A experiência de satisfação, a partir da qual poderemos entender os
afetos e os estados de desejo, está ligada à concepção freudiana de um estado de desamparo original do ser humano. Ao contrário da maioria dos animais, o ser humano possui uma vida intrauterina de duração reduzida, o que lhe confere um despreparo para a vida logo ao nascer. Sua fragilidade em face das ameaças decorrentes do mundo externo o coloca numa total dependência da pessoa responsável pelos seus cuidados. Vimos que o aparelho psíquico, regulado pelo princípio de inércia, funciona no sentido de se ver livre dos estímulos e vimos também que isso só é possível através da descarga de Q que ele recebe. Ocorre, porém, que um recém-nascido não é capaz de executar a ação específica que põe fim à tensão decorrente do acúmulo de Q. Isso é particularmente notável no caso da excitação decorrente dos estímulos internos, como no caso da fome. A ação específica só pode ser realizada com o auxílio de outra pessoa (a mãe, por exemplo) que lhe fornece o alimento, suprimindo assim a tensão. É a eliminação da tensão interna causada por um estado de necessidade que dá lugar à experiência de satisfação. A partir desse momento, a experiência de satisfação fica associada à imagem do objeto que proporcionou a satisfação assim como à imagem do movimento que permitiu a descarga. Como decorrência dessa associação que é estabelecida quando se repete o estado de necessidade, surgirá imediatamente um impulso psíquico que procurará reinvestir a imagem mnemônica do objeto, reproduzindo a situação de satisfação original. “ Um impulso desta espécie” , escreve Freud (ESB, vs. IV-V, p. 602), “ é o que chamamos de desejo; o reaparecimento da percepção é a realização do desejo e o caminho mais curto a essa realização é uma via que conduz diretamente da excitação produzida pelo desejo a uma catexia completa da percepção.” Ocorre, porém, que o que é reativado é o traço mnemônico da imagem do objeto sem que essa reativação seja acompanhada da presença real do objeto. O que se produz, portanto, é uma alucinação. Mas, como o recém-nascido não é capaz de distinguir o objeto real do objeto alucinado, desencadeia-se o ato reflexo cujo objetivo é a posse do objeto, sobrevindo assim a frustração. Veremos mais adiante como a formação do ego é o que vai possibilitar essa distinção e a consequente inibição da resposta motora. O mesmo vai acontecer com a experiência da dor. Já vimos que uma das tendências mais fundamentais do aparelho psíquico é a de A Pré-História da Psicanálise — II 55
evitar o desprazer e que este é identificado com um aumento excessivo
do nível de Q. Assim, se esse aumento ocorre, surge de imediato uma propensão à descarga juntamente com uma associação desta com a imagem do objeto que produz a dor. Tal como no caso da experiência de satisfação, se a imagem do objeto hostil é reinvestida, surge um estado de desprazer acompanhado de uma tendência à descarga. Essas duas experiências — a de satisfação e a de dor — vão constituir, portanto, dois resíduos: os estados de desejos e os afetos, ambos caracterizados por um aumento da tensão no sistema de neurônios , produzido, no caso de um afeto, pela liberação súbita de Q, e, no caso de um desejo, por somação (Freud, ESB, v. I, p. 426). Os desejos e os afetos vão, por sua vez, produzir dois mecanismos básicos para o funcionamento do aparelho psíquico, que são a atração de desejo primária e a defesa primária (que, no Projeto, Freud identifica com o recalcamento). Gostaria de salientar ainda um aspecto da concepção freudiana dos desejos e dos afetos. Estes últimos aparecem no Projeto com um sentido praticamente idêntico ao de “ soma de excitação” . Convém assinalar, porém, que a noção de afeto não é uma noção quantitativa, mas qualitativa; um afeto inclui processos de descarga, mas inclui também manifestações finais que são percebidas como sentimentos. Esses sentimentos podem ser tanto de prazer como de desprazer, o que elimina também a noção um tanto vaga, presente no Projeto, de que os afetos se referem apenas a experiências desagradáveis.2
A EMERGÊNCIA DO “ EGO”
Vimos, em relação ao item anterior, que a experiência de satisfação
produz um traço mnêmico que é reativado quando surge novamente o estado de tensão. Esse traço mnêmico, que é a imagem do objeto que proporcionou a satisfação, é então reinvestido, produzindo-se algo análogo à percepção, isto é, uma alucinação, já que o objeto está ausente. O problema está no fato de o recém-nascido não ter condição de distinguir o objeto real do objeto alucinado, ocorrendo então uma frustração, já que ele reage ao objeto alucinado como se este fosse
2 A esse respeito, ver o Apêndice de J. Strachey ao artigo As neuropsicoses de