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Capı́tulo 4

Partı́cula Livre

Após ter obtido as equações fundamentais, aplica-se o formalismo mecânico


quântico a vários sistemas que ainda permitem a solução exata da equação de
Schrödinger (3.60). Começa-se com o sistema mais simples representado por
uma partı́cula livre, a qual é descrita apenas através de conceitos cinéticos.

4.1 A Solução Matemática


Considera-se uma partı́cula com massa m movimentando-se ao longo do eixo
da coordenada x sem efeito de forças. Cabe mencionar que essa definição
da partı́cula livre permite a aplicação de um potencial constante (a força é
definida pela eq. (1.24) como gradiente no potencial, o qual produz zero para
uma constante). Chama-se K esse potencial constante.
Monta-se a equação de Schrödinger (3.60) para a partı́cula livre de uma
dimensão, digamos x,

Ĥψ(x) = Eψ(x) .

O Hamiltoniano (3.47),

Ĥ = T̂ + V̂ ,

contém a energia cinética, cujo operador foi definido pela eq. (3.31),

h̄2 ∂ 2
T̂ = − ,
2m ∂x2
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78 CAPÍTULO 4. PARTÍCULA LIVRE

e a energia potencial V̂ aqui representado pela constante K,

V̂ = V (x) = K . (4.1)

Juntando as equações (3.31) e (4.1), formula-se o Hamiltoniano da partı́cula


livre,

h̄2 d2
Ĥ = − + K, (4.2)
2m dx2
e, substituindo na eq. (3.60), produz a equação de Schrödinger correspon-
dente,

h̄2 d2
" #
− + K ψ(x) = Eψ(x) . (4.3)
2m dx2

Simplifica-se a eq. (4.3) antes de procurar as funções ψ(x). Resolve-se


parêntesis,

h̄2 d2
− ψ(x) + Kψ(x) = Eψ(x) .
2m dx2
Subtraindo em ambos os lados Kψ(x), obtém-se no lado direito dois termos
envolvendo uma constante multiplicando ψ(x). Junta-se esses dois termos,

h̄2 d2
− ψ(x) = (E − K) ψ(x) ,
2m dx2
e define-se uma nova constante E 0 representando a diferença E − K,

E0 = E − K . (4.4)

A equação de Schrödinger para a partı́cula livre torna-se,

h̄2 d2
− ψ(x) = E 0 ψ(x) .
2m dx2
Observa-se que a energia da partı́cula é escondida dentro da constante E 0 .
Divide-se pelas constantes do lado esquerdo,

d2 2mE 0
ψ(x) = − ψ(x) ,
dx2 h̄2
4.1. A SOLUÇÃO MATEMÁTICA 79

junta-se constantes,
2mE 0
α = , (4.5)
h̄2
para transformar a equação de Schrödinger da partı́cula livre em uma forma
matemática simples,
d2
ψ(x) = −αψ(x) . (4.6)
dx2
A eq. (4.6) requer uma função que é proporcional a sua segunda derivada.
Conhece-se o seno e o coseno como funções com essa caracterı́stica. Escolhe-
se o seno,
ψ(x) = A sin [ax] , (4.7)
com amplitude A e parâmetro a no argumento. A segunda derivada do seno
produz o negativo do seno (primeira derivada produz o coseno e derivando
o coseno fornece o seno com sinal negativo) multiplicado pelo quadrado da
derivada do seu argumento, ou seja,
d2
ψ(x) = −a2 A sin [ax] .
dx 2

Compara-se com a função proposta (4.7),


d2
ψ(x) = −a2 ψ(x) , (4.8)
dx 2

e acha-se a equação diferencial fı́sica (4.6) quando,



a2 = α ou a = α. (4.9)
Inclui-se essa conexão entre proposta (4.7) e imagem fı́sica na função pro-
posta, que representa agora comprovadamente uma função de onda para a
partı́cula livre,
h√ i
ψ(x) = A sin αx .
Coloca-se ainda todas as constantes fı́sicas através de substituir α através da
sua definição (4.5),
s 
2mE 0 
ψ(x) = A sin  x , (4.10)
h̄2
com E 0 representando a diferença (4.4) entre energia total da partı́cula e a
constante de potencial. Mantém-se o fator de amplitude indeterminado.
80 CAPÍTULO 4. PARTÍCULA LIVRE

4.2 Discussão do Resultado Matemático


Tirando a constante K, representando a energia potencial, da energia total E,
tem-se definida na propriedade E 0 da eq. (4.4) a energia cinética da partı́cula.
A eq. (3.32) mostrou que a energia cinética na quântica segue a definição
T = p2 /2m da eq. (1.21). Com E 0 = p2 /2m, pode-se re-escrever a função de
onda (4.10) em termos do momento p,
s 
p2 p
 
ψ(x) = A sin  2 x = A sin x .
h̄ h̄

A relação de de Broglie na eq. (3.1) permite a troca do momento pelo com-


primento de onda descrevendo a partı́cula livre,
" #
h̄k
ψ(x) = A x .

Cortando a constante de Planck e introduzindo a definição (1.116) do número


de onda, obtém-se,

 
ψ(x) = A x . (4.11)
λ
A eq. (4.11) representa a função de onda (4.10) substituindo as grandezas da
partı́cula (como a massa m) pelas propriedades de ondas (aqui λ). Compa-
rando as constantes no argumento dos senos nas eqs. (4.10) e (4.11),
s
2mE 0 2π
2 = ,
h̄ λ
acha-se a relação entre comprimento de onda λ e energia cinética E 0 ,
1 h
λ = 2πh̄ √ = √ , (4.12)
2mE 0 2mE 0
onde a definição (3.2) para h̄ foi utilizada.
A eq. (4.12) permite a avaliação do caráter ondular da partı́cula livre.
Achou-se que o comprimento de onda λ apresenta uma proporcionalidade
recı́proca às raizes da massa m e da energia cinética E 0 . Conclui-se que
partı́culas mais pesadas produzem um comprimento de onda mais curto, ou
4.2. DISCUSSÃO DO RESULTADO MATEMÁTICO 81

E; ψ(x)

K1 K2 K3

x
Figura 4.1: Partı́cula livre com E constante na escada de potencial mostrando
o efeito do potencial na função de onda ψ(x). Os potenciais diminuem na
série K1 < K2 < K3 .

seja, se comportam mais clássicamente do que partı́culas leves. Também


encontrou-se que partı́culas com mais energia cinética produzem um com-
primento de onda menor, ou seja, aumentando a energia cinética as carac-
terı́sticas clássicas da partı́cula tornam-se mais importantes. A eq. (4.12)
também mostra que o limite da mecânica clássica caracterizado por h → 0
não produz propriedades ondulares (λ → 0).
Pode-se, por exemplo, discutir uma partı́cula livre com energia total E.
Mantém-se E constante ao longo da coordenada, mas aumenta-se sistemati-
camente K ao longo da coordenada em forma de escada. A fig. 4.1 mostra
esse exemplo distinguindo três regiões com potenciais diferentes. Com E con-
stante, a energia cinética E 0 da eq. (4.4) diminui no sentido E30 < E20 < E10 .
Consequentemente, a eq. (4.12) prevê um aumento no comprimento de onda
indo na fig. 4.1 da esquerda para a direita: λ1 < λ2 < λ3 . Cabe mencionar
que λ nas regiões de mudanças no potencial não é corretamente respresen-
tada. A fig. 4.1 é apenas um esquema para exemplificar o efeito fı́sico da
constante K na função de onda.
Na fig. 4.1, desenhou-se a função de onda em cima da energia E do sistema
representado. Para isso, imagina-se ψ(x) desenhada dentro de um sistema de
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coordenadas em que o eixo x é representado pela energia (na fig. 4.1: a linha
paralela ao eixo x com valor E). A energia não envolve coordenadas, ou seja,
fica constante no espaço. Assume-se que esse eixo represente o ponto zero
para a função ψ(x). Assim, ψ(x) aparace na região em cima do eixo quando
o seu sinal for positivo, e em baixo do eixo quando o seu sinal for negativo.
Esse tipo de representação é comum em livros-texto da área. Adota-se essa
convenção também nesse manuscrito.

4.3 Efeito Túnel


A fig. 4.1 mostra o crescimento do comprimento de onda através de aumentar
o potencial representado pela constante K. Pode-se continuar a aumentar
K até K supera a energia total E partı́cula. Nesse caso, a energia cinética
E 0 da eq. (4.4) assume valores negativas e, em conseqüência, o comprimento
da onda λ da eq. (4.12) torna-se complexo. Introduz-se a energia cinética
negativa através de E 0 = − (K − E) e substitui-se no comprimento de onda
(4.12),

h
λ = h q , (4.13)
i 2m (K − E)

com o sinal negativo na raiz representado por i.


Utilizando o comprimento de onda (4.13), a função de onda (4.11) possui
um argumento complexo do seno. Prefere-se representar o seno através da
relação de Euler correspondente apresentada na eq. (3.10), produzindo para
ψ(x),

A 2π 2π
    
ψ(x) = exp i x − exp −i x . (4.14)
2i λ λ
A função de onda (4.14) permite a discussão de um comprimento de onda
complexo. Introduzindo a eq. (4.13) na eq. (4.14), pode-se cortar i nos ex-
poentes e obtém-se duas exponenciais reais. Calculando o quadrada de ψ(x)
para representar a probabilidade (3.57) de achar a partı́cula, a eq. (4.14)
mostra que a partı́cula livre pode ser encontrada em regiões, nas quais o
potencial K supera a energia total da partı́cula.
Essa situação é abstraı́da na fig. 4.2. Um partı́cula livre com energia E
maior do que o potencial K1 aproxima-se da esquerda a uma região com
4.3. EFEITO TÚNEL 83
E; ψ(x)

K1 K2 K1

x
Figura 4.2: Partı́cula livre com energia total E enfrentando uma barreira de
potencial.

potencial K2 superando a energia total E. Especificou-se a região com K2


como sendo bastante estreita para classificar essa zona como uma barreira de
potencial e não como um bloqueio de potencial. No lado direito da barreira,
o potencial é volta ao valor K1 , ou seja, é de novo inferior do que a energia
total.
A fig. 4.2 mostra a conclusão obtida através da eq. (4.14). A representação
do seno através de exponenciais permite que a função de onda penetra regiões
com a energia potencial superando a energia total do sistema. Recorda-se
que uma partı́cula clássica enfrentando uma barreira de potencial é refletida
e inverte a sua direção de movimento. Como mostra a eq. (4.14), a partı́cula
livre também pode ser refletida na barreira (a eq. (4.14) possui duas expo-
nenciais, uma contendo x e outra contendo −x), mas existe a probabilidade
da partı́cula tunelar a barreira. No caso de barreiras estreitas, a exponencial
descrevendo ψ(x) na barreira diminui a amplitude, mas não decai completa-
mente. Em outras palavras, postula-se que a partı́cula aparece no outro lado
de uma barreira estreita, como indicado na fig. 4.1 (efeito de tunelamento). O
efeito de passar por uma barreira de potencial é um efeito quântico. Pode-se
fazer o experimento de chutar uma bola contra um murro. A bola não passa
pelo murro e só aparece no outro lado da barreira quando fosse chutada por
84 CAPÍTULO 4. PARTÍCULA LIVRE
E

EA

A
?
z B

Coordenada de Reação
Figura 4.3: Barreira de ativação para a reação A→B. EA representa a energia
de ativação. A flecha do lado do reagente A para o lado do produto B indica
o caminho de reação por tunelamento.

cima do murro.
Surgiram várias aplicações do efeito de tunelamento. Cita-se aqui ape-
nas a sua utilização na microscopia da altı́ssima resolução. Na quı́mica, o
efeito de tunelamento é discutido em reações envolvendo uma transferência
intramolecular de um próton. Reações quı́micas ocorrem ao longo de uma
coordenada de reação com reagentes e produtos separados por uma bar-
reira de ativação, como ilustrada na fig. 4.3. Em geral, precisa-se fornecer
a energia de ativação EA da reação para a passagem do sistema do lado de
reagentes para o lado de produtos por cima da barreira de ativação. Porém,
o efeito de tunelamento sugere uma alternativa possibilitando a passagem
direta de reagentes para o lado de produtos passando no meio da barreira
de ativação como indicado pela flecha na fig. 4.3. Esse tunelamento da bar-
reira de ativação deve ser restrito a partı́culas leves. Da eq. (4.12), obtém-se
comprimentos de onda curtos para partı́culas pesadas tornando-as ”clássicas
demais”. Porém, para reagentes leves, a possibilidade de tunelamento é am-
plamente discutida na literatura quı́mica. Por exemplo, existem evidências
experimentais e teóricas indicando que o tunelamento representa uma alter-
nativa ao caminho tradicional na transferência intramolecular de um próton.

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