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Cap.

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No quarto alugado Paulete tomava um banho quando L chamou Elias para ver o
noticiário de uma emissora da Bahia. Era um programa policial que transmitia crimes e
notícias de menor porte. Julia a irmã de L estava dando entrevista da cela de uma
delegacia em Teixeira de Freitas, algemada e chorando. A cafetina se dizia inocente de
todas as acusações; pelo contrário, ela era a verdadeira vítima. O Gerente do
Supermercado onde Elias aplicou o golpe disse ter sido vítima de dois estelionatários
que lhe passaram um cheque falsificado. O homem se apresentou como um médico
bilionário, cujo nome era Doutor Leopoldo Heitor de Almeida e Albuquerque. Com
certeza ele e a jovem que se passou por sua sobrinha eram cúmplices. O Gerente disse
ainda que, os estelionatários haviam comprado metade dos artigos de luxo, disponíveis
no Supermercado. Tudo que ele como responsável pelo estabelecimento queria era o
ressarcimento do prejuízo e a prisão do outro golpista. Um comerciante da cidade de
Nova Viçosa ouviu a notícia no rádio e pela descrição do suspeito reconheceu ser o
Doutor Leopoldo (esta testemunha era o dono da locadora de veículos onde Elias
alugara o carro de luxo).

O apresentador do programa de TV sensacionalista disse que se Julia fosse


condenada por todas as acusações que pesavam sobre ela, sua sentença poderia chegar a
mais de 30 anos de prisão. Além de estar sendo acusada de estelionato: poderia ser
indiciada por corrupção de menores; rapto consensual mediante fraude e formação de
quadrilha se ficasse confirmado o envolvimento de mais pessoas nos crimes. Os
vizinhos de Julia afirmaram que sua irmã L era alugada a homens influentes da região.
Ela era suspeita de ter vendido a irmã a um suposto Médico Pedófilo. O Juiz de menores
da cidade que era o pai de L e um de seus corruptores deu uma entrevista exclusiva ao
programa: nesta, ele disse repudiar Julia por explorar uma criança, mas não importava
onde L estava, o Conselho Tutelar junto com a polícia traria a menor de volta e ela
ficaria aos seus cuidados.

Julia chorava desesperada, negava ser cafetina da irmã, ao contrário: trabalhava


de doméstica para sustentar a criança. A culpa de tudo aquilo era do tal Doutor
Leopoldo, que deveria ser apenas um Trapaceiro, disfarçado de doutor! Julia disse ter
sido vítima de um Falso Médico que a seduziu com um monte de promessas; para
depois lhe encher de doenças venéreas! Enquanto falava coçava a virilha com as mãos
algemadas, dizia estar com sarna, cancro e sífilis e bom seria se não estivesse com
AIDS. Disse que as mulheres, coitadas, não podiam confiar nos homens: confiou no tal
Doutor Leopoldo e estava podre de doenças. Bom seria se ela não estivesse grávida,
afinal, os dois não haviam se cuidado. Ao final da entrevista o apresentador do
programa mostrou uma foto de L e fez uma descrição do Doutor Leopoldo, salientou
principalmente a barba longa usada pelo suspeito.

Elias passou a palma da mão direita sobre o rosto barbeado e deu uma
gargalhada. A Polícia não tinha pistas para pega-lo, até os documentos do Falso Médico
foram destruídos e só voltariam a existir quando seu criador o ressuscitasse. A foto da
menor mostrada na TV não se parecia em nada com a menina no quarto do hotel. Antes
de L se tornar Ana Gabriela, recebeu um disfarce permanente da parte de seu criador:
teve os cabelos cortados e alisados, mas foi Paulete quem os tingiu numa tonalidade

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mais escura. Nem o jeito de andar da garota e suas roupas eram iguais à antes de sua
transformação.

Elias começou a ensaiar Mãe Pretinha do Tucum, as mulheres idosas eram mais
difíceis de imitar que as jovens, mas se as preferia era por serem mais divertidas. Como
a mãe-de-santo era negra ele usou uma pasta preta sobre a pele postiça e enrugada. Pôs
uma peruca de cabelos crespos: vasta e parcialmente grisalha. Colocou suas lentes de
contato embaçadas. Usou uma cola para baixar as pálpebras inferiores. Pôs pequenos
chumaços de algodão no nariz para achatá-lo e dar-lhe característica negroide. Usou um
vestido branco e grande onde havia espumas que davam um enchimento, imitando as
gorduras de uma mulher na terceira idade. O pescoço cheio por uma massa de modelar
embaixo da pele postiça, também trazia colares de umbanda e candomblé. A velha se
equilibrava num cajado cujo cabo trazia a cabeça de um periquito incrustado na
madeira. Colocou o cachimbo da mãe preta num canto da boca e começou a imitá-la
com uma voz rouca. Olhou L na expectativa de vê-la sorrindo e para sua surpresa a
menina chorava.

Elias não acreditava que a menina pudesse estar chorando de saudades de casa,
afinal, lá ela não era mais que objeto de comércio da irmã. Os dois evitavam falar do
passado da garota na frente de Paulete, mas como este tinha ido ao saguão do hotel,
poderiam conversar sobre o que quisessem. Perguntou L porque estava chorando, como
não obteve resposta ele próprio respondeu: “Ela estava com saudades de Julia”! Sentia
falta de ser explorada pela corja de safados! Então podia voltar para Teixeira de Freitas,
se quisesse ele a levaria para seu pai... O Juiz Pedófilo da cidade!

Com sua lábia de malandro, conseguiu comover mais ainda a menina, que
chorou em dobro. L disse que não tinha saudade de Julia, mas também não queria que
ela ficasse presa por sua culpa. Até as doenças venéreas da irmã eram culpa sua, porque
se não fosse por ela, Julia e Elias não teriam feito sexo! Ele a repreendeu, dizendo que
não se culpasse. Foi dele a ideia de transar sem camisinha, para dar uma lição na
cafetina, esta merecia uma sarna para se coçar e um filho que lhe desse trabalho. Talvez
sendo mãe, fosse capaz de entender o quanto é triste uma criança ser explorada,
justamente por alguém em quem confia. Já as doenças venéreas foram para que visse os
perigos a que expunha sua própria irmã!

Elias aproveitou para contar um pouco de sua história e se colocar como um


exemplo a ser seguido: ele jamais sentiria remorsos por nada que fizesse. Sua vida
nunca tinha sido fácil. Foi expulso de casa pela intolerância de um homem que pregava
o amor pelos inimigos, mas era inimigo dos homens que praticavam o amor entre si.
Pregava o perdão, mas não foi capaz de perdoar a opção sexual do seu próprio filho:
assim era o seu pai. Seu pai era Pastor, ficou rico com o dinheiro que deveria ser doado
a Deus, mas Deus não precisava de dinheiro: “Só que seus filhos pobres sim”! Todas as
vezes que enganava alguém, rezava uma oração onde pedia mais malandragem para
trapacear melhor. Assim era Elias, um homem que escolheu ser errado sem se
decepcionar com isso. Se tivesse se formado em teologia poderia ser um Pastor muito
melhor que seu pai, mas sabia que não seria honesto o bastante, seria um religioso
hipócrita escondendo seus erros atrás de uma bíblia.

Era melhor ser o melhor dos bandidos que ser o pior dos Pastores! Os bons
nunca poderiam ser bons o bastante. Já ele gostava de fazer o melhor, mesmo se fosse o

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melhor de algo considerado ruim, como os crimes que praticava. Um Pastor por ética de
sua função, não poderia desviar dinheiro da igreja para o luxo. Já um malandro poderia
trapacear se fingindo de Pastor e ainda fazer o que quisesse do dinheiro ganhado, não
estaria infringindo a ética dos ladrões. Por isso escolheu ser um ladrão: para viver sem
regras e não ser obrigado a quebrá-las. Elias pediu a L que jamais sentisse pena de suas
vítimas ou remorsos de nada que fizesse a elas. Muitas só choravam por estarem sendo
as vítimas, pois se estivessem no lugar dos seus ofensores fariam muito pior que estes!

L não sabia dizer de maneira clara o que sentia, mas Elias apesar de não
conseguir sentir, entendia através de sua inteligência fria o calor de todos os sentimentos
humanos. Ele consolou L pelo que aconteceu a Julia, dizendo que esta era culpada,
aliás, todas as suas vítimas eram um pouco responsáveis pelo que lhes acontecia. Os
golpistas eram ladrões que viviam das ambições alheias. As vítimas eram ambiciosas,
por não serem espertas caiam nos golpes. Era a proposta de um carro pela metade do
valor. Era um cheque sem fundos aceito num negócio que poderia esperar por um
dinheiro de verdade. Era um dinheiro falso aceito sem uma avaliação demorada. Era um
bilhete de loteria premiado a disposição de qualquer um. Era uma multidão de pessoas a
espera de milagres, sem entenderem que os maiores milagres são aqueles que todos
podem fazer: buscar os médicos e os remédios na cura de doenças! “Nunca acreditar em
benefícios gratuitos, caindo de paraquedas sobre nossas cabeças”!

O mais natural era a realidade e nela as únicas mágicas não passavam de


truques. Não acreditar em adivinhos do futuro, pois todo futuro só poderia ser previsto
depois de passado e o maravilhoso disto, era cada um construir um amanhã que fosse só
seu. Todos estes que doavam o dinheiro com as próprias mãos, depois se sentiam
culpados por sua ingenuidade, por isso poucos procuravam a Polícia! Julia tinha sido
vítima dela própria, confiou sua irmã a um desconhecido, se ele fosse um assassino
psicopata L já estaria morta. Depois de Elias fez uma pausa em suas palavras, notou que
L estava mais calma e já não chorava mais.

Elias sabia que L apesar de sua maturidade precoce, ainda era apenas uma
criança, entrando no princípio da adolescência (aquela fase que muitos chamam de
aborrescência) as crianças se revoltam por serem tratadas desta forma, mas também não
querem ser adultas. Quando era um adolescente e apaixonou-se por Glória, eles faziam
planos de se casarem e terem muitos filhos. Ensaiavam como seria a educação dos
garotos e planejavam os erros que jamais cometeriam como pais. Se tivesse se casado
com Glória ao completarem maior idade, então ele poderia ter uma filha da idade de L.
Isso e o fato da menina estar se mostrando tão carente, despertavam nele um sentimento
paternal.

Elias sabia que não estava na idade de namorar uma garota pré-adolescente,
então o melhor a fazer era assumir o papel de ser o pai verdadeiro da menina. Paulete já
tinha se acostumado com a ideia de ser mãe, era sua a vez de assumir um papel que
fosse sincero. O Elias Ator atuaria como o pai de Ana Gabriela, mas seria o pai
verdadeiro da pequena L. Daquele dia em diante não teria mais relações sexuais ou
indecentes com a menina: isso não era papel de pai e nem de homem. Se ela quisesse
satisfazer suas concupiscências, seu novo tutor deixaria que arrumasse um namoradinho
da sua idade. Com carinho e ternura ele passou a mão sobre os cabelos de L e a abraçou.
Neste momento Paulete entrou no quarto e comovida com a cena juntou-se aos dois.

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Formaram uma tríade familiar incomum: com uma mãe do sexo masculino, uma criança
sem inocência e um pai que jamais repreenderia a filha, por enganar as pessoas.

Em apenas dois dias em Nova Friburgo, Elias alugara uma casa bem grande,
ficava entre o centro da cidade e a periferia. Ali seria o Terreiro de Candomblé Aruanda
de Oxalá, onde Mãe Pretinha do Tucum realizaria todos os tipos de trabalhos espirituais:
desde despachos para conquistar a pessoa amada até vodus para eliminar inimigos. No
terreiro Elias era o responsável pela personagem principal, Paulete e L eram assistentes
e só incorporavam espíritos se a Mãe Preta estivesse ocupada. O trio aproveitou o mais
que pode daquela nova peça teatral que representavam. Mãe Pretinha pedia todos os
tipos de comidas e bebidas sofisticadas para os orixás, mas quem desfrutava de tudo
eram eles. Dinheiro era doado para agradar aos exus. Roupas sob o pretexto de estarem
enfeitiçadas: eram entregues para uma incineração que jamais aconteceria.

Um casal de americanos, com uma filha adolescente visitou o Terreiro, eram


recém-chegados dos Estados Unidos. Mãe Pretinha disse que logo que chegaram ao
Brasil foram vítimas da ‘macumba brasileira’. Tinham que doar suas roupas para
anularem o feitiço. Dias depois Elias e Paulete vestiam as roupas do casal e L vestia as
roupas da filha deles. Já nos despachos que fazia a Mãe-de-santo pedia que os
beneficiados colocassem dinheiro para os orixás, mas eles só aceitariam notas graúdas,
como as de 50 e 100 reais: afinal, os orixás eram deuses; não eram mendigos para se
contentarem com esmolas!

Para a cura de enfermidades era necessário doar três notas do mais alto valor,
para Exu Saúde. O primeiro que passasse, pegando aquelas cédulas deixadas na calçada,
ficaria com as doenças. A pequena L disfarçava-se de menino e pegava o dinheiro,
fazendo a vítima do golpe, pensar que a doença tinha ido embora com ela. Na leitura de
sorte, Mãe Pretinha jogava os búzios e previa muita sorte para suas vítimas, ela não
cobrava nada, mas os beneficiados tinham que doar todo seu dinheiro, para as três
pessoas que vissem depois das previsões de futuro, pois eram as testemunhas de defesa
dos orixás (como só o trio de vigaristas ficava na sala das adivinhações, então o dinheiro
doado ia para eles).

Em todos os trabalhos espirituais que fazia, Elias expedia um certificado de


garantia com o prazo de 70 dias, se neste período os feitiços não surtissem o efeito
esperado: Mãe Pretinha do Tucum devolveria o dinheiro gasto por seus clientes. Como
iriam ficar apenas um mês e pouco na cidade, os 70 dias seria o prazo para o trio estar
longe do alcance do PROCON e da Polícia.

Elias fechou o Terreiro Aruanda de Oxalá, trocou o carro comprado em


Campos dos Goitacazes, por um bem melhor e mais novo, pagando o dono do veículo
com um de seus cheques. O trio partiu para a cidade de São Paulo, lá encontrariam um
dos maiores estelionatários do Brasil e América Latina: o nome do homem era Jorge
Fagundes, vulgo ‘Rei do Gado’. Ganhou este apelido por se passar por um rico
fazendeiro e aplicar o ‘Golpe da venda de gado’. Aplicou esta trapaça em fazendeiros de
Goiás e Mato Grosso. Fagundes criava um cenário em terras improdutivas, convidava o
futuro comprador do gado que era de outra cidade ou Estado, para visitar a fazenda. O
interessado via o gado no pasto e pagava por ele. Antes de o comprador ir buscá-lo
Fagundes o colocava em caminhões e seguia para outra fazenda improdutiva. Assim o
gado fazia o milagre da multiplicação, sendo vendido diversas vezes.

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