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Tradução Sonia Maria Marchi de Carvalho, 2021.
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medieval. Nós consideramos algo bom ou mau. É bom ou mau para nós.
“Mau”, portanto, significa (as vezes) simplesmente “perigoso”. Além disso
o significado específico de bem ou mal, ou seja, a questão de quando nós
chamamos alguma coisa boa ou má, não é fixa. Ela depende inteiramente
do nosso ponto de vista. Esta ideia se torna especialmente evidente se nós
pensamos no outro par de opostos aludido por Jung como formalmente
equivalente ao par moral, nomeadamente esquerda e direita. Se eu virar no
lugar onde estou o que estava a minha esquerda agora está a minha direita.
Nada mudou “lá fora”. As coisas referidas como estando à direita ou à
esquerda são as mesmas e estão objetivamente no mesmo lugar. Apenas
meu ponto de vista mudou. Da mesma maneira, o que é “bom” da
perspectiva de uma pessoa pode ser “mau” para outra. Se você vende sua
casa e acontece dos preços subirem na mesma transação e na mesma época
é bom para o vendedor, mas ruim para o comprador.
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Ao rejeitar a tese de Basil de que “o mal não tem substância em si mesmo”, Jung opta por uma tese oposta,
em que o mal tem uma substância em si mesmo. Na citação de Basil a palavra grega para “substância” é
hipóstase. N.A.
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C. G. Jung, Über Gefühle und den Schatten. Winterthurer Fregenstunden. Textbuch, Zürich and Düsseldorf
1999, p. 60. Minha tradução. N.A.
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C.G. Jung, Über Gefühle und den Schatten, op. Cit. P. 60, minha tradução. N.A.
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condições, reais incidentes que apenas podem ser julgados como maus pela
mente humana, coisas positivamente existentes ou eventos ocorrendo na
realidade empírica. Devido a esses julgamentos essas ações ou condições
podem, então, serem chamadas “más”. Mas a realidade desses “maus”
concretos, no plural, é tópico totalmente diferente a partir da questão de
uma possível realidade do mal per se. Com sua referência ao que o padre
confessor escuta, Jung está pensando nas más ações reais das pessoas no
mundo. Em outras palavras, subitamente nos encontramos numa terceira e
distinta esfera. Com essas afirmações Jung se afastou da (a) arena da mente
humana, das categorias que a última precisa para sua cognição e
julgamento; ele também deixou (b) o plano filosófico das assertivas nas
quais ele esperava garantir ao mal per se uma dignidade ontológica e,
portanto, estabelecê-lo como uma realidade subsistente em seu próprio
direito; ao invés, ele agora (c), de repente, se move dentro da –
psicologicamente – esfera banal dos eventos a serem observados na
realidade empírica, cotidiana e vida prática. De modo algum alguém
precisa da psicologia (no sentido mais nobre da palavra para Jung) para se
dar conta do papel colossal que o mal tem no mundo nesse sentido ou da
ubiquidade dos “pecados”. É muito estranho ver Jung usar tal banal
observação para tentar sustentar sua outra tese, totalmente metafísica, sobre
a realidade do mal como tal, no sentido de ter “uma subsistência própria”.
O segundo problema ao apontar sobre os óbvios males do mundo
feito por Jung é que ele pensa que os defensores da teoria sobre o mal como
uma privatio boni são ignorantes sobre o sentido do mal (c) e dessa
maneira ele acredita que a teoria deles poderia ser refutada. Mas aqueles
pensadores que sustentaram a definição de privatio boni do mal nunca
duvidaram que há más ações e eventos no mundo. Que “A natureza
humana é capaz de infinita ruindade e más ações, que são tão reais como as
boas”, nunca foi questionada, muito menos negada. O ocidente cristão, cuja
maior tradição foi sustentar a ideia da privatio boni estava inteiramente
convencido da fundamental natureza pecadora do homem. A Bíblia já diz:
“Eles são corruptos, fizeram coisas abomináveis, não há nada feito de bom”
(Salmo 14:1), o que foi sustentado pelos maiores teólogos através das
épocas. Até o mesmo Basil, cuja refutação da substancialidade do mal Jung
rejeitou, é citado pelo próprio Jung ao dizer: “Que o mal existe ninguém
vivo no mundo negará” (§ 83). Na filosofia do final da segunda metade do
século XVIII Kant falou do “radical mal na natureza humana e de uma
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C.G. Jung, Über Gefühle und den Schatten, op. Cit. P. 60, minha tradução. N.A.
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desaparece de todo quando perdeu seu último bem...” Essa teoria “é uma
desesperada tentativa de salvar a fé cristã do dualismo” (CW 18 § 1593).
Há outro lugar que Jung nos informa sobre a origem de seu interesse
nessa teoria:
Eu nunca teria sonhado que encontraria contra tal problema como esse da
privatio boni no meu trabalho prático, aparentemente fora do caminho. O destino
queria, entretanto, que eu fosse chamado a tratar um paciente, um homem
erudito, academicamente educado que se envolveu de todas as maneiras
duvidosas e moralmente repreensíveis práticas. Ele se mostrou ser um ardente
aderente da privatio boni, porque se encaixava admiravelmente em seus
esquemas: o mal em si mesmo não é nada... Foi esse caso que originalmente me
induziu a enfrentar a privatio boni em seu aspecto psicológico” (CW 11 § 457).
Aqui Jung nos informa sobre o começo de seu estudo sobre o tópico
privatio boni e, ao mesmo tempo, revela o horizonte dentro do qual ele o
abordou. Este ponto inicial é, portanto, um abuso dessa teoria por parte de
seu paciente para seus próprios propósitos egóicos e neuróticos, propósito
em “enganar a si mesmo”, para uma “auto decepção”, para “esconder um
ato imoral ao otimistamente olhá-lo como uma leve diminuição do bem,
único que é real, ou uma ‘acidental falta de perfeição’” (CW 11 § 457). A
questão para nós é: por que Jung apenas não criticou o abuso, mas, ao
contrário, jogou a culpa dessa tola defesa na porta da doutrina da privatio
boni, como se, de fato, o abuso fosse inerente nela? Essa última está
realmente preocupada com a questão do “mal na natureza humana”, de fato
com o ‘lavar’ as “pessoas que são total e inteiramente más”? Tem, de fato,
uma função apotropaica, é realmente uma defesa desesperada e uma
amenização eufemista? Essas insinuações ou suposições são todas
absurdas. A mera sugestão de que a argumentação de seu paciente e o
conceito teológico-filosófico da privatio boni estavam relacionados é
errôneo.
más ações não foi de modo algum negada pelos aderentes dessa doutrina,
nem foram seus propósitos diminuir eufemisticamente o mau
comportamento, muito menos tinham uma visão otimista sobre a natureza
humana. Tinham um foco totalmente diferente. Não era uma teoria sobre
questões morais (a avaliação moral e a justificação de ações humanas ou
traços de caráter [aspectos sombrios]). Mas Jung parece ter caído nesse
abuso de seu paciente e ficou preso na visão deste, de que a privatio boni é
uma tentativa de apresentar o mal como não existente no mundo real, o
mundo do comportamento prático. O fato de Jung considerar ser necessário
pontuar a trivialidade que “um homem que é total e inteiramente mau não
desaparece quando ele perde totalmente seu último bom” mostra
claramente que seu horizonte, nessa questão, é ultimamente o de um
pensamento concretista em termos de uma realidade literal, empírica e de
uma psicologia personalista, a psicologia da pessoa – e, portanto, não de
uma psicologia verdadeira, informada pela diferença psicológica. A
respeito da teoria da privatio boni Jung obviamente erra o alvo. Ele falha
em ver do que esse conceito realmente se trata (e, portanto, também o que
psicologicamente é).
Pela mesma razão, se, como Jung diz, para a priori imunizar suas
perspectivas contra possíveis objeções “meu criticismo é valido somente no
plano empírico. No plano metafísico, por outro lado, o bem pode ter uma
substância e o mal µňό𝜈. Não conheço nenhuma experiencia factual que se
aproxime de tal assertiva, assim, até esse ponto o empirista permanece
silencioso” (CW 11 § 459), no entanto, então por que ele ataca a doutrina
da privatio boni de modo tão enfático e tão continuamente, a doutrina que,
afinal, tem seu lugar somente naquilo que Jung chama de plano metafísico?
Por que ele não permanece em silencio? Por que, como ele admite, “se
aventura no território de outro [plano]”, a despeito do fato de admitir que
“aqui o teólogo tem uma certa razão em temer uma intrusão por parte do
empirista” (CW 11 § 456)? A resposta a essa questão é um pouco
complicada já que necessita de uma série de diferenciações.
existem por nossa causa, mas são realidades ao redor da qual a vida
humana gira. O invadir de Jung é, em última análise, mais do que o externo
trespassar de um campo para dentro de outro, como pode aparecer para
uma visão mais superficial. É realmente uma contravenção intrapsíquica,
psicológica, ao ignorar a discrepância e incompatibilidade que existe entre
a semântica e a sintaxe de sua consciência: que Jung se sente justificado em
aproximar conteúdos semânticos (aqui, as ideias privatio boni e summum
bonun), que já são reais e verdadeiramente conteúdos psicológicos porque
são o resultado da suspensão de ambas as esferas da realidade empírica e da
esfera da teologia literal, com uma consciência que em sua constituição
lógica ou sintaxe não foi suspensa, mas fica no nível da antiga lógica e é
informada pela lógica da realidade empírica. Por outro lado isso significa
que ele inflaciona o banal, a humana demasiada humana questão do bem e
do mal na vida moderna (ou psicologia do ego) com excessiva importância
mitológica, arquetípica.
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Jung estava consciente do background grego pré-cristão da privatio boni: “Apesar da privatio boni não
ser invenção dos Pais da Igreja, o silogismo foi mais do que bem-vindo para eles...” (CW 18 § 1639).
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Para nós isso significa que agora temos que, primeiro, olhar
para a estrutura da consciência que se expressa na visão dualista e
maniqueísta sobre o bem e o mal, segundo, determinar a posição de Jung
em comparação a isso e, terceiro, investigar qual é a função e o mérito do
tipo de pensamento da privatio boni, ou seja, porque pode ser considerada a
expressão de uma forma mais avançada de consciência.
No Maniqueísmo, Bem e Mal ou Luz e Escuridão são princípios
totalmente independentes, não havendo nenhuma possibilidade de vê-los
derivando de um terceiro como origem comum. Em outras palavras, eles
são o pensamento (ou invés, a ideia semântica) da oposição abstrata,
absolutamente irreconciliável como tal. Historicamente essa ideia do
absolutamente não mediado vis-à-vis dos opostos volta para um inicial
dualismo do zoroastrismo que também era a absoluta oposição de duas
forças irredutíveis (imaginada como uma batalha cósmica), personificadas
como o Bom Espírito (Senta Mainyu) e o Mal Espírito (Angra Mainyu),
Ahura Mazda (ou Ormazd) e Ahriman, Verdade e Mentira, Luz e
Escuridão. Nós vemos que no Maniqueísmo, assim como no Zoroastrismo,
temos um pensamento decididamente horizontal. Zaratustra, o fundador do
Zoroastrismo, desenvolveu essa religião ou filosofia em contraste com o
politeísmo persa de seu tempo. Isso é essencial para nós compreendermos o
que isso significa. No nível do politeísmo ou mundo mitológico da
experiencia do mundo não há dualismo. Há inúmeros deuses, demônios ou
espíritos e cada um possui naturezas ambivalentes, mesmo se alguns forem
predominantemente benevolentes e produtivos, enquanto outros podem ser
predominantemente perigosos e destrutivos. Quer dizer, no nível do mito, o
pensamento não se elevou para o conceito abstrato de oposição. Uma
pureza de princípios e conceitos abstratos ainda não existe. O que
aconteceu com Zaratustra é algo extraordinário. A consciência se eleva ao
nível da abstrata oposição de Bem e Mal como princípios.
Agora não devemos pensar que Zaratustra apareceu com as noções
de Bem e Mal porque ele era uma pessoa particularmente moral e
primariamente preocupada com moralidade. É ao contrário. Em Zaratustra
nós testemunhamos dentro de uma consciência mitológica, imaginal, a
primeira emergência da ideia, da possibilidade daquilo que está
fundamentalmente além da mente imaginal. Nós testemunhamos a primeira
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PAI
FILHO DIABO
obsessão com o bem e o mal, assim como sua briga contra as ideias do
summum bonum e da privatio boni, psicologicamente, podem ser
compreendidos como sua celebração e apaixonada defesa dessa primitiva
forma de consciência (forma primitiva de uma consciência que já reflete).
O que havia a ser defendido? É precisamente o caráter de
primeira iminência da antiga nova consciência pós-mitológica, ou essa
consciência em sua primeira iminência. E o que era para ser afastado? Sua
inerente necessidade e direção a seu desenvolvimento ulterior e auto
desabrochar, além de seu estágio de primeira iminência, através de uma
interiorização em si mesmo e uma dinamização da oposição estática dos
rígidos opostos dessa consciência de modo que viria a casa de si mesma e
se tornaria viva, se tornando pensamento vivo. O inimigo de Jung era
exatamente esse: a fluidez do pensamento vivo. Ele queria objetos
substanciais como conteúdo semânticos da consciência ou uma consciência
objetal furada para observar fatos, em outras palavras, ele insistia na forma
lógica do externo (que é uma forma “transicional” entre a interioridade
externalizada da imaginação mítica e a interioridade interiorizada em si
mesma do pensamento filosófico).
Mas esse movimento do dualismo abstrato à fluidez do pensamento
vivo é exatamente o que a teoria da privatio boni alcançou. Para podermos
ver isso nós precisamos colocar de lado a poderosa visão de bem e mal
apresentada por Jung e seu grande poder sugestivo, porque ela
inevitavelmente leva à ideia de que a concepção da privatio boni eliminou
algo essencial, irrazoável e irresponsavelmente ou foi eufemisticamente
menosprezado. Nós temos que afastar a visão de Jung para nos tornarmos
livres para nos aproximarmos da teoria da privatio boni com um olhar
fresco e sem preconceitos e tentar vê-la em seus próprios termos. Nós
focaremos em especial naquilo que ela psicologicamente alcançou.
(1) Bem e Mal no zoroastrismo-maniqueísmo, assim como na versão
de Jung, são absolutos outros um ao outro, absolutamente não relacionados,
como duas coisas no espaço.7 O conceito da privatio boni os remove de sua
separatividade e estabelece uma intrínseca relação, uma conexão entre os
opostos. Mal é a privação do Bem. Não é o totalmente outro como duas
7
Falo aqui sobre a lógica dos termos bem e mal. Uma questão bem diferente é o uso empírico-prático que
é feito desses termos pelas pessoas e, com respeito a essa última questão, Jung sempre insistiu na
relatividade do bem e mal. N.A.
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entidades diferentes, duas mãos, dois irmãos. Um oposto pode ser expresso
em termos do outro. Isso me leva ao próximo ponto.
(2) Um oposto (mal) não foi, com certeza, subsumido sob o outro
(bom), como uma espécie sob seu gênero, mas foi de fato removido de sua
justaposição horizontal (abstrato vis-à-vis) e logicamente internalizado em
UM pensamento que contêm os opostos, antes rígidos e estáticos, numa
forma dinâmica, fluida. Isso é refletido na natureza “vertical” (referida
acima) do novo esquema. O dualismo do esquema de Jung agora é
verdadeiramente superado. Sua alegação de que com a visão de Clemente -
sobre as duas mãos ou os dois filhos de Deus - o monoteísmo foi resgatado
conta com uma noção muito externa de monoteísmo e a mediação mesma
dos opostos oferecida por essa visão também é uma fundamentalmente
externa, nomeadamente, uma mediação num Outro, adicionado a uma
terceira entidade ou ser (Deus Pai). A mediação entre duas mãos ou dois
filhos ou bem e mal não é interna a eles, a mediação deles próprios. A
privatio boni, por contraste, medeia entre os opostos no pensamento
mesmo, no pensar no bem e mal (em como eles são pensados). É a relação
mesma deles que os medeia entre si. Nenhum terceiro é necessário.
(3) Enquanto os opostos forem negações inteiramente abstratas de
cada um na oposição horizontal realmente seus nomes serão
intercambiáveis, o que é tudo que Jung quer dizer em outros contextos
quando fala da relatividade do bem e mal. A relatividade em seu
pensamento tem o caráter de intercambialidade e não de mediação. Porque
um é chamado de “bem” e outro “mal” e não o contrário, permanece uma
questão aberta. Essa indeterminação é ainda mais óbvia se nós usarmos as
ideias dos dois irmãos ou as duas mãos. Uma mão é intrinsecamente tão
boa como a outra. Que “direito” é bom e “esquerdo” ruim é arbitrário. Não
há nada dentro de si mesmo que definiria o polo mal dos opostos como
mal. Os julgamentos de valor são atribuídos através dos nossos sistemas
humanos de valores, externos a eles. Nós preferimos Luz à Escuridão: na
nossa cultura “certo” é privilegiado como “bom, correto” e associado com
Direito e Lei.
Mas a perspectiva do mal como uma privatio boni é capaz de definir
o ruim ou o mal em seus próprios termos, como intrinsecamente ruim ou
mal. Ela provê para nós um novo insight. Agora nós sabemos e podemos
dizer o que o mal é. O mal ou o ruim se tornou um conceito compreensível
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O ponto de vista da questão moral, no sentido de Jung, equivale a um acting out na consciência (não no
comportamento) da oposição, olhando para os opostos mistificados-hipostasiados como duas múmias e
sentindo-se sem palavras (“o conflito indizível”), suspenso entre eles. Por contraste, o ponto de vista da
privatio boni “lembra”, pensa o que a outra perspectiva atua e projeta. O pensamento corta dentro e
através da negligência da oposição reificada. Se é uma redução, então, a única coisa que ela corta fora é a
mistificação e estupefação ao redor do bem e mal hipostasiados, não sobre a realidade do mal. N.A.
28
5.
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Esse é um termo descritivo e não um julgamento. É especialmente Jung quem sublinha as características
arcaicas de YHWH. N.A.
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como um cristão do século XIII” - e não tomar isso como uma evidência do
que quer a alma. “Há”, Jung mesmo o disse, “relativamente poucos que
atingiram o nível de consciência possível hoje”. E, de fato, não é a Igreja
Apostólica Romana como um todo um monumento histórico medieval
junto ao mundo moderno? Nem todo novo, num sentido temporal abstrato,
está à altura do lugar onde hoje está a alma. Pelo menos o psicólogo
poderia mirar as coisas do nível de consciência que é “possível hoje.
Esse critério temos que aplicar especialmente à arcaica e primitiva
concepção que Jung dá ao Deus Cristão. Repetidamente Jung descreve a
história cristã da salvação como se segue (ou em termos similares):
“Nossos pecados consistem em desobediência. O Criador do Mundo é
incomodado terrivelmente em cada momento, isto é, incomodado a tal
ponto que ele só pode ser reconciliado pelo dilaceramento de seu filho.
Apenas imagine essa história sangrenta!”10 Tal descrição está abaixo de
criticismo. Como se atreve Jung dar tal interpretação infantil, primitiva à
crucificação de Cristo? Aqui Jung vai ao nível mais inferior possível de
uma consciência primitiva para imaginar o que a morte de Cristo se referia.
Isso é absolutamente inapropriado ao conteúdo religioso que Jung estava
lidando. O que a história realmente é, redutiva e concretamente, é
interpretada nos termos personalistas freudianos apropriados a um romance
familiar. Deus é trazido ao nível humano, demasiado humano, com meras
emoções subjetivas no contexto da realidade empírica-prática. Matéria de
jardim de infância. E um insulto a nossa inteligência. Jung deliberadamente
ignora que a ideia do Deus Cristão tem seu lugar num nível totalmente
diferente, um nível já refletido, teológico, inteligível, muito longe de
qualquer irascibilidade que (talvez) alguns deuses possam ter traído. Que
no Cristianismo Deus tenha se tornado Espírito e Amor (não confundir com
um ser que meramente mostra espírito e amor) e, portanto, muito além de
qualquer coisa parecida a um ser imaturo, irascível é naturalmente
conhecido por Jung, mas não foi levado em conta como a base de seu
conceito de Deus. Jung vai com consciência abaixo do nível de consciência
já alcançado. Ele obviamente está nas garras de alguma emoção pessoal
e/ou isso é resultado de alguma necessidade ideológica.
10
C.G. Jung, Über Gefühle und den Schatten. Winterthurer Fragestunden. Textbuch, Zürich and
Düsseldorf 1999, p. 26f. Minha tradução. N.A.
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Não me dirigirei ao problema da dissociação de sentimento e intelecto expressa nessa sentença. N.A.
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Goethe, Faust II, Act 1, “Finstere Galerie”, line 6217.
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voce está falando de seu próprio caso; em outras palavras, que há uma
projeção por causa de sua emocionalidade... Se voce está adaptado não
necessita de emoção alguma; uma emoção é apenas uma explosão que
denota que voce não está à altura de sua tarefa.”14
De qualquer modo, isso é o porquê Jung mostra uma predileção por
traços arcaicos ainda brilhando através de algum ponto da representação de
Deus no Velho Testamento, assim como uma predileção por tais visões
como aquela sua de que “O Cristianismo mais tardio, entretanto, é
dualístico, visto que divide uma metade dos opostos, personificado em Satã
e ele é eterno em seu estado de danação. Esta crucial questão πόθεν τό
κακόν (de onde o mal?) forma o ponto de partida para a teoria cristã da
Redenção” (CW 11 p. 358). Com essa ideia Jung aponta para algo que
certamente fez parte da história do Cristianismo para uma consciência
ainda inocente, ainda não compatível à altura do “possível nível à
consciência” baseada nos ensinamentos cristãos. Nosso primeiro critério
nos exige apercebermos o Cristianismo do nível mais elevado de
consciência possível de dentro dele mesmo.
Agora eu passo ao segundo critério. Vou exemplificá-lo por meio da
tese de Jung expressa inúmeras vezes que “o terrível problema do mal”
(MDR p.331) se tornou virulento em nossos dias. “Em nossa época atual o
problema se tornou simplesmente vivo novamente. E muito claramente
através do que historicamente aconteceu. Há apenas poucos séculos durante
os quais tais obscenidades terríveis aconteceram. É simplesmente horrível!
E é isso que expôs o problema do mal.” “É uma questão que ficou
dormente por dois mil anos, nomeadamente: e o lado escuro?”15 Eu penso
que essa perspectiva de Jung é peculiar. Verdade, atrocidades incríveis têm
sido cometidas e o mal transborda, crimes terríveis, abuso sexuais e
assassinatos de crianças, matanças, genocídios, tortura, assassinato em
massa, todo tipo de brutalidade e injustiça. Isso podemos concordar com
Jung. Mas tudo isso não levou e não leva à “questão do mal”. Não perturba
a alma. Não movimenta os sentimentos religiosos e a imaginação. Pelo
contrário, é algo bem pragmático e empírico, senão banal, uma questão de
corte judicial (as comuns, o julgamentos de Nuremberg, a Corte
14
C.G. Jung, Nietzsche’s Zaratustra, Notes of a Seminar Given in 1934-1939, ed. By James L. Jarret, vol
2, Princeton University Press, 1988, p.1497.
15
C.G. Jung, Über Gefühle und den Schatten. Winterthurer Fragestunden, Textbuch, Zürich und
Düsseldorf 1999, p. 60 and 62. Tradução do Autor.
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16
A visão de Jung era de que a privatio boni leva à noção de que “o homem é o autor do mal” (CW 9ii §
84) - no sentido de adágio, citado e rejeitado várias vezes por Jung, “Omne bonum a Deo, omne malum ab
homine” (e.g., CW 9ii § 95). Aqui vemos que essa ideia não é comprovada. Na situação moderna nem o
homem nem Deus são vistos como os autores do mal. Ao invés, para isso, como já dito por Basil, o
Grande, o mal simplesmente surge de “uma mutilação da alma” (§ 85). Contrário à Jung que no mesmo
local diz “Se a alma foi criada originalmente boa, então, ela realmente foi corrompida e por algo que é
real” e contrário também a própria sugestão que o eterno afastar-se de Deus pelo demônio “primeiramente
prova que o demônio estava no mundo antes do homem e, portanto, o homem não pode ser o único autor
do mal e, secundariamente, que o demônio já possuía uma alma ‘mutilada’ à qual devemos imputar a real
causa responsável” (ibid), a noção da mutilação da alma não sustenta a ideia da realidade do mal no
sentido superestimado de Jung, mas apenas no sentido banal e empírico. Vemos claramente que Jung
confunde a questão dos empiricamente reais maus no mundo e as empíricas mutilações da alma com a
totalmente diferente questão metafísica ou teológica sobre qual a causa metafisica do Mal per se, deus, o
homem ou o demônio e, assim também, de onde vem a alma mutilada do demônio. Em última análise,
Jung não consegue ou não quer explicar empiricamente a “mutilação da alma” simplesmente em termos
de causas empíricas do mundo interno (o modo moderno de a mente fazer). Inevitavelmente, Jung sai do
nível empírico e retoma o nível metafísico transcendente (do demônio e) de Deus (que fez o demônio e,
portanto, o mal), a questão metafísica: “De onde o mal?”
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17
Ao invés de “relativizarem” e “duvidarem de si” Eu preferiria, claro, alguma coisa como “se tornaram
logicamente negativos”.
18
Na Filosofia: cujas premissas e proposições não podem ser refutadas, questionadas nem negadas por
resultarem de um raciocínio lógico. Por Extensão: que não se pode refutar, discutir, colocar em causa;
evidente, manifesto, irrefutável. Capaz de convencer por apresentar fatos evidentes, provas. Etimologia:
do grego apodeiktikós. https://www.dicio.com.br/apoditico/ em 13/03/2021. N.T.
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O mundo moderno (começando com o fechamento da metafísica no tempo de Hegel, economicamente
com a Revolução Industrial, politicamente após a Revolução Francesa, pós Napoleão) naturalmente já um
estágio além desse estágio do “mundo do Filho”. N.A.
20
E como mensagem não só uma promessa para o futuro, para uma vida após a morte ou para o fim do
mundo, mas também como algo que de fato já aconteceu. Com essa ideia a consciência ascendeu a uma
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estrutura pensante complexa, uma para a qual algo já pode ser implícito e verdadeiramente real mesmo
quando não está explicitamente visível, de fato, quando parece até ser contraditado pelo que se vê no
mundo. É verdade dentro de um status avançado da consciência, verdade dentro da consciência que tem o
poder do pensamento, o poder, poderíamos dizer, de ser capaz de pensar através, ao invés de meramente
“ver através ou imaginar coisas”. N.A.
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Com a ideia da complexio oppositorum frequentemente Jung se refere a Nicolas de Cusa e sua
coincidência oppositorum, mas geralmente retém do leitor o fato que Cusanus deixa explicitamente claro
(De docta ignorantia II, 2. H 65, 17-66, 6 e De ludo globi II, h n. 81) que essa coincidência não se aplica
precisamente ao Bem e Mal! Transitoriedade e brilho são deficiências contingentes que pertencem aos
seres individuais nesse mundo empírico. Eles não são ontologicamente opostos constitutivos unidos em
coincidência. Há uma passagem em Jung que indica que ele estava ciente dessa exclusão: “Nicolas de
Cusa chama Deus uma complexio oppositorum (naturalmente sob a condição apotropaica da privatio
boni)” (CW 18 § 1537), mas ele não atesta em termos claros que ele se apropriou da frase de Nicolas de
Cusa para este mesmo aspecto e apenas para esse, nomeadamente os opostos morais que, de acordo com
Cusanus são, por motivos de princípio, excluídos da coincidência.
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22
Interessante que Jung usa o termo “Self” para aquilo que tem a forma da outridade para ele. O Self é
para ser experienciado e é a imagem de Deus ou a imagem da inteireza transcendente. N.A.
23
Como a forma primitiva da consciência (já refletindo) não pode entrar na forma lógica do pensamento e
entregar-se à fluidez do pensamento, mas se caracteriza pela substancialização e externalização,
projetando e hipostasiando.
24
Cf. também: “Eu estou guardando minha luz e meu tesouro... É muito precioso não apenas para mim,
mas acima de tudo à escuridão do Criador, que necessita do homem para iluminar Sua criação” (Cartas 2,
p. 597, para Serrano, 14 de setembro de 1960).
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Mas Nicholas de Cusa corretamente rejeita a ideia de uma coincidentia do bem e mal. N.A.
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A teoria de Jung é, claro, aquela em que o conflito absoluto dos opostos em (ou para) nós humanos é
indispensável para Deus (em quem os opostos estão unidos) para se tornar consciente. Mas, isso apenas
mostra uma vez mais a dualidade dissociada: homem – Deus. Jung toma Deus literal e substancialmente,
como um Outro real. Assim como ele não vê que a oposição moral no Zoroastrismo literal ou ao estilo do
Maniqueísmo foi há muito superada e suspendida na história da alma ele não se dá conta de que a
consciência (e, portanto, por exemplo, a imaginação humana e o pensamento sobre Deus)
psicologicamente é tudo que há. Não há um Deus como um referente externo que precisa se tornar
consciente. Para a psicologia é na “teologia” humana, assim como em mitos, contos de fada e sonhos que
a alma fala sobre si mesma (e não a respeito de Deus, por exemplo) e que os arquétipos se revelam em
sua dança natural como “formação, transformação, a eterna recreação da Mente” (cf. CW 9i § 400). A
imaginação humana e o pensamento sobre Deus É (parte da) auto exibição do status lógico alcançado pela
consciência, É parte da consciência se tornando consciente. O pensamento real sobre a coincidentia
opppositorum, mais de 500 anos atrás, já É aquele que se tornou consciente (na área do tema dos opostos)
por parte da consciência e que Jung ainda espera como um futuro desenvolvimento a ser alcançado. E o
esperar por algo que já é real se constitui regressão ao lugar anterior ao limiar que, na história da alma, já
foi atravessado. A utopia de Jung (i.e., o adiamento ao futuro) e seu desejo de que Deus se torne
consciente são estruturalmente um e a mesma externalização.
40
sentido de um julgamento de valor), na ideia de quem a consciência resgata para si sua irrenunciável idea
da harmonia última e integridade da ordem do mundo e, portanto, sua própria inocência (incolumidade,
inocuidade). O desapontamento não tem que realmente des-apontar (ent-täuschen: desiludir, desilusão) a
consciência.
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Talvez a luta de Jung contra a ideia do omne bonum a deo, omne malum ab homine, no qual, concordo,
é inaceitável, tem a motivação particular adicionada por detrás de si mesma em libertar o homem de ter
que definir por mesmo (e o mundo como tal) como finito e querendo um metafísico outro para culpar.
Jung, é claro, nos queria integrando o que ele chamou nossa sombra, mas esse movimento permaneceu
meramente no nível psíquico e empírico. Logicamente, psicologicamente, entretanto, nós devíamos
continuar crianças grandiosas de Deus, ou de algum(a) deus(a). Sobre si, Jung: “Em Bollingen eu habito
minha mais verdadeira essência, sou profundamente eu mesmo. Aqui eu sou, como se fosse o filho
milenar da mãe’...” (MDR p225, trad. modif.). Tenho a impressão (até onde posso ver, de fora, do que se
tornou conhecido sobre ele) que psiquicamente, no nível pessoal empírico, Jung não estava de modo
algum inflado. Mas do ponto de visa do nível psicológico ou lógico ele cultivou a inflação. Jung,
poderíamos dizer com o título da comédia de Oliver Goldsmith, se curva, mas se curva apenas para
conquistar. O curvar-se ocorre apenas no nível psíquico, no nível do homem empírico (integração da
sombra), ou em Küsnacht, mas a conquista acontece no nível psicológico, na lógica da sua autodefinição
(o Self grandioso) ou em “Bollingen”. Para fazer justiça a ele é importante olhar ambos os aspectos, mas
ver também que qualquer crença de que ao integrar a sombra no nível pessoal-empírico-prático,
indispensável como é, que a grandiosidade psicológica teria sido superada é uma ilusão e auto decepção.
A alma não aceita o ouro de tolo como moeda. Ela não aceita nem o verdadeiro, empírico ouro, aurum
vulgi. Ela pede pagamento em aurum nostrum: ouro lógico (o conceito, a definição) e, é claro, apenas em
pagamento integral. Realmente não é possível escapar a enganando ou trapaceando.
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A integração da sombra persegue uma estratégia de imunização e é, portanto, fundamentalmente oposta
ao omne malum ab homine. A última ideia equivale à implacável admissão da imperfeição ou da
pecaminosidade do homem total. “[H]omem é o autor do mal” (CW 9ii § 84), cada homem anzol, linha e
chumbada, cada um de mim no seu. Mas a ideia de sombra opera com a distinção (dissociação lógica)
entre mim e a sombra que eu tenho. A integração da sombra significa meramente que a consciência se
torna consciente do fato que eu tenho uma sombra e o que, precisamente, minha sombra é. Em nenhuma
circunstância significa que eu me identifico com a sombra (o que, para Jung, para quem a sombra é, em
última análise, um arquétipo, seria equivalente a uma inflação). Eu tenho ainda uma sombra, mas eu não
sou o autor de qualquer que seja o mal específico. O conceito de sombra permite que Jung subordine
nossos males concretos e imperfeições sob o conceito sobre nós mesmos como homem total do mesmo
modo como ele subordina o realismo retido de Bem e Mal sob o Deus monoteísta como seus dois filhos
ou duas mãos.
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Eu tenho que terminar sem mitigação com a ideia de finitude e imperfeição porque aqui nós nos
estamos preocupados com questões na esfera da positividade (“a realidade do mal”, o Deus metafísico, o
homem empírico, o mundo real). Mas essa insistência na infinidade de nenhuma maneira impede a
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