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A Realidade do Mal? Uma análise do argumento de Jung 1

Giegerich, W, Collectted English Papers - volume VI – C.G. Jung on


Christianity and on Hegel. New Orleans, Lousinana: Spring Journal Inc. cap. 5,
p.243-285.

“Psicologia não conhece o que o bem e o mal são em si mesmos; os


conhece apenas como julgamentos sobre relações: ‘bom’ é o que parece
adequado, aceitável ou de valor de uma certa perspectiva; ‘mau’ é o
correspondente oposto. Se aquilo que chamamos bem é “realmente” bom
para nós, então, deve haver também um “mal” e “ruim” que é ‘real’ para
nós. Daí vemos que a psicologia está preocupada mais ou menos com
julgamentos subjetivos, ou seja, com uma oposição psíquica que é
indispensável para estabelecer relações de valor... Há coisas que vistas de
certa perspectiva são extremamente más, isto é, perigosas” (CW 9ii, § 97,
trans. modif.). “Pois, como voce pode falar de ‘alto’ se não há um ‘baixo’,
de ‘direita’ se não há ‘esquerda’, de ‘bem’ se não há ‘mal’ e um é tão real
como o outro?” (ibid § 113). “É um “evidente [natürliche] fato que com o
predicado ‘alto’ voce imediatamente postula ‘baixo’...” Bem e mal “são um
par de opostos logicamente equivalentes...” De um ponto de vista empírico
eles são “metades coexistentes de um julgamento moral” (ibid § 84).

Aqui Jung se move num nível estritamente lógico e compreende bem


e mal como Relationsbegriffe (conceitos de uma relação), como par de
opostos em que um imediatamente implica no outro porque eles são
correlatos, de modo que que voce não pode ter um sem também ter o outro.
Nesse contexto, “a realidade do ‘mal’” significa não mais que a lógica
coexistência com o “bem”. Os termos ou conceitos coexistem. De modo
algum implica um sentido ontológico de “real”. Isto é ainda mais
enfatizado pela insistência de Jung no mero caráter subjetivo desses termos.
Como julgamentos humanos eles são categorias pelas quais a mente
humana avalia sua relação com as coisas e eventos na realidade (ou, ao
contrário, o que as coisas e eventos significam para nós). Estes predicados
existem apenas no sujeito humano, não na realidade objetiva, apenas na
mente e não in res, como poderíamos dizer com uma distinção filosófica

1
Tradução Sonia Maria Marchi de Carvalho, 2021.
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medieval. Nós consideramos algo bom ou mau. É bom ou mau para nós.
“Mau”, portanto, significa (as vezes) simplesmente “perigoso”. Além disso
o significado específico de bem ou mal, ou seja, a questão de quando nós
chamamos alguma coisa boa ou má, não é fixa. Ela depende inteiramente
do nosso ponto de vista. Esta ideia se torna especialmente evidente se nós
pensamos no outro par de opostos aludido por Jung como formalmente
equivalente ao par moral, nomeadamente esquerda e direita. Se eu virar no
lugar onde estou o que estava a minha esquerda agora está a minha direita.
Nada mudou “lá fora”. As coisas referidas como estando à direita ou à
esquerda são as mesmas e estão objetivamente no mesmo lugar. Apenas
meu ponto de vista mudou. Da mesma maneira, o que é “bom” da
perspectiva de uma pessoa pode ser “mau” para outra. Se você vende sua
casa e acontece dos preços subirem na mesma transação e na mesma época
é bom para o vendedor, mas ruim para o comprador.

Até aqui ninguém tem nenhuma reserva a respeito da tese de Jung


sobre a realidade do mal, já que não significa mais do que a real existência
dessa noção como uma categoria lógica na mente. Nós também não
podemos duvidar que, no presente nível do argumento de Jung, o mal é tão
‘real’ como o bem porque são, de fato, correlatos inseparáveis. O problema
com o comentário de Jung por implicação, claro que tacitamente, é ele usar
a idea da coexistência do mal e do bem dentro do julgamento moral para
dar suporte à sua tese muito diferente sobre a realidade do mal. Esta é a
razão da estranheza do surpreendente termo “real” na introdução de sua
discussão sobre categorias lógicas em que o termo não pertence. No nível
das categorias morais da mente o mal não é apenas real como o bem
(porque a noção de “realidade” não pertence aqui de jeito algum: categorias
morais não são mais que formas subjetivas, meios para avaliar o real), mas
simplesmente a contraparte lógica ao “bem”. A palavra “real” é
sorrateiramente contrabandeada para dentro do discurso lógico para ajudar
a reforçar, por implicação, a bem diferente tese ontológica da realidade do
mal.

Mas, se Jung entende que bem e mal são julgamentos de valores


subjetivos por que, no entanto, ele ataca a ideia do mal como uma privatio
boni e, então, e.g. a ideia de Basil o Grande (330-379) de que “o mal não
tem subsistência própria (CW 9ii § 82, trad. modif.)? E por que, ao invés
disso, ele insiste que “Deve-se antes, entretanto, levar o mal mais
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substancialmente quando encontramos com ele no plano da psicologia


empírica” (§75, meu ital.)? Se “do ponto de vista empírico” bem e mal são
“metades coexistentes de um julgamento moral”, avaliações subjetivas da
mente humana, então, como podem subitamente ter uma realidade
ontologizada “no plano da psicologia empírica”? Como pode Jung desejar
ontologizar e hipostasiar 2 o mal, quer dizer, transformar aquilo que
realmente é apenas um atributo ou predicado (um julgamento de valor)
aplicado à eventos reais ou ações em um substantivo, um real em seu
próprio direito? Jung afirma à queima roupa: “O mal é uma realidade”.3
“Essa clássica fórmula [da privatio boni] rouba ao mal a existência
absoluta... Se o mal não tem substância, o bem precisa permanecer
sombrio...” (CW 11 § 247). Este mal não é mais a categoria lógica ou o
conceito que Jung disse que era para a psicologia empírica, não mais o
julgamento moral subjetivo de uma dada perspectiva. Agora é uma
realidade subsistente, uma realidade objetiva, um fato lá fora. Mal per se.

Este hipostasiar de (i.e., este garantir substancialidade à) um


julgamento humano precisa ser julgado por nós como uma cegueira lógica
e que isso, é claro, vale como uma assertiva metafísica, um preconceito
dogmático. Aqui Jung é, malgré lui, não um psicólogo empírico que “evita
assertivas metafísicas” (CW 9ii § 85, cf. 112, também a nota de rodapé “o
que eu faço não é metafísica”, trad. modif.). Ele – involuntariamente -
começa a partir de uma posição metafísica.

Em apoio a sua rejeição do conceito da privatio boni Jung faz


afirmações como tais: “Precisa-se estar positivamente cego para não ver o
papel colossal que o mal tem no mundo” (§ 114). “Não se pode clamar que
apenas o ‘bem’ existe e o ‘mal’ não. Ele existe! Cada padre confessor sabe
que se uma pessoa confessou seus pecados... então dá a volta na próxima
esquina e peca novamente. Ninguém pode viver sem pecar”.4

Há dois problemas sérios com esses argumentos. O primeiro deles é


que não se fala do “mal” per se, não do “mal” como uma categoria da
mente humana usada para julgamentos morais, mas sim de ações e

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Ao rejeitar a tese de Basil de que “o mal não tem substância em si mesmo”, Jung opta por uma tese oposta,
em que o mal tem uma substância em si mesmo. Na citação de Basil a palavra grega para “substância” é
hipóstase. N.A.
3
C. G. Jung, Über Gefühle und den Schatten. Winterthurer Fregenstunden. Textbuch, Zürich and Düsseldorf
1999, p. 60. Minha tradução. N.A.
4
C.G. Jung, Über Gefühle und den Schatten, op. Cit. P. 60, minha tradução. N.A.
4

condições, reais incidentes que apenas podem ser julgados como maus pela
mente humana, coisas positivamente existentes ou eventos ocorrendo na
realidade empírica. Devido a esses julgamentos essas ações ou condições
podem, então, serem chamadas “más”. Mas a realidade desses “maus”
concretos, no plural, é tópico totalmente diferente a partir da questão de
uma possível realidade do mal per se. Com sua referência ao que o padre
confessor escuta, Jung está pensando nas más ações reais das pessoas no
mundo. Em outras palavras, subitamente nos encontramos numa terceira e
distinta esfera. Com essas afirmações Jung se afastou da (a) arena da mente
humana, das categorias que a última precisa para sua cognição e
julgamento; ele também deixou (b) o plano filosófico das assertivas nas
quais ele esperava garantir ao mal per se uma dignidade ontológica e,
portanto, estabelecê-lo como uma realidade subsistente em seu próprio
direito; ao invés, ele agora (c), de repente, se move dentro da –
psicologicamente – esfera banal dos eventos a serem observados na
realidade empírica, cotidiana e vida prática. De modo algum alguém
precisa da psicologia (no sentido mais nobre da palavra para Jung) para se
dar conta do papel colossal que o mal tem no mundo nesse sentido ou da
ubiquidade dos “pecados”. É muito estranho ver Jung usar tal banal
observação para tentar sustentar sua outra tese, totalmente metafísica, sobre
a realidade do mal como tal, no sentido de ter “uma subsistência própria”.
O segundo problema ao apontar sobre os óbvios males do mundo
feito por Jung é que ele pensa que os defensores da teoria sobre o mal como
uma privatio boni são ignorantes sobre o sentido do mal (c) e dessa
maneira ele acredita que a teoria deles poderia ser refutada. Mas aqueles
pensadores que sustentaram a definição de privatio boni do mal nunca
duvidaram que há más ações e eventos no mundo. Que “A natureza
humana é capaz de infinita ruindade e más ações, que são tão reais como as
boas”, nunca foi questionada, muito menos negada. O ocidente cristão, cuja
maior tradição foi sustentar a ideia da privatio boni estava inteiramente
convencido da fundamental natureza pecadora do homem. A Bíblia já diz:
“Eles são corruptos, fizeram coisas abomináveis, não há nada feito de bom”
(Salmo 14:1), o que foi sustentado pelos maiores teólogos através das
épocas. Até o mesmo Basil, cuja refutação da substancialidade do mal Jung
rejeitou, é citado pelo próprio Jung ao dizer: “Que o mal existe ninguém
vivo no mundo negará” (§ 83). Na filosofia do final da segunda metade do
século XVIII Kant falou do “radical mal na natureza humana e de uma
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“predisposição” em todo ser humano de ser mal. Este foi o auto


entendimento prevalente do homem durante a era cristã. Bem praticamente,
um tema dominante na pregação constante da Igreja foi a pecaminosidade
do homem, assim como as admoestações para lutar e evitar os pecados. Em
adição, a ideia de que a existência humana era uma vida em um vale de
lágrimas era continuamente presente e confirmada pela experiencia real que
as pessoas tinham das doenças, numerosas mortes na família, guerras,
pragas, pobreza, crimes, injustiça, tortura, execuções. Não havia lugar
“para uma concepção muito otimista” (§ 113) da existência e
comportamento humanos. Não, a teoria da privatio boni não servia à
proposta de “encobrir esse mal” para “embalar alguém em uma falsa
sensação de segurança” (§ 97, modif.). Não era uma “uma petitio principii
(§ 94) eufemista. Não posso concordar com Jung quando declara “É difícil
evitar a impressão que tendencias apotropaicas tiveram uma influência
sobre a criação dessa noção com a compreensível intenção de resolver o
doloroso problema do mal de modo tão otimista quanto possível” (CW 11 §
247). Ao contrário, ela foi desenvolvida baseada numa íntima familiaridade
com o mal e a aceitação deste no mundo.
Privatio boni e uma visão muito sóbria, realista da natureza humana
e do mundo caminhavam juntos. O que vemos precisamente em Basil é que
a ideia da privatio boni de maneira alguma impede a ciência da realidade
empírica dos atos e eventos maus na vida humana (nem é claro,
acrescentaríamos, da noção da assim chamada “realidade” do mal como a
metade de um par de opostos usado pela mente para avaliar ações e eventos
na vida empírica). São todos os três perfeitamente compatíveis. Por quê?
Porque endereçam diferentes questões, têm seus lugares em diferentes
níveis ou em diferentes discursos. Não podem interferir um com o outro,
mas também não corroboram um ao outro.
O segundo engano que Jung comete em sua discussão sobre o mal é
o oculto, porém sistemático equívoco. Num determinado momento sua
“psicologia empírica” foca no mal como um valor do julgamento humano
e, em outro, o mal como evento ou ações no mundo real e sua proposta, no
geral, é provar a realidade do mal como tal, sem mencionar que esses três
problemas são heterogêneos. Correspondentemente, nós também temos três
diferentes sentidos de “realidade” do mal ou “existência” do mal que
necessitam ser apartados. Um é a coexistência lógica do mal com “bem” no
julgamento moral, outro é a realidade empírica das ações factuais que
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podem ser julgadas moralmente como sendo más e a terceira é o realismo


ontológico no sentido de uma subsistência (hipóstase). Jung confunde o
lógico com o empírico e com a esfera ontológica, portanto,
inintencionalmente, acoberta os problemas com uma cortina de fumaça.
Jung credita que com seu claro e justificado comentário numa área -
sobre o bem e o mal não serem mais do que elementos de um julgamento
moral -, fez o suficiente para provar de uma vez por todas que ele é um
psicólogo empirista e não um metafísico também em outras áreas,
nomeadamente, quando rejeita a tese da privatio boni. Assim, em outras
áreas, está dispensado de qualquer cuidado em não se tornar metafísico em
sua argumentação. Ao mesmo tempo parece esperar que o uso do “real” em
sua discussão do problema lógico e o uso da mesma palavra em suas
referências à realidade empírica poderiam suportar sua tese principal, que é
uma tese ontológica, mesmo se essa é declarada ser uma “no plano da
psicologia empírica”. Mas não é, como veremos melhor na seção 2.
A cortina de fumaça de que falei não pode de jeito algum ser
interpretada como um movimento deliberado e estratégico por parte de
Jung. (Se for uma estratégia, então, é pela força inconsciente em cujas
garras ele estava e que o levou a estabelecer a ideia da realidade do mal
como tal). Antes, essa cortina de fumaça é um sinal de que, enquanto
combatia a ideia da privatio boni, Jung mesmo não estava ciente do nível
inteiramente diferente no qual a discussão desta idea acontece, não tendo
atingido esse nível. Jung errou o ponto porque sua interpretação é
fundamentalmente subdeterminada, não à altura. Voltaremos a isso mais à
frente.

2.

Jung vê a teoria da privatio boni como uma necessidade histórica do


Cristianismo ameaçado pelo dualismo Maniqueísta (CW 9ii § 85).
Discutindo uma visão particular do Apocalipse (Judaico- Cristão?), a
‘Ascenção de Isaías’, ele diz:
Isso pinta um quadro de opostos complementares balanceando um ao
outro, como as mãos direita e esquerda. Significantemente suficiente, como
Homilias Clementinas, essa visão pertence ao período Maniqueísta (século II)
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quando ainda não havia a necessidade de o Cristianismo lutar contra seus


competidores maniqueístas. Ainda era possível dar uma descrição de uma
relação yang-yin, um quadro que é mais compatível com a verdade real do que a
privatio boni (§ 104).

A última parte dessa citação - a frase “um quadro que é mais


compatível com a verdade real do que a privatio boni” - é muito
reveladora. É um raro momento no qual Jung, inintencionalmente, expõe o
subsolo lógico de sua argumentação. O que se trai aqui é o fato de Jung se
aproximar do tema da privatio boni do ponto de vista de alguém que está
em posse do conhecimento da “verdade real” (tatsächliche Wahrheit). E
desse modo, em Resposta a Jó, Jung pode até mesmo falar da “doutrina
sem sentido [der Unsinn] da privatio boni” (CW 11 § 600 note) e, portanto,
simplesmente a jogar fora. Ele sabe que a privatio boni é sem sentido. A
respeito da questão de bem e mal ele não chega a seu tópico como um
psicólogo empirista. Para o psicólogo empirista tudo que existe é um
fenômeno psicológico, no nosso caso, por exemplo, a oposição
complementar de bem e mal como as duas mãos de Deus do século II, por
um lado, e do outro a do Ser como bom (muito mais tarde Tomás de
Aquino iria dizer ens et bonun convertuntur), enquanto o mal nada mais é
do que a privação da bondade. Psicologicamente uma visão - previsto que
isso é um fenômeno real na história da alma - é tão boa como a outra. O
psicólogo pode apenas observar imparcialmente que visões, fenômenos
existem e quais mudanças nas visões prevalentes ocorrem, mas não tem um
a priori ou norma externa dada através da qual pode medir qual é a mais
próxima à “verdade” que outra. Porque, para o ponto de vista psicológico,
cada fenômeno é ele mesmo uma verdade psicológica. Pela mesma razão,
quando Jung afirma “a teologia de Clemente estava numa posição de abrir
caminho a [uma certa] contradição de modo que encaixe os fatos
psicológicos” (CW 9ii § 99), temos que lembrá-lo de que a teologia de
Clemente é, em si mesma, apenas um dos fatos psicológicos e não pode ser
comparado à alegados “os fatos psicológicos”. “A ideia”, Jung mesmo que
nos ensinou, “é psicologicamente verdadeira visto que existe. (...) Mas
estamos tão habituados à ideia de que eventos psíquicos são intencionais e
produtos arbitrários ou mesmo invenções de um criador humano que
dificilmente podemos nos livrar da visão preconceituosa de que a alma e
seus conteúdos são nada mais que... mais ou menos produtos ilusórios de
suposições e julgamentos” (CW 11 § 4f.). O psicológico “ponto de vista é
exclusivamente fenomenológico, ou seja, é preocupado com ocorrências,
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eventos, experiencias, em uma palavra, com fatos. Sua verdade é um fato e


não um julgamento” (ibid § 4). Julgamentos, teorias, hipóteses podem ser
verdadeiras ou falsas. Não os fenômenos psicológicos. Eles são o que são e
devem ser considerados como tais. Não se pode, como psicólogos, se
posicionar a favor de um fenômeno e ser contra outro. Como psicólogos
não se pode polemizar contra certos fenômenos psíquicos. Seria
comparável ao biólogo que, como biólogo, é a favor de uma espécie animal
e quer eliminar a outra.
O ponto aqui não é se algo é uma suposição e um julgamento
humano, de um lado, ou uma ocorrência ou evento, de outro. Isso não é
uma fixa, quase ontológica distinção; elas não são dadas. Não, a psicologia
é constituída pela decisão metodológica em conceber mesma, de
suposições e julgamentos, de teorias e ideias que as pessoas chegam à,
como fenômeno, como verdades psicológicas, como “fatos” (ou seja, nesse
contexto como fatos que ocorreram, pertencentes à fenomenologia histórica
da alma, como aspectos da auto exibição da alma) e não como as
suposições e hipóteses das pessoas. Este ponto de vista metodológico é o
que distingue o psicólogo do historiador de ideias.
Mas Jung, na passagem anteriormente citada, claramente prioriza
uma perspectiva e rejeita a outra e o faz em nome de “a verdade real”, de
um terceiro nível, acima do fenomenológico. Isso não significa nada mais
que, dessa posição, Jung deixou a perspectiva psicológica - para qual as
ideias fenomenologicamente existentes são em si mesmas verdadeiras e
representam apenas as verdades que o psicólogo conhece - e agora olha o
fenômeno de uma posição externa, dogmática, uma pressuposição. Para a
psicologia os fenômenos têm suas verdades em si mesmos, “em suas
existências”. A própria ideia de Jung sobre a verdade psicológica discutida
em CW 11 § 4 poderia até mesmo ser expressa com o Escolástico “ens et
verum convertuntur.” O único significado que a frase “a verdade real”
poderia ter para a perspectiva psicológica é que é a fenomenologia da alma
como um todo, como “formação, transformação, eterna recreação da Mente
Eterna.” E a mudança da visão dualista do bem e do mal como as duas
mãos de Deus para a visão na qual Deus é summum bonum e o mal uma
privatio bomi, de uma posição psicológica, poderia não ser julgada como
um movimento certo ou errado. Como poderia um psicólogo possivelmente
saber qual é um movimento certo ou errado para a alma? Ele teria que ter
um ponto arquimediano. Ele possui apenas a fenomenologia mesma para
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seguir. A fenomenologia real juntamente com o auto movimento dela são a


única espécie de verdade que existe para ele.
Antes, do ponto de vista psicológico, aquele movimento das “duas
mãos de Deus” à privatio boni expressaria a fundamental mudança nas
profundezas da alma, na sua autodefinição e auto constituição. A questão
que surge para o psicólogo seria a seguinte: O que psicologicamente
significa que a alma mudou, por exemplo, do politeísmo para o
monoteísmo ou da visão pré-maniqueísta de uma oposição complementar
de bem e mal para a visão pós-maniqueísta da privatio boni? O que a alma
faz a si mesma ao mover-se de um para outro, o que ela quer atingir para si
mesma? Entretanto aqui, para Jung, o fenômeno - as perspectivas sobre o
bem e o mal -, tem sua medida de verdade fora de si mesmos. Ao mesmo
tempo isso significa que ele não os trata como fenômenos psicológicos,
como produtos da alma e como sua auto suficiente auto representação, mas
como “suposições e julgamentos” das pessoas sobre a realidade, que
naturalmente tem a consequência imediata que a questão levanta: se elas
são adequadas ou não.
A longamente honrada idea da privatio boni determinou o
pensamento do Ocidente por mais de um milênio e meio. As maiores
mentes se engajaram nela. É um fenômeno e realmente existe. No curso de
séculos tem moldado a consciência assim como nosso mundo e como tal
possui a dignidade da alma, a dignidade de uma verdade da alma. Mas Jung
tenta contornar a perspectiva psicológica ao afirmar corajosamente: “A
privatio boni não pode ser comparada à quaternidade porque não é uma
revelação. Ao contrário, tem todas as marcas de uma ‘doutrina’, uma
invenção filosófica” (CW 18 § 1613). Como se as maiores doutrinas
filosóficas não fossem “revelações”! Como se a alma não estivesse também
falando através da filosofia e da arte. Não estamos envelopados pela alma
por todos os lados? Jung não teve nenhuma dificuldade atribuindo
dignidade de alma e um valor revelador ao Fausto de Goete. Mas não foi o
Fausto uma invenção, a produção de um artista muito consciente, de mente
alerta e articulador? Teve a verdade de uma “revelação” para Jung apenas
por que parecia amparar suas próprias ideias? Não são “revelações” os
produtos do pensamento humano? (Ou nós somos supostos a acreditar na
“revelação” literal, em inspirações verbais vindas de fonte misteriosa,
diretamente de Deus ou de um “inconsciente” literal?).
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O psicólogo não pode ser seletivo. Não pode enraivecer-se contra a


privatio boni, mesmo se ela for uma doutrina e diminuí-la como um “nada
mais que”. Não é uma frágil mistura do ego. O psicólogo pode apenas
esperar e ver como continua o auto desabrochar da verdade da alma e onde
o auto movimento da alma pode levar à. Deixemos a alma aos seus
próprios meios. Psicologia vem depois do fato e não possui um projeto
próprio para o futuro, de fato não é nenhum pouco orientada ao futuro. De
qualquer modo, não nos cabe tentar interferir no processo da alma com
nossos esquemas e expectativas. O fato de Jung ter se enraivecido contra o
conceito da privatio boni é, psicologicamente, fora da ordem. Mostra que
ele possui sua própria agenda, seu próprio programa.

3.

A tese de Jung é: “Nós não podemos mais simplesmente clamar que


o mal é ‘µňό𝜈’, algo não existente.” 5 Mas ele faz uma pobre leitura ao mê
on e à correspondente ideia da privatio boni. Há pelo menos duas sérias
deficiências em seu entendimento. Uma se refere ao horizonte no qual Jung
as coloca. A outra se refere à própria forma lógica da consciência de Jung
com a qual ele as aborda.

a) Jung interpreta a noção do mal como algo não existente como se


isso fosse uma afirmação sobre o comportamento humano, sobre eventos e
ações na realidade empírica e uma tese sobre filosofia moral. A teoria da
privatio boni do mal através dessa leitura se torna para ele “uma concepção
muito otimista do mal na natureza humana” (CW 9ii § 113). É “uma petitio
principii eufemista e uma “falácia” (§ 94, trad. modif.). A privatio boni tem
uma função “apotropaica” (CW 18 § 1537, CW 11 § 247) e equivale a “um
bem-vindo sedativo” (CW 11 § 457). É “um tal horrível silogismo” (CW 18
§ 1593), “um regular tour de force de sofisma” (CW 11 § 470) para
apaziguar uma desconfortável consciência. “Más ações simplesmente não
existem [ou seja, de acordo com isso]. A identificação do bem com ousia
[substância] é uma falácia porque um homem que é todo mal não

5
C.G. Jung, Über Gefühle und den Schatten, op. Cit. P. 60, minha tradução. N.A.
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desaparece de todo quando perdeu seu último bem...” Essa teoria “é uma
desesperada tentativa de salvar a fé cristã do dualismo” (CW 18 § 1593).

Há outro lugar que Jung nos informa sobre a origem de seu interesse
nessa teoria:

Eu nunca teria sonhado que encontraria contra tal problema como esse da
privatio boni no meu trabalho prático, aparentemente fora do caminho. O destino
queria, entretanto, que eu fosse chamado a tratar um paciente, um homem
erudito, academicamente educado que se envolveu de todas as maneiras
duvidosas e moralmente repreensíveis práticas. Ele se mostrou ser um ardente
aderente da privatio boni, porque se encaixava admiravelmente em seus
esquemas: o mal em si mesmo não é nada... Foi esse caso que originalmente me
induziu a enfrentar a privatio boni em seu aspecto psicológico” (CW 11 § 457).

Aqui Jung nos informa sobre o começo de seu estudo sobre o tópico
privatio boni e, ao mesmo tempo, revela o horizonte dentro do qual ele o
abordou. Este ponto inicial é, portanto, um abuso dessa teoria por parte de
seu paciente para seus próprios propósitos egóicos e neuróticos, propósito
em “enganar a si mesmo”, para uma “auto decepção”, para “esconder um
ato imoral ao otimistamente olhá-lo como uma leve diminuição do bem,
único que é real, ou uma ‘acidental falta de perfeição’” (CW 11 § 457). A
questão para nós é: por que Jung apenas não criticou o abuso, mas, ao
contrário, jogou a culpa dessa tola defesa na porta da doutrina da privatio
boni, como se, de fato, o abuso fosse inerente nela? Essa última está
realmente preocupada com a questão do “mal na natureza humana”, de fato
com o ‘lavar’ as “pessoas que são total e inteiramente más”? Tem, de fato,
uma função apotropaica, é realmente uma defesa desesperada e uma
amenização eufemista? Essas insinuações ou suposições são todas
absurdas. A mera sugestão de que a argumentação de seu paciente e o
conceito teológico-filosófico da privatio boni estavam relacionados é
errôneo.

Se fosse apenas uma questão de, na terapia, combater tal óbvia e


primitiva auto decepção, de modo algum Jung teria que ter ido aos aspectos
teológicos e filosóficos da privatio boni. Trabalhar com o último para
conseguir lidar com o primeiro, nomeadamente, sobre o desejo de certas
pessoas modernas e neuróticas se utilizarem disso para se desviarem de seu
lado sombrio é como utilizar um rolo compressor para quebrar uma noz.
Absolutamente não tem relação com isso. Já mostrei que a existência de
12

más ações não foi de modo algum negada pelos aderentes dessa doutrina,
nem foram seus propósitos diminuir eufemisticamente o mau
comportamento, muito menos tinham uma visão otimista sobre a natureza
humana. Tinham um foco totalmente diferente. Não era uma teoria sobre
questões morais (a avaliação moral e a justificação de ações humanas ou
traços de caráter [aspectos sombrios]). Mas Jung parece ter caído nesse
abuso de seu paciente e ficou preso na visão deste, de que a privatio boni é
uma tentativa de apresentar o mal como não existente no mundo real, o
mundo do comportamento prático. O fato de Jung considerar ser necessário
pontuar a trivialidade que “um homem que é total e inteiramente mau não
desaparece quando ele perde totalmente seu último bom” mostra
claramente que seu horizonte, nessa questão, é ultimamente o de um
pensamento concretista em termos de uma realidade literal, empírica e de
uma psicologia personalista, a psicologia da pessoa – e, portanto, não de
uma psicologia verdadeira, informada pela diferença psicológica. A
respeito da teoria da privatio boni Jung obviamente erra o alvo. Ele falha
em ver do que esse conceito realmente se trata (e, portanto, também o que
psicologicamente é).

Pela mesma razão, se, como Jung diz, para a priori imunizar suas
perspectivas contra possíveis objeções “meu criticismo é valido somente no
plano empírico. No plano metafísico, por outro lado, o bem pode ter uma
substância e o mal µňό𝜈. Não conheço nenhuma experiencia factual que se
aproxime de tal assertiva, assim, até esse ponto o empirista permanece
silencioso” (CW 11 § 459), no entanto, então por que ele ataca a doutrina
da privatio boni de modo tão enfático e tão continuamente, a doutrina que,
afinal, tem seu lugar somente naquilo que Jung chama de plano metafísico?
Por que ele não permanece em silencio? Por que, como ele admite, “se
aventura no território de outro [plano]”, a despeito do fato de admitir que
“aqui o teólogo tem uma certa razão em temer uma intrusão por parte do
empirista” (CW 11 § 456)? A resposta a essa questão é um pouco
complicada já que necessita de uma série de diferenciações.

O fato de Jung radicalmente contrastar os planos empírico e o


metafísico (ou teológico) como toto coelo separados e restringir a si próprio
(pelo menos diz que se restringe) ao primeiro significa que, nesse ponto,
ele não pensa psicologicamente, mas positivamente e que, portanto, nem os
eventos empíricos, nem os conceitos teológicos podem ser vistos em
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termos de alma, como a alma falando dela mesma. Agora, de repente, a


psicologia é tratada como se possuísse um “campo definido” (cf. CW 9i §
112) e a teologia parece estar fora disso, o que é a única razão por que Jung
sente que precisa falar de “invasão”. O ponto real de uma psicologia é que
ela não compete, possivelmente não pode competir com outras ciências
nem invadir seus campos porque tem seu lugar em um nível completamente
outro. É a suspensão de todos os possíveis níveis, de certa forma
comparável o que em linguística se distingue línguas como as línguas de
primeiro grau da de uma metalinguagem (o objetivo do qual é descrever e
analisar as línguas de primeira ordem) Psicologia, se é psicologia, é aberta
à fenomenologia da experiencia empírica assim como à teologia, física,
literatura, etc. Não pode invadir a teologia de modo algum porque os dois
campos não estão lado a lado, no mesmo plano, com uma cerca entre eles.
Pode perfeita e legitimamente se debruçar sobre ideias teológicas porque o
faz num nível fundamentalmente “mais alto” (“mais alto” num sentido
lógico, eu também poderia dizer “mais profundo”) e a partir de uma
perspectiva inteiramente diferente.

Pelo fato de que Jung estabelece a psicologia e a teologia como dois


campos separados, vis-à-vis um do outro, um segundo fato se trai,
nomeadamente, que Jung de fato invade outro plano. A questão que surge
de dentro do plano empírico precisaria ser resolvida dentro desse plano.
Não se pode esperar por ajuda vinda da teologia ou de qualquer outro
campo. Por conta disso é completamente supérfluo estudar os Pais da Igreja
e sua privatio boni de modo a lidar com os problemas morais aparecendo
no consultório e na psique das pessoas modernas. Mas era essencial para
Jung assumir e criticar a ideia teológica. E agora posso responder à questão
acima: por que ele não permaneceu em silencio. Na forma lógica de sua
consciência ele quis continuar no mindset pré-psicológico que construiu a
realidade psíquica a partir do modelo das coisas e pessoas e suas interações,
enquanto que, semanticamente, ele sentiu a necessidade de transcender o
horizonte humano, demasiado humano, limitado e personalista e conceber a
psicologia como o estudo a respeito das verdades universais
transcendentes, auto suficientes da alma (que ele usualmente chamava de
ideias arquetípicas ou imagens e aquilo que Hillman posteriormente
chamaria de “imaginal”). São transcendentes na medida em que não
expressam o que as pessoas sentem ou imaginam, mas aquilo que lhes
configura seus pensamentos e sentimentos e com o sentido de que não
14

existem por nossa causa, mas são realidades ao redor da qual a vida
humana gira. O invadir de Jung é, em última análise, mais do que o externo
trespassar de um campo para dentro de outro, como pode aparecer para
uma visão mais superficial. É realmente uma contravenção intrapsíquica,
psicológica, ao ignorar a discrepância e incompatibilidade que existe entre
a semântica e a sintaxe de sua consciência: que Jung se sente justificado em
aproximar conteúdos semânticos (aqui, as ideias privatio boni e summum
bonun), que já são reais e verdadeiramente conteúdos psicológicos porque
são o resultado da suspensão de ambas as esferas da realidade empírica e da
esfera da teologia literal, com uma consciência que em sua constituição
lógica ou sintaxe não foi suspensa, mas fica no nível da antiga lógica e é
informada pela lógica da realidade empírica. Por outro lado isso significa
que ele inflaciona o banal, a humana demasiada humana questão do bem e
do mal na vida moderna (ou psicologia do ego) com excessiva importância
mitológica, arquetípica.

b) Com as últimas ideias nós já entramos no segundo tópico sobre a


forma lógica da consciência com a qual Jung aborda a doutrina da privatio
boni e que determina sua interpretação. Que sua consciência em sua forma
lógica não está à altura da forma lógica do material a ser estudado se
mostra principalmente de duas formas. A primeira circula ao redor do
monoteísmo-dualismo e exige que “O mito [i.e. o mito cristão] precisa se
mover do monoteísmo e desistir de seu (oficialmente negado) dualismo, o
que até agora autorizou a coexistência de um eterno e sombrio Adversário
ao lado de um onipotente Deus” (MSR p.338, trad. modif.). A próxima
sentença mostra como Jung imagina uma solução: “Precisa-se abrir espaço
dentro do sistema para a filosófica complexio oppositorum de Nicolas de
Cusa e a ambivalência moral de Jacob Boehme; somente, então, pode estar
garantido ao Único Deus a totalidade e a síntese de opostos que deveria ser
Dele... o mito da necessária encarnação de Deus – a essência da mensagem
Cristã – pode, então, ser entendida como o engajamento criativo do homem
com os opostos e sua síntese no Self...”
Nós temos que adicionar umas citações a mais para ter uma imagem
mais completa dos determinantes estruturais do olhar de Jung. “A
experiencia psicológica mostra que o que quer que seja que chamemos de
‘bem’ é balanceado por um igualmente substancial ‘mal’ (CW 11 p. 357).
“Por consequência a realização do self... leva a um fundamental conflito,
15

uma real suspensão entre opostos (reminiscência do Cristo crucificado


entre dois ladrões) ...” (CW 9ii § 123). “Este grande símbolo [i.e. a imagem
do Salvador crucificado entre dois ladrões] nos diz que o progressivo
desenvolvimento e diferenciação da consciência leva ainda a uma maior e
mais ameaçadora ciência sobre o conflito e envolve nada mais que uma
crucificação do ego, sua agonizante suspensão entre opostos
irreconciliáveis” (CW 9ii § 79). “... bem e mal representam equivalentes
metades de um oposição” (ibid. § 79 note). Com consentimento de
Clemente de Roma, Jung (repetidamente) se refere “à concepção de Cristo
como a mão direita e o diabo como a mão esquerda de Deus”, “para não
falar da ideia judaico-cristã que reconheceu dois filhos de Deus, Satã o
mais velho e Cristo o mais jovem.” (CW 11 § 470).
Além de seus conteúdos semânticos, o que aparece de todas essas
ideias de Jung é que seu pensamento é estruturado por horizontalidade,
dualidade e oposição. Duas mãos de Deus, dois filhos de Deus, suspensão
entre opostos irreconciliáveis, conflito, metades equivalentes, mal
coexistindo ao lado do bem. É um pensamento em termos de espaço que
aparece mais descaradamente na ideia de esquerda e direita (mãos) e
(Cristo) pendurado entre (dois ladrões). Ou seja, é um pensamento
pictórico. Agora podemos entender por que, para Jung, bem e mal precisam
ser substâncias: porque seu pensamento é informado pelo modelo das
coisas no mundo ordinário, visível ou das pessoas (“pai” e “dois filhos”). O
seu não é um pensamento no sentido estrito da palavra. É mitificação. E seu
apaixonado levantar-se a favor do bem e mal, no nível semântico, como
opostos substanciais, não está apenas preocupado com questões morais,
mas também está dirigido por um profundo desejo de defender esta forma
lógica da consciência. Sua alergia contra a privatio boni pode ser explicada
em parte como o seu sentimento sobre a ameaça que isso coloca para esse
estilo de consciência. Também se segue disso que ele tinha que interpretar
erroneamente as teorias privatio boni e summum bonum: que teoria é o
produto de uma fundamentalmente diferente consciência que deixou o
modo mitológico para trás, de modo que, em Jung, o que aparece precisa
ser traduzido para o pensamento pictórico mais primitivo da consciência
mítica e, desse modo, mal concebido.
Obviamente, a ideia da privatio boni tem a forma da verticalidade em
contraste com a defesa apaixonada do pensamento horizontal em Jung.
Esse pensamento vertical é o que distinguia o temporal do intemporal ou
16

eterno, o finito do infinito na tradição do pensamento filosófico grego,


princípios e o que é principiado por eles, o fenômeno ou o real de Ideias e
concebia as relações de um com o outro como negação ou privação.6 Já
Anaximandro ensinou que o temporal se distanciava do intemporal através
da άδικία (transgressão, injustiça). Para Platão o mundo sensorial pode ser
entendido como o efeito de uma deficiência ou falta no Ser, uma privatio
(ϭτέρηϭς). E, posteriormente, Plotino pensa o mundo como um todo em
termos de emanation, a emanação do Um (que é perfeito e o Deus
primordial) em várias descidas graduais através da qual a matéria, como o
grau mais inferior, é μηöν e mal, a negação absoluta do primordial Um.
Mas não é somente a filosofia grega que pavimentou o caminho para a
concepção da privatio boni. De acordo com a Bíblia, também, o mundo
empírico assim como é realmente, é visto como deficiente, o resultado da
Queda. Não é como se fosse criado, não em inocência paradisíaca e
perfeição.
Anteriormente a todas essas formas de pensamento há a concepção
do universo consistindo em dois (ou três) níveis: o do Pai Celestial e Mãe
Terra (mais o submundo, o reino da Morte e dos mortos), o primordial (i.e.,
pré-filosófico, pré-reflexivo) paradigma mitológico da verticalidade, que
eram mantidos aparte pela Árvore da Vida, a imagem mesma da
verticalidade. Podemos ter certeza de que a relação vertical do temporal ou
finito com o eterno ou infinito na filosofia é a mesma que a da antiga
diferença mitológica e imaginal Céu-Terra, traduzida e interiorizada de sua
sensível e imaginada forma como cósmicas entidades para o muito
diferente meio do pensamento refletido. Essa tradução não mudou apenas
os dois opostos da forma sensível, imaginal de Céu e Terra para a abstração
dos pensamentos “o eterno” e “o temporal” (ou as várias versões
específicas desse pensamento que os opostos receberam em diferentes
filosofias ao longo do tempo). Também alterou outros dois elementos do
esquema mitológico. No último, a Árvore da Vida (outro elemento a ser
discutido) era um objeto (imaginal), algo concreto, que tanto apartava
como unia os opostos. A literalidade metafórica de tal coisa separando-e-
conectando, dentro do meio do pensamento, se transformou na viva, fluida
forma da mediação como um separando-e-conectando lógico. E o terceiro
nível da concepção mitológica do mundo, o Submundo (como o segundo

6
Jung estava consciente do background grego pré-cristão da privatio boni: “Apesar da privatio boni não
ser invenção dos Pais da Igreja, o silogismo foi mais do que bem-vindo para eles...” (CW 18 § 1639).
17

elemento a ser discutido), sendo a concreta versão imaginal da negação


lógica – negação retratada como um reino existente em algum lugar do
cosmos – retornou no meio filosófico como a negatividade dessa mediação:
“injustiça”, “privação”. É óbvio que “privação”, “emanação” e, na religião,
“Queda”, simultaneamente, expressam a separação e a conexão dos
opostos.
Esta é, então, a ancestralidade consagrada pelo tempo da
concepção da privatio boni e que torna, desde o princípio, completamente
improvável que ela fosse nada mais do que um sofisma e um eufemismo
apotropaico.
Quando Jung fala de bem e mal ele tem os julgamentos
humanos substanciados em mente, bem e mal per se, como substâncias,
como realidades em seus próprios direitos. Começando a partir dessa
concepção ele mede o que os Pais da Igreja disseram sobre o bem e o mal
contra o estandarte de seu próprio esquema, sendo cego para o fato que
quando falavam do summum bonum eles não estavam primeiramente
interessados em “o Bem” per se, mas que, ao contrário, descreveram a
essência de Deus como absolutamente bom. Não: o Bem é real, o Bem é
Deus, mas: Deus é pura Bondade. O summum bonum ens É summum
bonum. E com suas ideias da privatio boni também não estavam
interessados em eliminar a “questão urgente” do mal. Seus tópicos
fundamentais não eram a diferença moral per se de forma alguma. Seus
interesses eram muito mais descrever e compreender a diferença entre Deus
e o mundo, entre o Criador e as criaturas caídas, para quem “bem” e “mal”
foram aplicados. É verdade, eles responderam ao desafio da heresia
maniqueísta e seu dualismo. Mas, contrastando a como Jung parece pensar,
eles não levaram o dualismo maniqueísta tel quel e apenas o privaram de
um de seus polos ao desprezá-lo, tirando dele sua realidade e
substancialidade. Ao invés disso, eles rejeitaram toda a visão horizontal
dualística e o contra-atacaram com seus paradigmas inteiramente diferentes
ao se manterem com a tradição filosófica ocidental. Nós também
poderíamos dizer que eles defenderam uma mais avançada maneira de
pensar ou um status mais elevado de consciência contra a intrusão de uma
restauração regressiva de um pensamento mais primitivo.

4.
18

Para nós isso significa que agora temos que, primeiro, olhar
para a estrutura da consciência que se expressa na visão dualista e
maniqueísta sobre o bem e o mal, segundo, determinar a posição de Jung
em comparação a isso e, terceiro, investigar qual é a função e o mérito do
tipo de pensamento da privatio boni, ou seja, porque pode ser considerada a
expressão de uma forma mais avançada de consciência.
No Maniqueísmo, Bem e Mal ou Luz e Escuridão são princípios
totalmente independentes, não havendo nenhuma possibilidade de vê-los
derivando de um terceiro como origem comum. Em outras palavras, eles
são o pensamento (ou invés, a ideia semântica) da oposição abstrata,
absolutamente irreconciliável como tal. Historicamente essa ideia do
absolutamente não mediado vis-à-vis dos opostos volta para um inicial
dualismo do zoroastrismo que também era a absoluta oposição de duas
forças irredutíveis (imaginada como uma batalha cósmica), personificadas
como o Bom Espírito (Senta Mainyu) e o Mal Espírito (Angra Mainyu),
Ahura Mazda (ou Ormazd) e Ahriman, Verdade e Mentira, Luz e
Escuridão. Nós vemos que no Maniqueísmo, assim como no Zoroastrismo,
temos um pensamento decididamente horizontal. Zaratustra, o fundador do
Zoroastrismo, desenvolveu essa religião ou filosofia em contraste com o
politeísmo persa de seu tempo. Isso é essencial para nós compreendermos o
que isso significa. No nível do politeísmo ou mundo mitológico da
experiencia do mundo não há dualismo. Há inúmeros deuses, demônios ou
espíritos e cada um possui naturezas ambivalentes, mesmo se alguns forem
predominantemente benevolentes e produtivos, enquanto outros podem ser
predominantemente perigosos e destrutivos. Quer dizer, no nível do mito, o
pensamento não se elevou para o conceito abstrato de oposição. Uma
pureza de princípios e conceitos abstratos ainda não existe. O que
aconteceu com Zaratustra é algo extraordinário. A consciência se eleva ao
nível da abstrata oposição de Bem e Mal como princípios.
Agora não devemos pensar que Zaratustra apareceu com as noções
de Bem e Mal porque ele era uma pessoa particularmente moral e
primariamente preocupada com moralidade. É ao contrário. Em Zaratustra
nós testemunhamos dentro de uma consciência mitológica, imaginal, a
primeira emergência da ideia, da possibilidade daquilo que está
fundamentalmente além da mente imaginal. Nós testemunhamos a primeira
19

imediação do meio do pensamento, pensamento apropriado, Logos. E a


primeira aparição da possibilidade do pensamento como tal tem a forma de
uma oposição moral. Bem e Mal, Verdade e Mentira, Luz e Escuridão são
os primeiros conceitos verdadeiros e o primeiro conceito de contradição e
negação lógica. Eles são propriedades exclusivas da mente. Bem e mal não
derivam de experiencias sensíveis e não possuem uma referência na
natureza. Eles não são mais poderes míticos que apenas acontecem de
serem inimigos e em guerra um com o outro. Eles não são opostos naturais,
como Dia e Noite. Como os primeiros autênticos princípios eles são
(mesmo se apenas in nuce) a negação do estágio inteiro da consciência
mítica.
E Bem e Mal não são, cada um, coisas que existem por si mesmos e
acontecem de terem este ou aquele caráter, não são entidades equipadas
com as próprias e complexas estruturas. Não, eles são o que são apenas
juntos. Eles possuem suas verdades apenas na união porque, em última
análise, são o pensamento abstrato da contradição como tal, como A≠ não-
A. “Bem” é o que é apenas como simples negação de “mal” ou “mau” e
nada mais; “bem” é aquilo que o mal não é, assim como “mal” não é mais
do que a negação do “bem”. (Por isso também é que Jung insistiu tão
tenazmente na coexistência de “julgamentos” – poderíamos dizer, conceitos
– de bem e mal. Com um, o outro é imediatamente positivado; e, ao
contrário, se um é retirado, o outro também some. Eles “representam
metades equivalentes de uma oposição”, como Jung corretamente colocou.
No fato de que bem e mal serem nada mais que a negação um do
outro está a simplicidade e pobreza de seus sentidos. Tanto o real fenômeno
na realidade empírica assim como os deuses míticos possuem naturezas
complexas, com várias qualidades diferentes. Bem e mal possuem apenas
um único sentido. Além disso eles não são realmente duas distintas
realidades, mas são o pensamento único de contradição, juntos, talvez de
modo muito semelhante à natureza única da eletricidade que aparece como
a unidade de (+) e (-).
Zaratustra talvez possa ser considerado o descobridor avant la lettre
do princípio lógico da contradição. É lógico que o primeiro pensamento em
que vem o pensamento propriamente dito é o pensamento da contradição e,
além disso, é o primeiro conceito com o qual o nível ou meio do
pensamento faz sua aparição na história da consciência. Historicamente
20

isso representa o avanço através de todo o horizonte mitológico e do


pensamento imaginal e logicamente é o princípio constitutivo do
pensamento como logos em contraste com mythos. Contradição é a entrada
à forma do pensamento porque como contradição e negação lógica (a)
contradiz toda a forma mitológica; isso equivale à negação e ao
afastamento da forma mitológica de pensar. E (b) é como se fosse, o ácido
que limpa as ideias da contaminação com os remanescentes da percepção
sensível, imaginação, emoções e assim cria a pureza dos conceitos que o
pensamento mesmo se entretém. “Abstração” é usualmente o nome que
damos a essa limpeza.
Assim, a doutrina de Zaratustra é o evento inicial da elevação da
alma ao novo nível de uma consciência refletindo, o nível do pensamento
conceitual. A emergência desse novo status de consciência é, entretanto,
apenas um primeiro pressentimento ou intuição ainda dentro de uma
consciência mitologicamente imaginante. Isso é por quê o estritamente
abstrato conceito de Bem e Mal aparece, no entanto, mitologizado (ou
ontologizado) como poderes cósmicos, personificados como Bom Espírito
e Mau Espírito e porque sua relação abstrata de contradição aparece como a
ideia de uma batalha real e todo o esquema como o de uma religião
dualista. É também o porquê de um conceito, nomeadamente a contradição,
aparecer narrativamente ou dramaticamente como uma oposição entre dois
opostos ônticos absolutos. Bem e Mal. Assim, na semântica de Zaratustra
ele tinha avançado ao nível do Logos, mas no nível formal ou sintático da
consciência ele permanecia no antigo nível imaginal. A totalmente nova
ideia semântica faz sua aparição baseada na antiga sintaxe, dentre dela,
embora esteja em excesso nesta, implicitamente, como a primeira
iminência de uma nova sintaxe.
Foi tarefa dos gregos transportar a visão semântica do pensamento
conceitual ao novo nível de consciência reflexiva e à forma lógica do
pensamento conceitual ao interiorizá-lo nele mesmo, portanto, levando-o à
casa dele mesmo, libertando-o de seu “aprisionamento” na emocionalidade
das pessoas, no nível imaginal, libertando-o a sua verdade, ou seja, ao seu
próprio território, o território do Logos. Heráclito de Éfeso, o filosofo que
nos concedeu o termo logos, lógica, era um súdito do rei persa Darius e,
como se pensa, seu amigo. Algumas vezes se acredita que ele possa ter sido
influenciado pelo zoroastrismo, apesar de não haver evidências claras sobre
isso.
21

Eu comparei bem e mal ao positivo e negativo da eletricidade.


Talvez nós até tenhamos que dizer que os termos bem e mal, como (+) e (–)
ou A e não-A não tenham mesmo sentido por si próprios. A oposição ou
contradição mesma é aqui o conceito real, a única realidade conceitual e
“bem” e “mal” são apenas o modo como este real conceito se articula, seus
dois momentos internos somente, quando ainda está semantizado ou
mitologizado. Em outras palavras: toda a “oposição moral” é, em verdade,
talvez não mais do que a abstrata, estrita contradição lógica formal, embora
esta contradição apareça dessa maneira apenas por estar submersa no
concreto meio emocional humano como um apaixonado “a favor ou
contra” e imaginada como duas subsistentes realidades metafísicas
substanciais, o Bem, o Mal. A transição revolucionária do nível do mito ao
nível do pensamento era altamente improvável devido à enorme inércia
natural da alma, a grande relutância que esta mostra contra sua própria
necessidade de transcender a si mesma. Essa improbabilidade pode explicar
por que a primeira iminência do pensamento de contradição teve que ter a
forma de opostos morais e não outra abstrata oposição: precisou do
tremendo poder sugestivo, mobilizador e emocional do “bem” e do “mal”
para aproveitar toda a força da alma para seu próprio projeto em ultrapassar
sua própria inércia e se catapultar ao novo status do pensamento.
Segue-se que a questão moral de bem ou mal, em geral e em
qualquer tempo, não deve ser levada literalmente. Nós não devemos nos
precipitar como se isso fosse, em si mesmo, uma preocupação moral
realmente e com o que semanticamente se diz fosse de máxima
importância. Ao contrário, é uma formação de compromisso entre a
primeira entrada ao próprio pensamento através do princípio que o
constitui, o princípio de contradição de um lado e o material mitológico de
outro, no qual esse novo meio faz sua aparição. Visto psicologicamente,
toda vez que as noções de bem e mal se tornam centrais e tópicos que
pressionam a consciência temos uma indicação que o portão de entrada ao
pensamento foi atingido, que a alma está lutando para adquirir para si
mesma uma consciência no status do pensamento, mas permanece apenas
na sua transição, sem atravessá-la; é uma clara indicação que o autêntico
estilo imaginal ou mitológico foi claramente deixado para trás com certeza,
sua inocência e ingenuidade foram perdidas, mas sua forma lógica ainda
está retida. A consciência se tornou uma que já possui conceitos abstratos
(mas apenas os tem; os tem apenas na forma híbrida de conceitos
22

emocionais e imaginais: poderes metafísicos). Novamente vemos: “Nesse


sentido Bem e mal” e uma consciência moral são a primeira emergência do
meio ao pensamento propriamente dito reduzido a um conteúdo semântico
no meio antigo de uma consciência imaginal ou, em outras palavras, a
primeira e primitiva iminência do estágio do logos da consciência, que,
entretanto, não é capaz ou não quer seguir através de si mesma. Um
interesse da alma que mal compreende a si mesma. Toma seu conteúdo
semântico, emocional (bem e mal) como o que é real, enquanto seu real,
mas não realizado conteúdo não é nada mais que o estritamente
pensamento formal de pura oposição, contradição, negação (sem qualquer
coisa que seria negada). Se esse conteúdo fosse realizado não seria mais
apenas um conteúdo, mas teria revolucionado a forma da consciência.
Os opostos maniqueístas são opostos um ao outro de forma absoluta,
não mediada. Porque são substanciados nós obtemos um dualismo. Com
seu louvor à ideia do bem e do mal como as mãos direita e esquerda de
Deus e Satã e Cristo como seus dois filhos, Jung deixa aberta a si mesmo a
mesma acusação de dualismo. Ele estava ciente disso e tentou a refutar.
Sobre a ideia das mãos direita e esquerda Jung declara: “Clemente também
acha isso completamente compatível com a ideia da unidade de Deus... De
todo modo essa visão... prova que a realidade do mal não leva
necessariamente ao dualismo maniqueísta e não ameaça a unidade da
Imagem-de-Deus (CW 9ii § 99). “A ideia de Clemente é claramente
monoteísta, já que une os opostos em um Deus. / ... Depois o Cristianismo
é dualista, entretanto, visto que divide uma metade dos opostos
personificando-a em Satã. Se o Cristianismo se declara monoteísta se torna
inevitável assumir os opostos como sendo contidos em Deus (CW 11 p.
358). Mas para Jung até essa compreensão de Deus como complexio
oppositorum não é suficiente. Terá que haver um passo além, agora ou no
futuro: “Através de suas ulteriores encarnações Deus se torna uma tarefa
temerosa para o homem que agora precisa encontrar caminhos para unir os
opostos divinos em si mesmo” (CW 18 § 1661).
23

PAI

FILHO DIABO

Figura 1: Diagrama de Jung, CW 11§ 256

Mas, em contraste com Jung, me parece que o dualismo que


aparece como os opostos morais não é simplesmente superado pelo fato
que é o Único Deus que tem aquelas duas mãos ou aqueles dois filhos, Satã
e Cristo. Ou pelo menos é apenas uma unificação superficial, meramente
externa, uma muito abstrata. De fato, a dualidade permanece e que o Deus
Pai é o princípio superior final não significa muito para a alegada qualidade
“monoteísta” se, como sabemos, os fatos realmente determinantes no que
acontece e conta no mundo são, afinal, os dois irmãos em suas oposições
absolutas e não o pai em quem estão unidos. Mesmo se são um num
Terceiro, no entanto, eles mesmos permanecem absolutamente não
mediados, como é evidente no diagrama de Jung. O que aconteceu
simplesmente é que a oposição absoluta e, portanto, o dualismo foi
subsumido como um pacote sob um Terceiro, ou na ideia de Jung da
complexio oppositorum, foi internalizado dentro dele como seu container.
Portanto, o dualismo ele mesmo que foi subsumido ou internalizado
permanece intacto e do mesmo modo também a irreconciliabilidade dos
opostos. Os opostos permanecem absolutamente não relacionados,
oposicionais, dissociados um do outro. O dualismo pode ter sido absorvido
semanticamente ou imaginalmente dentro e contido em Deus (ou depois, na
individuação psicológica de Jung, tornando-se interiorizado no homem) e,
portanto, em algum todo unificador maior, mas a estrutura dualística ela
mesma permanece sem transformar-se. Até mesmo a interiorização aqui é
meramente um externo subsumir ou engolir. Essa estrutura dualista
duradoura, ou seja, a estrutura dualista ou oposicional do pensamento de
Jung aparece mais claramente em sua favorita citação “muito mais ciência
do conflito”, “a crucificação do ego, sua suspensão agonizante entre
opostos irreconciliáveis” (CW 9ii 79). Também o frequente diagrama em
quatérnio de Jung de duas linhas se cruzando, cada uma mantendo um par
24

dos opostos aparte, sublinha a externalidade na qual os opostos são


imaginados.
De um lado, o pensamento de Jung é um pensamento em
termos de espaço (o sentido de externalidade) e de outro em termos de
substanciação, de estáticos objetos como na Física (em contraste a qualquer
(al)química interação dos opostos). É um pensamento pictorial que vê os
opostos do ponto de vista de um observador vis-à-vis a si mesmo, como
coisas no espaço. Isso é o que explica a incontrovertida dualidade dos
opostos. Por causa dessa dualidade lógica que estrutura o pensamento de
Jung, a desejada solução “do indizível conflito” (CW 11 § 258) precisa ser
adiada temporariamente no futuro como uma esperança utópica ou tarefa e,
logicamente, dentro do inconsciente que é, esperançosamente, suposto a
produzir símbolos reconciliadores (sem, no entanto, se ter a mínima
evidência que esse é o caso. Tudo o que foi produzido como alegada
evidência são imagens de sonhos e visões pessoais ou pinturas de mandalas
como um resultado do assim chamado “pinturas do inconsciente”, mas
nunca um símbolo que merecesse esse nome pelo fato de funcionar como
um).
O arché, o princípio e a pressuposição estrutural do
pensamento de alguém, determina o que é e o que não é possível sob sua
regra, que no caso de Jung, pelo menos na questão da área moral e de Deus,
é a dissociação.
Uma estrutura de dualidade, uma abstrata, absolutamente não
mediada oposição e a justaposição horizontal de opostos substanciados
parece ter sido uma vontade irrenunciável de Jung. Ele se agarra ao seu
esquema dualista e, através dele, à primitiva forma de consciência que
parece ter feito sua primeira aparição no zoroastrismo, reaparecendo no
gnosticismo e maniqueísmo, uma consciência que apesar de não ser mais
mitológica, mas uma já conceitual, pensante como vimos, é, no entanto,
apenas uma forma primitiva dessa consciência porque representa apenas
sua primeira iminência e, por conta dessa nova aquisição, seu pensar
permanece apenas nos seus conteúdos semânticos, sem conseguir alcançar
a forma de pensamento. Ela opera com conceitos substanciados como se
esses fossem objetos no espaço e que, portanto, carecem do potencial para
uma mediação entre eles. Em outras palavras, ainda é, em si mesmo, uma
forma impensada de pensamento. A necessidade dos opostos em Jung e sua
25

obsessão com o bem e o mal, assim como sua briga contra as ideias do
summum bonum e da privatio boni, psicologicamente, podem ser
compreendidos como sua celebração e apaixonada defesa dessa primitiva
forma de consciência (forma primitiva de uma consciência que já reflete).
O que havia a ser defendido? É precisamente o caráter de
primeira iminência da antiga nova consciência pós-mitológica, ou essa
consciência em sua primeira iminência. E o que era para ser afastado? Sua
inerente necessidade e direção a seu desenvolvimento ulterior e auto
desabrochar, além de seu estágio de primeira iminência, através de uma
interiorização em si mesmo e uma dinamização da oposição estática dos
rígidos opostos dessa consciência de modo que viria a casa de si mesma e
se tornaria viva, se tornando pensamento vivo. O inimigo de Jung era
exatamente esse: a fluidez do pensamento vivo. Ele queria objetos
substanciais como conteúdo semânticos da consciência ou uma consciência
objetal furada para observar fatos, em outras palavras, ele insistia na forma
lógica do externo (que é uma forma “transicional” entre a interioridade
externalizada da imaginação mítica e a interioridade interiorizada em si
mesma do pensamento filosófico).
Mas esse movimento do dualismo abstrato à fluidez do pensamento
vivo é exatamente o que a teoria da privatio boni alcançou. Para podermos
ver isso nós precisamos colocar de lado a poderosa visão de bem e mal
apresentada por Jung e seu grande poder sugestivo, porque ela
inevitavelmente leva à ideia de que a concepção da privatio boni eliminou
algo essencial, irrazoável e irresponsavelmente ou foi eufemisticamente
menosprezado. Nós temos que afastar a visão de Jung para nos tornarmos
livres para nos aproximarmos da teoria da privatio boni com um olhar
fresco e sem preconceitos e tentar vê-la em seus próprios termos. Nós
focaremos em especial naquilo que ela psicologicamente alcançou.
(1) Bem e Mal no zoroastrismo-maniqueísmo, assim como na versão
de Jung, são absolutos outros um ao outro, absolutamente não relacionados,
como duas coisas no espaço.7 O conceito da privatio boni os remove de sua
separatividade e estabelece uma intrínseca relação, uma conexão entre os
opostos. Mal é a privação do Bem. Não é o totalmente outro como duas

7
Falo aqui sobre a lógica dos termos bem e mal. Uma questão bem diferente é o uso empírico-prático que
é feito desses termos pelas pessoas e, com respeito a essa última questão, Jung sempre insistiu na
relatividade do bem e mal. N.A.
26

entidades diferentes, duas mãos, dois irmãos. Um oposto pode ser expresso
em termos do outro. Isso me leva ao próximo ponto.
(2) Um oposto (mal) não foi, com certeza, subsumido sob o outro
(bom), como uma espécie sob seu gênero, mas foi de fato removido de sua
justaposição horizontal (abstrato vis-à-vis) e logicamente internalizado em
UM pensamento que contêm os opostos, antes rígidos e estáticos, numa
forma dinâmica, fluida. Isso é refletido na natureza “vertical” (referida
acima) do novo esquema. O dualismo do esquema de Jung agora é
verdadeiramente superado. Sua alegação de que com a visão de Clemente -
sobre as duas mãos ou os dois filhos de Deus - o monoteísmo foi resgatado
conta com uma noção muito externa de monoteísmo e a mediação mesma
dos opostos oferecida por essa visão também é uma fundamentalmente
externa, nomeadamente, uma mediação num Outro, adicionado a uma
terceira entidade ou ser (Deus Pai). A mediação entre duas mãos ou dois
filhos ou bem e mal não é interna a eles, a mediação deles próprios. A
privatio boni, por contraste, medeia entre os opostos no pensamento
mesmo, no pensar no bem e mal (em como eles são pensados). É a relação
mesma deles que os medeia entre si. Nenhum terceiro é necessário.
(3) Enquanto os opostos forem negações inteiramente abstratas de
cada um na oposição horizontal realmente seus nomes serão
intercambiáveis, o que é tudo que Jung quer dizer em outros contextos
quando fala da relatividade do bem e mal. A relatividade em seu
pensamento tem o caráter de intercambialidade e não de mediação. Porque
um é chamado de “bem” e outro “mal” e não o contrário, permanece uma
questão aberta. Essa indeterminação é ainda mais óbvia se nós usarmos as
ideias dos dois irmãos ou as duas mãos. Uma mão é intrinsecamente tão
boa como a outra. Que “direito” é bom e “esquerdo” ruim é arbitrário. Não
há nada dentro de si mesmo que definiria o polo mal dos opostos como
mal. Os julgamentos de valor são atribuídos através dos nossos sistemas
humanos de valores, externos a eles. Nós preferimos Luz à Escuridão: na
nossa cultura “certo” é privilegiado como “bom, correto” e associado com
Direito e Lei.
Mas a perspectiva do mal como uma privatio boni é capaz de definir
o ruim ou o mal em seus próprios termos, como intrinsecamente ruim ou
mal. Ela provê para nós um novo insight. Agora nós sabemos e podemos
dizer o que o mal é. O mal ou o ruim se tornou um conceito compreensível
27

e cessou de ser a mistificação ou uma hipóstase metafísica, meramente uma


palavra poderosa, um rótulo impensado ou a mistificação de uma pessoa
mítica-numinosa, Satã. O mal ou o ruim compreendido como uma privação
do bem é mal ou ruim porque difere de si mesmo (também poderíamos
dizer “peca” contra si, ao invés de simplesmente “mal” como no esquema
dualístico abstrato, sendo totalmente diferente do outro oposto) e isso é o
que o torna mal ou ruim. Se difere de seu próprio bem, sua própria
natureza, seu próprio Ser, sua própria determinação – não apenas do Bem
fora de si, como o outro polo da oposição. Ruim ou mal aqui tem sido
compreendido como uma específica auto relação: uma autocontradição
ontológica. Alguma coisa má ou ruim desvia de, ou até mesmo viola aquilo
que é para ser. Erra seu próprio conceito. É um ser deficiente ou falso (o
que mostra, mais uma vez, que a ideia da privatio boni de modo algum é
um perigo deliberado em negar o mal no mundo, como Jung alega: tudo
que faz é clarificar o que precisamente o mal é. “Ser” nesse sentido
ontológico é não = “existência empírica”. Heidegger falou da diferença
ontológica como a diferença entre o ôntico e o ontológico, entre uma
entidade e seu ser. O que Jung não entende é que a privatio boni é
perpendicular a sua “questão moral”.8 Jung a vê como uma redução ou
amputação de sua própria e ingênua perspectiva que trata o bem e o mal
como fatores ônticos, usando a distinção de Heidegger. Uma faca com uma
lâmina cega ou quebrada é uma faca ruim; um homem que assassina é mau
porque viola sua própria consciência, sua própria lei moral interna, o
conceito de Homem que ele mesmo é. Crimes contra a humanidade violam
a própria humanidade do perpetrador. Essa é a privação do bem.
Em todos os três pontos a perspectiva da privatio boni tem a decidida
vantagem de ter avançado de um puro relato externo do bem e mal para um
interiorizado. Eles não são quasi- “metafísicos” ou poderes numinosos,
como na visão de Jung devido a sua inclinação ao pensamento pictórico,
mas foram interiorizados (não ao nosso interno, mas) em si mesmos e,
portanto, na alma objetiva. Eles voltaram à vida lógica da alma como seu
pensamento vivo. Isso é o que deveria tornar a noção de privação do mal

8
O ponto de vista da questão moral, no sentido de Jung, equivale a um acting out na consciência (não no
comportamento) da oposição, olhando para os opostos mistificados-hipostasiados como duas múmias e
sentindo-se sem palavras (“o conflito indizível”), suspenso entre eles. Por contraste, o ponto de vista da
privatio boni “lembra”, pensa o que a outra perspectiva atua e projeta. O pensamento corta dentro e
através da negligência da oposição reificada. Se é uma redução, então, a única coisa que ela corta fora é a
mistificação e estupefação ao redor do bem e mal hipostasiados, não sobre a realidade do mal. N.A.
28

atraente à psicologia, pelo menos mais atraente do que a insistência de Jung


no “conflito indizível” e a inflada ideia de uma suspensão entre os opostos.
Contradição lógica, cuja primeira iminência foi a abstrata oposição Bem e
Mal, chegou à casa de si mesmo como a oposição da “absoluta identidade
consigo mesmo” (summum bonum) e a ontológica autocontradição.

5.

Ao chamar o Cristianismo de dualista Jung está correto na medida


em que o Cristianismo, de fato, entretém as ideias de Satã, do Anticristo e
da eterna danação, cuja existência antecede a do homem. Mas, em primeiro
lugar, essa narrativa muito primitiva, quase mitológica já tinha sido
superada pela teoria da privatio boni que, intrinsecamente, está de acordo
com o monoteísmo e, secundariamente, por que Jung selecionou essas
ideias e insiste sobre elas numa época (século XX) como relevante a esse
período quando elas já tinham há muito desaparecido do pensamento e
sentimento cristãos e tinham se tornado obsoletas na história da alma? Por
que ele necessita cavar e tirar o pó dessas noções? Por que ele amplia a
ambivalência de YHWH do Velho Testamento ao final da Era Cristã -
como se, de certa forma, esse Deus arcaico9 fosse o mesmo Deus do Novo
Testamento, assim como o mesmo Deus do Cristianismo, como este
posteriormente se desenvolveu no solo do pensamento grego? Por que Jung
não se utilizou dessas relíquias históricas com o propósito de um estudo
histórico-psicológico para as nossas ou as atuais preocupações da alma,
mas para aquilo que ele nomeou como “processo de individuação”?
Nenhuma dúvida que as ideias de Jung focadas nesse aspecto foram
elementos da fenomenologia inteira da religião cristã. Mas, o Cristianismo
é uma realidade muito complexa, assim como todas grandes religiões com
uma longa história. Quando confrontada com isso é essencial para uma
investigação psicológica - não simplesmente uma histórica e positivista -,
fazer uso de dois critérios para decidir o que será enfatizado. O primeiro
princípio pode ser expresso como um insight dentro da “simultaneidade do
não simultâneo” (Ernest Bloch). O segundo princípio circula ao redor do

9
Esse é um termo descritivo e não um julgamento. É especialmente Jung quem sublinha as características
arcaicas de YHWH. N.A.
29

compromisso a um estudo, em cada caso, sobre o que a alma é no Real em


contraste com um compromisso a um pressuposto conhecimento das
verdades arquetípicas.
Para o primeiro princípio Jung mesmo salientou:
Eu tendo a impressionar meus alunos à não tratar seus pacientes como se
esses estivessem todos cortados na mesma medida: a população consiste em
diferentes níveis históricos. Há pessoas que psicologicamente poderiam viver no
ano 5000 B.C., que ainda poderiam resolver seus conflitos com sucesso como as
pessoas o fizeram sete mil anos atrás. Há inúmeros bárbaros e pessoas
psicologicamente pertencentes ao Mundo Antigo vivendo na Europa e nos países
civilizados, assim como muitos cristãos medievais. Há, por contraste,
relativamente poucos que atingiram o nível de consciência possível hoje. Nós
também precisamos reconhecer o fato de que uns poucos da nossa geração
pertencem ao terceiro ou quarto milênio A.D. e são, consequentemente,
extemporâneos. Assim, é psicologicamente quase “legítimo” quando um homem
medieval resolve seus conflitos atuais no nível do século XIII e trata sua sombra
como o demônio encarnado. Para tal homem outro procedimento seria não natural
e inadequado, mas o homem que, por temperamento, i.e., psicologicamente
pertence ao século XX, certas considerações vêm à tona que não poderiam de
modo algum entrar na cabeça de um representante medieval da espécie (CW 11 §
463, trad. modif.).

Jung aqui se referia às pessoas vivendo hoje. Mas também podemos


aplicar o que ele disse ao corpo histórico das ideias e textos básicos
cristãos. Os livros do Novo testamento, para apenas mencioná-los, contém
ideias que correspondem às bem diferentes molduras psicológicas da
consciência em diferentes “camadas históricas”. Umas são mais avançadas,
outras podem ser até regressivas. Algumas são imediatamente acessíveis a
um modo ainda mitológico de imaginar, outras são as primeiras intuições
de ideias muito sutis, requerendo uma consciência desenvolvida que ainda
precisa ser elaborada no curso do tempo. Dessa consideração podemos tirar
nosso primeiro critério: como psicólogos deveríamos nos orientar em
direção às mais avançadas ideias do começo do Cristianismo, quando este
estava no seu auge e no seu melhor e não ficar parado naquelas ideias que
de fato ocorreram, mas que foram superadas por suas outras mais
avançadas. E, por outro lado, e.g., se durante o século XX houvesse, como
Jung insiste, um popular “anseio à exaltação à Mãe de Deus” (CW 11 §
748) e se o dogma da Assumptio Mariae foi declarado em resposta a isso,
precisamos, claro, considerar que isso é possivelmente o caso de um
desenvolvimento anacrônico, ao inverso do sentido citado acima - “devoto
30

como um cristão do século XIII” - e não tomar isso como uma evidência do
que quer a alma. “Há”, Jung mesmo o disse, “relativamente poucos que
atingiram o nível de consciência possível hoje”. E, de fato, não é a Igreja
Apostólica Romana como um todo um monumento histórico medieval
junto ao mundo moderno? Nem todo novo, num sentido temporal abstrato,
está à altura do lugar onde hoje está a alma. Pelo menos o psicólogo
poderia mirar as coisas do nível de consciência que é “possível hoje.
Esse critério temos que aplicar especialmente à arcaica e primitiva
concepção que Jung dá ao Deus Cristão. Repetidamente Jung descreve a
história cristã da salvação como se segue (ou em termos similares):
“Nossos pecados consistem em desobediência. O Criador do Mundo é
incomodado terrivelmente em cada momento, isto é, incomodado a tal
ponto que ele só pode ser reconciliado pelo dilaceramento de seu filho.
Apenas imagine essa história sangrenta!”10 Tal descrição está abaixo de
criticismo. Como se atreve Jung dar tal interpretação infantil, primitiva à
crucificação de Cristo? Aqui Jung vai ao nível mais inferior possível de
uma consciência primitiva para imaginar o que a morte de Cristo se referia.
Isso é absolutamente inapropriado ao conteúdo religioso que Jung estava
lidando. O que a história realmente é, redutiva e concretamente, é
interpretada nos termos personalistas freudianos apropriados a um romance
familiar. Deus é trazido ao nível humano, demasiado humano, com meras
emoções subjetivas no contexto da realidade empírica-prática. Matéria de
jardim de infância. E um insulto a nossa inteligência. Jung deliberadamente
ignora que a ideia do Deus Cristão tem seu lugar num nível totalmente
diferente, um nível já refletido, teológico, inteligível, muito longe de
qualquer irascibilidade que (talvez) alguns deuses possam ter traído. Que
no Cristianismo Deus tenha se tornado Espírito e Amor (não confundir com
um ser que meramente mostra espírito e amor) e, portanto, muito além de
qualquer coisa parecida a um ser imaturo, irascível é naturalmente
conhecido por Jung, mas não foi levado em conta como a base de seu
conceito de Deus. Jung vai com consciência abaixo do nível de consciência
já alcançado. Ele obviamente está nas garras de alguma emoção pessoal
e/ou isso é resultado de alguma necessidade ideológica.

10
C.G. Jung, Über Gefühle und den Schatten. Winterthurer Fragestunden. Textbuch, Zürich and
Düsseldorf 1999, p. 26f. Minha tradução. N.A.
31

A infantilidade e a origem das emoções na infância de Jung, assim


como de seus conceitos, vêm à tona de modo claro nessa citação: “É
somente a psicologia que me ajudou a superar as impressões fatais de
minha juventude que tudo falso, até imoral, em nosso empírico mundo
precisava ser acreditado como eterna verdade na religião. Sobretudo o
assassinato de uma vítima humana para aplacar a ira sem sentido de Deus,
que tinha criado seres imperfeitos incapazes de cumprir suas expectativas,
envenenou toda minha religião” (CW 18 § 1643). “As fatais impressões da
minha juventude...” e “... envenenou toda minha religião”! Aqui ainda
podemos sentir a ressonância no Jung de 82 anos de idade do terrível
choque de desapontamento que ele, como criança inocente, deve ter
experimentado: a destruição do Deus da criança que o acreditava benigno,
um paternal velho barbudo sentado numa nuvem, um Deus que de repente
acabou sendo, na verdade – para a mente infantil –, um vingador
sanguinário, assassino de seu próprio filho. Foi um desapontamento e um
choque que, em seu caso, entretanto, não catapultou Jung a um nível mais
avançado e maduro de consciência como normalmente acontece, mas
simplesmente envenenou a velha consciência11 inocente e infantil que, no
entanto, foi teimosamente segurada: negação simples, ao invés de negação
determinada e superação. Não podemos evitar de ver na história de Jung, a
respeito da ira de Deus, a história de Jung irado contra esse Deus (como Ele
tinha sido imaginado idiossincraticamente pelo menino Jung); que Jung não
foi capaz de avançar além da construção literal, infantil, tola e personalista
da história de redenção e as veementes emoções de ressentimento a
acompanhando, pelo menos como homem maduro e que, ao invés, ele
parece tê-las mantido sem mudá-las, levando-as com ele ao seu túmulo, é
surpreendente.
Jung tomou isso tudo de modo pessoal como se isso fosse a respeito
dele como ego e não como alma e como se o Cristianismo não fosse uma
objetiva formação simbólica – uma verdade da alma – mas uma interação
privada entre pessoas na terra. Quando ele começa seu Resposta a Jó com o
lema: “Estou angustiado por vós...” (2 Samuel 1:26) e afirma, ao final de
seu prefácio, “Não posso, portanto, escrever de uma fria e objetiva maneira,
mas preciso permitir que minha subjetividade fale se quiser descrever o que
11
A respeito do efeito desse envenenamento não deixamos de pensar no adágio de Nietzsche (Além do
Bem e do Mal # 168): “O Cristianismo deu veneno para Eros beber – ele não morreu disso, nenhuma
dúvida, mas degenerou: num vício.” No caso de Jung: não a morte do Cristianismo (i.e., algo como
ateísmo), mas sua degeneração (uma visão corrompida do cristianismo)! N.A.
32

sinto quando leio certos livros da Bíblia ou quando me lembro das


impressões que recebi das doutrinas de nossa fé” (CW11 § 559), ele
indiretamente nos diz que não está tão engajado no Cristianismo como uma
religião, como um fenômeno psicológico, quer dizer, uma auto articulação
da alma objetiva do ponto de vista profissional da psicologia, mas que ele
elabora seu próprio complexo subjetivo. Por que Jung dignifica o que ele,
como pessoa privada, sente valioso para ser comunicado ao público (num
trabalho não autobiográfico e um trabalho não endereçado a seu fã clube),
de fato, não apenas comunicado, mas mostrado (atuado)? De que
importância e interesse são seus sentimentos subjetivos para nós quando
queremos aprender alguma coisa a respeito da psicologia do Cristianismo?
A justificação de Jung, claro, é que “Desde que devo lidar com
fatores numinosos, meus sentimentos são desafiados quase do mesmo
modo como meu intelecto” (ibid). Mas isso tudo está errado.12 Primeiro de
tudo, se de fato estivéssemos lidando com fatores numinosos, escrever um
livro argumentativo sobre eles seria uma resposta inapropriada. Mas,
segundo, e acima de tudo, o que ele lidará em seu livro não é nada
numinoso, mas o tipo de material simbólico que em outros casos ele
denominaria “fatos” psíquicos e discutiria daquela maneira “friamente
objetiva”. (Nós vemos que essa maneira friamente objetiva, por exemplo,
em seu ensaio “Transformação do Simbolismo da Missa”, a Missa que,
baseada em seu conteúdo particular, certamente poderia se dizer estar
lidando com “fatores numinosos”). Não há razão para que o material
bíblico, que é conhecido coletivamente há milênios e pessoalmente por
Jung desde cedo de sua infância, devesse ser experimentado como
particularmente numinoso. Jung esteve acostumado a eles toda sua vida.
Eles todos são gastos. A alegada “numinosidade” (numinosidade: ‘s klingt
so wunderlich!13), nesse caso um eufemismo enobrecedor para um
“complexo de tonalidade afetiva” de sua psique subjetiva datando de sua
infância, um complexo que não foi visto e superado. É a elevada
emocionalidade do complexo que é projetada na teoria de uma história
“arquetípica” do “inconsciente coletivo” (ou alma objetiva) como sua
qualidade objetiva de “numinosidade” quando, em realidade, vêm de seu
“inconsciente pessoal”. “Voce vê” Jung nos disse em outra ocasião,
“sempre que voce faz uma afirmativa emocional há a suspeita sincera que

12
Não me dirigirei ao problema da dissociação de sentimento e intelecto expressa nessa sentença. N.A.
13
Goethe, Faust II, Act 1, “Finstere Galerie”, line 6217.
33

voce está falando de seu próprio caso; em outras palavras, que há uma
projeção por causa de sua emocionalidade... Se voce está adaptado não
necessita de emoção alguma; uma emoção é apenas uma explosão que
denota que voce não está à altura de sua tarefa.”14
De qualquer modo, isso é o porquê Jung mostra uma predileção por
traços arcaicos ainda brilhando através de algum ponto da representação de
Deus no Velho Testamento, assim como uma predileção por tais visões
como aquela sua de que “O Cristianismo mais tardio, entretanto, é
dualístico, visto que divide uma metade dos opostos, personificado em Satã
e ele é eterno em seu estado de danação. Esta crucial questão πόθεν τό
κακόν (de onde o mal?) forma o ponto de partida para a teoria cristã da
Redenção” (CW 11 p. 358). Com essa ideia Jung aponta para algo que
certamente fez parte da história do Cristianismo para uma consciência
ainda inocente, ainda não compatível à altura do “possível nível à
consciência” baseada nos ensinamentos cristãos. Nosso primeiro critério
nos exige apercebermos o Cristianismo do nível mais elevado de
consciência possível de dentro dele mesmo.
Agora eu passo ao segundo critério. Vou exemplificá-lo por meio da
tese de Jung expressa inúmeras vezes que “o terrível problema do mal”
(MDR p.331) se tornou virulento em nossos dias. “Em nossa época atual o
problema se tornou simplesmente vivo novamente. E muito claramente
através do que historicamente aconteceu. Há apenas poucos séculos durante
os quais tais obscenidades terríveis aconteceram. É simplesmente horrível!
E é isso que expôs o problema do mal.” “É uma questão que ficou
dormente por dois mil anos, nomeadamente: e o lado escuro?”15 Eu penso
que essa perspectiva de Jung é peculiar. Verdade, atrocidades incríveis têm
sido cometidas e o mal transborda, crimes terríveis, abuso sexuais e
assassinatos de crianças, matanças, genocídios, tortura, assassinato em
massa, todo tipo de brutalidade e injustiça. Isso podemos concordar com
Jung. Mas tudo isso não levou e não leva à “questão do mal”. Não perturba
a alma. Não movimenta os sentimentos religiosos e a imaginação. Pelo
contrário, é algo bem pragmático e empírico, senão banal, uma questão de
corte judicial (as comuns, o julgamentos de Nuremberg, a Corte

14
C.G. Jung, Nietzsche’s Zaratustra, Notes of a Seminar Given in 1934-1939, ed. By James L. Jarret, vol
2, Princeton University Press, 1988, p.1497.
15
C.G. Jung, Über Gefühle und den Schatten. Winterthurer Fragestunden, Textbuch, Zürich und
Düsseldorf 1999, p. 60 and 62. Tradução do Autor.
34

Internacional de Crimes), para leis internacionais, direitos humanos, como


a Anistia Internacional, para historiadores e sociólogos, para o estudo
psicológico da psique e do desenvolvimento do ego desses criminosos, para
assistentes sociais e aqueles psicólogos que lidam com traumas, para
estudos sobre a paz e assim por diante. Não há no mundo moderno
nenhuma ideia virulenta e emoções sérias sobre o Anticristo ou Satã, o Mal
como uma realidade substancial. Ações e eventos maus são vistos como
ações humanas, acontecimentos demasiadamente humanos. Resultam de
má socialização e má adaptação, de complexos adquiridos através de uma
insuficiente relação mãe-filho ou experiencias traumáticas na infância
(todas que mostram, de certo modo, a privatio boni em ação16), por isso que
o sistema penal moderno opera muito menos com a ideia de punição do que
com a de ressocialização. Mesmo onde os genes ou hormônios de um
ofensor podem ser vistos como a causa do crime o homem moderno não
coloca a responsabilidade sobre Deus Criador, mas pensa em termos de
biologia. É claro que alguém uma hora ou outra pergunta como Deus
permite tais coisas acontecerem. Mas, se isso ocorre é mais uma ocorrência
curiosa dentro do nosso mundo moderno, se isso não for um retorno
retórico a uma fórmula ultrapassada. O tipo de embate altamente
emocional, metafísico visto na psicologia de Jung envolvendo a natureza de
Deus não pode ser detectado na alma coletiva. A alma na modernidade não
mais reconhece Deus como a causa do mundo e o que acontece no mundo.
Deus realmente está morto e é passado para a alma.
É impossível para a alma na modernidade acolher a ideia de Bom e
Mau como realidades em seus próprios direitos. A alma desceu à terra, das

16
A visão de Jung era de que a privatio boni leva à noção de que “o homem é o autor do mal” (CW 9ii §
84) - no sentido de adágio, citado e rejeitado várias vezes por Jung, “Omne bonum a Deo, omne malum ab
homine” (e.g., CW 9ii § 95). Aqui vemos que essa ideia não é comprovada. Na situação moderna nem o
homem nem Deus são vistos como os autores do mal. Ao invés, para isso, como já dito por Basil, o
Grande, o mal simplesmente surge de “uma mutilação da alma” (§ 85). Contrário à Jung que no mesmo
local diz “Se a alma foi criada originalmente boa, então, ela realmente foi corrompida e por algo que é
real” e contrário também a própria sugestão que o eterno afastar-se de Deus pelo demônio “primeiramente
prova que o demônio estava no mundo antes do homem e, portanto, o homem não pode ser o único autor
do mal e, secundariamente, que o demônio já possuía uma alma ‘mutilada’ à qual devemos imputar a real
causa responsável” (ibid), a noção da mutilação da alma não sustenta a ideia da realidade do mal no
sentido superestimado de Jung, mas apenas no sentido banal e empírico. Vemos claramente que Jung
confunde a questão dos empiricamente reais maus no mundo e as empíricas mutilações da alma com a
totalmente diferente questão metafísica ou teológica sobre qual a causa metafisica do Mal per se, deus, o
homem ou o demônio e, assim também, de onde vem a alma mutilada do demônio. Em última análise,
Jung não consegue ou não quer explicar empiricamente a “mutilação da alma” simplesmente em termos
de causas empíricas do mundo interno (o modo moderno de a mente fazer). Inevitavelmente, Jung sai do
nível empírico e retoma o nível metafísico transcendente (do demônio e) de Deus (que fez o demônio e,
portanto, o mal), a questão metafísica: “De onde o mal?”
35

nuvens, como seu lugar psicológico de existência anterior e agora real


irreversivelmente habita na terra sem brincar mais com as noções de
origens eminentes, com ideias mitológicas de outro mundo por trás das
cenas ou anteriores ao início do mundo.
(Em passagem eu deveria adicionar aqui que ao invés de ver na
privatio boni uma diminuição eufemista do mal, ela soma, em suas últimas
consequências, muito mais à diminuição do summum bonum como um
Deus existente porque tende dissolver todas as entidades metafísicas
existentes na fluidez do pensamento, nos conceitos da mente. Ultimamente,
essa fórmula é a superação da positividade da posição moral como tal e,
portanto - ao destilar essa oposição em oposição negativa absoluta -, nossa
introdução em uma consciência além do bem e do mal [no sentido usual
positivista de bem e mal]. Já é “o ponto de virada” “em que bem e mal
começam a se relativizar, a duvidarem de si17 e um grito se levanta para
uma moralidade “além do bem e do mal”, um desenvolvimento que Jung,
entretanto, achou fundamentalmente “fora de questão” [n]a Era Cristã e no
domínio do pensamento trinitário” [CW 11 § 28]. Por último, é o insight de
que o mundo “é apenas isso!”. A questão “De onde o mal?” é
psicologicamente obsoleta: sem sentido, baseada em pressuposições
insustentáveis de uma consciência mais primitiva do que a “possível” hoje
[e real]).
Assim, o segundo princípio requer que a psicologia esteja antenada
com e permaneça no que estiver realmente ocorrendo nas profundezas da
alma no tempo em questão. A atual fenomenologia da alma é o que conta
para o psicólogo. Nós não podemos apodicticamente18 declarar alguma
coisa como uma verdade arquetípica atemporal da alma feito um estandarte
sem transformação pela qual a realidade presente tem que ser julgada, i.e.,
pré-julgada. A respeito das verdades e preocupações da alma temos que ver
e olhar de modo fresco à profundeza daquilo que está acontecendo e não
olhar para trás ou para cima para pressupostos arquétipos ou outros valores
ou modelos como um apriorístico dado. Temos que ser ensinados pelo
curso real dos eventos o que a alma no Real (não a mera superfície da

17
Ao invés de “relativizarem” e “duvidarem de si” Eu preferiria, claro, alguma coisa como “se tornaram
logicamente negativos”.
18
Na Filosofia: cujas premissas e proposições não podem ser refutadas, questionadas nem negadas por
resultarem de um raciocínio lógico. Por Extensão: que não se pode refutar, discutir, colocar em causa;
evidente, manifesto, irrefutável. Capaz de convencer por apresentar fatos evidentes, provas. Etimologia:
do grego apodeiktikós. https://www.dicio.com.br/apoditico/ em 13/03/2021. N.T.
36

realidade empírica dela) de fato é. O que em nosso tempo, de fato, se


mostra em seu próprio querer? Essa é a questão. E, naturalmente, para
determinar o que de fato é um fenômeno objetivo realmente da alma, um
fenômeno das profundezas da alma e o que é apenas uma excitação
subjetiva ou mania coletiva ou a reação de um complexo no nível egóico,
uma diferenciação da função do sentimento é indispensável, uma afinidade
e sensibilidade à alma.
Se Jung afirma que “O mundo do Filho é o mundo da discórdia
moral sem o qual a consciência e a diferenciação humana dificilmente
poderiam ter progredido tão longe na diferenciação mental e espiritual”
(CW 11 §259), então Jung está absolutamente certo quanto a
indispensabilidade da discórdia moral durante e Idade Média para o
progresso no desenvolvimento da consciência. A ideia do μήöν (“algo não
existente”) “com aquela do pecado original formaram a fundação de uma
consciência moral que era uma novidade na história humana” (CW 14 § 86,
trad. modif.). Certo. Mas, dois problemas permanecem. Primeiro, na
história da alma a consciência avançou além do medieval “mundo do
Filho” para o “mundo do Espírito” do início da era moderna, a metafísica
da representação e subjetividade – talvez melhor representada ou
simbolizada pelo cálculo infinitesimal e a perspectiva central na pintura,
para os quais um pensar em termos de entidades como blocos de
construção e a crua justaposição/oposição dos opostos é muito mais
passado do que para o mais antigo pensamento sobre a privatio boni.19 E,
secundariamente, até a representação do mundo do Filho como um mundo
“de conflito ao extremo [i.e., o conflito entre Cristo e o ‘adversário’, o
diabo]” e da “absoluta oposição” entre eles (CW 11 § 258, trad. modif.) foi
uma interpretação fraca da religião cristã, para começar, com certeza
apropriada para uma mente mais primitiva, ainda informada pelas
estruturas míticas do pensamento , mas não adequadas ao nível da
consciência já alcançado no Cristianismo. Em suas profundezas o
Cristianismo já tinha superado qualquer dualismo e oposição ou conflito
desde o início. Na verdade, a superação (o ter sido superado) dos opostos -
salvação, redenção - não foi apenas sua mensagem20, mas, acima de tudo,

19
O mundo moderno (começando com o fechamento da metafísica no tempo de Hegel, economicamente
com a Revolução Industrial, politicamente após a Revolução Francesa, pós Napoleão) naturalmente já um
estágio além desse estágio do “mundo do Filho”. N.A.
20
E como mensagem não só uma promessa para o futuro, para uma vida após a morte ou para o fim do
mundo, mas também como algo que de fato já aconteceu. Com essa ideia a consciência ascendeu a uma
37

também sua lógica interna (o movimento lógico da kenôsis de Cristo; Deus


compreendido como Espírito e Amor ao invés de um Ser que tem espírito e
é amoroso.
Se para Jung a questão “De onde o mal?” mais uma vez se tornou o
problema psicologicamente urgente na nossa época e se ele sugere que “A
complexio oppositorum da imagem de Deus21, portanto, entra no homem
não como unidade, mas como conflito... É este processo que toma lugar no
nosso tempo, embora pouco compreendido pelos professores oficiais da
humanidade, embora seria sua tarefa reconhecer essas coisas” (MDR, p
334, trad. modif.), surge para nós a questão do que o estaria motivando. Me
parece que a única explicação que podemos obter com base nos insights
ganhos na investigação exposta acima é que Jung quis restaurar
regressivamente a forma lógica de conteúdos substanciados,
especificamente de uma consciência que tem um Deus. Ele tentou se
defender contra uma consciência moderna que, implacavelmente, desceu à
terra e ipso facto deixou a postura em olhar para cima para aquela em que o
mundo agora é “somente isso!”. Ele recusou-se a entregar-se sem reservas à
alma dos conteúdos da consciência de modo a mergulhar nela, na fluidez
do pensamento. Ele sentiu que precisava mistificar objetos e imagens “lá
fora” vis-à-vis a ele, portanto, segurando-se na posição de observador
(“experiencia sentida”; experiencia numinosa”). Mesmo esse vis-à-vis –
isso ele percebeu – na sua época não podia se tornar plausível como um
transcendente cósmico, como o foi nos períodos antigos do mito e da
metafísica, mas poderia ter uma chance somente se fosse psicologizado e
retirado do mundo real para dentro do nosso interior e da nossa experiencia
pessoal. Essa interioridade é a literalizada e em si mesma externalizada
(positivada) forma de interioridade: a interiorização no homem empírico ao

estrutura pensante complexa, uma para a qual algo já pode ser implícito e verdadeiramente real mesmo
quando não está explicitamente visível, de fato, quando parece até ser contraditado pelo que se vê no
mundo. É verdade dentro de um status avançado da consciência, verdade dentro da consciência que tem o
poder do pensamento, o poder, poderíamos dizer, de ser capaz de pensar através, ao invés de meramente
“ver através ou imaginar coisas”. N.A.
21
Com a ideia da complexio oppositorum frequentemente Jung se refere a Nicolas de Cusa e sua
coincidência oppositorum, mas geralmente retém do leitor o fato que Cusanus deixa explicitamente claro
(De docta ignorantia II, 2. H 65, 17-66, 6 e De ludo globi II, h n. 81) que essa coincidência não se aplica
precisamente ao Bem e Mal! Transitoriedade e brilho são deficiências contingentes que pertencem aos
seres individuais nesse mundo empírico. Eles não são ontologicamente opostos constitutivos unidos em
coincidência. Há uma passagem em Jung que indica que ele estava ciente dessa exclusão: “Nicolas de
Cusa chama Deus uma complexio oppositorum (naturalmente sob a condição apotropaica da privatio
boni)” (CW 18 § 1537), mas ele não atesta em termos claros que ele se apropriou da frase de Nicolas de
Cusa para este mesmo aspecto e apenas para esse, nomeadamente os opostos morais que, de acordo com
Cusanus são, por motivos de princípio, excluídos da coincidência.
38

invés de no próprio conceito, dentro do respectivo conteúdo, sua alma.


Jung desesperadamente precisava da mistificação do mal. Porque era a
chave ou pedra angular à mistificação como tal. A imagem final de Jung é
aquela do homem sem palavras e completamente desamparado, suspendido
entre os opostos Bem e Mal e, através dessa suspensão, se tornando
consciente dos opostos morais que Deus não pôde conscientizar-se por
conta própria: “Este é o sentido do serviço divino [Gottesdienst], do serviço
que o homem pode prestar a Deus, que a luz possa emergir da escuridão,
que o Criador possa se tornar consciente de Sua criação [nota bene:
somente no e através do homem] e o homem consciente de si mesmo”
(MDR p. 338). E dessa forma, ao ajudar Deus a se tornar consciente, o
Homem, assim a ideia diz, redime Deus que está desamparadamente
enredado em sua inconsciência – mas, podemos dizer, o Homem também
(contra factualmente) mais uma vez resgata a ideia substanciada de Deus
como Outro22 para ele mesmo e com isso, embora pelo preço de uma
regressão, a forma tão preciosa para Jung da EXTERNALIDADE,
OPOSIÇÃO ABSOLUTA (dualidade dissociada) e SUBSTANCIAÇÃO
como tal, que pertence ao nível primitivo (pós-mitológico, reflexivo) da
consciência.23 “Assim como o homem foi revelado por Deus, assim,
quando o círculo se fecha, Deus pode ser revelado pelo homem” (CW 11 §
267).
Que imagem inflada, pomposa!24 Que absolutamente “numinosa”
auto importância! Que mistificação da existência humana! Religião!
Religião quase recuperada. Não psicologia.
A forma de externalidade e substanciação aparece mais claramente
em como Jung concebe a ideia da complexio oppositorum tomada de
Nicholas de Cusa, tão preciosa para ele. Jung meramente imagina essa
complexio. Ele fica preso ao pensamento pictórico que tanto suspende os
opostos (no caso de Jung, contrário à Nicholas, os opostos bem e mal)
como Seus dois filhos sob “Deus” ou os deixa serem contidos Nele e em
Seus dois atributos (como Suas duas mãos), portanto, sempre retendo suas

22
Interessante que Jung usa o termo “Self” para aquilo que tem a forma da outridade para ele. O Self é
para ser experienciado e é a imagem de Deus ou a imagem da inteireza transcendente. N.A.
23
Como a forma primitiva da consciência (já refletindo) não pode entrar na forma lógica do pensamento e
entregar-se à fluidez do pensamento, mas se caracteriza pela substancialização e externalização,
projetando e hipostasiando.
24
Cf. também: “Eu estou guardando minha luz e meu tesouro... É muito precioso não apenas para mim,
mas acima de tudo à escuridão do Criador, que necessita do homem para iluminar Sua criação” (Cartas 2,
p. 597, para Serrano, 14 de setembro de 1960).
39

dissociadas dualidades. Ele nunca avança para o pensamento da


coincidentia; ele parece ser incapaz ou de não querer realmente pensar essa
coincidentia. Se o pensamento de que Bem e Mal são coincidentes (em
Deus) fosse realmente pensado – pelo menos no mais elevado pensamento
humano, Deus - eles teriam que ser, no entanto, indistinguíveis como o
começo e o fim o são num círculo25, a despeito de serem distintos, de fato
opostos. Nenhum conflito terrível. Cada ponto do círculo é ambos - e
simultaneamente - começo e fim. O pensamento pictórico pode, com
certeza, imaginar o uroborous, mas ele não consegue ir através do que a
imagem do uroborous implica e assim ao que demanda de nós. Se quod
natura relinquit imperfectum ars perficit, então, a imagem daquele-que-
come-a-própria-cauda (com a distinção de boca e cauda) demanda de nós,
adeptos da ars, completá-la e aperfeiçoá-la: suspender essa imagem
(naturalista) ao pensamento de um círculo ou, ainda melhor, do movimento
circulatório interno e autocontraditório (vida lógica pulsátil) dentro de um
único ponto estacionário.26
Outra função que o paradigma do indivíduo suspenso como Cristo
entre o Bem e o Mal tem para o esquema de Jung, em adição ao cimentar a
ideia da externalidade, é que ajuda a sustentar a extraordinária importância
que Jung atribui ao indivíduo como o “o contrapeso que inclina a escala?”
(CW 10 § 586), como um importante fator em quem o resgate do mundo
depende (ibid § 536). O “ser humano individual” tem que estar “no centro
como medida de todas as coisas” (ibid § 523). Enquanto essa
superestimação do indivíduo novamente apresentar-se como esperança para
o futuro, algo que desde o início da alma moderna já vem sendo

25
Mas Nicholas de Cusa corretamente rejeita a ideia de uma coincidentia do bem e mal. N.A.
26
A teoria de Jung é, claro, aquela em que o conflito absoluto dos opostos em (ou para) nós humanos é
indispensável para Deus (em quem os opostos estão unidos) para se tornar consciente. Mas, isso apenas
mostra uma vez mais a dualidade dissociada: homem – Deus. Jung toma Deus literal e substancialmente,
como um Outro real. Assim como ele não vê que a oposição moral no Zoroastrismo literal ou ao estilo do
Maniqueísmo foi há muito superada e suspendida na história da alma ele não se dá conta de que a
consciência (e, portanto, por exemplo, a imaginação humana e o pensamento sobre Deus)
psicologicamente é tudo que há. Não há um Deus como um referente externo que precisa se tornar
consciente. Para a psicologia é na “teologia” humana, assim como em mitos, contos de fada e sonhos que
a alma fala sobre si mesma (e não a respeito de Deus, por exemplo) e que os arquétipos se revelam em
sua dança natural como “formação, transformação, a eterna recreação da Mente” (cf. CW 9i § 400). A
imaginação humana e o pensamento sobre Deus É (parte da) auto exibição do status lógico alcançado pela
consciência, É parte da consciência se tornando consciente. O pensamento real sobre a coincidentia
opppositorum, mais de 500 anos atrás, já É aquele que se tornou consciente (na área do tema dos opostos)
por parte da consciência e que Jung ainda espera como um futuro desenvolvimento a ser alcançado. E o
esperar por algo que já é real se constitui regressão ao lugar anterior ao limiar que, na história da alma, já
foi atravessado. A utopia de Jung (i.e., o adiamento ao futuro) e seu desejo de que Deus se torne
consciente são estruturalmente um e a mesma externalização.
40

plenamente realizado historicamente e, em nossa época, está claramente no


fim – o apogeu da importância do indivíduo parece estar definitivamente
acabado – há um aspecto da ideia de Jung a respeito da suspensão do
indivíduo entre os opostos que aprecio totalmente e acho significante. Isso
tem a ver com o fato de que isso enxerga o problema ético (como prefiro ao
invés do problema moral) como alguém que não pode confiar nas claras e
já dadas respostas às questões sobre o que é certo ou errado em cada
situação concreta em um conflito de valores. As normas da sociedade, que
são sempre abstratas e julgamentos externos, não são sempre a última
medida. Poderá haver situações em que a decisão moralmente certa pode
ser aquela que viola a ideia coletiva prevalente sobre o que seria o
comportamento certo. Num processo doloroso e muito pessoal o indivíduo
tem que permitir amadurecer em si mesmo sua subjetiva e
fundamentalmente imprevisível resposta a essa questão e essa resposta será
adequadamente válida apenas para ele mesmo. Nenhuma reivindicação de
generalidade pode ser conectada a ela, de como outros teriam que decidir
nessa situação. Aqui Jung interioriza a “questão moral” (não apenas e nem
tanto no indivíduo, mas muito mais) na unicidade de cada situação concreta
que requeira uma decisão moral.
Mas que Jung coloque essa esperança no inconsciente como aquele
que produz “símbolos reconciliadores” a respeito dessa situações, me
parece ser menos convincente. Há uma diferença entre alguém esperar um
símbolo surgir do inconsciente por um lado e por outro alguém
vagarosamente se deixar chegar si mesmo à decisão, depois de
cuidadosamente considerar todos os aspectos e valores que vêm à tona com
a situação dada. Apenas a segunda opção é realmente verdadeiramente
ética porque aqui o indivíduo assume a responsabilidade pela sua decisão
(será verdadeira e exclusivamente dele, a despeito do fato de não ser uma
decisão racionalista, do ego, mas uma decisão do “homem total”), enquanto
ao esperar por um símbolo aparecer, em última análise, o indivíduo delega
a decisão para outra agência, o inconsciente, retendo uma inocência lógica.
E, acima de tudo, essa perspectiva sutil, interiorizada do problema ético, se
move além da ideia de um código moral fixo para a necessidade de ter
(como se fosse “criativamente”) de encontrar a própria resposta num
conflito interno – isso de alguma forma envolve a tese da “realidade do
Mal” ou requer a questão “De onde o Mal?” que, de acordo com Jung,
esteve dormente por dois mil anos e hoje em dia foi novamente aberta?
41

Psicologicamente tanto a primeira emergência histórica da questão


“De onde o mal?” como a paixão renovada do interesse de Jung nisso, na
verdade, insistência, parece pressupor uma consciência possuída pela
grandiosa demanda por um mundo perfeito e um Criador infinito, cuja
criação ipso facto também deveria ser infinita e absolutamente perfeita.
Essa questão reflete uma consciência relutante em superar seu
desapontamento por já ter descoberto que o mundo é essencialmente finito
afinal de contas. O golpe narcísico que vem com essa descoberta é
respondido com uma recusa em descer à terra e crescer, ou seja, a recusa
em integrar como seu próprio e constitutivo insight o conhecimento sobre a
fundamental finitude do mundo e da existência humana como suas
características necessárias, como simplesmente inerentes no conceito de um
“mundo criado”. Essa recusa resulta num profundo ressentimento, se não
raiva. A finitude do mundo é ressentidamente sentida como falta, erro. Em
outras palavras, a própria falta da consciência em não integrar sua própria
experiencia é projetada no mundo como sendo seu defeito congênito.
“De onde o mal?” corresponde à questão “de quem é a falta?” ou
“Whodunit?”27 e, portanto, a uma psicologia de culpa. É uma formação de
compromisso. Exibir uma fixação ou uma obsessão pelo “mal” é uma clara
reflexão que o desapontamento, a perda de (somente) o Bom Pai nos Céus,
aconteceu irreversivelmente, de fato, a essa consciência. Mas, por meio do
“de onde?”, ou seja, a questão sobre o originador ou perpetrador, ela, no
entanto, preserva para si mesma tanto a posição da imagem inocente da
criança sobre Deus (Deus como um ser substanciado, pessoa e um sujeito
ativo com características humanas), portanto, uma imago paterna e o
garantidor de um sentido mais elevado, mesmo se tiver que abandonar a
pura bondade do Pai.28 Ao mesmo tempo, precisamente através dessa
insistência na realidade metafísica do mal e dessa habitação no “mal”, a
experienciada imperfeição do mundo é, paradoxalmente, logicamente
armazenada (e, portanto, desarmada), parcialmente nesse metafísico Outro
como uma de Suas mãos ou dois Filhos29 e depois parcialmente na
27
Novela policial. N. T.
28
De um modo, pelo menos por implicação, o que tem sido discutido aqui provê uma contrapartida – o
processo na área da imago paterna – daquilo que demonstrei que aconteceu no pensar de Jung com
respeito ao tópico da Mãe em meu “Irrelevantifications. Or: On the death of Nature, the Construction of
‘the Archetype’ and the Birth of Man”, em: Wolfgang Giegerich, The Soul Always Thinks, Collected
English Papers, vol 4, New Orleans, LA (Spring Journal Books), 2010, pp. 387-442.
29
A insistência de Jung de que as duas mãos ou os dois filhos de Deus são completamente compatíveis
com o monoteísmo é significante nesse contexto: em seu esquema a desarmonia pertence a um nível
logicamente inferior. É subsumido sob a fundamental e superior ideia de Um Deus (logicamente, não no
42

individuação do homem, no inconsciente humano. Em última análise, Deus


e o inconsciente são aqueles responsáveis pela existência do mal e da
imperfeição da vida na terra. Nós somos liberados da necessidade de ter
que, no nível lógico, reconhecer nossa própria finitude e imperfeições
como responsabilidade nossa e integrar essa perda da grandiosidade na
definição de nós mesmos – e isso precisamente não no sentido de um
dictum, omne bonum a deo, omne malum ab homine, que poderia ser
apenas uma armazenagem do desapontamento em outro lugar oposto (no
self empírico ao invés do metafísico Outro), i.e., o reverso da psicologia da
culpa, dessa vez ao longo das linhas dos mecanismos de defesa da
“identificação com o agressor”30. Não, não é nossa falta pessoal, nossa
culpa, ou nossa sombra31: a imperfeição é simplesmente o objeto geral e o
caráter que permeia tudo, o mundo e a existência no mundo em geral.32

sentido de um julgamento de valor), na ideia de quem a consciência resgata para si sua irrenunciável idea
da harmonia última e integridade da ordem do mundo e, portanto, sua própria inocência (incolumidade,
inocuidade). O desapontamento não tem que realmente des-apontar (ent-täuschen: desiludir, desilusão) a
consciência.
30
Talvez a luta de Jung contra a ideia do omne bonum a deo, omne malum ab homine, no qual, concordo,
é inaceitável, tem a motivação particular adicionada por detrás de si mesma em libertar o homem de ter
que definir por mesmo (e o mundo como tal) como finito e querendo um metafísico outro para culpar.
Jung, é claro, nos queria integrando o que ele chamou nossa sombra, mas esse movimento permaneceu
meramente no nível psíquico e empírico. Logicamente, psicologicamente, entretanto, nós devíamos
continuar crianças grandiosas de Deus, ou de algum(a) deus(a). Sobre si, Jung: “Em Bollingen eu habito
minha mais verdadeira essência, sou profundamente eu mesmo. Aqui eu sou, como se fosse o filho
milenar da mãe’...” (MDR p225, trad. modif.). Tenho a impressão (até onde posso ver, de fora, do que se
tornou conhecido sobre ele) que psiquicamente, no nível pessoal empírico, Jung não estava de modo
algum inflado. Mas do ponto de visa do nível psicológico ou lógico ele cultivou a inflação. Jung,
poderíamos dizer com o título da comédia de Oliver Goldsmith, se curva, mas se curva apenas para
conquistar. O curvar-se ocorre apenas no nível psíquico, no nível do homem empírico (integração da
sombra), ou em Küsnacht, mas a conquista acontece no nível psicológico, na lógica da sua autodefinição
(o Self grandioso) ou em “Bollingen”. Para fazer justiça a ele é importante olhar ambos os aspectos, mas
ver também que qualquer crença de que ao integrar a sombra no nível pessoal-empírico-prático,
indispensável como é, que a grandiosidade psicológica teria sido superada é uma ilusão e auto decepção.
A alma não aceita o ouro de tolo como moeda. Ela não aceita nem o verdadeiro, empírico ouro, aurum
vulgi. Ela pede pagamento em aurum nostrum: ouro lógico (o conceito, a definição) e, é claro, apenas em
pagamento integral. Realmente não é possível escapar a enganando ou trapaceando.
31
A integração da sombra persegue uma estratégia de imunização e é, portanto, fundamentalmente oposta
ao omne malum ab homine. A última ideia equivale à implacável admissão da imperfeição ou da
pecaminosidade do homem total. “[H]omem é o autor do mal” (CW 9ii § 84), cada homem anzol, linha e
chumbada, cada um de mim no seu. Mas a ideia de sombra opera com a distinção (dissociação lógica)
entre mim e a sombra que eu tenho. A integração da sombra significa meramente que a consciência se
torna consciente do fato que eu tenho uma sombra e o que, precisamente, minha sombra é. Em nenhuma
circunstância significa que eu me identifico com a sombra (o que, para Jung, para quem a sombra é, em
última análise, um arquétipo, seria equivalente a uma inflação). Eu tenho ainda uma sombra, mas eu não
sou o autor de qualquer que seja o mal específico. O conceito de sombra permite que Jung subordine
nossos males concretos e imperfeições sob o conceito sobre nós mesmos como homem total do mesmo
modo como ele subordina o realismo retido de Bem e Mal sob o Deus monoteísta como seus dois filhos
ou duas mãos.
32
Eu tenho que terminar sem mitigação com a ideia de finitude e imperfeição porque aqui nós nos
estamos preocupados com questões na esfera da positividade (“a realidade do mal”, o Deus metafísico, o
homem empírico, o mundo real). Mas essa insistência na infinidade de nenhuma maneira impede a
43

legitimidade e importância da noção de infinitude na esfera da absoluta negatividade, a esfera de sentido


e profundidade da alma.

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