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Os fisiocratas

 Em meados do século XVIII aparece na França o primeiro


grupo de pensadores de questões econômicas organizado
formalmente em escola.
 Eles se autointitulam economistas, expressão não muito usual
à época, mas vieram a se tornar conhecidos como fisiocratas,
adeptos da escola da fisiocracia.
 A raiz da palavra fisiocracia significa “governo (ou regra) da
natureza”, e ela revela um aspecto fundamental da crença que
os une, quer seja, a ideia de que a sociedade e a economia
funcionam de acordo com uma ordem natural.
A ordem natural da sociedade
 Todos os fatos sociais e econômicos estão
intimamente ligados e sujeitos a leis inevitáveis.
Portanto, tanto o governo quanto o setor privado
devem entender e observar essas leis em suas
ações se desejam alcançar resultados ótimos.
 A ordem natural da sociedade apresenta assim o
caráter de um modelo ideal, que não é estabelecido
na prática quando os homens criam obstáculos ao
seu bom funcionamento.
Deus e a economia
 A natureza social é fruto do desígnio de Deus que
a constrói estabelecendo entre seus elementos
relações matemáticas.
 Embora a fé religiosa possa revelar o conteúdo da
doutrina moral e política que rege a sociedade, o
entendimento da esfera econômica constrói-se a
partir da observação dos fatos e da articulação dos
dados quantitativos fornecidos pelos preços em
um sistema de cálculo matemático.
Economia como um
organismo
 O trabalho do economista consiste na observação metódica, no
arranjo e organização dos fatos de acordo com suas causas e na
proposição de um sistema analítico em um modelo teórico.
 Assim, a ciência econômica copia o mesmo método das ciências
físicas. Seu objetivo precípuo é o de analisar a mecânica da
interdependência das partes que compõem uma totalidade.
 A vida econômica configura uma máquina semelhante a um
organismo vivo e a análise mecânica e matemática dela permite
à teoria acompanhar o seu modo de funcionamento.
Os fluxos da economia
 A preocupação dos fisiocratas consiste em identificar os
princípios racionais que regem a produção e a acumulação de
riquezas, bem como a distribuição de renda e os fluxos de
gastos.
 No primeiro caso, enfatizam o processo de investimento
produtivo, pensado como adiantamento de capital de giro e
emprego de capital fixo.
 No que tange à geração de renda e gastos, os fisiocratas
descrevem um processo anual de interação mútua entre classes
sociais como um fluxo circular de renda e despesa.
 A compreensão do fluxo é importante, pois identifica o
âmago do funcionamento do sistema econômico em
analogia aos fluxos sanguíneos do organismo biológico.
 Os efeitos das políticas intervencionistas podem ser
antecipados pelo entendimento do organismo econômico.
A boa política deve procurar ampliar o fluxo circular, o
que impulsiona o crescimento econômico.
A importância da agricultura
 A produção e a distribuição de riquezas ocorre ao longo de
um circuito composto por diversos elos de ligação. A
política econômica, ao afetar determinado elo, comunica
um efeito à economia como um todo.
 O fator chave da atividade econômica é a agricultura.
 De fato, na França do século XVIII a atividade agrícola era
o setor mais importante. O método capitalista de direção
empresarial havia se difundido mais na agricultura, que se
constitui assim no carro chefe da economia francesa.
A ideia de excedente
 Refletindo a organização do trabalho vigente na França do
período, os fisiocratas vão identificar na agricultura o setor
natural para a implementação dos métodos capitalistas,
enquanto para as atividades urbanas veem a estrutura
tipicamente artesanal como a forma natural de gestão.
 O capitalismo é um sistema de produção com base nas
trocas de mercado que tem como princípio de
funcionamento a geração de excedente, a sua aplicação
produtiva e a ampliação do mesmo.
Propriedade e trabalho
 O capitalismo pressupõe o direito de propriedade e na sua
forma pura não admite restrições a esse direito. No
entanto, no plano da ordem natural os fisiocratas
argumentam que tal direito deveria se fundamentar no
trabalho humano despedido.
 Neste ponto, os fisiocratas seguem John Locke na defesa
dos direitos individuais e no uso deles para justificar a
propriedade privada. Também defendem a liberdade de
mercado e acreditam que o autointeresse individual esteja
na base do funcionamento harmônico da economia.
Laissez-faire, laissez-passer
 Os fisiocratas combatem as medidas intervencionistas do
governo e têm como máxima o conhecido refrão laissez-
faire, laissez-passer, que apela à liberdade de produção
(permitam que façam!) e de comércio (deixai que passem!).
 A crítica ao controle da autoridade não significa que os
homens não tenham de se submeter a algum poder. Mas esse
poder, no caso, é a própria lei natural que se deve observar
para a consecução plena dos objetivos colimados.
O excedente
 O excedente é um conceito importante dos fisiocratas e
significa a riqueza produzida que não é consumida. Os
fisiocratas acreditam que o excedente só ocorre na
agricultura. Sendo o capitalismo um sistema de geração de
excedente, somente na agricultura ocorre a produção nos
moldes capitalistas.
 Como este é o único setor que gera mais do que é consumido
no processo, ele é tido como o único setor produtivo.
 A atividade manufatureira apenas muda a forma dos bens. É
claro que pelo seu concurso os bens tornam-se mais úteis,
entretanto, só a agricultura é capaz de criar riqueza adicional.
Status privilegiado da agricultura
 O que confere um status privilegiado à agricultura é a
ação, exclusivamente nela, de forças naturais que ocorrem
no campo e que propiciam o crescimento do ser vivo: a
planta que se desenvolve, a árvore que floresce etc.
 O mesmo processo não é identificado na indústria. O
excedente é a apropriação destas benesses da natureza.
Toda a fonte da riqueza advém do excedente, só ele
contribui para a formação do produto líquido (a produção
que ultrapassa o consumo no período).
A escola fisiocrata era formada por um grupo
heterogêneo de autores, dentre eles destacam-se:

 Jacques Turgot - secretário de finanças de Luis XVI, autor


de reformas de inspiração liberal e propagandista da teoria
do direito natural. Muitos não o consideram fisiocrata, mas
somente um simpatizante do movimento. Turgot destaca-se
na análise do valor.
 Marques de Mirabeau - que cunhou, como vimos, a
expressão mercantilismo.
 Mercier de la Riviére - uma das principais figuras, com
farta reflexão em filosofia política.
 Du Pont de Nemours - migrou para os Estados Unidos e
ajudou a difundir ideias fisiocratas por lá.
 François Le Trosne - jurista e economista, o mais jovem
do grupo. Desenvolve em seus escritos uma análise do
valor na qual considera fatores como utilidade, despesas
na produção, raridade do bem e concorrência.
 Nicolas Baudeau - editor chefe do jornal dos fisiocratas.
 François Quesnay - o líder do movimento. Médico da
corte de Madame de Pompadour e Luis XV. Conheceu
Smith pessoalmente e influenciou-o com sua visão do
processo econômico. A sua obra Quadro Econômico é a
mais conhecida da escola Fisiocrata.
Problemas da época
 A contribuição dos fisiocratas insere-se nas críticas, muito em
voga na época, contra a política econômica de Luis XV.
Impostos opressivos eram cobrados da população para financiar
os gastos extravagantes da corte e o envolvimento em guerras
que trouxeram conseqüências desastrosas para o tesouro francês.
 No entanto, os nobres e os membros de clero beneficiavam-se de
isenções fiscais, embora fossem donos de dois terços das terras.
 Os fisiocratas reagiam a esse estado de coisas. Acreditavam que
o receituário de medidas mercantilistas levaria à ruína do reino.
 As políticas para estimular as exportações
resultaram no encolhimento do mercado interno,
dos salários e da renda gerada na economia.
 A produção agrícola sofria com os impostos
abusivos e, mais grave, os impostos afetavam o
crescimento econômico na medida em que
impediam a acumulação de capital.
Tableau Économique
 A obra que melhor sistematizou a nova visão da
economia e que serviria como um guia científico
para a reforma econômica foi o Quadro
Econômico (Tableau Économique) de Quesnay.
 Ele percebeu que uma compreensão do processo
de interação entre as classes sociais por meio de
fluxos de renda e despesas seria fundamental para
se restaurar a política econômica.
Ele concebe a sociedade por meio de
três classes socioeconômicas:
 Classe produtiva - formada basicamente por
agricultores, mas que poderia incluir também
pescadores e mineradores.
 Classe estéril - em que participam
manufatureiros, mercadores, servos e profissionais
liberais.
 Proprietários de terra e de outros bens.
Quesnay ou Cantillon?
 Alguns comentadores atribuem a Quesnay a primeira
proposta de se pensar a economia em termos de classes
sociais e fluxos de renda entre elas, mas já vimos que antes
dele este enfoque aparece em Cantillon, embora no
Quadro Econômico ele esteja mais bem desenvolvido.
O fluxo de renda
 Quesnay oferece uma complicada tabela numérica onde
traça em ziguezague, os fluxos de renda e despesa agregadas
entre as classes.
 O fluxo circular da economia representado por ela mostra
como as despesas de um setor geram as receitas de outros,
dentro de um modelo fechado e estático.
 A origem das despesas é a renda recebida pelos senhores de
terra. Tal renda é o produto líquido do período anterior pago
no início do novo período pelos fazendeiros.
 A renda total que emana dos fazendeiros
movimenta a atividade econômica das três classes
ao longo do período e no final retorna a eles.
 A cada período o processo se repete.
Exemplo numérico
 Exemplificando, suponhamos que o produto total da
economia no fim do período produtivo anual seja de cinco
unidades monetárias que se encontram inicialmente nas
mãos da classe produtiva.
 O excedente sobre os custos necessários para essa produção
é o produto líquido que é transferido para o pagamento de
aluguel. Assim, duas unidades monetárias são canalizadas
integralmente aos proprietários.
 O período seguinte começa com os proprietários gastando o que têm,
comprando $1 de manufaturas da classe estéril e $1 dos mesmos fazendeiros
na aquisição de alimentos.
 Os fazendeiros adquirem $1 de manufaturas da classe estéril e $2 de
alimentos deles mesmos. Os artesãos e outros membros da classe estéril
gastam o rendimento adquirido no período comprando $1 de alimentos e $1
de matérias-primas dos fazendeiros.
 Destarte, as cinco unidades monetárias iniciais retornam à classe produtiva
no fim do período, como demonstra o diagrama a seguir no qual estão
representados os vários fluxos de rendas e despesas anuais:
2

CLASSE
1 CLASSE
PRODUTIVA ESTÉRIL CLASSE DOS
(fazendeiros, (artesãos, 1
pescadores, mercadores, PROPRIETÁRIOS
mineradores etc.) profissionais
2 liberais etc.)

2
1
5

Renda herdada do período


anterior
 No diagrama, as setas contínuas representam as despesas da
classe produtiva e as setas pontilhadas indicam as receitas.
 Percebe-se facilmente que os cinco de despesas transformam-
se integralmente em receitas, restabelecendo-se a mesma
condição do início do período.
 No entanto, o esquema traçado no quadro de Quesnay não
apenas mostra como as condições iniciais são reproduzidas,
mas indica também as condições requeridas para o
crescimento econômico.
A fim de manter a economia no mesmo nível de produção,
são necessários gastos de capital chamados de adiantamentos.
Quesnay fala em quatro tipos de adiantamentos:

1. Adiantamentos anuais (avances annuelles) - o capital de


giro da produção agrícola.
2. Adiantamentos primitivos (avances primitives) - para a
reposição das ferramentas agrícolas.
3. Adiantamentos em melhorias permanentes (avances
fonciéres).
4. Adiantamentos para o capital fixo social aplicado pelo
governo em estradas, canais, portos etc. (avances
souveraines).
 Para o fazendeiro, importa principalmente os adiantamentos
anuais e primitivos. Se houver uma queda deles, a produção
não poderá se sustentar no nível anterior.
 Portanto, a descrição dos fluxos econômicos no quadro
também considera os adiantamentos. Quesnay parte da
hipótese de que o adiantamento anual é feito pela classe
produtiva e o adiantamento primitivo pela classe estéril.
A tabela dos fluxos
 Podemos transmitir uma noção do quadro econômico dos
fluxos entre as classes sociais sem apresentá-lo como em
Quesnay, evitando assim uma construção demasiado
complexa, mas retendo aspectos essenciais de sua
representação.
 Para tanto, construiremos a seguir dois quadros bastante
simples, um para o fluxo monetário e outro para o fluxo real
das mercadorias.
 No lado real, trabalha-se com alguns números meramente
hipotéticos: três unidades físicas de mercadorias na classe
produtiva e três unidades retidas pela classe estéril.
 As três unidades da classe produtiva correspondem ao
adiantamento anual, composto de uma unidade de alimento e
uma de manufatura, destinadas ao sustento dos trabalhadores,
e uma de matéria-prima para a produção.
 Das três unidades da classe estéril, uma delas será cedida à
classe produtiva como adiantamento primitivo, trata-se de
matéria-prima.
 O adiantamento primitivo é feito no começo do período
pela classe estéril e serve para repor o capital fixo que se
depreciará no período.
 As duas unidades de mercadorias que permanece na classe
estéril são constituídas por alimento, para os trabalhadores
do setor, e matéria prima, para a produção de mercadoria
(os trabalhadores da classe estéril não demandam
manufatura, apenas como hipótese simplificadora).
 No final do período de produção, a agricultura gera três
unidades de alimentos e três de matérias-primas.
 Como para produção final dessas seis unidades foram
requeridas três de adiantamento anual e uma unidade de
adiantamento primitivo, nós estamos consideramos o produto
líquido do setor igual a dois.
 A classe agrícola retém, ao final, o produto líquido de uma
unidade de alimento e uma de matéria-prima.
 Os fluxos das transações com mercadorias ao longo do período
produtivo reproduzem as condições iniciais. As duas unidades
que correspondem ao produto líquido são transferidas para os
proprietários.
 Estes retêm uma unidade de alimento para consumo e trocam a
outra por uma unidade de manufatura.
 Depois, a classe produtiva troca uma unidade de alimento por
uma de manufatura com a classe estéril.
 Como a classe agrícola cedeu dois de alimentos e uma unidade
de matéria prima, ainda lhe restam da produção uma unidade de
alimento e duas de matérias-primas, já que tinha produzido três
unidades de alimentos e três de matérias-primas.
 Falta ainda considerar que uma unidade de matéria-prima
pertence, na verdade, à classe estéril que foi responsável
pelo adiantamento primitivo.
 Assim, em última instância as condições iniciais do
problema estão reproduzidas ao fim destes movimentos.
 O quadro abaixo, diferente do quadro de Quesnay, facilita
bastante acompanhar o raciocínio anterior, mas não se
assemelha aos quadros em ziguezague do francês.
Quadro dos Fluxos Reais

Classe produtiva Proprietários Classe estéril


Dotação inicial 3 (1a,1mp,1m) 0 3 (1a,2mp)
Adiantamentos 4 (1a,2mp,1m) 0 - 1 (mp)
Produção 6 (3a,3mp) 0 2 (m)
Transferências 2 (1a,1mp)
1 (mp)
1 (m)
1 (m)
1 (a)
1(mp)
Dotação Final 3 (1a,1mp,1m) 0 3 (1a,2mp)
a : alimento
mp : matéria prima
m : manufatura
 Essa descrição simplificada dos fluxos reais no quadro de Quesnay pode ser
complementada com os fluxos monetários.
 Trabalhamos com a hipótese de que as transações possam ser sancionadas
por duas unidades monetárias em mãos inicialmente da classe agrícola.
 A seguir representamos os fluxos monetários em um novo quadro. A classe
produtiva paga $2 de aluguéis aos proprietários que compram $1 de
manufaturas e $1 de alimentos. A classe estéril, por sua vez, compra $1 de
alimentos.
 A classe agrícola usa este montante para comprar $1 de manufaturas e
finalmente a classe estéril compra $1 de matérias-primas junto à classe
agrícola. A última linha do diagrama mostra que a classe produtiva termina
com os mesmos $2 que possuía no início.
Quadro dos Fluxos Monetários

Classe produtiva Proprietários Classe estéril


Dotação inicial $2 0 0
Transferências $2
m $1
$1 a
$1 a
m $1
$1 mp
Dotação Final $2 0 0
a : alimento
mp : matéria prima
m : manufatura
 A classe estéril recebe uma unidade de matéria-prima em
troca de uma unidade da mesma em adiantamento.
 Sendo assim, ela não recebe juros pelo adiantamento. O
quadro de Quesnay, portanto, não contempla o pagamento
de juros. Juros na sua terminologia é tão somente a
restituição do principal do montante emprestado.

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