Você está na página 1de 13

UNIVERSIDADE ESTADUAL DO NORTE FLUMINENSE DARCY RIBEIRO

TEORIA SOCIAL E POLÍTICA CONTEMPORÂNEA

Trabalho de fechamento da disciplina

MODERNIDADE E A REPRESENTAÇÃO DO EU

Bruna Lassé Araújo

Rio de Janeiro

2022
Modernidade e a representação do eu

Este trabalho trará como objetivo apresentar pontos importantes discutidos em


duas obras de dois autores da teoria sociológica contemporânea. A primeira obra
apresentada, parcialmente, será a de Antony Giddens, “As consequências da
modernidade”, que busca compreender as transformações proporcionadas pela era
moderna ou pelo que o autor chama de alta-modernidade, período caracterizado pela
dúvida radical, pela separação espaço-tempo, pelo desencaixe das instituições e pela
chamada monitoração reflexiva. A segunda obra apresentada, também parcialmente, “A
representação do eu na vida cotidiana”, é fruto do trabalho de Erving Goffman sobre as
representações de papéis encenados pelos indivíduos em suas vidas cotidianas, processo
realizado com base em informações encontradas e disponibilizadas pelas plateias ou
grupos que os observam. A partir deste breve resumo é possível perceber que essas duas
obras se conectam em alguns pontos que serão abordados ao longo deste trabalho.

Antony Giddens aborda no livro “As consequências da modernidade” a


modernidade em si a partir de uma análise institucional. Para tanto, logo no início do texto
é apresentada uma definição sobre o conceito foco da obra: “‘modernidade’ refere-se a
estilo, costume de vida ou organização social que emergiram na Europa a partir do século
XVII e que ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua influência.”
(Giddens, 1991, p. 9). Para este autor, no século XX alcançamos o que ele chama de
período de radicalização e universalização das consequências da modernidade. Portanto,
o autor vai pelo caminho aposto os autores contemporâneos, que costumam denominar o
período atual como pós-moderno.

Na obra em questão, Giddens vai apontar que a modernidade possui como uma de
suas principais características descontinuidades da ordem tradicional que já existiu no
passado. O advento da modernidade proporcionou transformações profundas no que se
referem a sua extensão (as conexões sociais se ampliaram globalmente) e sua intenção (a
modernidade alterou profundamente algumas características pessoais e íntimas da
existência cotidiana). O autor, a partir destas observações, estabelece uma tentativa de
construção de uma teoria que vai apontar certas generalizações no processo histórico.
Como ele mesmo vai dizer: “Há episódios precisos de transição histórica, por exemplo,
cujo caráter pode ser identificado e sobre os quais podem ser feitas generalizações.”
(Ibid., p. 12). Sua análise se enquadra dentro do que ele denomina teoria da estruturação,
que vai apresentar como domínio básico “... as práticas sociais ordenadas no espaço e no
tempo.” (Giddens, 2003, p. 2)

Analisando as práticas no espaço e no tempo na modernidade, Giddens, como já


sinalizado, aponta que nos distanciamos das instituições sociais tradicionais por conta das
descontinuidades nas instituições sociais modernas, que possuem atualmente um ritmo de
mudança muito nítido e com uma rapidez jamais vista antes, tanto no que se refere à
tecnologia quanto no que se refere às demais esferas sociais. Esse ritmo de mudança seria
uma primeira descontinuidade da era moderna. A segunda se refere ao escopo da
mudança, que se dá a partir de ondas de transformação social global que ocorrem a partir
das interconexões estabelecidas entre diferentes áreas do globo. Uma terceira
característica apontada pelo autor se refere às instituições modernas, que na maioria das
vezes são completamente diferentes das existentes em período histórico anterior.

Prosseguindo em sua análise sobre a modernidade, o autor vai defender que esta
é um fenômeno de dois gumes: segurança versus perigo e confiança versus risco. As
instituições modernas e sua difusão global criaram condições para que os seres humanos
tivessem uma vida mais segura e com mais confiança nos acontecimentos cotidianos,
coisas não tão presentes em sistemas anteriores ao moderno. Apesar disso, o autor
argumenta que a modernidade também trouxe consigo um lado sombrio nunca antes visto
e não tão enfatizado pelo que se convencionou chamar de autores clássicos (Marx, Weber
e Durkheim). Estes autores até conseguiram perceber, como argumenta Giddens, que o
trabalho industrial moderno teria consequências compreendidas como degradantes, mas
não chegaram a refletir sobre os impactos ambientais, ecológicos causados pelas
mudanças no mundo do trabalho. Além disso, os clássicos não refletiram sobre a ascensão
de totalitarismos, que Giddens compreende como sendo parte constituinte dos parâmetros
da modernidade. “O governo totalitário combina poder político, militar e ideológico de
forma mais concentrada do que jamais foi possível antes da emergência dos estados-nação
modernos.” (Giddens, 1991, p. 14). É esse poder militar que o autor também vai
identificar como mais um exemplo do lado sombrio da modernidade, já que ele dá origem
ao chamado fenômeno da “industrialização” da guerra e ao surgimento das armas
nucleares. Como o autor defende: “O século XX é o século da guerra, com um número
de conflitos militares sérios envolvendo perdas substanciais de vidas, consideravelmente
mais alto do que em qualquer um dos dois séculos precedentes.” (Ibid., p. 15). Portanto,
o mundo moderno é acompanhado, além dos fatores positivos, de perigos e riscos, ou
seja, ele é acompanhado também de sua faceta sombria.

Refletindo sobre o dinamismo da modernidade, o autor analisa que este fenômeno


é proveniente da separação do tempo e do espaço, do desencaixe dos sistemas sociais e
da reflexividade ou monitoração reflexiva. No que se refere à separação tempo e espaço,
Giddens afirma que no passado o tempo estava vinculado ao onde, aos fenômenos
naturais que ocorriam com certa regularidade. Foi somente com a invenção do relógio
mecânico, esse dispositivo que marca o tempo sem depender de manifestações naturais,
e sua difusão que possibilitaram a separação tempo e espaço. O tempo ganhou o que o
autor chama de dimensão “vazia”, não localizada em um lugar: “O relógio expressava
uma dimensão uniforme de tempo ‘vazio’ quantificado de uma maneira que permitisse a
designação precisa de ‘zonas’ do dia (a ‘jornada de trabalho’, por exemplo).” (Ibid., p.
21). A uniformização da mensuração do tempo proporcionada pelo relógio permitiu uma
forma de organização social do tempo, conhecida por todas/os. Além disso, ocorreram, já
no século XX, a padronização de um calendário mundial e do tempo segundo regiões,
coisas impensáveis em um passado em que cada local possuía seu calendário e seu tempo.
Giddens vai dizer que esse processo leva ao que ele chama de “esvaziamento do tempo”.

O “esvaziamento do tempo” é seguido do “esvaziamento do espaço”. Este se dá


com a separação do espaço e do lugar (um ponto situado geograficamente, uma
localidade) trazida pela modernidade, que passa a permitir conexões que não dependem
mais do contato face a face. O autor afirma, então, que o local se tornou fantasmagórico:
“... isto é, os locais são completamente penetrados e moldados em termos de influências
sociais bem distantes deles.” (Ibid., p. 22). Esse espaço separado do local, um espaço que
Giddens chama de “vazio”, é consequência do mapeamento global, da construção de
mapas mundiais.

Essa separação entre tempo e espaço é fundamental para o intenso dinamismo


típico da era moderna. Além disso, essa separação, em primeiro lugar, gerou o chamado
desencaixe das instituições sociais, que seria o processo de deslocamento das relações
sociais vinculadas a uma localidade e seu rearranjo no espaço-tempo esvaziado. Em
segundo lugar, essa separação também gerou a engrenagem da organização racionalizada
típica dos tempos modernos, que é uma organização que conecta local e global e termina
por influenciar a vida das pessoas de modo geral. Em terceiro lugar, a separação - que
ocorreu muito por conta da padronização de um calendário/de uma datação, de um mapa
mundial e da padronização do tempo - deu origem a uma “história” da humanidade, uma
espécie de registro unitário de um passado mundial. E, assim, “... tempo e espaço são
recombinados para formar uma estrutura histórico-mundial genuína de ação e
experiência.” (Ibid., p. 24).

No que se refere ao segundo elemento assinalado anteriormente, o desencaixe


das instituições sociais, Giddens o define como um processo de “... ‘descolamento’ das
relações sociais dos contextos locais e sua rearticulação através de partes indefinidas
do espaço-tempo ...” (GIDDENS, 2002, p. 24). Dois são os tipos de mecanismos de
desencaixe: o que autor chama de “fichas simbólicas”, que se referem aos meios de
troca impessoal com algum valor (o dinheiro por exemplo, pois coloca entre parênteses
o espaço, possibilitando negociações entre indivíduos que não se conhecem ou que não
se encontraram pessoalmente, e o tempo, através, por exemplo, do crédito), e os
sistemas peritos (aqueles que se utilizam de conhecimento técnico e competência
profissional, como é o caso das/os cientistas, das/os advogadas/os, médicas/os,
engenheiras/os etc). Esses dois mecanismos de desencaixe necessitam da confiança,
que é uma espécie de fé que as partes envolvidas cumprirão os acordos ou promessas
definidas. Segundo o autor, essa confiança tem relação com a ausência no tempo e no
espaço. A confiança é a base de muitas das decisões tomadas cotidianamente, decisões
que não tem mais como base os encontros face a face, mediados pelo lugar:

Os sistemas peritos são mecanismos de desencaixe porque, em


comum com as fichas simbólicas, eles removem as relações sociais
das imediações do contexto. Ambos os tipos de mecanismo de
desencaixe pressupõem, embora também promovam, a separação
entre tempo e espaço como condição do distanciamento tempo-
espaço que eles realizam. Um sistema perito desencaixa da mesma
forma que uma ficha simbólica, fornecendo “garantias” de
expectativas através de tempo-espaço distanciados. (Ibid., páginas 29
e 30)

As “garantias” fornecidas pelos sistemas peritos e pelas fichas simbólicas


possuem uma relação direta com a confiança. Esta, por sua vez, possui relação com o
esvaziamento do tempo e do espaço na era moderna. Uma vez que esse esvaziamento
não permite conhecer de modo transparente e visível as ações dos outros, é preciso
confiar que as coisas se darão dentro do que se espera. Como o autor defende, a
confiança é um dispositivo para lidar com a falta de informação completa sobre o
cenário em questão, o que significa também que a confiança está vinculada ao acaso, à
contingência. Desta forma, a confiança não tem como base algum domínio concreto do
cenário. A confiança se dá a partir de uma fé ou crença que algo se realizará dentro do
esperado, mas sem que haja suficiente informação que confirme essa fé. Como o autor
defenderá, é uma confiança cega, o que significa que há espaço para o risco e o perigo.
Essa confiança cega não impede que os seres humanos realizem a monitoração
reflexiva (ou processo de reflexividade) de suas ações cotidianas, que é uma espécie de
observação de maneira contínua do comportamento, das ações e dos contextos em que
se realizam suas ações. A tradição, a relação com a comunidade não justifica mais, na
modernidade, as ações. O que ocorre é que as práticas sociais passam por um exame
constante e são, no final das contas, reformadas com base em informação ou
informações que são renovadas a todo o tempo. Esse processo não gera, portanto, mais
certeza ou certezas. Na verdade, ele gera a dúvida constante, pois “... não podemos
nunca estar seguros de que qualquer elemento dado... não será revisado.” (Ibid., p. 38).
Como o autor vai afirmar: “Nenhum conhecimento sob as condições da modernidade é
conhecimento no sentido ‘antigo’, em que ‘conhecer’ é estar certo.” (Ibid., p. 38).
Portanto, o que a reflexividade faz é aniquilar as bases do conhecimento e sua certeza,
trazendo para a vida cotidiana e para o campo científico a possibilidade constante de
revisão ou descarte.

Os apontamentos de Giddens nos levam ao entendimento de que os indivíduos,


na era moderna, vivenciam um constante processo de exame, análise de sua realidade
cotidiana e de suas ações, embora esse constante exame não leve à certezas absolutas.
É justamente neste ponto que é possível realizar uma conexão com a obra de Erving
Goffman (2002) que analisa o eu e sua representação cotidiana. Goffman defende que
o indivíduo em situação de interação social tende a representar um papel e a realizar um
processo de análise constante para obter informações sobre quem também está a
observar e a representar um papel durante essa interação. Essas informações obtidas
ajudarão a definir a situação em si e servirão de base para se construir antecipadamente
o que se espera e o que se deve esperar desse encontro face a face. Os indivíduos em
interação, a partir desse processo de busca de informação, “... saberão qual maneira de
agir para... obter uma resposta desejada.” (Ibid., p. 11). Ou seja, em paralelo com
Giddens, Goffman vai apontar que os indivíduos passam por um processo de análise
constante em suas vidas cotidianas no que se refere ao contato social, o que podemos
associar ao conceito de monitoração reflexiva. Além disso, Goffman argumenta que
esse processo de antecipação também exige certo grau de confiança no que é dito, no
que é representado pelos indivíduos em conexão, em situação de encontro social.
Portanto, as duas obras apresentam alguns pontos de contato que serão abordados mais
profundamente no restante desde trabalho.

No que se refere à busca de informação durante uma interação social, Goffman


aponta que muitas fontes podem ser utilizadas, como a aparência, a conduta do
indivíduo, sua situação socio-econômica, as informações que o outro escolhe fornecer
sobre si mesmo etc. São justamente estas fontes que permitirão que uma interpretação
seja realizada a partir de experiências anteriores de contato com indivíduos com
características e informações semelhantes. Ou seja, as fontes ajudam no processo de
predizer comportamentos e exigem certo grau de confiança que a pessoa em interação
está a dizer a verdade:

Quando um indivíduo desempenha um papel, implicitamente solicita


de seus observadores que levem a sério a impressão sustentada
perante eles. Pede-lhes para acreditarem que o personagem que vêem
no momento possui os atributos que aparenta possuir, que o papel que
representa terá as consequências implicitamente pretendidas por ele
e que, de um modo geral, as coisas são o que parecem ser. (Ibid., p.
25)

Ao desempenhar um papel, o ator, aponta Goffman, pode estar convencido de


que está a representar verdadeiramente quem é na realidade, sendo portanto considerado
um ator “sincero”. Por outro lado, o ator pode também não estar convencido se há
realidade no papel que representa, sendo denominado de “cínico”. Este último encena
um papel para obter algum benefício, para si ou para o coletivo em que vive sem que
realmente acredite no que está a fazer. O autor pontua que os indivíduos, no processo
de representação em situação de interação, podem oscilar entre convicção/sinceridade
e cinismo (o contrário também pode ocorrer). Além dessas, pode ocorrer um terceiro
tipo de oscilação, que é uma mistura de cinismo e sinceridade/crença no papel que se
está representando.

A representação, definida por Goffman como “... toda atividade de um indivídio


que se passa num período caracterizado por sua presença contínua diante de um grupo
particular de observadores e que tem sobre estes alguma influência.” (Ibid., p. 29),
depende da fachada, que seria a aparelhagem/equipamento expressivo empregado pelo
ator no momento do processo de interação social. A fachada possui partes padronizadas,
que seriam o cenário (“... compreende a mobília, a decoração, a disposição física, e
outros elementos do pano de fundo que vão constituir o cenário e os suportes de palco
para o desenrolar da ação humana...” – Ibid., p. 29) e a fachada pessoal (“... distintivos
da função ou da categoria, vestuário, sexo, idade e características raciais, altura e
aparência, atitude, padrões de linguaguem, expressões faciais, gestos corporais e coisas
semelhantes.” – Ibid., p. 31). Esta última pode se dividir em duas: aparência (que se
refere ao status social do ator) e maneira (que se refere a forma como o ator espera
desempenhar seu papel, que pode ser uma maneira agressiva, arrogante, humilde etc).
Importante sinalizar, como faz o autor, que aparência e maneira nem sempre serão
compatíveis durante o processo de interação, apesar de se esperar que haja
compatibilidade entre elas. Além disso, também se espera que o ambiente (cenário)
onde ocorre a interação esteja em harmonia com a aparência e a maneira.

No que se refere ao papel social assumido por um ator, Goffman aponta que
sempre existirá uma fachada já estabelecida socialmente para cada papel representado
e que, muitas vezes, elementos encontrados em determinada fachada social podem ser
os mesmos encontratos em outra. Portanto, o autor esclare que é preciso ter em mente
que “... em ocasiões de grande cerimônia, o cenário, a maneira e a aparência podem ser
únicos e específicos, usados somente para representações de um único tipo de prática,
mas este uso exclusivo do equipamento de sinais é a exceção, não a regra.” (Ibid., p.
36).

No processo de representação e reflexão sobre o que deve ser representado, os


atores sociais acentuam e configuram atividades ou atos de modo a confirmar o papel
que estão a representar. Goffman chama esse processo de realização dramática ou
dramatização, que pode se expressar sem constituir problema a depender, por exemplo,
da atividade profissional realizada pelo ator social. Mas aqui entra um ponto sinalizado
por Goffman: atores empenhados em representar dramaticamente as atividades que
estão a realizar muitas vezes não conseguem realizá-las bem, o oposto também se
aplica. Ou seja, a dramatização impede o foco para que uma atividade de qualquer tipo
seja bem realizada e o foco impede uma boa dramatização.

Aqui é importante acrescentar que a representação de um papel e a fachada são


moldadas e modificadas pelo processo de socialização segundo a compreensão e as
expectativas criadas pela sociedade e nisso ocorre o que Goffman chama de processo
de rejuvenescimento e reafirmação dos valores morais do campo social. Junto dessa
tentativa de moldar e modificar existe a tentativa de idealização da impressão que se
deseja passar às pessoas que observam ou que fazem parte da interação. Portanto, afirma
o autor, “... quando o indivíduo se apresenta diante dos outros, seu desempenho tenderá
a incorporar e exemplificar os valores oficialmente reconhecidos pela sociedade...”
(Ibid., p. 41). Isso significa que tanto o indivíduo pode assumir valores de grupo que
são considerados superiores como pode também assumir valores e comportamentos que
são considerados inferiores (o que Goffman chama de idealização negativa), tudo isso
na tentativa de obter algum tipo de ganho. Seguir esse processo de idealização faz com
que os indivíduos tenham de abandonar ou esconder hábitos anteriores:

Se um indivíduo tem de dar expressão a padrões ideais na representação,


então terá de abandonar ou esconder ações que não sejam compatíveis com
eles. Quando tal conduta imprópria é em certo sentido satisfatória como
muitas vezes acontece, verifica-se então comumente que o indivíduo se
entrega a ela secretamente; desse modo o ator pode abster-se do bolo e comê-
lo também. (Ibid., p. 46)

Esse processo de ocultação de ações (muitas vezes prazerosas) é acompanhado,


em primeiro lugar, de alguma forma lucrativa que o ator esconde do público que o
observa. Em segundo lugar, os erros e enganos que são cometidos no processo de
satisfação de seus desejos ocultos são corrigidos e seus indícios, ocultados, para que,
assim, passe uma imagem de infalibilidade. Em terceiro lugar, o produto do trabalho de
um ator, quando apresentado em uma interação, somente é exposto quando finalizado e
isso para que apresente uma imagem de coisa acaba que deve ser apreciada. Não se
mostram o tempo despendido ou o esforço exigido para a finalização do produto de seu
trabalho. Em quarto lugar, a separação entre realidade e aparência acaba por exigir que
o chamado “trabalho sujo” seja ocultado de quem observa. Em quinto lugar e último
lugar, alguns padrões no processo de realização de uma atividade são mantidos às custas
de outros padrões que são sacrificados. “Com frequência, certamente, o ator sacrificará
aqueles padrões cuja parte pode ser ocultada e fará este sacrifício para sustentar padrões
cuja aplicação inadequada não pode ser escondida.” (Ibid., p. 48). O autor aponta que o
padrão mais importante muitas vezes será sacrificado em nome da manutenção da
idealização de um papel social.

Essa idealização também ocorre quando atores defendem possuir motivos ideais
para seguir sua representação, que possuem qualificações e que, portanto, não precisam
passar por qualquer tipo de humilhação ou coisa parecida para que continuem a assumir
o papel que estão a encenar. Há envolvido neste processo o que o autor chama de
“retórica do treinamento”, que vai exigir que algumas funções ou atividades somente
sejam realizadas depois de um longo período de treino, o que faz com que ocorra a
manutenção do monopólio dessas atividades e seja alimentada “... a impressão de que
o profissional licenciado é alguém que foi reconstituído pela experiência da
aprendizagem e acha-se agora colocado à parte dos outros homens.” (Ibid., p. 50). O
contrário também pode ocorrer, que é quando um ator assume que sempre teve
determinadas habilidades e que nunca precisou de treinamento apropriado para seu
cumprimento.

A “retórica do treinamento” ou orgulho de não necessitar dela são partes do


processo de idealização da representação e do que está a ser representado. Neste
processo, o ator tentará mostrar para cada plateia ou grupos o que é considerado ideal.
Junto disso o ator faz uma espécie de separação em sua audiência, o que Goffman chama
de “segregação do auditório”. O autor defende que esta “... garante que aqueles diante
dos quais desempenha um de seus papéis não serão as mesmas pessoas para as quais
representará outro papel num ambiente diferente.” (Ibid., p. 52). Essa separação entre
os públicos é vantajosa para estes últimos, pois ocorre uma economia de energia e
tempo dado que não se faz necessário conhecer todas as facetas que um ator possui em
sua vida cotidiana. Goffman defende que “A vida urbana tornar-se-ia insuportavelmente
desagradável para alguns se todo contato entre dois indivíduos acarretasse a
participação nas aflições, aborrecimentos e segredos pessoais.” (p. 52). Além dessa
separação, atores têm a tendência de reforçar que sua performance possui algo de
especial e único quando, na verdade, somente há o cumprimento de uma representação
que se reproduz rotineiramente para cada plateia selecionada.
No final das contas, há por parte do ator uma tentativa de controle e manutenção
da encenação a partir da observação de informações existentes no processo de interação.
Apesar disso, nem sempre o ator obtém sucesso, pois nem sempre a plateia consegue
compreender o que se pretendia representar a partir das observações que realizou. Para
prevenir isso, os atores buscam tomar certas providências para que os imprevistos
involuntários não afetem sua representação. Neste sentido, “Espera-se que haja uma
certa burocratização do espírito, a fim de que possamos inspirar a confiança de executar
uma representação perfeitamente homogênea o tempo todo.” (Ibid., p. 58). É por conta
de uma disciplina social, portanto, que os atores sociais tentam o tempo todo se manter
em seus papéis.

Essa tentativa de controle constante também abre espaço para que o ator possa,
se quiser, fazer uma representação falsa, enganar sua plateia. Os membros da plateia,
naturalmente, apresentam dúvidas sobre se o papel representado é verdadeiro ou falso.
Assim, Goffman afirma que a plateia está sempre disposta a se precipitar sobre o que
considera incoerente na representação dos atores. Para o autor, o que se quer saber é se
há autorização ou não para que o ator represente o papel que está a encenar. Mesmo que
isso ocorra, a representação de um mentiroso e de um verdadeiro ator possui um ponto
de semelhança: ambas têm o cuidado de manter a impressão que geraram na plateia
durante a interação:

Que um ator honesto deseje transmitir a verdade ou quer um


desonesto deseje transmitir uma falsidade, ambos devem tomar
cuidado para animar seus desempenhos com expressões apropriadas,
excluir expressões que possam desacreditar a impressão que está
sendo alimentada e tomar cuidado para evitar que a plateia atribua
significados não-premeditados. (Ibid., p. 67)

Apesar de a interação ser um elemento importante durante o processo de


representação, é preciso que ocorra certa regulação do contanto com a plateia para que
o ritual do ator não seja comprometido pela falta de compreensão da encenação.
Portanto, certo distanciamento social pode ser um elemento que permite a construção
de um temor respeitoso, de uma aura mistificada que fornecerá para o ator maior
liberdade para que seja repassada a impressão intentada na encenação e assim a pressão
de corresponder a idealização da plateia tem seu poder diminuído.

Um ponto importante precisa ser acrescento aqui: atores sinceros e cínicos


encenam seus papéis na vida cotidiana tomando como base um texto montado
previamente, assim como numa peça de teatro, e que terá como objetivo representar
uma realidade para a plateia que observa:

quase qualquer indivíduo pode aprender rapidamente um texto


bastante bem para dar a um público condescendente certo sentido de
realidade ao que está sendo executado diante dele. E parece que isto
acontece porque o relacionamento social comum é montado tal como
uma cena teatral, resultado da troca de ações, oposições e respostas
conclusivas dramaticamente distendidas. Os textos, mesmo em mãos
de atores iniciantes, podem ganhar vida porque a própria vida é uma
encenação dramática. O mundo todo não constitui evidentemente um
palco, mas não é fácil especificar os aspectos essenciais em que não
é. (Ibid., p. 71)

Apesar de ser previamente pensado, o texto reproduzido nas encenações que


ocorrem na vida diária dos atores sociais pode ser modificar conforme a necessidade,
já que estes atores possuem certa familiaridade com a rotina da plateia que os observa.
Além disso, não se pode esquecer de um ponto já abordado aqui: a socialização
antecipada. Esta instrui os atores na tarefa da representar um papel na realidade social,
uma instrução que não fornecerá todos os detalhes sobre o que será encontrado no
cenário social. Como aponta Goffman, a exigência é que o indivíduo “... aprenda um
número sufiente de formas de expressão para ser capaz de ‘preencher’ e dirigir mais ou
menos qualquer papel que provavelmente lhe seja dado.” (Ibid., p. 73). Portanto, segue-
se um modelo socializado, modelo que não cederá todas as falas, expressões, gestos etc.

Os apontamentos de Goffman sobre a representação no processo de interação


social são fundamentais para a compreensão sobre como os indivíduos praticam suas
ações na vida cotidiana. Como foi possível perceber, as ações realizadas no dia a dia,
diferentemente do que se possa pensar, apresentam certo grau de racionalidade e exigem
um processo intenso de reflexão e análise. Além disso, os papéis representados de forma
cotidiana exigem que seus atores tenham confiança que seus observadores levam a sério
o que estão a encenar. Portanto, a obra de Goffman encontra a de Giddens ao abordar o
processo intenso de reflexão cotidiana empregado pelos atores sociais e a confiança que
de certa forma exigem de suas plateias.

Referências Bibliográfias

GIDDENS, Anthony. A Constituição da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2003.


(Introdução, Capítulos 1 e 6).

_____. Consequências da Modernidade. São Paulo: UNESP, 1991. (Capítulo 1)

GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Rio de Janeiro: Vozes.


2002. (Capítulo 1, pp. 25‐74)

Você também pode gostar