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CAPÍTULO 1

As maneiras como as ciências


são e não são livres de valores

0 espectro de objetivos c o m u m e n t e associados à ciência pode


ser i d e n t i f i c a d o p o r seus extremos: e n t e n d i m e n t o e u t i l i d a d e .
E n t e n d i m e n t o envolve descrição, classificação, explicação e e n -
capsulação de possibilidades: respostas a "o q u ê ? " , " p o r q u ê ? " ,
"o que é p o s s í v e l ? " e c o m frequência t a m b é m a " c o m o ? " (SVF,
cap. 5; VAC, cap. 5 ) . O e n t e n d i m e n t o científico é expresso e m t e o -
rias e fundamentado e m p i r i c a m e n t e . Os critérios utilizados para
a avaliação do entendimento científico serão denominados, a par-
t i r de K u h n e outros, valores cognitivos (SVF, cap. 3; VAC, cap. 3 ) .
Eles c o m p r e e n d e m , p o r exemplo, a adequação e m p í r i c a , o poder
explicativo e a consistência intertéorica, atributos cuja presença
nas teorias é, e m grande medida, u m a questão de grau, e cuja i n -
tensa manifestação é necessária e m teorias aceitáveis, teorias que
expressam entendimento sólido. A ciência moderna t e m sido uma
fonte inesgotável de e n t e n d i m e n t o sólido que, p o r sua vez, t e m
sido aplicado de forma ampla, efetiva e útil. Parte da explicação
n o r m a l m e n t e oferecida para esse duplo sucesso decorre da c o n -
cepção de que a ciência é livre de valores, u m a concepção que é
mais b e m analisada (SVF, cap. 1, 4,10) como a conjunção de três
ideias distintas: imparcialidade, neutralidade e autonomia.

1 VALORES

\ n i r s de expor c a v a l i a r essas t r ê s ideias, farei uma digressão na


Ini ma de algumas notas breves acerca dos valores, p o i s a discus-
sflo da " c i ê n c i a livre de valores" t e m sido frequentemente acom-
Hugh Lacey

panhada do aval acrítico a concepções não cognitivas dos valores.


E m outros escritos (SVF, cap. 2; VAC, cap. 2, 8; Lacey & Schwartz,
1996), propus u m a análise na qual valores de vários t i p o s (pes-
soais, morais, sociais etc.) estão organizados e m conjuntos c o m -
plexos ou perspectivas de valor, que os t o r n a m coerentes, ordena-
dos e r a c i o n a l m e n t e dignos de serem sustentados a p a r t i r de
certas p r e s s u p o s i ç õ e s acerca da natureza humana (e da n a t u r e -
za), e acerca do que é possível - p r e s s u p o s i ç õ e s que estão, e m
alguma medida, abertas à investigação e m p í r i c a . Daí decorre que
os resultados da investigação científica p o d e m c o n t r i b u i r para
sustentar ou desestabilizar o caráter racional de u m a perspectiva
de valor. D i r e i que u m a perspectiva de valor é viável se suas pres-
suposições são consistentes com o conhecimento científico cor-
retamente aceito. A v i a b i l i d a d e é u m a condição necessária para a
adoção racional de u m a perspectiva de valor. N e m todas as pers-
pectivas de valor que t ê m sido adotadas são viáveis, mas o avanço
da ciência deixa e m aberto uma série de perspectivas de valor que
o são. Esta é a razão pela qual não há incoerência em reconhecer
que os desenvolvimentos científicos desempenharam u m papel
racional no abandono da perspectiva de valor medieval cristã e,
ao mesmo tempo, sustentar que a ciência é impotente para d e c i d i r
as grandes controvérsias atuais relativas a valores (SVF, p. 7 4 - 9 ) .
Assume-se, c o m frequência, que qualquer perspectiva de va-
l o r racionalmente sustentada hoje e m dia deve i n c l u i r certos va-
lores ligados ao controle dos objetos naturais e ao avanço t e c n o -
lógico, valores que c o n j u n t a m e n t e f o r m a m o que d e n o m i n o a
valorização moderna do controle. A s s i m , p o r exemplo, aqueles que
m e n c i o n a m o valor da agricultura orgânica como superior às p r á -
ticas agrícolas geradas pelas recentes inovações da biotecnologia
t e n d e m a ser desconsiderados p o r estarem na contramão da t r a -
jetória estabelecida pela valorização m o d e r n a do controle (SVF,
cap. 8 ) . Mas esta desconsideração não se segue do conhecimento
científico corretamente aceito atualmente. Se uma perspectiva

36
As M A N E I R A S C O M O AS C I Ê N C I A S SÃO E NÃO SÃO L I V R E S D E V A L O R E S

de valor não se harmoniza c o m os atuais centros de poder, isso


não i m p l i c a que sua adoção viole os cânones da racionalidade.

A VALORIZAÇÃO MODERNA DO CONTROLE

C o n s i d e r a ç õ e s pertinentes à valorização m o d e r n a do c o n t r o -
le ocuparão u m papel central nas críticas à neutralidade e à auto-
nomia que farei a seguir; p o r isso, d i s c o r r e r e i brevemente sobre
ela, ilustrando ao mesmo t e m p o m i n h a alegação de que as pers-
pectivas de valor se t o r n a m racionalmente aceitáveis à luz dos
pressupostos que servem para t o r n á - l a s coerentes. Com o o b j e -
tivo de compreender que o caráter d i s t i n t i v o do controle na m o -
dernidade (e das atitudes e m relação a ele) reside na extensão de
seu alcance e e m seu m o d o de relacionar-se c o m outros valores
(cf. SVF, p. 111-5; Lacey, 1999a), i d e n t i f i c o os componentes da
valorização moderna do controle assim:

• O valor i n s t r u m e n t a l dos objetos naturais está dissociado


de outras formas de valor; c o m isso, o exercício de c o n -
trole sobre os objetos naturais torna-seperse u m valor so-
cial que não está subordinado de forma sistemática e ge-
r a l a outros valores sociais.
• A expansão das capacidades humanas para c o n t r o l a r o b -
jetos naturais, a difundida incorporação institucional des-
sas capacidades e, especialmente, a criação de novas tec-
nologias ocupam altas posições como valores.
• 0 c o n t r o l e é uma postura caracteristicamente h u m a n a
e m relação aos objetos naturais. 0 exercício de controle
e, acima de tudo, o engajamento na pesquisa e desenvol-
v i m e n t o de projetos, nos quais nosso poder de controle é
a m p l i a d o , s ã o f o r m a s e s s e n c i a i s e p r i m á r i a s pelas q u a i s
nos e x p r e s s a m o s c o m o s e r e s h u m a n o s m o d e r n o s , f o r m a s

ST
Hugh Lacey

nas quais são cultivadas " v i r t u d e s " pessoais como c r i a -


tividade, i n v e n t i v i d a d e , i n i c i a t i v a , ousadia diante de r i s -
cos, a u t o n o m i a , racionalidade e praticidade. A s s i m , u m
meio que é moldado de forma a que muitas e variadas pos-
sibilidades de controle possam ser r o t i n e i r a m e n t e r e a l i -
zadas no curso da vida ordinária, u m m e i o d o m i n a d o p o r
objetos tecnológicos, é extremamente apreciado, assim
como o é a extensão da tecnologia a cada vez mais d o m í -
nios da vida e a definição de problemas e m t e r m o s de so-
luções tecnológicas.
• Os valores que p o d e m ser manifestados e m arranjos so-
ciais estão, e m grau significativo, subordinados ao valor
da implantação de novas tecnologias, que têm l e g i t i m i -
dade prima facie, podendo certa medida de perturbação
social ser tolerada e m seu benefício, e cuj os efeitos colate -
rais p o d e m e m geral ser tratados como aspectos de segun-
da o r d e m .

A t u a l m e n t e , a valorização m o d e r n a do controle se manifesta


e m alto grau e m todas as partes do m u n d o e é subscrita pelas ins -
tituições e c o n ô m i c a s e políticas p r e d o m i n a n t e s . Ela é capaz de
manifestações ainda mais intensas - e m mais sociedades, e m
mais d o m í n i o s da vida - e podemos esperar que essa tendência
venha a c o n t i n u a r p o r a l g u m t e m p o . A s s i m , sua e x p r e s s ã o no
c o m p o r t a m e n t o de u m n ú m e r o crescente de pessoas é f a c i l m e n -
te explicado. Mas as justificativas racionais para adotar a v a l o r i -
zação m o d e r n a do controle, enquanto distintas dos fatores que
explicam sua ampla adoção, residem, a m e u ver, e m grande parte
no seguinte c o n j u n t o de pressupostos:

ia
As M A N E I R A S COMO AS C I Ê N C I A S SÃO E NÃO SÃO L I V R E S D E V A L O R E S

(a) 0 avanço tecnológico serve ao bem-estar dos seres h u -


manos e m geral, pois é indispensável para o "desen-
v o l v i m e n t o " ; é, assim, u m p r é - r e q u i s i t o de u m a so-
ciedade j u s t a . 1

(b) Soluções tecnológicas p o d e m ser encontradas para v i r -


tualmente todos os problemas, inclusive aqueles oca-
sionados pelos efeitos colaterais das p r ó p r i a s i m p l e -
mentações tecnológicas.
(c) A valorização m o d e r n a do controle representa u m c o n -
j u n t o de valores universais, parte de qualquer pers-
pectiva de valor racionalmente legitimada nos dias de
hoje, cuja mais intensa manifestação é de fato deseja-
da p o r v i r t u a l m e n t e todos os que t o m a m contato c o m
seus produtos.
(d) Não existem possibilidades significativas de realização
no futuro previsível para perspectivas de valor que não
i n c l u a m a valorização m o d e r n a do c o n t r o l e .
(e) Obj etos naturais não são e m si mesmos obj etos de valor,
e só se t o r n a m tais e m virtude de seu emprego nas práti-
cas humanas; e m si mesmos, eles p o d e m ser c o m p l e -
tamente entendidos e m termos das categorias de estru-
t u r a , processo, interação e l e i subjacentes, abstraídos
de qualquer valor que possam derivar de seu emprego
nas práticas humanas. Quando, informados p o r e n t e n -
d i m e n t o correto articulado c o m essas categorias, exer-

I No mundo orientado pelo capitalismo, esse pressuposto é tipicamente sustentado por v i -


>.i"'s iiiiliv iilii.iIislãs da natureza humana, que enfat izam o indivíduo (sua capacidade de agi r
(agtncy) e seu corpo) em detrimento do caráter social dos seres humanos e suas relações
rum outras rullui 'as r grupos v isòes dos seres humanos rumo aqueles que escolhem, eu mu
i nitros dr r\|nvss;ni criativa, como consumidores, como "maximizadores de preferência
ou iil il i i l a d i " etc. Consequentemente, o bem-estar dos seres humanos tende a ser primor-
III.IIIIM no • 111< 11• 11• 1 <> cm lermos de saúde corporal e psicológica, e de capacidade realizada
p ó I expressar uma variedade de valores egoístas ("autênticos" ou escolhidos por conta pró-
pn.il (cl L i r r y K Srliwarz. it)i)(>).

to
Hugh Lacey

cemos o controle sobre objetos, estamos tratando c o m


objetos como eles são e m si mesmos enquanto parte do
" m u n d o m a t e r i a l " — e é p o r isso que projetos c o n c e b i -
dos p o r m e i o da valorização m o d e r n a do controle têm
sido tão espetacularmente bem-sucedidos.

Não posso expor aqui o argumento, mas penso ser bastante


claro que se algum desses pressupostos não puder ser sustenta-
do, então as justificativas racionais para endossar a valorização
m o d e r n a do controle dissolvem-se - não obstante sua d i f u n d i -
da incorporação nas estruturas sociais c o n t e m p o r â n e a s e o su-
porte que ela recebe da atual hegemonia da "globalização".

2 C I Ê N C I A L I V R E D E VALORES

A concepção de que a ciência é livre de valores é, no m e u m o d o de


ver, b e m apreendida pela seguinte tese: a imparcialidade, a neu-
tralidade e a autonomia são valores constitutivos das práticas e i n s -
tituições científicas. Explicarei agora esses três componentes e
seus respectivos pressupostos. 1

IMPARCIALIDADE

A imparcialidade p r e s s u p õ e u m a d i s t i n ç ã o e n t r e valores
cognitivos e valores de outros tipos (cf. SVF, p. 2 i 6 - s t 3 ; Lacey,
1999b). Ela representa o valor que deve estar presente e i n c o r p o -
rado n u m a prática científica de forma que:

3 As explicações sucintas apresentadas aqui devem ser tratadas como aproximações. Deta
lhes, nuanças, qualificações, variações e propostas alternativas são discutidas em SVF, cap.
4. 10).

40
As M A N E I R A S C O M O A S C I Ê N C I A S SÃO E NÃO SÃO L I V R E S DF, V A L O R E S

U m a t e o r i a é aceita c o m relação a u m d o m í n i o de f e n ô -
menos se e apenas se ela manifesta os valores cognitivos
e m alto grau, de acordo c o m os padrões mais elevados, à
luz dos dados e m p í r i c o s disponíveis; e uma teoria é r e j e i -
tada se e apenas se u m a teoria inconsistente c o m ela f o i
corretamente aceita. A s s i m , não existe u m papel para va-
lores morais e sociais (e para as maneiras c o m as teorias
são usadas, e p o r q u e m ) nos juízos envolvidos na escolha
de teorias.

U m a teoria pode ser corretamente aceita e ao mesmo tempo


manifestar certos valores sociais (por exemplo, ser útil e m aplica-
ções para projetos concebidos pela valorização m o d e r n a do c o n -
t r o l e ) . A imparcialidade exclui u m papel para valores sociais ape-
nas nos juízos envolvidos na escolha de teorias, e não nos juízos a
respeito de sua significância (cf. A n d e r s o n , 1995; SVF, p. 15-6).
De acordo c o m essa concepção, uma teoria é significante para uma
perspectiva de valor, se pode ser aplicada para aumentar a m a n i -
festação de (alguns) valores c o n s t i t u i n t e s da perspectiva, sem
subverter a perspectiva como u m todo. A p r e s e n t e i a imparciali-
dade como u m valor de práticas e instituições científicas. Sabe-
-se, entretanto, que numerosas teorias f o r a m e são aceitas sem
que a imparcialidade seja respeitada. Não obstante, isso é c o n -
sistente c o m a adoção da imparcialidade como u m valor nas p r á -
ticas c i e n t í f i c a s , desde que e x i s t a m casos e x e m p l a r e s que a
manifestem e m grau elevado; que esforços sejam despendidos (cf.
I,origino, 1990, p. 76) para i d e n t i f i c a r os mecanismos que p o -

I I i n . i t e o r i a r corretamente aceita se é a c e i t a de a c o r d o c o m a imparcialidade. Wr SVF,


|> 1 I I onde .1 " a c e i t a ç ã o " «'• d i s t i n g u i d a de tias a t i t u d e s que [ i o d e m ser adotadas c o m
r m p r i t o a t r o n a s Sobre " p a d r õ e s " , ver SVF, p. 62 6. U m a teoria é s e m p r e aceita com relação
a um dommiu nu domínios de fenómenos e possibilidades. A s s u m i r e i isso como u m p r e s s u p o s -
to .111 liui^o do texto
Hugh Lacey

d e m causar violações da imparcialidade, e evitar seu f u n c i o n a -


m e n t o efetivo (cf. VAC, cap. 5 ) ; e que a trajetória das práticas c i e n -
tíficas aponte para u m n ú m e r o e u m a variedade maiores de t e o -
rias sendo aceitas de acordo c o m a imparcialidade.

NEUTRALIDADE

Aneutralidade p r e s s u p õ e , p r i m e i r o , que as teorias científicas


não i m p l i c a m logicamente que quaisquer valores particulares
devam ser adotados; segundo, que o c o n j u n t o de teorias correta-
mente aceitas deixa e m aberto u m d o m í n i o de perspectivas de
valor v i á v e i s . Portanto, a neutralidade
4
representa o valor asso-
ciado ao conteúdo da seguinte afirmação:

Cada perspectiva de valor viável é tal que existem teorias


corretamente aceitas que p o d e m ser significantes e m algu-
ma medida para ela; e as aplicações de teorias corretamente
aceitas p o d e m ser feitas equitativamente, de modo que não
existe, e m u m sentido a m p l o , perspectiva de valor viável
para a qual a estrutura das teorias tenha significado especial.

A neutralidade expressa o valor de que a ciência não i n c o r r e


e m favorecimento de posições morais, ou seja, de que a pesquisa
científica fornece, p o r assim dizer, u m menu de teorias correta-

4 0 primeiro pressuposto não implica que aceitar teorias não tenha consequências (lógi-
cas) no que diz respeito a quais são (ceteris paribus) os valores racionalmente aceitáveis (cf.
SVF, p. 74-82; VAC, cap. 8, seções 1, 2, 3) pois, como sustentei acima, uma perspectiva de
valor é considerada racionalmente admissível em virtude de vários pressupostos acerca do
que é possível e acerca da natureza humana, pressupostos que deveriam ser rejeitados se
fossem inconsistentes com teorias científicas corretamente aceitas (cf. VAC, cap. 2). Dessa
forma, as consequências no domínio dos valores não são implicações, mas são mediadas
pelo papel dos pressupostos.

4.9
As M A N E I R A S COMO AS C I Ê N C I A S SÃO E NÃO SÃO L I V R E S D E V A L O R E S

mente aceitas, entre cujos itens, e m p r i n c í p i o , cada perspectiva


de valor possa ter atendidas suas preferências (boas ou m á s ) no
que se refere à aplicação.
A imparcialidade é claramente necessária para a neutralidade,
porém não é suficiente. A significância não se segue da aceitação
legítima. Como a imparcialidade, a neutralidade pode ser m a n t i d a
como u m valor de práticas científicas, embora, na verdade, n e m
sempre se manifeste e m grau elevado, desde que condições se-
melhantes às mencionadas no caso da imparcialidade sejam obe-
decidas. D e n t r o de u m amplo domínio de práticas científicas t í -
picas, a tendência é, de fato, para manifestações da imparcialidade
em grau cada vez mais alto — e é fácil apontar casos exemplares de
teorias que são corretamente aceitas e m relação a certos d o m í -
nios. Mas, no caso das mesmas práticas, não se v i s l u m b r a u m a
tendência análoga a manifestações mais intensas da neutralida-
de; e, no interior delas, não creio que isso possa ser revertido. E m
vez de serem aplicadas de forma equitativa, as teorias correta-
mente aceitas da ciência m o d e r n a t e n d e m p r e d o m i n a n t e m e n t e
(e, c o m frequência, de f o r m a ostensiva) a ser significativas para
perspectivas de valor que c o n t e n h a m a valorização m o d e r n a do
controle, de f o r m a que as práticas efetivas de aplicação f o r n e c e m
pouca evidência de que as teorias da ciência m o d e r n a possam ser
significantes e m u m grau comparável para muitas outras pers-
pectivas de valor viáveis (Lacey, 1999a).

AUTONOMIA

Km p r i m e i r o lugar, i\autonomia pressupõe que exista uma d i s -


tinção razoavelmente clara entre a pesquisa científica básica e a
aplicada v. em segundo lugar, que as práticas de pesquisa básica
tenham p o r objetivo realizar manifestações mais elevadas e mais
amplas <l.i iinpaivialiilailc <• da iicutralidadr.
Hugh Lacey

Eu represento isso como o valor associado ao conteúdo da se-


guinte afirmação:

As práticas de pesquisa básica são realizadas e m c o m u -


nidades a u t ô n o m a s , patrocinadas p o r instituições a u t ô -
nomas — isto é, c o m u n i d a d e s e i n s t i t u i ç õ e s cujas p r i o -
ridades são fixadas sem interferência de interesses, poderes
e valores " e x t e r n o s " — de f o r m a que suas p r i o r i d a d e s de
pesquisa são determinadas pelo interesse e m aumentar a
manifestação dos valores cognitivos nas teorias referentes
aos d o m í n i o s investigados, e expandir a pesquisa para n o -
vos d o m í n i o s .

M i n h a sugestão f o i a de que se pode considerar a tese "A ciência


é l i v r e de valores" como composta p o r essas três ideias. A s s i m
entendida, ela deixa e m aberto a existência de muitas interações
legítimas entre a ciência e os valores morais e sociais, p o r exem-
p l o , no que diz respeito ao d i r e c i o n a m e n t o e legitimação da pes-
quisa aplicada e das aplicações, e à constituição de motivações
para o e m p r e e n d i m e n t o de pesquisas (cf. SVF, p. 12-9)- Ela é t a m -
b é m c o n s i s t e n t e c o m o d e s e m p e n h o , p o r p a r t e dos v a l o r e s
cognitivos, de u m papel essencial na avaliação de teorias, e c o m as
p r ó p r i a s ideias constituintes da " c i ê n c i a como livre de valores"
representarem valores das práticas científicas. Os defensores de
"a ciência é l i v r e de valores" reconhecem isso sem dificuldade.
Eles sustentam apenas que, no seu núcleo — onde teorias são acei -
tas e direcionamentos para a pesquisa básica são determinados -
não há papéis que os valores sociais e morais possam desempe-
nhar. C o m frequência, a tese de que a ciência é l i v r e de valores
t e m sido rejeitada c o m base na atuação dos valores na p e r i f e r i a ,
e m vez de no núcleo das práticas científicas.

•1
As M A N E I R A S C O M O AS C I Ê N C I A S SÃO E NÃO SÃO L I V R E S D E V A L O R E S

3 A V A L I A Ç Ã O DA " C I Ê N C I A L I V R E D E V A L O R E S "

Pode o i d e a l de autonomia — de acordo c o m o qual a pesquisa


científica básica é efetivamente " c o n d u z i d a " apenas pelos v a l o -
res cognitivos — ocupar u m papel regulador na prática científica?
Aparentemente, isso decorreria da aceitação de que o objetivo da
ciência é obter e n t e n d i m e n t o do m u n d o , e operacionalmente isso
talvez seja equivalente ao objetivo de "gerar e consolidar teorias
1 \\ a • manifestam e m grau cada vez mais elevado os valores cogni -
t ivos, e referentes a u m c o n j u n t o cada vez m a i o r de d o m í n i o s de
fenômenos e possibilidades".
Contudo, quando o objetivo da ciência é enunciado desta f o r -
ma, ele não pode d i r e c i o n a r a investigação científica, pois não
aponta — para qualquer d o m í n i o - os tipos relevantes de dados
empíricos a serem estabelecidos, as categorias descritivas a p r o -
priadas para fazer relatos observacionais, e os t i p o s de teorias a
serem formuladas para estarem e m contato c o m os dados. Para
tal objetivo, os tipos "certos" de dados e teorias devem ser postos
c m contato, de f o r m a que antes (do p o n t o de vista lógico) do
engajamento na investigação, deve-se adotar o que d e n o m i n o
uma estratégia (cf. SVF, cap.5). Os papéis fundamentais de u m a
«•Htratégia são o de restringir os tipos de teorias que p o d e m ser
5

consideradas e selecionar os tipos de dados e m p í r i c o s aos quais


•e devem adequar as teorias aceitáveis.

ESTRATÉGIAS MATERIALISTAS

A m a i o r parte da c i ê n c i a m o d e r n a tende a adotar, quase ex-


1 liisivainente, v á r i a s f o r m a s do que d e n o m i n o estratégias mate-
rialistas (cf. SI /•'. p. 68 9; VAC, cap. 3, 5; Lacey, 1999b): as t e o r i a s

H O 1 ' i i i i i T i l n (Ir " I ' H l i a l c g i a " d e r i v a d o e o n c e i l o k i i l i n i a n o d e " p a r a d i g m a " (cf. .STF. p. 361).
Hugh Lacey

são restritas àquelas que representam f e n ô m e n o s e a r r o l a m pos-


sibilidades (as possibilidades materiais das coisas) e m t e r m o s de
serem geradas a p a r t i r de estruturas, processos, interações e leis sub-
jacentes, abstraídos de qualquer relação que possam t e r c o m ar-
ranjos sociais, vidas e experiências humanas, de qualquer v í n -
culo c o m valores (não empregando assim categorias teleológicas,
i n t e n c i o n a i s ou sensoriais), e de quaisquer possibilidades so-
ciais, humanas e ecológicas que possam estar abertas a elas. 6

Reciprocamente, os dados empíricos são selecionados não apenas


p o r satisfazerem à condição de intersubjetividade, mas t a m b é m
p o r q u e suas categorias descritivas são e m geral quantitativas,
aplicáveis e m v i r t u d e de operações de medida, i n s t r u m e n t a i s e
experimentais (cf. Lacey, 1999c).
Por que a comunidade científica m o d e r n a adotou, quase ex-
clusivamente, estratégias materialistas? Ao colocar esta questão,
pressuponho que as possibilidades das coisas não são esgotadas
p o r suas possibilidades materiais, e que existem formas de i n -
vestigação e m p í r i c a s i s t e m á t i c a nas quais possibilidades não
m a t e r i a i s p o d e m ser investigadas. 7
Chamarei q u a l q u e r f o r m a

6 Aregularidade (lawfulness) - ou seja, o caráter dos fenômenos de se darem de acordo com


leis - está no núcleo das estratégias materialistas, cujas variações resultam de restrições
adicionais impostas sobre o que deve ser considerado uma l e i , ou sobre as variáveis
admissíveis nas leis. Minha explicação das estratégias materialistas poderia com facilidade
ser alternativamente expressa nos termos da visão de Giere (1999) sobre as teorias como
modelos abstratos (ou conjuntos de modelos) que representam aspectos do mundo (fenô-
menos e as possibilidades que eles admitem) cujos componentes possuem propriedades
quantitativas e são estruturados de forma tal que seus processos e interações exemplificam
"princípios matemáticos". Assim, o princípio matemático torna-se a noção central, em vez
da lei (cf. Giere, 1999. cap. 5).
7 Muitos objetos - inclusive fenômenos experimentais e tecnológicos - cujas possibilida
des materiais são bem captadas por estratégias materialistas também são objetos sociais,
objetos de valor social. Para que se possa entendê-los completamente (SVF, p. 99-100), é
necessário fazer referência às descrições humanas/sociais que podem ser especificadas por
suas condições de contorno e condições iniciais, bem como por seus efeitos - captando
assim as possibilidades que essas coisas têm em virtude de suas relações com seres huma
nos. condições sociais e (de forma mais ampla) com os sistemas de coisas Identifiquei alliu
As M A N E I R A S COMO A S C I Ê N C I A S SÃO E NÃO SÃO L I V R E S D E V A L O R E S

de investigação e m p í r i c a sistemática u m a f o r m a de " c i ê n c i a " .


Tratarei as questões postas como equivalentes a: quais p o d e r i a m
ser os fundamentos racionais da adoção v i r t u a l m e n t e i n c o n t e s -
tável de estratégias materialistas na ciência moderna?
Uma resposta c o m u m (cf. SVF, p. 104-9; cap. 5) baseia-
se na metafísica materialista: a ciência t e m p o r objetivo entender
0 m u n d o da forma como ele é — o m u n d o material - i n d e p e n d e n -
temente de suas relações c o m os seres humanos; as estratégias
materialistas (e somente elas) f o r n e c e r i a m categorias a p r o p r i a -
das para esse objetivo. U m a segunda resposta pode ser extraída
de Kuhn: não é a natureza do " m u n d o m a t e r i a l " , mas o m o m e n t o
historicamente contingente de nossas práticas de pesquisa que
ilc manda a adoção de estratégias materialistas. Adotadas i n i c i a l -
mente (de forma racional) porque ajudavam a resolver quebra-
cabeças que t i n h a m permanecido como anomalias no contexto
de antigas estratégias, as estratégias materialistas c o n t i n u a r a m a
p r e d o m i n a r e m v i r t u d e de sua fecundidade: a p a r t i r delas, o d o -
no n io de teorias que se t o r n a r a m corretamente aceitas é amplo e
variado, e c o n t i n u a a desenvolver-se nessa direção. Isso é s u f i -
• lente para justificar o privilégio atualmente concedido às estra-
tégias materialistas, pois, de acordo c o m K u h n , a prática histórica
da ciência é mais b e m conduzida quando a comunidade científi-
ca adota uma única estratégia até que seu potencial se esgote.
Tendo criticado alhures essas duas respostas (cf. SVF, cap. 6 , 7 ;
Licey, i 9 9 9 d ) , passo diretamente à terceira resposta, que julgo
N«T a mais convincente (cf. SVF, cap. 6 ) . Considere-se a questão:
11111 1 si 1 alégias deveriam ser adotadas p o r alguém que deseja o b -
h 1 leorias corretamente aceitas que a p r o f u n d a r i a m a i m p l e m e n -

•• 1
'"' ralegias promissoras segundo as quais possibilidades não materiais pode-
" ' w .1 o . i i l . r , para pesquisa na agricultura, estratégias agroecológicas (l.acev.
t•!'<'»'••. I'•«•.! pesquisa na liiologia psicossocial, estratégias feministas. Antes da hegemonia
(Ian rnliuiegiiiM materialista*, as estratégias aristotélicas foram dominantes (cf. SVF, cap. 8,
I , <J, rrxpei lu.linenle)

47
H u g h Lacey

tação da valorização m o d e r n a do controle? A m e u ver a resposta,


e m geral, é a seguinte: as estratégias materialistas, pois as pos-
sibilidades do controle h u m a n o dos objetos são u m subconjunto
de suas possibilidades materiais. Por que então as estratégias m a -
terialistas são privilegiadas? A resposta (elaborada e m SVF, p. 115 -
-2,6) reside na seguinte sugestão: existe u m a interação de reforço
mútuo entre a pesquisa conduzida segundo estratégias m a t e r i a -
listas e o c o m p r o m i s s o c o m a valorização m o d e r n a do controle.

VALORES E A ADOÇÃO DE UMA ESTRATÉGIA

Generalizando a terceira resposta, obtemos o seguinte qua-


dro (cf. SVF, conclusão): quando se adota uma estratégia, de fato
se estabelece, nos t e r m o s mais gerais, os tipos de f e n ô m e n o s e
possibilidades escolhidos para serem investigados; no caso das
estratégias materialistas, as possibilidades materiais das coisas
e dos f e n ô m e n o s e m espaços nos quais suas possibilidades são
esgotadas p o r suas possibilidades materiais. A d m i t i n d o a fecun-
didade como u m a condição necessária para c o n t i n u a r a adotar
u m a estratégia racionalmente, nada há de logicamente i m p r ó p r i o
e m u m a influência vigorosa dos valores sociais sobre essa esco-
lha. Então, a aceitabilidade de teorias geradas segundo u m a estra-
tégia é julgada à luz dos dados e dos valores cognitivos. E i m p o r -
tante m a n t e r separados os papéis dos valores cognitivos e sociais
(cf. Lacey, 1999b). Seus diferentes p a p é i s r e f l e t e m diferentes
m o m e n t o s (do p o n t o de vista lógico) associados à escolha de
teorias. E m u m primeiro m o m e n t o , quando perguntamos: "que
características as teorias devem possuir para serem provisória
mente consideradas?", as estratégias ocupam u m papel-chave.
Logicamente, elas atuam no início. Então, e m u m segundo m o -
m e n t o (lógico), quando perguntamos: "quais das teorias que se
adaptam às restrições da estratégia devem (se é que alguma deve)

4.8
As M A N E I R A S C O M O AS C I Ê N C I A S SÃO E NÃO SÃO L I V R E S D E V A L O R E S

I I aceitas?", exclusivamente o papel dos valores cognitivos, à luz


01 dados e m p í r i c o s e de outras teorias aceitas, deve ser d e c i -
sivo. O valores sociais não possuem u m papel legítimo no segun-
0 momento agindo ao lado dos valores cognitivos, mas no p r i -
leiro m o m e n t o uma estratégia pode ser adotada e m função das
lações de reforço mútuo que t e m c o m os valores sociais, para
quais se espera que as teorias desenvolvidas segundo a estra-
égia t enham significado. Na medida em que uma estratégia exibe
8

h características gerais das possibilidades que se deseja captar,


ma teoria corretamente aceita capta as possibilidades genuínas,
esde que as razões para adotar (e c o n t i n u a r a adotar) uma es-
rntégia devem apelar para fatores d i s t i n t o s de e suplementares
bl valores cognitivos, segue-se que a autonomia não é (mesmo
III princípio) realizável.
Com este quadro, estou p r o p o n d o que o sucesso da pesquisa
inluzida sob estratégias materialistas c o n t r i b u i para a conso-
açâo social da valorização m o d e r n a do controle e para sua i n -
lliicncia e m mais e mais esferas da vida, e isso pode, e m grande
1 1 1
la, explicar a razão pela qual é relativamente pouco contes-
Ilda Mas racionalmente isso não e l i m i n a , p o r si s ó , o interesse
I m pc 1 s|lectivas de valor alternativas e de estratégias de pesquisa
1 'i 11 ais elas p o d e m estar dialeticamente vinculadas. O quadro é
istente c o m a existência de u m a m u l t i p l i c i d a d e de estraté-
> M Iccundas, cada uma delas e m interação c o m uma perspectiva

11 1 , 1
momento não pode ser realizado sem a realização prévia do primeiro; mas
11 11.10 se apoia de forma alguma nas relações dialéticas entre estratégias e valores.
W v r i i l i i d e . sei capaz de reconhecer a lógica em ação no segundo momento pode depender
(palnilugicamcnlc) do engajamento na pesquisa feita segundo essas estratégias. A pesqui-
M poili o.lo s e i i o m l i i / i i l a e m unia determinada área porque os resultados a serem obtidos
••oioiiHidriailos potencial mente significantes. Mas uma teoria só pode tornar-se aeei-
W ( l i o « r g u n i l o momento) se a pesquisa relevante - investigação no primeiro momento -
||Vf 1 alilo leali/.ida Segue se que uma teoria não pode ser aceita a menos que seja poten-
>|>liiienli' mgiiilicanle. (lunlimi.i a ser um erro grave derivar a falsidade das teorias da au-
M111 I l i d e Ki^iiiln . o u 1.1 potencial, ou de seu fracasso em ajustar se às restrições das estraté-
Hugh Lacey

de valor particular, explorando u m a diferente classe de p o s s i b i -


lidades, e gerando teorias que se t o r n a m corretamente aceitas,
de forma que cada u m a p e r m i t a a encapsulação confiável das pos-
sibilidades de interesse para as respectivas perspectivas de v a -
lor. Considere-se a pesquisa agrícola. Segundo u m a estratégia -
a estratégia materialista - , as possibilidades para a prática agrícola
abertas pela pesquisa biotecnológica são exploradas; segundo outra
estratégia, as possibilidades de m e l h o r a r os m é t o d o s da a g r i -
cultura orgânica pelo desenvolvimento dos métodos locais " t r a -
d i c i o n a i s " agroecológicos (cf. SVF, cap. 8 e as numerosas r e f e r ê n -
cias que são citadas a l i ; VAC, cap. 6; Lacey, 1999a; cap. 6 a seguir).

IMPARCIALIDADE SEM NEUTRALIDADE

As questões que surgem aqui são complexas. Por u m lado, se


ambas as estratégias se revelassem fecundas, isso pareceria u m
ganho indubitável, que nos p e r m i t i r i a i d e n t i f i c a r classes a d i c i o -
nais de possibilidades p r o m o v e n d o , assim, o objetivo de i n c r e -
m e n t a r o e n t e n d i m e n t o "do m u n d o n a t u r a l " . Por outro lado, t a l -
vez não seja possível realizar c o n j u n t a m e n t e duas possibilidades
genuínas: a i m p l e m e n t a ç ã o , e m u m a escala significativa, de uma
agricultura i n f o r m a d a pela biotecnologia tende a solapar as c o n -
dições para a agroecologia e vice-versa (cf. Lacey, 1999a; cap. 6 a
seguir). Por que, então, ter o trabalho de explorar possibilidades,
a menos que elas t e n h a m condições de se realizar? A s s i m , e m -
bora o quadro p e r m i t a uma m u l t i p l i c i d a d e de estratégias, ele t a m -
b é m ajuda a explicar p o r que existem p r e s s õ e s contra a realização
dessa m u l t i p l i c i d a d e . Essas p r e s s õ e s não negam que teorias acei -
tas segundo estratégias dominantes possam ser aceitas de acordo
c o m a imparcialidade (como acontece c o m u m n ú m e r o sempre
crescente de teorias aceitas segundo as estratégias materialistas),
mas colocam obstáculos ao m o v i m e n t o e m direção à neutralidade.

no
As M A N E I R A S C O M O AS C I Ê N C I A S SÃO E NÃO SÃO L I V R E S D E V A L O R E S

Na verdade, as questões são ainda mais complexas. Não pare-


ce haver coerência sequer e m tentar explorar decididamente (sem
falar na tentativa de i m p l e m e n t a r simultaneamente) todas as pos-
sibilidades "do m u n d o n a t u r a l " , pois, como a pesquisa exige c o n -
(I ições materiais e sociais, e as condições necessárias para a pes-
quisa segundo diferentes estratégias p o d e m ser incompatíveis,
mesmo a condução da pesquisa que explora u m a classe de possi-
bilidades pode i m p e d i r a exploração investigativa de outra classe.
Práticas de pesquisa p o d e m ser profundamente incompatíveis,
tanto assim que elas não p o d e m ser realizadas conjuntamente c o m
integridade no mesmo m e i o social (cf. SVF, cap. 7, 8 ) . Portanto,
os valores intensamente manifestados e incorporados na socie-
dade p o d e m ser decisivos na explicação de quais tipos de e n t e n -
d i m e n t o e m p í r i c o sistemático realmente são obtidos e, assim,
i t i r n a m - s e disponíveis para a aplicação (cf. nota 8 ) .
Existe atualmente u m desequilíbrio entre os recursos d e s t i -
nados à pesquisa na agricultura i n f o r m a d a pela biotecnologia e à
pesquisa na agroecologia. Embora tal desequilíbrio não afete as
descobertas positivas obtidas pela p r i m e i r a , é pouco provável que
obtenhamos conhecimento adequado c o m relação às alternativas
|gr< iccológicas e uma consciência fortemente compartilhada dos
"eleitos colaterais" ecológicos e sociais das i m p l e m e n t a ç õ e s b i o -
tecnológicas, p o r exemplo, de que as sementes se t r a n s f o r m a m
cada vez mais completamente e m mercadorias (cf. SVF, cap. 8 ) .
b u n a s biotecnológicas que i n f o r m a m práticas agrícolas podem
••<•" aceitas de acordo com a imparcialidade e. assim, podemos es-
I» 1 i r que ao a p l i c á - l a s obteremos os resultados esperados, pelo
111C008 a curto prazo: r e n d i m e n t o s maiores, aplicações menores
di i n s u m o s etc. A pesquisa sustenta a eficácia das aplicações;
c. o n d e a valorização moderna do controle está presente e i n c o r -
|>orada em alto grau. a eficácia pode ser na prática considerada
'min iciile para a legitimação. Mas a legitimação não deriva ape-
nas da eficácia, mas da contribuição para o bem-estar h u m a n o ; e
Hugh Lacey

assim, no caso presente, p r e s s u p õ e - s e a ausência tanto de i n d e -


sejáveis "efeitos colaterais" preponderantes quanto de alterna-
tivas agrícolas " m e l h o r e s " , p r e s s u p o s i ç õ e s que têm sido contes-
tadas, p o r e x e m p l o , p o r a m b i e n t a l i s t a s e agroecologistas (cf.
Lacey, 1999a; cap. 6 a seguir; A l t i e r i , 1998).

AMPLIANDO os HORIZONTES DA INVESTIGAÇÃO E M P Í R I C A

Para m u i t o s , o quadro esboçado acima é profundamente p e r -


turbador. É verdade que ele nega u m papel aos valores sociais e
morais na escolha de teorias. Mas de acordo c o m ele a prática da
pesquisa científica básica não se coloca para além das disputas
de valor: o privilégio v i r t u a l m e n t e exclusivo concedido às estra-
tégias materialistas, p o r exemplo, é apenas tão racional quanto a
adoção da valorização m o d e r n a do controle. Isso p e r m i t e a ado-
ção (sujeita à condição de fecundidade) de estratégias a l t e r n a t i -
vas e m v i r t u d e de p o s s u í r e m interações de reforço mútuo c o m as
perspectivas de valor que contestam a valorização m o d e r n a do
controle - aparentemente sujeitando a escolha de estratégia ao
mesmo t i p o de questionamento que é n o r m a l m e n t e encontrado
a respeito de valores morais e sociais. Não há razão para que não
seja assim. A concessão de privilégio às estratégias materialistas
não pode ser adequadamente fundamentada e m dados e m p í r i -
cos. M e u quadro nos impele a a m p l i a r os horizontes da i n v e s t i -
gação e m p í r i c a .
Como fazer isso? Lembremos da questão: p o r que conceder
privilégio às estratégias materialistas? A resposta é: porque elas
são fecundas e i n t e r a g e m de maneiras mutuamente reforçadoras
c o m a valorização m o d e r n a do c o n t r o l e . Porque sustentar a valo
rização m o d e r n a do controle? Parte da resposta envolve o apelo a
seus pressupostos. Mas, em geral, eles não p o d e m ser investiga
dos e m p i r i c a m e n t e a p a r t i r de estratégias materialistas e, assim,

W
As M A N E I R A S C O M O AS C I Ê N C I A S SÃO E NÃO SÃO L I V R E S D E V A L O R E S

a pesquisa conduzida exclusivamente segundo essas estratégias


não pode r e a l i m e n t á - l a s e fornecer a estas algum suporte ou c r í -
tica. Para isto, precisamos m u l t i p l i c a r as estratégias.
D e f i n i a n t e r i o r m e n t e a imparcialidade como u m valor das p r á -
ticas científicas: aceitar teorias se e somente se elas manifestam
os valores cognitivos e m alto grau. O compromisso c o m a neutra-
lidade envolve estender o alcance de d o m í n i o s nos quais conso-
lidamos teorias aceitas de acordo c o m a imparcialidade - tendo
em vista, eu sugiro, o ideal de que qualquer crença que desempe-
nhe u m papel na informação ou legitimação de qualquer prática
social c o n t e m p o r â n e a significativa está sujeita a escrutínio e m -
pírico apropriado. Quando a pesquisa é conduzida quase exclusi-
vamente segundo estratégias materialistas, obtemos numerosas
teorias corretamente aceitas que i n f o r m a m numerosas aplica-
ções eficazes (geralmente de interesse para a valorização m o d e r -
na do controle), mas raramente a pesquisa é relevante d i r e t a m e n -
te para os pressupostos que l e g i t i m a m a valorização m o d e r n a do
controle ou, p o r exemplo, para as práticas agrícolas que são as
expressões desta última. Devemos então c o n c l u i r que esses pres-
• IIpostos são i m p l i c i t a m e n t e aceitos porque servem para l e g i t i -
mar a valorização m o d e r n a do controle - que os valores sociais
estão ao lado ou no lugar dos valores cognitivos e, p o r t a n t o , que
••••••«•* pressupostos não são aceitos de acordo com a imparcialida-
de e, por conseguinte, são ideológicos?
I ronicamente, ou paradoxalmente, este impasse poderia t a l -
vez ser desfeito p e r m i t i n d o - s e a pesquisa sob múltiplas estraté-
' ' Mas as condições exigidas para conduzir tal pesquisa p o -
11 e 1111 ião estar facilmente disponíveis onde a valorização moderna
il o i r o l e se manifesta intensamente, de forma que sua c o n -
Im. 1 0 p o d e já envolver o c o m p r o m e t i m e n t o c o m u m a perspecti-
v .1 di \ a l o r «pie c o n t e s t a a valorização m o d e r n a do controle. Não
i i l i i i l a n t e , .1 m e n o s i p i e a p e s q u i s a seja c o n d u z i d a s e g u n d o m ú l l i
piau e s t r a t é g i a s ( i n c l u i n d o e s t r a t é g i a s n a u m a t e r i a l i s t a s ) , q u a l
Hugh Lacey

quer perspectiva de valor deve apoiar-se e m p r e s s u p o s i ç õ e s c r u -


ciais não aceitas de acordo c o m a imparcialidade. Portanto, a neu-
tralidade não seria u m ideal alcançável.

ENDOSSANDO A NEUTRALIDADE?

O conteúdo da neutralidade i n c l u i o desejo de m i n i m i z a r a p r o -


habilidade de que u m c o n j u n t o de valores seja preponderante no
direcionamento da pesquisa científica. A t r a d i ç ã o d o m i n a n t e j u l -
gou que a f o r m a de alcançar t a l objetivo consistiria na condução
da pesquisa segundo estratégias materialistas, que não p e r m i -
t e m o uso de termos impregnados de valor na formulação de teo-
rias. M i n h a alternativa é m u l t i p l i c a r estratégias de f o r m a que os
interesses das numerosas perspectivas de valor possam v i r a ser
informados pelos resultados b e m estabelecidos da pesquisa c i e n -
tífica e, assim, que os pressupostos fundamentais das perspecti-
vas de valor que i n f l u e n c i a m a adoção de estratégias particulares
possam ser investigados e m p i r i c a m e n t e . 9

Considere-se, p o r exemplo, o pressuposto (d) da valorização


moderna do controle: não existe agora possibilidade alguma para
a intensa incorporação social de perspectivas de valor que não
contenham a valorização m o d e r n a do controle (cf. VAC, cap. 8,
para a discussão acerca da questão geral da investigação de "pos
sibilidades f u t u r a s " ) . Esse pressuposto é reforçado p o r várias
pressuposições mais específicas: p o r exemplo, aquelas amiúde
empregadas para l e g i t i m a r a implementação acelerada da agri

9 Isto dá origem a questões importantes acerca de quem são os membros das comunidade!
engajadas na investigação empírica sistemática (científica), se elas incluem apenas "pro
fissionais" com qualificações específicas, e se é também apropriado exigir que exista, enl re
os membros das comunidades, uma disseminação das perspectivas de valor (cf. a discusuílo
a respeito da autonomia emSVF, cap. 4, 10). Também são levantadas questões a respeito do
lugar da ciência na democracia (cf. Anderson, 1999).
As M A N E I R A S C O M O AS C I Ê N C I A S SÃO E NÃO SÃO L I V R E S D E V A L O R E S

cultura informada pela biotecnologia: " n ã o existem p o s s i b i l i d a -


des significativas perdidas e m v i r t u d e dessa i m p l e m e n t a ç ã o " e,
"sem ela, não se produzirá comida suficiente para a l i m e n t a r a
crescente população m u n d i a l " (cf. cap. 6 ) . A pesquisa segundo
estratégias materialistas pode p r o d u z i r respostas para questões
do tipo: "Como podemos maximizar a produção de alimentos e m
condições materiais ótimas?", mas não para questões do t i p o :
"Como podemos p r o d u z i r alimentos de forma que todas as pes-
1088 numa dada região t e n h a m acesso a u m a dieta b e m e q u i l i -
brada e de forma que a estabilidade social e ecológica sejam sus-
tentadas?". Mas a alegação da não existência de possibilidades
perdidas não pode ganhar suporte empírico sem responder e m -
pi ricamente a questões como esta última. A s s i m , a menos que
• 11 atégias agroecológicas sejam definidas de t a l forma que essas
111 listões sejam abordadas de forma sistemática e e m p í r i c a , pres-
Hiiposições como "sem perda de possibilidades" devem m a n t e r
m u caráter essencialmente ideológico. Estratégias agroecológi-
cas, que p o d e m i n c o r p o r a r estratégias materialistas e m u m papel
lubo rdinado, obj etivam conceber práticas agrícolas sem abstraí -
I i «las relações sociais e ecológicas das quais elas p a r t i c i p a m -
I podem m u i t o b e m ter continuidade c o m o "conhecimento t r a d i -
clonal" de uma cultura. Talvez elas não se revelem fecundas, mas
i v , u não pode ser estabelecido antes do engajamento na pesquisa
1111eiilada por elas (cf. Lacey, 1999a; cap. 6 a seguir; A l t i e r i , 1998).
A definição e o desenvolvimento de tais estratégias p r o m o v e -
1 i a m a neutralidade (cf. SVF, cap. 10); e t a m b é m envolveriam i n -
li rações mutuamente reforçadoras com várias perspectivas de
vá In r q ue contestam a valorização m o d e r n a do controle - as pers-
prcl ivas de grupos ambientalistas e — algo que me interessa par-
ll( 111.11 m e n t e - de m o v i m e n t o s populares de alguns p a í s e s do
t e r r e i r o m u n d o " que visam fortalecer os valores do "bem-estar,
da iniciativa, <• da comunidade locais" (cf. SVF, cap. 8; VAC, cap. 1,
'.1 \ l e t n d i s s o , se e l a s se r e v e l a r e m fecundas, s e u s p r o d u t o s
Hugh Lacey

p o d e m c o n t r i b u i r para i n c r e m e n t a r a manifestação desses valo-


res - fornecendo bases adicionais para contestar a valorização
moderna do c o n t r o l e . Os impactos da neutralidade e da valoriza-
ção moderna do controle têm direções opostas.

4 CONCLUSÃO

A ciência é livre de valores? Está claro agora que u m a resposta


" s i m ou n ã o " seria enganadora. E m vez disso, precisamos d i s -
c e r n i r as maneiras como a ciência é e não é livre de valores. Eis
m i n h a conclusão: a autonomia não é realizável. A neutralidade é
suscetível de manifestação mais completa nas práticas científi-
cas, mas as trajetórias das práticas dominantes no m o m e n t o não
p r o m e t e m ocasionar manifestação mais completa, t a n t o que é
p o s s í v e l q u e s t i o n a r se as p r á t i c a s científicas m o d e r n a s estão
comprometidas c o m o avanço da neutralidade. Mas a imparciali-
dade permanece u m valor central das práticas de pesquisa c o n -
duzidas segundo qualquer e s t r a t é g i a . 10

10 Permanecendo comprometidos com a imparcialidade, tornamo-nos livres para ir além


da ciência livre de valores. Para algumas outras implicações, ver Lacey, 1999^, seção final;
Lacey, 1999c

«6
CAPÍTULO 2

A localização social das práticas cientificas

Atradição majoritária da ciência moderna nega a historicidade das


práticas científicas. Nega que o caráter delas mude, e que deva
mudar, de modos fundamentais que surgem historicamente . s e n -
do sensíveis a, e moldados por, circunstâncias variáveis. Na Se-
ção í, identifico várias pressuposições que têm sido c o m frequên-
cia usadas para sustentar essa negação, p r i n c i p a l m e n t e as de que
o objeto da ciência é a - h i s t ó r i c o , e sua metodologia essencial-
mente imutável, e de que o caráter da metodologia científica b á -
sica não está dialeticamente vinculado à ciência aplicada. Na Se-
ção 2, subscrevo a rejeição p o r parte de K u h n das pressuposições
sobre o objeto e a metodologia imutáveis da ciência, referendan-
do assim aquilo a que Margolis (1995, p. 3 ? i ) se refere como uma
"notável (mas u m tanto diluída) " versão da historicidade da c i ê n -
cia. A seguir, na Seção 3, c o m base e m uma análise detalhada da
controvérsia entre a biotecnologia agrícola e a agroecologia, i n d o
além de K u h n , rejeito t a m b é m a outra p r e s s u p o s i ç ã o , da i n e x i s -
tência de vínculos dialéticos entre metodologia e aplicação.
Mais precisamente, m e u argumento é o de que o caráter das
práticas científicas reflete relações m u t u a m e n t e reforçadoras
com sua localização social, isto é, relações c o m as perspectivas de
valor das pessoas e instituições responsáveis p o r elas, e c o m os
interesses a serem servidos p o r meio da aplicação de seus p r o -
dutos. Isso está a u m passo do endosso a u m a versão "não diluí-
da" da historicidade das práticas científicas, que admite a possi-
bilidade de variações no caráter das práticas científicas estarem
dialeticamente vinculadas a variações históricas e culturais no
domínio da vida e experiência cotidianas, e nas estruturas da p r á -
lica social.

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