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A TEORIA MARXISTA DO DIREITO

DE EVGUIÉNI PACHUKANIS:
PREMISSAS METODOLÓGICAS, CONCEITOS CENTRAIS
E UMA CRÍTICA A PARTIR DE HANS KELSEN1

EVGENY PASHUKANIS’ MARXIST JURISPRUDENCE:


METHODOLOGICAL PREMISES, CENTRAL CONCEPTS AND A
CRITIQUE STEMMING FROM HANS KELSEN

Marco Antonio Toresan2

Resumo: A partir de uma pesquisa bibliográfica, busca-se intro-


duzir o leitor à teoria do direito do jurista soviético Evguiéni Pa-
chukanis, apontando para o caráter condicionado da crítica que
ARTIGO

realiza aos conceitos jurídicos fundamentais. Tomando como base


sua principal obra, “Teoria Geral do Direito e Marxismo”, inicia-se
expondo seus objetivos declarados e as premissas metodológicas
que adota no trabalho. A segunda parte do artigo se dedica ao cerne
do pensamento teórico de Pachukanis: sua análise da forma jurídi-
ca a partir do conceito fundamental de relação jurídica, bem como
de seu surgimento a partir da noção emergente de subjetividade
Revista dos Estudantes de Direito

jurídica. Em seguida são discutidas as formulações de Pachukanis a


da Universidade de Brasília;

respeito de alguns dos principais problemas clássicos da Teoria Ge-


ral do Direito. Finalmente é realizada uma crítica metodológica ao
pensamento do jurista soviético a partir de apontamentos de Hans
Kelsen, que lançam luz à forma como duas das premissas adota-
18ª edição

das por Pachukanis condicionam os resultados que obtém. Con-


1 O presente artigo consiste em uma tradução adaptada de trabalho originalmente
apresentado (não publicado) no seminário Rechtskritik, ministrado pelo Univ.-Prof. Dr.
Alexander Somek no Semestre de Verão de 2018 no Instituto de Filosofia do Direito
da Faculdade de Direito da Universidade de Viena. As passagens citadas de obras já
traduzidas para o português foram retiradas das edições disponíveis no mercado edito-
rial brasileiro. Passagens de textos ainda não disponíveis em idioma vernáculo foram
traduzidas pelo autor, remetendo-se à redação original em nota de rodapé.
2 Graduando em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina. Realizou inter-
câmbio acadêmico na Faculdade de Direito da Universidade de Viena (2017-2018). Foi
Monitor Voluntário da Disciplina de Filosofia do Direito (2018.2) e Monitor Bolsista da
Disciplina de Teoria do Direito II (2019). Membro do GEFID - Grupo de Estudos em
Filosofia do Direito (CFH/UFSC).

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clui-se, junto a Kelsen, que, apesar da originalidade da teoria jurídica
de Pachukanis, que busca analisar o direito para além de seu eventual
conteúdo, o autor, para defender sua tese principal, acaba ignorando a
crítica feita pela Teoria Pura do Direito ao dualismo na jurisprudência
tradicional.
Palavras-chave: Pachukanis; teoria marxista do direito; Kelsen; críti-
ca metodológica.

Abstract: Through a bibliographic research, this paper aims to intro-


duce the reader to Evgeny Pashukanis’ Marxist jurisprudence, point-
ing out to the conditioned character of the criticism he performs on the
fundamental legal concepts. Based on his main work, “General Theory
of Law and Marxism”, it begins by stating his main goals and the meth-
odological premises he adopts. The following section will be dedicated
to the core of his thought: the analysis of the legal form through the
fundamental concept of legal relation, which stems from the emer-
gent notion of legal personality. Thereafter, Pashukanis’ conceptions
on some of the main topics of Jurisprudence will be addressed. Finally,
a methodological critic on the soviet legal theorist’s thought will be
sketched. It will be done by recurring to some of Hans Kelsen’s early
stage work on materialist conceptions on Jurisprudence, which points
out to the conditioning effect exerted by two of the premises adopt-
ed by Pashukanis on the outcome of his work. The paper concludes,
alongside with Kelsen, that, in order to sustain his main thesis, he ends
up ignoring the critic on the dualism on traditional Jurisprudence de-
velopt by the Pure Theory of Law.
Keywords: Pashukanis; Marxist Jurisprudence; Kelsen; methodologi-
cal criticism.

Submissão: 02/05/2020
Aceite: 27/06/2020

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“... o corpo como um todo, a alma, a vontade, toda essa pessoa limitada
como individualidade pelo direito civil” (MUSIL, 2018, p. 36).

1. INTRODUÇÃO
Nascido em 1891 na Rússia Czarista, Evguiéni Pachukanis é consi-
derado o principal teórico soviético do direito. No ano de 1924 foi lan-
çada sua magnum opus: Teoria Geral do Direito e Marxismo, tida como
um dos principais livros da teoria marxista dedicados exclusivamente
à problemática jurídica. Inicialmente encontrando certa ressonância3,
as teses centrais que desenvolve no livro acabaram sendo deixadas de
lado devido à sua não adoção no contexto político da União das Re-
públicas Socialistas Soviéticas. Após longo tempo de esquecimento,
recentemente Pachukanis voltou a atrair a atenção de pensadores mar-
xistas (WALLOSCHKE, 2003).
A redução da influência inicial de Pachukanis nos assuntos jurídi-
cos da URSS se explica pela incompatibilidade de sua tese central, que
defendia a correlação fundamental entre a forma jurídica e a forma da
mercadoria, ou seja, entre o Direito como tal e o Capitalismo, com a as-
censão de Josef Stalin. Apesar de ter realizado importantes alterações
socialistas no conteúdo das normas, este líder soviético teria mantido a
estrutura jurídica do capitalismo em sua essência, i.e., a forma jurídica.
Essa contraposição resultou na misteriosa prisão e posterior execução
de Pachukanis em 1937 (HARMS, 2009).
A estrutura do artigo segue, a princípio, aproximadamente àquela
do livro. No primeiro trecho se discutirão o objetivo declarado de Pa-
chukanis, nomeadamente “uma tentativa de aproximação da forma do
direito e da forma da mercadoria” (STUTCHKA apud PACHUKANIS,
2017a, p. 60) através de uma crítica aos conceitos fundamentais do
direito, bem como as premissas metodológicas adotadas para atingir
esse objetivo. Também aí se discorrerá acerca das consequências dos

3 A recepção do livro no mundo germânico é digna de nota, especialmente no que diz respei-
to às querelas [Auseinandersetzungen] com os dois mais influentes autores jurídicos de lín-
gua alemã da primeira metade do século XX, Hans Kelsen e Gustav Radbruch. Cf. HARMS,
A. Warenform und Rechtsform: zur Rechtstheorie von Eugen Paschukanis. Freiburg: ça ira
Verlag, 2009, pp. 69-89 (Capítulo 2: „Die zeitgenössische Rezeption und Diskussion“, ou, em
tradução nossa: “A recepção e discussão contemporânea”).

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pressupostos utilizados no que diz respeito à relação entre Direito e
ideologia, tema caro a autores marxistas. A segunda seção se ocupará
do núcleo de seu pensamento jurídico: a relação jurídica, enquanto ex-
pressão da forma do direito, e sua origem resultante da ideia de subjeti-
vidade jurídica necessária ao surgimento do mercado. A terceira parte
do artigo se dedicará à análise pachukaniana de problemas clássicos da
Teoria do Direito (relações entre Direito, Estado e moral), resultante da
concepção que formula sobre a forma jurídica. Por fim, comentários
críticos à adoção das premissas metodológicas de Pachukanis serão
desenvolvidos, tomando fundamentalmente por base as considerações
de Hans Kelsen em um ensaio-reposta publicado em 1931. Com esses
comentários espera-se oferecer uma poderosa crítica à concepção do
Direito desenvolvida por Pachukanis.

2. TENTATIVA DE UMA CRÍTICA AOS


CONCEITOS JURÍDICOS FUNDAMENTAIS4
Em que pese tenha iniciado sua vida acadêmica através do estudo do
Direito, não se encontra em Karl Marx algum trabalho imediata e predo-
minantemente dirigido à problemática jurídica. A tarefa de uma crítica
marxista do direito acabou, então, sendo transferida a autores marxistas
posteriores. Alguns desses até se ocuparam de forma mais ou menos
preponderante com o Direito enquanto objeto de estudo, lançando mão
do aparato teórico-crítico desenvolvido n’“O Capital”. Contudo, nenhu-
ma dessas análises deu conta do “estudo da superestrutura jurídica como
fenômeno objetivo”, já que para os teóricos marxistas “o traço caracterís-
tico central, essencial e único dos fenômenos jurídicos é o momento da
regulamentação social (estatal) coercitiva” (PACHUKANIS, 2017a, p. 61).
Como consequência desse ponto de partida compartilhado pelos es-
tudiosos marxistas do direito que precederam Pachukanis, se tem uma
superestimação do momento coercitivo como objeto de uma crítica do di-
reito e do estado. Destarte, as categorias fundamentais de “sujeito de
direito” e “relação jurídica” são subestimadas e negligenciadas enquanto
objeto de crítica, aparecendo como meros conceitos ideológicos.
4 Trata-se do subtítulo da obra em sua edição alemã (ça ira Verlag, 2003): “tentativa de uma crí-
tica aos conceitos jurídicos fundamentais” [Versuch einer Kritik der juristischen Grundbegriffe].

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Pachukanis até concorda com Stutchka quando ele coloca o pro-
blema do direito como “problema das relações sociais”. No entanto,
Stutchka concebe tais relações exclusivamente a partir de uma crítica
da dominação de classe. Isso o permite compreender a relação jurídica
como relação social genérica, i.e., relação de dominação, mas não como
relação social com uma forma própria que lhe especifica. “Essa defini-
ção revela o conteúdo de classe contido nas formas jurídicas, mas não
nos explica por que esse conteúdo assume tal forma” (PACHUKANIS,
2017a, p. 96).
A tarefa que Pachukanis se coloca deriva, portanto, das deficiên-
cias que identifica na crítica marxista ao direito que o antecedeu. O
jurista soviético se propõe, então, a revelar a forma própria do direito,
apontando para sua relação de proximidade com a forma da merca-
doria. Sem negar o conteúdo de classe do direito burguês, ele dá pros-
seguimento à crítica, elevando-a do plano material ao plano formal.
Através da manipulação crítica dos conceitos jurídicos fundamentais
(sujeito de direito, relação jurídica, Estado, propriedade), Pachukanis
expõe suas raízes lógicas e sociológicas, revelando a forma jurídica que
lhes é subjacente. A partir daí, é capaz de sustentar a tese da correspon-
dência da forma do direito com a forma da mercadoria, conceito igual-
mente central à Crítica da Economia Política.
Com efeito, essa correspondência constitui a tese principal da Teo-
ria Geral do Direito e Marxismo e o permite concluir pela relativida-
de e condicionalidade histórica do Direito. Tanto a forma da merca-
doria, originada na relação recíproca dos possuidores de mercadoria
[Warenbesitzer], como a forma do direito, originada da relação jurídi-
ca enquanto relação entre sujeitos de direito, exigem a existência de
um “princípio da troca de equivalentes” – ou, “princípio da equivalên-
cia” – (PACHUKANIS, 2017a), encontrado tão-somente na sociedade
capitalista burguesa completamente desenvolvida. Enquanto resultado
das relações de produção capitalista, a forma jurídica não aparece com-
pletamente desenvolvida fora do Capitalismo.
“A extinção do direito, e com ela a do Estado, acontece apenas [...]
quando finalmente estiver eliminada a forma da relação de equivalência”
(PACHUKANIS, 2017a, p. 79, grifo do autor). A forma do direito e a for-
ma da mercadoria são intrinsicamente relacionadas, pois ambas expres-

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sam um mesmo fenômeno, originário da infraestrutura econômica: as
relações de produção e de circulação. A superação dessa infraestrutura
econômica e de sua correspondente forma de socialização significaria a
extinção não apenas do Capitalismo, mas também do próprio Direito.
Em síntese: o socialismo é incompatível com a forma do direito.
Pachukanis baseia sua teoria na premissa materialista extraída
d’“O Capital” que pressupõe a existência de um “substrato histórico
real daquelas abstrações cognitivas que utilizamos” (2017a, p. 83). To-
das as ciências se voltam a uma realidade total e concreta, construindo
seu objeto de conhecimento através de distintos métodos. Portanto,
as ciências diferenciam-se não tanto por seus objetos, quanto pelos
seus métodos, que as permitem decompor a totalidade da realidade
em elementos mais simples. Nas ciências da natureza o processo de
decomposição da totalidade da realidade se sucede de maneira ime-
diata à matéria. As ciências sociais, por sua vez, necessitam elaborar
abstrações e conceitos através dos quais se lhes é permitido construir
seu objeto de conhecimento, e por intermédio dos quais conseguem
interpretar o mundo social. Portanto, a abstração funciona nas ciências
sociais como um instrumento capaz de formular conceitos, a partir dos
quais a realidade concreta em sua totalidade é passível de construção
epistemológica. É exatamente a adoção dessa premissa metodológica
que confere à análise dos conceitos jurídicos fundamentais o grau de
relevância de que gozam no pensamento de Pachukanis: consistem no
caminho à realidade material subjacente5.
Se segue da pressuposição da existência de um substrato real la-
tente às abstrações científicas “que o desenvolvimento dialético dos
conceitos corresponde ao desenvolvimento dialético do próprio pro-
cesso histórico” (PACHUKANIS, 2017a, p. 86). De igual forma, da já
mencionada “cooriginalidade” das formas do direito e da mercadoria
(nas relações de produção e circulação), se segue certo paralelismo
entre o desenvolvimento dos pensamentos jurídico e econômico (PA-
CHUKANIS, 2017a).
A partir das considerações metodológicas já discutidas, é possível
compreender a originalidade do pensamento pachukaniano a respeito
5 No que se refere aos métodos jurídicos, escreve Pachukanis: “Devemos começar pela aná-
lise da forma jurídica em seu aspecto mais abstrato e puro e passar, depois, pelo caminho de
uma gradual complexidade até a concretização histórica.” (2017a, p. 86).

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de um tema caro a autores marxistas que se dedicaram ao fenôme-
no jurídico: a relação entre Direito e ideologia. Como consequência
de suas premissas, Pachukanis nega qualquer tipo de análise marxista
que descreve o direito como mera ideologia. Consoante seus próprios
objetivos (analisar o direito em sua forma, além de seu conteúdo), ele
se opõe a outros marxistas que se limitam a conceber o direito como
mero aparato ideológico do Estado. Sem negar a função ideológica do
Direito (e de seu conceito científico), Pachukanis se impõe a tarefa de
transcendê-la, trazendo à baila a realidade concreta que subjaz ao fe-
nômeno jurídico. “O Estado não é apenas uma forma ideológica, ele é,
ao mesmo tempo, uma forma de ser social. O caráter ideológico de um
conceito não elimina aquelas relações reais e materiais que este exprime”
(PACHUKANIS, 2017a, p. 89, grifo nosso).

A crítica pachukaniana do direito, ao se fundamentar no


método que Marx desenvolve em O capital, permite supe-
rar – no interior do marxismo – as representações vulgares
que apresentam o direito como um “instrumento” de clas-
se, privilegiando o conteúdo normativo em vez de atender
à exigência metodológica de Marx e dar conta das razões
porque uma certa relação social adquire, sob determinadas
condições – e não outras –, precisamente uma forma jurí-
dica. (NAVES, 2008, p. 20, grifo do autor).

3. A FORMA DO DIREITO: RELAÇÃO E


SUBJETIVIDADE JURÍDICA
Os conceitos jurídicos fundamentais aos quais Pachukanis dirige
sua crítica dão expressão às relações jurídicas, que, por sua vez, ex-
pressam a forma do direito. Enquanto relações sociais entre sujeitos de
direito, elas consistem basicamente em relações recíprocas entre pos-
suidores de mercadoria e espelham as “relações entre os produtos do
trabalho tornados mercadoria” (PACHUKANIS, 2017a, p. 97).
Para construir a sua tese de que a relação jurídica constitui a “célu-
la central e embrionária do tecido jurídico”, o jurista soviético volta-se
ao problema da ligação entre a relação jurídica e a norma. Para tanto,

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elege heuristicamente uma expressão, que atribui à jurisprudência tra-
dicional, como objeto de seu escrutínio: “a norma gera a relação ju-
rídica” (PACHUKANIS, 2017b, p. 112, grifo do autor). Sua análise do
problema se dá em dois níveis: real e lógico.
Partindo do ponto de vista real, sua crítica concentra-se na abor-
dagem “normativista”, principalmente na ainda em construção Teoria
Pura do Direito de Hans Kelsen, para quem, segundo ele, “a norma con-
siderada em todas as relações é o momento primário” (PACHUKANIS,
2017a, p. 101). Essa concepção só poderia ser aceita sob a pressuposição
da existência de uma autoridade que põe a norma [normsetzende Au-
torität], ou seja, de uma organização política. Nesse ponto de vista, a
associação entre a norma e a relação jurídica se reduziria ao “problema
das relações mútuas entre as superestruturas jurídica e política”, que
seria concebido pelos positivistas normativistas como se a primeira
(jurídica) fosse mera consequência da segunda (política).
Nesse ponto a crítica pachuakaniana a Hans Kelsen é passível de
comparação com a posteriormente formulada por Carl Schmitt em um
panfleto de 1934, visto que ambos destacam um certo elemento “deci-
sionista” no positivismo jurídico kelseniano6.
6 Em “Sobre os Três Tipos do Pensamento Jurídico” Schmitt descreve três tipos ideais “eter-
nos” de pensamento jurídico: normativismo, decisionismo e (por ele denominado) pensa-
mento do ordenamento concreto [konkretes Ordnungsdenken]. Ao primeiro tipo corres-
ponde a concepção de Direito como regra, ao segundo como decisão, e ao terceiro como
ordem [Ordnung]. De acordo com ele, o positivismo jurídico – cujo maior representante
seria Hans Kelsen – não corresponderia a nenhum desses tipos ideais. Schmitt o descreve
antes como uma combinação entre normativismo e decisionismo: ainda que o direito seja
concebido como regra abstrata (norma), para o positivista “esse direito não é nada mais do
que ‘instituição [Satzung] humana’” (SCHMITT, 2011, p. 150). Esse elemento decisionista
do postitivsmo jurídico, enfatizado por Schmitt, se relaciona com a crítica de Pachukanis
à necessidade de pressuposição de uma autoridade que põe a norma [normsetzende Autori-
tät], por parte do pensamento positivista. Em Schmitt e em seu panfleto político dirigido à
defesa do pensamento de ordenamento concreto (uma espécie de versão por ele concebida
de institucionalismo) o ponto principal da crítica ao positivismo jurídico não se encontra,
como em Pachukanis, no plano da “forma do direito”, mas no plano da “situação normal
pressuposta” (SCHMITT, 2011, p. 155), necessária para a definição substantiva do conteúdo
do Direito (interpretação/aplicação), que ele busca vincular à validade jurídica das normas:
“A normalidade da situação concreta, regulamentada pela norma, e do tipo concreto por
ela pressuposto não é, por conseguinte, um pressuposto exterior a ser desconsiderado pela
ciência jurídica, mas um traço distintivo jurídico, interno da essência da validade da norma
e uma determinação normativa da própria norma” (SCHMITT, 2011, p. 144). É nesse sentido
que o jurista alemão alude à referência [Bezug] sem mediações entre os conceitos jurídicos
“à realidade concreta de uma relação vital [Lebensverhältnis]” (SCHMITT, 2011, p. 173).
Em Pachukanis, as relações de produção e circulação (que interpretamos como a concepção

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Ainda no plano real de análise, Pachukanis rejeita o positivismo
normativista (e a ideia de que é a norma que geraria a relação jurídica),
defendendo o primado da relação sobre a norma. Seu principal argu-
mento consiste no fato de que a relação jurídica pode existir sem uma
ordem jurídica garantidora, isso é, sem o Estado na qualidade de força
terceira (externa à relação) 7, e que de fato existiu antes do surgimen-
to do Estado moderno. Sem a presença de uma das duas partes que a
constituem, porém, não há que se falar em relação jurídica. Em síntese,
a análise do problema do liame entre a norma e a relação jurídica, a
partir de um ponto de vista realista, aponta para o fato de que a essa
não é produzida por aquela, mas antes é “diretamente gerada pelas re-
lações materiais de produção existentes entre as pessoas” (PACHUKA-
NIS, 2017a, p. 106).
A análise lógica dessa relação, por sua vez, requer muito mais es-
forços teóricos, na medida em que perpassa pelo estudo da natureza
própria da regulação jurídica, da sua manifestação objetiva vis-à-vis
a noção de direito subjetivo, culminando na investigação a cerca da
subjetividade jurídica como característica própria do indivíduo que se
relaciona juridicamente.
Para evidenciar a forma lógica da regulação jurídica, Pachukanis
apresenta comentários introdutórios ao “problema filosófico do homem
enquanto bourgeois e do homem enquanto citoyen”, que seria uma ma-
marxista/materialista das “relações vitais” mencionadas por Carl Schmitt) se referem de ma-
neira ainda mais imediata às relações jurídicas. Isso, pois em Pachukanis o Estado enquanto
autoridade que prescreve a norma desempenha papel ainda menos significativo. A violência
estatal aparece simplesmente como garante das relações jurídicas, imediatamente originá-
rias das relações de produção e circulação. As “relações vitais” de Schmitt entrem em cena
principalmente no momento de determinação da “situação normal” pressuposta pela norma
(determinação essa necessária à sua aplicação ao caso concreto), incidindo sobre o problema
da validade somente mediatamente. Em Pachukanis, todavia, essa própria determinação é
negada, já que ele identifica validade e existência das normas e consequentemente prescinde
do Estado enquanto produtor de normas jurídicas validas, estabelecendo, de acordo com a
própria natureza das relações jurídicas que expressam a forma do direito, a imediatidade
entre as relações de produção e as relações jurídicas. Cf. SCHMITT, C. Sobre os Três Tipos do
Pensamento Jurídico. In: MACEDO JR., R. P. Carl Schmitt e a Fundamentação do Direito. 2ª
Edição. São Paulo: Saraiva, 2011, pp. 131-76.
7 Um exemplo para a prescindibilidade de uma força terceira (externa) no tocante à caracte-
rização da juridicididade de uma relação é o direito internacional público moderno, que não
disporia de nenhum órgão central sancionador (quando da publicação da obra, em 1924),
tendo não obstante validade jurídica incontroversa. A maioria das relações jurídicas entre
Estados modernos eram (e são) considerados juridicamente vinculantes apesar da inexistên-
cia de um “Estado Mundial”.

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nifestação da contraposição entre interesses individuais privados em
relação a interesses sociais gerais (vontade privada e vontade geral). A
análise da relação entre os interesses privados do indivíduo e os inte-
resses gerais dos cidadãos, expressados através da vontade do Estado,
se relaciona diretamente com o desvelamento da forma do Direito, pois
possibilita reconhecer um fenômeno a que se pode caracterizar como
a diversidade da natureza da regulação jurídica (compreendida aqui em
seu sentido lato).
Em virtude da concepção segundo a qual a relação jurídica é pro-
duto de uma norma preexistente, a jurisprudência tradicional caracte-
rizaria a regulação das relações sociais como jurídica de forma mais ou
menos homogênea, adotando uma compreensão genético-formal do
fenômeno jurídico: a juridicidade das mais diversas normas deriva-se
de sua origem. Para os juspositivistas, tal origem seria o Estado, ao
passo que para os jusnaturalistas seria uma concepção metafísica de
direito natural.
Pachukanis objetiva, porém, realizar uma diferenciação entre as
normas que regulam as relações jurídicas enquanto expressão da forma
do direito e as normas que, apesar de formalmente jurídicas, regulam
estados de coisas de forma meramente técnica. Verifica-se, assim, uma
diversidade quanto à natureza da regulação jurídica, concebida pela
jurisprudência tradicional de forma homogênea. Pachukanis introduz
a distinção em dois tipos de normas: regulação jurídica (em sentido
estrito) e regulação técnica.

Uma das premissas fundamentais da regulamentação ju-


rídica é, portanto, o antagonismo dos interesses privados.
Isso é, ao mesmo tempo, uma premissa lógica da forma
jurídica e uma causa real do desenvolvimento da superes-
trutura jurídica. O comportamento das pessoas pode ser
regulado pelas mais diferentes regras, mas o momento ju-
rídico dessa regulamentação começa onde têm início as di-
ferenças e oposições de interesses. [...] De modo contrário,
a unidade de finalidades representa a premissa da regula-
mentação técnica. (PACHUKANIS, 2017a, p. 94).

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As normas jurídicas strictu sensu dirigem-se às relações sociais en-
volvendo o homem enquanto bourgeois, ao passo que a as normas téc-
nicas regulam as situações que envolvem o homem enquanto citoyen.
Das diferentes premissas lógicas que permitem distinguir um tipo de
norma do outro resultam dois critérios, segundo os quais se pode julgar
o exercício de coerção relativo a cada um dos tipos de regulação. Ao
pressuposto antagonismo dos interesses privados das normas jurídicas
corresponde o critério formal da permissibilidade jurídica, enquanto à
pressuposta unidade de finalidades das normas técnicas corresponde o
critério material da racionalidade instrumental8.
Na compreensão corrente, o direito regula relações sociais. Em
termos próprios da jurisprudência tradicional, isso significaria que é
a norma jurídica que disciplina as diversas relações entre os homens.
Para Pachukanis, no entanto, o momento primordial do direito não
é a norma, mas a própria relação jurídica, que não deixa de ser uma
relação social (específica). Nesses termos, poder-se-ia vislumbrar uma
tautologia segundo a qual a compreensão corrente traduzir-se-ia em:
“relações sociais regulam relações sociais”.

8 Um exemplo extrajurídico de norma técnica são as regras médicas. Em uma dada opera-
ção cirúrgica, por exemplo, não existe nenhum tipo de antagonismo de interesses entre o
paciente e o médico. Por isso, a regulação da medicina só pode ser avaliada sob o ponto de
vista de sua racionalidade instrumental, isto é, considerando apenas sua idoneidade para
a consecução de seus fins (no exemplo, a cura do paciente através da intervenção cirúrgi-
ca). Porém, no que diz respeito à análise da forma jurídica, a diferenciação entre normas
técnicas e normas jurídicas em sentido estrito é mais interessante e relevante dentro do
quadro das normas jurídicas em sentido lato, i.e., daquelas normas formalmente classifica-
das pela doutrina tradicional como jurídicas. Nesse contexto, Pachukanis apresenta como
exemplos o “Cronograma de Partidas de Trem”, que regula o tráfego ferroviário, e as regras
de Responsabilidade Civil sobre a atividade ferroviária. Ainda que ambas normativas sejam
formalmente classificadas como jurídicas, por terem sido postas pelo Estado, elas regulam
relações sociais de forma completamente distinta. Apenas as normas de Responsabilidade
Civil sobre a atividade ferroviária, onde o antagonismo de interesses privados é pressuposto
(entre as companhias ferroviárias e as empresas de carregamento com elas contratantes, por
exemplo), dão expressão à forma jurídica. A extinção do direito (e de sua forma) defendida
por Pachukanis toma como base, com efeito, uma certa “tecnização” das regras sociais. No
âmbito do direito criminal, por exemplo, o jurista soviético advoga a paulatina substituição
das normas jurídico-penais, cujo fundamento no direito burguês é a proporcionalidade da
pena (e que por isso encarnam a forma do direito e seu princípio imanente da equivalência,
que é reflexo do antagonismo de interesses), por normas técnico-penais, cujo fundamento
seria a defesa social. “A coerção, como medida de defesa, é um ato de pura conveniência [de
racionalidade instrumental] e, como tal, pode ser regulada por regras técnicas” (PACHUKA-
NIS, 2017b, p. 222).

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O desenvolvimento do capitalismo e a sofisticação das relações de
produção e circulação de mercadorias geram novas formas de sociali-
zação que transcendem à categoria genérica de relação social, fazen-
do com que, em certas circunstâncias, as relações sociais venham a se
revestir de uma forma especificamente jurídica. “Se excluirmos dessa
fórmula certo antropomorfismo a ela inerente, ela se reduziria à se-
guinte proposição: a regulação das relações sociais, em determinadas
condições, assume caráter jurídico” (PACHUKANIS, 2017b, p. 103, grifo
do autor). A partir da distinção entre regulação jurídica em sentido
estrito e regulação técnica se conclui que uma dada norma assume um
caráter eminentemente jurídico quando parte da premissa fundamen-
tal do antagonismo dos interesses privados.
Essas considerações nos dirigem ao cerne das reflexões de Pa-
chukanis sobre o liame entre a norma e a relação jurídica a partir de
um ponto de vista lógico: a problemática do direito subjetivo e sua
oposição ao direito objetivo. De acordo com ele essa antiga questão
da teoria do direito consiste tanto num caso específico do já mencio-
nado “problema filosófico do homem enquanto bourgeois e do homem
enquanto citoyen”, quanto numa epítome [Inbegriff] e mais alta repre-
sentação da ambivalência e dualidade da forma do direito e de seu con-
ceito científico9.
Assim como na análise sob o ponto de vista real, também a análise
lógica da cisão dualista interna do conceito de direito se dirige contra a
“postura normativista”, que, como já visto, compreende o direito como
conjunto de normas postas pelo Estado, e, por isso, reconhece apenas o
direito objetivo como essencial: o direito subjetivo seria representado
como uma sombra da norma objetiva (PACHUKANIS, 2017a).
9 O direito enquanto forma só seria apreensível a partir da compreensão de suas dicotomias.
A construção do direito enquanto objeto de uma teoria do direito materialista teria que levar
em consideração a ligação entre os conceitos fundamentais dicotômicos e contraditórios do
direito e a realidade burguesa capitalista, na qual a forma jurídica se desenvolve plenamen-
te. (PACHUKANIS, 2017a, p. 75). Esses pressupostos serão duramente criticados por Hans
Kelsen (cf. Seção 4 do presente trabalho). Outra manifestação da ambivalência e dualidade
do conceito de direito com a qual Pachukanis se ocupa é a dicotomia direito público versus
direito privado, até hoje muito utilizada. “É essa mesma contradição a característica distin-
tiva da forma jurídica como tal. A separação do direito em público e privado caracteriza
essa forma tanto do ponto de vista lógico como do ponto de vista histórico”. (2017a, p. 114).
Aqui fica muito evidente que, na teoria marxista do direito de Pachukanis, a construção do
conceito de direito a partir de “pares de oposições” [Gegensatzpaaren] corresponde a uma
oposição [Gegensätzlichkeit] e até contradição intrínseca à sua forma.

252 18º EDIÇÃO


Pachukanis até admite a identificação feita por Kelsen10 entre o direi-
to subjetivo enquanto pretensão de uma parte com a obrigação da outra
parte correspondente àquela pretensão. Consoante sua concepção da ime-
diatidade entre as relações de produção e as relações jurídicas, contudo, ele
rechaça “o desejo de conferir à ideia de regulamentação externa o momen-
to lógico fundamental do direito que nos leva a identificar o direito como
uma ordem social autoritariamente estabelecida” (PACHUKANIS, 2017a,
p. 110), isto é, identificar o direito subjetivo com o direito objetivo11.
Qualquer tentativa de eliminar a contradição entre as distintas ma-
nifestações do conceito de direito (law e right) através de sua identifica-
ção é rejeitada. Ainda que Pachukanis identifique o direito de uma pes-
soa com a obrigação correspondente de outra, para ele a ambivalência
do conceito de direito não pode ser explicada através de uma simples
combinação e conseguinte identificação entre imperativo estatal (pres-
crição jurídica) e os deveres por ele impostos. A partir da análise do di-
reito de propriedade12, condição de existência da sociedade capitalista,
Pachukanis conclui que nem a norma objetiva, nem o dever subjetivo
(correspondente a uma pretensão) seriam o primordial, mas sim o direito
subjetivo independente, “pois ele, em última instância, apoia-se nos in-
teresses materiais que existem independentemente de regulamentação
externa, ou seja, consciente, da vida social”. (2017a, p. 109).
10 Uma epígrafe da segunda edição da Teoria Pura do Direito (1960), ainda que bastante
posterior à Teoria Geral do Direito e Marxismo (1924), sintetiza essa identificação, admitida
por ambos os autores: “Esta situação, designada como ‘direito’ ou ‘pretensão’ de um indiví-
duo, não é, porém, outra coisa senão o dever do outro ou dos outros. Se, neste caso, se fala
de um direito subjetivo ou de uma pretensão de um indivíduo, como se este direito ou esta
pretensão fosse algo diverso do dever do outro (ou dos outros), cria-se a aparência de duas
situações juridicamente relevantes onde só uma existe” (KELSEN, 2006, p. 142). Para uma
síntese da concepção kelseniana de direito subjetivo cf. KELSEN, H. Teoria Pura do Direito.
7ª Edição. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 162.
11 Cf. KELSEN, H. Allgemeine Rechtslehre im Lichte Materialistischer Gechichtsauffassung.
In: ___. Demokratie und Sozialismus: Ausgewählte Aufsätze. Wien: Verlag der Wiener Volks-
buchhandlung, 1967, p. 109: “Assim o dever jurídico é reconhecido como a única função
essencial do direito objetivo” e “Reduzindo-se de tal forma o direito subjetivo ao objetivo,
é excluída qualquer função ideológica” (tradução nossa). No original: „Damit ist die Rechts-
pflicht als die allein wesentliche Funktion des objektiven Rechts erkannt“ e „Wird das subjektive
Recht so auf das objektive reduziert, in das objektive zurückgenommen, ist jeder ideologische
Mißbrauch ausgeschlossen“.
12 Em sua forma totalmente desenvolvida, na condição de um mercado burguês capitalista,
a propriedade se manifesta como livre disposição dos “produtos do trabalho tornados merca-
doria”, tornando-se, então, através do ato da troca, no substrato material da forma do direito.
(PACHUKANIS, 2017a, p. 118).

253 18º EDIÇÃO


Enquanto expressão jurídica dos interesses dos sujeitos econômi-
cos, o direito subjetivo pode ser descrito como “vontade presumida
juridicamente” 13 (PACHUKANIS, 2017a, p. 121). A análise do conceito
jurídico fundamental de sujeito de direito torna-se, então, indispen-
sável, não só por se referir a uma das partes constituidoras da relação
jurídica, mas principalmente porque o sujeito de direito se manifesta
fundamentalmente como “titular e portador” de direitos subjetivos. A
persona jurídica concentra em si interesses juridicamente reconheci-
dos, cujos antagonismos com os de outro sujeito de direito constitui
a premissa fundamental da regulação jurídica, tal qual concebida pelo
jurista soviético. As relações jurídicas, que surgem a partir das relações
de produção e circulação e as expressam, existem entre dois sujeitos de
direito e são garantidas por uma ordem objetiva. Todavia, essa ordem
só pode ser caracterizada como jurídica quando pressupõe disputas e
litígios potenciais entre os sujeitos que compõe as relações que ela ga-
rante. É por isso que Pachukanis se refere ao sujeito de direito como “o
átomo da teoria jurídica, o elemento mais simples e indivisível, que não
pode mais ser decomposto” (2017a, p.117).
Por essa razão, o próximo e quiçá mais importante passo para o
desvelamento da forma do direito consiste na investigação sobre o fe-
nômeno da subjetividade jurídica. Os pontos principais de tal investi-
gação deixam-se exprimir através das seguintes indagações: sob quais
condições, por que e como o homem se torna sujeito de direito? As res-
postas a esses questionamentos permitem a Pachukanis atingir o obje-
tivo central de seu trabalho, qual seja a aproximação da forma jurídica
à forma da mercadoria14.

13 Sobre o papel da teoria da vontade na construção do conceito de sujeito de direito, cf.


PACHUKANIS, 2017a, p. 123.
14 As condições materiais que condicionam o surgimento do sujeito de direito e o pro-
cesso histórico de juridificação [Verrechtlichung] do homem correspondem de certa forma
às condições sob as quais se dá a emergência do Estado moderno. Essa correlação já fora
mencionada no comentário a respeito de certo paralelismo entre o desenvolvimento dos
pensamentos jurídico e econômico. Refere-se, com efeito, à tese central da obra, segundo
a qual o desenvolvimento e realização completa da sociedade capitalista burguesa e de sua
forma específica de socialização geram a forma jurídica e a forma da mercadoria. A análise
de conceitos jurídicos fundamentais como o de sujeito de direito e o de Estado é o caminho
para alcançar a forma jurídica que neles se expressa. A problemática do Estado será aborda-
da na terceira parte do artigo.

254 18º EDIÇÃO


Assim como a multiplicidade natural das qualidades
úteis do produto é na mercadoria apenas um simples
invólucro do valor, e os aspectos concretos do trabalho
humano dissolvem-se em trabalho humano abstrato,
como criador de valor, de modo semelhante, a multipli-
cidade concreta das relações do homem para com a coi-
sa surge como vontade abstrata do proprietário, e todas
as particularidades concretas que diferem um represen-
tando do gênero Homo sapiens de outro dissolvem-se
na abstração do homem em geral, como sujeito jurídico.
(PACHUKANIS, 2017b, pp. 141-142).

Apoiando-se n’”O Capital”, Pachukanis aponta para o fato de que


o surgimento da categoria de valor pressupõe, como condição mate-
rial, a pré-existência de um mercado permanente. Assim, da mesma
forma como o valor, enquanto categoria econômica, tão somente apa-
rece quando atos de troca mais ou menos reiterados se desenvolvem,
transformando-se em circulação sistemática de mercadoria, também o
surgimento do sujeito de direito está condicionado ao desenvolvimen-
to das relações sociais em um processo de produção organizado e mais
condensado, acompanhado pelo aumento do poder centralizado de or-
ganização social, ou seja, organização de classe, culminando na figura
do Estado burguês (PACHUKANIS, 2017b).
É a necessidade de poder coercitivo, no entanto, que explica a
metamorfose do “homem enquanto indivíduo zoológico em um sujeito
de direito abstrato e impessoal”. “Poderia conquistar e impor” [Errin-
gen und erzwingen], explica Pachukanis, “somente alguém que possuís-
se não só a vontade, mas também uma considerável dose de poder” 15
15 Pachukanis procura realizar, aqui, uma reconstrução materialista da vinculação, corrente-
mente aceita na teoria do direito desde o iluminista alemão Christian Thomasius (cf. HÖFFE, O.
Der kategorische Rechtsimperativ. In: ______. (Hrsg.). Klassiker Auslegen Band 19 – Imannuel
Kant, Metaphysische Anfangsgründe der Rechtslehre. 2. Auflage. Berlin: De Gruyter, 2011, p. 55),
entre direito e coerção, cuja mais famosa fundamentação teórica foi apresentada por Immanuel
Kant. Em que pese a fundamentação kantiana seja puramente idealista, na medida em que faz “o
conceito de direito consistir imediatamente na possibilidade de conexão da coação recíproca uni-
versal com a liberdade de qualquer um” (KANT, 2014, p. 36 [Akademie-Ausgabe Band VI, S. 232]),
o emprego do poder coercitivo já é justificado, em Kant, na condição que precede à organização
estatal (direito privado kantiano). Cf. KANT, I. Princípios Metafísicos da Doutrina do Direito. São
Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014). Na reconstrução do papel da coerção no desenvolvi-
mento da forma jurídica, especialmente no que tange ao surgimento da categoria do sujeito de

255 18º EDIÇÃO


(2017b, p. 145). Consequentemente, a forma do direito subjetivo adqui-
re uma esfera de dominação, que vem a ostentar um novo significa-
do quando passa a receber seu fundamento de uma norma exterior: o
significado de direito subjetivo em seu desenvolvimento perfeito (PA-
CHUKANIS, 2017b).
Paralelamente, a transformação do homem em sujeito de direito
desempenha a função de proporcionar as condições sob as quais pos-
sam se realizar atos de troca segundo o princípio da equivalência, quais
sejam as características puramente formais da liberdade e da igualdade,
que são pressupostos à participação no mercado. Nos dizeres de Naves,
“a forma-sujeito de que se reveste o homem surge como a condição de
existência da liberdade e da igualdade que se faz necessária para que se
constitua uma esfera geral de trocas mercantis” (2008, p. 65).
É justamente no mercado que o homem se torna persona jurídica 16
(PACHUKANIS, 2017b). Para tanto, o contrato desempenha um papel
fundamental, na medida em que possibilita a circulação de produtos do
trabalho tornados mercadoria. O contrato, não enquanto conceito abs-
trato da teoria jurídica, mas na qualidade de instituição social atuan-
te na história, é o verdadeiro fundamento material da forma jurídica
e, consequentemente, dos conceitos de sujeito de direito e de ato de
vontade, que, fora do contrato, “existem somente como abstrações sem
vida” (PACHUKANIS, 2017b, p. 150).
A emergência do mercado traz novas necessidades, principalmen-
te no que tange à mobilidade das mercadorias através de atos de troca.
É nesse contexto que se dá o surgimento da nova categoria econômica
do valor, que possibilita a valoração objetiva dos bens, funcionando
como critério de troca. Concomitantemente, entra em cena o princípio
capitalista da equivalência, tornando o valor de uso irrelevante, na me-
dida em que só é passível de apreciação subjetiva.
“Quando a coisa funciona como valor de troca, ela se torna uma
coisa impessoal, um objeto puro do direito, e o sujeito que dela dispõe,
um sujeito jurídico puro” 17 (PACHUKANIS, 2017b, p. 152). Portanto,
direito, as ponderações de Pachukanis também se voltam para uma condição pré-estatal – com-
preendida como aquela na qual se encontram as condições materiais descritas na nota de rodapé
13, e não como algum tipo de estado de natureza – concentrando-se, porém à sua necessidade,
não apresentando qualquer tipo de justificação ou fundamentação propriamente dita.
16 “No mercado, cada vendedor e cada comprador é, [...] um sujeito jurídico par excellence.”
17 Razão pela qual a característica essencial do direito de propriedade capitalista é o direito

256 18º EDIÇÃO


de uma mesma relação social, qual seja aquela que se realiza no mer-
cado através do ato de troca entre possuidores de mercadorias, surgem
o forma da mercadoria enquanto valor (encarnação do princípio da
equivalência) e a forma jurídica, caracterizada pela separação entre a
“capacidade de ter um direito em geral” e as “pretensões jurídicas con-
cretas” (PACHUKANIS, 2017b, p. 146).

4. PROBLEMAS CENTRAIS DA TEORIA DO


DIREITO: ESTADO E MORAL
Expostas as linhas gerais da concepção de Pachukanis acerca da
forma jurídica, passa-se a discutir sua abordagem sobre duas das prin-
cipais problemáticas da teoria do direito. Inicialmente cuidar-se-á de
sua concepção materialista do Estado, com ênfase especial ao papel que
desempenha na geração e na conservação da forma do direito. Após,
tratar-se-á do tradicional tema da relação entre o direito e a moral, de
grande relevância no debate teórico contemporâneo.
Desde que continue a se manifestar como ato de troca individual e
isolado, diz Pachukanis, “o intercâmbio jurídico em sua ‘natureza’ não
presume uma situação de paz” (2017b, p. 165). É apenas com o advento
do mercado permanente que surge a necessidade de um estado (tam-
bém permanente) de paz e segurança para as trocas mercantis, que,
num primeiro momento, é garantido pelos senhores feudais.
Graças a essa nova função que passa a desempenhar (garantia
da paz, tranquilidade e segurança ao mercado), o poder feudal ad-
quire uma nova característica ainda em emergência: caráter público
[Öffentlichkeit]. O caráter público de um poder é marcado pelo exercí-
cio da violência em nome de um interesse impessoal (ou suprapessoal),
ou seja, pelo fato de que o poder deixa de ser exercido exclusivamente
ou principalmente em nome do interesse do próprio senhor feudal. Por
isso, embora ainda numa estrutura social feudalista, essa nova forma
de exercício do poder que acompanha o amadurecimento de um mer-
cado permanente pode ser caracterizada como uma forma embrionária
do Estado (PACHUKANIS, 2017b).

de disposição, e não o direito de uso ou de gozo (cf. nota de rodapé 11).

257 18º EDIÇÃO


Em que pese o Estado se deixe definir como “a organização real de
dominação de classe” 18 (PACHUKANIS, 2017b, p. 101), de um ponto
de vista puramente jurídico ele só pode ser concebido como “fiador
da troca mercantil” (PACHUKANIS, 2017b, p. 169). Apenas como ga-
rante do mercado o Estado tem por fundamento o antagonismo dos
interesses privados (pressuposto da regulação jurídica stricto sensu).
A questão fundamental que então se impõe é: “por que é a dominação
de classe não permanece aquilo que ela é?” (PACHUKANIS, 2017b, p.
171), ou, em outras palavras, por que é que ele se torna um aparato de
poder público e se reveste, assim, de caráter jurídico?
A resposta à indagação relaciona-se diretamente com a manu-
tenção daquelas condições necessárias para a realização do princípio
da equivalência (surgidas com o aparecimento do fenômeno da
subjetividade jurídica). Trata-se, como já mencionado, da liberdade e
igualdade dos participantes do mercado, i.e.¸ dos contratantes.
“Onde surge em cena a categoria do valor e do valor de troca, a
premissa é a vontade autônoma das pessoas que atuam na troca” (PA-
CHUKANIS, 2017b, p. 174). Ocorre que os atributos da liberdade e da
igualdade são inseparáveis. A manutenção daquela esfera individual
de dominação, que subjaz à noção inicial de direito subjetivo, é, por
sua própria natureza, distribuída de forma contingente (entre aqueles
que têm mais poder e os outros que têm menos), revelando-se, assim,
incompatível com a pressuposta igualdade dos sujeitos de direito e,
consequentemente, com o exercício de uma vontade autônoma e livre,
necessário ao ato de troca.
Por essa razão, o poder garantidor do mercado necessita aparecer:

[...] como coerção proveniente de alguma pessoa abstrata


em geral, como coerção não realizada no interesse do indi-
víduo do qual ela provém, [...] mas no interesse de todos
os participantes do intercâmbio jurídico. O poder do ho-
mem sobre o homem é realizado como poder do próprio
direito, ou seja, como poder da norma objetiva imparcial
(PACHUKANIS, 2017b, p. 175).
18 No que diz respeito às funções de “organização classista de dominação” e de “condução
de guerras externas”, o Estado não deve ser interpretado em seu caráter jurídico, na medida
em que não regula interesses antagônicos, sendo esta, a única razão do direito, mas não do
Estado.

258 18º EDIÇÃO


Conclui então o autor soviético, em claras palavras, que o Estado
burguês tem como fundamento:

[...] um só princípio, que reza que, dentre dois agentes


de troca no mercado, nenhum pode agir como regulador
autoritário da relação de troca, mas que, para isso, é ne-
cessário um terceiro, que encarna a garantia mútua que os
possuidores de mercadorias, na condição de proprietários,
dão um ao outro, e que, consequentemente, é a regra per-
sonificada da correlação entre possuidores de mercadorias.
(PACHUKANIS, 2017b, p. 180).

Também a moral é compreendida como forma específica da socie-


dade burguesa, condicionando, da mesma forma que o direito e que o
Estado, a realização da relação de valor que se desenvolve no mercado.
Isso, pois o homem, ao participar das relações de produção e circulação
de mercadorias, o faz sob três “máscaras de personagem” [Charakter-
maske]: o homem como sujeito moral, o homem como sujeito de direi-
to e o homem como sujeito econômico (homo economicus). Esses três
momentos de aparição do sujeito nas relações sociais capitalistas cor-
respondem a três princípios: o valor supremo da pessoa (i.e. dignidade
da pessoa humana), liberdade (contratual) e o egoísmo. Em que pese
sejam contraditórios entre si, esses atributos do homem burguês estão
“indissoluvelmente ligados um ao outro”, articulando-se dialeticamen-
te numa totalidade (PACHUKANIS, 2017b, p. 185).
Calcando-se mais uma vez em Marx, Pachukanis defende que a
noção de igualdade entre os seres humanos, central à moral burguesa,
deriva da “equiparação prática recíproca de todos os tipos de traba-
lho humano” (2017b, p. 183). Isso significa apenas que a moral espe-
lha um aspecto das relações burguesas: o que mostra a sujeição das
relações humanas à lei do valor. Na medida em que esse é apenas um
dos três aspectos que compõe a personagem burguesa, a contradição
que lhes é inerente evidencia-se, principalmente no que diz respeito à
incompatibilidade entre o princípio do egoísmo e a ideia de igualdade
entre todos os homens, subjacente ao princípio do valor supremo da
pessoa (PACHUKANIS, 2017b).

259 18º EDIÇÃO


O sujeito de direito encontra-se justamente no nível intermediário en-
tre o homo economicus e o sujeito moral. O direito subjetivo, com efeito,
encontra suas raízes em interesses materiais independentes de regulação
jurídica. Relaciona-se, portanto, com o sujeito econômico na medida em
que representa um reconhecimento jurídico de um interesse econômico.
Porém, para que o princípio da equivalência se realize, através da forma
da mercadoria (do valor de troca), é essencial que os atos de troca se deem
entre partes que reconheçam reciprocamente sua liberdade e igualdade.
Enquanto imperativos sociais, os princípios da liberdade e da
igualdade podem ser estabelecidos jurídica ou moralmente. De acordo
com a moral burguesa, todavia, o homem não é passível de ser forçado
a agir moralmente – o sujeito moral autônomo deve autodeterminar
racionalmente sua vontade. “Todo o pathos do imperativo categórico
kantiano resume-se ao fato de que o homem faz ‘livremente’, ou seja,
de acordo com uma convicção interna, aquilo a que ele seria forçado no
plano do direito” (PACHUKANIS, 2017b, p. 187).
É em virtude dessa impossibilidade de se forçar coercitivamente a
autodeterminação moral do sujeito que o direito se torna necessário.
Nesse momento, a ideia de justiça ganha relevância, sendo responsável
por transpor a noção de ética – “constrangimento internalizado para ser
sujeito burguês” 19 (GRUBER; OFENBAUER, 2003, p. 16, tradução nossa)
– ao plano jurídico. Segundo sua própria forma, a moral funciona, então,
como um maximum em relação ao reconhecimento recíproco da liberda-
de e da igualdade de todos os homens entre si, na medida em que requer
a própria ideia de dever como móbil da ação [die Idee der Pflicht als Trie-
bfeder der Handlung – »aus Pflicht« handeln]20, prescindindo de qualquer
coerção externa. O direito, por sua vez, representa um minumum: coage
externamente o individuo a ser sujeito de direito (PACHUKANIS, 2017b).

Para a realização desse mínimo, basta que os consumidores


de mercadorias se comportem como se eles se reconheces-
sem como proprietários. A conduta moral contrapõe-se à
conduta legal, que se caracteriza como tal sem depender
dos motivos que a provocam. (PACHUKANIS, 2017b, p.
194, grifo do autor).
19 No original: „internalisierter Zwang, bürgerliches Subjekt zu sein“.
20 Cf. KANT. I. Op. Cit. p. 20, Et. Seq. [Akademie-Ausgabe Band VI, S. 219, Et. Seq].

260 18º EDIÇÃO


5. A CRÍTICA METODOLÓGICA
DE HANS KELSEN
Como já visto, o teórico do direito austríaco Hans Kelsen é diversas
vezes mencionado por Pachukanis em sua obra magna, sendo, na maio-
ria das passagens, objeto de crítica por parte do autor soviético. No ano
de 1931, dois anos após a tradução da Teoria Geral do Direito e Marxismo
para o alemão, Kelsen publica o artigo “Allgemeine Rechtslehre im Lichte
materialistischer Geschichtsauffassung” [Teoria Geral do Direito à luz da
concepção materialista da história], no qual as criticas que recebera en-
contram respostas. Além disso, nesse trabalho Kelsen formula sua pró-
pria crítica ao pensamento de Pachukanis, a quem ele chama de “marxis-
ta defensor de todas as ideologias jurídicas burguesas” 21 (KELSEN, 1967,
p. 126 – nota de rodapé 101, tradução nossa).
Em que pese Kelsen e Pachukanis compartilhem um mesmo ponto
de vista central, qual seja “a rejeição à, por eles assim designada, juris-
prudência burguesa” 22, suas respectivas teorias do direito encontram-se
apoiadas sobre “concepções de ciência opostas” 23 (HARMS, 2009, pp. 81
e 84, tradução nossa). O cerne da crítica kelseniana à teoria de Pachuka-
nis relaciona-se justamente às suas premissas e aos métodos que adota24.
A crítica metodológica de Kelsen dirige-se fundamentalmente à com-
binação de duas das premissas de Pachukanis. Inicialmente, àquela se-
gundo a qual os conceitos não seriam unicamente abstrações artificiais e
ideológicas da ciência, mas que encobririam um substrato material que os
subjaz. Por fim, à assunção, por parte do jurista marxista, do pensamen-
to dualista da “jurisprudência tradicional”. Segundo Kelsen, é a partir da
combinação dessas duas premissas que “Pachukanis concebe os conceitos
dualistas da teoria geral do direito como um retrato distorcido de uma rea-
lidade em si às avessas” 25 (HARMS, 2009, p. 82, tradução nossa).
21 No original: „marxistischer Verteidiger aller bürgerlichen Rechtsideologien“.
22 No original: „die Ablehnung der von ihnen so bezeichneten bürgerlichen Rechtswissen-
schaft“.
23 No original: „entgegensetzen Wissenschaftsvorstellungen“.
24 Cf. A segunda seção desse artigo: “Tentativa de uma crítica aos conceitos jurídicos fun-
damentais” (pp. 3-6), bem como KELSEN, H. Op. Cit., 1967, p. 119: “A crítica metodológica é
o meio específico de uma destruição radical da ideologia” (tradução nossa). No original: „...
die methodologische Kritik das spezifische Mittel einer radikalen Zerstörung der Ideologie ist...“.
25 No original: „...begreift Pachukanis die dualistischen Begriffe der Allgemeinen Rechtslehre

261 18º EDIÇÃO


Opondo-se a essa concepção, Kelsen defende que a revelação da
função ideológica do dualismo da jurisprudência tradicional burgue-
sa e a consequente dissolução de todos os seus “pares de oposições”
[Gegensatzpaaren] seja uma das principais tarefas da teoria (pura) do
direito26. É justamente tal revelação (com a dissolução, dela decorrente,
das dicotomias jurídicas) que o teórico austríaco busca realizar em sua
publicação de 1931 (bem como em diversos outros trabalhos prévios
e posteriores), ao passo que Pachukanis aceita tais distinções dualis-
tas, apesar de apontar muitas de suas contradições. O faz objetivando
demonstrar uma certa natureza ambígua e ambivalente [zwiespältig]
do conceito de direito que, de acordo com sua primeira premissa (do
substrato material subjacente aos conceitos), revelaria a contradição do
próprio direito em si.

Para julgar o direito burguês, Pachukanis defende a teo-


ria do direito burguesa, e isso tudo para poder sustentar
a doutrina da extinção do direito na sociedade comunista.
A teoria do direito burguesa necessita ser contraditória,
uma vez que o direito burguês é contraditório; deixando
de ser contraditório, deixa der ser, em geral, direito. O co-
munismo traz [...] também a possibilidade de uma teoria
logicamente livre de objeções. Esse materialismo histórico
demonstra – enquanto crítica do direito positivo e prog-
nóstico de seu desenvolvimento futuro – demais, porém,
enquanto crítica da teoria do direito corrente, muito pouco.
27
(KELSEN, 1967, p. 122, tradução nossa).

als verzerrtes Bild einer in sich verkehrten Wirklichkeit“.


26 É sintomático que Kelsen tenha dedicado um capítulo inteiro ao assunto em sua pri-
meira versão da Teoria Pura do Direito (Capítulo IV – „Der Dualismus der Rechtslehre und
seine Überwindung“, ou, em tradução nossa: “O dualismo na teoria do direito e sua supera-
ção”), publica em 1934, apenas 3 anos após a publicação de „Allgemeine Rechtslehre im Lichte
materialistischer Geschichtsauffassung“. Cf. KELSEN, H. Reine Rechtslehre: Einleitung in die
rechtswissenschaftliche Problematik. Studienausgabe der 1. Auflage 1934, (Hrsg. und ein-
geleitet von Matthias Jestaedt). Tübingen: Mohr Siebeck, 2008, pp. 51-72 [39-61]. Exemplos
dos Gegensatzpaaren jurídicos são: direito objetivo e subjetivo; direito público e privado; e
Estado e direito. Apresentar a argumentação aduzida por Kelsen para superar o dualismo na
teoria do direito extrapolaria os limites do presente trabalho.
27 No original: „Um das bürgerliche Recht zu verurteilen, verteidigt Paschukanis die bürger-
liche Rechtstheorie, und dies alles, um die Lehre vom Absterben des Rechts in der kommu-
nistischen Gesellschaft aufrechterhalten zu können. Die bürgerliche Rechtstheorie muß wider-
spruchsvoll sein, denn das bürgerliche Recht ist widerspruchsvoll; hört es auf, widerspruchsvoll

262 18º EDIÇÃO


Em síntese: de acordo com Kelsen, “Pachukanis desvanece [verwis-
cht] as fronteiras entre teoria do direito e direito” 28 (1967, p. 122, tra-
dução nossa). Ao invés de se esforçar para eliminar o dualismo con-
traditório da jurisprudência tradicional, o teórico do direito soviético
apropria-se de todas as dicotomias ideológicas da teoria burguesa para
poder sustentar que as contradições expressas por esses “pares de opo-
sições” [Gegensatzpaaren] na verdade seriam contradições do direito
em si, i.e., da forma jurídica, para cuja superação ele apresenta um
único caminho possível: “a criação e consolidação de uma nova base
material e econômica” (PACHUKANIS, 2017b, p. 192); ou, em outras
palavras: “a luta revolucionária do proletariado e a implementação do
socialismo” (PACHUKANIS, 2017b, p. 219).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A “Teoria Geral do Direito e Marxismo” se deixa compreender como
uma tentativa de se atingir a realidade ocultada por de trás das abs-
trações jurídicas, tencionando demonstrar a conexão próxima entre a
forma do direito e forma capitalista da mercadoria. O direito não é
apresentado como pura positivação estatal de regras “arbitrárias”, tam-
pouco como pura ocultação ideológica do domínio de classe, mas como
uma das formas específicas pelas quais os homens se relacionam entre
si. Junto às diversas outras relações sociais, incluindo as relações eco-
nômicas de produção e circulação, o direito consiste naquela forma de
relação social que assume especificamente o caráter jurídico, na medi-
da em que pressupõe o antagonismo de interesses.
O conceito central de relação jurídica é definido, então, como
aquela relação estabelecida entre sujeitos formalmente iguais perante
a lei [gleichberechtigt], ou seja, entre sujeitos de direito. A subjetivi-
dade jurídica, por sua vez, é compreendida como condição de desen-
volvimento pleno do capitalismo na medida em que a mobilidade dos
produtos do trabalho, essencial ao processo capitalista de circulação de
zu sein, hört es überhaupt auf, Recht zu sein. Der Kommunismus bringt [...] auch die Möglich-
keit einer logisch einwandfreiein Theorie. Dieser historische Materialismus beweist – als Kritik
des positiven Rechts und Prognose für seine Zukunftsentwicklung – zuviel, als Kritik der be-
stehende Rechtstheorie aber zuwenig“.
28 No original: „verwischt Pachukanis die Grenze zwischen Rechtstheorie und Recht“.

263 18º EDIÇÃO


mercadorias, requer a figura do contrato, à qual se pressupõe a liber-
dade (autonomia) daquele que declara sua vontade, bem como a igual
possibilidade jurídica de ser titular de um direito.
Nesse contexto, o Estado moderno torna-se necessário para garan-
tir a conformidade das relações juridificadas [verrechtlichte Verhältnisse]
com a manutenção da liberdade e igualdade formal de todos os cidadãos,
potenciais participantes do mercado. A primeira grande conclusão que
daí se extrai é, portanto, que não existe capitalismo sem direito. Por outro
lado, o direito enquanto tal também tem sua existência condicionada à
sociedade burguesa capitalista plenamente desenvolvida. A segunda, e
mais importante, conclusão da teoria marxista do direito de Pachukanis
é a seguinte: a superação do capitalismo necessita significar a extinção
do direito enquanto tal; mudanças socialistas no conteúdo das leis, por
sua vez, são insuficientes para a fundação do comunismo.
Apesar de muito originais, na medida em que buscam alcançar uma
crítica ao direito que transcenda qualquer de seu eventual conteúdo,
as conclusões de Pachukanis pela relatividade e condicionalidade his-
tórica do Direito à sociedade burguesa capitalista acabam sendo, elas
mesmas, condicionadas pelas premissas materialistas das quais parte.
Principalmente no que tange à imputação de eventuais contradições
e ambivalências nos conceitos jurídicos fundamentais a um substrato
material que os subjaz, a crítica pachukaniana peca por desconsiderar
os aspectos críticos da doutrina pura do direito dirigidos ao dualismo
da jurisprudência tradicional.

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