COLABORAÇÃO IPCA

O processo de harmonização
do sistema de contabilidade pública
na União Europeia
Tem sido trilhado um caminho importante para melhorar a qualidade dos sistemas
de contabilidade pública, apesar do processo de harmonização entre os Estados membros
e de conciliação entre a contabilidade pública e as contas nacionais estar ainda longe.

Por Patrícia Gomes* | Artigo recebido em outubro de 2014

D
esde a década de 90 do sé-
culo passado que temos
assistido a um movimen-
to global com vista à harmoniza-
ção internacional da contabilidade
pública em todos os subsetores da
Administração Pública, incluindo o
governo central e local. Este movi-
mento tem-se sentido em particular
na União Europeia onde várias re-
formas têm sido introduzidas pelos
Estados membros a ritmos diferen-
tes (Christiaens et al., 2010). As vá-
rias pressões políticas e institucio-
nais, nomeadamente de entidades
financiadoras e da União Europeia,
têm impulsionado esta mudança
um pouco por todos os países da
Europa, nomeadamente na Europa
continental (onde se inclui Portugal
e Espanha) (Lapsley et al., 2009; Go-
mes et al., 2014; Oulasvirta, 2014).
As normas internacionais de con-
tabilidade pública (IPSAS)1 aprova-
das pela IFAC2, baseadas na adoção
do accrual accounting (regime do
acréscimo), constituem o principal
referencial utilizado pelos vários
países. Assim, as principais mu-
danças introduzidas têm sido forte-
mente influenciadas pelas normas e
princípios contabilísticos adotados
no setor privado, designadamente
a adoção do regime do acréscimo,
com vista ao alcance dos seguintes
objetivos:
- Elaborar as contas consolidadas
da administração pública;
- Garantir a equidade intergerações
ao focar a contabilização dos ren-
dimentos e dos gastos em vez dos
fluxos de caixa;
- Melhorar a relevância e a qualida-
de da informação produzida;
- Aumentar a transparência acerca
da posição financeira e do desem-
penho das entidades do setor pú-
blico;
- Promover a comparabilidade da
informação, especialmente entre os
vários níveis de governo dentro de
um país;
- Aproximar a contabilidade públi-
ca às contas nacionais; e
- Melhorar a gestão pública através
das medidas de desempenho.
Apesar das mudanças introduzidas
nas últimas décadas terem contri-
buído para uma maior harmonia
entre os sistemas nacionais de con-
tabilidade pública, a atual crise das
finanças públicas na Europa tem
revelado a necessidade de reformas
adicionais no contexto da União Eu-
ropeia (UE) com vista a uma maior
transparência e accountability das
contas públicas. Tal necessidade fi-
cou refletida na diretiva do Conse-
lho Europeu, aprovada em novem-
bro de 2011,3 sobre os requisitos dos
sistemas de contabilidade pública
dos Estados membros. Em concre-
to, ficou explícito nesta diretiva que
«os Estados membros devem ter
em prática sistemas contabilísticos
que cubram integral e consistente-
mente todos os subsetores da ad-
ministração pública, e contenham
a informação necessária para gerar
dados em base de acréscimo, com
vista à preparação dos dados basea-
dos nas regras do SEC95.» Está em
causa a harmonização não apenas
do sistema de contabilidade pública

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como também a conciliação deste
com as contas nacionais. A medida
dos objetivos de consolidação orça-
mental e do cumprimento do pacto
de estabilidade económica fixado
pela União Europeia aos Estados
membros torna fundamental esta
conciliação.
Como transformar as EPSAS/IPSAS?
Neste contexto, têm surgido várias
recomendações no seio da UE para
uma maior uniformização das nor-
mas de contabilidade e orçamento
dos Estados membros baseadas no
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princípio do acréscimo. Tal reforma
poderá passar pela adoção das de-
signadas EPSAS,4 que são normas
europeias de contabilidade pública
baseadas no princípio do acrésci-
mo e que têm como referência as
IPSAS desenvolvidas pelo IPSASB5
desde 1997. O pressuposto é o de que
a adoção das EPSAS/IPSAS pode
melhorar a qualidade do relato fi-
nanceiro de finalidades gerais das
entidades públicas (individuais e
consolidadas), conduzindo a me-
lhor informação sobre as decisões
de alocação de recursos, e, con-
sequentemente, a um aumento da
eficácia e eficiência das ações do
Governo.
Atualmente, o debate centra-se na
forma como as EPSAS/IPSAS devem
ser transformadas e adaptadas ao
contexto e à realidade da UE com
vista a uma maior eficácia da refor-
ma. Algumas questões em discus-
são são: que normas necessitam de
ser mudadas e como? Haverá novas
normas que devem ser adiciona-
das? Como implementar as normas
orçamentais em base de acréscimo
(dada a importância do orçamento

As diferenças culturais, políticas e sociais entre os Estados
membros devem ser tidas em conta no processo
de reforma e harmonização do sistema de contabilidade
pública, sendo de evitar o efeito mimético
que muitas vezes caracterizam estas reformas.
como instrumento de gestão pú-
blica)? Qual o âmbito de aplica-
ção destas normas? Qual o custo
de adoção e adaptação das EPSAS?
Qual o tempo necessário de imple-
mentação da reforma?
Este processo encontra-se ainda a
ser definido e desenhado, pelo que
deverá ser um processo faseado e
gradual, a implementar a médio
prazo, tendo em conta as dife-
rentes tradições e sistemas legais
dos Estados membros. Por exem-
plo, em Portugal, tal como nou-
tros países da Europa continental,
onde existe uma forte influência
do direito romano, o processo de
reforma da contabilidade pública
atinge contornos significativa-
mente diferentes do processo ve-
rificado nos países anglo-saxóni-
cos (como, por exemplo, o Reino
Unido).
Em consequência, após mais de
uma década desde a aprovação das
IPSAS, encontramos atualmente
diferentes realidades dos sistemas
de contabilidade pública, quer
entre países quer dentro de cada
país. Os países anglo-saxónicos
encontram-se num estado mais
avançado no processo de adoção
destas normas e na elaboração de
orçamentos em base de acréscimo
(por exemplo, EUA, Reino Uni-
do, Áustria, Nova Zelândia, etc.),
comparativamente aos países da
Europa continental que, tradicio-
nalmente, adotam a base de caixa
ou caixa modificada na execução
dos seus orçamentos (como é o
caso de Portugal, Espanha e Fran-
ça).
Contudo, num estudo recente de-
senvolvido por Gomes et al. (2014)
sobre a perspetiva de diferentes
stakeholders6 acerca do processo de
reforma da contabilidade pública
em Portugal, os autores concluíram
que há um entendimento comum
quanto ao momento adequado e às
estratégias necessárias para ga-
rantir o sucesso da reforma. A pas-
sagem recente da troika e do Fundo
Monetário Internacional pelo nos-
so País, a necessidade de garantir
aos mercados a nossa capacidade
de estabilizar as contas públicas e
reduzir o défice e a predisposição
atual dos diferentes grupos para a
mudança, tornam este momento
adequado para se fazer a reforma
da contabilidade pública no nosso
país. Por outro lado, a reforma ini-
ciada na década de 90 permitiu já
introduzir mudanças importantes
na contabilidade pública portu-
guesa, fazendo com que esta novo
processo de mudança não seja tão
complexo e moroso, em especial
no governo local onde os avan-
ços são evidentes como revela o
Anuário Financeiro dos Municípios
Portugueses. Todavia, os vários
stakeholders envolvidos neste es-
tudo defendem que há estratégias
de comunicação, de formação e de
certificação de competências téc-
nicas e de gestão que é necessário
trabalhar, a par de uma mudança
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cultural que demorará alguns anos
a concretizar. O processo de mu-
dança terá, por isso, de ser gradual
e faseado, envolvendo os diferentes
grupos, desde a classe política aos
gestores e técnicos responsáveis
pela gestão pública.
Em suma, ao longo do tempo, tem
sido trilhado um caminho impor-
tante com vista à melhoria da qua-
lidade dos sistemas de contabilida-
de pública, embora estejamos ainda
longe de um processo de harmoni-
zação entre os Estados membros e
de conciliação entre a contabilidade
pública e as contas nacionais. Por
outro lado, as diferenças culturais,
políticas e sociais entre os Estados
membros devem ser tidas em conta
no processo de reforma e harmoni-
zação do sistema de contabilidade
pública, sendo de evitar o efeito mi-
mético que muitas vezes caracteri-
zam estas reformas pondo em causa
o seu sucesso.
*Professora adjunta da
Escola Superior de Gestão do IPCA
Bibliografia disponível em («A Ordem – Publi-
cações – Revista TOC – Bibliografia»)
Notas
1
International Public Sector Accounting
Standards.
2
International Federation of Accountants.
3
Diretiva n.º 2011/85/EU, de 8 de no-
vembro do Conselho da União Europeia.
4
European Public Sector Accounting Stan-
dards.
5
International Public Sector Accounting
Standards Board.
6
Os diferentes stakeholders incluem as
organizações profissionais (OTOC e
OROC), os reguladores nacionais (Co-
missão de Normalização Contabilística
Pública e Direção Geral do Orçamento) e
os auditores independentes (Tribunal de
Contas).
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