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Recalque
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Quando Freud formaliza o mecanismo do recalque (Freud, 1915), vê-se obrigado a deduzir um
recalque primário, que serviria como pólo de atração para o recalque propriamente dito, ao
mesmo tempo em que instituiria a própria divisão entre os sistemas: o inconsciente por um
lado, e o consciente por outro. Seria mais preciso dizer que nem mesmo se pode falar em
sistemas antes da divisão.
Portanto, a divisão e a constituição dos sistemas estão vinculadas sem que, paradoxalmente,
se possa falar da anterioridade de uma sobre a outra. Isto já nos introduz na questão da
temporalidade em psicanálise. Veremos- e já temos acima um primeiro exemplo- que não se
explica os processos psíquicos segundo uma lógica linear. Não se trata em psicanálise de uma
temporalidade cronológica, mas, antes, lógica. Avançaremos nessa questão o suficiente para
explorarmos um pouco a noção de recalque originário em Freud e recorreremos a Lacan diante
dos impasses freudianos.
O recurso a Lacan é justificado por ter ele sido o único comentador de Freud capaz de
possibilitar uma apreensão esclarecedora da lógica do a posteriori, essencial na questão do
recalque. A noção de recalque originário vem para responder às teorizações do recalque
propriamente dito (ou recalque secundário), mas o conceito mesmo de recalque originário
permanece um mistério, dado que a explicação de seu funcionamento tem lacunas
importantes.
Freud, e depois Lacan, transporta esta lei originária, estruturante da passagem da natureza à
cultura, para explicar a estruturação do psiquismo. Neste mesmo texto, porém, Freud não
reformula sua concepção de recalque à luz desta "lei anterior", embora seja explícita no texto a
relação de causalidade entre essa lei e a organização psíquica do sujeito e muito embora
Freud sirva-se desse mito para ilustrar o recalque e os processos primários na neurose.
Assim, Freud esquiva-se de teorizar acerca do que acabara de levantar: um agente recalcante
anterior ao Édipo(3). Supõe então algo que seria transmitido de geração em geração e que
sobreviveria à história individual. Haveria no psiquismo uma herança filogenética. Na causa do
inconsciente haveria algo de transindividual. Mesmo os críticos mais ferrenhos dessa idéia,
como Jean Laplanche, que defende que o inconsciente é individual(4), admite que Freud, ao
tratar do recalque originário, admitia uma "pré-inscrição" do sujeito(Laplache e Pontalis, 1989).
Não retomaremos estes pontos, dado que aprofundar essa discussão nos desviaria muito de
nossos propósitos. Seguiremos com Lacan. Até aqui alguns elementos deste trabalho já foram
adiantados: uma necessária revisão do próprio conceito de inconsciente a partir deste "anterior"
freudiano: seja sob a forma de uma (pré-) inscrição, de um inconsciente (anterior), ou de um
recalque (originário).
II) O Recalque e a Divisão
Garcia-Roza é um dos autores que toca nesse ponto: "Ora, ou bem ele [o recalque] funda a
divisão dos sistemas, ou bem ele opera a partir da divisão já constituída."(Garcia-Roza, 1995).
Em seguida ele diz que Freud resolvera o paradoxo ao postular a distinção entre recalque
originário e recalque propriamente dito. Já citamos os mecanismos desse último.
Conseqüentemente iremos explorar o mecanismo próprio ao recalque originário e veremos o
quão insuficiente é essa aparente solução.
Como essa divisão se institui? No caso do recalque originário, não podemos postular um
núcleo do recalcado que exerceria atração a partir do Ics sobre as representações. É ele
mesmo o responsável pela constituição deste núcleo, o qual será fundamental no recalque
propriamente dito e que justifica a postulação de um recalque anterior.
Deste modo Freud irá declarar o contrainvestimento como o único mecanismo presente no
recalque originário(Freud, 1914). Como já vimos, o mecanismo do contrainvestimento consiste
na retirada de investimento da idéia Pcs/Cs e na conseqüente reutilização deste investimento
para contrainvestir a representação Ics que tenta irromper na Cs(Freud, 1915). Assim, para
Freud, o recalque originário consiste em "negar a entrada, no consciente, do representante
psíquico da pulsão. Com isso, estabelece-se uma fixação; a partir de então o representante em
questão continua inalterado e a pulsão permanece ligada a ele."(Freud, 1914, p. 171).
III) O Contrainvestimento e a Fixidez Pulsional
[ele] é esse ponto de carência na cadeia associativa que recupera o umbigo do sonho.
Representa a falta ou a ausência- como indica Lacan- do representante psíquico da pulsão:
lugar de hiância do Ics e de apagamento do sujeito.(Cosentino, 1996, p. 149)
Esse ponto de carência, demarcado por este representante privilegiado da pulsão, vai ele
mesmo servir de pólo atrativo para as outras representações e constituirá o núcleo do Ics
enquanto recalcado(5).
Já vimos que a fixação do representante pulsional, ao mesmo tempo em que o fixa e que o
mantém inalterado, possibilita o deslizamento pulsional em torno das representações
recalcadas. Essas últimas são atraídas pelo núcleo do Ics assim constituído. "Assim
constituído" quer dizer que não há qualquer anterioridade cronológica aqui, mas sim lógica.
Há uma relação de dependência entre esse "representante que não faz série" e a própria série.
Mais que isso, é nesse "ponto de carência" mesmo, enquanto "resto inassimilável", que o
recalcado irá retornar. A série se constitui a partir desse ponto de ausência, marcado por essa
primeira fixação, primeira inscrição(Cosentino, 1996). A lógica do psiquismo se antecipa aqui:
um princípio de "ligação"(inscrição) e outro de "desligamento"(não cessa de não se inscrever);
tal como Freud viria a postular cinco anos após o texto de 1915 sobre o recalque em "Além do
Princípio do Prazer", a respeito da tensão entre as pulsões de vida e a pulsão de morte.
Aqui podemos nos remeter a esse um da exceção de que Lacan fala em sua leitura do mito
freudiano do pai primevo(6).
É nesse sentido que a função paterna será tomada por Lacan: o pai da horda é a metáfora
desse ao menos um, exceção que confirma a regra. Joel Dör ressalta que a divisão do sujeito é
conseqüência imediata da metáfora do Nome-do-Pai e que esta tem como mecanismo
correlativo o recalque originário(Dör, 1991, p. 51, 101 e 102). Chama a atenção também para a
importância atribuída por Lacan ao lugar estrutural desse significante primordial e não a uma
essência própria ao significante em si mesmo:
Não há, portanto, qualquer conteúdo no Ics. O núcleo da estrutura é a própria ausência, é a
própria perda do objeto - das Ding - e é em torno dessa ausência que a fixação faz
borda(Cosentino, 1996, p. 163).
V) Das Ding, O Objeto enquanto ausente
Das Ding ( A Coisa) é, para Freud, o objeto que só tivemos miticamente e que no entanto só
encontramos die Sache, as coisas. Na referência de Lacan no "Seminário 7", a coisa-mãe,
ocupa metaforicamente o lugar de das Ding. É clara a alusão ao mito que comentamos acima.
Trata-se, portanto, de um lugar vazio, já anunciado aqui por Lacan, mas que só vai ganhar
contornos definidos a partir do "Seminário 10" e da formulação do conceito de objeto a, objeto
causa do desejo(8). De qualquer modo Lacan já havia dito que é em torno dessa ausência da
Coisa que gravitam as representações, ou seja: os significantes.
A partir daqui a articulação com Lacan impõe-se com mais evidência. Por esse ponto de
ausência devemos entender a inexistência de um sentido último, ou de um conteúdo. Seguindo
o comentário de Diana Rabinovich:
Precisamos então retomar a dupla vertente dessa primeira inscrição ou fixação que se dá no
contrainvestimento. "A inscrição mesma equivale ao contrainvestimento"(Cosentino, 1996,
p.162) . É essa a resposta de Cosentino para o paradoxal mecanismo do recalque originário,
perante o embaraço de não se poder determinar a fonte do contrainvestimento, pois não se
pode contar o Pcs/Cs nessa operação.
Na leitura que Garcia-Roza efetua do texto "Projeto de Uma Psicologia para Neurólogos"
(1895), ele diz que "Das Ding, A Coisa, é o não-representável, mas, ao mesmo tempo, aquilo
em torno do qual se organizam as representações (Vorstellungen)" (Lacan, 1959-60). A Coisa
enquanto excluída só retorna como externa ao sujeito, percebida como estranheza. Esse
representante, imutável, deixa um resto inassimilável. Resto traumático que se articula com
esse estranho.
A partir do momento em que lidamos com uma rede diferencial dos significantes, temos de
inferir na rede de diferenças também a diferença entre o significante e sua ausência como uma
oposição significante, ou seja, temos de considerar como parte do significante sua própria
ausência: temos de postular a existência de um significante que é a própria falta do significante,
o que coincide com o lugar da inscrição do significante.( Žižek, 1991).
VI) A Retroação Significante e o Recalque Secundário
Para Lacan o recalque e o retorno do recalcado são a mesma coisa. Isto é levar ao limite a
lógica da retroação, ou lógica do a posteriori (Nachträglich) em Freud. Por esta lógica, é no
segundo tempo que o primeiro é ativado e ao mesmo tempo constituído; um só se constitui
pelo outro, não tendo valor em si, tal qual a lógica do significante.
Por outro lado, o recalque originário, pressuposto lógico do recalque propriamente dito,
funciona como ponto (no ponto de ausência mesmo) por onde o retorno do recalcado se dá.
Nesse sentido, o recalque só vale como retorno. Porém, embora fundamentalmente implicados,
há que se ressaltar suas diferenças.
O que sabemos sobre o contrainvestimento no recalque originário é que ele leva a grandes
embaraços ao se tentar sustentar que sua operação consiste em "negar o acesso à Cs ao
representante psíquico da pulsão". Embaraços tais como postular uma herança filogenética,
um Ics anterior, uma pré-inscrição, ou um superego precoce.
A partir desta primeira inscrição, havia uma dupla-vertente: uma apontava para esta inscrição
como causa de todas as outras, enquanto a outra focalizava o resto dessa operação. A
primeira justifica o conceito de inconsciente recalcado e, naturalmente, o próprio recalque
secundário. A segunda refere-se ao "resto inassimilável", que remete ao traumático. É a partir
dessa vertente que tentaremos responder à nossa pergunta, que poderia resumir-se desta
forma: "De onde vem (e para onde vai) o contrainvestimento no recalque originário?". Se não
há sistemas, nem sujeito, o que o constitui viria de fora?
VII) Recalque Originário e Desejo do Outro
Esse resto não assimilável, podemos dizer não subjetivável, só comparece para o sujeito
enquanto estranho, Unheimliche, sendo este o nome de um texto em que Freud afirma que o
mais estranho é também o mais familiar(Freud, [1919]). Freud relaciona esse sentimento de
estranheza ao complexo de castração. O que se configura como traumático retorna como resto
da inscrição do recalque originário. Na psicose tratar-se-ia de uma falha na própria inscrição, a
Metáfora Paterna não cumpre a sua função, e o que retorna é percebido como estranho e
exterior, tal como as vozes que o psicótico ouve. Quanto à vertente clínica, para nossos
objetivos não é necessário abordarmos as especificidades de cada estrutura clínica. Basta
constatarmos que o traumático, o Unheimliche, não é exclusivo da psicose.
Para Lacan há uma articulação precisa entre a angústia e esse resto não assimilável pelo
sujeito. Já vimos anteriormente a relação causal entre esse resto e a cadeia significante. Lacan
diz que esse "resto" é o objeto a, considerado causa do desejo na medida em que falta. O
"exterior" traumático, referido no "Projeto" enquanto Q exógena, invadiria o aparelho
psíquico(12).
Em Lacan esse exterior é o Desejo do Outro, diante do qual o sujeito está em posição de
objeto, mas objeto enquanto a, já que o Outro também nada sabe de seu desejo. O Outro,
então, como nos diz Rabinovich, aparece barrado:
(...) alguém pode tornar-se objeto, ocupar o lugar do que causa o Desejo do Outro, somente na
medida em que o Outro o perdeu. Não podemos ser causa de nada sem haver sido perdidos,
porque nos constituímos como objeto a na medida em que tenhamos sido perdidos.
(Rabinovich, 1993)
Assim, é essa a operação que lança o sujeito na dupla vertente de que falamos: o sujeito, em
posição de resto do Outro, constitui-se na remissão significante, necessariamente vinculado à
perda do objeto como condição desejante. Paradoxalmente, a condição desejante reside na
posição de objeto, porém objeto sem imagem. "É preciso delimitar o lugar do objeto enquanto
real como resposta possível, pois tampouco se trata do objeto significante, ou objeto
metonímico do desejo"(Rabinovich, 1993, p. 59).
A angústia do sujeito comparece quando se desvela sua condição de a, objeto sem imagem,
irrepresentável, diante do desejo do Outro, na medida em que "esse Outro, desejado como
desejante, deseja esse objeto".(Rabinovich, 1993, p.61).
Aqui nossa articulação ganha corpo, pois podemos entender o desejo do Outro como o
operador fundamental para a constituição do sujeito e, nesse sentido, estruturante da própria
divisão do sujeito. Divisão para além da distinção entre Ics recalcado e Pcs/Cs.
Por isso valorizamos em Freud os pontos que nos aproximam dessa leitura: o umbigo do
sonho, o unheimliche, o traumático e, claro, o além do princípio do prazer. A divisão do sujeito
para Lacan se dá entre sua posição de a e sua posição de sujeito $, barrado pelo desejo do
Outro. Em Freud diríamos que a divisão é, nesse sentido, entre um princípio de ligação e aquilo
que não cessa de não se inscrever.
A função do desejo do Outro é conferir a forma de inscrição em torno dessa falta. Na psicose o
Outro é um Outro gozador, faltando a operação descrita acima do sujeito identificado a essa
falta no Outro. O resultado dessa operação é um Outro causa do desejo, um Outro ao qual
falta a.
Desse modo, o contrainvestimento é o próprio desejo do Outro, ponto que inaugura a, ponto de
retorno do recalcado pelas substituições e, ao mesmo tempo ponto traumático, de angústia
frente ao desejo do Outro, e que aponta para a divisão do sujeito entre a e $, entre o que é
inassimilável e o que é simultaneamente causa de toda articulação possível.