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THOMAZ WOOD JR.

CAPITALISMO SELVAGEM 3:
Crônicas da Vida Corporativa e do Trabalho

1ª edição

São Paulo

Edição do Autor

2016

2
Copyright © 2016 Thomaz Wood Jr.
Todos os direitos reservados

Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida por qualquer meio ou
forma sem a prévia autorização do autor.
A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei n. 9.610/98
pelo artigo 184 do Código Penal.

Preparação e foto da capa: Thomaz Wood Jr.


Revisão: Paula Thompson

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Wood Jr., Thomaz.


Capitalismo selvagem 3: crônicas da vida corporativa e do trabalho /
Thomaz Wood Jr. - - 1. Ed. - - São Paulo: Ed. do Autor , 2016.
245 p.
939 Kb; PDF

ISBN 978-85-914912-2-3

1. Administração de empresas 2. Capitalismo 3. Comportamento


organizacional 4. Cultura organizacional 5. Liderança 6. Mudança
organizacional 7. Organizações – Administração 8. Trabalho I. Título.

16-03547 CDD 658

Índices para catálogo sistemático:


1. Gestão de organizações 658
2. Organizações : Gestão 658

Edição do autor
Fone 55 11 38 46 06 01
E-mail thomaz.wood@fgv.br
3
Para Ana e Daniel, que ajudarão a construir um mundo melhor...

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SUMÁRIO

Apresentação, 007

Parte 1 – O capitalismo selvagem e a sociedade, 009


O incrível Ponzi, 010
Os mortos-vivos, 013
Voando solo, 016
O self tercerizado, 019
Compra-me ou devoro-te!, 022
Procuram-se cidadãos, 025
Procuram-se trabalhadores, 028
Meritocracia tropical, 031
Ignorância financeira, 034
A culpa não é só das estrelas, 037
Sobre mentiras e estatísticas, 040
O espírito (em crise) do capitalismo, 043
Soluções mágicas, mudanças incertas, 046
Anarquia e controle, 049
O trabalho nas telas, 052
A era da impaciência, 055
Chamem as meninas!, 058
A igreja da diversão tecnológica, 061
A Plutonomia e o Precariado, 064
O pastor e os CEOs, 067
O fim do trabalho?, 070
A polêmica arte da persuasão, 073
Procuram-se líderes, 076
Uma nação de videotas, 079
O futuro do trabalho, 082

Parte 2 – O capitalismo selvagem e as empresas, 085


Os novos quebra-galhos, 086
Afogando-se em números, 089
A vista da cobertura, 092
A fadiga do decisor, 095
O desafio da inovação, 098
Inovar ou imitar, eis a questão, 103
Vivendo perigosamente, 106
Os herméticos, 109
Pasárgada maculada, 112
A vida na gaiola, 115
Imagem apagada, 118
Idiotas, estúpidos e simpatizantes, 121
Colcha de retalhos planetária, 124
A arte de pastorear gatos, 127
A arte do tempo, 130
5
Panóptico corporativo, 133
Tragédias anunciadas, 136
Grande demais para o cárcere, 139
Ritual anacrônico, 142
Talentos ocultos, 145
O inimigo interno, 148
Dormindo com o inimigo, 151
O fim dos gerentes?, 154
No reino dos amazonians, 157

Parte 3 – O capitalismo selvagem e a academia, 160


Festa agridoce, 161
O caminho das pedras, 164
Inferno na torre... de marfim, 167
Slow science, 170
Universidades virtuais, 173
A vida na linha de montagem, 176
A USP (não) é várzea!, 179
O Lobo do Management, 182

Parte 4 – O capitalismo selvagem e a formação profissional, 185


Procuram-se estudantes, 186
Virtudes perdidas, 189
Investimento duvidoso, 192
Tiro no escuro, 195
Acertos e erros, 198
O futuro da educação, 201

Parte 5 – Escapando do capitalismo selvagem, 204


Pensar dói?, 205
Redução do ego, 208
A cri$e do$ e$$e$, 211
De Mozart a Sherman, 214
A cultura do desdém, 217
Correio maldito, 220
Aula de produtividade, 223
The Bang-bang Club, 226
A semana de 15 horas, 229
Lucro verde?, 232
Rituais antiquados, 235
Em busca do tempo perdido, 238
Emancipados e órfãos da CLT, 241

Sobre o autor, 244

6
APRESENTAÇÃO

Capitalismo Selvagem 3 segue a concepção e o tom de seus antecessores, lançados em

2014 e em 2015. Capitalismo selvagem é um termo originalmente aplicado a uma

fase histórica do desenvolvimento do sistema, na época da Revolução Industrial.

Nesse período, as condições de trabalho eram subumanas: as jornadas eram longas,

o ambiente, insalubre, e os chefes (ou capatazes) tratavam os trabalhadores como

verdadeiros escravos.

Desde o século XVIII, muita coisa mudou: o movimento sindicalista cresceu e

consolidou-se, a legislação trabalhista avançou e o desenvolvimento do mercado de

trabalho impôs limites às empresas. Entretanto, não se pode dizer que o sistema

tenha sido domesticado. Primeiro, porque a “selvageria” original ainda persiste em

muitas partes do mundo, especialmente nos países de industrialização tardia, e

também em diversas regiões dos países em desenvolvimento. Segundo, porque um

novo tipo de “selvageria” surgiu, mais sofisticado, porém tão desumanizador

quanto o original. Essa nova selvageria manifesta-se pela colonização da vida

pessoal por valores empresariais e pelas práticas de controle social e cultural nas

empresas.

Este livro traz reflexões sobre essa realidade. Seu conteúdo foi gerado pela

observação direta, pelo contato com as experiências, muitas vezes traumáticas, de

colegas, clientes e alunos. Utilizaram-se, também, generosas doses de reflexões

7
críticas, proporcionadas por pesquisadores e jornalistas que se dedicaram a

desvendar o lado B do mundo corporativo contemporâneo.

A obra está organizada em cinco partes: a primeira parte apresenta uma leitura mais

ampla, tratando da invasão da sociedade pelo capitalismo selvagem; a segunda parte

aborda os contornos e as manifestações do capitalismo selvagem nas empresas; a

terceira discute a situação da academia, assolada por pressões de produtividade

científica; a quarta parte focaliza a questão da formação profissional, especialmente

a de gestores; e a quinta parte trata de tentativas de fuga dos cidadãos, se não do

sistema, ao menos de suas manifestações mais insanas.

Boa leitura!

São Paulo, maio de 2016.

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PARTE 1: O CAPITALISMO SELVAGEM E A SOCIEDADE

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O incrível Ponzi
No início, havia o capital, o trabalho e as máquinas. Então, surgiu
Charles Ponzi, prometendo riqueza fácil e rápida, e o mundo dos
negócios nunca mais foi o mesmo.

Seu nome completo era Carlo Pietro Giovanni Guglielmo Tebaldo Ponzi.
Ele nasceu em Lugo, na Itália, em 1882, e morreu no Rio de Janeiro, então capital
federal dos Estados Unidos do Brasil, em 1949. No começo do século XX, o
irrequieto italiano abandonou a Universidade La Sapienza, em Roma, e partiu para
a América. Em 1907, mudou-se para o Canadá, onde se empregou em um banco,
recém-criado para atender aos imigrantes italianos que chegavam a Montreal. O
banco atraía depositantes com a promessa de pagamento de juros convidativos
sobre os depósitos. Mal gerido, acabou por ir à falência, quando a captação de
novos depósitos revelou-se insuficiente para cobrir a operação deficitária. O dono,
Luigi Zarossi, fugiu para o México com o dinheiro que conseguiu tomar.

Depois da participação em diversas falcatruas, Ponzi passou algum tempo na


prisão, onde se aproximou de Charles W. Morse, um especulador de Wall Street,
tido como modelo e inspiração para seus golpes posteriores. Seu famoso esquema
nasceu pouco depois, quando Ponzi percebeu a possibilidade de obter lucros com a
comercialização de cupons postais. Estabelecida a operação, Ponzi pôs-se a
divulgá-la, prometendo lucros extraordinários para os investidores.

Seus primeiros clientes tiveram suas expectativas atendidas. A notícia


espalhou-se, gerando uma explosão nos negócios, que se expandiram
vigorosamente com a contratação de agentes de captação. No início da década de
1920, o frenesi em torno do esquema criado por Ponzi era tal que muitos
investidores passaram a hipotecar suas propriedades e contrair dívidas para fazer
10
aplicações. O fluxo contínuo mantinha o esquema vivo, pagando os retornos
esperados para os investidores que decidiam realizar seus lucros.

O estouro do esquema ocorreu pouco depois, com uma série de matérias


investigativas realizadas pela imprensa, que expuseram a inviabilidade do modelo de
negócios arquitetado pelo atrevido empresário. Ponzi declarou-se culpado e
cumpriu pena. Solto alguns anos depois, lançou um empreendimento imobiliário na
Flórida, no qual prometia novamente ganhos fabulosos para os investidores. Seus
novos negócios envolviam a venda de terrenos pantanosos, inclusive alguns trechos
submersos. Seguiu-se novo julgamento e mais um período na prisão.

Em 1934, Ponzi foi deportado para a Itália, onde tentou, sem sucesso, criar
novos negócios. Terminou a vida debilitado, praticamente cego e miserável, no Rio
de Janeiro. Deixou para a posteridade o livro The Rise of Mr. Ponzi: The Autobiography
of a Financial Genius. Ponzi termina sua obra em grande estilo: “Meu castelo de
cartas entrou em colapso! A bolha estourou! Eu perdi! Perdi tudo! Milhões de
dólares. Crédito. Felicidade. E até minha liberdade! Tudo, exceto minha coragem.
[...] Vida, esperança e coragem são uma combinação que não conhece derrota.
Talvez, contratempos temporários, mas uma derrota final e permanente, jamais!".
O autor e a obra parecem ter inspirado muitos seguidores, acima e abaixo da linha
do Equador.

Ron Chernow, em um artigo publicado na revista The New Yorker, qualificou


Ponzi como um personagem charmoso, criativo e extremamente audacioso. Em
seus anos de glória, portava-se como um dândi, elegante e bem-vestido, cortejando
repórteres e obtendo, em troca, uma cobertura de mídia em geral laudatória. A
comunidade italiana de Boston adotou-o com júbilo.

Segundo Chernow, as fraudes financeiras constituem o crime preferido de


arrivistas e sonhadores inseguros. Obcecados por se sentirem respeitados e
importantes, eles desenvolvem a pretensão de partilhar a vida da alta sociedade.

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Embora tenha sido descrito como um idiota financeiro por um assessor, Ponzi se
achava um mago, um visionário. Nunca admitiu que seu sistema estivesse fadado
ao fracasso ou teve clareza moral para admitir que fosse um charlatão. Ponzi não
foi capaz de sentir remorsos pelo que fez e pelas perdas e sofrimento que causou.

Esquemas Ponzi, antes de serem detectados, fazem sucesso entre seus


articuladores e entre suas (futuras) vítimas. Investidores comumente o enaltecem,
como se contivessem propriedades mágicas, como se o mistério do moto-contínuo
houvesse finalmente sido descoberto. Alguns desconfiam do milagre, porém adiam
o momento da saída até que, eventualmente, seja tarde demais. Seu inexorável fim
costuma deixar as vítimas de bolso vazio e coração partido, desnorteadas pelas
ilusões perdidas. Isso até que novas ilusões lhes arrebatem o desejo de
enriquecimento rápido e um novo ciclo de esperança, euforia e decepção se instale.
A memória coletiva, a história parece insinuar, não opera com registros de longa
duração.

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Os mortos-vivos
Zumbis tornaram-se figuras onipresentes nas telas e em livros. Mas
agucemos o olhar e notaremos que a vida imita a arte: as paradoxais
criaturas estão tomando as escolas, as empresas e as cidades.

Havana, um dos últimos bastiões socialistas, é invadida por mortos-vivos.


Sara e Juan deixam seu apartamento e deparam-se com uma multidão de zumbis,
vagando pelas ruas. Sara vira-se para Juan e afirma, resignada, que não notou
nenhuma diferença. A cena é uma das pérolas satíricas de um filme de terror
cubano, Juan de los Muertos, dirigido pelo jovem cineasta Alejandro Brugués. Embora
o cineasta, por razões óbvias, fuja do confronto direto com o governo local, a obra
pode ser lida como uma crítica social ao estado das coisas na ilha caribenha, depois
de meio século de socialismo real, ou surreal.

Juan de los Muertos segue a onda de filmes e livros que exploram, para fins de
parábola, metáfora ou sátira, os mortos-vivos. Nas telas, George A. Romero é
comumente apontado como o responsável pela popularidade das criaturas. O
diretor nova-iorquino realizou, em 1968, A Noite dos Mortos-vivos, que se tornou
objeto de culto entre os aficionados do gênero. Muitos outros seguiram seus
passos.

A lista de filmes sobre zumbis é extensão e curiosa, abrangendo títulos


criativos, tais como A Morte dos Mortos, Uma Virgem entre os Morto- Vivos, Os
Alienígenas e os Zumbis, O Zumbi Americano, A Invasão Atômica de Cérebros, O Acordar
dos Mortos, O Cérebro Morto, Zumbis Cáusticos, Os Filhos dos Mortos-vivos, Cadáveres São
para Sempre, A Dança dos Mortos, A Vida Morta, O Homem do Cemitério, Morte ao Zumbi
Bastardo!, Noites Eróticas dos Mortos-Vivos, As Fêmeas Mercenárias na Ilha dos Zumbis, O
Massacre dos Zumbis de Harvard, Os Zumbis Vegetarianos, Eu Fui um Zumbi para o FBI,
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Zumbi Kung Fu, Zumbis na Broadway, Os Zumbis Vampiros Mutantes das Florestas e
muito, muito mais. Para a imaginação dos diretores e roteiristas, o céu (ou o
inferno) é o limite.

O que explica nossa fascinação com tais criaturas? Para alguns, nosso
interesse vem do medo da própria morte. Outros veem a popularidade dos zumbis
como reflexo de uma época na qual a humanidade se depara com os limites físicos
da própria Terra e com a possibilidade real de extinção da vida no planeta. Filmes e
livros são espaços vivenciais fechados, nos quais podemos projetar nossos medos e
angústias, reais ou imaginários, e vê-los resolvidos pela ação engenhosa de heróis.

O zumbi é um cadáver animado, trazido de volta à vida (ou um simulacro de


vida) por meio de artifícios de bruxaria ou tecnologia. Sua origem é comumente
associada a rituais religiosos haitianos e africanos. No cinema ou na literatura, o
zumbi é sempre um personagem paradoxal: um morto-vivo. Não tem cérebro nem
paladar apurado. Age como um sonâmbulo, geralmente movido por uma busca
voraz por carne humana. Multiplica-se no ritmo das pandemias, poupando somente
um pequeno número de seres humanos, necessários para contar a história e manter
a narrativa do filme ou livro. O zumbi é, por natureza, um ser antissocial: alimenta-
se da carne de seres vivos e ignora as mais simples regras de civilidade. No entanto
(mais um paradoxo), costuma movimentar-se em grandes bandos.

Também no caso dos zumbis, a vida imita a arte. Basta aguçar o olhar o
mirar o mundo ao redor para constatar que vivemos cercados por hordas que
poderiam integrar os bandos de mortos-vivos de Juan de los Muertos ou estrelar
qualquer filme de George A. Romero. Cuba é aqui. Não tivemos cinco décadas de
socialismo, porém a combinação local de cleptocracia política, autismo social e
indigência cultural provocaram efeito similar.

Nossos trópicos estão sendo tomados por mortos-vivos. Jovens zumbis


posam de estudantes, sentados nas salas de aulas, enquanto os dedos percorrem os

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teclados de smartphones e a mente flana sem direção por espaços virtuais e mídias
sociais. Zumbis operários simulam trabalho nas estatais, nas linhas de montagem e
nas centrais de atendimento. Zumbis emergentes vagam pelos shopping centers, os
olhos vidrados nas vitrines.

O mundo corporativo transformou-se em uma grande fábrica de zumbis. As


faculdades de administração formam exércitos de mortos-vivos. Nos bancos
escolares, os estudantes têm seus cérebros retirados. Perdem o senso crítico,
desenvolvem obsessão pelo status e voracidade pelo dinheiro. Uma vez graduados,
tonam-se zumbis trainees, condicionados a praticar os estranhos rituais da vida
corporativa e a adorar seus chefes zumbis. Passam, então, a integrar empresas
zumbis, sob o comando de executivos zumbis. Nessas estranhas organizações, a
vida segue roteiro de filme trash. O pior é que, como a personagem Sara, de Juan de
los Muertos, estamos nos tornando cada vez menos capazes de perceber a diferença.

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Voando solo
Sociólogo norte-americano revela que cada vez mais pessoas vivem
voluntariamente sozinhas. O fenômeno relaciona-se a mudanças na
sociedade e na vida profissional.

O inferno são os outros! A conhecida frase de Jean-Paul Sartre agora dá


sentido a um fenômeno de massa. Se o inferno são os outros, então nossos
contemporâneos parecem estar se movimentando para fugir das catacumbas
sulfurosas. Segundo Eric Klinenberg, professor de sociologia da Universidade de
Nova Iorque e autor do livro Going Solo: The Extraordinary Rise and Surprising Appeal
of Living Alone (Editora Penguin), cada vez mais pessoas optam por viverem
sozinhas.

O autor carrega nas tintas, embalado por um mercado editorial viciado em


títulos de impacto, argumentos surpreendentes e fatos irrefutáveis, mas o livro tem
méritos. Segundo Klinenberg, estamos presenciando uma inflexão histórica.
Cultivamos, durante milênios, uma repulsa existencial e filosófica à solidão. “O
homem que vive isolado, que é incapaz de partilhar os benefícios da associação
política, ou não precisa partilhar, porque já é autossuficiente, não faz parte da polis,
e deve, portanto, ser ou uma besta ou um deus”, escreveu Aristóteles (apud
Klinenberg).

As sociedades humanas se estruturaram em torno do desejo fundamental dos


indivíduos, de viverem na companhia uns dos outros. O isolamento é
frequentemente associado à punição. Uma criança malcomportada é separada de
seus pares e colocada sozinha. Um prisioneiro malcomportado é trancafiado na
solitária.

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Entretanto, segundo Klinenberg, tudo isso está mudando. Nas últimas
décadas, houve um aumento expressivo do número de homens e mulheres que
passaram a viver voluntariamente sozinhos. O fenômeno é consequência do
desenvolvimento econômico, que permite maior autonomia; da superação da lógica
econômica do casamento, que dá maior liberdade às pessoas para buscarem
arranjos alternativos; da urbanização, que adensa as comunidades humanas; e da
evolução das tecnologias de informação e de comunicação, que facilitam a interação
entre as pessoas. Resultado: estamos casando mais tarde, prolongando o período
entre o divórcio e o novo casamento, ou evitando um novo casamento, e
escapando o quanto possível da possibilidade de viver com outra pessoa. É o novo
solteirismo!

Nas grandes cidades norte-americanas, 40 por cento das moradias têm um


único ocupante. Em Washington e em Manhattan, casos extremos, são 50 por
cento. E o fenômeno não se restringe aos Estados Unidos. Paris apresenta
números superiores a 50 por cento e, em Estocolmo, a taxa chega a 60 por cento.
China, Índia e Brasil, países em desenvolvimento, caminham no mesmo sentido.

Viver sozinho deixou de ser fonte de medo e causa de isolamento social. As


vantagens são notáveis: controle sobre a própria vida, liberdade de ação e melhores
condições para perseguir atividades voltadas para a autorrealização. No imaginário
social, vai surgindo um novo modelo ideal: o neossolteiro, o homem ou mulher que
é um profissional bem-sucedido, socialmente atuante e mestre de sua existência.

O fenômeno do novo solteirismo relaciona-se a outro fenômeno, maior, de


enfraquecimento dos vínculos e das relações, que se manifesta na vida social e na
vida profissional. Richard Sennet registrou a tendência no livro A Corrosão do Caráter
(Editora Record), no final da década de 1990. De fato, o comprometimento dos
indivíduos com instituições e organizações vem se fragilizando há algumas décadas.
Hoje, transitamos por inúmeros grupos, empresas e comunidades, porém
estabelecemos relacionamentos apenas tênues e temporários.

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Nas empresas, depois de seguidas ondas de reestruturações, enxugamentos e
terceirizações, os empregos “para toda a vida” estão quase extintos.
Paradoxalmente, empresários e executivos continuam esperando alto grau de
envolvimento e comprometimento de seus funcionários, e frustram-se quando não
os conseguem. Com a ajuda de asseclas de recursos humanos, tentam tapar o sol
com a peneira, programando palestras motivacionais, abraçando árvores e
promovendo interlúdios culturais. Pouco adianta.

As novas gerações representam para as empresas considerável desafio: os


mais jovens são individualistas, inquietos e despudoradamente ambiciosos. Saltam
de galho em galho corporativo sem olhar para trás. Habitam redes fluidas, sejam
elas comunidades reais ou virtuais. São impacientes com o presente e ansiosos pelo
futuro.

Neste admirável mundo novo, perde espaço o que é estável e profundo,


ganha espaço o que é efêmero e superficial. Afirmam os profetas do mundo plano
que terão vantagens os mais dinâmicos, os mais extrovertidos, aqueles com mais
iniciativa e sem medo de errar, aqueles capazes de usar diligentemente seu capital
social em prol da própria marca. E os incomodados que se mudem... de planeta?

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O self tercerizado
Mais um avanço do mercado sobre o indivíduo: a onda agora é
terceirizar atividades e responsabilidades da vida privada para prestadores
de serviços.

O tema é tratado há décadas no mundo corporativo. Como é de


conhecimento até mesmo das correias transportadoras, terceirizar significa
contratar externamente uma atividade da cadeia produtiva, em lugar de realizá-la
internamente. O suposto objetivo é melhorar a qualidade e reduzir custos.
Pressupõe-se que um processo bem-conduzido permite à empresa que terceiriza
concentrar-se em suas atividades essenciais, enquanto adquire serviços e produtos
não essenciais de outras empresas, mais eficientes em suas especialidades.

Até os anos 1970, as empresas eram fortemente integradas. Para produzir


automóveis ou fraldas descartáveis, era preciso controlar as respectivas cadeias
produtivas e seus “afluentes”. Com isso, as empresas gerenciavam dezenas de
serviços de apoio, pouco relacionados às suas atividades fins: de restaurantes
industriais até o transporte de funcionários. A partir do último quartil daquele
século, a terceirização avançou sem piedade, gerando ganhos de eficiência.

No entanto, nem todos foram vencedores: muitos profissionais foram


demitidos ou tornaram-se trabalhadores de segunda classe. Além disso, o processo
expôs as empresas a riscos, relacionados ao vazamento de know-how, rupturas no
fornecimento e ameaças para a reputação. Significativamente, surgiu o termo
primarização, o inverso da terceirização, ou seja, deixar de realizar algumas
atividades externamente e voltar a controlá-las diretamente.

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O fenômeno da terceirização é substantivo e relaciona-se a mudanças
econômicas amplas. Curiosamente, conforme aconteceu com outras práticas e
termos originados na vida corporativa, também a terceirização invadiu a vida
privada. Como em outros casos, a nova onda deu-se pela oratória onipresente dos
gurus, por meio dos livros de gestão e pela ação da irritante mídia de autoajuda.

Arlie Russell Hochschild, uma professora emérita de sociologia da


Universidade da Califórnia, em Berkeley, escrevendo no jornal The New York Times,
apresenta aos leitores a wantologist Katherine Ziegler, que ostenta um PhD em
psicologia, mas trabalha ajudando seus pacientes a descobrir o que querem da vida.
A Want-ology®, explica Hochschild, foi criada por Kevin Kreitman, uma
engenheira industrial, especializada em qualidade total, produção enxuta,
planejamento estratégico e mais uma lista robusta de modas gerenciais.
Originalmente, o objetivo da criadora era orientar gestores a tomar decisões
técnicas de compras em suas empresas. O salto para os seminários de autoajuda e o
surgimento de discípulos, como Ziegler, parece ter sido pequeno.

Hochschild observa que a mera existência de wantologists é reveladora de


quanto o mercado penetrou nossas vidas privadas. Hoje, é possível contratar
animadores de festas, alugar úteros e até pagar visitas a túmulos. Metemo-nos em
um ciclo vicioso. A vida moderna nos tornou mais ansiosos, isolados e sem tempo.
Para enfrentar esse contexto, trabalhamos mais tempo e mais intensamente para
financiar serviços extras. Isso nos deixa ainda menos tempo para passar com nossa
família, vizinhos e amigos. Com isso, temos menor chance de recorrer a eles (e eles
a nós) para pedir ajuda. Assim, recorremos ao mercado. E o mercado atende
sorrindo as nossas novas necessidades.

De fato, a facilidade com que acessamos hoje os mais variados serviços nos
impede de perceber o quanto foi transformada a noção do que deve ou não deve
ser alugado ou comprado. O que nos reserva o futuro? Muitas empresas avançaram
tanto na terceirização que se tornaram cascas vazias, a zelar pela marca e pela

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imagem, e observar a distância as atividades físicas de produção, transporte e
distribuição. Seguirão os indivíduos a mesma trilha? Seremos, no futuro, apenas
gestores de uma marca pessoal, terceirizando atividades físicas e emocionais para o
mercado? Ao observar o comportamento de torcedores de equipes de futebol, tem-
se a impressão que o futuro é aqui, agora.

Derek Thompson, escrevendo no website da revista The Atlantic, relativiza os


comentários críticos de Hochschild, sugerindo que, à medida que a humanidade
segue seu inexorável caminho rumo ao enriquecimento material, a fome deixa de
ser uma preocupação. Toma o seu lugar o preenchimento de necessidades
psicológicas mais sofisticadas. Daí a emergência de serviços como o prestado pelos
wantologists. Será?

Ao focalizar nossa atenção nos resultados, explica Hochschild, afastamo-nos


dos aspectos mais significativos da existência. Atingimos nossos objetivos,
concluímos a compra e conseguimos a entrega pretendida, porém perdemos o
prazer, a sabedoria e a conexão com nossos pares, que vêm com a busca e a
realização.

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Compra-me ou devoro-te!
Mais um dia, mais um shopping center: no Brasil, como em outros países
em desenvolvimento, a onda consumista continua em alta, porém sinais
de ressaca pontuam o horizonte.

Há algumas semanas, o colega Willian Vieira publicou aqui em Brasiliana o


registro etnográfico de suas perambulações pelo novíssimo Shopping JK. Nosso
destemido Malinowski mergulhou nas entranhas do novo templo paulistano do
consumo, fez contato com seus habitantes e registrou em prosa os exóticos
comportamentos e rituais que observou. Sobreviveu à submersão aparentemente
sem sequelas. Vieira conta com a admiração deste escriba, cuja taxa de permanência
em centros comerciais limita-se a sete minutos por ano, tempo necessário para
deixar o carro no estacionamento de um estabelecimento local, cruzar a passos
largos os corredores e ganhar a rua, rumo a um consultório odontológico vizinho.

Os grandes centros comerciais surgiram há quase 100 anos, nos Estados


Unidos. Multiplicaram-se após a Segunda Guerra Mundial, por lá e alhures,
acompanhando a expansão dos subúrbios. Desde o princípio, a ideia foi criar um
ambiente fechado, destinado a estabelecer certo nível de controle sobre o
comportamento das vítimas: os consumidores.

Depois de décadas de expansão, nos Estados Unidos, muitos centros


comerciais vêm perecendo, vítimas da crise econômica e do comércio eletrônico.
No Brasil, os centros comerciais já se contam às centenas, e o número continua
crescendo. Enquanto o mundo começa a sentir os efeitos da era do consumismo,
os países em desenvolvimento continuam emulando os países desenvolvidos,
clonando seus vícios com algumas décadas de atraso. Hoje, significativamente, os

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maiores centros comerciais do mundo estão em países em desenvolvimento, tais
como China, Filipinas, Malásia, Tailândia, Turquia e Indonésia.

Alguns urbanistas veem os centros comerciais com desconfiança. Os


gigantes são frequentemente acusados de provocar a decadência de centros urbanos
e de gerar impactos negativos sobre o trânsito. Por esses e outros motivos, alguns
países desenvolvidos estabeleceram restrições à construção de grandes centros
comerciais.

Sociólogos e antropólogos também costumam torcer o nariz para esses


caixotes urbanos, tomados de horror por seus ambientes artificiais e sanitizados.
Alguns os classificam como “não lugares”, espaços sem história ou identidade, aos
quais multidões afluem sem que os indivíduos estabeleçam contato ou relação entre
si, movidos unicamente pelo objetivo de consumir, sejam roupas, filmes, livros,
refeições ou “experiências”.

True Storie, filme de 1986, dirigido e estrelado por David Byrne, apresenta
uma divertida colagem de personagens e histórias passadas na cidade fictícia de
Virgil, no Texas. O centro comercial da cidade é o ponto de encontro dos
personagens, referência central de suas existências. Poderia estar em qualquer lugar
da Terra, ou aqui e agora.

Consumo e consumismo têm sido objeto de interesse de cientistas sociais há


tempos: sociólogos e antropólogos lhes dedicam prosa e verso. Em geral,
incomoda-os que o marketing, e a cultura do consumo, tenha um papel tão central
em nossa sociedade. Agastam-se ao constatar que o mundo hoje iguala
desenvolvimento a consumo. Irrita-os o mantra que afirma que quanto mais
desenvolvida for uma sociedade, mais seus cidadãos consomem. De fato, para a
velha e para a nova classe média, sucesso significa acumular bugigangas
eletroeletrônicas, panos com marcas e acessórios com grifes, significa comprar uma
casa e lotá-la com peças de utilidade incerta e de gosto duvidoso.

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Reza uma jocosa definição que a cultura do consumo é um amálgama de
valores e comportamentos que se sustenta em três pilares: a mídia, o automóvel e o
cartão de crédito. A mídia, especialmente a TV, diz às hordas o que comprar e onde
encontrar; o automóvel as transporta até as fontes; e o cartão de crédito viabiliza a
transação, mesmo que o cidadão não tenha fundos.

No entanto, testemunhamos, nas últimas décadas, sinais de uma embriaguez


que antecipa uma ressaca de grandes proporções: degradação ambiental,
esgotamento de recursos naturais, invasão da esfera privada pelo mundo do
trabalho, fragmentação do núcleo familiar, corrosão dos valores etc. A locomotiva
do consumo, que nos trouxe até aqui, ameaça sair dos trilhos e vitimar seus
frenéticos passageiros. Os pilotos usam alguma criatividade, unida a respeitáveis
verbas de propaganda, para reformar e embelezar a máquina. Diz-se que o
consumo agora deve ser responsável, verde e consciente. Mais agora é menos,
porém mais caro. Mas... serão os passageiros sensíveis ao discurso? Será a reforma
suficiente para evitar desastres? Descobriremos nos próximos anos, ou não...

24
Procuram-se cidadãos
Ligeiras considerações sobre um grande país sul-americano de muitas
cidades e escassa cidadania.

Um grande país sul-americano, formidável em recursos explorados e


potenciais irrealizados, é lar de mais de 200 milhões de habitantes. Habitante, como
se sabe, é quem reside ou vive em determinado lugar. Entretanto, para as
sociedades modernas, o que mais interessa são os cidadãos. Cidadão é outra coisa.
O cidadão também habita, é certo, mas o cidadão vai além: ele tem direitos, civis e
políticos, e tem deveres, para com a comunidade e o Estado.

Consta que o conceito de cidadão surgiu nas cidades-Estados da Grécia


antiga. Naquele tempo, ser cidadão não era para qualquer um: estrangeiros,
escravos e mulheres não podiam fazer parte da seleta casta. E um homem livre
podia perder o privilégio e tornar-se escravo: bastava contrair dívidas ou ser
derrotado na guerra. A liberdade era, por isso, muito valorizada e possibilitava a
participação na vida pública. De fato, envolver-se nos negócios da comunidade era
mandatório e implicava deveres. Cumprir tais obrigações fomentava a virtude,
gerava respeito e conferia honra aos cidadãos.

Séculos e séculos transformaram a ideia de cidadania. Nas sociedades


contemporâneas, o conceito varia de país a país, de cultura a cultura. Nalguns
recantos, espera-se que os cidadãos paguem impostos, respeitem as leis, conduzam
corretamente seus negócios e defendam a nação. Porém, deles não se espera ação
política. Noutras plagas, espera-se que os cidadãos sejam atores políticos, atuando
em uma das múltiplas esferas públicas. Apesar da diversidade, a essência do
conceito foi mantida: espera-se que os cidadãos se comprometam com deveres para

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fazer jus a seus direitos. Em nações multifacetadas em termos de religiões, etnias e
culturas, a cidadania pode ser o elo a sustentar a sociedade.

Enquanto isso, na citada nação sul-americana, o cidadão, como a ararajuba e


o tamanduá-bandeira, animais pátrios, parece seguir trilha de extinção. Abundam os
habitantes, desaparecem os cidadãos. Pois, por lá, o habitante tornou-se um ser de
direitos, muitos direitos. Seu principal direito é tirar da sociedade tudo que pode. É
um extrativista compulsivo, pouco afeito a preocupações com os outros e com o
meio.

O habitante da referida nação é essencialmente um reclamante. Ele reclama


da corrupção, mas não perde chance de desembolsar vinténs para facilitar sua vida.
Ele reclama do trânsito, mas não estaciona o carro. O carro, aliás, é uma extensão
natural do corpo do residente. Ele (o carro) define sua personalidade. O habitante
lava o carro quando falta água e transita pelo acostamento quando enfrenta
congestionamento. Informatizado, o habitante adora o Waze, o aplicativo que troca
minutos de espera por atalhos sinuosos e momentos de velocidade e fúria no
trânsito, cortando coletivos, avançando em ruas residenciais e ameaçando ciclistas.
O habitante é, em suma, um ser assimétrico, sempre acima de seus pares.

O habitante do tal país é fruto e coprodutor de um sistema que ampliou a


participação formal (o voto) e comercializou e emburreceu o espaço público.
Conformou-se a uma mídia que cobre a política como um show de frivolidades,
privilegiando celebridades em detrimento de ideias, e escândalos em lugar de
realizações. No caminho, a cidadania esvaziou-se e cedeu lugar à simples habitação,
e a virtude do dever deu espaço à cobiça do direito. O habitante reclamante ocupou
a ribalta. O cidadão constrangido saiu de cena. E os tristes trópicos penhoraram
seu futuro.

Pequeno Cidadão é uma simpática composição de dois sensíveis artistas do


desnorteado país. A dupla busca ouvintes de tenra idade e valores em gestação. A

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letra é simples e cativante: "Agora pode tomar banho, Agora pode sentar para
comer, Agora pode escovar os dentes, Agora pega o livro, pode ler...", e assim
segue, com pequenos prazeres e deveres: comer chocolate e fazer a lição, pular no
sofá e arrumar o quarto, sujar de lama e amarrar o sapato. O refrão segue a receita,
simples e direto: "É sinal de educação, fazer sua obrigação, para ter o seu direito de
pequeno cidadão". A singela canção representa a tênue esperança que a nova
geração do citado país sul-americano reverta o desalentador quadro criado pelas
hordas que a antecederam.

27
Procuram-se trabalhadores
Muitos profissionais brasileiros precisam enfrentar um fato da vida: não
basta ter emprego; é preciso também trabalhar direito!

O livro Produtividade no Brasil foi escrito a partir de pesquisas realizadas pelo


McKinsey Global Institute em oito setores da economia. Conclusão: a
produtividade do trabalho das empresas brasileiras é um quarto da produtividade
do trabalho das empresas norte-americanas (tomadas como referência), ou seja, são
necessários quatro brasileiros para gerar o valor que um norte-americano produz.
No prefácio da obra, o economista Edmar Bacha observa que o caminho para
aumentar a produtividade poderia ser mapeado, que as empresas poderiam evoluir
e que, se o Brasil aumentasse, em 10 anos, sua produtividade até três quartos da
produtividade norte-americana, a renda por habitante dobraria.

Importante: o livro foi lançado em 2000. O que mudou na produtividade do


trabalho no Brasil desde então? Muito pouco. Uma década foi perdida. Dados
divulgados pela revista The Economist mostram que, enquanto países como Coreia,
China e Chile apresentaram forte evolução na última década, o Brasil permaneceu
estagnado. Alguns setores e empresas evoluíram. Entretanto, o quadro geral é
desanimador. Um conjunto de estudos divulgado pelo IPEA em 2013 registrou
conclusão similar: nosso desempenho em produtividade e tecnologia é insuficiente
e precisa melhorar para viabilizar o crescimento econômico.

Os dados econômicos refletem a realidade que testemunhamos no dia a dia.


Os restaurantes brasileiros são generosos no número de garçons, mas o
atendimento é lento, os pratos vêm trocados e a conta chega errada. Nas dezenas
de pequenas obras que empesteiam nossas cidades, para cada indivíduo
trabalhando, vemos sempre outros quatro (ou 10) observando. Visitar as modernas
28
instalações de grandes empresas não revelará quadro distinto. A aparência pode ser
de frenesi laboral, marcado por telefonemas urgentes e andares acelerados.
Entretanto, um breve diagnóstico revelará uma infinidade de reuniões sem razão,
projetos sem objetivo e iniciativas sem “acabativas”. Em suma: caos
institucionalizado.

Se o ambiente, as leis, a infraestrutura e a cultura de trabalho não cooperam,


a gestão nas empresas também não ajuda. Pesquisas indicam que as empresas
brasileiras são, em geral, mal-administradas. Sobra simpatia por modismos
gerenciais, porém há pouco apreço por práticas consolidadas, aqueles processos e
procedimentos básicos que não colocam a empresa na capa das revisas de negócios,
mas que realmente importam.

Houvesse um índice Gini que medisse a distribuição do trabalho no Brasil,


este revelaria resultado tão desastroso quanto o de distribuição de renda, pois aqui
poucos trabalham muito, a maioria trabalha pouco, e quase ninguém trabalha
direito. Enquanto alguns setores e empresas carregam o piano da economia,
gerando valor e divisas, outros setores e empresas apenas apreciam a música, sem
ao menos pagar pelo ingresso. Tivesse a minoria produtiva consciência de classe, há
muito teria posto a correr, ou trabalhar, as hordas parasitas ao redor.

Qualquer executivo estrangeiro sabe que, no momento que cruza a fronteira


brasileira, começa a perder tempo: no trânsito infernal, com a infraestrutura
insuficiente, com a legislação arcaica, com os impostos incompreensíveis, e com a
mão de obra pouco qualificada, frequentemente a sofrer de crônica laborfobia.

De fato, a aversão ao trabalho é uma antiga característica tropical. Trabalhar


por aqui nunca teve muito cartaz. Já foi coisa de escravo e de quem não tinha algo
melhor a fazer. Nas décadas recentes, o Brasil se encheu de empregados, o que foi
ótimo, mas não evoluiu na produtividade do trabalho, o que é péssimo. Quem quer

29
o emprego, quer o salário, a segurança e o consumo que vêm do salário. Muito
justo. Mas não parece querer a labuta justa que vem com o emprego.

O trabalho nos trópicos não recebeu herança similar à da ética protestante.


Do modelo de colonização e do flagelo da escravidão, herdamos a aversão à labuta.
Pressionados, esticamos as jornadas e aceleramos o ritmo, recebendo em troca
estresse e patologias, mas não conseguimos melhorar a forma como o trabalho é
realizado. Recusamos o trabalho transformador e celebramos a mais conservadora
preguiça, preparando-nos para perder mais uma década.

30
Meritocracia tropical
A maneira como tratamos a questão da mobilidade por mérito reflete
busca de sínteses improváveis e coexistências inviáveis.

Depois de algum tempo submerso, o debate da meritocracia voltou à


superfície. No mundo corporativo, executivos flertam novamente com o tema,
ansiosos por superar práticas anacrônicas e “mudar a cultura”. No governo, alguns
gestores apostam nos poderes mágicos da meritocracia para resolver problemas
crônicos de gestão, que desvirtuam agendas, bloqueiam iniciativas e atrasam prazos.

O conceito é polêmico, antigo e tem raiz política, relacionando-se a forma de


governo no qual o poder é exercido por cidadãos selecionados de acordo com seus
méritos e competências. Para crescer em tal sistema, o indivíduo deve demonstrar
talento e capacidade de realização. Singapura, por exemplo, estabelece
explicitamente a meritocracia como pedra fundamental de sua filosofia de governo.
Nessa cidade-Estado de cinco milhões de habitantes e renda per capita de mais de 50
mil dólares, “o sistema de meritocracia assegura que os melhores e mais brilhantes,
independentemente de raça, religião e origem socioeconômica, sejam encorajados a
desenvolver totalmente seu potencial”.

Em texto publicado em janeiro de 2014, na RAE-Revista de Administração de


Empresas, da FGV-EAESP, a antropóloga Lívia Barbosa, pesquisadora da PUC-RJ e
conhecedora do tema, faz uma análise da meritocracia na sociedade brasileira. A
autora chama a atenção para as frequentes menções de autoridades governamentais
à necessidade de “implantação da meritocracia” como princípio e prática de gestão
e, por outro lado, a também frequente presença da frase “abaixo a meritocracia” em
cartazes de categorias profissionais em movimentos de protesto.

31
No século XIX, os países europeus e os Estados Unidos superaram o
sistema de distribuição de cargos e funções públicas aos vencedores das eleições.
No Brasil, copiamos sem muita vontade os precursores: a meritocracia tornou-se
um critério apenas eventualmente aplicado, em permanente disputa com o
fisiologismo e as cotas políticas.

Nas empresas, a fascinação com a meritocracia representa reconhecimento


de que os sistemas de contratação, avaliação de desempenho e promoção
(largamente disseminados) ainda convivem com práticas arcaicas de
apadrinhamento e paternalismo. Implantar a meritocracia significa estabelecer
metas ambiciosas para os funcionários, cobrar resultados e recompensar a
realização. Espera-se, com a mudança, vencer a acomodação, reconhecer aqueles
que de fato trabalham e fomentar um esforço coletivo para aumentar o
desempenho. Livra-se dos encostados e ganha-se dinheiro. Bom negócio!

Do outro lado do palco, os críticos da meritocracia desfilam seus


argumentos. Para os seus detratores, a meritocracia é um discurso alienígena, primo
do neoliberalismo e da globalização. Uma vez implantada, fomenta a competição
desagregadora entre colegas, promove a quantidade, com prejuízo da qualidade, dá
vantagens a poucos, em detrimento da maioria, gera estresse e ainda prejudica o
ambiente organizacional. Para esse grupo, a culpa pela baixa produtividade, pela má
qualidade dos serviços e pelos prejuízos é sempre externa: a falta de tecnologia, de
ferramentas, de investimentos, ou a incompetência dos gestores e do próprio
governo.

Lívia Barbosa conclui que o debate atual não vem acompanhado por uma
demanda coletiva pela meritocracia, seja na esfera pública ou nas empresas
privadas. Segundo a antropóloga, uma análise da história brasileira revela que a
introdução de critérios relacionados à meritocracia ocorreu em diversos momentos,
porém sempre de cima para baixo, sem nunca permear de maneira consistente o

32
tecido social. Assim, passou a conviver com valores e práticas existentes,
frequentemente de maneira ambígua e paradoxal.

O sistema imunológico cultural local parece rejeitar alguns pilares da


meritocracia, tais como a competição e a diferenciação por mérito. A autora
argumenta que, no Brasil, “queremos os resultados materiais da eficiência, da
produtividade, da competitividade, mas não queremos os seus custos pessoais.
Queremos a igualdade, mas aceitamos múltiplas lógicas hierárquicas quando elas
nos beneficiam”. Assim, continuamos tentando combinar sistemas arcaicos com
outros, supostamente modernos, juntando desajeitadamente nepotismo e
meritocracia, e buscando sínteses inviáveis.

33
Ignorância financeira
Pesquisas realizadas em 12 países sugerem que a maioria das pessoas não
sabe cuidar de seu dinheiro.

O tema das finanças pessoais chegou aos trópicos na década passada, pela
porta da autoajuda. A onda repetiu outras tantas, com livros, vídeos, palestras e,
obviamente, gurus. As livrarias de aeroporto encheram-se de títulos apelativos
como: Pai Rico, Pai Pobre, Como Gastar sem Culpa e Investir sem Erros, Casais Inteligentes
Enriquecem Juntos e Os Segredos da Mente Milionária.

Entretanto, além dos clichês da autoajuda, o tema da educação financeira é


relevante e tem impacto social. O crescimento econômico dos países emergentes na
década de 2000 aumentou o poder de compra de contingentes da população.
Empresas e bancos mobilizaram-se, bombardeando os recém-chegados ao
mercado, e os já estabelecidos, com produtos e serviços. Para os consumidores e
pequenos poupadores, as decisões de compra e investimento tornaram-se mais
complexas. Adquirir ou alugar um apartamento? Financiar ou poupar para comprar
à vista? Quanto (tentar) guardar para a aposentadoria? Como comparar uma NTN-
B com um CDB?

A maior disponibilidade de recursos e a propensão a consumir, combinadas


com a oferta de crédito, criaram um cenário explosivo, apto a produzir dívidas,
situações de inadimplência e tragédias pessoais. O aumento da renda pode levar ao
aumento da riqueza, do bem-estar e da qualidade de vida. No entanto, se a renda
for mal administrada, pode também levar ao caminho da bancarrota. O que pode
definir um caminho ou outro é o grau de educação financeira. Não se trata de
cultuar a riqueza, mas de tomar decisões financeiras conscientes.

34
Annamaria Lusardi, da Universidade George Washington, e Olivia S.
Mitchell, da Universidade da Pensilvânia, publicaram no Journal of Economic
Literature, no início de 2014, um artigo sobre a importância da educação financeira.
O texto compila investigações realizadas entre 2011 e 2013 em 12 países. Os
resultados são preocupantes. As pesquisas foram baseadas em três questões
simples, envolvendo conhecimentos sobre juros, inflação e ações:

1. Suponha que você tivesse $ 100 em uma conta poupança e que a taxa de juros fosse
2% ao ano. Após 5 anos, quanto você acredita que teria na conta se deixasse o
dinheiro render? A. mais do que $ 102; B. exatamente $ 102; C. menos do que $
102; D. não sei, recuso responder.

2. Imagine que a taxa de juros na sua conta poupança seja 1% ao ano e a inflação seja
2% ao ano. Depois de um ano, você poderia comprar, com o dinheiro dessa conta
poupança: A. mais do que hoje; B. exatamente o mesmo que hoje; C. menos do que
hoje; D. não sei, recuso responder.

3. Você acredita que a declaração a seguir é falsa ou verdadeira? Comprar ações de


uma única empresa usualmente fornece um retorno mais seguro do que um fundo
mútuo de ações. A. verdadeira; B. falsa; C. não sei, recuso responder.
As respostas certas são A, C e B, respectivamente. O melhor resultado foi
alcançado pelos alemães, mas não é brilhante: apenas 53% acertaram as três
questões. Em seguida, vieram os suíços (50%). Os norte-americanos tiveram
resultado ainda pior (30%), ficando pouco atrás dos franceses (31%) e à frente dos
italianos (25%). No fim do grupo, ficaram os russos e os romenos, empatados com
inquietantes 4%. Não há, no artigo, dados sobre o Brasil ou outros países latino-
americanos.

Lusardi e Mitchell comentam que os indivíduos tendem a superestimar seu


conhecimento sobre finanças, o que aumenta o risco de tomarem decisões
equivocadas. E observam diferenças relacionadas à faixa etária, gênero e nível

35
educacional: as mulheres, os mais velhos e aqueles com menor nível de educação
formal tiveram piores resultados nos testes. No entanto, as mulheres parecem ser
mais conscientes de sua condição, o que as torna mais cautelosas e mais abertas à
educação financeira.

A literatura mapeada pelas autoras aponta que quanto maior a ignorância


financeira, maior o risco de tomar decisões financeiras erradas, pagar juros
elevados, contrair dívidas, cair em golpes e fazer maus investimentos. Por outro
lado, quanto maior o nível de educação financeira, maior a probabilidade de
gerenciar corretamente os recursos, de planejar a aposentadoria e acumular
reservas, melhorando a qualidade de vida. É hora de os gurus darem lugar a
educadores.

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A culpa não é só das estrelas
No debate sobre competitividade, as empresas, supostas vítimas, podem
não ser tão inocentes quanto parecem.

A edição 444 de CartaCapital trouxe um belo texto de Carlos Drummond


sobre o estado das coisas do parque manufatureiro brasileiro. “A indústria
esmagada” revelou um quadro preocupante sobre os infortúnios que atormentam
nosso outrora promissor motor do desenvolvimento. A manufatura está
encolhendo, empregos estão desaparecendo, a competitividade é baixa e a moral
está abalada. Nos últimos anos, com o crescimento da renda, a demanda aumentou,
porém foi em grande parte suprida por produtos importados. Os vilões são fortes e
muitos: incoerência entre a política macroeconômica e a política industrial, taxas de
câmbio desfavoráveis, juros altos e desregulamentação atrapalhada. Resultado:
desindustrialização.

Quem se lança à tarefa de empreender e conduzir negócios em nosso país


sentir-se-á como verdadeiro Sísifo. O personagem da tragédia grega era
considerado o mais astucioso dos mortais, porém suas estripulias despertaram a ira
dos deuses. Sísifo foi condenado a rolar uma enorme pedra até o cume de uma
montanha, apenas para vê-la despencar de volta ao ponto de partida, e ter que
recomeçar o trabalho.

Não faltam índices e pesquisas para comprovar o que até os botões dos
ternos dos empresários sabem: fazer negócios no Brasil não é para principiantes.
Nos rankings de competitividade e assemelhados, ficamos sempre em posição
vexatória, incompatível com o porte e diversidade de nossa economia. Melhor que
a Ucrânia, a Síria e o Iraque, dirão os otimistas crônicos, mas longe de qualquer
parâmetro razoável. Bons exemplos não faltam, tanto entre países pequenos, como
37
a Suíça e Singapura, como entre gigantes, como Estados Unidos e Alemanha, mas
parece haver uma resistência matuta a adaptar e incorporar boas práticas.

Entretanto, tal como Sísifo, no caso da competitividade brasileira, a vítima


não é totalmente inocente. Na ponta externa, a competitividade depende dos
chamados fatores sistêmicos e estruturais: ambiente macroeconômico, taxa de
câmbio, acesso a capital, regulação, porte do mercado, configuração do setor,
concorrência e outros mais. São componentes importantes. Porém, na ponta
interna, a competitividade é função de diversos fatores que estão ao alcance dos
empresários e executivos. E nem sempre são bem cuidados.

O setor industrial brasileiro evoluiu de maneira heterogênea desde a abertura


de mercado e as mudanças econômicas ocorridas nos anos 1990. Algumas ilhas de
excelência emergiram, porém o arquipélago continua cheio de ilhotas anacrônicas.
Uma pesquisa realizada há alguns anos por Luiz Arthur Ledur Brito, da FGV-
EAESP, e por este escriba, avaliou 10 práticas gerenciais de 163 empresas locais de
20 setores de atividades, comparando os resultados com os de outros países.
Apenas 3% das empresas industriais apresentavam nível de excelência.

Quando se analisa a produtividade da mão de obra, o quadro não é diferente:


enquanto países como Coreia, China e Chile apresentaram forte evolução na última
década, o Brasil parou no tempo. Se houvesse um índice Gini que medisse a
distribuição do trabalho no Brasil, este revelaria resultado tão desastroso quanto o
de distribuição de renda, pois aqui poucos trabalham muito, a maioria trabalha
pouco, e quase ninguém trabalha direito.

O caos instalado nas empresas locais é frequentemente imputado a fatores


externos e forças ocultas. Entretanto, parte considerável da confusão é gerada
internamente, pela dificuldade de estabelecer focos de ação e estratégicas coerentes,
pela falta de modelos de organização e gestão claros, pelo apego irracional a cada
nova onda gerencial que promete revolucionar a empresa e termina por gerar ainda

38
mais confusão, e pela presença de numerosos agentes do caos, profissionais e
executivos turvos e confusos, que parecem não ter outra função a não ser criar
projetos impossíveis e iniciativas inviáveis.

A combinação entre fatores externos (relacionados ao ambiente de negócios)


e fatores internos (relacionados à gestão), favoráveis e desfavoráveis, criou no
Brasil quatro contextos distintos para a competitividade. Algumas empresas
enfrentam céu de brigadeiro: elas não sofrem o efeito de fatores externos
desfavoráveis e dominam a arte da gestão. São poucas e excelentes. Outras
aproveitam, tanto quanto as primeiras, o ambiente externo favorável. Entretanto,
descuidam-se da gestão. Seguem à deriva, gerando lucros enquanto a boa sorte
durar. Outras, ainda, sentem na pele o efeito nocivo dos males nacionais: juros,
câmbio, infraestrutura e outras mazelas. Procuram compensá-los com excelência na
gestão. Lutam com galhardia, frequentemente obtendo resultados decepcionantes,
incompatíveis com o esforço realizado. Finalmente, há aquelas que, como no grupo
anterior, sofrem com o ambiente, mas sem conseguir compensar a desvantagem
externa. Sua gestão é ineficaz e ineficiente. Estas estão condenadas a desaparecer, e
levar junto com elas empregos e esperanças.

No front externo da competitividade, há muito que fazer. O governo e suas


instituições precisam desatar os nós que colocam o País em lugares indignos dos
rankings internacionais. Porém, há também muito a ser realizado no front interno.
Muitas empresas, de todos os portes, setores e tipos, precisam fazer sua lição de
casa, modernizando suas práticas gerenciais e aumentando a produtividade do
trabalho. Conhecimento gerencial existe. Basta adotá-lo, separando-o dos disparates
de autoajuda que povoam as revistas de negócios e as livrarias de aeroporto. A
transição pode ser dura, porém fingir trabalhar pode cansar tanto quanto trabalhar,
e não gera valor ou benefício social.

39
Sobre mentiras e estatísticas
A influência do consumo de margarina sobre a taxa de divórcios e outras
correlações espúrias.

Benjamin Disraeli, o Conde de Beaconsfield, serviu dois termos como


primeiro ministro da Grã-Bretanha, no século XIX. Entre outras pérolas, a ele é
atribuída a frase: “Há três tipos de mentiras: mentiras, mentiras terríveis e
estatísticas”. Consta que o chistoso dito teria sido popularizado nos Estados
Unidos pelo escritor Mark Twain. Alguns o atribuem ao próprio Twain. O fato é
que a popularidade da frase atravessou séculos, a alimentar nossa desconfiança dos
números ou, mais precisamente, de seu uso impróprio para respaldar argumentos
vazios ou duvidosos.

Tyler Vigen é um agitado estudante de direito em Harvard. Não se sabe se é


fã de Disraeli ou Twain, mas parece ter se apoiado sobre os ombros dos dois
gigantes. Vigen criou um website – Spurious Correlations – com o propósito de se
divertir com estatísticas falaciosas e correlações ilegítimas. O próprio criador
adverte que não se trata de fomentar a descrença na ciência, mas de separar
relações causais de coincidências e simples manipulações.

Vigen usa um dos métodos mais disseminados da estatística: o teste de


correlação. Analisando dados norte-americanos, descobriu uma correlação quase
perfeita entre os gastos com ciência, espaço e tecnologia e o número de suicídios
por enforcamento, estrangulamento e sufocação. A Nasa deve estar preocupada!
Outra correlação fortíssima foi descoberta entre o consumo de margarina e a taxa
de divórcios no Estado do Maine. Será que a substituição por manteiga ajudaria os
casais? Ainda no campo da alimentação, foi constatada correlação entre o consumo
per capita de queijo do tipo muçarela e o número de doutorados em engenharia civil.
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Será responsabilidade das pizzas? Já o número de filmes nos quais Nicolas Cage
atua apresenta correlação razoável com o número de pessoas que morrem afogadas
ao cair na piscina. Será culpa do ator ou da qualidade dos filmes?

Qual o truque? É simples: a ocorrência de uma correlação, mesmo que seja


forte, sugere, porém não significa, uma relação de causa e efeito entre as variáveis.
De fato, pode não existir correlação alguma. Esse simples preceito, exposto de
maneira bem-humorada por Vigen, não parece sensibilizar debatedores e
argumentadores balizados unicamente por sua própria opinião e pela vontade de
convencer incautos suscetíveis a fantasias numéricas. Entretanto, as implicações de
estripulias estatísticas podem ser sérias. Correlações espúrias frequentemente
mudam percepções sobre questões relevantes, influenciam decisões e podem levar
a alterar políticas públicas, afetando diretamente a vida dos cidadãos.

A ciência estatística teve origem no século XVII, com as contribuições


notáveis dos franceses Blaise Pascal e Pierre de Fermat. Transformou-se em
profissão e em um campo científico marcado pelo rigor dos métodos e das análises.
No século XX, a estatística avançou nas linhas de montagem e nas agências de
propaganda, ganhou adoradores entre engenheiros e economistas. Tornou-se
onipresente na academia, na vida cotidiana e na mídia. Parte considerável do
progresso científico está sustentada pela estatística, por técnicas que permitem
analisar e testar correlações. Sintomaticamente, muitos artigos científicos das
ciências humanas, exatas e biomédicas parecem textos matemáticos, inundados por
hipóteses, fórmulas e tabelas.

Junto com as virtudes, vieram alguns vícios. Estudantes de doutorado logo


aprendem a “torturar os números”, para que “confessem” os resultados esperados.
Técnicas de “engenharia reversa” são frequentemente utilizadas: primeiro, são
estabelecidos os resultados; depois, os meios para chegar a eles. Manipulações
grosseiras são denunciadas; outras, mais sutis, podem passar despercebidas.

41
Alguns resultados transcendem a academia e são filtrados, reembalados e,
vez por outra, distorcidos pelas mídias de massa. O que é uma causa provável,
aplicada a uma amostra restrita, pode, pela força de uma manchete, tornar-se
verdade absoluta e influenciar opiniões e comportamentos. O uso espúrio que
fazemos da estatística provavelmente faria Disraeli e Twain contraírem cinicamente
a sobrancelha esquerda, ou a direita, ou ambas. Mas esta é correlação difícil de
comprovar.

42
O espírito (em crise) do capitalismo
Pensamentos imperfeitos sobre a fortuita relação entre o aquecimento
global e o resfriamento da ética do trabalho.

A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo é obra seminal das ciências sociais.


Escrito por Max Weber no início do século XX, o alfarrábio relaciona o surgimento
do sistema capitalista aos valores e comportamentos instigados pelo
protestantismo. Segundo o demiurgo alemão, enquanto o catolicismo rejeitava a
ocupação econômica, o protestantismo favorecia o espírito comercial.

Durante o século XX, o tal espírito capitalista levou a uma geração sem
precedentes de riqueza. Melhorou a vida de centenas de milhões de seres humanos.
Ajudou a vencer guerras quentes e frias. No entanto, no final do século, suas
conquistas já eram criticamente pesadas contra os desastres deixados em seus
rastros: a desigualdade, o esgotamento dos recursos naturais, o aquecimento global
e a ameaça às futuras gerações.

A ressaca planetária parece ter enfraquecido o velho espírito capitalista e sua


ética do trabalho, que fraqueja justamente quando a labuta dura e bem-orientada é
necessária para mudar rotas e reinventar existências. Sintomaticamente, a revista
The Economist, um baluarte do liberalismo econômico, publicou, com ironia
britânica, quatro princípios para escapar do trabalho. Primeiro, saiba gerenciar o
teatro do entusiasmo: reaja sempre com ânimo a novos desafios, mas desapareça na
hora do trabalho duro. Segundo, abrace a tecnologia de informação, a melhor
amiga do preguiçoso: simule seriedade e atenção, enquanto navega por websites de
esportes e mídias sociais. Terceiro, procure empregos nos quais a relação entre
esforço e resultado não é clara: o setor público é o paraíso, porém grandes
empresas privadas não ficam atrás. Quanto maior o porte, mais fácil é enrolar.
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Quarto, seja ambicioso: sua preguiça crônica não limitará sua ascensão profissional.
Afinal, é mais fácil fugir do trabalho quando se está mais próximo do topo da
pirâmide e os dias são ocupados com almoços executivos, visitas a clientes,
treinamentos motivacionais e viagens a congressos.

Roland Paulsen, autor do livro Empty Labor: Idleness and Workplace Resistance,
observa que, embora alguns estudiosos denunciem a intensificação do trabalho e o
aumento das patologias ocupacionais, outros argumentam que o culto à preguiça
está bem instalado nas empresas. De fato, algumas pesquisas revelam que
empregados gastam até três horas por dia de trabalho com atividades privadas.
Visitas a lojas virtuais e websites pornográficos acontecem principalmente durante o
horário comercial. Além disso, a proporção de profissionais que declaram que
nunca trabalham muito é sempre superior à proporção de profissionais que
afirmam o contrário.

Paulsen cita casos curiosos: um funcionário público alemão que declarou ter
passado os últimos 14 anos de sua carreira sem realizar nenhum trabalho real; um
inspetor de impostos finlandês que morreu no escritório, fato que foi descoberto
apenas dois dias depois de ocorrido; e o cartunista Scott Adams, criador do
personagem Dilbert, que afirmou ter trabalhado 16 anos em grandes corporações
fingindo “adicionar valor”.

Conforme observa o autor, o mundo do trabalho transformou-se em um


grande teatro, no qual é mais importante parecer do que realizar, participar de jogos
políticos do que conseguir resultados. Quanto mais abstrato o trabalho, maior o faz
de conta. Curiosamente, certos executivos interpretam com tanto empenho o papel
de gestores ocupados que acabam por acreditar que estão de fato trabalhando
muito.

No hemisfério norte, onde os povos contam com redes de água e esgoto,


frequentam escolas e dispõem de médicos e hospitais, o enfraquecimento da ética

44
do trabalho é visto com curiosidade. No hemisfério sul, onde quase tudo está por
fazer e, quando é feito, é mal realizado, custa caro e destina-se à elite, o tema ganha
relevância moral.

Nos trópicos, o faz de conta e a fuga do trabalho parecem ter-se tornado


especialidade e privilégio de um novo tipo de classe ociosa, um grupo
multiocupacional e diversificado, que se tem espalhado pelas empresas privadas,
pelo serviço público e pelas universidades. Vende-se como hiperativa, mas pouco
realiza. É mestre em apropriar-se de feitos alheios. Weber e Veblen poderiam
passar bons quartos de hora a ruminar sobre o fenômeno.

45
Soluções mágicas, mudanças incertas
Estudo veiculado pela revista científica Nature relaciona cultura de
negócios e desonestidade.

A revista Nature publicou, em novembro de 2014, on-line, o artigo "Cultura de


negócios e desonestidade na indústria bancária", assinado por Alain Cohn, Ernst
Fehr e Michel André Maréchal, do departamento de Economia da Universidade de
Zurique, na Suíça. Os autores observam que a confiança na honestidade alheia é
pedra fundamental para empresas, setores de atividades e até mesmo para países.
No entanto, multiplicaram-se, nos últimos anos, casos envolvendo fraudes na
indústria financeira. Diversos analistas atribuem a origem de tais escândalos à
cultura de negócios do setor.

Para comprovar tal hipótese, Cohn, Fehr e Maréchal realizaram um


experimento envolvendo funcionários de uma grande instituição financeira
internacional, e estudantes e funcionários de outras indústrias, os quais
funcionaram como grupo de controle. No experimento, os participantes recebiam
uma tarefa e deveriam reportar seus resultados, sendo possível falseá-los para
aumentar os ganhos.

Os autores verificaram que os funcionários da instituição financeira eram tão


honestos quanto os demais. Entretanto, em uma variação do experimento, quando
tais funcionários respondiam a perguntas sobre sua ocupação profissional, parte
significativa deles passava a agir desonestamente. Os outros participantes não eram
afetados por questões equivalentes. O trio concluiu: “Nossos resultados, portanto,
sugerem que a cultura de negócios, prevalente na indústria bancária, mina e
enfraquece o padrão de honestidade, o que sugere que medidas para reestabelecer
uma cultura honesta são importantes”.
46
A ideia de cultura é relativamente recente no mundo corporativo. Os
primeiros estudos sobre o tema surgiram há cerca de 30 anos. Cultura
organizacional diz respeito aos padrões de comportamento das pessoas em uma
organização. Transparece nas atitudes, modos e manias das empresas. Relaciona-se,
em um nível mais profundo, com a história da organização e como os valores e as
noções de certo e errado são construídas com o passar dos anos. A cultura é
importante para uma empresa porque representa uma referência que norteia as
decisões. A diversidade entre empresas é notável: uma decisão ou comportamento
que é aceitável em uma organização pode ser inaceitável em outra.

Nos anos 1990, muitas organizações, fascinadas com o conceito, decidiram


“mudar sua cultura”. Entretanto, descobriram que, assim como indivíduos
(saudáveis) não trocam de personalidade de um dia para o outro, empresas também
não são capazes de trocar de cultura de uma estação para outra. Interferir na cultura
organizacional é tarefa longa e incerta, e envolve amiúde mudar estratégias, alterar
estruturas e processos, trocar líderes e romper com o passado.

O estudo veiculado em Nature trata justamente da questão da mudança


cultural. Os autores não se referem a uma organização em particular, mas a um
setor inteiro. Sugerem a adoção de medidas para fomentar uma cultura da
honestidade. Será tal empreitada possível?

Para responder à questão, é preciso, em primeiro lugar, aceitar que o que


torna uma norma e um comportamento aceitáveis são valores construídos e
validados por um grupo social ao longo do tempo. A desonestidade apontada pelos
autores pode não ser um comportamento anômalo no ambiente estudado. Pode ser
o reflexo de décadas de interações e realizações, que geram um caldo cultural que
aceita, e em certos casos promove, comportamentos desonestos.

Em segundo lugar, é preciso encontrar meios para inibir tais


comportamentos. Punir exemplarmente os desonestos pode sinalizar mudanças.

47
Entretanto, não altera necessariamente as raízes do comportamento. Muitos
comportamentos percebidos de fora como desviantes são aceitos ou minimizados
internamente. Por outro lado, chegar ao extremo de extinguir a organização pode
gerar um custo considerado intolerável pelos agentes econômicos e sociais. A
alternativa é, portanto, iniciar um amplo e longo processo de mudança, fazendo
mover simultaneamente várias frentes: governança e transparência, controle e
punição, liderança e outras mais. Há, naturalmente, quem prefira opções mais
simples e diretas para mudar o estado das coisas, porém, para acreditar em sua
efetividade, é preciso crer também em fadas e duendes.

48
Anarquia e controle
Lições para líderes: filmes de J. C. Chandor mostram a incerta batalha
dos homens para manter a ordem em meio ao caos ao redor.

J. C. Chandor é roteirista e diretor de cinema. Em 2011, dirigiu seu primeiro


longa metragem, Margin Call, provavelmente a melhor obra sobre a crise de 2008.
Em 2013, realizou All is Lost, com Robert Redford no papel de um velejador.
Agora, está lançando A Most Violent Year, sobre um imigrante tentando expandir
seus negócios na violenta Nova Iorque dos anos 1980. Uma vez é sorte, duas
podem ser coincidência, mas três vezes talvez sejam prova de talento real.

Margin Call narra um período de 36 horas em um banco de investimentos de


Wall Street. O elenco traz nomes conhecidos, como Kevin Spacey, Jeremy Irons,
Demi Moore e Stanley Tucci. O centro da trama são as ações e reações dos
funcionários do banco durante o colapso. Em foco, o funcionamento dos
bastidores do capitalismo financeiro: a ganância, a racionalidade pervertida, a tênue
linha divisória entre negócios e fraudes. O filme traz um olhar aguçado sobre uma
das principais máquinas que fazem o mundo girar, seus personagens, motivos,
aspirações, delírios e medos.

All is Lost parece uma guinada temática e estilística na carreira do diretor. Em


seu segundo filme, Chandor centra a trama em um velejador solitário. Tudo o que
vemos é o personagem vivido por Redford, seu barco e a imensidão do mar,
eventualmente pontuada por imensos e distantes cargueiros. Não sabemos de sua
história ou dos motivos para se lançar sozinho ao mar. Há pouquíssimas palavras e
nenhum diálogo. Sobre uma estrutura simples e com um ator carismático, Chandor
constrói uma fábula memorável sobre a eterna batalha do homem contra os meios,
e contra ele mesmo.
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Com A Most Violent Year, Chandor retorna à terra firme e ao não tão firme
mundo dos negócios. Com Oscar Isaac e Jessica Chastain nos papéis principais, o
filme retrata as desventuras de um empreendedor tentando fazer negócios de
maneira idônea em um ambiente dominado por quadrilhas. Abel Morales (Isaac) é
um imigrante que se tornou um próspero homem de negócios nos Estados Unidos.
A Most Violent Year narra um período na vida de Morales no qual ele precisa
levantar recursos para expandir seus negócios, ao mesmo tempo que enfrenta
acusações de fraude e evasão fiscal, e sofre ataques de concorrentes. Em foco, o
costumeiro dilema do empreendedor: quanto maior o risco e maior a incerteza,
maior o prêmio.

David Denby, veterano crítico da revista The New Yorker, observou que a
forma como Chandor lida com o enredo clássico de ambição, tentação e violência
(que já rendeu dezenas de filmes noir, thrillers e filmes de gângsteres) é mais seco,
sutil, realista e com mais nuances morais que seus predecessores. A Most Violent
Year contém cenas de violência, porém o que sustenta a narrativa são negociações
duras e ameaças veladas.

Christopher Orr, escrevendo para The Atlantic, notou que Morales é um


homem obcecado por manter o controle, dele mesmo e do ambiente ao redor. Os
sinais de anarquia estão em toda parte: nos prédios abandonados e pichados, nas
janelas quebradas, no metrô decadente e precário. Diante do caos ao redor, de
perigos iminentes, de ameaças que a qualquer instante podem provocar desastres,
suas armas são a calma, a voz baixa e o olhar penetrante.

Orr argumenta que a luta dos homens para manter controle em meio ao caos
ao redor tem sido o grande tema dos filmes de Chandor. Os personagens de Margin
Call tentam sobreviver, e até tirar vantagens, da tempestade na indústria financeira,
criada por eles mesmos. Morales quer mais e aprende rapidamente que nada é mais
perigoso do que tentar alterar o estado das coisas. All is Lost, longe dos escritórios,
é uma fábula sobre o mesmo tema.

50
Universal, o tema aplica-se diretamente ao mundo dos negócios. Livros de
autoajuda e parte considerável da literatura científica sobre gestão vendem a utopia
de um mundo controlável, do sucesso que pode ser obtido por trabalho duro,
pensamento analítico e comportamento racional. Algumas dessas obras são
exercícios de puro ilusionismo. Outras apostam na simplificação da realidade e na
premissa de que a racionalidade do management pode salvar o mundo. Falta-lhes
contato com o mundo real, o que parece sobrar nos filmes de Chandor. Mais vale
um Chandor na tela que três Porters na prateleira.

51
O trabalho nas telas
Documentários indicados ao Oscar fazem refletir sobre o sentido da
labuta.

Entre os cinco documentários indicados ao Oscar de 2015, encontram-se


duas obras sobre fotografia: The Salt of the Earth, codirigido por Wim Wenders e
Juliano Salgado, e Finding Vivian Maier, codirigido por John Maloof e Charlie Siskel.
Além de tratar de fotografia, os dois filmes expõem a tempestuosa relação entre o
homem e o trabalho.

The Salt of Earth mostra a vida e a fabulosa obra fotográfica do brasileiro


Sebastião Salgado. Nascido em Aimorés, em Minas Gerais, em 1944, Salgado
graduou-se em economia e exilou-se na Europa durante o período militar. A partir
da base parisiense, viajou pelo mundo, trabalhando para organizações
internacionais. No início da década de 1970, desistiu de uma boa oferta de trabalho
e aventurou-se nas trilhas do fotojornalismo, uma ocupação totalmente nova para
ele. Trabalhou para as grandes agências do mundo, inclusive a mitológica Magnum,
antes de criar com a esposa e colaboradora sua própria agência.

Seguiram-se projetos de grande vulto, que geraram exposições e livros. Estão


sempre presentes em sua obra a visão humanista e a preocupação com temas
sociais: a pobreza, a injustiça, os conflitos pela terra, as migrações e o trabalho. Seu
último projeto, Genesis, resultou de quase uma década de viagens ao redor do
mundo, em busca de paisagens intocadas pelo homem e de comunidades que ainda
vivem segundo tradições ancestrais. Em entrevistas, Salgado declarou que, antes de
Genesis, vivia um momento difícil, de depressão e descrença, motivadas pelo
contato com as mais contundentes tragédias humanas do planeta. O projeto
representou uma reviravolta positiva na vida e no trabalho do fotógrafo.
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Finding Vivian Maier (assistido por este escriba) traz duas narrativas paralelas:
apresenta a obra da fotógrafa norte-americana e conta as aventuras do codiretor e
coprodutor John Maloof para descobrir a pessoa por trás das imagens. Tudo
começou quando Maloof arrematou, por acaso, em um leilão, uma caixa cheia de
negativos de fotografia. Seguiu-se a descoberta de uma obra ímpar, cujas imagens
lembram grandes nomes da fotografia do século XX, como Diane Arbus, Robert
Frank, Weegee e Dorothea Lange. Ocorre que Maier nunca mostrou ou divulgou
suas fotografias. Sobreviveu como babá, aproveitando seus momentos de folga e
suas férias para fotografar.

A investigação de Maloof revela um pouco de Maier e deixa outro tanto por


conta da imaginação da plateia. Ela era gentil com as crianças, porém
eventualmente cruel. Vivia reclusa e era um pouco excêntrica. Tinha uma
personalidade reservada e morreu solitária, pouco antes de ter sua obra descoberta
por Maloof.

O trabalho é fonte de prazer e sofrimento, realização e frustração. Um


trabalho que faz sentido, afirmam os especialistas, é aquele que permite a
autorrealização e o aprendizado, que conseguimos fazer bem feito e que gera algo
socialmente útil, que garante o sustento e favorece as relações com nossos pares.
Na vida real, quando encontramos alguns desses requisitos, outros nos escapam,
mas continuamos a persegui-los.

The Salt of Earth e Finding Vivian Maier retratam duas trajetórias diferentes de
busca do sentido do trabalho. Sebastião Salgado projeta em deslumbrantes imagens
suas convicções, sua sensibilidade e a técnica de um incansável artesão. Tem na
companheira Lélia Wanick Salgado o par ideal, a construir a ponte entre a ideia e o
projeto, entre o registro e a audiência. Especular sobre a enigmática Vivian Maier é
um risco, mas não deixa de ser sedutor vê-la como profissional de pureza singular,
a preservar seu trabalho do mundo ao redor, um mundo que poderia ignorá-lo ou
celebrá-lo, ou pior, nele interferir.

53
Sorte nossa que Salgado enfrentou seus fantasmas e continua a nos despertar
profundas emoções e reflexões. Sorte nossa que Meier preservou, durante décadas,
sua capacidade de captar com sensibilidade e sobriedade o cotidiano, e agora nos
ofertou um magnífico presente. Talvez Maier seja desconcertante porque, como
sugeriu Rose Lichter-Marck, na revista The New Yorker, ela não se ajusta à ideia que
fazemos do que um artista, uma pessoa ou uma mulher deveriam ser. Ela
aparentemente não se interessava por dinheiro ou por mostrar suas imagens.
Porém, garantiu a si mesma total liberdade para fazer seu trabalho: fotografar.

54
A era da impaciência
Economista inglês sugere que a revolução da informação gera custos
cognitivos que podem comprometer o crescimento econômico.

A vida no século 21 pode não ser como mostram as propagandas de


telefones celulares. A onipresença das novas tecnologias de comunicação e
informação traz consideráveis impactos sociais. Dois filmes recentes tratam do
tema: Disconnect (de 2012, dirigido por Henry Alex Rubin) e Men, Women & Children
(de 2014, dirigido por Jason Reitman). As duas obras adoçam seu olhar crítico com
uma visão humanista. O grande tema é a vida contemporânea, marcada pelo
consumo de bens e estilos, e povoada pelas doenças da sociedade moderna: bullying,
identidades roubadas, comunicações mediadas e relações fragilizadas. No centro
dos dramas: a internet e as mídias sociais.

Se determinados impactos sociais já são notáveis, alguns impactos


econômicos ainda estão sendo descobertos. No dia 17 de fevereiro de 2015,
Andrew G. Haldane, economista chefe do Banco da Inglaterra, realizou uma
palestra para estudantes da University of East Anglia. O tema foi crescimento
econômico. O texto, disponibilizado pela universidade, é um raro exemplo de
elegância e clareza, com doses bem-administradas de história, economia, sociologia
e psicologia.

Haldane inicia mostrando que o crescimento econômico é uma condição


relativamente recente na história da humanidade: começou há menos de 300 anos.
Três fases de inovação marcaram essa breve história do crescimento: a Revolução
Industrial, no século 18; a industrialização em massa, no século 19, e a revolução da
tecnologia de informação, na segunda metade do século 20.

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Qual a fonte primária do crescimento econômico? Em uma palavra:
paciência. É a paciência que permite poupar, o que, por sua vez, financia os
investimentos que resultam no crescimento. Combinada com a inovação
tecnológica, a paciência move montanhas. Existem também, lembra Haldane,
fatores endógenos: educação e habilidades, cultura e cooperação, infraestrutura e
instituições. Todos esses fatores se reforçam mutuamente e funcionam de maneira
cumulativa. Pobres os países que não conseguem desenvolvê-los.

De onde veio a paciência? Haldane tem uma hipótese: a invenção da


impressão por tipos móveis, por Guttenberg, no século 15, que resultou na
explosão da produção de livros. Os livros levaram a um salto no nível de
alfabetização e, em termos neurológicos, “reformataram” nossas mentes,
viabilizando raciocínios mais profundos, amplos e complexos. Nesse caso, a
tecnologia ampliou nossa capacidade mental, que, por sua vez, alavancou a
tecnologia, criando um ciclo virtuoso.

E os avanços tecnológicos contemporâneos, terão o mesmo efeito? Haldane


receia que não. Assim como os livros expandiram nossa capacidade cerebral, as
tecnologias atuais podem gerar o efeito contrário. Quanto maior o acesso a
informações, menor nossa capacidade de atenção, e menor nossa capacidade de
análise. E nossa paciência sofre com o processo.

Não faltam exemplos: alunos lacrimejam e bocejam depois de 20 minutos de


aula; leitores parecem querer textos cada vez mais curtos, fúteis e ilustrados;
executivos saltam furiosamente sobre diagnósticos e análises, tomando decisões na
velocidade do som; projetos são iniciados e rapidamente esquecidos; reuniões
iniciam sem pauta e terminam sem rumo. Hipnotizados por tablets e smartphones,
vivemos em uma sociedade assolada pelo transtorno do deficit de atenção e pela
impaciência crônica.

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Os efeitos são preocupantes: a impaciência em crianças prejudica a educação
e cerceia o potencial. Nos adultos, a impaciência reduz a criatividade, freando a
roda que gera o desenvolvimento do capital intelectual e a inovação, e colocando
em risco o crescimento econômico futuro.

Haldane conclui que os ingredientes do crescimento ainda são misteriosos,


mas que a história aponta para uma combinação complexa de fatores tecnológicos
e sociológicos. É prudente observar que o autor não está sugerindo uma relação
direta entre o crescimento das mídias sociais e a estagnação econômica que vem
ocorrendo em muitos países. Sua análise é temporalmente mais ampla, profunda e
especulativa. Entretanto, há uma preocupação clara com os custos cognitivos da
“revolução” da informação, que se somam aos custos sociais tratados nos dois
filmes que abriram este texto. Não é pouco.

57
Chamem as meninas!
Pesquisa científica sugere que a presença de mulheres em cargos de
direção reduz a probabilidade de fraudes.

Se acreditarmos que a arte representa a realidade e que filmes constituem um


retrato (ainda que imperfeito) de atitudes e comportamentos, então não há dúvida
de que o mundo das fraudes corporativas é um domínio masculino. Exemplos não
faltam, com ampla variedade de vigaristas e trapaceiros.

Wall Street (de 1987, dirigido por Oliver Stone) traz Michael Douglas como o
lendário Gordon Gekko, filósofo da ganância, rei da informação privilegiada e
mestre da arte do enriquecimento fácil e ilícito. Others People’s Money (de 1991,
dirigido por Norman Jewison) tem Danny DeVito como Lawrence “Larry the
Liquidator” Garfield, uma ave de rapina que busca vítimas entre empresas da
economia real.

Rogue Trader (de 1999, dirigido por James Dearden), baseado em história real,
traz Ewan McGregor como Nick Leeson, um investidor jovem e “brilhante”, cujas
estripulias maravilharam seus chefes e levaram o mais antigo banco de
investimentos britânico à bancarrota. Boiler Room (de 2000, dirigido por Ben
Younger), com Giovanni Ribisi, Vin Diesel e Ben Affleck, retrata as façanhas de
um grupo de jovens corretores que mentem, chantageiam e roubam para ganhar o
primeiro milhão de dólares, enquanto vendem ações sem valor a vítimas
desavisadas.

Margin Call (de 2011, dirigido por J. C. Chandor), estrelado por Kevin
Spacey, Paul Bettany, Jeremy Irons e Zachary Quinto, disseca a lógica perversa por
detrás das operações de uma instituição financeira em crise. The Wolf of Wall Street
58
(de 2013, dirigido por Martin Scorsese), com Leonardo DiCaprio, narra as
peripécias amorais e fraudulentas de Jordan Belfort, um corretor de valores que
atuou com sucesso até ser desmascarado e processado.

Todos esses filmes narram histórias de meninos ambiciosos e agressivos,


lutando por dinheiro e poder. A maciça presença masculina pode ser bem mais que
mera coincidência.

Agora, das telas para a vida real. Gillian B. White, escrevendo para o website
da revista The Atlantic, em fevereiro, trata da importância do papel do CFO (Chief
Financial Officer), ou diretor financeiro, no combate a fraudes. O autor comenta
estudo realizado pela empresa de auditoria e consultoria Ernst Young, em 2012,
que revelou que 15% dos CFOs reconheceram que cometeriam fraudes para
ganhar negócios. E o resultado pode ser apenas a ponta do iceberg. A mesma
pesquisa indicou que 39% dos respondentes acreditavam que práticas de suborno e
corrupção eram frequentes em seus países. Entre os respondentes brasileiros, o
percentual foi 84%. Nenhuma surpresa!

A prevenção de fraudes e comportamentos desviantes tem sido amplamente


estudada nos campos da contabilidade, das finanças, do direito e da administração
geral. A regulação e as práticas de governança corporativa evoluíram
significativamente nos últimos anos. Entretanto, a ganância parece ter crescido, e a
arte de assenhorear-se fraudulentamente de bens alheios também evoluiu.

White comenta estudo realizado por Ya-Wen Yang e Andrea Kelton, da


Wake Forest University, e Allison Evans, da University of North Carolina, que
explora outra dimensão do combate à fraude: a presença feminina na gestão
financeira e na diretoria de empresas. Com base na análise de dados de 1991 a
2011, as autoras concluíram que mulheres são menos propensas do que homens a
participar de esquemas de evasão fiscal.

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O estudo faz eco a pesquisas anteriores, que demonstram que a composição,
em termos de gênero, dos profissionais da diretoria de uma empresa afeta a forma
como o grupo toma decisões. White observa que “mulheres são mais orientadas
pelo desejo de crescimento e desenvolvimento, enquanto homens são geralmente
mais orientados pela busca do dinheiro e do poder – o que pode levar homens a
tomar decisões baseadas estritamente em raciocínios econômicos em lugar de
outros fatores, tais como senso de justiça e de decoro”.

O trabalho de Yang, Kelton e Evans também sugere que ter uma mulher em
um cargo de liderança pode não ser suficiente para garantir comportamentos éticos.
Isso ocorre porque minorias podem ser alienadas ou ignoradas em processos
fechados de tomada de decisão. É preciso ter uma massa crítica, mais de 30% de
mulheres, para influenciar positivamente o comportamento do grupo.

60
A igreja da diversão tecnológica
As palestras do TED, populares nas redes sociais, misturam ciência e
entretenimento.

No filme La Peau Douce, de 1964, dirigido por François Truffaut, o ator


francês Jean Desailly interpreta o editor de uma revista literária, especialista em
Balzac. Nas asas da Panair, ele se envolve com uma aeromoça vivida por Françoise
Dorleac. Pierre é um intelectual celebridade, figura da época, que antecede um
fenômeno planetário, hoje catalisado pela internet.

Se o prezado leitor é um usuário assíduo das redes sociais, boa chance há de


ter sido alvejado umas tantas vezes por links dos vídeos do TED, o moderno
templo virtual dos intelectuais celebridades. Os temas são instigantes, o tratamento
é ligeiro e a experiência é agradável. E que mal há em ser ilustrado, por uma
palestra que dura menos que um quarto de hora, com uma perspectiva fresca acerca
de um tema relevante?

Por detrás desse fenômeno, está uma entidade criada há pouco mais de 30
anos. O TED (Technology, Entertainment, Design) é uma organização privada sem fins
lucrativos, fundada no Vale do Silício, nos Estados Unidos. Seu lema é “ideias que
merecem ser disseminadas”. Os vídeos são gravados em seus eventos, que se
multiplicaram nos últimos anos na América do Norte, na Europa e na Ásia.

As palestras tratam de tecnologia, design, ciência, cultura e tudo mais que


parecer novo e for atraente. Ex-chefes de estado, prêmios Nobel, empresários
carismáticos e cientistas comunicativos destilam sabedoria diante de suas câmeras.
A primeira página de seu portal indica os vídeos mais populares: “Como grandes
líderes inspiram a ação”, por Simon Sinek; “A aparência não é tudo. Acredite em
61
mim, eu sou uma modelo”, por Cameron Russell; “Porque amamos, porque
traímos”, por Helen Fisher; e “10 coisas que você não sabia sobre o orgasmo”, por
Mary Roach. Qualquer semelhança com revistas de autoajuda pode ser mais do que
mera coincidência.

O modelo tem seu mérito, ao disseminar gratuitamente conteúdos que


poderiam ficar restritos a universidades e a centros de pesquisa. Entretanto, o TED
tem seus críticos, que o acusam de ter “macdonaldizar” a ciência, de servir de
trampolim para alpinistas pseudoacadêmicos e ter se tornado, com o crescimento e
a popularidade, uma paródia de si mesmo.

Megan Garber, uma jornalista da revista The Atlantic, certa vez argumentou
que o TED funciona como instância de validação para o caótico mercado de novas
ideias. Entretanto, as palestras e seus vídeos não são expressão direta e transparente
das ideias, mas, sim, conteúdos editados, empacotados e associados a um
personagem. Um show típico do TED tem narrativa didática, humor cativante e um
narrador simpático, intimamente ligado à ideia apresentada. Sugere, assim, que
grandes ideias estão sempre relacionadas a gênios criativos.

Entretanto, em uma época na qual o trabalho é quase sempre coletivo, a


personalização das ideias pode ser anacrônica. As palestras TED, sugere Garber,
não traduzem conceitos abstratos e complexos para o público leigo. Elas apenas
trocam a narrativa por um personagem. Com isso, a ideia deixa de ser uma ideia e
transforma-se em artefato construído para o palco.

Megan Hustad, escrevendo para o jornal The New York Times, reconheceu nas
palestras TED a cadência adotada pelos missionários evangélicos, com suas
promessas vaporosas. Ela não considera adequado afirmar que as conferências e os
vídeos funcionam como uma igreja organizada. Entretanto, sugere que
compreender as similaridades entre os dois sistemas ajuda a entender como o estilo

62
adotado nas palestras, com suas promessas de soluções para os problemas do
homem e do mundo, é manipulativo.

Uma palestra TED, segundo Hustad, assemelha-se a um sermão. Primeiro,


junta-se uma plateia de curiosos e famintos. Então, um problema crucial é
focalizado. O simpático palestrante surpreende a audiência com as raízes profundas
e as consequências impactantes da questão tratada. Diante das trevas e da agonia,
uma esperança é introduzida: o caminho da salvação. Aí, a audiência respira
aliviada, pois viu a luz e agora se sente parte da solução. O processo é contagiante e
persuasivo, dobrando almas e intelectos. Hustad especula: em algum momento, a
lista de 20 vídeos mais vistos do TED talvez se transforme em um credo. E daí
rumaremos para a era do politeísmo digital.

63
A Plutonomia e o Precariado
A estrutura social está ficando cada vez mais parecida com a hierarquia
corporativa.

Brazil é uma distopia satírica dirigida por Terry Gilliam, em 1985. O


personagem central é Sam Lowry, interpretado por Jonathan Pryce. A sociedade
retratada no filme é desigual e consumista, a tecnologia é onipresente, o governo é
totalitário, as corporações são poderosas e impessoais, a mãe do protagonista é
obcecada por cirurgia plástica e o seu trabalho não tem sentido. Semelhanças com
as empresas e a sociedade contemporânea são notáveis.

A vida imita a arte. Em um texto sobre os movimentos populares na


sociedade do século XXI, Noam Chomsky traça a origem dos termos Plutonomia e
Precariado. O primeiro surgiu de um estudo realizado há 10 anos por analistas do
Citigroup, segundo o qual o mundo está dividido em dois blocos: a Plutonomia,
formada pelos super-ricos, e o resto. O objetivo dos autores era orientar os
investidores a selecionarem as melhores ações: aquelas de empresas que produzem
para os abastados.

A Plutonomia surgiu das condições do capitalismo moderno: governos


simpáticos às grandes corporações, estado de direito que garante a liberdade
econômica, espaço para “inovações” financeiras, proteção de patentes e mão de
obra qualificada e dócil. Os super-ricos concentraram a riqueza dos países
desenvolvidos anglo-saxões: Estados Unidos, Inglaterra e Austrália. Entretanto, os
criadores do termo acreditavam que formações similares surgiriam em economias
emergentes, como Brasil, Rússia, Índia e China.

64
A contrapartida da Plutonomia é o Precariado, formado por um contingente
que vive em condições de insegurança e incerteza, e tende a crescer e tornar-se
componente relevante da estrutura social. O economista Guy Standing é autor do
mais conhecido livro sobre o tema: The Precariat: The New Dangerous Class, publicado
em 2011. Standing advoga que a transformação global da economia está gerando
uma nova estrutura de classes, que substitui a anterior, cuja espinha dorsal era
formada pela burguesia e pelo proletariado.

A nova estrutura, segundo o autor, é composta por vários grupos. No topo,


encontra-se uma plutocracia internacional, a usar seu poder econômico para
influenciar e moldar o poder político. Abaixo dela, vicejam elites nacionais,
completando com a primeira uma classe hegemônica. Logo abaixo, vem o grupo
assalariado, que goza de rendimentos elevados e segurança no emprego. Seus
membros ocupam o topo da pirâmide das grandes empresas e nichos privilegiados
da máquina do estado. É uma confraria pressionada, perdendo membros para os
grupos que vêm logo abaixo, frequentemente devido a processos de terceirização.
Parte desse contingente é constituída por consultores e pequenos empresários, que
sonham em pertencer à elite. Abaixo destes, situa-se o velho proletariado, mais um
grupo em processo de redução, lutando com poucas chances de sucesso pela
manutenção de conquistas passadas. O precariado situa-se abaixo do proletariado,
constituindo, segundo Standing, uma “classe em construção”. Seu trabalho é
caracterizado pela flexibilidade e pela incerteza.

Standing observa que o precariado é formado por três subgrupos. O


primeiro é composto pelos desterrados do proletariado, com baixo nível de
instrução, frustrados e propensos a serem seduzidos pelo populismo de extrema-
direita. O segundo é formado por imigrantes e minorias, frequentemente
nostálgicos e politicamente passivos. O terceiro é constituído por profissionais
qualificados, inseguros sobre seu status na sociedade e sujeitos a trabalho eventual.
O autor identifica ainda um lumpemprecariado, formado por miseráveis que vivem
nas ruas, à margem da sociedade.
65
A tipologia de Standing pode ser vista como um modelo em construção.
Entretanto, seus componentes podem ser facilmente observados nas pirâmides
empresariais. No topo, os controladores e suas famílias, servidos por grupos seletos
e bem-remunerados de executivos. Nos escalões médios, gestores e profissionais
especializados, aspirantes naturais à vida nos andares superiores. Abaixo deles, um
exército de analistas e operários, lutando para preservar salários, empregos e
benefícios. Ao redor, contingentes cada vez maiores de prestadores de serviços: dos
mais qualificados assessores aos menos instruídos provedores de serviços básicos.
A uni-los: a sujeição às intempéries econômicas e aos humores dos contratantes. A
sociedade parece imitar as corporações.

66
O pastor e os CEOs
David Brooks sugere o caminho para o caráter. Na contramão,
presidentes de empresas exibem seu narcisismo patológico.

David Brooks é um conhecido colunista do New York Times. Seus textos


unem agudas observações sobre cultura e sociedade com herméticos trabalhos
científicos, convenientemente traduzidos. Brooks consegue unir, paradoxalmente,
doses civilizadas de conservadorismo e perspectivas contraculturais. Seu último
livro – The Road to Character (Random House) – é uma versão em longa-metragem
de suas colunas: compensa a modesta profundidade com um estímulo sincero à
reflexão.

A obra é construída a partir de uma perspectiva crítica sobre nossa


sociedade, na qual a competição para ser bem-sucedido, ser aceito e despertar
admiração é absoluta, e absorve atenção e recursos. Brooks deplora e confronta o
narcisismo hegemônico. O autor advoga o cultivo de virtudes como simpatia,
humildade, generosidade e autocrítica. Sua mensagem é singela. Em lugar de
lutarmos pela construção do curriculum vitae perfeito, deveríamos dar mais atenção à
vida interior e ao desenvolvimento moral. O argumento é ilustrado pela descrição
da vida e obra de figuras históricas, as quais, segundo o autor, deveriam nos
inspirar. The Road to Character não é obra explicitamente religiosa, porém o autor
escreve como um hábil e esclarecido pastor.

Tivesse Brooks seguido outro caminho, e buscado ilustrar seu ponto de vista
com figuras que refletem e sustentam a sociedade narcísea, não lhe faltariam
exemplos. Em um texto publicado pela revista acadêmica Business and Management
Review, José Samuel de Miranda Melo Júnior e Carlos César Ronchi, dois
pesquisadores do Maranhão, realizam essa tarefa. Os autores tomaram como lente
67
teórica a literatura que estuda o narcisismo nas organizações. Eles analisaram
dezenas de entrevistas de CEOs de grandes empresas brasileiras, concedidas a
revistas e jornais de grande circulação. O resultado é tragicômico.

Melo e Ronchi classificaram trechos significativos das entrevistas em quatro


categorias, denominadas: egocentrismo (exibicionismo, imponência, valorização do
eu); centralismo grandioso (falta de empatia, indiferença, sentimento de suficiência);
liderança ambiciosa (agressividade, propensão a riscos, intolerância à crítica); e
perfeição imaginária (ambição por prestígio, idealização das próprias realizações,
discurso majestoso).

As pérolas fariam enrubescer o mais blasé dos lacanianos. Um dos CEOs,


especialmente intenso em egocentrismo, declarou: “Só tenho marcha para frente”;
“Alguém vai ter que fazer uma estátua para mim em algum lugar”; “Eu sou um
compositor que faz música. As minhas notas, por acaso, são dinheiro”. Um artista!

Outro CEO, forte em liderança ambiciosa e em perfeição imaginária, lançou


ao mundo: “Eu tive de lidar com operários e foi uma das experiências mais ricas da
minha vida. Ali pude entender as pessoas e soube o que querem de um líder:
justiça”; “Os nossos números são impressionantes, porque o Brasil é muito grande.
A empresa é boa para o País, não só para os seus acionistas”. Um verdadeiro
filantropo!

Um terceiro CEO, também forte em perfeição imaginária, registrou para a


posteridade: “Se uma empresa não aceitar as nossas condições, basta olhar para o
lado que há outras, fazendo fila para conseguir um lugar nas nossas prateleiras”;
“Vem dando certo há 57 anos, não tem razão para mudar. E não vai mudar”; “Não
tem outro grande. O grande sou eu”. Bonaparte, cuida-te!

Os autores da pesquisa constataram, nas entrevistas analisadas, percentuais


altos nas quatro categorias, com forte destaque para a perfeição imaginária.

68
Parecem ser comportamentos comuns dos executivos buscar obsessivamente a
glória, inflar suas realizações e polir com esmero sua própria imagem.

No livro The Culture of Narcissism (W.W. Norton), publicado em 1979, o


historiador norte-americano Christopher Lasch realizou uma ampla análise das
raízes e manifestações do narcisismo patológico na sociedade, sugerindo que as
mudanças estariam relacionadas a um novo perfil de líderes. Ernst Kretschmer, um
psiquiatra alemão de geração anterior à de Lasch, registrou em uma carta: “Há algo
curioso a respeito de psicopatas. Em tempos normais, nós especialistas formulamos
opiniões sobre eles. Em tempos de agitação política, eles nos governam”.

69
O fim do trabalho?
Tendências econômicas e tecnológicas sugerem a acentuação do declínio
dos empregos estáveis, de tempo integral.

O trabalho é ideia milenar, nem sempre muito apreciada. A Grécia (antiga)


não o tinha em grande conta, considerando-o um inimigo da virtude, a cercear os
homens de suas mais nobres aptidões, as quais deveriam ser desenvolvidas na
filosofia e na política. As sociedades industrializadas modernas, contrariamente aos
gregos, celebram o trabalho como valor central, algo capaz de gerar riqueza e bem-
estar, beneficiando o indivíduo e a sociedade.

Entretanto, algumas tendências em curso sinalizam o declínio dos empregos


estáveis, de tempo integral. Esse é o tema da matéria de capa da revista The Atlantic
de julho/agosto de 2015, assinada por Derek Thompson. A matéria é ilustrada com
imagens que simulam um museu do futuro: na página 50, traz um executivo com
pasta e celular (legenda: “trabalhador de tempo integral, circa 2016”); na página 52,
traz um operário com capacete e planilha de controle (legenda: “homem de fábrica
do início do século XXI, extinto”). A pergunta subjacente ao texto é crua: e se o
trabalho desaparecer?

A crise econômica do final dos anos 2000 e a presente recessão brasileira nos
relembraram do drama do desemprego. Quando cortam quadros ou encerram
atividades, as empresas projetam uma sombra sobre as comunidades: a arrecadação
diminui, o consumo cai, os serviços básicos são afetados, a coesão cultural é
enfraquecida e multiplicam-se patologias sociais e os dramas pessoais.

Os últimos séculos foram marcados por reinvenções sucessivas do trabalho:


da agricultura para a indústria e desta para os serviços. As transições foram
70
traumáticas, porém cada estado final representou uma evolução em relação ao seu
ponto de partida, com mais empregos e mais riqueza. Entretanto, as tendências
atuais apontam para a criação de uma massa paralela de destituídos, sem emprego
ou competências para subsistir em um mundo intensivo em tecnologia.

Thompson identifica três grandes tendências. A primeira tendência é a


superação do trabalho pelo capital. Desde os anos 1980, as empresas investiram em
reestruturações e em automação industrial, buscando formas eficientes para
organizar o trabalho e automatizar seus processos. Resultado: enxugamento dos
quadros e uma perda progressiva do poder de barganha do trabalho diante do
capital. A segunda tendência é o desaparecimento progressivo do trabalhador.
Estatísticas norte-americanas indicam um aumento inexorável do percentual de
homens que não estão trabalhando nem procurando por trabalho. A terceira
tendência relaciona-se ao avanço das tecnologias de informação (e comunicação).
Os impactos de mudanças tecnológicas podem levar anos para se manifestarem.
Porém, quando ocorrem, são contundentes. Vendedores, caixas, atendentes e
funcionários de escritórios são os primeiros na linha de fogo.

O trabalho preenche três funções sociais: é uma forma pela qual a economia
produz bens, um meio pelo qual as pessoas garantem seu sustento e uma atividade
que provê sentido e propósito para a vida das pessoas. O que ocorrerá se as três
tendências acima mencionadas se aprofundarem? A primeira função social parece
cada vez menos dependente de trabalhadores. A economia poderá continuar
produzindo bens, com menor número de empregos. Porém, sem salário, quem os
consumirá? A segunda função social poderá ser substituída, uma vez que há outras
atividades que podem prover sentido e propósito para os indivíduos. Mas o que
ocorrerá com a terceira função social? Como continuar garantindo o sustento sem
uma oferta condizente de empregos?

Muitas pessoas detestam sua profissão, seu emprego ou ambos. Porém,


perder o ganha-pão pode ser trágico. Nos países desenvolvidos, a infraestrutura

71
madura e as redes de proteção social, aliadas a certa criatividade individual e doses
crescentes de empreendedorismo, poderão tornar a vida na informalidade laboral
passável, até recompensadora. Nos países em desenvolvimento, a transição poderá
ser mais dura e trágica.

Entretanto, o pessimismo necessário deve ser temperado com doses


homeopáticas de otimismo. Trabalhos estáveis e de tempo integral talvez sejam
vistos no futuro como peculiaridade de uma época. Os nostálgicos talvez lamentem
seu desaparecimento. Outros talvez celebrem seu declínio, como uma porta aberta
para o cultivo das virtudes, como desejavam os antigos gregos.

72
A polêmica arte da persuasão
Livro analisa obras seminais que ajudaram a moldar a visão crítica sobre
a publicidade e o consumo.

A história moderna da publicidade tem origem no século XIX, tendo


experimentado grande expansão com a industrialização norte-americana, no início
do século XX. A indústria do tabaco foi pioneira da produção e do consumo em
massa, ajudando a desenvolver técnicas para seduzir o contingente crescente de
trabalhadores urbanos.

Na primeira metade do século XX, as propagandas eram veiculadas


principalmente em jornais, revistas e nas paredes dos bondes. Na segunda metade
do mesmo século, o rádio e a TV ganharam espaço. Nas últimas décadas, as
ferramentas de busca e as mídias sociais atingiram primazia. Mudou a forma,
permaneceu a essência.

Na superfície, alguns excessos foram aparados. As propagandas de cigarro


foram praticamente banidas e há crescente restrição à veiculação de publicidade
destinada a crianças. O anacronismo mantém-se: um setor criado há mais de 100
anos para dinamizar a industrialização continua operando com o mesmo ideário e a
mesma velocidade em um mundo que mostra sinais de esgotamento de recursos.
Bom momento para repensar hábitos de consumo e práticas publicitárias.

Incômodos Best-sellers, USA, de José Carlos Durand, lançado em 2015 pela


Edusp, traz uma profunda análise histórica da evolução do consumo e da
publicidade, desde o final do século XIX. Durand, professor de estudos culturais na
USP, realizou percurso original: identificou autores e obras de sucesso que
examinaram a publicidade e o consumo com lente crítica.
73
Sua lista inclui sete influentes obras: A Teoria da Classe Ociosa (1899), de
Thorstein Veblen; A Tragédia do Desperdício (1925), de Stuart Case; Os Persuasores
Ocultos (1957), de Vance Packard; A Sociedade Afluente (1958), de John Kenneth
Galbraith; O Pacto Rompido (1975), de Robert Bellah; As Contradições Culturais do
Capitalismo (1976), de Daniel Bell; e A Cultura do Narcisismo (1983), de Christopher
Lasch.

Experiente cientista social, Durand foi rigoroso em sua missão. Cada época
foi explorada em suas características econômicas, sociais e culturais. Cada autor
recebeu uma minibiografia, que contextualiza ideias e livros. A trajetória tem início
com os “anos dourados”, período que vai do término da Guerra Civil até o fim do
século XIX, marcado pela acumulação de capital e pela concentração econômica.
Cruza períodos de depressão e prosperidade. O epílogo traz o leitor aos dilemas e
grandes questões dos nossos dias: neoliberalismo, ordem corporativa, religião,
consumo e cidadania.

A antropóloga Livia Barbosa assina o sintético, porém notável prefácio,


observando que: “A publicidade/propaganda é uma das polêmicas instituições
culturais da sociedade de consumo, um dos inúmeros rótulos que utilizamos para
denominar a sociedade contemporânea em que vivemos. Ele sugere que entre nós
o consumo desempenha um papel que vai muito além daquele que tem ou teve nas
demais sociedades. Ele nos define”.

Segundo alguns de seus detratores, a publicidade/propaganda nos induz a


desejar e adquirir bens e serviços de que não necessitamos, ilude-nos pelos
símbolos e imagens, leva-nos ao materialismo e à busca insaciável do status, afasta-
nos dos valores humanos e deixa-nos um vazio existencial. As obras exploradas por
Durand permitem identificar os contextos socioculturais nos quais brotaram essas e
outras concepções críticas.

74
De Vance Packard, o autor destaca o papel da publicidade de manter a
audiência atenta ao que se situa acima de seu nível de consumo: “Nos últimos anos,
[os publicitários] têm estado muito ocupados tratando de descobrir coisas
relacionadas com classe social e status, e aplicar suas descobertas para dar forma a
seus apelos de venda”.

De Christopher Lasch, Durand ressalta um desabafo nostálgico contra o


mundo do consumo: “Os obstetras encarregam-se do nascimento; os pediatras são
responsáveis pelas enfermidades e curas de uma criança; o professor, por sua
inteligência; o supermercado e a indústria de alimentação, por seu alimento; a
televisão, por seus mitos”.

Incômodos Best-sellers, USA contém múltiplas narrativas, sobre a sedução pela


publicidade, sobre a corrupção dos valores, e, mais recentemente, sobre a
apropriação do consumo pelo consumidor, como ato de teor político. O poder que
os primeiros críticos viam na publicidade surge ao final da leitura contextualizado e
relativizado.

75
Procuram-se líderes
Divagações imperfeitas sobre o nebuloso fenômeno do colapso da
liderança.

The Leadership Quarterly é a mais notável, entre várias revistas científicas


dedicadas ao tema da liderança. Publica seis edições por ano, 10 ou mais artigos em
cada edição. Considerando que cada artigo científico tem em média oito mil
palavras, são quase 500 mil palavras por ano. E a revista está em seu 26º ano de
publicação!

Os temas tratados pelo periódico são variados e frequentemente exóticos: os


modelos asiáticos de liderança, as emoções dos líderes, aspectos cognitivos da
liderança, a integridade dos líderes, a biologia da liderança e muito mais. Tanta
reflexão talvez ajude a entender o fenômeno. No entanto, parece ainda longe de
ajudar a produzir melhores líderes.

Os manuais de gestão costumam definir liderança como a capacidade ou


habilidade de exercer influência social, levando um grupo, organização ou
comunidade a realizar determinadas tarefas ou atingir determinadas metas.

Na ciência administrativa, os esforços para entender o fenômeno da


liderança vêm de longe. Os primeiros estudos focavam os traços pessoais de
grandes líderes, tais como visão estratégica, autonomia, energia, criatividade,
autoconfiança e sociabilidade. Estudos posteriores avançaram no sentido de
compreender a influência do ambiente: líderes bem-sucedidos em determinados
contextos podem colher fracassos desconcertantes em outros contextos.

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A partir dos anos 1990, ganharam popularidade os estudos sobre o carisma
dos líderes: sua suposta capacidade de inspirar os liderados a atingir níveis mais
altos de desempenho. Tomaram também a ribalta os estudos sobre o chamado líder
transformacional, aquele capaz de conduzir processos amplos e desafiadores de
mudança nas organizações.

As décadas seguintes foram menos pirotécnicas e mais reflexivas. Fraudes e


falências levaram alguns heróis da glória ao desterro ou ao cárcere. O picadeiro,
outrora ocupado por grandes ilusionistas, foi tomado por marionetes, figuras de
pequena estatura e falastrões de escasso repertório. As ilusões acerca dos grandes
líderes deram lugar a uma quieta desilusão, temperada por doses consideráveis de
cinismo e conformismo. Ali e acolá surgiram estudos críticos, a analisar o colapso
da liderança.

Em um influente artigo publicado há quase 40 anos no Journal of Applied


Behavioral Science, Linda Smircich e Gareth Morgan propuseram uma definição
alternativa para o fenômeno da liderança, como o processo pelo qual um ou mais
indivíduos interpretam e definem a realidade para os demais. Assim, certos
indivíduos emergem como líderes porque conseguem interpretar o contexto e
explicá-lo de uma forma original e convincente, que viabiliza determinados cursos
de ação. Eles articulam o que estava implícito, não dito ou pouco compreendido,
usam imagens e narrativas, alteram o foco de atenção e fazem com que os demais
compartilhem sua visão, reconhecendo-os como dignos timoneiros.

Em contextos estruturados e institucionalizados, como em grandes


empresas, os direitos de definição da realidade são reconhecidos e formalizados.
Líderes ancoram-se em papéis, processos e práticas. No entanto, se falharem
repetidamente em sua missão de interpretar e definir a realidade, podem perder
legitimidade, levando o processo de liderança ao colapso.

77
Quando o poder de definir a realidade é perdido, grupos de liderados
permanecem operando sem direção. Frequentemente, emerge uma disputa entre
aspirantes a líderes. Tais situações podem perdurar, gerando o caos.

Em nosso mundo hipersimbólico, povoado por falastrões esbaforidos e


mídias histriônicas, o grito e a pirotecnia levam nítida vantagem sobre a razão e a
sensibilidade. As lutas deixam de ser travadas no mundo da substância e dos fatos e
avançam pelo etéreo universo dos discursos desencarnados e dos símbolos de
incerto significado.

Em tais contextos, líderes decadentes operam titubeantes, em meio a uma


densa neblina, a manipular fiapos de sentido e doses primitivas de emoção,
cercados por aspirantes belicosos e liderados atônitos. A trupe segue destino
incerto, amiúde em alta velocidade. Em tais situações, podem vir a vencer os
operadores do mínimo múltiplo comum, aliás, mestres da divisão mais do que da
multiplicação.

78
Uma nação de videotas
Muitos profissionais portam-se no trabalho como se estivessem diante da
TV, a aguardar estímulos para sorrir, sofrer e agir.

Executivos costumam reclamar, lamurientos, da passividade e da falta de


iniciativa de seus funcionários: diretores reclamam de gerentes, gerentes reclamam
de supervisores e supervisores reclamam de analistas. A culpa é frequentemente
imputada à tal da cultura organizacional, uma entidade etérea, com poderes
mágicos.

A questão da cultura organizacional vem alimentando os sonhos e os


pesadelos de gestores há três décadas. É frequentemente vista como panaceia capaz
de explicar e resolver todos os males empresariais. Perdemos competitividade?
Precisamos mudar a cultura! Nossa produtividade está estagnada? É um problema
de cultura! Nossos lucros desapareceram e os concorrentes estão avançando? Culpa
da cultura!

Estudiosos costumam definir cultura organizacional como um conjunto de


pressupostos, criados e validados ao longo do tempo, que definem a forma como
as pessoas se comportam, como as decisões são tomadas e como as ações são
conduzidas. Em uma empresa, a cultura organizacional determina o que é certo e
errado e molda a forma de agir e de gerir.

Os artefatos – o ambiente físico, os comportamentos e as práticas de gestão


– são a parte mais visível da cultura, porém constituem apenas a ponta do iceberg. O
que verdadeiramente importa são os tais pressupostos básicos, nem sempre visíveis
ou explícitos, que constituem a base do iceberg.

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A perspectiva da cultura leva a perceber que toda organização funciona
como uma tribo, habitando uma caverna, com costumes, rituais e comportamentos
específicos. O que é normal para uma organização pode parecer excêntrico ou até
mesmo absurdo para outra.

Nos anos 1980, ganharam notoriedade os estudos realizados por Gert


Hofstede, que agrupou países de acordo com traços culturais dominantes. A
abordagem caiu no gosto de acadêmicos, consultores e executivos, por ajudar a
interpretar e explicar muitos comportamentos nas organizações. O estudo de
Hofstede revelou que o Brasil é um país com alta distância hierárquica (que aceita a
repartição desigual do poder) e alta aversão ao risco (ansioso e inquieto diante de
situações desconhecidas).

Ainda nos anos 1980, a Fundação Dom Cabral, de Belo Horizonte, divulgou
estudo revelando traços negativos da “gestão à brasileira”: predomínio da visão de
curto prazo, desamor pelo planejamento, centralização das decisões, tendência para
o autoritarismo e delegação para cima, o impulso de empurrar as decisões mais
relevantes e arriscadas para outrem.

De lá para cá, muita coisa mudou, porém alguns traços resistiram ao tempo.
Em um texto publicado em 2015 no jornal Valor Econômico, Betânia Tanure, que
vem estudando a questão da cultura organizacional há décadas, conclama os povos
locais a trocar a passividade pelo protagonismo. A consultora refere-se a mais um
traço da cultura brasileira: a postura de espectador. Esse traço manifesta-se,
segundo ela, de modo independente do nível hierárquico e reflete-se em
comportamentos como passividade, baixa iniciativa e a tal da delegação para cima.
Tanure atribui esse traço à nossa longa convivência com o autoritarismo, que
cerceia a visão crítica e estimula o conformismo.

Nos últimos anos, a questão da cultura organizacional voltou à moda.


Empresas locais criaram e divulgaram listas de traços culturais desejáveis. Muitas

80
dessas listas são vazias e inócuas, frutos das mentes de redatores criativos. Outras,
entretanto, refletem desejos sinceros (quiçá ingênuos) de estimular mudanças. As
semelhanças entre as listas podem ser mais do que coincidência. Nove entre 10
listas contêm itens como capacidade de tomar a iniciativa, foco no resultado e
protagonismo. Na mira: o combate à postura de espectador.

Eduardo Dal Lago, um consultor de cultura organizacional, vem trabalhando


há anos em um antídoto para a postura de espectador. Dal Lago observa que
muitos executivos interpretam a postura de espectador como falta de segurança
para assumir responsabilidades ou como pura preguiça. Alguns optam por
aumentar o nível de controle, o que piora o problema, pois estimula ainda mais a
postura de espectador. O antídoto não é simples: envolve desligar o pensamento
automático, que condiciona nossas atitudes e ações, desenvolver o pensamento
crítico e alterar deliberadamente comportamentos, por meio da educação e da
delegação. Desligar a TV é apenas o primeiro passo.

81
O futuro do trabalho
Tendências observadas nas indústrias criativas sugerem o que está por vir
em outros setores.

Quando se observam carreiras e profissões, tem-se a sensação de que tudo


que era sólido agora se desmancha no ar. O mago (ou vilão) transformador
costuma ser a tecnologia, força capaz de abalar indústrias e desestruturar trajetórias.

O impacto é especialmente visível nas carreiras das indústrias criativas e da


mídia. Nos últimos 20 anos, as indústrias musicais, as editoras de livros, as revistas
e os jornais foram impactados pelas novas tecnologias de informação e de
comunicação. Mudou a forma de produzir. Mudou a forma de trabalhar. Mudou
para melhor ou para pior? Há controvérsias. Os arautos do fim do mundo
denunciam a precariedade galopante das novas relações de trabalho. Os profetas do
admirável mundo novo advogam que as novas tecnologias turbinam a criatividade,
escancarando as portas do mercado para as mentes mais brilhantes.

Steve Johnson é um escritor norte-americano dedicado a temas relacionados


à ciência, tecnologia e inovação. Situa sua pena no último grupo. Em um longo
texto publicado no jornal The New York Times, em agosto de 2015, Johnson escreve
sobre a emergência da economia digital e suas consequências sobre a cultura, as
indústrias criativas e seus profissionais. Argumenta que o apocalipse anunciado
algumas décadas atrás não se materializou. É verdade que muitas empresas e
empregos desapareceram. Entretanto, segundo ele, a produção cultural está em alta
e os profissionais do campo têm, hoje, mais oportunidades de trabalho do que
antes.

82
Nas indústrias musicais, a tecnologia barateou a produção e transformou a
distribuição. As gravadoras e as lojas de discos deixaram o palco. Empregos foram
perdidos, mas não necessariamente os empregos dos artistas. Os músicos deixaram
de ganhar dinheiro com discos e voltaram seu foco para as apresentações ao vivo.
A queda de renda de uma atividade foi compensada pelo aumento de renda na
outra. Além disso, a redução dos custos de produção e de distribuição permitiu aos
músicos gravar e disponibilizar suas obras com facilidade e baixo custo.

A história da indústria editorial apresenta similaridades com a história das


indústrias musicais. A venda de livros impressos continuou a aumentar, mesmo
depois da introdução dos e-books. Além disso, os livros impressos continuam
sustentando uma fatia substancial do mercado. Novos autores e livros surgem
todos os dias.

Para os artistas, o novo mundo do trabalho traz oportunidades e desafios.


Favorece os profissionais que conseguem adaptar-se a um portfólio amplo de
atividades, em lugar de buscar especialização em um único caminho de carreira. De
fato, as possibilidades de inserção comercial multiplicaram-se. Músicos podem hoje
compor jingles para publicidade, trilhas para cinema, TV, teatro, videogames e para
uma infinidade de aplicativos para smartphones e tablets. Podem dar cursos
presenciais, em escolas, e cursos virtuais, por meio do YouTube. E podem, ainda,
apresentar-se em casas noturnas, em teatros e em salas de concerto.

As inúmeras possibilidades abertas pelas novas tecnologias e seus


desdobramentos no mercado de trabalho tornaram a carreira musical, como outras
carreiras artísticas, mais factíveis. No entanto, sobreviver nesse novo mundo exige
novas competências, relacionadas à gestão da própria carreira, como se fosse um
negócio. E todo esse mar de oportunidades não significa que pagar as contas ficou
mais fácil. De fato, o jogo continua desigual, com uma base numerosa e
malremunerada e um topo restrito e milionário.

83
A tendência da chamada “carreira portfolio”, na qual o profissional é
empreendedor de si mesmo e gerencia diferentes atividades e projetos, não é nova
nem é exclusiva das indústrias criativas. Muito antes da internet, músicos e outros
artistas dividiam seu tempo entre diferentes atividades. Médicos e consultores há
muitos anos administram múltiplas frentes de trabalho.

Não há novidade, mas há acentuação e aceleração do fenômeno, para o bem


e para o mal. O novo contexto cria novas oportunidades, porém demanda
mudanças que comumente se situam além da capacidade dos profissionais. Com
isso, gera ansiedade e frustração, criando com frequência dramas pessoais de difícil
superação, dramas que tendem a se multiplicar, à medida que outras indústrias e
profissões são afetadas.

84
PARTE 2: O CAPITALISMO SELVAGEM E AS EMPRESAS

85
Os novos quebra-galhos
Pressões externas, combinadas com caos interno, estão levando à
transformação de uma velha prática social em uma nova função
gerencial.

No filme What Just Happened (no Brasil: Fora de Controle), Robert De Niro
interpreta Ben, um produtor de cinema de Hollywood. A obra, dirigida pelo
veterano Barry Levinson, registra as desventuras do acossado personagem entre
egos incontroláveis, personalidades excêntricas e tipos extravagantes.

Ben é o centro (vacilante) de forças opostas. Seu filme mais recente está
passando por testes cruciais de público, antes do lançamento. A plateia reage
friamente e choca-se com o final sangrento. O instável diretor inglês luta para
manter a concepção “artística” original. De olho no provável desastre de bilheteria,
o estúdio pressiona por mudanças no final do filme. O diretor reage como prima-
dona contrariada, mas simula aceitar os cortes.

Dramas paralelos mantêm os nervos de Ben à flor da pele. O processo de


separação de seu segundo casamento segue aos trancos e barrancos. Bruce Willis,
principal estrela de um novo projeto, reage com selvageria às exigências do papel.
O estúdio ameaça cancelar o projeto. A vida profissional de Ben assemelha-se à sua
vida pessoal: um mar revolto, a ser enfrentado com doses medidas de fatalismo,
obstinação, paciência e autocontrole. Qualquer deslize pode romper o precário
equilíbrio e iniciar um aterrorizante movimento ladeira abaixo. Seu único objetivo
parece ser sobreviver, mantendo-se à tona.

Levinson retrata, com olhar cínico e satírico, as entranhas do cinema norte-


americano. Segue extensa linhagem de filmes sobre a icônica indústria. O cinema
86
adora criticar (e celebrar) o próprio cinema. Com frequência, seus diretores
debruçam-se com disposição e prazer sobre as próprias entranhas.

Curiosamente, outras indústrias têm costumes e modos similares aos da


indústria cinematográfica. De fato, a atividade de produtor existe em diversos
outros setores: na música, na mídia, na moda, na propaganda e na organização de
eventos. O mesmo tipo de atividade permeia funções diversas em outras áreas.
Coordenadores de logística, gerentes de produto, gestores de projetos, consultores
internos e muitos outros gestores partilham algumas características com os
produtores: eles vivem no centro da tormenta, buscando permanentemente
soluções para responder a pressões antagônicas. Sua tarefa é fazer as coisas
acontecerem, apesar de tudo e apesar de todos.

O quebra-galho, como personagem social, existe há tempos, porém


habitando as margens da sociedade. Dedicava-se, com discrição, a resolver
pequenos inconvenientes, lubrificar burocracias emperradas e prover soluções
rápidas, ainda que imperfeitas. As diferenças entre o quebra-galho do século XX e
seu descendente contemporâneo são a magnitude e a frequência dos problemas.
Com desafios cada vez maiores e mais constantes, o quebra-galho foi promovido.
Ele (ou ela) está hoje integrado à vida empresarial, faz parte da média gerência, tem
status e goza de reconhecimento.

O quebra-galho corporativo do século XXI surge da confluência de dois


movimentos: de um lado, a crescente pressão por rapidez, agilidade e flexibilidade,
um movimento externo, determinado pelas forças do volúvel mercado; de outro
lado, a também crescente pressão por controle, conformidade e previsibilidade, um
movimento interno. Como a equação é insolúvel, é saída é ter agentes especiais,
capazes de navegar pelas frestas do sistema e fazer com que as coisas aconteçam.
Afinal, alguém precisa manter o barco em movimento, apesar de toda a turbulência
externa e de toda a confusão interna.

87
Tornar-se um quebra-galho não é para qualquer um: é preciso reprimir o ego
e manter o autocontrole, mesmo diante de calamidades iminentes. Além disso, é
preciso adotar o estilo 24/7 (24 horas por dia, 7 dias por semana). Ele (ou ela)
precisa estar permanentemente conectado. Seu melhor amigo é o smartphone. Seu
pesadelo recorrente é ficar confinado em um local sem sinal para o celular. Um
verdadeiro quebra-galho não relaxa jamais.

A dedicação total tem seu preço: o fim da vida privada. Com o passar do
tempo, a intensa atividade interfere no metabolismo e causa dependência. Fica cada
vez mais difícil viver sem o ritmo marcado pelos desafios e sem a satisfação das
pequenas vitórias. O seu trabalho é reconhecido, mas a recompensa não é certa. Os
lauréis costumam ser transferidos para os andares superiores da pirâmide
corporativa.

Muitas organizações têm chamado seus quebra-galhos de


intraempreendedores ou de empreendedores internos. Esperam que eles “tomem a
iniciativa”, “ajam como donos” e “resolvam os problemas”. O título e o discurso
são pomposos. A dura realidade é que as empresas precisam de profissionais
capazes de fazer com que elas funcionem, apesar delas mesmas.

88
Afogando-se em números
Alguns gestores públicos parecem fascinados com certas práticas de
empresas privadas. Antes de adotá-las, seria prudente conhecer os efeitos
colaterais.

Em um mês, dois casos significativos: um na Indonésia, outro nos Estados


Unidos. Em Java, a mãe de um adolescente revelou à mídia local que seu filho,
durante um exame nacional, fora forçado por seus próprios professores a passar
suas respostas para colegas menos capazes. A atitude da mãe foi motivada pela
recusa da escola em aceitar sua denúncia. Como se não bastasse o constrangimento,
a honrada genitora teve que enfrentar a ira dos pais dos colegas de seu filho,
horrorizados com seu “egoísmo”. A divulgação do caso abriu caminho para
denúncias de histórias similares. Os professores, acossados, passaram a culpar a
pressão que suas escolas sofrem para conseguir bons resultados nos exames
nacionais, os quais condicionam a obtenção de recursos do governo.

Enquanto isso, do outro lado do mundo, em Atlanta, um drama parecido se


desenrolava. Uma comissão indicou irregularidades em larga escala no sistema
escolar da cidade. Durante a realização de exames, professores forneciam as
respostas aos estudantes, permitiam que alunos com baixo desempenho escolar
copiassem dos colegas mais capazes e até preenchiam eles mesmos as folhas de
respostas. A investigação apontou que as irregularidades ocorriam desde 2001. Para
espanto dos cidadãos, durante o período das falcatruas, a superintendente das
escolas de Atlanta fora premiada pelos resultados excepcionais alcançados pelos
estudantes locais. Na raiz do problema, a mesma causa do drama indonésio: a
pressão por bons resultados nos exames, que determinam o recebimento de
recursos do governo.

89
Há vários pontos comuns entre os dois casos: primeiro, o uso de sistemas
unificados de avaliação escolar; segundo, a utilização de indicadores de
desempenhos para medir e comparar resultados; e terceiro, a pressão pela melhoria
dos resultados, que podem condicionar os recursos alocados para as escolas. Até aí,
nada de errado: tudo soa racional e razoável. De fato, decidir de modo
transparente, com base em fatos e números, é premissa para realizar uma boa
gestão, alocando recursos da melhor maneira possível.

Os modernos sistemas de gerenciamento de desempenho popularizaram-se a


partir dos anos 1990. Pressionadas pela abertura de mercado e pela
desregulamentação econômica, as empresas privadas investiram na modernização
de suas práticas. O voo nos céus turbulentos do novo ambiente empresarial exigia
painéis mais completos e sofisticados, com indicadores que registrassem o
desempenho de toda a organização.

Com o passar do tempo, pelas mãos de consultores e gurus, as novas


práticas migraram das empresas privadas para as empresas públicas e para os
órgãos de governo. Afinal, quem poderia discordar da racionalidade das decisões
baseadas em fatos e números? Infelizmente, a vida real nem sempre se ajusta aos
idílicos manuais de administração. Os manuais vêm cheios de fórmulas e receitas,
transbordam razão e lógica. Já a vida real é povoada por imperfeições, interesses
ocultos e manobras escusas; limita a razão e, frequentemente, atenta contra o bom
senso.

O observador acidental, que deitar sua vista sobre uma moderna corporação
privada, nela observará números em harmonia, cientificamente desdobrados e
controlados, cada profissional ciente de suas metas e responsabilidades. No
entanto, uma visita mais atenta possivelmente lhe revelará uma realidade
desconcertante, povoada por executivos que manipulam resultados financeiros para
engordar seus bônus, gerentes que escolhem deliberadamente indicadores que lhes
favorecem a avaliação de desempenho, e profissionais que distorcem metas e

90
escondem números conforme sua conveniência. Maior a pressão por resultados,
maior a tendência para maquiá-los.

Curiosamente, gestores públicos vez por outra se fascinam com práticas de


empresas privadas, adotando-as sem pudor ou crítica. Deslumbram-se com a
fachada e ignoram as entranhas. Tais adoções eventualmente produzem benefícios,
mas também podem gerar efeitos colaterais. Não é fácil discordar de princípios tais
como transparência na gestão, decisões baseadas em fatos e números, e promoção
da meritocracia. No entanto, esperar que a aplicação de certos modelos de gestão a
sistemas corrompidos por décadas de turbidez, patrimonialismo e personalismo
gere bons resultados, sem considerar o contexto humano e cultural destes sistemas,
é ingênuo e irresponsável.

Mudanças tecnocráticas, que celebram soluções técnicas, em detrimento dos


aspectos sociais e culturais, são capazes de provocar manchetes laudatórias nas
revistas de negócios e de promover seus arautos, mas podem também gerar
comportamentos de faz de conta e efeitos colaterais ruinosos; que o digam os pais
de alunos indonésios e norte-americanos.

91
A vista da cobertura
Pesquisa revela a visão de presidentes de empresas sobre oportunidades
e desafios do cenário econômico além das turbulências imediatas.

Presidentes de empresas compõem uma casta à parte. Eles têm funções vitais
similares às de outros mortais, porém algo genético, comportamental, astrológico
ou paranormal separou-os de seus semelhantes e colocou-os em um
compartimento especial do planeta, um andar superior. Um aspecto da vida no
topo é inegavelmente um privilégio: a vista. Pois os habitantes da cobertura estão
ao menos um andar acima de seus semelhantes. De sua torre de observação, eles
veem tempestades aproximando-se, aproveitadores espreitando, políticos
conspirando, corruptos tramando, lobistas interferindo e seus pares observando-os.
De fato, a vista da cobertura é parte essencial e estratégica de sua função. Sem a
vista ampla, eles não poderiam decidir e agir.

Uma pesquisa realizada pela PricewaterhouseCoopers (PwC), uma empresa


internacional de auditoria e consultoria, consultou 1.200 líderes empresariais e de
governo, inclusive 31 moradores de coberturas: presidentes de empresas das
Américas, da Europa, da Ásia, da África e da Oceania. Os resultados revelam um
quadro amplo sobre as oportunidades e os desafios do cenário econômico, mirando
além das turbulências imediatas.

A pesquisa revela que, com a Europa e a América do Norte enfrentando


mau tempo econômico, as empresas estão procurando crescimento sustentável em
recantos mais amenos do planeta. O capital foge das tempestades. Com isso, o
desafio para as grandes empresas é desenvolver diferentes abordagens estratégicas
para diferentes contextos econômicos. Afinal, o passo de crescimento dos países
desenvolvidos é metade do passo de crescimento dos países emergentes. Para as
92
empresas multinacionais, cresce a importância de suas operações asiáticas e latino-
americanas, com a China liderando o ranking de atratividade. Mas os olhares já
transcendem os BRICs (Brasil, Rússia, índia e China) e miram a África, em função
de seus recursos naturais e de suas oportunidades de negócios.

Quando perguntados sobre fontes de suprimentos para abastecer suas


empresas, 11% dos respondentes apontaram o Brasil. O país ficou em quinto lugar,
atrás da China (37%), Estados Unidos (22%), Índia (15%) e Alemanha (14%).
Porém, os perfis são diferentes: enquanto China e Índia se diferenciam pelo baixo
custo, Estados Unidos e Alemanha distinguem-se pela qualidade e pela inovação. O
Brasil fica em posição intermediária nos três quesitos: perde em custos dos
primeiros e perde em inovação e qualidade dos últimos, o que pode ser visto como
uma posição indefinida e vulnerável.

Apesar da instabilidade que atinge grandes economias do mundo, o grau de


confiança dos gestores ouvidos é alto. Mirando o crescimento, a pesquisa
identificou três pontos focais para direcionar as empresas: inovação, talentos e uma
agenda comum com o governo. A questão da inovação relaciona-se principalmente
à ascensão de uma nova classe média nos países emergentes e à demanda por
produtos especialmente projetados para as suas necessidades. Não se trata de
bombardear os recém-endinheirados com engenhocas tecnológicas, mas de atender
de maneira criativa as necessidades desses (novos) consumidores.

A questão da escassez de talento é identificada como grande gargalo para o


crescimento das empresas: teme-se não ter quadros com competências suficientes
para viabilizar seus planos de expansão. Além disso, em mercados de trabalho
aquecidos como o brasileiro, a rotatividade é alta, instabilizando os quadros e
dificultando a gestão. Conforme observou um entrevistado, salário não é tudo. É
preciso que as empresas ofereçam aos seus funcionários uma relação proveitosa de
longo prazo, coisa que poucas sabem fazer.

93
A questão do relacionamento com o governo emerge como tema essencial
para garantir a competitividade, em áreas tais como educação, saúde e
infraestrutura. Naturalmente, a relação com o poder público é delicada, um pântano
no qual vicejam lobistas inveterados e corruptos famintos. Ainda que não faltem
motivos para aproximação, a relação é difícil e cheia de interesses conflitantes.
Anda assim, conforme observou Marcelo Odebrecht, um presidente brasileiro
entrevistado, as parcerias público-privadas possibilitam fazer certos investimentos
com alocação ótima de riscos e responsabilidades, liberando os recursos do
governo para a área social.

Os resultados da pesquisa indicam que os habitantes da cobertura estão


mirando o horizonte mais amplo e reconhecendo que seu direito à vista depende de
sua capacidade de mover suas empresas em direção aos interesses de clientes,
governo e sociedade. Não se trata de altruísmo, mas de uma pragmática
necessidade de negócios. Tanto melhor que beneficie os moradores dos andares
mais baixos e das cercanias.

94
A fatiga do decisor
Casar ou comprar uma bicicleta? Eis a questão. Estudos científicos
revelam como o cansaço mental interfere em nossa capacidade de tomar
decisões.

Nos filmes Smoking e No Smoking, de 1993, o respeitado cineasta francês


Alain Resnais conta seis histórias. Em determinado momento de cada uma delas, os
personagens têm a vida mudada por decisões tomadas. Resnais responde nos filmes
a uma pergunta angustiante e onipresente: o que teria acontecido se nós tivéssemos
decidido de outra forma? O roteiro, adaptado de uma peça do dramaturgo inglês
Alan Ayckbourn, é engenhoso e trata um tema instigante: nossas decisões, mesmo
aquelas prosaicas, podem mudar nossa existência e a de outras pessoas. De fato,
nossas linhas do destino às vezes parecem saídas do caderno de um calígrafo
aluado. Pequenas decisões, para as quais não damos grande importância, acabam
gerando enormes efeitos. Ou, como sugere a Teoria do Caos, uma borboleta
batendo asas na Amazônia causa um tufão no Texas.

Na vida pessoal, nós convivemos permanentemente com a necessidade de


tomar decisões: a que filme assistir, que livro ler, onde morar, que caminho tomar...
a lista é longa. E a essas decisões acrescentamos outras tantas, tomadas na vida
profissional: que projeto aprovar, quando lançar um produto, que preço cobrar,
quem contratar, quem demitir... essa lista também é longa.

O prezado leitor deve lembrar-se de ocasiões nas quais foi torturado por
uma decisão, ou por uma série delas. Por exemplo, a compra de um novo
computador. O simples mortal que se aventurar em um site de compras ver-se-á em
um labirinto de informações e alternativas. Cansado e humilhado, talvez tenha que
ser salvo por um sobrinho nerd. Outro exemplo fatídico: as decisões de
95
investimentos. O feliz herdeiro de um tio-avô distante provavelmente verá a sua
alegria financeira transformar-se em profunda angústia quando tiver que enfrentar
um gerente de aplicações, com sua conversa cifrada, seus números disparatados e
suas taxas ocultas. E mais um exemplo, ainda mais tenebroso que os anteriores: as
festas de casamento. Organizar tais eventos, com restrição de recursos e sob
intensa pressão familiar, constitui desafio para o qual poucos estão preparados.
Fazer lista de convidados, escolher o local e a decoração, definir os pratos e as
bebidas: para decidir sobre todos esses detalhes, e outros mais, é preciso paciência
inesgotável e bolsos profundos.

Paul Nutt, um professor emérito da Universidade Estadual de Ohio, nos


Estados Unidos, dedicou sua vida profissional a entender e explicar os processos de
tomada de decisão. Seu foco foram as decisões tomadas nas empresas. O
pesquisador avaliou centenas de decisões em organizações, tais como a GM, a
Toyota e a NASA. Concluiu que, mesmo nesses impérios da racionalidade e da
eficiência, metade das decisões tomadas falha. Imaginemos o resto!

Em um trabalho científico, publicado em fevereiro de 2011 nos Proceedings of


the National Academy of Sciences e divulgado pela mídia internacional, o pesquisador
Shai Danziger e colaboradores avaliaram as decisões tomadas por juízes em mais de
1.000 casos de pedidos de liberdade condicional. O estudo revelou que a taxa de
concessão era mais alta no início do dia e após as duas interrupções diárias, caindo
a quase zero nos períodos imediatamente anteriores às interrupções. Para explicar o
resultado duas hipóteses, foram levantados: primeiro, o tempo decorrido desde a
última refeição – juízes com mais fome são mais rigorosos; segundo, o número
provocado pelas decisões tomadas em série – juízes mais cansados tendem a tomar
decisões mais “fáceis”, que mantêm a situação existente, o que, nesse caso, significa
a permanência do encarceramento.

Tomar decisões constitui um processo estressante, que compreende


múltiplos raciocínios, suposições, considerações e comparações. E nem sempre as

96
informações necessárias estão disponíveis e são confiáveis. Um tomador de decisão
racional e criterioso pode facilmente se irritar diante da pressão para fazer escolhas
em meio a situações ambíguas. Além disso, por mais estruturados que os processos
se encontrem, depois de uma bateria de decisões, qualquer executivo ou
profissional pagará o preço do estresse, ou, como no caso dos juízes estudados,
transferirá o ônus de sua fatiga para terceiros. Quando estamos cansados, temos
dificuldades para tomar decisões e tendemos a seguir os caminhos mais fáceis ou o
que nos recomendam os supostos especialistas.

O que fazer? Para profissionais e executivos, o bom senso recomenda evitar


as maratonas analíticas e decisórias, e programar as decisões mais difíceis para o
início do dia. Gestores cuidadosos, em casa ou no trabalho, preservam sua
capacidade de tomar decisões, para usá-la quando é mais importante. Os calígrafos
do destino agradecem.

97
O desafio da inovação
Desde os anos 1990, a questão da inovação tornou-se central para as
empresas e para as nações. No Brasil, o tema vem avançando, mas ainda
nos faltam direção e ação.

Em agosto de 1990, a revista científica de estratégia Long Range Planning


publicou artigo assinado por P. T. Bolwinjn, da Phillips, e T. Kumpe, da
Universidade de Twente, na Holanda. Os autores haviam feito uma análise histórica
das empresas multinacionais e demonstrado que a evolução da gestão dessas
empresas havia ocorrido em ciclos, condicionados pelo amadurecimento de seus
mercados e de seus clientes. Com o tempo, elas haviam evoluído da era da
eficiência, com foco em custos, para a era da qualidade, com foco no cliente, e daí
para a era da flexibilidade, com foco no atendimento de múltiplos mercados. Os
anos 1990, indicaram os autores, seriam a década da inovação.

Hoje, passados 21 anos, nós podemos afirmar que Bolwinjn e Kumpe


estavam certos. De fato, a partir da década de 1990, a inovação passou a tirar o
sono de muitos executivos e entrou definitivamente para a agenda das empresas. O
tema passou também a integrar os currículos das escolas de negócio e gerou um
lucrativo filão para consultores e autores de livros de gestão. A razão para o culto
da inovação é simples: a abertura de mercados, a desregulamentação econômica e o
aumento da competição, fenômenos paralelos ocorridos a partir da década de 1980,
impeliram as empresas a sair de suas zonas de conforto. Para as mais agressivas, a
inovação passou a constituir um passaporte para o crescimento e para a entrada em
novos mercados. Para as mais acomodadas, a inovação passou a ser uma arma de
defesa contra os novos concorrentes, antes mantidos a distância pela reserva de
mercado.

98
Mas o que significa, afinal, inovação? Intuitivamente, relacionamos inovação
com gênios criativos e suas ideias maravilhosas. Entretanto, no mundo corporativo,
essa ideia romântica não faz sentido. Nas empresas, a inovação é um processo que
necessita de recursos, investimentos e, principalmente, talentos. Na indústria
farmacêutica, por exemplo, o desenvolvimento de um novo medicamento pode
levar mais do que uma década, ocupar dezenas de cientistas e consumir centenas de
milhões de dólares.

Outro erro comum é associar a inovação apenas com produtos e serviços.


Para as empresas, tão importante quanto criar novos produtos e serviços é inovar
em seus processos e em seus modelos de negócio. O iPod, da Apple, empresa
ícone do momento, não é apenas um aparelho para reprodução de músicas
gravadas, mas está inserido em um sistema que compreende uma rede qualificada
de fornecedores, uma loja virtual para compra de músicas, uma linha criativa de
acessórios e um posicionamento inteligente de mercado. É esse sistema que protege
a Apple dos concorrentes e ajuda a empresa a manter-se como uma das mais
valiosas do mundo.

Outro exemplo clássico de inovação em modelo de negócio é dado pelas


empresas aéreas de baixo custo. A Southwest Airlines e a Ryanair reinventaram
todos os componentes do negócio de transporte aéreo de passageiros, do sistema
de reservas ao regime de uso das aeronaves, do serviço de bordo às rotas
oferecidas. Com tal conjunto de inovações, avançaram em um mercado virgem e
mudaram definitivamente seu setor.

Além de celebrar novos modelos de negócio, a literatura de gestão sobre


inovações dá destaque a dois outros temas: as inovações de ruptura e as inovações
frugais. Clay Christensen, um professor de Harvard, vendeu muitos livros e
influenciou muitos executivos na década passada. Seu livro, O Dilema do Inovador,
popularizou o conceito inovação de ruptura, aquela que envolve uma grande
mudança, algo que altera o jogo competitivo e cria um novo mercado. Os primeiros

99
computadores pessoais e os primeiros telefones celulares foram inovações de
ruptura. O problema é que, para gerar uma inovação de ruptura, é necessário
romper com a lógica existente de fazer negócios, criando divisões totalmente
novas, com novos recursos, pessoas e processos. Fácil falar, difícil fazer.

O segundo tema destacado na literatura de gestão são as inovações frugais.


Sua origem está nos países emergentes, como o Brasil, mais especificamente nas
demandas de seus extratos de menor renda. Esse segmento de mercado é
gigantesco e promissor, porém constitui um planeta distante para empresas que
cresceram servindo a classe média. Até recentemente, tais empresas
experimentavam enorme dificuldade para entender os novos consumidores e
desenvolver produtos e serviços atraentes e baratos para servi-los. Então, entra em
campo o que Vijay Govindarajan, da Tuck School of Business, chama de inovação
reversa, ou seja, criar soluções robustas, fáceis de usar e baratas, com foco nesses
consumidores. Nessa linha, a General Electric criou um aparelho portátil e barato
de eletrocardiograma; a Nokia desenvolveu celulares baratos e equipados com
lanternas, por causa das crises constantes de falta de luz em alguns mercados; e a
indiana Tata Motors criou o Nano, um veículo vendido por pouco mais do que
dois mil dólares. O famoso carrinho, é bom registrar, está patinando nas vendas,
indicando que o modelo de negócio ainda não está bem azeitado.

Outro elemento essencial da inovação é o efeito espetáculo. Em um mundo


no qual parecer é mais importante do que ser, fazer um bom show é essencial para
promover inovações. Vejamos uma ilustração, registrada em edição passada de
CartaCapital. Em janeiro de 2010, um conhecido centro cultural de São Francisco,
na Califórnia, tinha como a atração a exposição “Heróis e heróicos”.
Significativamente, subiu ao palco de seu auditório, para um evento paralelo, um
herói moderno: Steve Jobs, então presidente da Apple. Jobs escolheu o centro
cultural para revelar ao mundo o iPad. Não se pode questionar as credenciais de
Jobs como inovador, mas ele também é um mestre da dramatização da inovação.
Aliás, segue longa tradição. Thomas Alva Edison, o inventor da lâmpada elétrica e
100
de muitos outros produtos, era conhecido como o Mago de Menlo Park e fazia uso
estudado da imprensa, criando uma ambiente de suspense antes da apresentação de
cada uma de suas novidades. Fez escola.

Os atores principais apresentam o espetáculo e manipulam os efeitos


especiais, mas a inovação é obra de um enorme contingente de profissionais.
Então, a questão essencial que se coloca é: o que torna uma organização inovadora?
De fato, são muitos ingredientes. Entretanto, três componentes são essenciais: ter
os talentos criativos, ter uma boa estrutura de apoio e fomentar uma cultura
favorável à inovação. Um gênio isolado não faz milagres. É preciso ter um quadro
bem-formado, aberto a novas ideias. No entanto, um bom quadro, sem estruturas
formais de apoio, não vai muito longe. Empresas inovadoras investem em pesquisa
e têm áreas pesadas de desenvolvimento de produtos ou de serviços. Finalmente, é
preciso fomentar uma cultura organizacional que valorize ideias novas e
perspectivas diferentes. Para tornar uma organização inovadora, é preciso combinar
com sabedoria esses três componentes.

E o Brasil, tem empresas inovadoras? Certamente. Um prêmio concedido


em 2010 pela revista Época Negócios, em parceria com a empresa de consultoria A. T.
Kearney, identificou as organizações mais inovadoras do País. Mais do que 120
empresas se inscreveram e 20 foram premiadas. Whirlpool, Basf e Embraco
subiram ao pódio principal. A primeira investiu no ritmo do lançamento de novos
produtos. A segunda apostou na criatividade para tirar a imagem de commodity de
suas tintas. A terceira procurou unir inovação e sustentabilidade e já tem 75% de
seu faturamento com produtos lançados há menos de três anos.

No entanto, apesar dos inegáveis méritos dessas e outras empresas locais, a


distância entre a Vila Olímpia e o Vale do Silício continua enorme. Quais são as
nossas lacunas? Primeiro, faltam-nos talentos. Pagamos, e continuaremos por
muito tempo pagando, o preço de um sistema educacional incompatível com as
aspirações e potenciais do País. Segundo, falta-nos planejamento. O País continua

101
sendo o paraíso dos cartórios e da burocracia, e o inferno dos empreendedores.
Temos sido distraídos e tímidos na definição de uma estratégia para fomentar
setores inovadores na economia. Terceiro, faltam-nos universidades. Nossas
instituições de pesquisa produzem pouco e mal, e estão, em geral, pouco alinhadas
com as necessidades das empresas. Muitos acadêmicos ainda veem com
desconfiança e temor qualquer tipo de aproximação com empresas. Quarto,
faltam-nos gestores que mirem horizontes mais amplos. Muitas empresas locais,
algumas de grande porte, sequer contam com áreas de pesquisa e desenvolvimento,
um primeiro passo necessário, embora insuficiente, para gerar inovações. Quinto,
falta-nos uma cultura profissional de inovação. Inovadores questionam o status quo,
correm riscos, falham e tentam novamente, levam à frente iniciativas sem garantia
de sucesso, criam redes de cooperação sem respeitar convenções ou fronteiras, e
fazem acontecer. Em suma, caminhar, nós caminhamos, mas ainda nos faltam
direção e ação.

102
Inovar ou imitar, eis a questão
Empresas e mídia de negócios vêm promovendo o culto da inovação.
Porém, pesquisador norte-americano argumenta que deveríamos prestar
mais atenção à imitação.

Uma edição recente do New York Times Magazine publicou 32 inovações que
vão “mudar o nosso futuro”. A lista contém itens curiosos. Cientistas estão
desenvolvendo roupas elétricas, capazes de gerar energia a partir das diferenças de
temperatura entre partes do corpo. Muito útil para carregar fones celulares. Resta
ver quantos dias precisaremos usar a mesma camiseta para completar a carga.

Chaotic Moon Labs, um centro de pesquisa e desenvolvimento, está


desenvolvendo um novo carrinho de supermercado, que vem com um tablet
integrado e usa o sistema Kinect, da Microsoft. O fiel transportador absorve o
perfil do cliente e segue-o pelas alamedas do consumo, indicando os itens a serem
comprados, advertindo contra violações de dieta e efetivando automaticamente as
compras. Resta saber se ele poderá moderar os impulsos de consumidores
compulsivos.

A empresa de design Frog pretende desenvolver computadores que poderão


projetar múltiplas telas em diferentes superfícies, permitindo o trabalho simultâneo
em vários assuntos. Imagine, caro leitor, o escritório do futuro, com 100 ou 200
funcionários projetando suas telas de trabalho no teto, no chão, nas costas do
vizinho. Vai ser um espetáculo.

Kazutaka Kuhihra e colegas criaram o SpeechJammer, a arma do silêncio.


Quando acionada contra um falador, ela grava a voz da pessoa e a reproduz com
um atraso de 100 milissegundos. A ação dispara um processo cerebral que emudece
103
o interlocutor. Os inventores esperam que sua criação ajude a promover a paz
mundial.

Criatividade e inovação são ingredientes básicos do capitalismo. Criar novos


produtos, serviços e processos, e transformar as criações em negócios, ajuda a
manter a grande máquina jovem e saudável. Individualmente, para as empresas, é
uma questão de sobrevivência. Inovar permite sair à frente e ganhar com a
vantagem econômica de serem únicas, por algum tempo.

Significativamente, nos últimos anos, a inovação ganhou status de fetiche e


transformou-se em objeto de culto. Livros disseminam casos de sucesso, cursos
ensinam executivos a inovar, eventos celebram o tema e prêmios reconhecem os
maiores talentos. Todos querem ser o próximo Steve Jobs. Até mesmo
organizações públicas e sociais entraram na onda.

Oded Shenkar, um professor da Ohio State University com consistentes


credenciais acadêmicas, seguiu caminho contrário. Seu livro Copycats: Melhor que o
Original (Editora Saraiva) celebra a cópia, e não o original. O pesquisador mostra
como os seguidores conseguem gerar valor copiando os originais. Coerentemente,
seu argumento também é copiado. Theodore Levitt, um decano da administração,
escreveu há tempos que a imitação está mais presente nas empresas do que a
inovação e é o caminho mais direto para o crescimento e para fazer lucros.

Shenkar observa que a história empresarial está cheia de exemplos de


imitadores que tiveram mais sucesso que os criadores originais. A RC Cola
introduziu refrigerantes dietéticos, mas foi logo copiada pelas gigantes Coca-Cola e
Pepsi. A Sony introduziu a fotografia digital, mas perdeu espaço para outros
fabricantes. O Diners Club emitiu o primeiro cartão de crédito, mas viu seu
mercado ser dominado pelos concorrentes. A imitação é a regra, e não a exceção.

O pesquisador argumenta que a imitação é uma capacidade estratégica que


pode ser desenvolvida e aplicada com sucesso. Imitar significa copiar, replicar ou
104
repetir uma inovação, seja um produto, um serviço, um processo ou um modelo de
negócios. Não se trata de pirataria, embora a linha divisória seja tênue.

A imitação permite economizar custos em pesquisa, desenvolvimento e


marketing. Além disso, reduz o risco do empreendimento, pois há um precedente de
que o novo produto ou serviço tem aceitação entre os consumidores. Ainda,
imitadores estão menos atados a tecnologias antigas e são menos complacentes e
menos inebriados com o sucesso.

Empresas eventualmente ignoram os benefícios da imitação. Entretanto,


registra Shenkar, a velocidade da imitação está crescendo tanto ou mais do que a
velocidade da inovação. Para o autor, a imitação é consistente com a inovação e
pode facilitá-la.

Copiar não é bom para o ego dos executivos, mas pode ser ótimo para o
bolso dos acionistas. O iPod não foi o primeiro reprodutor de músicas. O conceito
de tablet foi criado muitos anos antes do lançamento do iPad. Isso não impediu a
Apple de dominar o mercado e capturar enorme valor. Não se pode negar a
importância da inovação da empresa, mas seus lucros vêm de uma estratégia mais
ampla, que orquestra inovação com imitação, combinações inteligentes de
tecnologias, uma estratégia eficaz de marca e fabricação na China.

105
Vivendo perigosamente
Toda atividade empresarial implica correr riscos, mas nem todas as
empresas estão preparadas para gerenciá-los em um ambiente
competitivo e transparente.

É conhecida a saga corporativa “empresa multinacional desalmada provoca


acidente ecológico, tenta ocultar os fatos, enganar governo e ludibriar a opinião
pública”. Muda o palco, mudam os atores, mas o roteiro continua o mesmo. Um
remake recente teve como vilã a gigante Chevron, repetindo o papel interpretado,
em 2010, pela BP, no Golfo do México. Nas telas: óleo vazando, ativistas irados,
executivos evasivos e o meio ambiente ameaçado.

A Chevron é uma das maiores empresas do setor de energia do mundo. Está


presente em mais de 180 países, tem 62 mil funcionários e faturou 205 bilhões de
dólares em 2010. Suas atividades incluem cada elo das cadeias produtivas de
petróleo e gás. A empresa também investe em fontes alternativas de energia, tais
como energia geotérmica, solar e eólica.

Sua história confunde-se com a expansão do capitalismo norte-americano.


Foi marcada por inúmeras fusões e aquisições, inclusive a compra da Texaco, em
2000, e da Unocal, em 2005. Como no caso de outras grandes empresas, sua
história foi também marcada por controvérsias e escândalos. Nos anos 1950, junto
com General Motors e a Firestone, a Chevron foi acusada de comprar e
desmantelar os sistemas de transporte público urbano de grandes cidades norte-
americanas, baseado em bondes elétricos, para facilitar a entradas de frotas de
ônibus.

106
A empresa foi também acusada de manter um sistema de evasão fiscal, de
1970 a 2000, usando um projeto, na Indonésia, de tentar bloquear o
desenvolvimento de carros híbridos e de provocar danos ambientais na Califórnia,
em Angola e no Equador (uma herança da Texaco). Como sabem até mesmo os
roteiristas de Hollywood, óleo e política misturam-se de maneira nem sempre
cândida, com resultados frequentemente cruéis para o meio ambiente e para as
comunidades.

Além do petróleo, o vazamento na costa do Rio de Janeiro traz à tona um


ponto de atenção: o apetite por riscos das empresas. Como rezam os bons manuais
de gestão, toda atividade empresarial envolve riscos. O pequeno industrial corre
riscos ao comprar uma nova máquina para ampliar sua produção. O banqueiro
corre riscos ao ampliar sua oferta de crédito. O executivo da empresa de
infraestrutura corre riscos ao escavar o fundo do oceano. Quanto maior o risco,
maior o prêmio. Quem não quer correr riscos, não deve se estabelecer.

O dilema enfrentado diariamente por empresários e executivos refere-se a


que grau de risco deve ser aceito. Qualquer operação pode ser projetada para se
tornar (quase) à prova de riscos. Porém, isso tornará seus custos proibitivos e o
negócio inviável. Por outro lado, uma operação sem salvaguardas pode ser
extremamente lucrativa, porém exporá seus responsáveis a riscos astronômicos.
Então, o desafio para as empresas é dominar a tal ponto seus processos e
tecnologias que seja possível gerenciar (quase) cientificamente os riscos,
minimizando os custos de controle e maximizando os lucros. Na prática, isso
equivale a caminhar por uma corda bamba. Qualquer pequeno deslize pode
provocar uma queda.

Certas empresas, em função de sua história e cultura organizacional, são mais


avessas a riscos. Contratam executivos mais conservadores e tomam decisões
fundamentadas em análises cuidadosas. Outras empresas são mais propensas ao
risco. Atraem executivos mais agressivos, que seguem seus instintos. Quando

107
operam em mercados pouco regulados ou com governos corruptos, tais empresas
encontram um ambiente propício para correr riscos. Quando o prêmio é grande e a
pena é leve, aumenta o apetite por riscos.

Nas duas últimas décadas, o avanço das tecnologias de informação e


comunicação, combinado com maior sensibilidade coletiva para questões sociais e
ambientais, provocou impactos consideráveis sobre o mundo corporativo e sobre o
comportamento de empresários e executivos. Hoje, uma denúncia de trabalho
escravo na Ásia pode causar a perda de contratos na Europa; um acidente
ambiental na África pode derrubar o preço das ações em Nova Iorque.

Imagem e reputação, os chamados ativos simbólicos, subiram na escala de


prioridades executivas. Nas grandes empresas, aumentou a preocupação com o
impacto social, multiplicaram-se as áreas de responsabilidade social corporativa e
cresceu o orçamento de projetos sociais. A partir do bolso, o espírito selvagem dos
capitalistas vai sendo domesticado, senão na essência, ao menos na aparência.
Efeito colateral: uma redução do apetite por riscos.

A saga da Chevron ainda ganhará alguns capítulos. O comportamento dos


atores está sendo observado de perto pela plateia e pelos colegas de palco. A
epopeia da exploração do pré-sal dará ensejo a muitas sagas. Preparemos o
estômago!

108
Os herméticos
É cada vez mais difícil entender a linguagem esotérica e abstrata de
certos profissionais e executivos.

Cavernas diferentes, dialetos diferentes. Três décadas depois que a dupla


Thatcher & Reagan puxou a descarga da globalização, previsões e premonições de
um mundo de organizações e práticas gerenciais homogêneas não se concretizaram.
Embora o rolo compressor do management, apoiado pelas escolas de negócios, pelas
empresas de consultoria e pela mídia de negócios, tenha operado sua mágica
homogeneizadora, mantém-se considerável diversidade entre as organizações. Um
cavernícola que trocar sua gruta empresarial por outra terá provavelmente que
passar por um período de longa adaptação aos novos modos e costumes. E ai do
cavernícola que não se esmerar no domínio do novo dialeto e da nova prosopopeia.
Seu destino mais provável será o isolamento e o desterro.

Uma consequência dessa diversidade e dos múltiplos dialetos é a dificuldade,


enfrentada por um interlocutor neutro, para compreender os cavernícolas. Dan
Pallotta, que mantém um blog no website da revista de negócios Harvard Business
Review, declarou que, em aproximadamente metade de suas conversas sobre
negócios, não tem a mínima ideia do que seus interlocutores estão falando.
Confessa que, quando jovem, sentia-se tolo por não entender o que as outras
pessoas diziam, mas que agora suspeita de que a tolice seja de seus interlocutores,
por não conseguirem se fazer entender.

O autor identifica algumas manifestações curiosas do fenômeno. Uma delas


é o “abstracionismo”, a prática de substituir palavras simples e de domínio público
por expressões empoladas e complicadas. Por exemplo, uma simples maçaneta
pode ser transformada em uma “inovação em acesso residencial” e um
109
investimento duvidoso pode ser magicamente transmutado em uma “aplicação
estruturada em derivativos de perfil agressivo”. Outra manifestação é a proliferação
de expressões de grande efeito e pouco significado, tais como “pensar fora da
caixa”, “quebrar paradigmas”, “provocar inovações de ruptura”, “adotar a
estratégia do oceano azul” e “encantar os clientes”.

O fenômeno descrito por Pallotta conta mais de três décadas. Desde os anos
1980, o mundo corporativo vem desenvolvendo dialetos peculiares. A origem tem
base comum, mas suas manifestações parecem ter se multiplicado. Primeiro, vieram
os consultores, apropriando-se inventivamente do vernáculo para embalar velhas
ideias com novos significados. Sua criatividade oral foi retratada com exemplar
ironia em uma anedota, popular nos anos 1990, na qual é perguntado a um
consultor porque, afinal, uma galinha atravessa a rua, ao que o profissional
responde: “A desregulamentação da economia estava ameaçando sua posição
dominante no negócio. A galinha teve que enfrentar desafios para criar e
desenvolver as competências essenciais para o novo mercado competitivo. Nossa
consultoria orientou a galinha a repensar sua estratégia. Usando um Modelo
Galináceo Integrado (MGI), a consultoria ajudou a galinha a usar seu capital social
para alinhar os recursos dentro de um framework de classe mundial. Um programa
de sete passos foi realizado para alavancar seu capital intelectual, tanto tácito
quanto explícito, e possibilitar um aumento da sinergia para agregar valor à cadeia
produtiva. Tudo foi conduzido em direção à criação de uma solução holística e
sustentável. Em suma: a consultoria ajudou a galinha a tornar-se uma galinha de
sucesso”. Em tempo, a resposta certa seria: para chegar ao outro lado da rua.

O mundo girou e os consultores cederam seu lugar aos financistas, ainda


mais herméticos e obscuros. Consulte, o prezado leitor, um desses especialistas
sobre a prosaica possibilidade de investir seu décimo terceiro salário, arduamente
preservado das orgias natalinas, e talvez escute algo como: “Temos uma ótima
opção, trata-se de uma operação de CRI relativamente longa (15 anos na série mais
curta). Mas a rentabilidade esperada é a da NTN-B 2018 + um spread máximo de
110
0,737%, a ser formado em leilão. Hoje uma NTN-B 2018 paga IPCA + 5,235% –
para quem aposta no Brasil e, consequentemente, na convergência da taxa real de
juros. E fica mais interessante porque essa rentabilidade é líquida de IR para PF”.
Simples, não?

Que fazer? Talvez, no futuro, os softwares de tradução, que hoje já são bem
sofisticados, evoluam a ponto de permitir a conversão, em tempo real, dos dialetos
corporativos para a língua pátria. Mas não nos iludamos. Provavelmente, ainda se
passarão muitos anos até que um sistema de inteligência artificial seja capaz de
decifrar e consertar problemas oriundos do uso exótico que certos profissionais e
executivos fazem de suas habilidades verbais.

111
Pasárgada maculada
Pesquisa aponta quatro comportamentos viciosos, comuns entre
executivos, que minam o comprometimento e a relação saudável com o
trabalho.

Os livros de gestão e as revistas de negócios parecem ser editados em uma


ilha da fantasia. O tom, criado por escritores, jornalistas e editores, é ufanista. Os
textos são comumente laudatórios. Na Pasárgada corporativa, ninfas e efebos
aspiram postos executivos, empreendedores audaciosos encontram potes de ouro e
empresários experientes revelam risonhos como chegaram ao topo. Nesse mundo
encantado, o trabalho duro move as carreiras e o mercado recompensa as empresas
virtuosas. A estética da Pasárgada corporativa é peculiar. Sua paisagem destaca
arranha-céus envidraçados, pátios repletos de contêineres coloridos, campos
geometricamente cultivados, linhas de montagem robotizadas e executivos mirando
o horizonte. Da Pasárgada corporativa, foram banidos os jogos de poder, os golpes
baixos e os lobbies escusos. De lá, todos os sujos, feios e malvados foram
deportados.

Vez por outra, entretanto, a mídia da Pasárgada corporativa abre espaço para
tratar de desvios e desviantes. Uma edição recente da revista McKinsey Quarterly
trouxe artigo de Teresa Amabile, uma professora de Harvard, escrito em parceria
com Steven Kramer, um pesquisador independente, sobre o comportamento
vicioso de alguns líderes. Segundo os autores, muitos executivos de alto nível
rotineiramente minam a criatividade e a produtividade de seus liderados. Amabile e
Kramer analisaram mais de 800 diários eletrônicos de profissionais envolvidos com
projetos de inovação em sete empresas. A investigação resultou na identificação de
quatro comportamentos sabotadores.

112
O primeiro comportamento sabotador é a emissão de sinais de
mediocridade. Ocorre quando a alta gestão estabelece uma agenda audaciosa de
mudanças, baseadas em inovações em produtos e serviços. No entanto, no dia a
dia, os executivos continuam se preocupando com os gastos com as copiadoras e o
cafezinho. Amabile e Kramer citam o caso de uma das empresas pesquisadas, na
qual a alta gestão fomentou a formação de equipes autônomas multifuncionais,
voltadas para o desenvolvimento de produtos inovadores. No entanto, na prática,
os executivos cerceavam a liberdade dos grupos e preocupavam-se somente com
redução de custos.

O segundo comportamento sabotador foi denominado ironicamente de


desordem de deficit de atenção estratégica. Toda empresa precisa monitorar
continuamente o ambiente para poder definir suas ações. Deve identificar
mudanças no comportamento dos consumidores, movimentos dos concorrentes,
tendências econômicas e tecnológicas. A realidade, na prática, é bem diferente. Em
muitas organizações, o ambiente é monitorado de maneira aleatória, informações
irrelevantes são supervalorizadas e fatos relevantes são ignorados. Muitas ações são
definidas, mas poucas são implementadas e raras são acompanhadas. As mudanças
de direção são constantes e mal comunicadas, gerando sensação de falta de rumo e
descrédito.

O terceiro comportamento sabotador é o isolamento crônico. Muitos


executivos agem como se liderassem exércitos bem-treinados e disciplinados,
operando com metas claras e sob padrões bem-definidos. Vivem em uma redoma
protegida, à qual só chegam boas notícias. Entretanto, fora da redoma, impera o
caos, e a gestão lembra antigas comédias-pastelão. Processos e normas existem
apenas para inglês ver. Os gestores intermediários promovem guerras fratricidas e
muitas iniciativas importantes perecem sob o fogo amigo.

O quarto comportamento sabotador é o desvirtuamento de objetivos


ambiciosos. Seguindo a pregação de seus gloriosos gurus, a alta gestão divulga uma

113
visão audaciosa de futuro e informa objetivos agressivos, comumente envoltos com
um forte apelo emocional para os funcionários. No entanto, tais declarações
frequentemente não passam de artefatos de retórica, com pouco significado para o
pessoal da linha de frente. As visões de futuro costumam ser tão extremas que são
vistas como inviáveis. Forma-se, então, um vazio, que alimenta o cinismo e a
inércia.

Esses quatro comportamentos têm efeitos negativos sobre os profissionais e


sobre o desempenho das empresas. Eles interferem na relação que cada indivíduo
constrói com seu trabalho e com a organização. Algumas empresas vergam sob o
peso da inépcia de seus executivos sabotadores. Perdem talentos e clientes. Veem
seu desempenho definhar até, finalmente, fecharem as portas. Outras,
curiosamente, vencem os anos sem abandonar os vícios. Como explicar? Talvez
sejam menos viciosas que suas concorrentes, ou, quem sabe, compensem os vícios
com algumas virtudes ou truques baratos. A maior força da Pasárgada corporativa,
como se sabe, é fazer seus habitantes acreditarem que realmente vivem em
Pasárgada.

114
A vida na gaiola
Os modernos escritórios empresariais foram supostamente projetados
para facilitar a comunicação e fomentar o trabalho coletivo. Na prática,
efeitos colaterais frequentemente superam essas vantagens.

O trabalhador do século XIX foi, tipicamente, um agricultor, labutando ao ar


livre e sofrendo a ação das intempéries. O trabalhador de parte considerável do
século XX foi, tipicamente, um operário, labutando em uma fábrica e sofrendo
com o calor, o ruído e o ritmo da linha de montagem. O trabalhador do século
XXI é, tipicamente, um ser dos escritórios, labutando de sol a sol com um
computador à sua frente e dezenas de colegas ao seu redor.

Do final do século passado para as primeiras décadas do presente século, a


arquitetura dos escritórios mudou sensivelmente: o crescimento das empresas,
combinado com o aumento do preço do metro quadrado nas grandes cidades,
levou as organizações a adensarem seus espaços de trabalho. Com isso, as salas
deram lugar às baias; as baias deram lugar às células com divisórias; e, agora, as
células estão dando lugar às mesas comunitárias.

Os modernos escritórios foram projetados para facilitar a comunicação,


estimular o trabalho coletivo, fomentar a produtividade e a eficiência. No entanto,
não são poucos aqueles que amaldiçoam a vida nas modernas gaiolas corporativas,
com o ruído permanente de conversas indesejáveis, as interrupções frequentes de
colegas inoportunos, o grasnar de celulares, o martelar ritmado de teclados, o
coaxar estridente de cafeteiras e o uivar mecânico de copiadoras.

Por trás da arquitetura aberta, há um conceito de gestão. O mundo


corporativo tomou como premissa que a inteligência coletiva é superior à
115
inteligência individual, e que trabalhar em grupo é melhor do que trabalhar sozinho.
Os gênios solitários que se lixem. A vez agora é dos extrovertidos, dos entusiastas
da vida social e do pensamento grupal.

Porém, como alerta Susan Cain, em artigo publicado pelo New York Times, é
melhor ir devagar com o andor porque o santo é de barro. Com base em diversos
estudos científicos, a autora coloca em xeque o pressuposto de que a colaboração e
o trabalho em equipe tornam as organizações mais produtivas.

Primeiro argumento: algum trabalho em grupo pode ser estimulante e até


divertido. Trocar experiências e aprender com a vivência de colegas enriquece a
visão que temos da realidade, pode mudar nossa percepção sobre os problemas e
até levar a soluções que não imaginaríamos sozinhos. Porém, na prática, trabalhar
em grupo significa participar de reuniões sem rumo nem fim e ser obrigado a
interagir com colegas que não têm a mínima ideia do assunto tratado ou que agem
exclusivamente em interesse próprio. Além disso, muitos indivíduos, quando atuam
em grupos, portam-se como espectadores, mimetizam as opiniões de colegas e
acomodam-se à pressão dos pares.

Segundo argumento: grupos frequentemente focam o próprio umbigo e


desenvolvem raciocínios viciosos, ignorando perspectivas externas e reforçando o
status quo. Eles costumam chegar a soluções de compromisso, que costuram
interesses políticos, mas evitam correr riscos e tomar decisões mais duras, que
podem ser necessárias em situações de crise.

Terceiro argumento: alguns estudos revelam que o trabalho em escritórios


abertos é insalubre, tornando os profissionais mais predispostos a sofrer de pressão
alta, estresse e exaustão. Além disso, torna-os mais distraídos, inseguros e hostis, e
ainda prejudica a produtividade.

Quarto argumento: em geral, as pessoas são mais criativas quando têm


privacidade e ficam livres de interrupções. De fato, o isolamento ajuda a mente a se
116
concentrar, induz momentos de transcendência e facilita a criatividade.
Significativamente, muitos profissionais inovadores são indivíduos introvertidos e
individualistas. Eles se sentem mais confortáveis trabalhando sozinhos, donos de
sua própria agenda e ritmo de ação.

Que fazer? Voltar ao modelo individualista e à arquitetura de salas separadas


é inviável. Susan Cain sugere uma solução de equilíbrio, com ambientes de trabalho
que permitam a interação entre os profissionais, porém lhes facilitem momentos de
isolamento e reflexão. A autora acerta no diagnóstico, porém é ingênua na solução.
Esquece que uma razão (implícita) para a existência de escritórios abertos é o
chamado controle social. Ambientes abertos colocam os profissionais em constante
situação de atenção.

O escritório do século XXI é uma reinvenção do panóptico idealizado por


Jeremy Bentham no século XVIII: um centro penitenciário no qual os ocupantes
estão permanentemente sob vigilância. Juntam-se à arquitetura os modernos meios
de informação e comunicação, garantindo que os habitantes das gaiolas
corporativas se comportem com o decoro esperado. Criadores, inovadores e
empreendedores que procurem outro endereço.

117
Imagem apagada
Vítima de choques tecnológicos externos e dificuldades internas para se
adaptar aos novos tempos, a icônica Kodak foi ao solo.

Autópsias não são agradáveis, mas podem ao menos ser didáticas. Há não
muito tempo, a Eastman Kodak Company entrou com pedido de concordata nos
Estados Unidos. Foi vítima de duas gigantescas ondas de mudanças tecnológicas: a
fotografia digital e os smartphones, com câmeras embutidas. Na última década, viu
seus resultados minguarem sem conseguir encontrar a nova direção dos lucros.

A empresa, com sede em Rochester, nos Estados Unidos, foi fundada por
George Eastman no final do século XIX. Eastman introduziu o rolo de filme,
inovação que ajudaria a definir os rumos da indústria pelos 100 anos seguintes. Ele
acreditava que o sucesso viria de um produto barato e simples de usar: “você aperta
o botão e nós fazemos o resto”. Além do foco no cliente, a Kodak adotou os
princípios que fizeram dela um gigante mundial: produção em massa, custo baixo,
distribuição extensiva, propaganda intensiva e investimentos em pesquisa e
desenvolvimento.

Desde os primeiros anos, os resultados da empresa vieram da venda de


filmes, e não das câmeras. Na organização, as câmeras eram vistas apenas como um
meio para vender os filmes. Segundo estudo de caso desenvolvido por Giovanni
Gavetti, Rebecca Henderson e Simona Giorgi, da Harvard Business School, isso
fez com que o centro de poder da empresa se localizasse em sua gigantesca planta
de fabricação de filmes. Seus presidentes quase sempre vinham da manufatura e
passavam pela escola de negócios do MIT. Com isso, a empresa forjou uma cultura
conservadora, avessa a riscos e arrogante.

118
Em meados da década de 1970, o modelo ainda funcionava como um bom
relógio suíço e fazia com que a Kodak controlasse 90% do mercado de filmes e
85% do mercado de câmeras dos Estados Unidos. Foi no ápice que começaram a
surgir ameaças. Em 1981, a Sony anunciou o lançamento da Mavica, a primeira
câmera digital, provocando um terremoto emocional na Kodak.

A resposta da empresa foi diversificar seus negócios, investindo em


copiadoras, diagnóstico médico e produtos farmacêuticos. Enquanto focava novos
negócios, competidores penetravam no mercado norte-americano com produtos
mais baratos, colocando em risco a vaca leiteira da Kodak. Ao mesmo tempo, a
empresa investiu em digitalização, porém usando um sistema híbrido, que
combinava a antiga tecnologia com a nova. O fotógrafo levava seu rolo de filme
para um centro de digitalização, que transpunha as imagens para um CD. As
imagens poderiam, então, ser vistas em um computador ou em uma TV conectada
a um equipamento especial de reprodução. A história, como se sabe, levou a
fotografia para outra direção.

Mais uma década, mais mudanças, novos modelos de negócios,


investimentos na China, desenvolvimento de tecnologia digital e muito mais.
Muitas tentativas, alguns acertos, mas não o suficiente para reverter o movimento
ladeira abaixo. Em 2011, as vendas foram de aproximadamente seis bilhões de
dólares, porém somando prejuízos substantivos. A força de trabalho, que atingira
um pico de 145 mil funcionários na década de 1980, caíra abaixo de 20 mil
funcionários. O preço da ação despencou.

Em matéria recente, a revista britânica The Economist comparou a trajetória da


Kodak com a trajetória da Fujifilm, sua rival japonesa. Ambas se esbaldaram
durante os anos de quase monopólio em seus mercados domésticos e ambas
sofreram os impactos das novas tecnologias. Entretanto, a Fujifilm vale hoje mais
do que 12 bilhões de dólares e a Kodak vale 220 milhões de dólares.

119
O que explica a diferença? Enquanto os japoneses realizaram um processo
eficaz de diversificação, os norte-americanos perderam tempo e dinheiro com
tentativas malsucedidas. Analistas também apontam a cultura de complacência e
isolamento da Kodak, que teria impedido a percepção de ameaças e de
oportunidades, e a adoção de ações mais firmes de mudança.

Tudo isso, naturalmente, é fácil de notar depois do velório. Executivos e


empreendedores, de grandes e pequenas empresas, frequentemente observam as
grandes ondas de mudança se aproximando, venham elas das novas tecnologias ou
venham elas do planeta Ásia. Mais difícil é prever quando cada onda chegará, que
impacto trará e definir o que fazer a respeito.

Algumas empresas duram mais do que 100 anos, superando mudanças


tecnológicas, recessões, guerras e trocas de comando. Porém, elas constituem um
seleto grupo de exceções. A maior parte sucumbe aos primeiros anos de existência.
George Eastman foi um empresário inovador e empreendedor. No final da vida,
sofreu com dores de coluna e depressão. Morreu de maneira dramática, em 1932,
com um tiro no coração. Deixou uma breve nota: “Aos meus amigos: meu trabalho
está feito. Por que esperar?”. Dá o que pensar...

120
Idiotas, estúpidos e simpatizantes
O mundo dos negócios está cheio de babacas em altos postos. Portanto,
é preciso ser estúpido para ter sucesso... Ou não?

A sacada foi de Tom McNichol, em texto veiculado no website da revista The


Atlantic. Escreveu o autor: “Steve Jobs foi um visionário, um inovador brilhante
que remodelou indústrias inteiras pela força de sua vontade, um gênio na
capacidade de dar aos consumidores o que eles queriam, mas não sabiam que
queriam. Ele foi também um babaca de primeira classe”.

Isso mesmo, leitor, o cultuado criador da Apple, super-herói dos negócios,


fênix empreendedora, mago dos produtos eletrônicos, foi, certamente, brilhante e
carismático. Porém, revela a biografia escrita por Walter Isaacson, foi também
petulante, rude e hipercontrolador. Na empresa, humilhava seus funcionários e
assumia o crédito pelo trabalho dos outros. Não era muito melhor na vida pessoal:
estacionava seu carro em lugares reservados para deficientes e evitou reconhecer a
paternidade de sua filha. Em suma, era uma contradição ambulante.

A leitura da biografia de Jobs, best-seller em vários rincões do planeta, talvez


estimule alguns babacas, que se acham gênios, a exteriorizar sua estupidez. Quiçá,
como sugere McNichol, a nova safra de livros de negócios nos brinde com títulos
tais como: Os Sete Hábitos dos Babacas Altamente Eficazes, O Babaca-minuto ou Quem foi o
Babaca que Mexeu no Meu Queijo? Aos quais poderíamos acrescentar: O Monge e o
Executivo Babaca, A Inteligência Emocional do Babaca e Babaquice para Dummies.

No entanto, apesar dos casos de Jobs e de outros gênios que se comportam


frequentemente como babacas, não se pode afirmar que haja causalidade entre uma
característica e outra. Robert Sutton, um professor de gestão da Universidade de
121
Stanford, nos Estados Unidos, e autor de um livro sobre o tema – The No Asshole
Rule: Building a Civilized Workplace and Surviving One that Isn't –, acredita que a
presença de idiotas na empresa envenena o ambiente e induz a saída de bons
funcionários. Sutton define idiotas como indivíduos que propositalmente fazem
seus colegas se sentirem mal sobre si mesmos, hostilizando especialmente os mais
fracos.

Então, se idiotas, estúpidos e congêneres são ruins para o ambiente


organizacional e para os negócios, como explicar o caso Jobs? E como explicar
dezenas de outros casos? De fato, é difícil encontrar uma organização que não
tenha pelo menos um babaca na diretoria, eventualmente no posto de primeiro
executivo.

Certo nível de babaquice é natural e aceito. Somos frequentemente tolerantes


em relação às excentricidades e excessos de amigos e colegas. E eles com as nossas.
Nas empresas, o nível de tolerância à babaquice aumenta com a distância relativa
entre o babaca e o tolerante (primeiro axioma). Presidentes são modestos babacas
com seus diretores, mas podem ser tornar tremendos babacas com gerentes
juniores. Além disso, quanto menor o nível na pirâmide, maior o nível exigido de
tolerância (segundo axioma). Na base, encontra-se o hipertolerante estagiário, que
atura a babaquice de todos acima dele e só consegue ser babaca com seu irmão
mais jovem, ou com seu cachorro. Mas seu dia de glória chegará.

Devemos aceitar que nem todos os estúpidos são estúpidos em tempo


integral. Os babacas mais experientes aprendem a dosar sua babaquice para obter o
melhor efeito. Alternam momentos de fúria intimidadora com outros de relativa
ternura, para cativar os corações mais sensíveis e sossegar os estômagos mais
frágeis. Quando no topo, costumam contar com ajudantes de ordem, que limpam
os destroços que deixam no caminho. Além disso, a estupidez pode ter ao menos
uma vantagem: ajudar a fazer o paquiderme corporativo andar, enfrentando grupos
de poder e desafiando o status quo.

122
Pergunta-chave: qual será o efeito da canonização de Jobs e da popularidade
de sua biografia? McNichol não acredita que a nova bíblia dos negócios afete o
comportamento de gestores de nível médio, de temperamento equilibrado. O mais
provável é que torne patrões que já são estúpidos ainda mais estúpidos, piorando o
clima em suas empresas.

O autor toca um ponto importante. Livros de negócios, especialmente os


mais populares, não são comprados para serem lidos. Eles servem principalmente
para adornar estantes e garantir ao comprador algumas “tiradas” para conversas de
corredor. O conteúdo é quase sempre óbvio e o sucesso vem do eco que provoca
nas estepes desoladas das mentes dos executivos: “Puxa, é exatamente o que eu
penso!”.

Neste sentido, a premonição de McNichol deve ser considerada com


seriedade. A eventual leitura, dinâmica e seletiva, da biografia de Jobs pode captar
apenas os vícios do personagem, ajudando a justificar e promover os vícios
similares do babaca leitor. Tolerantes do mundo, preparai-vos!

123
Colcha de retalhos planetária
Estudos de cultura organizacional vêm revelando sistemas corporativos
cada vez mais fragmentados. No horizonte: grandes desafios para
gestores e líderes.

Geert Hofstede é um influente pesquisador do campo da cultura


organizacional. Foi um pioneiro dos estudos interculturais. Na década de 1960,
trabalhou na IBM, empresa na qual ajudou a introduzir pesquisas de opinião dos
funcionários. No início dos anos 1970, afastou-se da organização e mergulhou na
análise de mais de 100 mil questionários que havia coletado. No final da mesma
década, iniciou a veiculação de seus estudos em livros e revistas científicas. Sua
obra tornou-se referência no campo de estudos organizacionais e transformou-o
em um dos mais citados cientistas sociais contemporâneos.

A análise original de Hofstede apontou a existência de quatro dimensões da


cultura nacional, que influenciam as atitudes e os comportamentos no trabalho.
Tais dimensões ajudam a explicar distinções entre estilos de gestão de subsidiárias
de uma mesma empresa atuando em diferentes países. As quatro dimensões
identificadas pelo pesquisador foram: distância do poder, coletivismo versus
individualismo, feminilidade versus masculinidade e aversão à incerteza.

Nos anos 1990, um grupo de pesquisadores norte-americanos retomou e


ampliou o modelo de Hofstede, dando origem ao Projeto Globe. Objetivo:
examinar as inter-relações entre cultura social, cultura organizacional e liderança
organizacional. Participaram do projeto 200 cientistas sociais de 61 países, gerando
dois livros e inúmeros artigos científicos e teses.

124
Tais estudos revelam uma colcha de retalhos planetária. Nossas atitudes e
comportamentos no trabalho variam substancialmente entre países, entre regiões e
até mesmo dentro de uma mesma organização. Até os anos 1980, as empresas
operavam em mercados regulamentados e relativamente fechados. O efeito da
diversidade era moderado por tais condições. Entretanto, as estripulias
globalizantes desmontaram fronteiras e levaram as empresas transnacionais e
operarem de maneira mais integrada. Tribos antes isoladas, com usos e costumes
peculiares, foram obrigadas a conviver e produzir juntas.

Além disso, muitas empresas passaram por sucessivos processos de


reestruturação, por fusões e aquisições, tornando-se entidades híbridas, nas quais
convivem diferentes sistemas de valores e práticas. As consequências são notáveis:
surgimento de grupos de interesse e facções, aumento do nível interno de conflito e
dificuldade para definir objetivos comuns. O novo contexto provocou o aumento
do tempo e da energia despendidos para lidar com desentendimentos e crises
internas, com consequências negativas sobre a produtividade, sobre a
competitividade e sobre a capacidade de gerar resultados.

E o fenômeno não é exclusivo do mundo corporativo. David Brooks


comentou em sua coluna no New York Times que a ideia de que a humanidade
passaria por um processo de convergência de valores, que velhos sentimentos
nacionalistas perderiam força e que caminharíamos para um futuro comum está
perdendo força. O colunista afirma que seu próprio país, os Estados Unidos,
marcado por uma história comum e forte identidade, está se tornando cada vez
mais polarizado e mais difícil de governar. Infelizmente, não é caso isolado; não
faltam crises e guerras para ilustrar a tese.

As tecnologias de informação e de comunicação, que poderiam facilitar o


diálogo e promover o entendimento, estão, paradoxalmente, alimentando a
segregação e o paroquialismo. A fragmentação social manifesta-se de várias formas:

125
entre grupos étnicos e religiosos, entre classes sociais, entre gerações, entre
profissões, entre grupos de interesse... a lista é longa.

Pesquisas mundiais sobre valores e atitudes indicam níveis crescentes de


desconfiança entre nações e uma queda generalizada no nível de confiança social e
política. A crise atual na União Europeia, além de seu fundamento econômico, é
também uma crise de base cultural, fruto da tentativa de aglutinar países com
diferentes sistemas de valores. Durante algumas décadas, foi possível encontrar
terreno comum, criar instituições e avançar com o projeto unionista. Nos últimos
anos, entretanto, as contradições afloraram, colocando em xeque o modelo.

A grande questão é: como enfrentar a crescente fragmentação? Entre nações,


o desafio está sendo endereçado, com algumas tentativas e poucos acertos, por
meio de iniciativas para renovar ou criar novas instituições multilaterais. Nas
organizações, empresários e executivos parecem travar uma luta às cegas. Muitos
buscam receitas simples e soluções mágicas, aprofundando o problema, em lugar de
resolvê-lo. A fragmentação chegou para ficar. Resta superar a perplexidade, aceitá-
la e aprender a lidar com ela.

126
A arte de pastorear gatos
O planejamento estratégico sempre foi objeto de zelo e sigilo, tema
privilegiado do topo das corporações. Agora, para garantir maior eficácia,
algumas empresas apostam na participação e na transparência.

No mundo maravilhoso da gestão empresarial, certos conceitos concorrem


ao prêmio de mais falado e menos praticado: planejamento estratégico é um deles.
Há 20 anos, a prática foi considerada moribunda, vítima das turbulências
globalizantes. Sobreviveu como artefato corporativo, com alguma pompa e pouca
utilidade. Em muitas empresas, o planejamento estratégico não é mais do que o
prosaico orçamento, ostentando um nome mais sofisticado.

Mas o mundo empresarial gira e novos conceitos surgem. Na década de


2000, ganhou popularidade entre especialistas o termo “estratégias emergentes”,
um rótulo para as múltiplas ações e decisões que ocorrem em todos os níveis da
organização. Mais do que grandes planos, que raramente viam a luz do dia, é a
soma das pequenas ações e decisões que realmente importa e determina o curso das
coisas.

Agora, acompanhando o modismo das mídias sociais, surge o termo


“estratégia social”. Matéria publicada na revista McKinsey Quarterly trata do curioso
fenômeno. O ponto de partida é que a definição da estratégia da empresa
frequentemente sofre com o distanciamento entre planejadores e os executores. Do
alto de suas torres, isolados da vida real, diretores de empresa frequentemente
perdem a sensibilidade para questões da linha de frente. Com isso, as estratégias
por eles definidas contêm lacunas e não são abraçadas pelos executores no meio e
na base da pirâmide. Naturalmente, isso pode comprometer o desempenho da
empresa. Diante do desafio, a resposta apontada pelos autores Arne Gast e Michele
127
Zanini é trazer para o processo as perspectivas e informações da linha de frente,
por meio do uso de tecnologias sociais. Tal condição garante, segundo os autores,
aumento da transparência e da participação, e um processo de escrutínio e exame
de ideias.

O artigo traz exemplos de empresas que estão empregando tal modelo. A


HLC Technologies, uma provedora de serviços de desenvolvimento de software,
cresceu rapidamente. A nova condição levou ao redesenho do processo estratégico.
Os diretores da empresa perceberam que não conseguiam mais dar conta do
conhecimento detalhado que cada unidade de negócios demandava. A resposta foi
um processo com ampla participação dos funcionários e um sistema de
aperfeiçoamento por pares. O tradicional workshop de estratégia foi substituído por
uma plataforma on-line que permite a participação de milhares de colaboradores. A
transparência ajudou a melhorar a qualidade das sugestões. O produto foi um
trabalho mais prático, com maior chance de ser aplicado.

Um processo similar ocorreu na conhecida 3M. Em 2009, a empresa decidiu


aperfeiçoar seu processo de construção da visão do futuro, etapa inicial do
planejamento estratégico. Originalmente, o processo era baseado em uma análise de
megatendências, conduzida por especialistas. O novo modelo envolveu todo o
pessoal de vendas, marketing e pesquisa & desenvolvimento, por meio de uma
plataforma eletrônica. Com isso, participaram do processo 1.200 profissionais de
mais de 40 países, gerando mais de 700 ideias, que foram consolidadas em nove
novos mercados a serem explorados pela empresa.

Muitas empresas enfrentam dificuldades com o alinhamento estratégico e


com a execução estratégica. Gerenciar grandes organizações é como pastorear
gatos. Por mais que se esforce para fixar uma direção e comunicá-la, os bichanos
raramente resignam-se aos comportamentos previstos. O resultado frequente é
uma “soma zero” que faz com que os movimentos da organização sejam restritos
pela inércia. O fenômeno pode ser observado em grandes empresas privadas,

128
inclusive renomadas multinacionais, em organizações públicas, nas quais os gatos
são particularmente manhosos e estridentes, e em organizações sociais, nas quais
todos os gatos parecem ter opiniões definitivas sobre todos os assuntos.

O aumento do nível de transparência e do nível de participação traz,


supostamente, vantagens importantes: enriquece o processo, faz com que os
profissionais entendam melhor seu papel e aumenta o grau de comprometimento
com a execução. Entretanto, não é processo simples nem tranquilo. E pode
despertar atitudes resistentes dos mestres planejadores, ciosos da liturgia do poder.

1. Para executivos no topo da pirâmide, adotar tal modelo de condução


estratégica significa utilizar a autoridade pessoal para distribuir poder. Conforme
sugerem Gast e Zanini, trata-se de uma mudança relevante de papel, de super
tomadores de decisão para arquitetos sociais. O que, obviamente, implica em
confiar na maturidade e na preparação dos funcionários, especialmente da média
gerência.

129
A arte do tempo
Pesquisador da Universidade de Minnesota procura entender fenômenos
empresariais a partir da linguagem da música.

Conta-se que, ao final de uma conferência do partido comunista, durante a


era soviética, foi realizada uma homenagem a Josef Stalin. Então, todos se
levantaram e aplaudiram com entusiasmo, por três minutos... quatro minutos...
cinco minutos... o tempo foi passando e aplaudir foi se tornando cada vez mais
doloroso, mas nenhum dos presentes se arriscava a ser o primeiro a parar. A polícia
secreta estava atenta. Os aplausos passaram dos 10 minutos e ninguém manifestava
a intenção de parar. Entre os presentes, estava o diretor de uma fábrica. Aos 11
minutos, ele parou de aplaudir, sentou-se e foi seguido pelos demais. Na mesma
noite, foi preso sob um pretexto. Seu interrogador disse-lhe para nunca ser o
primeiro a parar de aplaudir.

A historinha faz parte do livro When: The Art and Science of Perfect Timing, de
Stuart Albert. Albert é professor da Carlson School of Management, da
Universidade de Minnesota. O livro é fruto de duas décadas de pesquisa e reflexão
do autor.

O pitoresco fato ilustra um dilema comum: qual é o momento certo para


agir? Uma empresa criativa e empreendedora, ao lançar um novo produto, pode
estar se adiantando ao seu tempo e não encontrar o mercado pronto para absorver
a inovação proposta. Porém, se decidir aguardar, poderá testemunhar com desgosto
um concorrente capturar a vantagem de ser o primeiro a chegar aos clientes.

Executivos veem-se, diariamente, diante de decisões relacionadas ao tempo.


Qual o momento certo para expandir nossos negócios? Quando devemos iniciar o
130
processo de internacionalização da empresa? Devemos contratar mão de obra
agora ou aguardar o aumento da demanda? Se agirmos agora, estaremos nos
precipitando? Se não agirmos, nossos concorrentes passarão à nossa frente?

O frenesi competitivo dos últimos anos levou as empresas a buscar a rapidez


em suas ações. Quem sai na frente tem a vantagem do pioneirismo: fortalece sua
imagem, chega antes aos clientes, ocupa o mercado, consegue trabalhar com
maiores margens de lucro e inibe a ação de concorrentes. Entretanto, a rapidez
cobra seu preço. Os pioneiros podem errar nas escolhas tecnológicas, enfrentar
mercados ainda imaturos e instáveis, sofrer para convencer os potenciais clientes a
adotar a novidade e penar para operar novos canais de distribuição. As revistas e
livros de negócios estão cheios de narrativas laudatórias de empresas criativas,
porém, para cada história de sucesso, há várias histórias de fracasso, de
organizações que erraram o passo da inovação.

Por que temos tanta dificuldade para lidar com questões relacionadas ao
tempo? Os suspeitos usuais são a complexidade e a incerteza ambiental. Entretanto,
Albert acredita que o problema principal é que a forma como nós descrevemos o
mundo ao redor não inclui as sequências, intervalos, sobreposições e outras
características temporais de tudo o que acontece: de cada plano e de cada ação. Ao
raciocinar de maneira estática, empobrecemos nossa percepção sobre a realidade e,
assim, corremos o risco de tomar decisões inconsistentes.

O que fazer? O pesquisador sugere que, para conduzir melhores análises, e


assim poder tomar melhores decisões, é necessário incorporar a variável tempo:
encontrar padrões temporais e analisá-los. Albert advoga que devemos olhar para
os fenômenos a serem analisados, sejam eles decisões corporativas ou crises
políticas, como se olha para a partitura musical de uma sinfonia. Uma partitura
musical contém duas dimensões: a dimensão vertical apresenta os diversos
instrumentos e a dimensão horizontal apresenta o que cada instrumento tocará.

131
Os eventos desdobram-se de modo similar nas empresas. Muitas ações
ocorrem simultaneamente (a dimensão vertical), e cada indivíduo ou grupo segue
uma sequência própria (a dimensão horizontal), com seu ritmo e suas pausas. O
conjunto poderá produzir um resultado harmônico e prazeroso, ou apenas gerar
dissonância e ruído. Algumas empresas são verdadeiras orquestras sinfônicas, com
seus naipes perfeitamente sincronizados, produzindo música de alta qualidade.
Outras se assemelham a bandas de jazz, permitindo aos seus músicos criar e
improvisar, a partir de padrões predefinidos. Algumas outras, entretanto, perdem o
ritmo, atravessam constantemente a melodia e alienam sua audiência.

Dominar a arte do ritmo e do tempo não é tarefa simples. Leonard


Bernstein, Herbert von Karajan, Duke Ellington e Benny Goodman não se
formaram em pouco tempo. Porém, observando a ação desses mestres, e adotando
as lentes propostas por Albert, talvez possamos desenvolver nossa sensibilidade,
somar arte e ciência, e compreender melhor a inexorável experiência do tempo, nas
empresas e fora delas.

132
Panóptico corporativo
Empresas estão adotando arranjos com espaços abertos em seus
escritórios: alguns efeitos colaterais podem ser infaustos.

Eles vêm aos milhares. Nas primeiras horas da manhã, é possível vê-los
caminhando em caravanas, deixando as estações metroviárias ou descendo dos
coletivos. Alguns, mais jovens, tentam a sorte no trânsito com suas bicicletas. Os
mais graduados chegam de carro e desaparecem nos subterrâneos das torres de
vidro. O destino é um só: os escritórios das grandes corporações, onipresentes em
nossa paisagem econômica.

Até o século XIX, trabalhar era cuidar das coisas da terra. A revolução
industrial, iniciada na Inglaterra, tirou homens, mulheres e crianças do campo e
trouxe-os para os galpões insalubres das fábricas. O século XX testemunhou outra
grande migração laboral, dessa vez das fábricas para os escritórios.

Passamos 10, 12 horas por dia em escritórios. Eles se tornaram nossas


cavernas do dia, a nos proteger das intempéries e a nos impor patologias. Além de
abrigar e obrigar o trabalho, os escritórios são também sinalizadores de status: a
localização, os móveis e a decoração dos postos de trabalho revelam quem é centro
e quem é periferia na organização.

Para as empresas, o porte e a forma dos escritórios respondem a uma


questão básica: como colocar o maior número possível de pessoas no menor
espaço possível, mantendo o melhor nível de controle sem, no entanto, prejudicar a
produtividade? Comprimir centenas de funcionários em pequenos espaços pode ser
tentador, mas pode gerar impacto negativo sobre a qualidade do trabalho realizado.
É preciso buscar o equilíbrio.
133
No livro Cubeb: A Secret History of the Workplace, o jovem autor Nikil Saval
explora as origens e a história dos cubículos, ou baias, nas quais grande parte de
nós hoje trabalha. O autor observa que o design de um escritório pode exprimir
relações de hierarquia, controle e autoridade. Lembra que a origem dos cubículos
data da década de 1960, obra do designer Robert Prost, que buscava um arranjo
flexível, que favorecesse a autonomia e liberdade de ação.

A intenção era boa, porém as empresas viram no modelo uma solução


econômica para empacotar seus funcionários menos graduados em pequenos
espaços. Saval explica que, por diversos motivos, incluindo as tirinhas satíricas de
Scott Adams, as baias passaram a ser associadas com tudo de ruim que pode
ocorrer no trabalho: impessoalidade, falta de sentido, frustração e as mais diversas
doenças ocupacionais.

Agora, uma nova mudança está em curso. Há alguns anos, grandes empresas
descartaram suas baias em prol de um novo (ou não tão novo) modelo: os
escritórios abertos. Maria Konnikova, em texto veiculado no início de janeiro de
2014 no website da revista The New Yorker, apresenta interessante compilação de
estudos científicos sobre a vida e o trabalho nos escritórios abertos.

Em um levantamento baseado em mais de 100 estudos realizados sobre o


trabalho em escritórios, o psicólogo Matthew Davis concluiu que, embora os
arranjos abertos promovam entre os funcionários senso de propósito e sensação de
pertencer a uma organização moderna, o modelo reduz a capacidade de
concentração, inibe a criatividade e reduz a satisfação no trabalho.

Uma pesquisa realizada por psicólogos da Universidade de Calgary em uma


empresa canadense concluiu que a mudança para um arranjo aberto fez com que os
profissionais se sentissem mais distantes uns dos outros, insatisfeitos e ressentidos,
provocando uma queda na produtividade.

134
Além do desempenho e da produtividade, a saúde dos indivíduos também é
afetada. Um estudo realizado na Dinamarca, por Jan Pejtersen e colaboradores,
revelou que quanto maior o número de pessoas trabalhando em um único
ambiente, maior o número de funcionários que tiram licença por motivos de saúde.

Konnikova observa que barreiras físicas provêm sensação de privacidade, o


que favorece o desempenho. Espaços abertos retiram a capacidade de os indivíduos
controlarem seu próprio ambiente, gerando insegurança e prejudicando o
desempenho. Nem mesmo os profissionais mais jovens, frequentemente
entusiastas dos escritórios abertos, acostumados a distrações e a trabalhar em
regime multitarefa, são capazes de evitar as consequências adversas do arranjo
aberto. A busca das empresas pelo panóptico ideal para controlar corpos e mentes
ainda não chegou ao capítulo final.

135
Tragédias anunciadas
Ex-profissional da indústria do petróleo explica por que as grandes
empresas não aprendem com os desastres socioambientais.

A lista de catástrofes protagonizadas por grandes corporações é longa. Os


eventos mais trágicos ceifaram vidas e deixaram marcas cruéis em comunidades.
Em 1984, um vazamento de gás de uma planta da Union Carbide na cidade de
Bhopal, na Índia, expos mais de 500 mil pessoas a gases tóxicos. Estima-se que oito
mil tenham morrido nas semanas seguintes e mais oito mil desde então. Entre as
causas, foram apontadas gestão negligente, manutenção deficiente, segurança
ineficiente e até a possibilidade de sabotagem.

Em 1989, o petroleiro Exxon Valdez encalhou em uma baía no Alasca,


provocando o vazamento de milhares de toneladas de óleo cru, uma das maiores
tragédias ambientais registradas na América do Norte. Durante o acidente, o
capitão estava dormindo, depois de uma noite de bebedeira, os oficiais no comando
estavam despreparados e um equipamento que poderia ter evitado o acidente estava
quebrado.

Em 2010, a plataforma Deepwater Horizon, operada pela gigante petrolífera


BP, explodiu no Golfo do México, nos Estados Unidos, provocando mortes e
espalhando uma enorme mancha de óleo por diversos estados norte-americanos.
Além de afetar o ambiente, provocou prejuízo para as indústrias da pesca e do
turismo. Investigações apontaram medidas de redução de custos e falta de
segurança como responsáveis pelo acidente, sugerindo o aperfeiçoamento das
práticas da indústria e melhorias no sistema de regulação.

136
Em 2013, um prédio de oito andares em Bangladesh desabou, matando mais
de mil trabalhadores. O prédio era utilizado por tecelagens subcontratadas por
empresas ocidentais. Os responsáveis haviam se recusado a interromper o trabalho,
mesmo depois que rachaduras surgiram nas paredes do edifício. O proprietário do
prédio foi processado e diversas empresas ocidentais sofreram escrutínio público
por manter em suas cadeias produtivas fornecedores de baixo custo, operando em
condições aviltantes de trabalho.

O Brasil também teve seu quinhão de tragédias socioambientais. Em 1984, a


explosão de dutos da Petrobrás, que corriam sob a favela de Vila Socó, em
Cubatão, provocou mortes e destruição. Em 1987, um aparelho utilizado em
radioterapias, contendo césio-137, foi encontrado e desmontado por catadores de
ferro-velho em Goiânia, deixando um rastro de mortes e contaminação. Em 2003,
uma barragem da Indústria Cataguases de Papel rompeu, liberando licor negro no
rio, deixando milhares de pessoas sem água. Pontos comuns: ignorância, descaso,
despreparo na prevenção e na reação.

No livro The Evolution of a Corporate Idealist: When Girl Meets Oil (Editora
Bibliomotion), Christine Bader conta suas aventuras e desventuras como
profissional de responsabilidade corporativa na BP. A autora representa um
crescente exército de profissionais que atuam dentro das grandes corporações,
frequentemente em litígio com seus pares, e ainda vistos com desconfiança por
ativistas fora das empresas.

Em um artigo veiculado no website da revista The Atlantic, Christine trata da


questão: por que as empresas não aprendem com seus erros passados? A pergunta
é relevante porque ajuda a entender as tragédias. Primeiro, as pessoas mentem. A
empresa pode se comprometer com as mais rigorosas medidas de segurança, mas
há sempre gestores que escondem acidentes e trabalhadores que burlam os
sistemas. Segundo, as pessoas não falam umas com as outras. A maioria das
empresas ainda opera como um conjunto de minifeudos, dificultando ações

137
transversais voltadas para melhorar as condições socioambientais. Terceiro,
segurança e responsabilidade social custam dinheiro. Despesas com prevenção são
difíceis de justificar, enquanto cortes de custos são facilmente aprovados. Quarto,
poucas pessoas dão testemunho, e, se os executivos não perceberem o impacto de
suas decisões, não se mobilizarão por causas socioambientais. Quinto,
responsabilidade corporativa ainda é um conceito vago, confundido com
filantropia, o que dificulta ações relacionadas ao impacto dos negócios na
sociedade. Sexto, os consumidores não querem pagar mais e, a menos que eles
reconheçam o custo envolvido com uma atuação socialmente responsável, haverá
pouca chance de as empresas se movimentarem nessa direção. Conclusão:
aguardemos a próxima tragédia.

138
Grande demais para o cárcere
A admissão de culpa de um renomado banco suíço pode ser um avanço
no combate à delinquência financeira... ou não.

Ter uma conta na Suíça sempre foi sinal de prestígio, coisa para
multimilionários reservados. Afinal, Zurique não é Nassau. Agora, entretanto, o
paraíso dos argentários discretos parece ameaçado. Em maio de 2014, o Credit
Suisse, centenário banco helvético, admitiu ter agido à margem da lei, preparando e
apresentando documentos falsos de seus clientes para o IRS, a receita federal dos
Estados Unidos.

A admissão de culpa foi o ápice de uma novela que se arrastou por anos.
Eric Holder, procurador-geral norte-americano, declarou que “esse caso demonstra
que nenhuma instituição financeira, não importa o porte ou a amplitude global, está
acima da lei”. Belas palavras.

Em 2013, Holder havia informado a uma comissão do senado norte-


americano que processar criminalmente grandes instituições financeiras pode gerar
impactos negativos na economia, o que inibe decisões mais duras. A declaração não
agradou, levando a crer na impunidade dos bancos. Allie Jones, escrevendo para o
website The Wire, lamentou o fato de os procuradores norte-americanos não terem
conseguido processar criminalmente nenhuma instituição ou alto executivo
envolvido na crise de 2008.

James Kwak, no website da revista The Atlantic, observou acertadamente que


há duas formas de punir instituições financeiras: a primeira é revogar a licença de
operação e a segunda é processar os indivíduos responsáveis pelos crimes
cometidos. No caso do Credit Suisse, nenhum dos caminhos foi adotado. Em seu
139
lugar, foi estabelecida uma salgada multa de quase três bilhões de dólares, suficiente
para incomodar, mas não para balançar o banco. No dia seguinte ao desfecho do
processo, suas ações subiram.

A razão para evitar o colapso de instituições financeiras é o alto grau de


interconexão do sistema, o que pode, teoricamente, fazer com que o fechamento de
um grande banco leve a uma crise de proporções desastrosas. Em um momento no
qual a economia mundial se recupera lentamente, ninguém quer ser responsável por
deflagrar outra onda de pânico. O argumento é polêmico e talvez não se aplique ao
caso. O Credit Suisse tem capacidade para pagar a multa e um fechamento
conduzido de maneira planejada, segundo Kwak, prejudicaria apenas acionistas e
empregados.

John Gapper, do Financial Times, observou que, se uma condenação implica


apenas o pagamento de uma multa, então não serve para nada. Gapper acredita que
Brady Dougan, CEO do Credit Suisse, deveria pedir demissão. O colunista observa
que Dougan realizou por muitos anos um trabalho notável no banco e não merece
ser processado pessoalmente. No entanto, a organização que comanda admitiu ter
cometido crimes. Não foi a ação isolada de algumas “maçãs podres” que originou
as fraudes, mas uma conduta sistemática, uma maneira de conduzir os negócios.
Portanto, a melhor saída seria a renúncia do executivo chefe.

O desenvolvimento econômico ocorrido nas últimas décadas e a


concentração da renda fizeram com que aumentasse o número de milionários no
planeta. O senso de preservação do patrimônio, traço marcante dessa espécie,
estimulou a oferta de serviços especializados de investimentos, gestão do
patrimônio e, obviamente, redução da carga fiscal. Minimizar a carga fiscal é direito
de todo contribuinte, desde que as ações sejam conduzidas dentro da lei.

O caso do banco suíço traz à tona as estratégias “criativas”, empregadas por


celebridades, esportistas e outros ricaços, para fugir dos impostos. As táticas

140
utilizadas envolvem diversos expedientes, dos mais toscos aos mais sofisticados:
abrir empresas em paraísos fiscais, usar parentes e amigos como fachada, buscar
buracos nas leis, mudar de país ou simplesmente sonegar impostos.

A multa aplicada ao Credit Suisse pode ser vista como um alerta para bancos
e clientes envolvidos em práticas ilícitas. Porém, como lembrou um articulista da
BBC, pode também ser vista como uma vitória do status quo. Afinal, o banco suíço
não precisou revelar o nome dos sonegadores, nenhum alto dirigente teve que pedir
demissão e a licença para operação no mercado norte-americano foi preservada.
Segundo a revista The Economist, banqueiros classificaram a multa como mera
“inflação regulatória”. Portanto, nada para se preocupar.

141
Ritual anacrônico
A avaliação individual de desempenho é uma, entre várias, cerimônias
vazias da vida corporativa.

A vida corporativa é repleta de rituais: reuniões de diretoria, processos de


planejamento estratégico, congressos anuais de vendas, encontros com o mercado
etc. A lista é longa. Esses rituais têm função substantiva e papel simbólico: servem
a uma função prática, garantindo que o bonde siga no trilho, porém também dão
legitimidade aos líderes, provêm credibilidade às práticas gerenciais e garantem a
sustentação da cultura organizacional.

Alguns desses rituais cumprem sua missão; outros, no entanto, apenas


consomem tempo, desperdiçam recursos e aborrecem as pessoas. Esse é o caso dos
encontros de avaliação de desempenho. Utilizados por nove entre 10 empresas, sob
o patrocínio das áreas de recursos humanos, eles constituem um dos rituais mais
disseminados e menos levados a sério entre todas as cerimônias vazias da vida
corporativa.

Os encontros de avaliação de desempenho são aguardados com ansiedade e


apreensão. Os funcionários desejam uma avaliação positiva, que faça vista grossa
aos seus defeitos e valorize seus feitos. A empresa espera uma avaliação objetiva,
capaz de classificar seus funcionários de acordo com os resultados gerados e
orientá-los a melhorar. Os gestores de recursos humanos supervisionam a
contenda, ansiosos por cumprir a agenda programada. No meio do fogo cruzado,
encontram-se os chamados líderes, frequentemente despreparados, inseguros,
ríspidos ou simplesmente incompetentes. O resultado é comumente um faz de
conta, no qual atuam atores constrangidos, fazendo o máximo esforço para que
tudo termine rapidamente, com um improvável final feliz.
142
No livro Get Rid of the Performance Review!, Samuel A. Culbert (com Lawrence
Rout) critica abertamente o popular ritual. Culbert é professor da Universidade da
Califórnia, em Los Angeles, e tornou-se um pregador contra a avaliação de
desempenho, que considera uma das mais danosas práticas corporativas. Sua obra
segue outras de conteúdo similar, tais como Abolishing Performance Appraisals, de
Tom Coens e Mary Jenkins, e Catalytic Coaching, de Garold L. Markle.

A avaliação de desempenho parece sofrer de uma doença de base,


relacionada ao desencontro de expectativas: enquanto o chefe quer discutir
oportunidade de melhoria e está pensando em oportunidades perdidas e
competências limitadas, o funcionário pensa na melhor forma de avançar sua
carreira e ganhar um pouco mais. O resultado costuma ser frustrante para os dois
lados.

Outro ponto de atenção refere-se ao fato de que as avaliações de


desempenho são frequentemente realizadas sob uma aura de objetividade.
Entretanto, sabe-se que o desempenho de muitas funções e trabalhos é de difícil
quantificação. Além disso, as avaliações são muito sensíveis ao julgamento de quem
as realiza e costumam ser influenciadas por preferências pessoais e por questões
políticas.

Outro problema relaciona-se ao uso de listas de atributos para avaliar os


funcionários. Tais listas, comumente geradas por especialistas, refletem o que
supostamente é necessário realizar para garantir um desempenho adequado. No
entanto, o figurino pode não ser adequado para todos os funcionários e todas as
funções. Com isso, torna-se mais importante agradar o chefe do que realmente
apresentar um bom desempenho.

A avaliação de desempenho deveria contribuir para o alinhamento de


esforços e a motivação dos funcionários. No entanto, o resultado pode ser o
oposto. Estimulam-se o cinismo, comportamentos defensivos e conversa fiada.

143
Há alternativas? Os críticos sugerem substituir a prática anacrônica por uma
relação contínua entre chefes e funcionários, pautada pela avaliação permanente do
trabalho e de seus resultados. As gerações mais novas, habituadas à interação nas
redes sociais, seriam mais abertas a tal conduta.

Resta entender por que as empresas adotam e mantêm práticas desse tipo. A
resposta está no que os estudiosos chamam de conduta isomórfica ou
comportamentos de manada: adota-se uma prática porque, aparentemente, todos a
estão adotando. Resistir pode parecer antiquado e passar a imagem de
incompetente. Resta, por isso, conviver com rituais anacrônicos, desperdiçando
recursos e fingindo que está tudo bem. Enquanto isso, os problemas reais
continuam sob o tapete.

144
Talentos ocultos
Muitas empresas reclamam da falta de bons profissionais, mas podem
estar privilegiando os falastrões em detrimento dos produtivos.

Faltam talentos nas empresas! A suposta verdade é repetida com frequência


nas salas e corredores de organizações de diferentes portes e distintas áreas de
atuação. Consulte um executivo e ele desfilará uma longa lista de queixumes contra
seus liderados: falta visão estratégica, autonomia, iniciativa, capacidade de
planejamento, conhecimentos técnicos e competências para gerenciar pessoas.

Pergunte aos tais liderados e eles provavelmente repetirão a mesma lamúria


sobre suas equipes. Siga a linha lógica e provavelmente chegará à conclusão de que
o grande mal das empresas, os grandes culpados pela gestão caótica, pela
estagnação da produtividade e pela baixa competitividade, são os estagiários.

A má qualidade da gestão das organizações locais é notória. Dos órgãos


públicos às empresas privadas, das estatais às organizações sociais, pouca coisa se
salva: os serviços são lentos e caros, os produtos são defasados e mal-acabados, os
processos de trabalho são confusos, os funcionários se estressam e os clientes se
revoltam. A má qualidade dos quadros de gestão também é óbvia: meio século de
cursos de administração e uma década de expansão MBAs não parece ter gerado
efeito positivo.

Para cobrir as lacunas, as grandes empresas investem furiosamente em


programas de trainees, procurando atrair a nata das melhores universidades para suas
fileiras. Entretanto, o tiro frequentemente sai pela culatra. Os jovens recrutas são
espertos e ambiciosos, mas nem sempre estão dispostos a realizar trabalho duro ou

145
são capazes de enfrentar chefes despreparados, colegas invejosos e a caótica
burocracia interna.

No entanto, a suposta escassez de talentos pode não ser verdade tão absoluta
quanto sugere o discurso dominante. Em texto publicado no jornal inglês Financial
Times, Andrew Hill levanta uma hipótese instigante. O colunista lembra o caso de
Eric Roberts, que ingressou em um banco inglês com 17 anos de idade e seguiu
uma carreira apagada, na primeira metade do século XX.

Um documento divulgado revela o espanto de seu chefe, ao saber que seu


funcionário havia sido requisitado pelo governo a apoiar o esforço de guerra. O tal
chefe registrou que não via qualquer qualidade em seu subordinado que fosse digna
de nota. Entretanto, Roberts já trabalhava para o serviço secreto britânico e era
considerado um espião genial, tendo sido capaz de monitorar e neutralizar centenas
de simpatizantes nazistas que operavam no Reino Unido.

O caso é pitoresco, porém não é incomum. Pululam histórias de


funcionários apagados, taxados de “baixo potencial”, que deixam grandes empresas
para se tornarem empreendedores bem-sucedidos. E não é difícil de entender por
que isso ocorre. As grandes estruturas burocráticas, rígidas e hierarquizadas, que
dominaram a paisagem corporativa durante o século XX, e continuam presentes na
administração pública ou algumas grandes empresas, reduzem os profissionais a
pequenas engrenagens de uma grande máquina. O próprio sistema inibe a iniciativa
e a criatividade.

Tais estruturas foram substituídas por arranjos mais fluidos e flexíveis.


Entretanto, o novo ambiente de trabalho é frequentemente dominado por
falastrões, reis do PowerPoint e animadores de reuniões. Profissionais quietos e
discretos, capazes de realizar trabalhos substantivos, são condenados à periferia das
decisões, sem receber a devida atenção ou reconhecimento por sua labuta.

146
Conforme observa Hill, muitas organizações têm dificuldade para identificar
o potencial e a capacidade de seus funcionários. Assim, a visibilidade
frequentemente triunfa sobre a produtividade. Uma forma de reverter a perversa
equação é reduzir a quantidade de reuniões, removendo o palco que favorece os
magos da gestão da impressão, e criar mecanismos para monitorar o trabalho que
está sendo conduzido.

O trabalho real nas empresas acontece frequentemente sem conexão com a


estrutura formal, usando as redes de relacionamento e confiança entre funcionários.
Hill observa que realizadores e influenciadores raramente ocupam posições de
destaque na estrutura formal. É preciso, portanto, estar atento às redes informais
para identificar e valorizar quem realmente trabalha e gera resultados.

147
O inimigo interno
A história de dois ícones da fotografia mostra a fragilidade das empresas
diante de crises e mudanças ambientais.

Todos os dias, umas tantas empresas são criadas. Outras tantas somem, e
com elas desaparecem sonhos, planos e empregos. Entre as infantes, a mortalidade
é assombrosa. As que vencem as dores do crescimento e a barreira da puberdade
enfrentam os monstros gêmeos da burocracia kafkiana e da indigência gerencial.

O fato é que poucas empresas superam uma década de existência e raras


tornam-se organizações centenárias. A longevidade é usualmente atribuída a quatro
fatores: primeiro, um foco permanente na atração e no desenvolvimento de bons
gestores; segundo, uma boa dose de conservadorismo na gestão financeira; terceiro,
a capacidade de construir relações saudáveis com funcionários, clientes,
fornecedores e outros grupos de interesse; e quarto, a capacidade de se adaptar às
mudanças ambientais.

Duas histórias empresariais, revistadas em 2015, trazem alertas e lições para


interessados no tema. A primeira refere-se à Kodak, gigante norte-americano que
dominou a indústria da fotografia por décadas. A segunda refere-se à Leica,
empresa alemã, símbolo de imagens de qualidade. A Kodak foi fundada em 1888,
sofreu com o avanço da digitalização e foi à bancarrota em 2012. Ressurgiu das
cinzas um ano depois, como uma versão pálida do passado glorioso. A Leica foi
criada em 1849, sobreviveu às rupturas tecnológicas e segue cultivando corações e
mentes.

Quentin Hardy, do jornal The New York Times, revelou um retrato da vida
após a morte na Kodak. No seu ápice, a empresa chegou a ter 145 mil funcionários
148
em todo o mundo. Hoje, tem oito mil. Em 1990, a empresa faturou 19 bilhões de
dólares. Hoje, fatura menos de 10% desse valor. Dos 200 prédios que a empresa
ocupava na cidade de Rochester, 80 foram demolidos e 59 foram vendidos. O que
restou parece um museu da Revolução Industrial. O impacto na comunidade foi
dramático: desemprego, queda na renda e aumento da criminalidade.

Entretanto, ainda há vida e esperanças nas ruínas. A Kodak deixou de ser


uma empresa de produção de massa para atender a alguns nichos de mercado: no
cinema, na imprensa e na indústria de embalagens. O dinheiro vem do passado. E o
futuro também. A aposta da empresa é usar sua ampla base de patentes e cérebros
para desenvolver novos produtos. Entretanto, segundo a descrição de Hardy, o
ambiente reflete decadência e a conversa saudosista resvala frequentemente para
lamentações em torno de oportunidades perdidas.

A Kodak foi, em seu tempo, uma típica empresa de tecnologia. Atraiu


talentos e inovou, mudou comportamentos e ajudou a criar uma indústria. Vergou
sob o peso de sua própria arrogância e da dificuldade para se adaptar a um novo
mundo. Não foi a primeira nem será a última a ser derrotada por si mesma.

Se a história da Kodak é amarga e tem desfecho incerto, a história da Leica


acena com um final (por enquanto) feliz. A empresa, cujos produtos povoam os
sonhos de fotógrafos profissionais e amadores, enfrentou o fim do filme de
celuloide e encontrou um nicho lucrativo, fabricando máquinas digitais de alta
qualidade e design tradicional.

Ellen E. Jervell, em texto veiculado pelo The Wall Street Journal, conta a luta
da centenária organização para vencer o desafio da digitalização. A empresa
continua vendendo máquinas fotográficas que se parecem com aquelas de seus
anos de ouro, celebradas por luminares da fotografia tais como Henri Cartier-
Bresson, Robert Capa e Robert Frank. A diferença é o recheio, que agora é digital.

149
Unir tradição, qualidade e inovação parece valer a pena. Na tradicional loja
B&H, de Nova Iorque, é possível comprar os modelos mais simples por 699
dólares. Entretanto, para ter acesso a uma “verdadeira” Leica, o entusiasta
desembolsará de 6.500 dólares a 15 mil dólares. Haja entusiasmo!

A empresa sofreu com a digitalização e quase foi à falência. Jervell conta que
a Leica foi salva por Andreas Kaufmann, um ex-professor , fundador do Partido
Verde alemão, que apostou parte da herança familiar na empresa. Sua direção e
seus investimentos resultaram em produtos digitais tecnicamente e comercialmente
bem-sucedidos. Não é pouco em um mundo poluído por centenas de milhões de
smartphones. As próximas décadas mostrarão se jovens gigantes como Microsoft,
Google, Amazon e Facebook terão aprendido as lições de antecessoras como a
Kodak e a Leica.

150
Dormindo com o inimigo
O ambíguo jogo de competição e cooperação entre empresas exige doses
maciças de diplomacia.

A mídia de negócios reportou em 2015 o processo sucessório no gigante


coreano Samsung. Lee Jae-yong sucederá seu pai, Lee Kun-hee, que liderou a
empresa por quase três décadas. O conglomerado foi fundado em 1938, tem quase
500 mil funcionários e faturou mais de 300 bilhões de dólares em 2014. É um
símbolo do sucesso corporativo coreano.

O semanário britânico The Economist identificou três grandes desafios para o


herdeiro, os quais, significativamente, envolvem a busca de situações de equilíbrio:
focar hardware ou software, conservar a cultura coreana da empresa ou tornar-se uma
empresa verdadeiramente global, e competir ou cooperar.

O último item constitui desafio comum a muitas empresas. A mídia popular


de negócios frequentemente celebra a capacidade competitiva. Entretanto, a
realidade é mais intricada. No livro Co-opetition (editora Currency Doubleday),
publicado em 1997, Adam M. Brandenburger e Barry J. Nalebuff chamavam a
atenção para as redes de cooperação que caracterizam o jogo corporativo, a
envolver fornecedores, clientes, organizações com atividades complementares e
competidores. Saber cooperar, dentro da lei, é tão importante quanto saber
competir.

Os setores baseados em tecnologia, assim como a indústria automobilística e


muitas outras, caracterizam-se por uma complexa rede de relações entre empresas
rivais. Diversas montadoras partilham motores, câmbios e dividem custos em
novos projetos, porém concorrem diretamente no mercado. Conforme registra a
151
matéria publicada em The Economist, a Samsung é o maior rival da Apple na venda
de smartphones, porém tem a empresa norte-americana como principal cliente de
semicondutores. A empresa coreana é parceira da Google, utilizando o sistema
operacional Android em seus aparelhos. Porém, continua desenvolvendo um
sistema próprio. Gerenciar relações desse tipo não é trivial.

Se tais situações de namoro e noivado são difíceis de administrar, ainda mais


desafiadores são os casamentos de conveniência, que se multiplicam durante as
ondas de fusões e aquisições. Em tais situações, um rival adquire outro, ou se junta
a outro, unindo quadros que frequentemente se desdenham ou detestam. Estudos
sobre fusões e aquisições revelam que tais movimentos comumente destroem valor;
ou seja, a empresa resultante apresenta menor valor de mercado do que a soma das
empresas participantes da transação, antes de esta ser efetivada.

As razões para casamentos corporativos de conveniência são várias e


contundentes: ganhar escala, diluir custos, obter acesso a novos mercados, juntar
forças em tecnologia e viabilizar projetos de expansão. Em setores nos quais a
competição é ferrenha, o casamento de conveniência torna-se com frequência
opção única para a sobrevivência: a alternativa é aguardar a morte lenta.

Dormir (e acordar) com o inimigo nunca foi fácil. Os meses seguintes de um


casamento de conveniência são traumáticos. A organização resultante costuma
parecer obra do doutor Victor Frankenstein, com partes combinadas de uma e
outra empresa. O resultado assemelha-se à obra do famoso médico – a coisa:
aparentemente grande e poderosa, porém com ares de morto-vivo, com vontade
instável e andar trôpego.

Por dentro, a criatura vive em permanente convulsão. O pensamento é


turvado por diferentes visões estratégicas, incapaz de estabelecer uma direção clara.
O coração bate em ritmo incerto. Os outros órgãos vitais, oriundos de diferentes

152
criaturas, parecem não se entender. Braços e pernas esboçam movimentos pouco
articulados.

No romance clássico de Mary Shelley, a criatura atormentada exige que o


criador lhe crie uma fêmea, com a qual possa viver em paz nas selvas sul-
americanas. O plano, entretanto, não se concretiza e a história termina em tragédia,
com a morte do criador e a promessa da criatura de seguir até o extremo norte do
planeta e lá extinguir a própria existência. Nem todo casamento forçado termina de
maneira tão dramática, porém alguns chegam bem perto.

Os namoros e noivados, assim como os casamentos de conveniência, exigem


competências específicas. É preciso entender e respeitar a cultura organizacional e
o modo alheio de fazer as coisas, e aplicar maciças doses de diplomacia, com
tolerância, paciência e resiliência. Tais relações não precisam ser eternas, mas pode-
se mitigar a guerra conjugal enquanto durarem.

153
O fim dos gerentes?
Após ceifar empregos na base, chegou a hora de a tecnologia ameaçar o
meio da pirâmide corporativa.

Uma das mais fascinantes criações corporativas é o gerente. O personagem


descende do feitor e do capataz. Ganhou responsabilidades e autoridade com a
longa marcha da industrialização, no século XX. Adquiriu respeito e status com a
emergência do setor de serviços. Para explorar e, ao mesmo tempo, impulsionar sua
popularidade, surgiram livros, revistas especializadas e cursos. Hoje, o filé mignon
das escolas de negócios são os cursos de formação gerencial. Um programa de uma
semana em uma instituição de bom nome, n’algum lago suíço, floresta francesa ou
recanto da Nova Inglaterra, pode custar 10 mil dólares.

O gerente é o profissional que planeja, organiza, coordena e controla as


atividades de uma organização, de modo que ela atinja seu objetivo. O objetivo de
uma empresa costuma ser o lucro, valor que resulta da diferença entre as vendas e o
custos, descontados as taxas, os impostos e diversos pagamentos que não podem
ser oficialmente declarados. O gerente lá está para fazer com que se extraia o
máximo valor, com o menor recurso. Dessa forma, ele garante a sustentabilidade
dos negócios, a perenidade dos empregos (que sobram), a satisfação dos clientes e
as férias dos donos, em Orlando ou Aspen, dependendo do porte da empresa.

Ao ser promovido a gerente, um profissional deve deixar de trabalhar. Sua


missão é fazer com que os outros trabalhem. Para conferir honradez à posição,
deve adotar a alcunha de líder. Noutros tempos, o título de líder era reservado a
estadistas, generais e grandes nomes dos movimentos sociais. Não mais. Desde a
década de 1990, qualquer gerente com modestas competências e limitadas
capacidades passou a ser também um líder. A valorização ajudou a classe dos
154
gerentes a crescer, tornando sua existência, quase sempre cara e frequentemente
redundante, um fato natural na vida corporativa.

Nos últimos anos, entretanto, uma séria ameaça começa a rondar a resiliente
classe dos gerentes: a tecnologia. O filme é conhecido. No século XIX, o avanço
tecnológico ajudou a transformar sociedades agrárias no mundo urbano e industrial
que conhecemos. A mudança foi brutal e traumática, porém criou as bases para um
longo ciclo de desenvolvimento. Na segunda metade do século XX, novamente o
avanço tecnológico esvaziou fábricas e forçou a migração do trabalho para o setor
de serviços. Foi duro e doloroso, obrigando a esforços de reeducação e adaptação.

Agora, a tecnologia pode vitimar a classe gerencial. Leva algum tempo até
que novas tecnologias se combinem com novos modelos de negócios, resultando
em impactos reais. O processo é longo, com muitas tentativas e erros. No entanto,
nos últimos anos, a evolução das tecnologias de comunicação e de informação, o
desenvolvimento de aplicativos, o barateamento de custos e a criatividade de
empreendedores geraram frutos: surgiram empresas intensivas em conhecimento e
tecnologia, nem sempre exigentes em capital e extremamente econômicas em
trabalho gerencial.

As fábricas automatizadas do final do século XX substituíram trabalhadores


por robôs. Agora, é a vez de as empresas de serviços substituírem gerentes e outros
profissionais por softwares. Os efeitos ainda são alvo de especulação. Por um lado,
um movimento que libera os seres humanos de tarefas repetitivas e maçantes é um
sonho de qualquer utopista. Por outro lado, o desemprego e o agravamento da
desigualdade são efeitos palpáveis e hoje incontestáveis.

Em um editorial da revista científica Administrative Science Quarterly, veiculada


em junho de 2015, Gerald F. Davis observa que, a partir dos anos 1980, mudanças
na economia alteraram o perfil de ocupação dos egressos de MBAs: o templo
formador de gerentes. Em lugar de buscar trabalho, ou receber ofertas, de grandes

155
empresas industriais, eles passaram a ser absorvidos por empresas de consultoria e
por instituições financeiras.

Ao mesmo tempo, observa o autor, a tecnologia de informação passou a


substituir parte das atividades dos gerentes por algoritmos. Hoje, nos Estados
Unidos, sete milhões de profissionais são classificados como gerentes, porém seu
trabalho não envolve necessariamente a supervisão de outros profissionais. A
gestão de pessoas por outras pessoas pode estar se tornando anacrônica. Chocante:
as mudanças podem fazer com que os gerentes voltem a trabalhar.

156
No reino dos amazonians
A dura cultura de trabalho da Amazon talvez sinalize o futuro para
outras organizações.

Cada época tem suas empresas ícones. General Motors, IBM, General
Electric e Microsoft tiveram seus momentos de ribalta. Hoje, as candidatas são
Google, Facebook, Apple e Amazon. Elas são admiradas e copiadas, porém vivem
sob o escrutínio de órgãos reguladores e do público. Seus líderes são vistos ora
como gênios visionários, ora como megalomaníacos obcecados com o sucesso.

O jornal norte-americano The New York Times dedicou em agosto de 2015


uma longa matéria crítica à Amazon. O texto, assinado por Jodi Kantor e David
Streitfeld, foi fruto de mais de 100 entrevistas com funcionários e ex-funcionários.
A repercussão foi significativa e gerou rápida resposta de Jeff Bezos. O fundador e
principal executivo da empresa manifestou sua estranheza, declarando que a
Amazon do texto não é a empresa que ele conhece. Claro!

Bezos nasceu em 1954, estudou engenharia elétrica e ciência da computação


em Princeton, e trabalhou em Wall Street. A Amazon foi criada em 1994, cresceu
vertiginosamente e conta hoje com mais de 180 mil funcionários. Em 2015, tornou-
se a empresa de varejo maios valiosa dos Estados Unidos. Ao longo de sua
existência, a Amazon notabilizou-se pelo pioneirismo, pela inovação e pelo foco no
cliente. Ganhou legiões de admiradores. No entanto, nem tudo são flores. O texto
de Kantor e Streitfeld penetrou as entranhas do gigante e revelou um quadro
doentio.

Os autores colecionaram histórias dramáticas. Em um armazém da


Pensilvânia, empregados sob monitoramento de sistemas eletrônicos eram
157
induzidos a manter a mais alta produtividade, trabalhando sob um calor escaldante,
enquanto ambulâncias aguardavam do lado de fora aqueles que desmaiavam. Após
uma denuncia que chegou à mídia, a empresa finalmente instalou equipamentos de
ar-condicionado.

Recrutas – futuros amazonians – são orientados a esquecer os maus hábitos


de trabalho, adquiridos em outras empresas, e a abraçar de corpo e alma os 14
princípios de liderança de Bezos. Funcionários são encorajados a criticar
abertamente as ideias dos colegas, diretamente ou escrevendo ao chefe da vítima.
Os mais fortes permanecem e são promovidos. Aqueles que não atendem os
padrões e metas da empresa são expelidos. A morte de um parente próximo,
doença ou outro problema pessoal grave não são aceitos como desculpa para um
desempenho abaixo do esperado. Um dos entrevistados sintetizou: “Em relação ao
equilíbrio entre vida e trabalho, na Amazon o trabalho vem em primeiro lugar, a
vida, em segundo e o equilíbrio, em terceiro”.

Preocupadas com a atração e retenção de pessoal qualificado, muitas


organizações implementam práticas que visam flexibilizar e melhorar as condições
de trabalho. Não parece ser o caso da Amazon. Bezos comporta-se como um
missionário contra as forças que solapam a produtividade: a burocracia, os gastos
descontrolados e a falta de rigor. Em lugar da harmonia, a Amazon estimula o
conflito. O resultado, segundo alguns entrevistados, é um sistema brutal de
competição interna. O nível de expectativa e exigência parece estar sempre um
degrau acima da capacidade de realização. A sensação é de que o trabalho nunca
termina ou de que o que foi realizado nunca é bom o suficiente.

Na base dos valores da empresa, parece estar a velha meritocracia norte-


americana, temperada por uma delirante visão pseudodarwinista aplicada a sistemas
humanos. Resultado: uma organização na qual as pessoas competem, desafiam-se
umas às outras, e os melhores vencem. Bezos parece ter levado algumas práticas já
presentes em outras organizações ao extremo. Criou, como sugerem Kantor e

158
Streitfeld, um experimento destinado a determinar o quanto é possível pressionar
funcionários para fazer com que eles ajudem a empresa a atingir suas ambições
cada vez maiores.

A Amazon chama a atenção pela radicalização de certas práticas e pelos


excepcionais resultados obtidos. Não é caso único. Muitas outras empresas
fomentam valores e práticas similares, nem sempre com sucesso. Talvez sinalizem
uma tendência, envolvendo organizações muito eficientes, inovadoras,
empreendedoras e com alta capacidade de realização. Elas são extremamente
demandantes em relação aos seus funcionários, contando com um núcleo duro de
profissionais, capaz de sobreviver e prosperar em ambientes insalubres. Esse
núcleo é complementado por uma massa fluida de funcionários, em constante
renovação. Ame-as ou deixe-as!

159
PARTE 3 – O CAPITALISMO SELVAGEM E A ACADEMIA

160
Festa agridoce
Uma das mais respeitadas instituições educacionais do País celebra um
feito extraordinário. Porém, há mais por fazer do que a comemorar.

Festa da roça do Butantã: a Universidade de São Paulo celebrou, em 2011, o


marco de 100 mil dissertações e teses defendidas. O número impressiona. Segundo
dados divulgados pelo jornal O Estado de S. Paulo, a maior universidade da América
Latina conta com 22 mil estudantes de pós-graduação, 53% deles mestrandos e
47% deles doutorandos. O ícone paulista forma 25% dos doutores do Brasil e
responde por igual percentual da pesquisa realizada no País. É um dos carros-
chefes para o aumento do número de mestres e doutores no Brasil, objetivo fetiche
dos burocratas da educação, sediados no planalto central.

Entretanto, nem tudo é festa. Quando se trata de avaliar a USP perante as


melhores instituições internacionais, sua posição é incompatível com sua fama
local. Existem, dentro da instituição, conhecidas ilhas de excelência, porém o
quadro geral é preocupante. No moderno mundo da produção científica,
quantidade não se traduz diretamente em qualidade. Formar muitos mestres e
doutores, e publicar muitos artigos, pode agradar à Capes (a Coordenadoria de
Apoio à Formação de Pessoal de Nível Superior, órgão federal que regula e avalia
nossos programas de pós-graduação), mas não garante um lugar ao sol na praia
cada vez mais internacionalizada da geração de conhecimento.

Vozes ilustres da própria universidade reconhecem o inquietante estado das


coisas. Percebe-se que muitos trabalhos científicos são realizados apenas para
atender a burocracia, e que é preciso melhorar a qualidade e, principalmente, o
impacto da pesquisa realizada. Afinal, uma instituição de ensino superior não pode

161
ser um sistema fechado, trabalhando em torno de si mesma. Ela deve ajudar a
sociedade a identificar e solucionar suas questões mais prementes e relevantes.

O problema do baixo impacto da pesquisa não é exclusivo da USP,


tampouco novidade. N’algum momento do passado, pressionadas a melhorar seus
índices de formação e de produção científica, muitas universidades parecem ter
emulado os princípios e técnicas de produção em massa. Enquanto o governo
federal e os órgãos de educação apontavam a necessidade de formar mais mestres e
doutores, grupos internos se organizavam para aumentar seu espaço na concorrida
arena política universitária. Da conjugação de interesses veio a implantação
gradativa de um modelo do tipo fast-food, de produção rápida e consumo rápido.
Infelizmente, um sistema que funciona bem para automóveis, geladeiras e lanches
rápidos pode mostrar-se pouco efetivo na área da educação e da geração de
conhecimento.

Hoje, no campo da administração de empresas (ciência aplicada na qual este


escriba atua), a pós-graduação parece funcionar tal qual uma linha de montagem.
Há indícios de que outros campos operem da mesma forma. Nas instituições locais,
os doutores iniciam seus pupilos na arte da produção científica. Eles os pressionam
a produzir em série, a levar suas criações a congressos de magra audiência e veiculá-
las em revistas de parca relevância. O processo tem início com a atração de
noviços. Esses jovens compõem uma fauna variada. Há, entre eles, moços e moças
com real aptidão para a pesquisa. Juntam-se a estes os alpinistas acadêmicos, a
perseguir um título que lhes confira mais valor no mercado. Há também os
fugitivos do mundo corporativo, em busca de empregos públicos que lhes
garantam bom sustento e pouco trabalho. Muitos desses candidatos trazem as
deficiências usuais do nosso sistema educacional: faltam-lhes raciocínio lógico e
analítico e, frequentemente, domínio adequado da língua pátria.

Para o sistema, tudo que entrar deve sair. Então, muitos noviços seguirão
claudicantes pela linha de montagem, até que uma banca examine, com repugnância

162
reprimida e tolerância exacerbada, o produto de sua labuta. Muitas dissertações e
teses deixam a linha de montagem com lacunas teóricas e restrições metodológicas.
Poucas servem para desenvolvimento teórico ou aplicação prática. Seu destino é
mofar nos depósitos das universidades locais: as bibliotecas.

Para que serve tal sistema, que ilude e frustra os noviços, e ainda trai a sociedade
que o sustenta? Primeiro, para manter o emprego dos mestres e doutores. Segundo,
para legitimar as instituições de ensino diante aos reguladores brasilienses. Terceiro,
para perpetuar o próprio sistema, concedendo títulos (de duvidoso valor) a futuros
mestres e doutores. Quarto, para dar uma chance aos noviços de aprender alguma
coisa que deviam ter aprendido antes: ler, escrever e pensar em linha reta. E,
finalmente, na quinta prioridade, para gerar conhecimento útil para o País.
Infelizmente, mesmo à custa de sangue, suor e lágrimas, e do uso de fundos
públicos, são poucos os profissionais que chegam ao final dessa lista.

163
O caminho das pedras
Para enfrentar a dura prova de publicar nos principais periódicos
científicos internacionais, muitos pesquisadores brasileiros estão
recorrendo a assessorias cada vez mais sofisticadas.

Foi uma criança prodígio. Dissecava drosófilas aos seis anos de idade e
resolvia equações aos oito. A família exibia seus dotes para os vizinhos, e o avô
vaticinava: vai ser cientista. Destino marcado, carreira definida. Um quarto de
década depois, realizou a profecia do avô. Graduou-se com pompa e doutorou-se
com circunstância. Conquistou um posto em um templo do saber e colocou seu
cérebro a serviço da ciência. Agora, só falta aprender a escrever. Surpreendente?
Nem tanto.

Hoje, não basta descobrir a cura do câncer ou a fórmula para a estabilização


da economia mundial. É preciso definir o nível de análise, utilizar o referencial
teórico adequado e empregar a metodologia correta. Louis Pasteur, Adam Smith e
Sigmund Freud teriam seus trabalhos rejeitados nas principais revistas científicas de
nosso tempo. Os avaliadores denunciariam a falta de rigor estatístico, as amostras
insuficientes e o conteúdo opiniático dos trabalhos.

Nos últimos anos, aumentou consideravelmente a pressão sobre os


pesquisadores brasileiros para que elevem seus índices de publicação. Gostemos ou
não, a ciência está hoje organizada como uma grande linha de produção, na qual os
operários ganham por metro de artigo publicado. Ocorre que a língua oficial da
ciência é o inglês e os principais periódicos do mundo são anglófonos, realidade
que costuma irritar os anglófobos. Então, precisamos aprender a escrever (e
pensar) na língua do Bardo.

164
Em um número publicado em abril de 2011, a revista Pesquisa Fapesp
(Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) traz matéria sobre o
tema. O jornalista Fabrício Marques retrata o desafio enfrentando pelos cientistas e
sua consequência: a proliferação de serviços especializados em redação científica.

De fato, serviços de tradução e edição existem há bastante tempo. No


exterior, algumas revistas científicas contam com apoio de editores profissionais,
para aperfeiçoar os textos publicados. Editoras como a Nature Publishing Group,
que publica a revista Nature, e a holandesa Elsevier oferecem serviços de edição e
treinamento para quem quiser pagar por eles. Entretanto, a onda atual vai além:
envolve orientação para definir o objetivo do artigo, os argumentos centrais e o
encadeamento lógico de ideias. Inclui também dicas sobre como valorizar o próprio
artigo e como se apresentar aos editores: um verdadeiro trabalho de marketing
pessoal. As principais universidades públicas paulistas, responsáveis por parte
considerável da produção científica brasileira, entraram na onda, criando áreas
internas de apoio aos pesquisadores e contratando serviços de assessoria.

Para os brasileiros, uma das principais dificuldades pode ter origem em nossa
estrutura de pensamento. No artigo clássico "Cultural thought patterns in
intercultural education", de 1966, o linguista Robert B. Kaplan descreve como
indivíduos de diferentes culturas estruturam seus textos. O trabalho foi baseado em
sua experiência com estudantes internacionais. O autor constatou que, enquanto
estudantes anglo-saxoes aplicavam um estilo objetivo, indo direto ao ponto, os
asiáticos aproximavam-se em círculos e os russos seguiam uma trajetória titubeante,
com ideias malrelacionadas. Não há registro de estudantes brasileiros na amostra de
Kaplan, mas eles poderiam ser incluídos em um grupo de comportamento similar
ao dos russos.

Kaplan foi criticado por simplificar a realidade e por fazer generalizações


impróprias. Ainda assim, suas conclusões continuam sendo uma explicação
convincente para a dificuldade que muitos de nós, latinos, enfrentamos para

165
organizar as ideias e produzir textos no estilo econômico e direto que se tornou
dominante na ciência. Se acreditarmos em Kaplan, então a tarefa das novas
assessorias de preparação de artigos científicos merece todo o respeito: vencer
certos estados de confusão mental é, de fato, uma tarefa hercúlea.

Ou, talvez, os cientistas possam fazer como as empresas de software ou alguns


escritórios norte-americanos de contabilidade, que terceirizam seus serviços na
Índia. Exagero? Hoje, sim; amanhã, quem sabe? O fato é que muitos cientistas
brasileiros, como seus colegas de outras partes do mundo, estão usando cada vez
mais apoio especializado para escrever seus trabalhos e poder encaminhá-los para o
duro funil das melhores revistas científicas do planeta.

Usar os recursos disponíveis para aprender o jogo da ciência global é


legítimo. Entretanto, a embalagem sozinha não garante o sucesso. É preciso ter
uma ideia original, usar a metodologia correta, gerar resultados relevantes e trazer
uma contribuição científica significativa. Afinal, nada substitui o conteúdo.

166
Inferno na torre... de marfim
As “modernas” linhas de montagem universitárias, que produzem
doutores e pesquisas científicas, são caras, frequentemente improdutivas
e estão se tornando insalubres.

Certas profissões e ocupações povoam os sonhos dos jovens, sugerindo


autorrealização ou simbolizando status. Porém, após conhecerem o apogeu,
parecem seguir para um inevitável declínio. A engenharia, a advocacia e a medicina
já tiveram dias melhores, mas seguem a trilha da proletarização, perdendo o
prestígio e a aura. A economia e a administração também mostram sinais de
decadência, depois de momentos fugazes de glória. Fenômeno similar parece
atingir a ocupação de professor-pesquisador, praticada por uma pequena elite,
incrustada nos andares mais elevados das torres de marfim do ensino superior.
Comecemos pelo sonho. Depois, o feijão.

O professor-pesquisador, profissional que atua em programas de pós-


graduação, é um ser privilegiado. Não é nem será um milionário, mas conta com
salário digno e emprego vitalício. Tem liberdade para trabalhar no que lhe interessa
e conta com acesso facilitado aos recursos de fundos de pesquisa. Viaja
regularmente pelo mundo, para discutir suas descobertas científicas em cidades
fascinantes e resorts bucólicos. Dedica-se à nobre função do magistério, mas apenas
oito meses por ano. Leciona poucas horas por semana para pequenas classes
povoadas por corações interessados e mentes brilhantes. Seu horário de trabalho é
flexível e seus objetivos e metas são determinados por ele mesmo. Vive em um
campus arborizado e tranquilo, longe da poluição e da agitação. Seus encontros
sociais envolvem conversas inteligentes sobre temas relevantes. Desobrigado de
olhar para o tedioso presente, concentra-se em desvendar o passado e olhar para o

167
futuro. De tempos em tempos, para ampliar seus horizontes, tem direito a um
período sabático, durante o qual, com apoio de uma agência governamental, leva
sua família para a Europa ou os Estados Unidos. É reconhecido por seus pares e
pela sociedade, que o tem na mais alta conta, por sua sapiência e dedicação
desinteressada ao bem comum. Afinal, ajuda a edificar os pilares do nosso
progresso tecnológico e a formar nossa futura elite intelectual.

Essa imagem idílica pode ser observada em Harvard, Oxford e Cambridge


ou, mais provável, nas películas de Hollywood que romanceiam a vida nessas
universidades. No entanto, a realidade parece caminhar em outra direção. Em
renomadas instituições de ensino locais o mato cresce, o ar-condicionado não
funciona, as mentes brilhantes deram lugar a criaturas conformistas e opacas, e a
vida acadêmica assemelha-se cada vez mais ao trabalho em uma linha de montagem
fordista, com capatazes, metas e uma irritante burocracia.

Consequência: cresce o descontentamento com condições de trabalho e com


as pressões por produtividade na torre de marfim. Parte da revolta deve-se à reação
usual a mudanças. No entanto, há também uma preocupação legítima com um
sistema caro, pouco produtivo e que apresenta efeitos colaterais preocupantes,
como a multiplicação de mestres e doutores ineptos e a proliferação de artigos
científicos que nunca serão lidos.

Uma pesquisa publicada por Otacilio Antunes Santana, do Centro de


Ciências Biológicas da Universidade Federal de Pernambuco, explora outra
dimensão preocupante da mesma questão: o efeito das condições de trabalho sobre
a saúde dos docentes de pós-graduação. Seu ponto de partida foi a constatação de
aumento de pedidos de licenças médicas, principalmente aquelas relacionadas a
sintomas ou consequências de doenças cardiovasculares.

Santana analisou dados de 540 professores, de seis faixas etárias, entre 36 e


65 anos de idade. Suas conclusões fazem eco a um debate emergente na academia

168
brasileira, acerca da pressão por produção científica e pela formação de mestres e
doutores. A pesquisa comprovou que quanto maiores o número de publicações
científicas e o número de orientandos, maior o número de intervenções cardíacas,
doenças coronárias e acidentes vasculares cerebrais. Em suma: trabalhar, nessas
condições, faz mal! O quadro é agravado, segundo Santana, pela falta de dieta
equilibrada, de atividades físicas e de acompanhamento médico regular dos
docentes.

Nas mais diversas latitudes e longitudes, o modelo tradicional de


universidade está sendo criticado. Acelerar a linha de montagem e produzir mais
mestres, doutores e artigos científicos é uma resposta simples para o desafio que se
coloca, mas parece estar matando os operários e prejudicando a qualidade da
produção. Pode ser mais um marco da passagem da era da elite bem-pensante para
a era da pesquisa burocrática, conduzida por operários do conhecimento, uma
etapa que talvez ainda resulte em ciência, mas, por enquanto, apenas mascara um
sistema caro, improdutivo e insalubre.

169
Slow science
Na França, pesquisadores abraçam um movimento contra a
“mcdonaldização” da ciência. Enquanto isso, nos trópicos, a slow
bureaucracy tenta implantar a fast science.

O frenesi da globalização e seus descontentes. Consta que tudo começou


com o cozinheiro Carlo Petrini. Na década 1980, esse italiano participou de uma
campanha contra a abertura de uma loja McDonald’s em Roma. Nasceu pouco
depois o movimento slow food, voltado para a preservação da cozinha regional e
tradicional, contra a mesmice e a pressa do onipresente fast-food. O sucesso cruzou
fronteiras e atraiu seguidores em mais de 150 países. Na esteira, vieram o slow living,
o slow travel e o slow cities. Como guarda-chuva, cunhou-se o termo slow movement.

Um filósofo norueguês – Guttorm Fløistad – conferiu ao movimento poesia


e princípios: “A única coisa que podemos tomar como certeza é que tudo muda. A
taxa de mudança aumenta. Se você quer acompanhar, melhor se apressar. Esta é a
mensagem dos dias atuais. Porém, é útil lembrar a todos que nossas necessidades
básicas não mudam. A necessidade de ser considerado e querido! A necessidade de
pertencer. A necessidade de estar próximo e de ser cuidado, e de um pouco de
amor! E isso é conseguido apenas pela desaceleração das relações humanas. Para
ganharmos controle das mudanças, devemos recuperar a lentidão, a reflexão e a
capacidade de estarmos juntos. Então encontraremos a verdadeira renovação”.

Agora, da terra do resistente Asterix, nos chega uma nova onda do slow
movement: a slow science. Seus arautos condenam a cultura da pressa e do imediatismo
que invadiu, nos últimos anos, as universidades e outras instituições de pesquisa. A
fast science, segundo os rebeldes franceses, busca a quantidade acima da qualidade.
Aprisionados pela lógica do “produtivismo” acadêmico, os pesquisadores tornam-
170
se operários de uma linha insana de montagem. E quem não se mostrar agitado e
sobrecarregado, imerso em inúmeros projetos e atividades, será prontamente
cunhado de improdutivo, apático ou preguiçoso.

Os cientistas signatários da slow science entendem que o mundo da ciência


sofre de uma doença grave, vítima de uma ideologia da competição selvagem e da
produtividade a todo preço. A praga cruza os campos científicos e as fronteiras
nacionais. O resultado é o distanciamento crescente dos valores fundamentais da
ciência: o rigor, a honestidade, a humildade diante do conhecimento a busca
paciente da verdade.

A “mcdonaldização” da ciência produz cada vez mais artigos científicos,


atingindo volumes muito além da capacidade de leitura e assimilação dos mais
dedicados especialistas. Muitos trabalhos são publicados, engrossam as estatísticas
oficiais e os currículos de seus autores, porém poucos são lidos e raros são, de fato,
utilizados na construção da ciência.

Os defensores da slow science acreditam que é possível resistir à fast science.


Sonham com a possibilidade de reservar ao menos metade de seu tempo para a
atividade de pesquisa; de livrarem-se, vez por outra, das demandantes atividades de
ensino e das tenebrosas atividades administrativas; de privilegiar a qualidade em
detrimento da quantidade de publicações; e de preservar algum tempo para os
amigos, a familiar, o lazer e o ócio.

A eventual chegada da onda da slow science aos trópicos deve se observada


com atenção. Por aqui, cruzará com a tentativa de fomentar a fast science. Entre nós,
o objetivo de aumentar a produção de conhecimento levou à criação de uma slow
bureaucracy, que avalia e controla o aparato científico. A implantação gradativa da
lógica fast, com seus indicadores e suas métricas, pretende definir rumos,
estabelecer metas, ativar as competências criativas da comunidade científica local e
contribuir para a construção do futuro da augusta nação. Boas intenções!

171
Entretanto, os efeitos colaterais são consideráveis. A lógica fast está
condicionando os cientistas operários a comportamentos peculiares. Sob as ordens
de seus capatazes acadêmicos, ou por iniciativa própria, eles estão reciclando
conteúdos para aumentar suas publicações; incluindo, em seus trabalhos, como
autores, colegas que pouco ou nada contribuíram; e assinando, sem inibição, artigos
de seus alunos, aos quais eles pouco acrescentaram. Tudo em prol da melhoria de
seus indicadores de produção.

Enquanto as antigas gerações vão se adaptando, aos trancos e barrancos, ao


modo fast, as novas gerações de pesquisadores já são formadas sob os princípios da
nova doutrina. Aqui, como ao norte, vão adotando o lema da fast science: publish or
perish (publique ou desapareça). E, se o objetivo é publicar, vale tudo, ou quase
tudo. Para onde vão os cientistas e a ciência? O destino não é conhecido, mas eles
estão indo cada vez mais rápido.

172
Universidades virtuais
A educação presencial não anda lá bem das pernas. Serão os modelos
virtuais capazes de responder aos enormes desafios atuais ou apenas
reproduzirão e ampliarão os vícios existentes?

George Bernard Shaw fuzilou: “Desde pequeno tive que interromper minha
educação para ir à escola”. Albert Einstein não ficou atrás: “É um milagre que a
curiosidade sobreviva à educação formal”.

Nossa sociedade celebra a educação, mas não perde oportunidade para


criticar as escolas. E não faltam motivos. O Brasil tem um sistema peculiar. Nossa
antiga classe média frequenta colégios privados e universidades públicas, nas quais
entra sem objetivos, frequenta sem inibições e sai sem aspirações. Durante quatro
ou cinco anos, convive com mestres de imponentes insígnias e pouco apreço à
educação. Nossa nova classe média frequenta colégios públicos e universidades
privadas, nas quais entra com algumas ambições, frequenta como pode e sai por
sorte. Durante quatro ou cinco anos, convive com mestres que são verdadeiros
operários do ensino, com muitas contas a pagar e pouco tempo para se dedicar.

Agora, dizem os sabidos e novidadeiros, a grande novidade é a universidade


virtual. Mais uma vez, profetizam, as novas tecnologias operarão o milagre de
transformar água em vinho, pedra em pão. Será?

A Coursera é um start-up norte-americano criado pelos professores de ciência


da computação Daphne Koller e Andrew Ng, da Universidade de Stanford, matriz
maior de empresas do Vale do Silício. A empresa foi criada com a missão de
oferecer, gratuitamente, por meio da internet, a qualquer indivíduo, a melhor

173
educação do mundo, leia-se, aquela oferecida pelas melhores universidades. Por
enquanto, a empresa sobrevive graças a investidores.

O fato relevante foi o anúncio recente de que mais uma seleta lista de
universidades concordou em fornecer conteúdo para a Coursera disponibilizar na
internet. As parceiras da empresa agora incluem as universidades de Princeton,
Duke, Stanford, Pennsylvania, Michigan, Toronto e Edinburgh, entre outras. Uma
delas já declarou que reconhecerá créditos realizados na Coursera e outras duas
informaram que colocarão mais 3,7 milhões de dólares na empresa, elevando os
investimentos a 22 milhões de dólares. No próximo período letivo, a Coursera
pretende oferecer mais de 100 cursos on-line, visando atingir 100 mil alunos. Não é
pouco!

A educação superior tornou-se uma grande questão e, ao mesmo tempo, um


grande negócio, atraindo empreendedores e investidores. A Coursera não está
sozinha. Seus concorrentes incluem o projeto edX, da Universidade de Harvard e
do MIT, a Udacity e a Minerva. No Brasil, há iniciativas similares, tais como o
Veduca, da iniciativa privada, e a Univesp, do governo do Estado de São Paulo.

Pensada como negócio, a educação superior é extremamente ineficiente: é


cara, atende apenas uma pequena parcela da população e desperdiça recursos, à
medida que cada professor (um recurso escasso e caro) cria seu próprio conteúdo e
o repete semestre a semestre para pequenas plateias, nem sempre muito
interessadas. Segundo Koller, da Coursera, as aulas tradicionais surgiram há
centenas de anos, quando havia apenas uma cópia do livro, a do professor.
Portanto, a única maneira de transmitir o conteúdo era o professor sentar na frente
da classe e ler o livro. Hoje, com uso das tecnologias de informação e comunicação,
há maneiras mais eficientes de transmitir conteúdo, sugeriu a empreendedora em
entrevista para a revista The Atlantic.

174
Naturalmente, as investidas da lógica de mercado sobre a educação superior
causam arrepios. Entretanto, iniciativas como as da Coursera não devem ser
temidas. Aulas ao vivo, para grandes plateias, como ocorre com frequência nos
ciclos básicos dos cursos superiores, estão se tornando anacrônicas. Alguns
professores tentam agir como animadores de auditório, usando anedotas e recursos
performáticos para manter a atenção das hordas de apedeutas. A vítima é o
aprendizado.

Um sistema de estudo dirigido, com apoio de recursos on-line e que respeite o


ritmo do aprendiz pode, eventualmente, ajudar. Afinal, o valor de frequentar uma
instituição de ensino superior não está nas aulas básicas, mas no contato com
professores e colegas, na criação de redes de relacionamento e, principalmente, no
trabalho conjunto e na realização de projetos de interesse comum.

Iniciativas como as da Coursera e de seus pares estão ainda em sua infância.


Os conteúdos são fragmentados e muitos registros foram feitos simplesmente
colocando-se uma câmera no fundo de uma sala de aula. A estética é pobre e o
material divulgado não é atraente. Uma grande promessa pode transformar-se em
grande decepção. Não terá sido a primeira vez. Não será a última. Talvez, o que
precisamos é de mais Jean Piaget e menos Bill Gates, mais Paulo Freire e menos
Steve Jobs.

175
A vida na linha de montagem
Tese de doutoramento examina com lupa crítica os bastidores da
academia tropical na área de Administração.

O campo científico da Administração cresceu vigorosamente nas duas


últimas décadas. Temos hoje, no Brasil, 78 programas de pós-graduação, formando
mestres e doutores. Esses programas contam com cerca de 1.200 professores e
produzem por ano quase 1.400 dissertações de mestrado e mais de 200 teses de
doutorado. Anualmente, mais de quatro mil trabalhos são apresentados em duas
dúzias de eventos acadêmicos, geralmente em aprazíveis cidades litorâneas e
bucólicas estâncias nas montanhas. O campo conta cerca de 80 periódicos
científicos, os quais, somados, publicam aproximadamente dois mil artigos por ano.
Informação relevante: parte considerável do sistema é bancada por recursos
públicos.

Dado que a administração é uma ciência aplicada, supõe-se que o dinheiro


investido seja utilizado de maneira honesta e eficiente para ajudar o País a superar
sua vexatória incompetência gerencial. Acontece que a qualidade e o impacto social
do que é produzido são decepcionantes. Reflexões sobre o desenvolvimento da
área revelam fraquezas metodológicas, baixa capacidade de construção de teorias e
afastamento da realidade brasileira.

Em uma tese de doutorado defendida em junho na FGV-EAESP, sob a


orientação do colega Rafael Alcadipani, Paulo Marcelo Ferraresi Pegino analisou
com lupa crítica nosso estranho modo de produzir ciência. O pesquisador avaliou a
produção de 168 pesquisadores, bolsistas do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), supostamente a nata da área
de administração. Os resultados são preocupantes.
176
Primeiro, sobra quantidade e falta qualidade. No período analisado por
Pegino, cada pesquisador publicou em média um artigo por trimestre. O mais
produtivo deles atingiu a impressionante marca de dois artigos por mês, merecendo
entrar para o livro dos recordes. Por outro lado, os pesquisadores levam em média
10 anos para publicar um artigo em periódico de alta qualidade.

Segundo, emergiu da pesquisa de campo uma prática heterodoxa de divisão


do trabalho: os mais jovens (mestrandos e doutorandos) pesquisam e escrevem, e
os mais velhos (professores doutores) assinam. No período analisado, dois terços
da produção científica dos pesquisadores foi gerada por orientandos. Os
orientadores aparecem como primeiros autores apenas em 16% dos trabalhos. Em
suma, os textos científicos são produto de uma linha de montagem orientada para a
produção em massa de artigos de baixo impacto e qualidade duvidosa.

As entrevistas realizadas por Pegino com pesquisadores e doutorandos


revelam o funcionamento da máquina. As diretrizes de produção vêm de Brasília e
são desdobradas em cada unidade industrial. Nas fábricas, os capatazes põem seus
servos a trabalhar. Trechos das entrevistas revelam a dura realidade: a pressão
permanente por produção e a reação de professores e estudantes. O mercado é
muito competitivo e pouco seletivo: mais importa a quantidade que a qualidade. Os
mais velhos respondem como podem ao sistema, frequentemente empregando
artifícios criativos para atender as metas de produção. Os mais jovens submetem-
se. Quem não produz é condenado ao desterro. Alguns pesquisadores esmeram-se
na adaptação, tirando o máximo rendimento de suas fábricas e de seus servos.
Outros, sabe-se bem, refugiam-se na nostalgia de tempos passados e empregam
sofisticada retórica para defender sua zona de conforto. Aqui e acolá, surgem casos
exóticos: alunos que parecem fazer trabalho de ghost-writer e doutorandos que
orientam mestrandos.

A tentativa de transformar a lerda e improdutiva academia tropical em


máquina do conhecimento parece ter gerado uma linha de montagem cara e

177
anacrônica, comandada (segundo palavras dos entrevistados de Pegino) por
pseudopesquisadores, orientadores fantasmas, picaretas, primas-donas e cafetões
acadêmicos. Um dos pesquisadores ouvidos criticou a fixação dos colegas com o
acúmulo quantitativo de publicações e a dificuldade para publicar artigos em
periódicos de alta qualidade: "[é] igual o carnaval de Salvador: o cara está muito
mais preocupado em quantas ele pegou [...] do que com a qualidade da mulherada
que ele pegou, entendeu? [...] só que é o seguinte, meu amigo, pra pegar baranga é
um minuto de conversa, pra pegar gata tem que conversar, tem que levar". Bonito,
não? Sem comentários!

178
A USP (não) é várzea!
A mais importante instituição de ensino e pesquisa do País teve um ano
difícil. Em 2015, precisa trabalhar firme para recuperar sua boa
reputação

Toda nação têm, ou deveria ter, instituições de referência. Por sua conduta e
realizações, elas conquistam o reconhecimento franco e o respeito sincero dos
cidadãos. Elas são importantes porque sinalizam valores e norteiam
comportamentos, fomentando virtudes que alicerçam o progresso social.

Para muitos brasileiros, a Petrobras foi uma instituição de referência. Desde


sua criação, no início dos anos 1950, a empresa ficou gravada no inconsciente
coletivo como símbolo de realização industrial e da capacidade para desenvolver
tecnologia avançada. Durante décadas, foi exemplo de excelência técnica e de
gestão baseada na meritocracia. Com o pré-sal, a empresa passou a ser vista como
passaporte para uma sociedade mais rica e socialmente mais justa. Entretanto, a
interferência política e os escândalos resultantes minaram a empresa e o símbolo.
Resta agora apurar responsabilidades e recuperar a reputação abalada.

Para muitos paulistas, a USP foi uma instituição de referência: um polo


gerador de conhecimento e centro de formação de profissionais e cientistas. Criada
em 1934, a USP teve papel notável na formação da elite dirigente do País. Nutriu
processos políticos e culturais. Sofreu durante o período militar e cresceu após a
redemocratização. Hoje, a instituição tem mais de 90 mil alunos e um corpo
docente de cerca de seis mil professores. É a universidade que mais forma mestres
e doutores no País. Nos rankings internacionais, ocupa lugar de destaque,
especialmente entre as instituições ibero-americanas. Seu orçamento anual supera
quatro bilhões de reais.
179
Entretanto, 2014 foi mais um ano trágico para a instituição. Sucessivos
escândalos e más notícias macularam sua reputação. A crise veio na esteira de uma
expansão acelerada, investimentos polêmicos e crescimento da folha de
pagamentos, que em 2014 superou seu orçamento total. A própria universidade
divulgou seus salários. O quadro revelado é espantoso. Na base, muitos salários são
modestos. Entretanto, dezenas de professores aposentados e até analistas
administrativos recebem valores de fazer inveja a diretores de empresas, na ativa.

Somaram-se às más notícias greves e paralisações, eventos traumáticos de


violência e um rumoroso caso envolvendo estupros na faculdade de medicina.
Além do show de horrores na mídia, o boca a boca de estudantes da própria
instituição contribui para conspurcar a imagem de seriedade construída durante
décadas, dando conta de instalações decadentes, docentes negligentes, funcionários
relapsos e sindicalistas anacrônicos.

As consequências começam a ser sentidas. Em uma escola paulistana, os


alunos preparam-se para o vestibular. À medida que os exames se aproximam, as
escolhas são feitas. Adriana quer fazer arquitetura. Visitou a USP, não gostou do
que viu e desistiu da Fuvest. André decidiu estudar direito, mas optou por uma
faculdade com proposta mais moderna e arejada que a vetusta escola do Largo do
São Francisco. Julio vai prestar administração, mas não quer saber das greves e
confusões da USP. Clarice resume a percepção da turma: a USP é várzea! Todos
concordam.

Na vida escolar, a expressão “é várzea” é comumente atirada contra


professores relapsos, conteúdos defasados e matérias mal dadas. Vê-la aplicada, de
maneira espontânea e ingênua, contra a principal instituição de ensino e pesquisa
do País é triste e desconcertante. E pode não ser justo, porque, embora a instituição
esteja passando por problemas graves, continua contando com um corpo invejável
de professores, alunos brilhantes e centros de excelência em pesquisa. Entretanto, a

180
percepção contamina a interpretação que, reforçada por seguidas más notícias, é
tomada por verdade.

Para qualquer organização, a reputação é um ativo fundamental. Sua


construção é lenta e exige enorme esforço, mas sua destruição pode ser rápida e
irreversível. Reformar um gigante descontrolado, propenso a teorias conspiratórias,
refém de grupos com interesses conflitantes, perdido em disputas retóricas, de
governança impossível e coalizões instáveis, é tarefa hercúlea. Os povos dos
trópicos aguardam ansiosos pelo início dos 12 trabalhos e agradecem
antecipadamente os esforços.

181
O Lobo do Management
Pesquisadores da Holanda criticam a introdução de práticas empresariais
nas universidades.

Na edição de abril da revista científica Minerva, os pesquisadores Willem


Halffman e Hans Radder publicaram texto contundente e provocativo. Sob o título
“O Manifesto Acadêmico: Da Universidade Ocupada para a Universidade Pública”,
os autores analisam criticamente a modernização do ensino superior holandês,
frequentemente citado como exemplo de superação do anacrônico modelo torre de
marfim. O tom é desinibido e panfletário, e conclama acadêmicos para uma ação
transformadora.

Segundo Halffman e Radder, as universidades holandesas foram invadidas e


ocupadas. O ocupador, no caso, não é força fardada ou milícia religiosa. Afinal,
trata-se dos Países Baixos Os autores referem-se a um verdadeiro lobo mau: o
Lobo do Management. Segundo eles, o management é um regime obcecado com
medições, controles, competição, eficiência e a ideia tortuosa de salvação
econômica. Para expulsar o ocupador e devolver as universidades aos cidadãos, os
autores propõem que os próprios acadêmicos assumam o controle de seu destino e
construam uma nova universidade pública, alinhada com o bem comum e com uma
proposta de geração de conhecimento socialmente engajado.

Halffman e Radder advogam que o Lobo do Management invadiu a academia


com um “exército mercenário de administradores profissionais, armados com
planilhas, indicadores de desempenho e procedimentos de auditoria”. Seu inimigo
são os acadêmicos, esses seres egocêntricos e autocentrados, pouco confiáveis, que
precisam ser monitorados e controlados. As universidades foram conquistadas e
colonizadas. Projetos de alta visibilidade e indicadores manipulados mostram para o
182
público externo o sucesso do novo modelo. Entretanto, há uma sensação de
revolta no ar: no “chão de fábrica”, o clima é tóxico e a moral é baixa.

O Lobo do Management cultua índices e rankings. Inventaria artigos


publicados e comemora com champanhe cada posição galgada nas listas
internacionais. A posição nas planilhas determina a sorte de pesquisadores e de
departamentos. Vence a quantidade; pouco importa o conteúdo. Na batalha dos
números, acadêmicos criam fábricas de artigos, assinam trabalhos uns dos outros,
citam-se mutuamente e correm o mundo promovendo seus textos. O que vale é a
performance.

Enquanto isso, no mercado acadêmico, multiplicam-se os eventos e as


revistas científicas. Sobram escritores e faltam leitores. Halffman e Radder
argumentam que o fetiche dos indicadores está transformando a ciência, destruindo
tudo que não é mensurável. Sob o ocupador, a massa de acadêmicos comporta-se
como um rebanho de ovelhas, mantido sob vigilância e controle.

O novo mantra é a busca da eficiência. Em lugar de recursos, as


universidades ganham gestores. Resultado: nos orçamentos, recursos migram de
laboratórios para serviços de relações públicas, da pesquisa para a contratação de
consultores de marketing. A nova universidade aparece em anúncios de página
inteira nos jornais, mantém websites atraentes e garante presença constante nas
mídias sociais. Seus professores e pesquisadores devem tornar-se celebridades nos
jornais, na TV e, claro, nas palestras TED.

Com as práticas empresariais, o Lobo do Management impõe nova cultura. O


culto da excelência, que flagelou empresas nas décadas de 1980 e 1990, chega
décadas depois à universidade. É preciso ser “de topo”: publicar artigos em um
seleto grupo de periódicos, ter os coautores certos, conseguir proeminência nos
círculos mais prestigiosos, ser um hábil captador de recursos e gerenciar uma dócil
equipe de pesquisadores juniores. Para manterem-se na ribalta, os tais

183
pesquisadores “de topo” terceirizam o ensino para doutorandos e coagem
orientandos a conceder-lhes coautorias.

A história holandesa repete-se em diferentes latitudes e longitudes. Muitas


universidades públicas tropicais são antediluvianas. Elas continuam a seguir o
anacrônico modelo torre de marfim e lutam para preservar pequenos privilégios.
São perdulárias, ineficientes e ineficazes. São autocentradas e ignoram o mundo ao
redor. Porém, começam a sentir os efeitos do “choque de gestão” descrito por
Halffman e Radder. E, assim, somam às suas antigas patologias – autismo e
imobilismo – as mais novas – produtivismo, exibicionismo e comportamentos para
inglês ver. Algumas ovelhas exauridas e irritadas ganem aqui e acolá. Porém falta-
lhes direção e união.

184
PARTE 4 – O CAPITALISMO SELVAGEM E A FORMAÇÃO
PROFISSIONAL

185
Procuram-se estudantes
Além do mico-leão-dourado, do guigó-da-caatinga, do lobo-guará e do
macaco-prego-galego, outro mamífero tropical parece caminhar para a
extinção.

Diz-se que uma espécie encontra-se ameaçada quando a população decresce


a ponto de situá-la em condição de extinção. Tal processo é fruto da exploração
econômica e do desenvolvimento material, e atinge aves e mamíferos em todo o
planeta. Nos trópicos, esse pode ser o caso dos estudantes. Curiosamente,
enquanto a população de alunos aumenta, a de estudantes parece diminuir.
Paradoxo? Parece, mas talvez não seja.

Aluno é aquele que atende regularmente um curso, de qualquer nível,


duração ou especialidade, com a suposta finalidade de adquirir um conhecimento
ou ter direito a um título. Já o estudante é um ser autônomo, que busca uma nova
competência e pretende exercê-la, para o seu benefício e da sociedade. O aluno
recebe. O estudante busca. Quando o sistema funciona, todos os alunos tendem a
tornar-se estudantes. Quando o sistema falha, eles se divorciam. É o que parece
ocorrer entre nós: enquanto o número de alunos no ensino fundamental, médio e
superior cresce, assombram-nos sinais do desaparecimento de estudantes entre as
massas discentes.

Alguns grupos de estudantes sobrevivem, aqui e acolá, preservados em


escolas movidas por nobres ideais e boas práticas, verdadeiros santuários
ecológicos. Sabe-se da existência de tais grupos nos mais diversos recantos do
Planeta: na Coreia do Sul, na Finlândia e até mesmo no Piauí. Entretanto, no mais
das vezes, o que se vê são alunos, a agir como espectadores passivos de um

186
processo no qual deveriam atuar como protagonistas, como agentes do
aprendizado e do próprio destino.

Alunos entram e saem da sala de aula em bandos malemolentes, sentam-se


nas carteiras escolares como no sofá de suas casas, diante da TV, a aguardar que o
show tenha início. Após 20 minutos, se tanto, vêm o tédio e o sono. Incapazes de se
concentrarem, eles espreguiçam e bocejam. Então, recorrem ao iPhone, à internet e
às mídias sociais. Mergulhados nos fragmentos comunicativos do pinico digital,
lambuzam-se de interrogações, exclamações e interjeições. Ali o mundo gira e o
tempo voa. Saem de cena deduções matemáticas, descobertas científicas, fatos
históricos e o que mais o plantonista da lousa estiver recitando. Ocupam seu lugar
o resultado do futebol, o programa de quinta-feira e a praia do fim de semana.

As razões para o aumento do número de alunos são conhecidas: a expansão


do ensino fundamental, médio e superior, ocorrida aos trancos e barrancos, nas
últimas décadas. A qualidade caminhando trôpega, na sombra da quantidade. Já o
processo de extinção dos estudantes suscita muitas especulações e poucas certezas.
Colegas professores, frustrados e desanimados, apontam para o espírito da época:
para eles, o desaparecimento dos estudantes seria o fruto amargo de uma sociedade
doente, que festeja o consumismo e o prazer raso e imediato, que despreza o
conhecimento e celebra a ignorância, e que prefere a imagem à substância.

Especialistas de índole crítica advogam que os estudantes estão em extinção


porque a própria escola se tornou anacrônica, tentando ainda domesticar um
público do século XXI com métodos e conteúdos do século XIX. Múltiplos grupos
de interesse, em ação na educação e cercanias, garantem a fossilização, resistindo a
mudanças, por ideologia de outra era ou pura preguiça. Aqui e acolá, disfarçam o
conservadorismo com aulas-shows, tablets e pedagogia pop. Mudam para que tudo
fique como está.

187
Outros observadores apontam um fenômeno que pode ser causa-raiz do
processo de extinção dos estudantes: trata-se da dificuldade que os jovens de hoje
enfrentam para amadurecerem e desenvolverem-se intelectualmente. A
permissividade criou uma geração mimada, infantilizada e egocêntrica, incapaz de
sair da própria pele e de transcender o próprio umbigo. São crianças eternas, a
tomarem o mundo ao redor como extensão delas próprias, que não conseguem
perceber o outro, mergulhar em outros sistemas de pensamento e articular novas
ideias. Repetem clichês. Tomam como argumentos o que copiam e colam de
entradas da Wikipédia e do que mais encontram nas primeiras linhas do Google. E
criticam seus mestres, incapazes de diverti-los e de fazê-los se sentirem bem com
eles próprios. Aprender cansa. Pensar dói.

188
Virtudes perdidas
Ao longo de sua história, as escolas de negócios abdicaram de seus altos
propósitos originais, de formar profissionais voltados para atender os
interesses da sociedade, e abraçaram sem pudor o comercialismo.

Vivemos em uma sociedade de grandes organizações. Elas podem ser


empresas privadas, estatais ou configurações híbridas. Qualquer que seja o tipo, nós
dependemos delas para nascer, estudar, trabalhar, comer, beber, envelhecer e
morrer. No centro de nosso sistema social, existe um poder invisível: o poder
exercido pelos exércitos anônimos de executivos e gestores. Exceto por algumas
estrelas fugazes, eles não chamam muito a atenção. No entanto, a forma como
pensam, tomam decisões e agem pode afetar, de maneira sutil ou dramática, o
destino de cada um de nós.

No livro From Higher Aims to Hired Hands: The Social Transformation of American
Business Schools and the Unfulfilled Promise of Management as a Profession (Princenton
University Press), o professor e pesquisador de Harvard Rakesh Khurana analisa a
história centenária das instituições que formam esses exércitos. Seu argumento é
que, com o passar do tempo, as escolas de negócios abandonaram seu propósito
original, de consolidar uma nova profissão, formando gestores, e perderam o rumo,
deixando-se pautar exclusivamente pelas forças de mercado.

Profissões, explica Khurana, ocupam um lugar de destaque na hierarquia do


mundo do trabalho. Elas carregam valores culturais e respondem a demandas
sociais. Um médico, por exemplo, é mais do que um trabalhador da saúde. Sua
profissão deve refletir valores humanos e éticos, e sua prática deve responder às
necessidades da sociedade na qual está inserido. Além de responderem às demandas
sociais, as profissões também interferem e ajudam a criar a ordem social. As
189
profissões mais emblemáticas tornam-se referências de valores e seus profissionais
tornam-se modelos de conduta: médicos, bombeiros e professores carregam
símbolos positivos; políticos têm constituído sua antítese.

Em suas primeiras décadas, as escolas de negócios, especialmente aquelas


surgidas no seio das universidades, assumiram a missão de formar administradores,
como as escolas de medicina formavam médicos: profissionais íntegros e éticos,
capazes de preservar os mais altos valores e responder às demandas sociais.
Entretanto, a partir da década de 1970, mudanças nos ambientes econômico e
educacional desvirtuaram essa missão.

A primeira mudança foi uma orientação para pesquisa científica que, apesar
das boas intenções, afastou as escolas da prática empresarial e as transformou em
torres de marfim, voltadas para o próprio umbigo. A segunda mudança envolveu a
crescente prevalência de certas perspectivas econômicas e financeiras,
transformando o administrador em um operador da “mão invisível”, um
instrumento a serviço da obtenção de resultados de curto prazo. A terceira
mudança relacionou-se ao crescente processo de comercialização do ensino da
administração. De fato, o ensino da gestão deixou de ser uma atividade educacional
para se transformar em uma indústria, capaz de movimentar vastos recursos e gerar
invejáveis margens de lucro. Com isso, as próprias escolas passaram a ser geridas
como empresas, sempre buscando polir sua imagem, atender seus clientes,
racionalizar o uso de suas instalações e maximizar seus resultados. O Brasil seguiu,
com algum atraso e adicionando peculiaridades, o processo norte-americano.

Hoje, a educação em gestão é um negócio global, complexo e em ainda em


transformação. Até a década de 2000, a indústria foi dominada pelos MBAs norte-
americanos, vistos por jovens ambiciosos de todo o mundo como passaporte para
o sucesso. Sua fama foi alavancada pela proliferação dos rankings, muitos deles
enfatizando explicitamente o retorno sobre o investimento, ou seja, quanto o
salário aumenta depois de uma passagem por um MBA.

190
Nos últimos anos, o modelo MBA perdeu fôlego e ganhou concorrentes.
Surgiram os Masters in Management, para profissionais em início de carreira, e
ganharam popularidade os Executive MBAs, mais curtos que os MBAs e destinados
a profissionais mais experientes. Os próprios MBAs, antes essencialmente
generalistas, passaram a ser oferecidos como programas especializados em finanças,
marketing e grande variedade de cores e sabores.

Ao norte, como ao sul do Equador, as mudanças distorceram as boas


intenções originais, de fazer da administração uma profissão reconhecida e
socialmente relevante. A crítica de Khurana foca exclusivamente a administração e
as escolas de negócios. Entretanto, os processos apontados pelo autor ocorreram
em outras profissões. Se persistirem as tendências, talvez o próprio conceito de
profissional seja uma ideia com os dias contados, a ser sepultada por coveiros
nostálgicos no cemitério da força de trabalho.

191
Investimento duvidoso
Análises recentes sugerem que investir tempo e dinheiro na realização
de certos cursos superiores pode ser divertido, porém um mau negócio.

A educação formal é uma conquista da civilização. Cultiva a mente e a alma.


E ainda alimenta os motores da mobilidade social, permitindo atender nossas
necessidades básicas e também as supérfluas. Quanto maior o tempo dentro da
escola, maior o salário fora dela. Não é à toa que o ensino superior explodiu no
Brasil, incluindo a pós-graduação. E a explosão motivou a cobiça de empresários e
financistas, de olhos e bolsos sempre abertos a boas oportunidades de negócios.

Entretanto, não é preciso ser um gênio estatístico para notar que a linha reta
ascendente que correlaciona horas-aula e dígitos no holerite representa uma nuvem,
que é povoada em suas bordas por sucessos excepcionais e fracassos retumbantes.
Investir quatro ou cinco anos na realização de um curso superior pode ampliar o
ciclo social, alimentar a vida cultural e estimular as conexões mentais. Entretanto,
em muitos casos, pode não gerar retorno sobre o dinheiro investido em
mensalidades, livros e outras despesas.

Ao norte do Rio Grande, onde os habitantes cultuam números e estatísticas,


análises recentes exploraram as bordas da citada nuvem. A base de dados veio da
PayScale Human Capital, uma organização que opera uma plataforma virtual para
coletar e analisar salários. O banco de dados da empresa compreende egressos de
mais de 900 instituições de ensino superior norte-americanas. Derek Thompson,
em textos veiculados no website da revista The Atlantic, utilizou os dados para indicar
quais eram as melhores universidades e os melhores cursos para quem quer ganhar
dinheiro; e, na ponta oposta, quais eram as piores universidades e os piores cursos,
aqueles incapazes de gerar renda que cubra o que foi investido.
192
No primeiro grupo, foram identificados os suspeitos usuais – MIT, Stanford,
Princeton e Harvard – e algumas surpresas – como o Harvey Mudd College, da
California. Quanto aos cursos, nenhuma surpresa: ciências da computação, ciências
da computação e ciências da computação. Conclusão: aspirantes a milionários
podem buscar o calor da Califórnia ou o frio de Boston, desde que nutram paixão
por bits e bytes. Se a perspectiva não for sedutora, uma graduação em administração,
engenharia ou economia em das boas escolas ianques pode também retornar
magnificamente o investimento realizado.

No segundo grupo, Thompson listou obscuras universidades do Alabama e


outros recantos remotos da pátria de Obama. Entre os cursos, concluiu que os de
artes, pedagogia e língua inglesa são os que provavelmente deixarão seus egressos à
míngua. Podem ser ótimos para expandir o espírito, mas são péssimos para
preencher o bolso.

Para os humanistas preocupados, a saída para evitar uma existência de


penúria, a dilapidar a herança familiar ou viver de benesses estatais, é fazer o curso
em uma escola de ilibada reputação, como a Columbia, citada pelo autor. Ainda
assim, o cidadão que fizer a graduação em artes verá seu colega economista
amealhar o dobro da renda e seu colega formado em informática ganhar três vezes
mais. Naturalmente, é temerário colocar um preço no benefício da educação. No
entanto, se o jovem cidadão tem família e precisa ganhar a vida, então é
recomendável buscar formação que o ajude a pagar as contas.

Então, afinal, vale a pena (financeiramente) fazer faculdade? Nem sempre.


Uma escolha errada pode condenar o futuro profissional ao subemprego e a
frustrações. Ao norte do Rio Grande, os números ajudam na tomada de decisões.
Cá nos trópicos, carecem as estatísticas, mas não faltam suspeitas. Sobram-nos
cursos anacrônicos, afastados das demandas da sociedade ou das organizações.
Sobram-nos também programas criados e geridos exclusivamente para atrair
massas de incautos.

193
Transparência nas informações, como aquelas oferecidas por PayScale, e o
avanço do ensino aberto a distância tendem a aumentar a pressão sobre as
instituições de ensino superior. Aquelas que não souberem responder à altura
sentirão a busca por vagas minguar e a qualidade do corpo discente decair. As
instituições que forem capazes de oferecer um futuro melhor pelo tempo e
recursos investidos por seus alunos terão mais chance de ser bem-sucedidas. Bom
para elas, para os seus egressos e para a sociedade.

194
Tiro no escuro
Para muitos jovens, prestes a realizarem exames vestibulares, a escolha
da futura profissão é uma verdadeira loteria.

O conto “Profession”, publicado em 1957 por Isaac Asimov, retrata a Terra


em um futuro distante e distópico. As crianças são educadas por um sistema
central, que liga diretamente seus cérebros a um computador. As futuras profissões
são definidas com base em um algoritmo. Não cabe aos indivíduos escolher seu
ofício. “Profession” é uma entre muitas obras de ficção científica a tratar da
questão da escolha ou direcionamento profissional.

O tema também ocupa lugar de destaque entre as preocupações de jovens,


pais, psicólogos, educadores e gestores da educação. No Brasil, temos uma
associação de orientadores profissionais e uma revista científica dedicada ao tema.
Em nosso país, todos os anos, no segundo semestre, centenas de milhares de
jovens preparam-se para a maratona de exames vestibulares.

Segundo o INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais


Anísio Teixeira), o Brasil ultrapassou em 2012 a marca de sete milhões de alunos
no ensino superior. Eles estão matriculados em 32 mil cursos, oferecidos por mais
de duas mil instituições de ensino. Nosso sistema superior de educação cresceu
aceleradamente desde o final da década de 1990 e quase duplicou de porte nos
últimos 10 anos.

No entanto, o crescimento e o gigantismo não foram ainda suficientes para


atender a demanda por formação de alta qualidade. Nos cursos mais procurados e
nas instituições de maior renome, a relação candidato x vaga frequentemente

195
supera a dezena e, vez por outra, aproxima-se da centena. O funil de acesso coloca
legiões de pais e filhos à beira de um ataque de nervos.

Nos últimos anos, a realização do curso superior tornou-se aspiração de


novos contingentes de jovens, antes alijados da universidade por barreiras
econômicas. Em paralelo, visando atender o novo “mercado”, nasceram e
prosperaram instituições privadas de ensino superior, com um olho na educação e
outro no bolso, não necessariamente nessa ordem. Na esquina ideológica oposta, o
sistema público, caro e anacrônico, salta de crise em crise, a vergar sob o peso de
querelas políticas, governança excêntrica e interesses corporativistas. Enquanto
isso, o mundo gira e o mercado de trabalho é convulsionado por estripulias
econômicas, profissões que emergem e outras que submergem, e carreiras que
rompem as fronteiras tradicionais.

No meio da confusão, nossos jovens enfrentam o descabido desafio de, aos


17 anos de idade, definirem o próprio futuro. Os manuais de autoajuda vocacional
costumam ser pródigos em sugestões tão sensatas quanto inexequíveis: conheça a si
próprio, conheça as profissões, conheça os profissionais, trabalhe e experimente.
Alguns jovens têm vocação clara, mas são raros. Outros pensam tê-las, porém
titubeiam diante dos primeiros choques de realidade. A maioria lança-se
semiconsciente ao mar, torcendo para que uma corrente amiga a leve a um porto
seguro.

A escolha profissional é caso típico de tomada de decisão na ausência de


informações. Quem sou eu? Quais são meus potenciais? O que quero da vida? São
perguntas básicas, porém difíceis de responder aos 17 anos de idade. A outra ponta
não é mais simples. Como estará o mercado de trabalho daqui a quatro ou cinco
anos? Quais serão as melhores profissões do futuro? O que me trará satisfação? O
que me garantirá uma vida confortável?

196
E, como se não bastassem as dificuldades naturais, as paixões e as ansiedades
envolvidas, as decisões são tomadas em um teatro de consumo, no qual escolas
secundárias competem pelas maiores taxas de sucesso no vestibular, cursinhos
vendem seus serviços e as novas instituições de ensino tentam atrair recrutas para
suas “propostas diferenciadas”.

Não é de estranhar que muitos jovens iniciem cursos superiores, pouco


depois parem e tentem outros caminhos. E há também aqueles que teimeam na
escolha original e, ainda que frustrados, terminem o curso e sigam a padecer pela
vida profissional afora. O custo da escolha mal feita é alto para os jovens, para seus
pais e para a sociedade. Há quem diga que mais sábios são nossos pares do
hemisfério norte, que oferecem aos seus universitários a oportunidade de inícios
com conteúdos mais genéricos, adiando dessa maneira as decisões profissionais
para momentos de maior maturidade e lucidez.

197
Acertos e erros
Diretores das melhores escolas de administração do mundo revelam o
que os programas de formação de gestores têm de melhor... e de pior.

Em 2014, o jornal inglês Financial Times realizou uma pesquisa com 72


diretores das principais escolas de administração do mundo. A opinião do seleto
grupo importa, porque suas instituições formam anualmente milhares de futuros
líderes, profissionais cujas decisões influenciarão as vidas de milhões de
empregados, clientes e acionistas, e poderão gerar impactos sobre comunidades e
países.

Foram ouvidos 62 homens e 10 mulheres, quase todos na faixa de 50 a 60


anos de idade. Há predominância de instituições norte-americanas, porém com
presença significativa de escolas europeias e o despontar de algumas instituições
asiáticas. O mapa do Financial Times não registrou escolas africanas ou latino-
americanas.

Duas questões nortearam a pesquisa: o que a educação em gestão tem de


melhor e o que tem de pior. Todos responderam a primeira pergunta. Alguns
escaparam da segunda pergunta. Certas respostas são pueris, outras revelam visão
crítica. Emergem alguns consensos.

Os diretores consideram seus cursos como motores para a transformação da


sociedade e construção de um mundo mais próspero e justo. Os cursos incentivam
a criatividade, fomentam comportamentos éticos e estimulam a noção de
responsabilidade social. Os diretores também creem que o management é uma caixa
valiosa de ferramentas que provê soluções para problemas reais das empresas, das
organizações e da sociedade.
198
O grupo aponta também o efeito positivo dos cursos sobre os estudantes,
considerando-os como uma experiência transformadora, capaz de transmutar sapos
em príncipes. Os programas proporcionam uma visão complexa do mundo e das
empresas, desenvolvem o raciocínio analítico e a capacidade de tomar decisões.
Além disso, tornam os estudantes mais conscientes de seu potencial e de suas
possibilidades. Com isso, abrem-se novas possibilidades profissionais.

Alguns diretores ainda assinalaram que o melhor dos programas vem da


interação de professores e estudantes em torno de uma agenda contemporânea, que
os desafia a encontrar soluções para questões prementes. Tais questões referem-se
a temas relacionados à competição à geração de valor para as empresas. No
entanto, consideram cada vez mais temas de alcance social, relacionados ao
impacto econômico, ambiental e social dos negócios sobre a sociedade.

A maioria dos respondentes não se furtou a responder a questão sobre o


lado escuro dos programas de formação em gestão. Aqui, o discurso politicamente
correto deu lugar para a reflexão crítica. Afinal, não foram poucos os casos de ex-
estudantes envolvidos com escândalos financeiros. E até George Bush fez MBA!

Alguns diretores de escolas reconhecem que os programas frequentemente


oferecem fórmulas simplistas para resolver problemas complexos. Além disso,
estimulam os estudantes a ver a busca dos lucros como um fim em si próprio, sem
atentar para os impactos de suas ações sobre funcionários, clientes e a sociedade.
Outro aspecto mencionado foi a promoção de uma visão utilitarista, fundada em
leituras apressadas de princípios de racionalidade econômica, que levam os futuros
profissionais a buscar ganhos de curto prazo nas empresas, sem considerar as
consequências em longo prazo.

Segundo os entrevistados, muitos professores parecem mais interessados em


suas carreiras de pesquisadores de temas herméticos do que em ajudar a buscar
soluções para problemas reais. Muitas instituições ainda se comportam como torres

199
de marfim, distantes e desdenhosas da vida corporativa. Orientam sua pesquisa
para assuntos exóticos, ao gosto dos editores de prestigiosas revistas científicas,
porém sem considerar a possibilidade de usar o conhecimento gerado para
transformação da realidade.

Os diretores também criticaram o comportamento de alguns professores que


se tornam empresários de si mesmos, escrevendo livros de autoajuda, para se
promoverem como gurus e consultores. Um entrevistado referiu-se explicitamente
à grande quantidade de lixo sendo promovida como inovação.

Finalmente, um número significativo de entrevistados registrou que o


modelo dominante de formação de gestores – os programas de MBA – constitui
uma criação norte-americana, notavelmente bem sucedida, porém criada para um
mundo que não existe mais. Segundo eles, é preciso coragem e criatividade para
inventar novos modelos, adequados aos novos tempos.

200
O futuro da educação
Estudantes e mestres preparem-se! Vem aí a Air School e o Uber MBA.

Uber, o serviço de transporte urbano que tira o sono dos taxistas, e Airbnb,
o serviço de hospedagem que causa pesadelos entre donos de hotéis, alimentam a
febre atual de novidades movidas à tecnologia. Não se sabe se desaparecerão em
um ano ou se tornarão novos Facebooks. Por enquanto, hipnotizam a mídia de
negócios e atraem a atenção de usuários e investidores.

Uber e Airbnb constituem materializações do conceito de empresa virtual,


surgido nos anos 1990. Por traz do conceito, uma ideia simples: o acesso amplo às
tecnologias de informação e comunicação possibilita a criação de modelos
lucrativos de negócios que não dependem de fábricas, escritórios ou quadros
inchados de empregados.

Os componentes dos novos sistemas são facilmente identificados: proposta


de valor funcional e contemporânea; comunicação simples, porém sofisticada; foco
no uso, em lugar da propriedade; uso intensivo de tecnologia; e aproveitamento de
recursos existentes e pouco utilizados (assentos vazios em carros particulares, para
o Uber; lares desocupados, para a Airbnb).

As duas empresas operam como agentes de intermediação, direcionando sua


comunicação para provedores e para usuários de recursos. Uber apela para o
status: “seu motorista particular”; e para o empreendedorismo e a liberdade:
“trabalhe quando puder” e “ganhe dinheiro sem ir ao escritório e enfrentar um
chefe chato”. Airbnb esforça-se para criar uma atmosfera intimista e funcional:
“alugue seu espaço extra sem nenhum esforço”, “abra um mundo de
possibilidades” e “sinta-se em casa”.

201
O que ocorreria se a criatividade nerd, que desenvolveu esses dois modelos
de negócios, mirasse a educação universitária? Uma amostra do resultado pode ser
avaliada nas iniciativas de ensino a distância que se multiplicaram nos últimos anos,
algumas delas em parcerias com renomadas universidades. Quem tiver a paciência
para assistir aulas virtuais, primeiro, ficará assustando com a má qualidade do que é
veiculado (será isso mesmo que se ensina nas universidades?) e, segundo,
comprovará que aulas virtuais são ainda mais aborrecidas do que aulas presenciais.
Em meio às montanhas de joio, talvez encontre algum trigo.

Mas o que seria uma Air School ou um Uber MBA? Uma reinvenção
completa do modelo de geração e de transmissão de conhecimento, hoje tão
criticado? Estudantes agendando módulos em diferentes universidades, por um
aplicativo? Motoristas professores explicando marketing e finanças durante o
trajeto?

Em artigo publicado há alguns anos na revista científica Academy of


Management Learning & Education, Paul N. Figa, Richard A. Bettis e Robert S.
Sullivan realizaram um curioso exercício de futurologia, focando especificamente as
escolas e o ensino da administração. Os pesquisadores consideraram os grandes
motores da mudança: globalização, rupturas provocadas por novas tecnologias,
mudanças demográficas e desregulamentação. Tomaram como referência os
impactos desses vetores sobre três setores: a saúde, os serviços financeiros e o
transporte aéreo de passageiros. Então, perguntaram: e se impactos similares aos
que atingiram esses setores ocorressem na educação?

A leitura do texto leva a identificar seis grandes mudanças. A primeira


mudança relaciona-se ao movimento de fusões e aquisições, com o surgimento de
grandes grupos educacionais. A segunda diz respeito à entrada de novas instituições
no setor de educação, com propostas baseadas em massificação, padronização e
baixo custo. A terceira indica a internacionalização das instituições de ensino, com
atração de alunos e professores estrangeiros, e a abertura de campi no exterior. A

202
quarta sugere a superação do modelo artesanal de geração de conhecimento,
pulverizado em múltiplas instituições, e a criação de polos especializados que
abasteceriam todo o sistema de ensino. A quinta diz respeito ao declínio e eventual
desaparecimento de instituições subsidiadas que apresentam alto custo e geram
baixo impacto na formação de quadros e na geração de conhecimento. A sexta
relaciona-se ao aumento da utilização de modelos mistos, combinando atividades
presenciais e atividades remotas.

Algumas dessas mudanças já estão acontecendo. Podemos observar seus


efeitos e defeitos. Outras soam como sacrilégio ou delírio, mas podem estar a
caminho. Quem viver, verá... ou lamentará!

203
PARTE 5 – ESCAPANDO DO CAPITALISMO SELVAGEM

204
Pensar dói?
O ensaísta Neal Gabler une-se a um seleto grupo de nostálgicos
polemistas, que valorizam as ideias e se colocam contra a corrente,
fazendo críticas à internet, às mídias sociais e ao culto da informação.

Em texto publicado no New York Times, Neal Gabler, da Universidade do Sul


da Califórnia, argumenta que vivemos em uma sociedade na qual ter informações
tornou-se mais importante do que pensar: uma era pós-ideias. Gabler é o autor,
entre outras obras, de Vida, o Filme (editora Companhia das Letras), na qual afirma
que, durante décadas de bombardeio pelos meios de comunicação, a distinção entre
ficção e realidade foi sendo abolida. O livro tem o significativo subtítulo Como o
Entretenimento Conquistou a Realidade.

No texto atual, Gabler troca o foco do entretenimento para a informação.


Seu ponto de partida é uma constatação desconcertante: vivemos em uma
sociedade vazia de grandes ideias, leia-se, conceitos e teorias influentes, capazes de
mudar nossa maneira de ver o mundo. De fato, é paradoxal verificar que nossa era,
com seus gigantescos aparatos de pesquisa e desenvolvimento, o acesso facilitado a
informações, os recursos maciços investidos em inovação, e centenas de
publicações científicas, não seja capaz de gerar ideias revolucionárias, como aquelas
desenvolvidas noutros tempos por Einstein, Freud e Marx.

Não somos menos inteligentes do que nossos ancestrais. A razão para a


esqualidez de nossas ideias, segundo o autor, é que vivemos em um mundo no qual
ideias que não podem ser rapidamente transformadas em negócios e lucros são
relegadas às margens. Tal condição é acompanhada pelo declínio dos ideais
iluministas – o primado da razão, da ciência e da lógica – e a ascensão da
superstição, da fé e da ortodoxia. Nossos avanços tecnológicos são notáveis, porém
205
estamos retrocedendo, trocando modos avançados de pensamento por modos
primitivos.

Gabler critica o afastamento das universidades do mundo real, operando


como grandes burocracias e valorizando o trabalho hiperespecializado em
detrimento da ousadia. Critica também o culto da mídia por pseudoespecialistas,
que defendem ideias pretensamente impactantes, porém inócuas.

No entanto, o autor aponta que a principal causa da debilidade das nossas


ideias é o excesso de informações. Antes, nós coletávamos informações para
construir conhecimento. Procurávamos compreender o mundo. Hoje, graças à
internet, temos acesso facilitado a qualquer informação, de qualquer fonte, em
qualquer parte do planeta. Colocamos a informação acima do conhecimento.
Temos acesso a tantas informações que não temos tempo para processá-las.

Assim, somos induzidos a fazer delas um uso meramente instrumental: nós


as usamos para nos mantermos à tona, para preencher nossas reuniões profissionais
e nossas relações pessoais. Estamos substituindo as antigas conversas, com seu
encadeamento de ideias e sua construção de sentidos, por simples trocas de
informações. Saber, ou possuir informação, tornou-se mais importante do que
conhecer; mais importante porque tem mais valor, porque nos mantém à tona,
conectados em nossas infinitas redes de pseudorrelações.

As novas gerações estão adotando maciçamente as mídias sociais, fazendo


delas sua forma primária de comunicação. Para Glaber, tais mídias fomentam
hábitos mentais que são opostos àqueles necessários para gerar ideias. Elas
substituem raciocínios lógicos e argumentos por fragmentos de comunicação e
opiniões descompromissadas.

O mesmo fenômeno atinge as gerações mais velhas. Nas empresas, muitos


executivos passam parte considerável de seu tempo captando fragmentos de
notícias sobre mercados, concorrentes e clientes. Seu comportamento é o mesmo
206
no mundo virtual e no mundo real: eles navegam pela internet como navegam por
reuniões de negócios. Vivem a colher informações e distribuí-las, sem vontade ou
tempo para analisá-las. Tornam-se máquinas de captação e reprodução. À noite, em
casa, repetem o comportamento nas mídias sociais. Seguem a vida dos amigos e
dos amigos dos amigos; comunicam-se por uma orgia de imagens e frases curtas,
signos cheios de significado e vazios de sentido.

O futuro aponta para a disponibilidade cada vez maior de informações. A


consequência para a sociedade, segundo Gabler, é a desvalorização das ideias, dos
pensadores e da ciência. A considerar a velocidade com que livros e outros textos
estão sendo digitalizados e disponibilizados na internet, estamos no limiar de ter
todas as informações existentes no mundo ao nosso dispor. O problema é que,
quando chegarmos lá, não haverá mais ninguém para pensar a respeito delas.

Pode-se acusar o ensaísta de nostalgia infundada ou ludismo. Porém, ele não


está só. Felizmente, há sempre um grupo de livres-pensadores a se colocar contra o
conformismo massacrante das modas tecnológicas e comportamentais, nesta e em
outras eras.

207
Redução do ego
O imperativo de melhoria da qualidade de vida no trabalho demanda a
institucionalização de uma nova técnica psicocirúrgica: a egoplastia.

Id, ego e superego são, na teoria freudiana, as três partes que constituem o
modelo estrutural da psique. O id é o conjunto de instintos e contém as paixões. O
ego é a parte organizada do modelo e contém a razão. O superego é responsável
pelo papel crítico e contém a moral. Para Freud (editado pela Wikipedia, a salvação
do escriba apressado), o ego atua de acordo com o princípio da realidade,
procurando satisfazer a demanda do id de maneira realista e considerando o longo
prazo. Seu papel é de mediador entre o id e a realidade.

O ego compreende as estruturas da personalidade que incluem as funções


relacionadas à percepção, à cognição e à execução. O ego modifica-se pela
interação com o mundo exterior. Ele compreende funções tais como o julgamento,
a tolerância, o autocontrole, o planejamento e a memória; ajuda-nos a construir o
sentido do mundo ao redor, a organizar nossos pensamentos e a tomar decisões.
Embora a consciência se localize no ego, nem todas as suas funções são
conscientes.

De fato, a vida do ego não é simples. Ele serve a três senhores: a realidade, o
id e o superego. Assim, é pressionado pelo id, cerceado pelo superego e repelido
pela realidade. O ego precisa fazer o melhor para atender a todos, porém é
atormentado pelo risco de descontentar dois de seus senhores. Diz-se que tem uma
queda pelo id, preferindo agradar suas paixões, mas o superego não lhe dá tréguas e
o pune com sentimentos de culpa e inferioridade.

208
O pai da psicanálise ocupou-se do homem, de seus desejos e de seus
conflitos. Ele e seus conterrâneos não viveram em uma sociedade de massa como a
nossa, moldada por grandes corporações. Sua época conheceu muitas pragas, mas
não as que nos assolam hoje, como o consumismo e o hedonismo. Passado um
século de muitas mudanças, suas ideias continuam vivas e úteis.

A tríade freudiana parece ter curiosa aplicação em nossa sociedade de


grandes organizações. Disfunções do ego parecem ter se tornado uma patologia
corriqueira no mundo corporativo. Elas afetam executivos individualmente, e são
ampliadas quando estes se aglomeram nas hordas conhecidas como empresas.
Alguns deles têm o ego tão inflado que tornam rarefeito o ar ao seu redor. Quando
em sua proximidade, transpira-se abundantemente, mas sofre-se para respirar. Suas
frases iniciam-se sempre com “eu, por exemplo...”. O outro existe como
instrumento, ferramenta para suas realizações.

Executivos de ego inflado têm dificuldade para ouvir seus funcionários e


seus pares. Preferem sempre sua própria voz, ou seu próprio discurso, na voz do
outro. Eles (e elas) são impacientes e pouco propensos à reflexão; fogem dos
detalhes, refugiando-se nas grandes visões e nas grandes abstrações. Vivem para
sustentar seu ego, todo o tempo a frisar suas grandes realizações (nem sempre tão
grandes) e seus grandes feitos (nem sempre seus).

Organizações nas quais impera o ego inflado isolam-se em suas torres de


marfim, ignorando clientes, fornecedores e outros grupos de interesse. Seus
cavernícolas guiam-se por suas próprias sombras, projetadas em planilhas e slides
coloridos. Muitas delas tiveram trajetórias de sucesso. Cresceram e consolidaram-se
com produtos de sucesso e serviços de boa qualidade. Com o tempo, foram se
burocratizando e isolando do mundo, dando mais valor para símbolos de status e
jogos de poder do que para atender as demandas de seus clientes e as necessidades
de seus funcionários.

209
Haverá solução para as patologias do ego? A gastroplastia ou cirurgia
bariátrica, mais conhecida como cirurgia para redução do estômago, é um
procedimento médico indicado em alguns casos de obesidade mórbida. Tal
condição ocorre quando o indivíduo tem um índice de massa corpórea superior a
40 kg/m2, ou pouco menos que isso, porém com o agravamento do quadro de
saúde provocado por doenças relacionadas à obesidade, tais como diabetes,
hipertensão e apneia de sono. O procedimento pode empregar diferentes técnicas.
Qualquer que seja o caso, o paciente necessita de cuidadosa preparação antes do
procedimento cirúrgico e de cuidadoso acompanhamento após o procedimento.
Seria a medicina, e a psicanálise, capaz de desenvolver solução similar para os males
do ego?

210
A cri$e do$ e$$e$
Um colap$o $em precedente$ ameaça a impren$a e a$ letra$. Em pauta, a
falta de uma con$oante e$$encial.

A mídia internacional anda ocupada com a primavera árabe. Na mídia nativa


é $empre verão: dieta$, cara$ e glúteo$. Não é de e$tranhar que um tema de
envergadura ímpar tenha pa$$ado de$percebido. Poi$, prezado$ leitore$ e prezada$
leitora$, cabe revelar que o mundo (da mídia e da$ letra$, pelo meno$) e$tá diante
de uma catá$trofe iminente: a falta de e$$e$. I$$o me$mo! Aquela $inuo$a letra que
$ucede o “r” e antecede o “t”, muito útil na expre$$ão de $ub$tantivo$ plurai$ e
frequentemente acompanhada de um par idêntico.

Claro, a cri$e poderia $er pior. $empre pode. A$ con$oante$, nó$ a$ temo$
em grande número. Uma a meno$, aqui e ali, não provoca grande dano.
Improvi$amo$ e encontramo$ uma $aída honro$a. Ne$te texto, por exemplo,
$ub$tituímo$ o e$$e, com con$trangida ironia, pelo cifrão. Mundo e$tranho: faltam
e$$e$, $obram cifrõe$. De$culpamo-no$ pelo incômodo. Dada$ a$ circun$tância$,
con$ideramo$ e$ta a $aída mai$ digna. Ma$ e $e começarem a faltar vogai$? Ela$
$ão mai$ e$ca$$a$ e, por e$se critério da ciência econômica, mai$ valio$a$. O que
$eria do$ croni$ta$ $em poder u$ar um único “a” e do$ en$aí$ta$ $em poder lançar
mão de um único “o”? $eria o cao$, uma tragédia para o mundo da língua e$crita.

Como em todo momento de cri$e, não faltam teoria$ con$piratória$. Um


colega neomarxi$ta jura que a cri$e é fruto da luta de cla$$e$, que a burgue$ia
internacional tem mantido e$toque$ e$tratégico$ de e$$e$ em paraí$o$ fi$cai$,
pronto$ para inundar o mercado a$$im que o$ preço$ $ubirem. Um filólogo
amador, amargo e no$tálgico, confidenciou-me que o de$aparecimento não lhe
cau$a e$panto. De fato, a própria população bra$ileira tem culpa no cartório, poi$
211
u$a cada vez meno$ o e$$e. É “10 real” aqui, “o$ cara” ali... e a$$im vai. Uma
amiga convertida à$ boa$ cau$a$, depoi$ de 10 ano$ trabalhando no $i$tema
financeiro, perguntou-me, o dedo em ri$te: “Você acha me$mo que a eliminação
do trema foi apena$ uma deci$ão linguí$tica? Ingênuo... I$$o tudo é decidido em
Wall $treet, com ano$ de antecedência!”.

O$ $audo$i$ta$, como era de e$perar, lembraram-se do tempo em que toda$


a$ letra$ do alfabeto, até me$mo o íp$ilon, eram produzida$ no Bra$il, com
mercado protegido e apoio do governo. É verdade que a$ letra$ eram cara$ e o
acabamento não era grande coi$a, ma$ a$ palavra$ eram legívei$ e, afinal, quem
qui$e$$e coi$a melhor que muda$$e para o primeiro mundo. Agora, com a
globalização, tudo é feito na China. O gigante emergente produz tonelada$ de fonte
Arial e Time$ New Roman, em grande e$cala e com cu$to$ baixí$$imo$. Não há
como competir.

O que ninguém e$perava era e$ta cri$e de aba$tecimento. O de$arranjo


político e econômico do$ E$tado$ Unido$. A cri$e do euro, com centro $í$mico na
Grécia. A e$tagnação japone$a. O vexame do ex-diretor do Fundo Monetário
Internacional. Foi demai$ para o mercado. O de$balanceamento pegou o$ agente$
econômico$ de $urpre$a. Enquanto $eu$ olho$ e$peculativo$ acompanhavam o
euro e o ouro, o e$$e caminhava para o abi$mo.

A cri$e do e$$e repetiu a$ terrívei$ onda$ de cri$e$ anteriore$: o con$umo


caiu enquanto a produção continuava a pleno vapor, o$ e$toque$ $ubiram, o
mercado ficou abarrotado e o$ preço$ de$pencaram. O$ chine$e$ $e $eguraram,
ma$ $eu$ $ubcontratado$ filipino$ e norte-coreano$ quebraram em ma$$a,
deixando um ra$tro de de$emprego e mi$éria. Relato$ de Manila dão conta de
$uicídio$ coletivo$, fato extremo naquele paí$. Trabalhadore$ de Pyongyang
en$aiaram um prote$to, prontamente reprimido pelo querido líder Kim Jong-Il.

212
Por aqui, a cri$e pegou o$ e$criba$ de $urpre$a. Fo$$e letra de menor u$o,
como um “y” ou um “w”, a dificuldade $eria menor. A troca de $obrenome de
Wood para Hood, tal qual o do arqueiro de $herwood, não apre$entaria grande
dificuldade. $ub$tituir o e$$e é outra coi$a. Intuitivamente, apelamo$ para o primo
“z”, ma$ $ub$tituir Bra$il por Brazil tornará o autor alvo da horda u$ual de
puri$ta$ e di$cordante$ nato$, a acu$á-lo de vendido, preten$io$o e muito mai$.
Melhor deixar o cifrão me$mo, que já não cau$a e$panto e parece ser o novo
e$peranto.

Haverá $olução no horizonte? Uma conhecida revi$ta ingle$a, $empre


po$itiva com a mi$éria alheia, regi$trou em editorial que a globalização teria
permitido a milhõe$ de indiano$ e chine$e$ o ace$$o ao e$$e, e que e$ta cri$e,
como toda$ a$ anteriore$, $eria $uperada pela engenho$idade humana. E$te
e$criba go$taria de partilhar o otimi$mo do$ colega$ britânico$; go$taria de crer
que a$ turbulência$ e de$balanceamento$ $erão re$olvido$, que o$ político$ e o$
economi$ta$ $aberão o que fazer e que o futuro no$ re$erva um $orri$o autêntico.
Entretanto, $em alarme ou pânico, devemo$ no$ preparar. E$tá lançado o
movimento: ocupemo$ o alfabeto!

213
De Mozart a Sherman
Uma linha imaginária liga as trajetórias profissionais do genial músico
classicista e da renomada fotógrafa contemporânea. Em pauta: lições
para artistas e empreendedores em tempos de fetiche do mercado.

Wolfgang Amadeus Mozart nasceu em 1757, em Salzburg. Foi um


compositor prolífico e é considerado um dos maiores gênios da música de todos os
tempos. Cindy Sherman nasceu em Nova Jersey, em 1954. Vive e trabalha em
Nova Iorque. É uma das mais renomadas e reconhecidas fotógrafas
contemporâneas.

Comparar artistas tão diferentes, de épocas tão distintas, é temerário. Além


disso, diante de Mozart, qualquer artista empalidece. Feita a ressalva, lança-se o
argumento: há uma instigante relação entre as trajetórias profissionais de Mozart e
Sherman, ainda que separados por dois séculos e dois continentes.

Em 1781, Mozart deixou os serviços do Arcebispo de Salzburg para tentar a


sorte como músico autônomo, em Viena. Nos 10 anos seguintes, tentou a sorte
como empreendedor de si mesmo, algo novo para a época. Escapou dos gostos e
caprichos de seus antigos protetores, porém teve que se curvar ao tal do mercado.
Quando iniciava uma composição, perguntava-se: como compor para esse novo
público dos concertos? Quando se preparava para apresentar uma obra, indagava-
se: o que fazer para agradar o público? Mozart morreu aos 35 anos de idade. Estava
endividado. Sentia-se derrotado e marcado pela sensação de fracasso. Pagou preço
alto por seu pioneirismo e por sua audácia.

Passados 200 anos, artistas dos mais variados campos continuam


enfrentando o mesmo dilema: como equilibrar a liberdade de criação com o
214
atendimento das necessidades básicas de sobrevivência? E esse dilema não afeta
apenas artistas. Muitos profissionais liberais lutam para balancear a liberdade de
ação com as contas domésticas. Muitos executivos sonham com o dia em que
escaparão de suas gaiolas corporativas. Alguns deles consumam a fuga, porém logo
percebem que o doce sabor da liberdade vem acompanhado pelo gosto amargo de
uma nova submissão: troca-se um chefe incapaz e neurótico por uma dezena de
clientes caprichosos e tirânicos.

Para os velhos e novos sonhadores, a trajetória profissional de Cindy


Sherman pode ser inspiradora. Sherman iniciou seus estudos de artes pela pintura,
mas logo a trocou pela fotografia. Teve a sorte de estudar e viver em um ambiente
de experimentação: sua curiosidade e sua criatividade foram estimuladas por
professores e colegas que exploravam novas formas de expressão artística.

O reconhecimento veio com as primeiras obras e prolongou-se ao longo da


carreira. Em 1995, Sherman ganhou uma bolsa de 500 mil dólares, da Fundação
MacArthur, conhecida como prêmio dos gênios. Em 2011, uma de suas fotos foi
vendida na casa de leilões Christie's por 3,9 milhões de dólares, tornando-se, na
época, a mais cara fotografia vendida em um leilão de arte. A fama e o sucesso
comercial não alteraram seu modelo comercial. Desde o início de sua carreira, a
fotógrafa mantém-se fiel a duas galerias que a representam, uma norte-americana e
uma europeia. Nenhuma a pressiona por produção.

A fotógrafa trabalha em séries temáticas. Para criar suas obras, labuta


solitária em seu estúdio, alternando os papéis de criadora, diretora, iluminadora,
estilista, maquiadora, modelo e fotógrafa. Uma de suas séries mais famosas –
Untitled Film Stills, desenvolvida de 1977 a 1980 – contém 69 imagens de mulheres,
sempre representadas pela própria artista.

Nem todos os trabalhos de Sherman tiveram tanto impacto e sucesso


comercial quanto Untitled Film Stills, porém revelam uma artista em constante

215
movimento, sempre capaz de avançar sobre seus próprios limites e provocar sua
audiência. Até 11 de junho de 2012, o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque
(MoMA) apresentou uma ampla exposição do trabalho da artista, com mais de 170
obras, produzidas desde meados da década de 1970 até o presente. A exposição foi
mais um reconhecimento da importância de Sherman para a fotografia e para as
artes. O website do MoMA disponibilizou uma visita virtual à exposição.

Sherman, de certa forma, realizou o sonho de Mozart. Como o músico, a


fotógrafa encontrou cedo (embora não tão cedo quanto Mozart) seu meio de
expressão e sua voz. Lançou-se como artista autônoma e empreendedora de sua
própria obra. Trabalha sozinha. Controla seus temas e seu ritmo de atividade.
Domina seus meios de produção e seus canais de acesso ao mercado. Sua matéria-
prima é sua humanidade: suas inquietações diante do mundo e suas representações
Seu combustível é sua curiosidade sobre os meios para representar suas ideias. O
mercado é uma entidade real, capaz de recompensar regiamente seu trabalho, mas
não lhe atormenta a alma ou condiciona seus caminhos. Sua privilegiada situação é
ainda um sonho para poucos, mas representa uma possibilidade, uma luz no final
do túnel.

216
A cultura do desdém
O caso recente do ex-diretor do Goldman Sachs, que denunciou os maus
modos de sua antiga casa, traz novamente à tona os genes selvagens do
DNA corporativo.

Em edição de 14 de março, o New York Times publicou texto de Greg Smith,


com o título “Porque eu estou deixando o Goldman Sachs”. As revelações tocaram
em um ponto sensível, o desdém de executivos do centenário banco de
investimentos por seus clientes, em um momento sensível, marcado pelo desdém
do público pelas instituições financeiras.

Smith abre sua carta aberta em tom confessional: “Hoje é meu último dia no
Goldman Sachs. Após quase 12 anos na firma [...] eu acredito ter trabalhado aqui
tempo suficiente para entender a trajetória de sua cultura, de sua gente e de sua
identidade. E eu posso dizer honestamente que o ambiente está agora tão tóxico
como eu nunca vi”. E segue: “Para colocar o problema em termos simples, os
interesses do cliente continuam sendo deixados de lado na forma como a empresa
opera e pensa na maneira como ganhar dinheiro”.

Smith argumenta que a cultura sempre foi componente central da empresa.


Seus valores fundamentais eram trabalho em equipe, integridade, humildade e uma
busca do melhor para o cliente. Porém, nos últimos anos, a liderança alterou o
DNA da empresa, para pior. Hoje, vaticina, se você conseguir ganhar dinheiro
suficiente, terá pavimentado o caminho para o sucesso. Como chegar lá? É simples:
empurre produtos que sejam opacos e podres para os clientes, e lucrativos para o
banco.

217
O ex-diretor afirma que ouviu diversos colegas chamarem seus clientes de
“muppets”, em referência, pouco elogiosa, aos personagens da série de TV. Smith
teme pelo futuro da organização, ao constatar que uma geração de novos
funcionários, muitos deles brilhantes, está sendo socializada na nova cultura,
autocentrada e viciosa. De fato, grandes corporações não têm dificuldade em
recrutar os melhores aprendizes e socializá-los em suas práticas. Não deve ser
motivo de surpresa que moços e moças de boas famílias e boas maneiras estejam
dispostos a trocar ideais e dignidade por status social e bônus anuais.

As reações ao texto de Smith foram variadas. A legião de vítimas de


escândalos corporativos aliou-se aos gatos escaldados da crise financeira para apoiar
o ex-executivo. No canto oposto, postaram-se as viúvas de Milton Friedman.
Nathan Vardi, da revista Forbes (que assina o nome seguido do slogan “seguindo a
trilha do dinheiro”), sugere que o caso reflete apenas a crise de meia-idade de um
executivo frustrado com sua carreira.

Halah Touryalai, da mesma revista, afirma que as revelações de Smith não


deveriam causar surpresa e que a culpa é dos clientes. Isso mesmo, a culpa é das
vítimas, por sua própria ingenuidade e conduta irresponsável. Embora acintosa, a
afirmação não é descabida. Muitas “vítimas” são apostadores gananciosos, que
jogam suas fichas em produtos de alto risco. Porém, Touryalai ignora a enorme
assimetria de informação que existe entre profissionais do mercado financeiro e
parte considerável de seus clientes.

Mais divertidas foram as sátiras que seguiram o texto de Smith. Em uma


delas, o vilão da série Guerra nas Estrelas, Darth Vader, explica: “Por que estou
deixando o império”. Em um vídeo veiculado pelo website Funny or Die, diretores do
Goldman Sachs discutem, em uma reunião regada a whiskey e cocaína, como
superar a crise gerada por Smith, quando são surpreendidos pela entrada de quatro
bonecos representantes da “Liga Anti-difamação dos Muppets”, para registrar uma
queixa formal pelo uso preconceituoso e ofensivo da palavra “muppet”.

218
Somente os inocentes crônicos acreditam que bancos tenham outro objetivo
que não seja ganhar dinheiro para seus controladores e executivos. A indignação de
Smith pode soar tão crível quanto a eventual indignação de um deputado brasileiro,
que renunciasse ao mandato popular por ter constatado o declínio dos outrora altos
padrões éticos da Câmara.

Por detrás da denúncia de Smith, existe uma cultura do desdém, que permeia
muitas relações no mundo corporativo. Acionistas desdenham diretores, que
desdenham gerentes, que desdenham seus funcionários, que desdenham estagiários.
Executivos desdenham seus clientes e fornecedores, e a recíproca pode ser
verdadeira.

Nos últimos anos, uma retórica corporativamente correta tentou fomentar o


respeito ao cliente e alinhar interesses entre executivos, acionistas, comunidades,
fornecedores e outros grupos que podem interferir no desempenho e na
lucratividade das empresas. Obviamente, a distância entre a foto e o fato é ainda
enorme.

Textos como os de Smith são incomuns. Alguns executivos adorariam ter a


chance de listar desaforos contra seu ex-patrão em um veículo de grande alcance.
Porém, têm carreiras a preservar, bocas para alimentar e sonhos de consumo para
realizar. A censura mais eficaz é a autocensura.

219
Correio maldito
Uma grande empresa de tecnologia anunciou uma meta de “e-mail zero”.
Serão iniciativas desse naipe capazes de contrapor os comportamentos
de conectividade insana e distração crônica nas organizações?

O livro 84, Charing Cross Road, da norte-americana Helene Hanff, publicado


em 1970 e posteriormente adaptado para o teatro e para o cinema, conta a história
da amizade entre a autora e Frank Doel, que trabalhava em uma loja de livros
antigos, em Londres. Hanff chega a Doel por meio de um anúncio de livros raros
em um suplemento literário. Com o tempo, a amizade se estabelece e a
correspondência floresce, tratando de filosofia, receitas culinárias e política. Hanff e
Doel nunca se encontraram. O livro tornou-se uma curiosidade arqueológica, com
o registro de uma prática quase extinta. A comunicação por fone celular, Skype,
correio eletrônico e mídias sociais soterrou os prazeres da troca de epístolas: a
elaboração cuidadosa e lenta, o suspense da espera, o prazer de receber a carta
aguardada e de sua leitura. Em seu lugar, temos hoje o frenesi das mensagens
instantâneas.

Nas corporações, o fenômeno ganha dimensão de pandemia. A irritação


começa com o junk mail. Todos os dias, recebemos kilobytes de lixo eletrônico. Este
escriba não é exceção. Viúvas de ex-ministros africanos do petróleo deixaram de
me oferecer 20 milhões de dólares para ajudá-las a recuperar a fortuna da família,
mas a assessoria de imprensa do governador Agnelo Queiroz não desiste de me
informar os enfadonhos passos do dignatário.

A Cybersul me oferece softwares de gestão multiempresas e multilínguas, que


fazem tudo e servem para qualquer empresa, e a Carci me envia imagens
promocionais de elevadores de assento sanitário, seguros e de fácil instalação. Um
220
vendedor tenta me empurrar vídeos de treinamento com títulos criativos: “O
enterro das desculpas”, “Se o barco afundar, você vai junto!” e “Não faça parte do
time que promete e não cumpre”. Irmãos Cohen, cuidem-se!

Consultores que passaram as férias em Boston convidam-me a conhecer as


novas práticas de coaching, mentoring, feedback e bobagens similares. Um guru de
gestão envia-me pílulas de sabedoria e ofertas de palestras-shows. Segundo o
próprio: "O ser humano usa apenas 7% de sua capacidade de pensar”. Deve ser
verdade, porque se usasse 8% não haveria público para suas apresentações.

O drama da avalanche de e-mails despertou o interesse da academia. Megan


Garber, escrevendo para a revista Atlantic, reporta uma pesquisa conduzida pela
Universidade da Califórnia, em Irvine, e as forças armadas norte-americanas.
Objetivo: medir o estresse causado pelo uso do e-mail. Os cientistas dividiram suas
“cobaias” em dois grupos: o primeiro ficou sem utilizar o e-mail por cinco dias e o
segundo prosseguiu com sua rotina de uso. Para medir o impacto, os participantes
tiveram sua condição cardíaca monitorada. Resultado: os usuários de e-mail
mantiveram-se em estado de “alto alerta”, com reflexos negativos sobre sua
condição cardíaca. Os não usuários, por sua vez, apresentaram perfis naturais de
batimento cardíaco. Eles se sentiram mais produtivos e mais focados em suas
tarefas, e sofreram menos estresse causado por interrupções. O estresse, como se
sabe, relaciona-se a doenças cardíacas e autoimunes, obesidade e depressão.

Algumas empresas começam a discutir o efeito nocivo das mensagens


eletrônicas sobre os indivíduos e sobre a produtividade. Thierry Breton, CEO da
empresa francesa de tecnologia Atos, declarou, no final de 2011, ao ABC News que
apenas 10% das 200 mensagens que seus funcionários recebem em média por dia
têm alguma utilidade. Breton, que foi ministro das finanças da França, compara a
poluição de informações à poluição ambiental. Ambas têm consequências nefastas
sobre nossa qualidade de vida. A Atos está implementando uma política de “e-mail
zero”. Seu objetivo é fazer com que seus 74 mil funcionários erradiquem o uso

221
interno de mensagens eletrônicas. Em seu lugar, a empresa pretende utilizar
sistemas de mensagens instantâneas e mídias sociais.

O e-mail tornou-se uma praga, mas talvez seja apenas o bode expiatório de
uma cultura de trabalho que privilegia a conectividade e a capacidade de reação
instantânea, em detrimento da reflexão, do equilíbrio e da capacidade analítica.
Suprimir o e-mail poderá alterar atitudes e comportamentos? Ou talvez signifique
apenas a troca de um vício por outro? Ou, o que seria pior, a adição de outras
distrações, ainda mais indutoras de estresse?

Muitos profissionais já transitam desgovernados entre e-mails, mensagens


instantâneas e telefone celular. Situam-se sempre em uma realidade paralela,
distante e etérea. Parecem nunca estar disponíveis para tratar do aqui e agora.
Distanciam-se de seus interlocutores diretos e deles próprios. Compraram um
tíquete só de ida para o mundo virtual. Boa viagem!

222
Aula de produtividade
Uma ONG havaiana salva baleias, educa turistas e ainda dá lições de
organização do trabalho.

Procurar lições de produtividade em uma organização não governamental


(ONG) pode parecer exótico. Elas costumam nascer do idealismo de seus
fundadores, nutridos por ojeriza das coisas do mercado e da administração.
Infelizmente, muitas perecem jovens, vencidas por problemas básicos de gestão.
Outras sobrevivem, porém não conseguem realizar seu potencial.

Pacific Whale Foudation (PWF) é uma ONG fundada em 1980, com sede
em Maui, no Havaí. Sua missão é conduzir pesquisas e educar o público, com o
objetivo de preservar baleias, golfinhos, tartarugas e recifes de corais. A
organização conta com 150 funcionários e integra a bem-estruturada indústria
turística da paradisíaca ilha.

Uma de suas atividades é a realização de passeios para observação da vida


marinha. Um de seus passeios mais populares leva turistas, ativistas e simpatizantes
a Molokini, uma formação rochosa, parte da cratera de um vulcão extinto, situada a
cerca de quatro quilômetros da costa sul de Maui. O local é um aquário a céu
aberto, de água azul-turquesa, visibilidade perfeita e variedade impressionante de
peixes: um paraíso para mergulhadores.

O passeio dura cerca de cinco horas, com direito a uma segunda parada,
próxima a uma praia, para observar tartarugas. Em cada saída, a equipe da PWF
recebe cerca de 100 interessados em sua loja ao lado do píer, às sete da manhã.
Uma funcionária dá boas-vindas, fornece instruções e usa sua simpatia para vencer
o sono do grupo.
223
O embarque é rápido e tranquilo. A ida a Molokini é ocupada por um café
da manhã, instruções para mergulhadores noviços e pequenas palestras sobre a vida
marinha, dosadas para informar sem chatear. Pés de pato, snorkels e camisetas
térmicas (para os friorentos) são distribuídos com presteza.

Chegando a Molokini, a equipe acompanha com atenção os convidados, em


caiaques de apoio. Famílias japonesas, gêmeas texanas, bebês australianos, avós
italianos: todos ao mar. A experiência é relaxante, hipnótica. Difícil é sair da água.

No trajeto seguinte é servido um almoço, com direito a Mai Tai, que não é o
ponto alto do fantástico passeio. A segunda parada segue a mesma cuidadosa
coreografia da primeira, mas dessa vez com um guia: um mergulhador da equipe,
que conduz interessados por uma turnê subaquática.

O retorno ao píer marca um momento de descanso, com direito a frutas,


cookies havaianos e pequenas palestras no convés. Na proa, uma pesquisadora forma
uma roda com crianças para uma aula lúdica sobre tartarugas: a atenção é total. O
passeio encerra-se pontualmente ao meio-dia, com o desembarque dos 100
passageiros, alegremente cansados.

Além das lições ecológicas, a PWF oferece, involuntariamente, uma


verdadeira aula sobre produtividade. Afinal, o cruzeiro é realizado por uma equipe
com somente seis pessoas. Isso mesmo: seis funcionários da PWF recebem os 100
turistas, manejam o barco, preparam as refeições, coordenam toda a logística dos
mergulhos e fazem as palestras. E tudo sem pressa nem correria, com atenção e
simpatia.

Mágica? Não há. O resultado é apenas uma combinação bem-gerenciada de


fatores. Os serviços de bordo são simples, porém não decepcionam. Todas as
atividades são planejadas e executadas com esmero profissional. A jovem equipe,
com idade entre 25 e 35 anos, tem formação superior e demonstra amor pelo que
faz. Todos são polivalentes: a responsável pela âncora acompanha os
224
mergulhadores inexperientes em um caiaque e dá aula para as crianças; o capitão
comanda o barco e faz palestras sobre os vulcões e ilhas do Havaí. Nos picos de
atividades, todos atuam, agindo com flexibilidade e senso de equipe. Trabalhar por
uma causa na qual acreditam certamente ajuda.

A realização dos cruzeiros, além cumprir papel educativo, é fonte de receita


para a PWF. Operar com uma equipe enxuta é essencial para viabilizar a operação.
Sem planejamento, seria inviável atender tão bem grupos tão numerosos. A
organização minuciosa do trabalho permite à equipe trabalhar com foco, sem
excesso ou estresse, e ainda garante tempo livre para conversas amigáveis com os
passageiros. Podem ser lições surpreendentes, principalmente para quem ainda
pensa que a alta produtividade é meta inalcançável ou objetivo demoníaco de
capitalistas sem alma.

225
The Bang Bang Club
Filme conta a história real de quatro fotógrafos que cobriram o fim do
Apartheid e ilustra o sentido mais profundo do trabalho.

A distribuição de filmes tem suas peculiaridades. Grandes produções,


movidas a estrelas, pirotecnias e verbas de marketing, têm mercado certo. Disputam
o restante das salas produções de nicho, filmes europeus e obras de origem diversa
que eventualmente caem no gosto dos distribuidores.

The Bang Bang Club, produzido em 2009, parece não ter se encaixado em
nenhuma categoria. Se o filme foi exibido em algum cinema local, talvez tenha sido
por cortesia de algum organizador de festival. A película foi baseada em livro
homônimo, escrito pelos fotógrafos Greg Marinovich e João Silva, que formavam
o clube do título, com Kevin Carter e Ken Oosterbroek.

A história se passa no final do regime de Apartheid, na África do Sul, nos


anos 1990. Nelson Mandela havia sido libertado de um longo período nas prisões
da ilha Robben e de Pollsmoor. Os guetos negros estavam em convulsão, com lutas
frequentes entre partidários do Congresso Nacional Africano, de Mandela, e seus
rivais do Partido da Liberdade Inkatha. Os quatro fotógrafos capturaram a violenta
transição do país em direção ao regime democrático.

Eles arriscaram a vida na linha de frente. Oosterbroek foi mortalmente


atingido por fogo amigo em abril de 1994, enquanto cobria um conflito em
Thokosa, perto de Johannesburg. Tinha 31 anos. Carter, o mais sensível e
turbulento dos quatro, cometeu suicídio em julho de 1994, ligando o escapamento
à cabine de seu carro. Tinha 33 anos.

226
As imagens dos fotógrafos do Bang Bang Club provocaram polêmica, pela
violência crua que revelaram. Eles foram cultuados e criticados. O filme transita
entre temas pesados: os conflitos étnicos da África do Sul e os dilemas éticos dos
fotógrafos diante da sordidez humana. O roteiro é centrado na história dos dois
fotógrafos que ganharam o prêmio Pulitzer: Marinovich e Carter.

O filme tem o ritmo marcado por sucessivas cenas de ação, reconstituindo as


incursões dos fotógrafos nos conflagrados guetos negros sul-africanos. A única
cena de evasão dura menos de um minuto e ocorre no meio do filme, quando os
fotógrafos e suas companheiras relaxam em um lago encravado nas pedras, ao som
de Pale Blue Eyes, cantada por Lou Reed, do Velvet Underground.

O filme começa com uma entrevista radiofônica de Carter, realizada em abril


de 1994, após o fotógrafo ter ganhado o prêmio Pulitzer, por uma foto feita no
Sudão. A entrevistadora pergunta: "Kevin, o que você acredita que faz uma grande
fotografia?". Segue-se um longo silêncio. A resposta vem apenas no final do filme:
Carter responde, testando as palavras: "Eu não sei, realmente... você tira a foto e vê
o que você obteve... Mas talvez o que torne uma foto excepcional é que ela
também questiona, sabe? Não é apenas espetáculo. É mais que isso [...] você sai a
campo e vê coisas ruins, horríveis, e você quer fazer algo a respeito. Então, o que
você faz é tirar a foto que mostra isso. Mas nem todo mundo vai gostar do que vai
ver. É preciso entender que eles podem querer matar o mensageiro".

Uma grande fotografia pode conter uma narrativa completa, concentrando


signos, significados e imagens que se materializam diante do fotógrafo, são
capturados em uma fração de segundo e depois reinterpretados por quem a vê. O
fotógrafo é o agente capaz de compreender o contexto, postar-se diante da
configuração exata de luz, sombra, objetos e pessoas, e definir o momento exato no
qual a intensa e complexa bricolagem toma forma. O processo pode ser ao mesmo
tempo intencional, intuitivo e aleatório. Frequentemente, para o próprio fotógrafo,
o resultado parece mágico, uma epifania.

227
Os fotógrafos do Bang Bang Club ilustram o que pode ser o trabalho em seu
sentido mais profundo de realização, um trabalho que cria algo marcante e provoca
impacto social; que é recompensador, gera intenso prazer e sentimento de
realização; que provê experiências humanas recompensadoras; que estrutura o dia a
dia, de modo flexível, sem transformar a rotina em repetição mecânica; que
sustenta e garante a autonomia do indivíduo; que é moralmente aceitável e vai além,
questionando o status quo e possibilitando novas interpretações e visões da
realidade. Não é pouco e parece ser cada vez mais raro.

228
A semana de 15 horas
As predições otimistas de Keynes sobre o futuro do trabalho colidiram
com nosso apreço patológico pelo dinheiro e pelo consumo.

Em 1931, pouco mais de uma década após o final da Primeira Guerra


Mundial e sob o impacto da Grande Depressão, o economista britânico John
Maynard Keynes publicou o ensaio Economic Possibilities for Our Grandchildren. Diante
do momento econômico adverso, o autor demonstrava corajoso otimismo sobre o
futuro: imaginava que em 100 anos o padrão de vida aumentaria dramaticamente e
as pessoas não trabalhariam mais do que 15 horas por semana, podendo dedicar o
restante do tempo às atividades mais nobres da existência.

No mesmo ano, o cineasta francês René Clair lançou À Nour la Liberté, um


manifesto contra a opressão do trabalho industrial, cuja história se passa em uma
fábrica de gramofones. A película tem final feliz. A fábrica é automatizada e os
operários passam o tempo fazendo piqueniques, dançando e cantando. As imagens
do francês fazem eco às ideias do britânico.

Mais de 80 anos após o texto de Keynes e o filme de Clair, é fácil constatar


que a tecnologia não nos libertou do trabalho. Ao contrário, ela parece ter
permitido ao trabalho invadir todas as dimensões da nossa vida, a nos tornar a ele
cada vez mais conectados e subjugados. O que deu errado?

Entre os países desenvolvidos, os Estados Unidos têm mantido a duração da


semana de trabalho e as férias curtas. Os europeus trabalham menos que os
estadunidenses, porém, em um mundo de competição relativamente aberta, sofrem
pressões para labutar mais. Enquanto isso, na periferia, a miséria e a desigualdade,
apesar do progresso em alguns países, especialmente a China, sinalizam a distância
229
da utopia keynesiana. No Brasil, a desigualdade ainda alarmante e a estagnação da
produtividade bloqueiam a evolução rumo a um modelo mais justo e avançado de
sociedade.

Em 2008, os italianos Lorenzo Pecchi e Gustavo Piga reuniram eminentes


pensadores para discutir o “erro de Keynes”. A conclusão que emana da leitura da
coletânea Revisiting Keynes é que o economista britânico acertou suas previsões sobre
crescimento, porém não deu a devida atenção às questões da distribuição e da
desigualdade. Keynes também superestimou nossa vontade de parar de trabalhar
(para usufruir os prazeres da vida) e subestimou as recompensas proporcionadas
pelo trabalho (especialmente o consumo).

As explicações para o “comportamento irracional” do finado Homo economicus


são variadas. Primeiro, é preciso considerar que, apesar de todas as pragas lançadas
diariamente contra empresas e empregos, a verdade é que muitas pessoas gostam
de trabalhar. A labuta pode ser repetitiva e cansativa, entretanto ajuda a estruturar o
dia e permite a convivência com colegas.

Segundo, entre trabalhar mais para consumir mais, e cortar as horas de


trabalho e reduzir o consumo, optamos pela primeira condição. Isso ocorre porque
tendemos a nos comparar com nossos pares. Quando vemos nosso vizinho
comprando um carro novo, almejamos alcançá-lo, ou suplantá-lo. Portanto: mais
consumo, mais trabalho e, também, mais dívidas, exigindo ainda mais trabalho no
futuro.

Em um texto publicado no jornal radical Strike!, o antropólogo e ativista


David Graeber, da London School of Economics, adota uma rota alternativa para
explicar o “erro de Keynes”. O autor argumenta que a tecnologia tem sido usada
para nos fazer trabalhar cada vez mais, criando ocupações que são, de fato, inúteis.
Segundo Graeber, tais empregos relacionam-se aos serviços financeiros, ao direito

230
corporativo, às relações públicas e à gestão de recursos humanos. É o que Graeber
denomina de bullshit jobs.

O movimento é paradoxal: enquanto as empresas reduzem sistematicamente


o número de funções relacionadas a fabricar, movimentar, manter e consertar
coisas (tudo que realmente agrega valor), o número de bullshit jobs parece aumentar.
Segundo Graeber, tais profissionais de fato trabalham 15 horas por semana, mas
passam o resto do tempo organizando ou frequentando seminários motivacionais e
atualizando seus perfis no Facebook. Em público, eles defendem o que fazem. Em
particular, reconhecem a inutilidade de suas ocupações. O que ocorreria se esses
empregos desaparecem? Seria a humanidade abalada? Ou venceríamos o apreço
patológico pelo dinheiro e pelo consumo e aceleraríamos o passo rumo à utopia de
Keynes?

231
Lucro verde?
Empresa testa a contramão do consumismo, unindo durabilidade dos
produtos e receita.

Propaganda, afirmam os livros-texto, é um tipo de comunicação destinada a


persuadir uma determinada audiência em direção a uma ação. Em sua forma
corporativa mais corriqueira, é usada por empresas para promover o consumo de
seus produtos ou serviços. Mudanças nas tecnologias de informação e comunicação
alteraram, ao longo do tempo, os meios de veiculação das propagandas. Entretanto,
sua essência não mudou: trata-se de juntar conhecimentos de marketing, psicologia,
antropologia e outros tantos campos visando desenvolver e disseminar, com graça
e criatividade, mensagens destinadas a induzir o consumo de serviços e produtos.

O que seria uma mudança de curso? Há alguns anos, o fabricante


californiano de roupas para aventuras Patagonia publicou no jornal The New York
Times um anúncio mostrando um de seus produtos sob o título: “Não compre esta
jaqueta”. A ideia é singela: tudo que produzimos tem impacto ambiental; a
fabricação do produto em questão consome água suficiente para atender a
necessidade diária de 45 adultos e gera mais de 20 vezes seu peso em dióxido de
carbono. Os mais críticos talvez tenham visto a peça publicitária como um golpe:
um simulacro de comportamento ambientalmente correto para promover e
estimular a venda de um produto.

Saki Knafo, escrevendo para o portal da revista The Atlantic, informa que a
mesma empresa patrocinou uma viagem de dois empregados em uma velha
caminhonete, adaptada com uma minioficina no lugar da caçamba. A missão da
dupla era oferecer serviços gratuitos de reparo para clientes que tivessem roupas
velhas da empresa.
232
Mais um golpe? Parte de uma estratégia maior para iludir o consumidor?
Talvez não seja tão simples. O fato é que se trata de um fabricante de nicho, que
produz peças duráveis, para um público sensível à mensagem de responsabilidade
ambiental. Além disso, a empresa vende para seus clientes a mesma imagem que
vende para seus empregados, atraindo para seus quadros profissionais que também
acreditam em sustentabilidade e responsabilidade ambiental.

O resultado é um paradoxo: uma organização que, como tantas, visa o lucro


e depende de vendas, porém tem em sua cultura organizacional traços críticos
contra o consumo desnecessário, cultivando, por isso, uma visão de longo prazo,
para os negócios e para o meio ambiente. Já é alguma coisa, em um mundo que
opera com ciclos cada vez mais rápidos, trocando de roupa a cada estação, de
telefone a cada geração e de carro a cada inovação.

Como observa Knafo, a aplicação desse tipo de estratégia é restrita a poucas


empresas. A Patagonia, apesar de faturar 600 milhões de dólares e ter dois mil
empregados, é uma anomalia no mundo dos negócios, operando em um setor que
se sustenta na indução de mudanças aceleradas no consumo.

De fato, é difícil imaginar um fabricante de automóveis tentando convencer


seus clientes: “Para que trocar seu carro após 50 mil quilômetros? Está novo! Faça
uma boa manutenção e ele vai rodar tranquilamente outros 50 mil quilômetros”.
Ou um caixa de supermercado que, orientada pelo patrão, interpela amistosamente
seus consumidores: “Querida, você precisa mesmo de todos estes doces e
embutidos? Esqueça a propaganda! Uma alimentação mais frugal vai te deixar
muito mais saudável e feliz”.

Ou um fabricante de celulares, advertindo seus ansiosos clientes: “Nem


pensem em comprar o modelo 6 Plus! Se você atualizar o sistema operacional, o
seu aparelho atual vai ficar igualzinho ao novo”. Ou um shopping center que, por
adotar uma política de consumo responsável, passa a submeter os clientes com

233
mais de três pacotes a uma revista pessoal: “Você precisa mesmo de tudo isso? Não
viu que essas peças foram produzidas por trabalho escravo?”. Ou, ainda, um
fabricante de bebidas, chocando a clientela: “Chega de cerveja, companheiro! A
barriga só vai crescer, a glicemia, piorar e a loira definitivamente não vai olhar para
você!”.

Todos esses são cenários distantes e improváveis. Nos próximos anos,


continuaremos assistindo aos efeitos do descompasso entre nosso sofrido planeta e
a máquina produtiva, incentivada por doidivanas promotores do consumo. As
iniciativas verdes continuarão parecendo românticas, exóticas ou hipócritas até que,
eventualmente, transmutem-se em lugar-comum, tornando-se simplesmente o jeito
certo de fazer as coisas.

234
Rituais antiquados
O momento é oportuno para as empresas livrarem-se de práticas
anacrônicas.

A avaliação de desempenho é um dos rituais mais comuns e irritantes do


mundo corporativo. Ninguém mais parece levá-la a sério, entretanto a prática se
mantém nas empresas, ano após ano. Parece obra de forças ocultas ou entidade
secreta, vivendo nas sombras do Olimpo corporativo.

Agora, parece haver luz no fim do túnel. Em coluna publicada no jornal


inglês Financial Times, Lucy Kellaway noticia com alegria que uma “explosão de
bom senso” livrou milhares de funcionários da avaliação anual de desempenho. Em
pauta, a decisão das gigantes de consultoria Accenture e Deloitte de eliminar a
prática.

Essas empresas parecem ter reconhecido o óbvio: o enorme tempo investido


no processo não parece trazer benefícios expressivos. É significativo tratar-se de
empresas de consultoria, que vivem justamente da venda de boas e novas práticas
de gestão, algumas delas nem boas nem novas.

A esperança é que a onda contamine outras organizações e que essas enviem


para arquivo morto o notório e inócuo ritual. Na realidade, muitas organizações já
o fizeram, discretamente. Noutras, permanece apenas o faz de conta, que ninguém
mais leva a sério.

Se considerarmos, como sugere Kellaway, o custo de mobilizar milhares de


pessoas (em grandes empresas) para coordenar, executar, compilar, analisar e tomar

235
decisões, então a aposentadoria vai gerar considerável economia. Isso sem contar o
fim dos efeitos colaterais: irritação, cinismo e sensação de injustiça.

Naturalmente, os consultores foram hábeis e evitaram dar um tiro no


próprio pé. Em lugar de desqualificar a prática que estão abandonando, optaram
por declarar que estão dando um passo à frente, adotando sistemas “instantâneos”
de avaliação, mais sintonizados com os novos tempos.

Kellaway dá uma sugestão mais simples: parar definitivamente com as


avaliações de desempenho. Indica a colunista: “Contrate apenas gerentes que
conseguem gerenciar, e que são bons em dizer às pessoas como elas estão se
saindo, não uma vez por semana, mas o tempo todo. Se eles não conseguirem fazer
isso, então não deveriam ser gerentes. Se eles conseguem, então não precisam de
um sistema de avaliação como muleta”.

Acontece que a avaliação de desempenho é uma de várias práticas


corporativas de contribuição duvidosa que as empresas implantam e mantêm sem
nunca aferir se de fato ajudam ou atrapalham. Em muitas grandes organizações, a
média gerência parece ter substituído o trabalho real por uma maratona de reuniões
de planejamento, comitês de avaliação e preenchimento de relatórios cuja existência
poucos conseguem justificar.

O ciclo é conhecido. A empresa cresce, precisa estruturar-se e melhorar o


nível de controle. O caos é uma ameaça constante. Surgem um burocrata bem-
intencionado, uma consultoria voluntariosa e um diretor ávido por patrocinar um
projeto de grande efeito. Adota-se a prática, treinam-se os algozes e as vítimas, e a
coisa é lançada com pompa e circunstância. Nos primeiros anos, um rolo
compressor constrange corações e mentes à adoção. Resistir não é opção. No
entanto, com o passar do tempo, a disciplina é relaxada, a prática se esvazia e é
substituída pelo faz de conta. Sem ter quem a derrube, mantém-se por inércia,
roubando tempo e energia.

236
O grande problema ocorre quando a empresa segue acumulando práticas
sobre práticas. O efeito é a ocupação crescente do tempo de trabalho, com
atividades que agregam pouco valor. Resultado: estresse, frustração e baixa
eficiência. E os indivíduos acostumam-se com o estado das coisas, moldam suas
atitudes e comportamentos ao status quo e tornam-se engrenagens da máquina que
parece existir apenas para preencher o tempo livre com atividades inócuas.

Toda empresa precisa de boas práticas gerenciais e rituais. Eles conferem


ordem e significado ao trabalho; devem ajudar na difícil tarefa de (tentar) domar o
caos do ambiente e das mudanças. No entanto, é preciso saber escolher, com
parcimônia, o que adotar, e também saber descartar. Momentos de recessão e crise
são especialmente oportunos para “limpar a casa”. Em lugar de cortar funcionários,
os executivos poderiam tentar “demitir” algumas práticas e rituais. Talvez fiquem
alegremente surpresos com os resultados.

237
Em busca do tempo perdido
A ciência administrativa deve aproximar-se da prática empresarial e
buscar maior impacto social.

Além de ser uma profissão, a administração de empresas tenta ser uma


ciência. Como campo científico, sua história é recente. Nos anos 1950, nos Estados
Unidos, a pátria mãe do management, o curso de administração estava se tornando
um dos mais populares. A economia crescia vigorosamente e a demanda por
gestores era premente. Entretanto, o sistema educacional não parecia estar à altura
da tarefa. Os currículos escolares eram restritos e simplórios. Havia uma percepção
de que o corpo discente era fraco e de que o corpo docente era formado
principalmente por práticos, que passavam sua limitada experiência para os alunos.

Diante do contexto, as Fundações Carnegie e Ford comissionaram dois


estudos de ampla envergadura. O segundo deles ganhou notoriedade, por expor a
fragilidade do ensino da administração e lançar propostas contundentes para uma
revisão. Suas principais sugestões foram: mais pesquisa e menos consultoria, menos
casos e mais teoria, e mais conteúdos sobre ética e ciências humanas.

A divulgação dos estudos foi seguida por mudanças substantivas nas escolas
de administração. Os resultados foram notáveis: os currículos foram reformados e a
atividade de pesquisa foi fomentada, dando impulso a um robusto desenvolvimento
acadêmico. A produção científica resultante alimentou a criação de manuais e
livros-textos para as principais áreas da administração, os quais passaram a ser
utilizados no ensino.

Entretanto, por excesso do medicamento ou tendências desviantes do


paciente, um danoso efeito colateral aflorou: a academia norte-americana, que se
238
tornou referência mundial, transformou-se em uma torre de marfim, autocentrada e
hermética, obcecada com seu próprio umbigo e cada vez mais isolada do mundo
real.

As primeiras crises de consciência surgiram nos anos 1990, intensificando-se


nas décadas seguintes. Vozes dos dois lados do Atlântico começaram a se
manifestar contra a obsessão com o rigor na pesquisa administrativa em detrimento
da relevância para a prática gerencial.

Enquanto isso, os trópicos seguiam com atraso a virada científica norte-


americana. Nossa primeira escola de administração foi criada na década de 1950,
mas os cursos de pós-graduação somente se consolidaram décadas depois. Temos
hoje cerca de 80 programas de pós-graduação, com aproximadamente 1.200
professores. Cerca de dois mil artigos são publicados por ano nas revistas
científicas locais. No entanto, avaliações por notáveis do próprio campo revelam
que a maior parte do que se produz no País é pueril, sem rigor nem relevância.
Pior, aspiramos a fazer parte de um modelo ainda dominante, porém cada vez mais
criticado: a torre de marfim norte-americana.

Enquanto isso, algumas comunidades científicas internacionais, com


destaque para aquela do Reino Unido, começam a implantar políticas e diretrizes
para reorientar a pesquisa científica para a prática. O objetivo é que a pesquisa gere
impacto social, ou seja, trate de temas relevantes e resulte em benefícios para as
organizações, para as comunidades e para o país.

Tal orientação não significa colocar pesquisadores a serviço das empresas,


prática temerária, que frequentemente resulta em escândalos. Significa adotar uma
orientação crítica para a realidade das organizações, uma reaproximação com a
prática e uma preocupação cada vez maior com a disseminação do conhecimento
gerado por meio de dissertações, teses e artigos científicos. Implica a participação

239
em fóruns multilaterais e a coordenação de processos conjuntos para geração de
conhecimento.

A administração de empresas é o curso mais popular do País e o Brasil é um


dos países mais mal-administrados do mundo: a competitividade é baixa, a
produtividade está estagnada, os serviços são precários e recursos são
desperdiçados. O que explica tal paradoxo? Inépcia do corpo docente?
Apedeutismo crônico do corpo discente? Será o sistema imunológico dos
executivos, avessos ao conhecimento? Ou será tudo culpa do grande leviatã, o
Estado, sempre pronto a dificultar a vida dos que desejam empreender? Um pouco
de cada coisa, talvez. Mas certamente ganharíamos se a academia local deixasse de
lado seus pequenos interesses e orientasse esforços para interpretar, discutir e
contribuir para a solução de questões locais. Problemas e oportunidades não nos
faltam.

240
Emancipados e órfãos da CLT
Pesquisa científica identifica as diferentes tribos que surgiram da
flexibilização dos contratos de trabalho.

Uma das mais contundentes consequências da onda de reestruturações das


cadeias produtivas, iniciadas na década de 1990, foi a flexibilização dos contratos de
trabalho. Até então, as relações entre as empresas e os seus empregados eram
regidas por contratos padrões e sustentadas por um pressuposto implícito de
continuidade e perenidade. Naturalmente, em países em desenvolvimento como o
Brasil, tal condição contemplava apenas uma parte dos trabalhadores. Aos demais,
restavam a informalidade e a precariedade.

As mudanças iniciadas há três décadas foram dominadas pelos


enxugamentos (poeticamente chamados de reengenharia), por sucessivas ondas de
terceirização e pela redução do emprego formal nas grandes empresas. Hoje,
coexistem no mercado diferentes tipos de contrato de trabalho.

Em um artigo publicado pela Revista de Administração da USP, Marcia


Carvalho de Azevedo, da Universidade Federal de São Paulo, e Maria José Tonelli e
André Luis Silva, ambos da FGV-EAESP, mostram como profissionais que já
tiveram vínculos regulados pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) se
posicionam perante a nova realidade de contratos flexíveis.

Os pesquisadores entrevistaram dezenas de trabalhadores qualificados,


identificando após análise nove perfis, que foram denominados: PJ, paraquedista,
indiferente, pragmático, independente, autônomo, empresário, ressentido e CLT.
Com tal tipologia, os autores criaram um retrato revelador sobre como a nova
realidade de trabalho é vivenciada pelos profissionais.
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Os PJs (pessoas jurídicas) são os profissionais que se adequaram sem
traumas ao novo contexto e gostam de trabalhar como se fossem eles próprios uma
empresa. Eles e elas apreciam a autonomia e a liberdade que a condição de PJ
permite, veem criticamente as restrições impostas pelo formato tradicional e
valorizam a possibilidade de gerenciar sua rotina e passar mais tempo com a família.

Os paraquedistas são aqueles que, segundo os pesquisadores, “caíram de


paraquedas” nos novos contratos flexíveis. Eles e elas não tiveram opção a não ser
aderir ao novo formato. Não veem vantagem ou desvantagem, nem sentem
nostalgia em relação ao formato antigo, apenas seguem a onda como algo
inexorável.

Os indiferentes assemelham-se aos paraquedistas. O foco dos indiferentes


são o trabalho e a remuneração. A forma de contrato pouco importa. Eles e elas
simplesmente não pensam no assunto.

Os pragmáticos partilham algumas características com os indiferentes. Os


pragmáticos escolhem seus contratos de acordo com as vantagens percebidas.
Como os indiferentes, os pragmáticos têm foco na remuneração. Eles e elas não
valorizam os benefícios da CLT e dos contratos formais, e acreditam que podem
obter maiores vantagens com contratos flexíveis.

Os independentes veem as relações de trabalho como trocas comerciais. Eles


e elas consideram as organizações entidades autocentradas e egoístas, fundadas
unicamente na busca de lucros. Sua relação de trabalho com as empresas é
meramente profissional, sem vínculos emocionais. O sentimento de independência
leva a desconsiderar e até mesmo a desprezar as regras e rituais do mundo
corporativo.

Os autônomos levam sua liberdade ao limite, valorizando seu trabalho e


evitando sempre que possível a condição de subordinação a uma empresa. Eles e

242
elas apreciam a possibilidade de poder escolher o que fazem, como fazem, quando
fazem e com quem fazem.

Os empresários são profissionais ambiciosos, que acreditam que a legislação


trabalhista fomenta a acomodação. Eles e elas creem firmemente na meritocracia e
pensam que os contratos formais inibem o crescimento econômico dos
profissionais.

Os ressentidos e os CLTs contrapõem-se às tribos anteriores. Os ressentidos


lamentam a assimetria em sua relação com as empresas e as veem como as grandes
beneficiárias da flexibilização dos contratos de trabalho. Os CLTs criticam a
precarização do trabalho e experimentam intensa nostalgia em relação aos
contratos formais. Ressentidos e CLTs, se tivessem a chance, optariam pela volta
ao contrato formal.

Os autores do estudo frisam, no final do texto, a multiplicidade de


impressões que recolheram. Enquanto muitos entrevistados revelaram-se realizados
com os formatos flexíveis, outros os avaliaram de maneira muito negativa. Alguns
órfãos em meio a vários emancipados.

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SOBRE O AUTOR

Thomaz Wood Jr. é professor titular da FGV-EAESP e sócio da Matrix

Consultoria e Desenvolvimento Empresarial. Sua prática de consultoria inclui a

coordenação de projetos de transformação organizacional e de estratégia

empresarial. Publicou mais de 50 artigos acadêmicos e 25 livros na área de gestão,

incluindo: Organizações Espetaculares, Gurus, Curandeiros e Modismos Empresariais e

Mudança Organizacional. O autor colabora, desde 1996, com a revista CartaCapital, na

qual os textos deste livro foram originalmente publicados.

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ISBN 978-85-914912-2-3

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