.
6  The Other Path: Invisible Revolution in the Third World, analisado por JOEL MILL-

MAN num artigo intitulado The Next Path, in Forbes (FBR), May 23, 1994, pp. 106 e ss.
7  RUESGA, M. Santos, Al Otro Lado De La Economía, Como Funciona La Economía

Sumergida En España, Ediciones Pirámide, SA, Madrid, 1988, p. 71.


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terrânea se desenvolveu com a ação fiscalizadora, reguladora e de


controlo da vida económica por parte dos poderes públicos, sobretudo
quando este papel adquiriu um caráter globalizante sobre o conjunto das
atividades económicas8. Na opinião de SANTOS RUESGA, as condições
para a intervenção do Estado na economia intensificaram-se depois da
II Guerra Mundial.
No seu conjunto, estes pontos de vista filiam-se numa ideia de pressão
de fatores externos sobre a economia, da qual resulta a fuga dos agentes
económicos para áreas de desenvolvimento em que essa pressão (desig-
nadamente a ação interventora do Estado) não existia.
Ao partirem para a defesa dos seus pontos de vista, estes autores
assentam os seus argumentos em critérios de análise da economia
informal que envolvem: a) o regime económico; b) a influência das leis
e regulamentos no comportamento económico; c) a pressão tributária
exercida sobre os agentes económicos.
Das malhas tecidas pela conjugação destes fatores na economia resul-
taria a evasão às regras da economia oficial regulada, dando origem à
economia informal, ou extraoficial.
Esta visão é comum na generalidade dos autores que estudam o fenó-
meno da informalidade económica nos países da OCDE9.

2.2. Haveria Economia Informal antes da Intervenção do Estado na


Economia?
Um entendimento das causas da informalidade económica assente na
perspetiva atrás exposta só é compreensível numa economia em que o
Estado exerça um marcante papel regulador.
Sabendo-se que a intervenção reguladora do Estado na economia é
um dado histórico relativo, de vigência e intensidade variáveis, é for-
çoso colocar a questão de saber se nos períodos de evolução histórica

8  Em sentido contrário, Union Sindical de Madrid-Región de CC.OO., Economía

Sumergida, ediciones GPS, 1994, Madrid, para quem as causas da economia subterrânea
residem sobretudo na busca de maiores benefícios, na crise económica e desemprego
estrutural e na internacionalização da economia, pp. 24 e ss.
9  Incluem-se nesta perspetiva autores consagrados, como BRUNO DALLAGO,

The Irregular Economy: The ‘Underground’ Economy and the ‘Black’ Labour Market,
Alderchot, U.K.: Dartmouth; Brookfield, Vt.: Gower, 1990, pp. 202 e ss.; EDGAR L.
FEIGE, The Underground Economy: Tax Evasion and Information distortion, Cambridge,
New York and Melbourn, Cambridge University Press, 1989, pp. 378 e ss.
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dos Estados em que não havia essa intervenção pública na economia,


existiria ou não condições para o desenvolvimento de um setor informal
de economia.
Esta questão ganha relevância se quisermos ter uma noção qualita-
tiva e conhecer a real génese da economia informal nas economias de
mercado, nas suas diversas manifestações. Uma tal visão qualitativa é
indispensável para a definição eficiente das formas e métodos de solução
dos problemas que a economia informal levanta e para traçar as vias do
seu tratamento institucional.
A proposta de HERNANDO DE SOTTO sobre a implantação de
modelos económicos de mercado livre (não intervencionado pelos
poderes públicos), como forma de resolver os problemas da pobreza e
da informalidade económica nos países em desenvolvimento, merece ser
analisada. Mas, para ser profícua, essa análise deve partir de considerações
antropológicas, sociológicas e jurídicas, que levem ao conhecimento das
causas objetivas subjacentes à economia informal, contribuindo assim
para uma visão qualitativa deste fenómeno. Daí que, para responder à
questão de saber se antes do intervencionismo económico existia ou não
economia informal, nos pareçam insuficientes as análises quantitativas
desenvolvidas por autores que não valorizam as componentes antropo-
lógica, sociológica e jurídica do fenómeno da informalidade económica,
não se preocupando com as suas causas culturais e olhando apenas para
os efeitos que a informalidade económica produz.
Na perspetiva de uma economia informal caraterizada pela fuga às
regras da economia vigentes, a resposta à questão de saber se antes do
intervencionismo haveria ou não economia informal nos países desen-
volvidos seria pela negativa. Até porque, numa situação em que o Estado
não interviesse na economia, regulando-a, não podia haver regras disci-
plinadoras da economia que determinassem uma eventual fuga a essas
regras e assim dar origem a uma economia informal extraoficial.
A mesma linearidade de raciocínio não pode aplicar-se à perspetiva
de uma economia informal caraterizada por comportamentos espontâneos
motivados por razões de ordem cultural. Neste caso, o comportamento não
seria determinado pela pressão exterior que o Estado exercesse sobre a
economia, mas por motivações assentes em referências e valores culturais.
Ao analisarmos a evolução da economia nas sociedades modernas,
constatamos que houve um período dessa evolução em que não havia
condições políticas e institucionais para o desenvolvimento de um setor
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informal da economia, tal como esse fenómeno se manifesta atualmente


nestas sociedades.
Essas condições, assentes numa filosofia social do papel do Estado,
surgem com o advento da intervenção do Estado na economia, no final
da primeira metade do século xx movidas pelos partidos da social-
-democracia europeia.
Porque no período liberal vigorava o princípio ideológico da separação
entre o Estado e a economia, não havia condições filosóficas, económi-
cas e legais para o desenvolvimento de um setor informal de economia
funcionando à margem dos métodos e regras económicas estabelecidos
pelo Estado. No sistema económico liberal clássico, acreditava-se que o
Estado não devia intervir na economia e que o seu papel nesse domínio
limitava-se à definição pública do conteúdo do direito de propriedade e
da liberdade contratual e a garantir o exercício dos direitos decorrentes
desses institutos pelos seus titulares. De acordo com a ideologia liberal,
defendia-se que tudo quanto se passava no interior dos processos econó-
micos dizia respeito unicamente aos agentes privados que desenvolviam
diretamente esse processo, com «absoluta não intervenção do Estado no
económico»10. É esta, aliás, a principal caraterística do liberalismo econó-
mico, cujo principal inspirador ideológico foi ADAM SMITH, com a sua
teoria da autorregulação económica, assente numa visão naturalista dos
fenómenos económicos. Esta visão deu corpo à tese da «invisible hand»,
sintetizadora do pensamento económico liberal de ADAM SMITH11.
Numa economia com estas caraterísticas não era pensável uma eco-
nomia informal motivada pela fuga às regras intervencionistas do Estado
na economia.
No entanto, antes da instauração deste tipo de economia liberal nas
colónias ocupadas pelos países europeus liberais, já havia economia
nos países colonizados, designadamente nos países africanos. Essas
economias locais não eram ideologicamente consideradas parte do sis-
tema de economia liberal colonial. Essas economias locais eram tidas
por marginais face ao modelo de economia oficial colonial. Os povos e
comunidades locais mantiveram essas formas ancestrais de manifestação
económica e desenvolveram-nas fora do circuito oficial de economia

10  VAZ, Manuel Afonso, Direito Económico, A Ordem Económica Portuguesa,


3.ª ed., Coimbra Editora, 1994, p. 61.
11  Para uma visão do perfil filosófico e metodológico de Adam Smith, ver MARTI-

NEZ, Soares, Economia Política, 5.ª ed., Almedina, 1991, pp. 194 e ss.


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colonial. Ainda hoje essas economias locais existem e não se integraram


no sistema oficial, sendo consideradas informais face à economia oficial.
A questão é: que causas levaram ao desenvolvimento de manifestações
económicas informais em certas sociedades, sobretudo africanas, depois
do intervencionismo económico colonial ocidental?
Só uma análise antropológica, sociológica e jurídica poderá dar res-
posta a esta questão. Tentaremos dar resposta a esta questão no ponto 3.,
adiante neste trabalho, sobre as causas da informalidade económica em
Angola.

2.3. O Liberalismo Económico e a Economia Informal


A análise que se segue permite compreender a economia informal
motivada pela intervenção do Estado na economia e pela fuga à ação
tributária, e não a que se desenvolve por razões culturais. Não a que surge
por razões antropológicas. Com efeito, consideram-se, nesta perspetiva,
apenas os processos económicos desenvolvidos fora do quadro oficial
estabelecido pelo Estado.
A pergunta a que pretendemos dar resposta é a de saber se no período
liberal pré-industrial haveria condições para uma economia informal de
natureza antropológica e cultural, desenvolvida independentemente das
regras definidas pelo Estado.
Uma outra questão que neste contexto se poderá colocar é a de saber se,
abrangendo o sistema económico liberal o período de transição económica
do sistema dominial feudal para o liberal, as decadentes instituições e
estruturas económicas do sistema feudal poderiam ser consideradas setor
informal de economia, designadamente por se situarem fora do quadro
político e económico do liberalismo.
As questões acabadas de formular prendem-se com a natureza do
regime político e económico no período pré-liberal e as consequências
desse regime nos modos de manifestação da economia e dos seus agentes.
A sua elucidação passa por uma análise dos princípios em que se funda
a ideologia liberal. Detenhamo-nos, pois, na análise das caraterísticas de
desenvolvimento da economia liberal e da relação desta forma económica
do capitalismo12 com o modo informal de manifestação económica.

o conceito de forma económica aplicado aos sistemas económicos, ver


12  Sobre

MOREIRA, Vital, A Ordem Jurídica do Capitalismo, Coimbra, 1979, na qual o autor


diz não existirem sistemas económicos, mas sim e apenas as formas em que eles se
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O sistema económico liberal tem as suas origens filosóficas no pen-


samento fisiocrático setecentista, que combinava o racionalismo com a
ideia de ordem natural, princípios que eram defendidos pelos fisiocratas
franceses e, posteriormente, pelo inglês ADAM SMITH, nos finais do
século xviii e princípios do século xix13. O sistema económico liberal
seguiu-se ao mercantilismo europeu dos séculos xvi e xvii. Um dos aspetos
do mercantilismo era o seu caráter dirigista e corporativista, centro dos
ataques dos adeptos do liberalismo económico, que acreditaram na livre
iniciativa privada e na ausência dos poderes públicos na vida económica
como fatores de desenvolvimento e crescimento económicos.
A afirmação do liberalismo sobre o mercantilismo constituiu a rea-
lização prática da fórmula «laissez faire, laissez passer, le monde va de
soi-même», atribuída ao fisiocrata GOURNAY e mais tarde assumida pelos
protagonistas da revolução francesa, em 1875. A posterior contribuição
teórica de ADAM SMITH às ideias liberalistas veio afirmar cientifica-
mente esta corrente de pensamento económico, nos séculos xix e xx.
Como em toda a evolução histórica, a transição para o liberalismo
não se processou imediatamente. As instituições e estruturas económicas
mercantilistas persistiram durante muito tempo no período de transição
para o liberalismo. Os métodos de organização e de funcionamento da
economia mercantilista coexistiram com a economia liberal. Esta passou
a ser a forma dominante de economia e aquela a forma em extinção.
Não constituindo o mercantilismo a forma típica de economia liberal,
poderá interrogar-se se a sua subsistência depois da instauração oficial
do liberalismo económico não consubstanciaria um tipo de economia
informal face ao novo modelo liberal.
Em nossa opinião, as franjas económicas do regime económico
mercantilista, que o modelo liberal estava a substituir, não poderiam
ser consideradas informais face à economia liberal. Em primeiro lugar,
porque, fazendo parte de uma época de transição, essas franjas econó-
micas mercantilistas tinham de ser consideradas parte de todo o universo
económico e não de outra economia qualquer que pudesse ser consi-
derada marginal e estranha. Assim o impõe a lógica integradora e não
exclusivista, apanágio do pensamento económico-liberal.

manifestam, estabelecendo uma relação lógica entre o sistema, abstração sociológica


genérica, e forma, materialização do sistema.
13  Sobre o pensamento fisiocrático e a obra de ADAM SMITH, ver MARTINEZ,

Soares, Economia Política, 5.ª edição, Almedina, 1991, pp. 185 e ss. e 194 e ss.
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Depois, a implantação da república (forma de manifestação política


do liberalismo) foi o resultado de uma evolução política que teve como
correlato ativo a evolução económica para um regime de abertura a todas
as forças do mercado, num processo a que se tem chamado também
democratização económica. Por esse facto, não havia no liberalismo
(como houve, por exemplo, nas experiências socialistas conhecidas),
uma tomada de posição voluntarista, que tivesse imposto formalmente
o modelo económico-liberal, por oposição ao modelo mercantilista que
estava a ser combatido. De acordo com a ideologia liberal, todas as formas
de manifestação económica eram compatíveis com o modelo filosófico
e económico-liberal que estava a ser implantado, não havendo lugar a
restrições formais da economia.
Por último, a própria natureza liberal do sistema era contrária à exis-
tência de regras jurídicas dirigidas especificamente à economia. No plano
interno, o sistema caraterizava-se por uma total abertura e liberdade de
iniciativa, com absoluta abstenção dos poderes públicos intervirem, com
legislação própria, na economia. Num tal contexto, nenhuma atividade
económica, mercantilista ou outra, poderia considerar-se formalmente
fora do sistema, maxime integrando um setor informal. Teoricamente, a
ordem económica que imperava era uma ordem de facto, onde a aber-
tura, a igualdade e a liberdade pontificavam como elementos do regime
económico. Figuras marginais de atividade económica não eram conce-
bíveis porque não havia praticamente nenhumas restrições económicas.
As poucas restrições que havia eram de natureza penal, como a proibição
de atentar contra a propriedade alheia e o contrabando. Neste caso, as
atividades que se realizavam contra as normas alfandegárias restringiam-
-se, como hoje, ao domínio do comércio internacional: mercadorias saídas
ou entradas ilegalmente no território nacional14.
Poder-se-á assim concluir que no sistema económico-liberal oitocen-
tista era impensável a consideração teórica de manifestações económicas
informais, como as que hoje conhecemos, desenvolvendo-se à margem
do sistema geral. Simplesmente porque não havia margens, no plano
positivo interno, e não existiam constrangimentos, no plano material.
Só com a industrialização e o subsequente papel interventor do Estado
na economia se começou a desenhar a formação de um setor informal de
economia típico, caraterizado pela fuga às regras da economia.

14  Neste sentido, RUESGA, M. Santos, op. cit., p. 72.


CAUSAS HISTÓRICAS DA ECONOMIA INFORMAL. O CASO DE ANGOLA 101

Pressionado pela regulação económica e pela tributação sobre as ati-


vidades económicas, sobre os rendimentos e sobre o trabalho, esse setor
resultou da evasão às regras impostas pelo Estado à economia interna,
dando origem a comportamentos económicos sub-reptícios.
Foi também com a industrialização e a concentração económica que
com ela se desenvolveu que surgiram as grandes crises económicas do
sistema e se iniciaram as limitações formais e económicas ao uso da mão
de obra, das quais resultou o desemprego em massa dos nossos dias.
Como facilmente se comprova, nos países desenvolvidos o desemprego
é o grande responsável pelo surgimento do mercado informal do traba-
lho, principal segmento do setor informal de economia nas sociedades
modernas.
A atividade económica informal, entendida com este alcance, é pois
um fenómeno típico das economias industrializadas e resulta da inter-
venção do Estado na economia.
Concluiríamos assim que, em termos gerais, os regimes económicos
caraterizados por uma forte intervenção do Estado na economia são
mais propensos à formação e desenvolvimento de um setor informal de
economia do que os modelos liberais, em que o regime económico se
carateriza pela separação entre o Estado e a economia.

2.4. O Regime de Propriedade e a Economia Informal


Vista nestes termos, a questão da economia informal nas economias
de mercado desenvolvidas parece não ser defensável nos pontos de
vista sustentados pelos autores que põem o acento tónico das causas da
informalidade no regime de propriedade em vigor.
Em nossa opinião, não procede a tese defendida por VITO TANZI
e por HERNANDO DE SOTTO, na parte que atribui ao setor público
da economia a responsabilidade pela expansão do fenómeno informal
de economia nos países desenvolvidos. Na verdade, não se vê porque
a simples forma de propriedade pública, consubstanciada na detenção
pública da propriedade ou na participação dos poderes públicos em
empreendimentos económicos, possa contribuir mais para a existência e
expansão do setor informal da economia do que as formas de propriedade
e de atuação empresarial privadas. Sobretudo se tivermos em conta que
os parâmetros de atuação empresarial públicos obedecem aos mesmos
princípios de eficácia e rentabilidade económica que os observados no
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setor empresarial privado15. Mas também porque a legislação sobre a


concorrência a que as empresas públicas e privadas estão sujeitas, em
alguns países (por exemplo, os da União Europeia), cria uma situação de
igualdade económica que retira ao setor público o poder de determinar
por si só o nível de desempenho económico nacional e os efeitos que
desse desempenho possam derivar, maximamente o efeito setor informal
de economia.
Por outro lado, a experiência tem demonstrado que, pela sua natureza
social, o setor público tem tendência a absorver e a manter os trabalha-
dores nos postos de trabalho das empresas públicas às quais se achem
jurídico-laboralmente vinculadas, não os despedindo, mesmo em períodos
de crise económica, a não ser em situações extremas16. Este facto apro-
xima mais o setor público de um papel moderador do setor informal de
economia do que o setor privado, na medida em que os despedimentos
praticados mais frequentemente no setor privado constituem uma fonte,
se não a principal, do desenvolvimento do setor informal nas economias
desenvolvidas.
O mesmo já não se poderá dizer, evidentemente, da estatização da
economia praticada nas experiências socialistas. Aqui, as regras de fun-
cionamento da economia obedecem a outros princípios, entre os quais
os da propriedade coletiva dos meios de produção, da centralização das
decisões económicas e da planificação. Estes princípios, longe de favo-
recerem a harmonia e a plenitude económica, criam constrangimentos

15  Cfr., no Direito Comparado de Portugal, o Decreto-Lei n.º  260/76, de 8 de

abril, sobre as Bases Gerais das Empresas Públicas, art. 21.º (Princípios de Gestão), e
o Decreto-Lei n.º  464/82, de 9 de dezembro, sobre o Estatuto do Gestor Público, art.
9.º (Obrigações dos Gestores Públicos). Nestes diplomas é sublinhada a necessidade de
se assegurar a viabilidade económica e o equilíbrio financeiro na gestão das empresas
públicas, devendo os gestores públicos exercer as suas funções e gerir as respetivas
empresas segundo critérios de eficiência económica.
16  A manutenção dos trabalhadores no emprego por vezes processa-se com prejuízo

da eficácia económica e é suportada por intervenções das finanças públicas. É o caso


das grandes companhias transportadoras em regime de propriedade pública em França
(Air France), em Portugal (TAP) e noutros países da OCDE.
Quando, por razões de política económica, as empresas públicas são privatizadas,
essa privatização é normalmente acompanhada de despedimentos dos trabalhadores
excedentários. Este facto demonstra que a instabilidade laboral e, por consequência, as
possibilidades de contribuir para o alastramento da economia informal, provêm mais
das áreas económicas privadas, mormente quando estão em crise, do que das áreas
económicas públicas.
CAUSAS HISTÓRICAS DA ECONOMIA INFORMAL. O CASO DE ANGOLA 103

tais que só mesmo o refúgio dos agentes da economia numa economia


paralela pode levar à satisfação das muitas, e por vezes elementares,
necessidades que o regime económico não consegue prover.
Por aproximação de grau estatizante, também não poderá aplicar-se
a tese da indiferença das formas de propriedade, atrás defendida, nas
sociedades onde o nível de intervenção direta do Estado na economia
seja de tal magnitude que a liberdade de iniciativa económica se veja
comprometida, nomeadamente pelos monopólios públicos existentes.
Numa situação destas, o setor público torna-se o operador principal da
economia e, por consequência lógica, o principal responsável pelos efeitos
nefastos da economia, como seja o setor informal.
Parece-nos assim que a explicação das causas da existência do setor
informal de economia nos países desenvolvidos há de buscar-se mais ao
nível do regime económico (mais liberal ou menos liberal) e nas suas
envolventes conjunturais (que podem levar a crises económicas, muitas
vezes profundas) do que nas formas de propriedade em vigor.
Numa economia em que se combinam várias formas de propriedade,
num plano de liberdade de iniciativa e de igualdade de oportunidades,
não é a forma de propriedade em si o elemento determinante do setor
informal de economia.
A menos que haja privilégios, nomeadamente monopolistas, especial-
mente concedidos ao setor público de economia, não se poderá atribuir
ao setor público a responsabilidade da existência do setor informal de
economia. Nos casos em que haja privilégios para o setor público, poderá
verificar-se o bloqueio de áreas económicas que, por estarem exclusi-
vamente afetas ao setor público, criem constrangimentos na iniciativa
económica privada, determinantes de um menor número de postos de
trabalho do que a realidade económica desses setores potencia. Nestas
situações, é óbvio que estaremos perante uma relação causal entre o setor
empresarial público e a economia informal.
Mas esta hipótese só vem confirmar o ponto de vista por nós defendido,
segundo o qual as causas do surgimento do setor informal nas economias
de mercado dos países desenvolvidos devem procurar-se mais no regime
económico, ou seja, na política económica definida para cada momento
da evolução de uma dada formação socioeconómica, do que nas formas
de propriedade em vigor.
104 FRANCISCO QUEIROZ

2.5. Causas da Economia Informal nos Países da OCDE


Nos países desenvolvidos da OCDE, as causas da economia informal
radicam basicamente nos constrangimentos externos sobre a economia.
As causas de natureza cultural são, nestes países, de menor importância,
uma vez que os valores da cultura tradicional rural em que elas se apoiam
foram sufocados pelos valores da cultura urbana.
Não se tem referido o aumento demográfico como causa do aumento
dos níveis de economia informal nos países desenvolvidos, talvez porque
nestes países o nível de desenvolvimento económico geral é teorica-
mente compatível com o crescimento demográfico. Nos países em vias
de desenvolvimento, sobretudo em África, este fator ocupa um lugar
de relevo na explicação das causas da informalidade económica, por se
verificar um desfasamento acentuado entre o crescimento demográfico e
o baixo nível de desenvolvimento económico nacional, traduzido pelos
conhecidos baixos níveis de rendimento per capita.
O principal fator de constrangimento da economia nos países desen-
volvidos é o que resulta da intervenção do Estado na economia, através
das regras restritivas ou disciplinadoras da ação económica e da tribu-
tação. Ao lado deste fator, mas atuando a um nível mais conjuntural,
apontam-se as crises económicas e a internacionalização da economia.
O primeiro fator exerce sobre a ação económica um efeito de com-
pressão normativa à qual os agentes económicos muitas vezes não resis-
tem, procurando formas alternativas de sobrevivência económica. Estas
alternativas constituem formas de escapar a essa pressão, quer para evitar
custos insuportáveis de produção quer para aumentar a competitividade
nos concorridos mercados de oferta e de procura (de produtos, de serviços,
de emprego, etc.), ou para aumentar os resultados económicos perante
condições adversas da economia oficial17.

17  A Unión Sindical de Madrid-Región CC.OO. aponta o desejo de aumentar os


resultados económicos como uma causa autónoma, aparentemente não relacionada com
a intervenção do Estado, sustentando este ponto de vista com a seguinte afirmação: «Al
fin y al cabo, éste es el lema y motor de la sociedad capitalista desde sus orígenes. El
empresario obtendrá más beneficios si no paga a Hacienda, si no hace contratos labo-
rales, si se ahorra los gastos de Seguridad Social, etc.» Economía Sumergida, Unión
Sindical de Madrid-Región CC.OO., Ediciones GPS, Madrid, 1994, p. 24.
Discordando deste ponto de vista, reafirmamos a nossa posição (cfr. elemento
espontaneidade na definição de economia informal, infra capítulo III) segundo a qual,
quando a atividade económica é realizada com o fim deliberado de defraudar as leis,
se está perante uma ilegalidade e não de uma informalidade. O desejo de aumentar os
CAUSAS HISTÓRICAS DA ECONOMIA INFORMAL. O CASO DE ANGOLA 105

As crises económicas atuam na economia através dos sistemas de


pagamento, dos custos de produção e de serviços e da diminuição do
poder de compra, conduzindo a insolvências ou a falências financei-
ras dos agentes económicos do sistema oficial de economia. É o que
acontece atualmente nos países afetados pelas crises da dívida soberana
na Europa, designadamente Grécia, Portugal e Espanha. Nestes países
surgiu uma intensa economia informal, como resposta às dificuldades
surgidas das medidas de austeridade económica impostas pelas políticas
de salvação da crise.
Por sua vez, a internacionalização da economia conduz à competição
internacional com agentes mais poderosos em termos de capacidade
técnica, financeira e de gestão.
Ao confrontar-se com a oferta de mão de obra proveniente de países
mais competitivos em termos de custos da força de trabalho, o mercado
do trabalho nos países desenvolvidos é um dos mais afetados por este
fator constrangedor internacional.
Todos estes fatores geram instabilidade económica e social, cujos
reflexos se produzem na capacidade de ocupar a força de trabalho dis-
ponível. A principal caraterística deste fenómeno é o desemprego. Aqui
reside a principal fonte de agentes para a economia informal nos países
desenvolvidos.

2.6. Modos de Manifestação da Economia Informal na OCDE


A literatura sobre economia informal é fértil na descrição dos modos
como se manifesta a economia informal (também designada «subterrânea»)
nos países da OCDE. Existe uma abundante literatura sobre a matéria
relativamente aos Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, Espanha e Itália.
Em Portugal, refiram-se os já citados M. R. COCCO e E. A. SANTOS
(1980), A. NEVES e outros (1983), ALBANO J. SANTOS (1983), M.
RODRIGUES (1985) e ELSA FONTAINHA (1987)18.

resultados económicos, como causa da economia informal, só tem sentido se compreen-


dido no quadro da pressão interventora do Estado e da fuga espontânea a essa pressão
(sem consciência da lei e como meio de sobrevivência económica), num estado de
necessidade social atendível.
18  Segundo informação que obtivemos no Instituto Nacional de Estatística, em Lis-

boa, realizou-se um seminário sobre a importância da economia subterrânea em Portugal


(1983), com caráter indicativo, da qual resultou uma compilação das principais interven-
ções, coordenada por NUNO RIBEIRO SILVA, MIRA GODINHO e JÚLIO GUEDES.
106 FRANCISCO QUEIROZ

Do estudo comparativo das experiências em cada uma daquelas rea-


lidades sociais conclui-se existir uma grande semelhança de modos de
atuação por parte dos agentes da economia subterrânea. As diferenças
notadas respeitam mais à proeminência de determinadas causas num
determinado país, de que resultam, mais acentuadamente, certas formas
de manifestação típicas dessas causas. É célebre o caso da região italiana
de Emilia Romana, onde a pobreza de recursos, a falta de investimentos
públicos e privados e a influência do Partido Comunista Italiano, depois
da II Guerra Mundial, produziram como resultado um vasto setor informal
de tipo comunitário, envolvendo a pequena e média indústria, o comércio
e o emprego, num volume total de 12% da produção regional19.
A forma mais frequente de atividade económica subterrânea nos países
desenvolvidos, porém, é a que é praticada pelos vendedores ambulantes,
os trabalhadores domésticos, os trabalhadores por conta própria em regime
precário (mecânicos, eletricistas, canalizadores, costureiras, intermediários
de vendas ao domicílio, tarefeiros, contabilistas, escriturários, etc.) e os
trabalhadores por conta de outrem em regime extralegal, por tempo certo.
Em Portugal esta prática é frequente nas obras de construção civil,
na indústria têxtil, na indústria hoteleira e turística e na agricultura. Por
vezes, estas atividades são praticadas por pessoas que, estando empre-
gadas, procuram aumentar os seus rendimentos exercendo outra tarefa
suplementar fora das horas de serviço ou em simultâneo.
Todavia, os que mais procuram as atividades da economia subterrâ-
nea nos países da OCDE são os desempregados, os emigrantes rurais e
os imigrantes de países em desenvolvimento, que a elas recorrem como
modo de superar a pobreza nos países de origem e garantir a sobrevi-
vência económica.
Pelo lado empregador, o recurso à economia subterrânea é para evitar
a pressão financeira que os impostos e os salários incomportáveis podem
produzir face a uma conjuntura económica desfavorável.
Do ponto de vista sociológico, os efeitos da economia subterrânea,
no seu conjunto, são mais benéficos do que prejudiciais. Na verdade, a
economia subterrânea permite colmatar as lacunas do próprio sistema no
que respeita ao pleno emprego e à plena utilização das potencialidades
produtivas, diminuindo os efeitos das crises económicas e contribuindo
para a estabilidade social.

19  Ver HAROL LUBBEL, The Informal Sector in the 1980s and 1990s, cit., pp. 106 e ss.
CAUSAS HISTÓRICAS DA ECONOMIA INFORMAL. O CASO DE ANGOLA 107

Os prejuízos resultantes da economia subterrânea são, sobretudo,


de ordem fiscal e tributária, deixando o Estado de arrecadar as receitas
provenientes dos impostos devidos pelos agentes que realizam atividades
económicas sem serem coletados na fazenda nacional. Da parte dos agentes
da economia subterrânea, nomeadamente dos empregados e trabalhadores
por conta própria, os prejuízos traduzem-se, para além da instabilidade
laboral, nas dificuldades de acesso à segurança social e ao crédito.

2.7. A Ilegalidade e a Economia Subterrânea na OCDE


A maioria dos autores que estuda a economia informal nos países
da OCDE inclui na noção de economia subterrânea atividades que, em
nosso entender, não preenchem os requisitos da informalidade, mas sim
da ilegalidade.
Trata-se das atividades desenvolvidas deliberadamente contra as leis
tributárias, laborais e da segurança social.
Estes autores, na sua generalidade economistas, justificam a dificul-
dade de qualificar essas atividades como ilegais, apontando a fluidez
da fronteira entre a fuga intencional ao cumprimento das leis e a fuga
espontânea, não consciente, aos comandos dessas leis.
Para recobrir o conjunto dos dois tipos de comportamento, os econo-
mistas falam, um tanto incarateristicamente e com alguma falta de rigor,
em atividades quasi-ilegais que, em sua opinião, são enquadráveis no
conceito de economia subterrânea.
É frequente ver-se em análises sobre a economia informal nos países
desenvolvidos, sobretudo por parte de jornalistas de periódicos económi-
cos, a inclusão no setor informal de atividades manifestamente ilegais,
como o tráfico de drogas e de armas, a prostituição ilegal, o trabalho
infantil, o comércio ilegal de moeda estrangeira, de objetos de arte, de
diamantes e de outros valores sujeitos a normas específicas de proteção.
Os valores que se apresentam nas análises dessas atividades, em termos de
coeficiente no Produto Interno Bruto, aparece por isso bastante elevado,
abrangendo cifras que atingem os 30% do PIB20.

20  Cfr. The Economist, edição de 14 de agosto de 1993, p. 55, num estudo que inclui

rácios sobre a economia informal no PIB relativos ao Reino Unido (15%), Grécia, Itália,
Portugal e Espanha (20-30%); cfr. também Canadian Business Review, edição do verão
de 1994, sobre a economia informal no Canadá, atribuindo 15% do PIB (artigo intitu-
lado Canada’s Underground Economy, de ROLF MIRUS e ROGER S. AMITH, p. 26).
108 FRANCISCO QUEIROZ

3. A Economia Informal em Angola e suas Causas


3.1. A Economia Paralela no Período Socialista em Angola
Em Angola utilizam-se muitos termos para designar o que, no período
socialista de produção (1975-1998), se passou a chamar genericamente
de mercado paralelo.
Como sustentamos no ponto 1. deste trabalho, o «mercado paralelo»
que era referido em Angola no período socialista de produção como sendo
«a economia informal», na verdade representava apenas uma visão parcial
do setor informal de economia, não esgotando todo o espaço concetual
vasto desse fenómeno. O setor económico informal típico, compreen-
dendo também a chamada «economia de subsistência»21, é muito mais
do que aquilo que está implícito na noção restrita de mercado paralelo.
Por essa razão, neste ponto abordaremos a evolução histórica da eco-
nomia paralela, enquanto parte atípica da economia informal, de modo
a permitir explicitar a relação histórica entre estas duas dimensões da
atividade económica não oficial na nossa realidade histórica.
Face ao ordenamento jurídico-económico angolano do período da
fracassada experiência socialista (1975-1991), o mercado paralelo
representava um conjunto de práticas económicas frontalmente ilegais,
ou realizadas sem observância integral da lei.
Inspirado num certo tipo de usos e práticas comerciais desenvolvidos
à margem dos métodos económicos socialistas implantados depois da
independência de Angola, a economia paralela era desenvolvida por
agentes dedicados ao comércio retalhista, realizado em locais de concen-
tração mercantil formados espontaneamente. Estes locais foram surgindo
um pouco por todo o lado. Primeiro nas grandes cidades, com especial
destaque para a capital, Luanda, e depois por todas as outras localidades
urbanas do território nacional.
Os principais responsáveis do surgimento do mercado paralelo foram
os comerciantes ocasionais agrupados espontaneamente em lugares
estratégicos dos bairros das cidades, vilas e aldeias, onde exerciam o
comércio. Esses lugares de comércio ocasional são, ainda hoje, popular-

21 SÃO VICENTE, A Estabilização da Economia de Angola, Edição do Autor,


Luanda, 1994, pp. 46 e ss. Na perspetiva deste A., «o setor informal abrange um pujante
e dinâmico mercado paralelo e um substancial setor de subsistência» (p. 48).
CAUSAS HISTÓRICAS DA ECONOMIA INFORMAL. O CASO DE ANGOLA 109

mente conhecidos como «mercado» ou «praça»22. A primeira das duas


designações foi herdada do vocabulário administrativo colonial, que
chamava «mercados municipais» aos locais onde se exercia o comércio
de produtos alimentares frescos, pescado e outros produtos alimentares
tradicionais de amplo consumo.
Se bem que não seja um fenómeno exclusivo do período pós-inde-
pendência, o «mercado paralelo» adquiriu caraterísticas próprias e larga
expansão logo nos primeiros anos depois da independência de Angola,
em 1975.
As causas do mercado paralelo em Angola são económicas e políticas.
Essas causas radicam no modo de produção socialista e no sistema de
gestão económica centralizada do período socialista. O sistema socialista
de comércio e o regime de preços fixados, para a maior parte de bens
essenciais e serviços, tornou a utilização dos mercados municipais pouco
atrativa porque esses locais eram considerados estabelecimentos oficiais
e o comércio que aí se praticasse deveria obedecer ao regime comercial
e de preços fixados23. A situação de guerra civil que o país viveu e o
elevado índice de destruição das infraestruturas económicas e sociais

22  É muito frequente ver os nomes dos mercados e praças associados a aconteci-

mentos que de uma forma ou outra marcaram o imaginário popular. O maior mercado
de comércio informal (grossista e retalhista) de Angola, situado em Luanda, chamava-
-se «Roque Santeiro», nome de uma novela brasileira que a televisão local passou na
altura da formação espontânea desse mercado. Muitos outros mercados ostentam nomes
associados a novelas brasileiras e a outros acontecimentos. Por exemplo: «Trapalhões»,
nome de série cómica brasileira, atribuído ao mercado do mesmo nome situado na Ilha
de Luanda, onde se pratica o comércio de bebidas mantidas frescas em caixas térmicas,
pratos tradicionais (funji, mufete, feijão-de-óleo-de-palma, etc.) e pedaços de frango
ou de carne de suíno ou vaca grelhados no momento (os chamados pinchos); «Praça
das Corridas», nome atribuído a um mercado de localização indeterminada por sofrer
frequentes «corridas» da polícia; «Ajuda Marido», mercado que assim se chama porque
as quitandeiras que ali operavam argumentavam em geral que praticavam o comércio
informal para contribuir para o sustento da casa, assim «ajudando os maridos», maridos
esses que, por vezes, eram altos funcionários do Estado mal pagos; etc.
23  Cfr. Decreto n.º 20/90, de 28 de setembro, sobre o Regime de Preços, especialmente

o cap. II, onde são estabelecidos três tipos de preços (fixados, margens de comerciali-
zação máxima e preços livres), consoante a sua importância nos níveis e necessidades
de consumo sociais; Decreto n.º 28/82, de 12 de maio, sobre o Exercício da Atividade
Comercial, revogado pelo Decreto n.º0 30-I/92, de 7 de agosto, sobre a mesma matéria.
Para uma visão geral desta matéria, vd. ROQUE, Fátima Moura, Regime Comercial
Angolano e Sua Reforma, in Estudos de Economia, Vol. XII, n.º  3, abr.-jun., 1992,
pp. 283 a 302.
110 FRANCISCO QUEIROZ

é outro fator importante do desenvolvimento do mercado paralelo em


Angola no período socialista de produção.
Não podendo exercer o comércio retalhista nos mercados municipais,
os comerciantes retalhistas foram formando espontaneamente pontos de
comércio paralelo um pouco por todo o lado. Alguns dos antigos mer-
cados municipais foram invadidos pelos agentes do setor informal, que
os transformaram em «mercado» paralelo e impuseram aí as regras e a
dinâmica próprias deste24.
A dimensão dos mercados onde se realizava o comércio paralelo
variava, podendo compreender apenas algumas bancadas improvisadas
na berma das ruas, ou incluir milhares de pontos de venda em grandes
superfícies abertas. Na cidade de Luanda existiam em 1989, espalha-
dos por toda a cidade, cerca de quarenta mercados de média e grande
dimensão, permanentemente localizados25, e centenas de pequenos mer-
cados de rua, de permanência variável. O maior desses mercados era o
internacionalmente conhecido «Roque Santeiro», ponto de convergência
económica de todos os luandenses e fonte de abastecimento grossista de
outros mercados de menor dimensão.
O mercado «Roque Santeiro» garantiu, até ao seu desaparecimento
por transferência organizada para o Mercado do Panguila, em 2008, o
abastecimento da maior parte da população urbana. Este mercado era
também referenciado como o principal meio comercial de aferição do
nível de preços no consumidor da cidade de Luanda e de regulação da
paridade cambial do dólar americano em Angola.
No período socialista de economia, estes mercados eram os respon-
sáveis pela circulação mercantil extraoficial dos produtos vendidos a
preços subvencionados pelas lojas estatais, proporcionando a sua oferta
diversificada e livre. Por esse facto, o circuito comercial oficial, integrado
pelas lojas estatais e algumas lojas privadas ao serviço do sistema cen-
tralizado de comércio, perderam a sua caraterística comercial originária
e passou a funcionar, na prática, como fornecedor do mercado paralelo
através de várias formas.

24  É o caso do «Mercado dos Congolenses», um dos maiores mercados municipais

de Luanda, do «Mercado de S. Paulo», no Bairro do mesmo nome, e do «Mercado do


Prenda», entre outros.
25  FRIGYES, Ervin, e BESSA, Júlio M. V., Estudo Sobre o Mercado Paralelo em

Angola, Ministério do Plano, 7/dez./89, p. 5, citando fontes policiais.


CAUSAS HISTÓRICAS DA ECONOMIA INFORMAL. O CASO DE ANGOLA 111

Os mercados começaram por ser locais de trocas diretas de produtos,


onde a moeda exercia apenas a função de facilitar e tornar mais rápida
e menos casual as trocas.
Nos mercados do período socialista de produção comercializava-se
tudo: produtos alimentares de todo o tipo, vestuário, calçado, ferramentas,
eletrodomésticos, materiais de construção, medicamentos, equipamentos
diversos, peças de automóveis e até os próprios automóveis. Os mercados
eram também a principal fonte de ocupação da força de trabalho ativa
em Angola.
Até 1991, os produtos comercializados nos mercados provinham de
várias origens, mas as principais fontes de abastecimento eram o desvio,
o furto e a importação clandestina26.
A produção tradicional agrícola e de produtos de fabrico domiciliar,
de frescos e de animais domésticos provenientes de hortas e quintas em
redor das cidades ou de lavras de camponeses, era preferencialmente
comercializada nesses mercados, muitas vezes pelos próprios camponeses
que para aí a levava.
A moeda que circulava nos mercados era o Kwanza. Todavia, o valor
do Kwanza era aqui calculado a partir da paridade real do dólar ameri-
cano, medida em função da inflação real, num processo de autorregula-
ção monetária a que um estudo do Ministério do Planeamento chamou
«equilíbrio dinâmico espontâneo»27.
O surgimento do dólar americano no mercado paralelo foi determinado
pela perda de valor aquisitivo do Kwanza e do subsequente esvazia-
mento do poder de compra do salário, provocado pela descapitalização
da economia.
O dólar americano era introduzido ilegalmente no mercado cam-
bial paralelo a partir de diversas fontes28. As mais conhecidas eram o
tráfico ilícito de diamantes, responsável pela maior quota, as empresas
estrangeiras, elementos do corpo diplomático acreditado em Luanda e o
remanescente dos subsídios de viagens ao exterior, em ajudas de custo,

26 Ver infra, Implicações do «mercado paralelo» na Organização e Funcionamento


da Economia, secção 2.1. deste capítulo e subsecções correspondentes.
27  Estudo sobre o Mercado Paralelo em Luanda, da autoria de ERVIN FRIGYES e

JULIO M. V. BESSA, Ministério do Plano, Luanda, 7/dez./1989, p. 23.


28  A liberalização do mercado cambial, introduzida com as reformas económicas e

políticas, despenalizou a posse de moeda estrangeira por particulares. Até então vigorava
a proibição genérica de posse de moeda estrangeira por particulares, imposta pela Lei
Cambial (Lei n.º 9/88, de 2 de junho).
112 FRANCISCO QUEIROZ

despesas de representação, férias e tratamentos médicos, concedidos a


cidadãos nacionais29.
A introdução ilegal do dólar americano no mercado é responsável
pela origem em Angola do qualificativo «paralelo», integrador da noção
de mercado paralelo.
Com a abertura económica formalmente iniciada em 1991, os merca-
dos paralelos passaram a desempenhar a função que normalmente seria
desempenhada pelo comércio retalhista tradicional30.

3.2. A Economia Informal e a Economia Tradicional em Angola


A economia informal praticada nos mercados paralelos era, até 2002,
ano em que terminou a guerra e a economia de mercado se consolidou,
a parte mais visível da economia em Angola e a forma de manifestação
desse fenómeno que mais preocupou as autoridades económicas e a
sociedade em geral. As preocupações não se prendiam com essa forma
de economia informal em si – já que esta operava como sucedâneo da
ineficiente economia oficial – mas com o modo como ela se desenvolvia
nos mercados retalhistas. Desde logo, a gritante falta de condições higié-
nicas dos locais, dos produtos e até das pessoas que exerciam o comércio
nesses mercados. Por outro lado, os métodos e vias utilizadas na obten-
ção dos produtos canalizados para esses locais levantavam problemas
que atingiam o foro da legalidade: com exceção da comercialização dos
produtos provenientes da produção tradicional agrícola, urbana e campo-
nesa, os restantes métodos e vias de abastecimento do mercado paralelo
retalhista não eram, antes das reformas económicas, legais.
Este tipo de economia não se confunde com a economia tradicional,
praticada sobretudo nos meios rurais.
A diferente estruturação e organização dos fatores económicos nas
sociedades rurais africanas tradicionais e a visão económica e social
ancestral, que predomina nesses meios, situam a questão da economia
que predomina nesses meios num plano de análise cultural, antropoló-
gico e histórico.

29  A matéria dos subsídios por deslocações em serviço era regulada pelo Decreto

Executivo n.º 5/93, de 29 de janeiro, que revogou parte do Decreto Executivo n.º 3/89,


de 25 de fevereiro, e pelo Decreto n.º 11/93, de 14 de abril, sobre Despesas de Repre-
sentação de Dirigentes e Responsáveis.
30  FRIGYES, Ervin, e BESSA, Júlio M. V., estudo cit., p. 7.
CAUSAS HISTÓRICAS DA ECONOMIA INFORMAL. O CASO DE ANGOLA 113

Tendo em vista avaliar os efeitos da pressão exercida pelos modernos


princípios jurídico-económicos na estrutura económica tradicional e a
eventual formação, a partir daí, de uma economia informal em Angola,
é necessário que se avalie historicamente a relação entre a economia
tradicional angolana que existia antes da colonização portuguesa e a
economia que foi levada posteriormente pelo poder colonial, num quadro
de análise que compreenda: a) a descontinuidade dos processos econó-
micos; b) a transição da economia tradicional para a economia moderna.
Trata-se de saber, concretamente, como se organizava e funcionava
a economia antes da independência de Angola e que efeitos produziu
o choque organizativo e funcional do modelo económico implantado
pela potência colonizadora na estrutura económica existente antes da
independência.
Fiéis ao espírito que presidiu à realização deste trabalho, restringiremos
a análise das questões acima enunciadas à sua vertente macroeconómica,
sem curarmos de aprofundar o modo concreto como se realizavam e
articulam as atividades económicas respetivas.
O modo como é encarado economicamente este fenómeno pelos
estudiosos, no quadro desta relação de interinfluência recíproca, varia
com o grau de sensibilidade aos valores que subjazem a um e a outro
sistema de economia.
Para os que fazem a leitura deste fenómeno partindo da crença no
predomínio universal absoluto do modelo económico de mercado e das
suas virtudes, qualquer forma de manifestação económica que se desen-
volva fora desse quadro é marginal, periférica ou informal31.
Para os que veem no processo económico um traço contínuo de siste-
mas e de formas de atuação, existem modelos económicos dominantes e
formas económicas dominadas, ou em declínio, numa certa época, fazendo
todas parte e intervindo a seu modo no mesmo universo económico de
uma dada sociedade32.

31  Enquadram-se neste setor de opinião os autores que se referem à informalidade

económica dos países em desenvolvimento por extrapolação epistemológica e de critérios


de estudo da economia informal nos países da OCDE e do ex-bloco socialista, aplicando
generalizadamente a mesma visão na compreensão da economia informal nos países
em desenvolvimento. Cfr., no caso específico de Angola, ERVIM FRIGYES e JULIO
BESSA, FÁTIMA ROQUE, ENNES FERREIRA, RENATO AGUILLAR e MÁRIO
AZEJAM, BANCO MUNDIAL e FMI, op. cits.
32  De certo modo, enquadram-se nesta visão: OIT (Relatório da Conferência Mundial

sobre o Emprego – Economia Informal, Quénia, 1972); PENOUIL, Marc, LACHAUD,


114 FRANCISCO QUEIROZ

Defendemos a perspetiva que, valorizando a historicidade dos fenó-


menos económicos, políticos e sociais africanos, reconhece a existência
de formas de manifestação económica diferentes das dos modelos oficiais
implantados em África, igualmente válidas do ponto de vista da análise
teórica e da definição das políticas de desenvolvimento económico e social.
Para nós, a questão estará em determinar corretamente o lugar e a
importância que os valores subjacentes a cada um dos sistemas ocupa
na determinação das vias para alcançar o progresso e o desenvolvimento
económico e social, e como se poderão combinar ambos os sistemas de
valores para alcançar esses objetivos na sociedade angolana.
Esta perspetiva é a que é seguida pelos defensores da ideia de uma
informalidade económica em África como constituindo um fenómeno
estrutural e não meramente circunstancial ou conjuntural, para o estudo
do qual também se impõe uma visão antropológica, capaz de compreender
«como vivem de facto as pessoas»33.
O estudo da economia informal nos países em desenvolvimento como
um fenómeno estrutural foi impulsionado pela Organização Internacional
do Trabalho (OIT), na célebre Conferência Mundial sobre o Emprego,
realizada no Quénia, em 197234. As recomendações do Relatório do Quénia
dirigidas aos Estados-membros da OIT traduzem uma visão pragmática
da informalidade económica nos países em desenvolvimento e consagram
a ideia de que, nestes países, a economia informal é fundamentalmente
uma questão estrutural, para o tratamento da qual é necessário também
ter uma visão antropológica.
Todavia, supomos que a perspetiva da OIT é demasiado abrangente,
incluindo no setor informal de economia a economia tradicional rural.

Jean-Pierre, Le development Spontané, Les Activités Informelles en Afrique, op. cit.


(1985); GUERRA, A. Morais, Direito da Economia Angolana, op. cit., pp. 97 e ss. Este
autor fala na «força derrogadora do Costume» para referir o «processo evolutivo» e a
«tensão» entre o «mercado oficial e o mercado paralelo» em Angola, na perspetiva da sua
integração num único mercado; KEIT HART, L’entreprise Africain e L’economie Infor-
mell, in Entreprises et Entrepeneurs Africains, Edition de Karthala – Orston, Paris, 1995.
33  A afirmação pertence a KEIT HART, para quem a grande descoberta da antropo-

logia moderna foi a pesquisa de campo (recherche de terrain), a partir da qual a classe
intelectual franqueou a fronteira que a separa do resto da sociedade para descobrir como
vivem de facto as pessoas. L’entreprise Africaine et L’economie Informell, Entreprises
et Entrepreneurs Africains, Edition de Karthala – Orstom, Paris, 1995.
34  Cfr. notas de pé de página 3 e 11, infra, Cap. I, sec. 2. e 4., e respetivos desen-

volvimentos sobre o papel da OIT na definição do conceito de «economia informal»


nos países em desenvolvimento.
CAUSAS HISTÓRICAS DA ECONOMIA INFORMAL. O CASO DE ANGOLA 115

3.3. O Problema da Descontinuidade Económica


É um dado histórico pacífico que antes dos processos de colonização
portuguesa e de outras potências, colonizadoras em África, vigoravam
sistemas políticos e económicos diferentes dos que foram implantados,
progressivamente, pelos poderes coloniais nas respetivas colónias35.
No domínio da estrutura económica, existia um sistema dominial assente
na posse da terra, organizado em torno das instituições familiar e tribal.
A este tipo de organização económica correspondia uma economia de
subsistência, circunscrita fisicamente ao território da tribo, que incluía a
terra, os rios e lagos e os recursos faunísticos aí existentes. A propriedade
deste conjunto de bens pertencia à comunidade da tribo, representada
pelo chefe, e a sua posse era exercida pelas famílias.
O tipo de organização económica que existia no início da colonização
africana estava de acordo com o estilo de vida dos povos daquela época.
Os meios empregues eram rudimentares, estando a produtividade muito
dependente de fatores da natureza.
Os fundamentos filosóficos da economia tradicional ancoram no sis-
tema de valores culturais e religiosos em vigor nas sociedades africanas.
As caraterísticas essenciais desse quadro de valores são a supremacia dos
vínculos familiares e a crença em poderes sobrenaturais transcendentais.
Este quadro de referências culturais e religiosas influenciou o com-
portamento dos povos africanos para além do domínio colonial, estando
presente, explícita ou implicitamente, no comportamento da maior parte
da população angolana36.

35  Ver, sobre a economia pré-colonial em África, GODINHO, Vitorino Magalhães,

Os Descobrimentos e a Economia Mundial, 2 vols., Editorial Arcádia, Lisboa, 1963,


especialmente pp.  327 e ss. do 1.º vol. e pp.  397 e ss. do 2.º vol. Sobre a estrutura
política e económica na África Subsaariana do século vii ao século xii, ver KI-ZERBO,
Joseph, História da África Negra, vol. I, Publicações Europa América, s.d., pp. 129 e
ss., onde é relatada a evolução dos reinos aos impérios na África Ocidental, no Nordeste
e na Costa Oriental. Quanto aos sistemas políticos africanos e a influência dos laços
familiares na organização política, ver RADCLIFFE-BROWN, A. R., e FORDE, Daryll,
Sistemas Políticos Africanos de Parentesco e Casamento, 2.ª  ed., Fundação Calouste
Gulbenkian, Lisboa, 1982, obra coletiva, traduzida da versão inglesa por TERESA
BRANDÃO, pp. 283 e ss.
36  Sobre a influência do sistema tradicional de economia na formação económica

angolana, veja-se ROCHA, Alves, LOURENÇO, Nelson, e GUERRA, Armando Morais,


O Sistema Tradicional na Formação Económica Angolana, in Revista Economia e Socia-
lismo, n.º 38/45, mai./dez. 1979. Sobre a estrutura económica de Angola, ver GUERRA,
116 FRANCISCO QUEIROZ

No domínio da economia, a influência cultural tradicional manifesta-se


sobretudo no modo imediatista de encarar a vida económica.
Vista à luz das teorias clássicas, a economia não é encarada como
um processo que, combinando diversos fatores (trabalho, capital, conhe-
cimentos), conduz ao aumento da produtividade e à diminuição dos
custos, produzindo riqueza, mas como um mero meio de subsistência.
A propriedade dominial familiar e o respeito dos laços familiares na
distribuição dos bens e dos frutos apresentam-se como corolários dessa
forma de conceber o processo económico.
Do ponto de vista da circulação mercantil, quando os navegadores
portugueses chegaram a Angola encontraram um sistema de trocas rudi-
mentar, muitas vezes sem a intermediação de padrões de valor37.
De um modo geral, a colonização europeia em África provocou um
choque entre sistemas de organização política, económica e social leva-
dos da Europa e os sistemas da mesma natureza vigentes nas sociedades
africanas que passaram a dominar. Desse choque resultou, como afirma
MARC PENOUIL, a «oposição de tipos de civilização entre países que
abraçaram plenamente o sistema da sociedade técnica e os países que
não integraram a dinâmica tecnológica nas suas estruturas económicas e
sociais»38. É esta, aliás, a caraterística da nossa época que, precisamente,
estabelece a diferença entre países desenvolvidos do «Norte» e países
em desenvolvimento do «Sul».

3.4. O Dualismo Cultural e Económico Pós-colonial


Do cruzamento de valores civilizacionais europeus e africanos surgiram
e desenvolveram-se em África formas híbridas de manifestação social,
quer ao nível económico quer ao nível cultural e religioso.

Henrique, Angola, Estrutura Económica e Classes Sociais, União dos Escritores Ango-
lanos, 6.ª ed., Luanda, 1988, pp. 13 a 27.
37  Cfr. GODINHO, Vitorino Magalhães, Os Descobrimentos e a Economia Mundial,

1.º vol., Editorial Arcádia, Lisboa, 1963. Segundo este historiador, fora dos circuitos
marroquino e indiano da expansão portuguesa, «os navegadores, comerciantes, conquis-
tadores, colonos e missionários depararam com sociedades muito mais arcaicas, algumas
praticando a simples dádiva sem qualquer avaliação, outras já dispondo de objetos pri-
vilegiados (frequentes vezes por razões mágicas, religiosas ou outras não diretamente
económicas) que servem de padrão de valor ou de instrumento de permuta» (p. 327).
38  PENOUIL, Marc, e LACHAUD, Jean Pierre, Le Développment Spontané, Les

Activités Informelles en Afrique, Editions A. Pedone, Paris, 1985, p. 7.


CAUSAS HISTÓRICAS DA ECONOMIA INFORMAL. O CASO DE ANGOLA 117

Ao nível da economia, a hibridez manifesta-se na conjugação de


mecanismos e métodos de atuação económica típicos do sistema econó-
mico mercantilista e de mercado moderno e do sistema dominial familiar,
prevalecendo, nas zonas rurais, o sistema dominial e, nas zonas urbanas,
o sistema capitalista de mercado moderno.
A eficácia do progresso tecnológico das sociedades europeias impôs-se
ao modelo económico tradicional das sociedades africanas.
O cruzamento entre os dois tipos de sociedade constitui a base sobre
a qual se tem tentado construir atualmente o desenvolvimento de África.
Contudo, apesar da supremacia da pressão exercida pelo sistema de valores
europeus, a estrutura cultural e religiosa das populações africanas man-
teve incólume o essencial dos seus fundamentos filosóficos. Este facto
joga um papel importante na explicitação dos fenómenos diversificados
e heterogéneos de manifestação política, económica e social em África
na atualidade.
Uma conclusão que se pode tirar a partir dessa constatação é que a
colonização cultural foi mais lenta do que a económica e política, não se
podendo afirmar que, cinco séculos depois de iniciada, se tenha implantado
a 100% um modelo civilizacional europeu, nem que se tenha induzido
na consciência africana o modo exclusivamente cristão de conceber o
mundo e as coisas.
O progresso relativo dos meios de colonização económica, política e
cultural sobre as sociedades tradicionais africanas, traduz-se, entre outros
aspetos, na persistência conflitual atual de dois sistemas estruturais de
economia – manifestando-se conjunta ou separadamente nos meios rurais
e nos centros urbanos – e de múltiplas formas de manifestação religiosa
sobrepostas à principal, de base animista.
O modelo de economia colonial, primeiro, e socialista, depois, com
toda a sua plêiade de regras e mecanismos de controlo público da eco-
nomia em Angola, não fez desaparecer os traços da economia tradicional
de matriz africana39.

39  Ver, neste sentido, GUERRA, Henrique, op. cit., para quem «a introdução de
poderosas estruturas capitalistas nas regiões subdesenvolvidas do Terceiro Mundo não
veio, em geral, atenuar, antes, pelo contrário, veio, em geral, agravar os problemas que
existiam nesses países». Na opinião deste autor, «esta contradição violenta entre o setor
capitalista e o setor tradicional introduzida nos países subdesenvolvidos é a principal
responsável pelas caraterísticas sociais que têm sido apontadas aos países do Terceiro
Mundo» (p. 14).
118 FRANCISCO QUEIROZ

Este facto, observado na generalidade dos países africanos, com par-


ticular realce depois dos processos de independência política nas últimas
décadas, explica o recente interesse manifestado pelas elites políticas e
intelectuais africanas no estudo do enquadramento oficial da economia
processada no setor tradicional e da que se desenvolve fora das regras
estabelecidas oficialmente, ou seja, daquilo a que se tem chamado gene-
ricamente «economia informal»40. O interesse desses estudos consiste em
encontrar soluções políticas que atendam as particularidades antropológicas
das comunidade africanas e a manutenção das suas identidades culturais
tradicionais, tendo como finalidade inclui-las nos sistemas mais gerais
da economia oficial de mercado, sem constrangimentos.

40  Testemunho dessa preocupação institucional sobre a economia não oficial foi a
Conferência Mundial sobre o Emprego realizada no Quénia, em 1972, onde se abordou,
pela primeira vez de forma sistemática, a economia informal nos países em desenvolvi-
mento, e se produziram recomendações pertinentes a observar pelos Estados-membros.

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