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Introdução
As populações indígenas estavam aqui quando chegaram os europeus e permaneceram
aqui vivenciando os contatos, defendendo seu território, combatendo as imposições arbitrárias ou
fazendo alianças ao longo dos quinhentos anos. Mas, a presença indígena na história brasileira
tem sido pouco estudada nas escolas, o que pode ser explicado, em parte, por conta de os
currículos (sustentados no diálogo com a historiografia tradicional) priorizarem a trajetória do
colonizador no continente americano, suas conquistas e o processo de estruturação do estado
nacional. A escola carece, assim, de material didático que possibilite outras abordagens,
iluminando a presença dos povos indígenas nos contextos históricos, seja evidenciando as
manobras dos colonizadores, ou demonstrando como as ações de resistência e luta pela
sobrevivência foram sendo concretizadas, interferindo nos acontecimentos ao longo dos séculos.
No Brasil colonial, por exemplo, as nações europeias disputavam domínio sobre o 1
território brasileiro. Estiveram aqui portugueses, franceses, ingleses, espanhóis, holandeses, em
diferentes regiões e circunstâncias. Na região do Maranhão, os franceses se empenharam em
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Profa. Dra. do Departamento de História da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de
São Paulo e coordenadora do Laboratório de Ensino e Material Didático – LEMAD-História/FFLCH/USP.
fazer aliança com os Tupinambá, que tinham, anteriormente, vivenciado experiências
conflituosas com os portugueses. Foi nesse contexto em que o padre capuchinho Claude
Abbeville chegou ao Brasil (1612) e conheceu os Tupinambá. Publicou sua obra em 1614 e nela
encontramos várias passagens salientando as discórdias entre indígenas e portugueses.
Esse é um trecho da obra:
Nesse texto selecionado, Abbeville conta que os lusos se apoderaram de parte da floresta
onde viviam os Tupinambá. Relata que os nativos optaram por serem livres e não se submeterem
aos portugueses. O autor valoriza, então, o comportamento dos Tupinambá como valentes,
guerreiros, livres e inimigos da sujeição. De algum modo, os elogios atendiam aos interesses
franceses, já que a intenção era que os indígenas fossem seus aliados contra os portugueses. Mas,
ao mesmo tempo, conta a escolha dos Tupinambá – deixar seu território. Essa era uma atitude de
como enfrentar o problema da expansão colonial. Nessa perspectiva, abandonar a floresta pode
ser entendida como uma ação de resistência, negação ou sobrevivência, escolhida diante da
conjuntura.
As situações vividas pelos povos indígenas no Brasil têm sido muito difíceis, diante das 2
políticas de invasão de suas terras e imposição de outro modo de vida. Essas situações eram mais
complexas no período colonial, tendo cada indivíduo, aldeia ou povo ter que encontrar
alternativas de luta, negociação e sobrevivência. É sobre algumas dessas formas de luta, que
conceituamos como protagonismo indígena, que foi organizada uma seleção de documentos dos
séculos XVII e XVIII. As fontes escolhidas contam como, em diferentes ocasiões, os povos
indígenas enfrentaram as dificuldades impostas pelo mundo colonial. A intenção é oferecer aos
professores e estudantes essa seleção documental como material didático para o ensino de
História.
Resistências Indígenas
O trecho do padre Abbeville, reproduzido acima, inicia o que denominamos de kit
didático, que possui como título “Trabalho e Resistências Indígenas na América Portuguesa”.
Nesse kit, além do texto do capuchinho francês, apresentamos mais seis documentos, que foram
pesquisados com o auxílio da historiadora Luma Ribeiro Prado, na época mestranda da História
Social da FFLCH/USP, estudiosa das lutas indígenas no Maranhão, que atuou como monitora do
Programa de Formação de Professores da USP. A proposta desse kit é oferecer a leitura dessas
fontes documentais analisando as legislações portuguesas que regularam os aldeamentos (1686)
e, posteriormente, os diretórios (1755) e as manifestações de resistências indígenas.
Assim, um dos documentos é trecho do “Regimento das Missões de 1686”, que
organizava os indígenas em um sistema de aldeamentos, administrados por padres. Os
missionários tinham como função manter povoados os territórios dominados pelos portugueses e
submeter os indígenas a jornadas de trabalho, seja nas fazendas dos moradores, nas entradas no
sertão ou em serviços públicos. Além disso, a política de aldeamentos tinha por finalidade
convertê-los à cultura não-indígena e, consequentemente, evitar conflitos entre eles e os agentes
coloniais – missionários ou colonos. Todavia, os conflitos emergiam diante das imposições
portuguesas. E é isso que identificamos em um documento de 1726 – “Certidão de justificação
do missionário carmelita Frei Timóteo de Santa Bárbara” –, que está como anexo de um
despacho em resposta do Conselho Ultramarino à carta do governador do Maranhão, sobre a
conservação da liberdade de alguns indígenas dos sertões do Amazonas. Nessa certidão, o padre
carmelita conta a história da índia Inês, que morava na Missão de Nossa Senhora do Carmo de
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Yruçumirim e depois na de Santana de Paratari. No relato, ficamos sabendo que Inês fugiu das
duas missões e que em uma delas eclodiu uma revolta dos aldeados. Então, com esse e outros
documentos propomos aos estudantes debater as estratégias de resistências, revoltas e fugas,
possivelmente por conta das condições de vida e de trabalho que os indígenas enfrentavam nos
aldeamentos.
A resistência à escravidão também ocorria através de petições institucionais. E uma
seleção desses documentos compõem o kit didático “Mão de obra na colonização portuguesa na
Amazônia no século XVIII e impasses na sobrevivência indígena”. A proposta sugere a leitura
dos documentos, com a identificação do tipo de fonte, a autoria, data, destinatário, o que estava
sendo solicitado, a argumentação defendida, quem era beneficiado, quem julgou a petição, o
poder de quem prevaleceu, etc... E, na confrontação das petições, há a proposição para avaliar o
que havia de comum entre aqueles que as apresentavam, quem as julgavam, quem eram os
beneficiados e qual história pode ser organizada como decorrência da análise do conjunto das
fontes. Entre as histórias que delas decorrem, há os indícios das condições ilícitas da
escravização, através das denúncias de sua ilegalidade, junto com as solicitações de liberdade,
encaminhadas aos tribunais das “juntas de missões”, às ouvidorias ou mesmo ao rei. Por
exemplo, uma das petições para análise é a da Índia Maria, que afirmava ser injusto seu
cativeiro, ganhando sua liberdade, já que no documento há o relato de que seus escravizadores
não apresentaram o título que comprovasse outra condição.
Escravidão indígena 4
Um outro Kit Didático, que recebe o título “Escravização indígena e ocupação de terras
na Amazônia portuguesa no século XVIII”, organizado por nosso grupo de estudo no
Laboratório de Ensino e Material Didático – LEMAD/FFLCH/USP, propõe dois documentos
que contribuem para debater as práticas ilegais diante da legislação portuguesa de 1688, que
além de instituir os aldeamentos, também fazia referência à “guerra justa”, que permitia
escravizar os nativos quando ocorriam conflitos e resistências à presença lusa e de seus aliados,
nas situações de aproximação e de contato. Um dos documentos é, então, uma carta escrita por
Francisco Xavier de Mendonça Furtado, à época governador e capitão-general do estado do
Grão-Pará e Maranhão, que foi destinada ao seu irmão, Marquês de Pombal, Secretário de
Estado da coroa portuguesa.
A carta, datada de 10 de novembro de 1752, denunciava a ilegalidade prática de
escravização indígena na Amazônia portuguesa. Francisco Xavier de Mendonça Furtado contava
ao irmão que, contrariando a lei de 1688, as tropas de resgate enviadas ao sertão, que tinham
autorização para capturar gentios por meio de guerras defensivas e ofensivas, sem a única
intenção de vende-los, estavam na verdade capturando-os a partir de estratégias ilícitas.
Afirmava que, um dos meios, era a pressão que as tropas faziam nos chefes indígenas para
declararem guerra e aprisionarem gentis de outras aldeias, para depois trocarem esses
prisioneiros por poucas “bagatelas”, transformando-os em escravos, para serem comercializados
como mão de obra. Outro meio era enganar alguns povos e, com algum pretexto de amizade,
pegá-los desprevenidos, aprisioná-los e levá-los para vender no arraial. Quando os capturados
iam ser julgados livres ou escravos por um missionário, responsável por avaliar a legalidade de
sua condição, eram então coagidos violentamente a responderem o que seus captores
determinavam. Então, no exame eram julgados como legalmente cativos, sendo os padres
examinadores coniventes com a ilegalidade. Desse modo, dizia na carta, que havia uma grande
quantidade de indígenas escravizados que eram verdadeiramente livres, provocando relações de
ódio aos portugueses, incentivando-os a buscar proteção a outras nações, que tendiam a expandir
seus territórios, enquanto os domínios portugueses diminuíam, já que as terras nas Américas
eram garantidas por meio de alianças com os povos indígenas.
A proposta de leitura e análise dessa carta favorece estudos escolares de como eram as
leis e os comportamentos durante o processo de colonização portuguesa no Brasil, no Grão-Pará
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e Maranhão, em relação às populações indígenas: as tropas de resgate, os mecanismos de
imposição da escravidão indígena, o emprego da mão de obra indígena como força de trabalho e
o envolvimento dos padres missionários no cruel processo de escravização.
Nesse mesmo kit, como segundo documento para confrontação, há o texto do “Diretório
dos Índios”, de 1755, conhecido como parte das “reformas pombalinas”, que, por um lado,
estabeleceu a liberdade dos nativos, mas, por outro, impingiu a condição dos índios como
tutelados, não mais pelos padres e sim pelo Estado. A intenção é debater na escola como a
mudança na legislação seguiu uma nova orientação que permanecia incluindo os povos indígenas
no projeto colonial. Ou seja, estabeleceu um outro padrão de trabalho e convivência dos
indígenas na sociedade brasileira, incentivando a produção dos nativos para o comércio,
estabelecendo vilas no lugar dos aldeamentos sob administração de diretores e o estímulo ao
casamento entre índios e não-índios. Na conjuntura macro, a legislação reorientou o projeto luso
no Brasil: o comércio passou a ser elemento central para efetivação de um mercado interno,
incentivou a ocupação das terras e transformou os territórios dos povos indígenas, aliados e
súditos, em domínio português.
Conclusões
A proposta desse texto foi apresentar o esforço de organização de materiais didáticos,
para disponibilizar aos estudantes e professores, alguns contextos históricos que podem ser
estudados na escola, priorizando a história indígena, partindo de uma metodologia que se
sustenta na seleção de documentos, com sugestões de questionamentos e confrontações, para a
organização de narrativas históricas. A finalidade desse trabalho procura atender o que a
antropóloga Manuela Carneiro da Cunha tem defendido em relação aos povos indígenas:
Documentos
D’ABBEVILLE, Claude. História da Missão dos Padres Capuchinhos na Ilha do Maranhão
e terras circunvizinhas. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1975.
CORRÊA, Mari e CARELLI Vicente. “De volta à terra boa”, série “Vídeo nas Aldeias”, 2008 -
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=KwXKuOSHE5k>. Acesso em: 04 nov.
2020.
DNER. O inferno está acabando. Departamento de Estradas de Rodagem do Amazonas.
Revista Realidade, Suplemento Especial. Editora Abril, Julho, 1970, p. 49.
Referência bibliográfica
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios na história do Brasil. Rio de Janeiro: FGV
Editora, 2010.
CUNHA, Manuela Carneiro da. Cultura com aspas. São Paulo: Cosac Naify, 2009.
FERNANDES, Antonia Terra de Calazans. Ensino de história e a questão indígena. Revista
História Hoje, v. 1, p. 255-266, 2013. Disponível em:
https://rhhj.anpuh.org/RHHJ/article/view/51, acesso em: 02 nov. 2020.
PRADO, Luma Ribeiro. Cativos Litigantes: demandas indígenas por liberdade na Amazônia
portuguesa – 1706 – 1759. Dissertação de mestrado em História Social, FFLCH/USP, 2019.
Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-19122019-162652/pt-
br.php, acesso em: 02 nov. 2020.
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