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MARIA EDUARDA DA MAIA

 (EÇA DE QUEIRÓS, OS MAIAS)


Personagem do romance Os Maias, onde ocupa um lugar de relevo,
designadamente, na chamada intriga do incesto. Esta é uma das personagens
femininas mais fascinantes da galeria queirosiana. Isso se deve, sobretudo, à forma
dinâmica como é construída, em estreita relação com as demais personagens e
elementos da narrativa; à ambiguidade semântica associada a sua imagem e percurso
existencial; à capacidade de empatia e novidade perante os códigos de leitura da
narrativa realista e queirosiana.

Sem uma descrição prévia e pormenorizada por parte do narrador onisciente,


a imagem de Maria Eduarda é construída progressivamente no relato, por meio de
caracterização direta e indireta, dependente dos olhares, inquirições, dúvidas e
revelações de outras personagens. A própria Maria Eduarda fala pouco de si, apesar
de sugerir qualidades pela forma como se comporta em cena, confessando-se mais
extensa e diretamente apenas na parte final do romance; aliás, ela mesma desconhece
dados do passado, basilares à configuração do seu retrato. Também a composição
espacial emoldura seu perfil, corroborando gostos e costumes, assim como indiciando
dissonâncias e segredos da sua trajetória narrativa.

A narração analéptica, que conta o passado dos Maias no início do romance,


faz pouca menção a Maria Eduarda, que aparece como a filha primogênita do casal
(“uma linda bebê, muito gorda, loura e cor-de-rosa, com os belos olhos negros dos
Maias”; Queiroz, 1997: 1061), preferida de Maria Monforte no litígio do casal (“levo a
Maria que me não posso separar dela”, 1070). Daí são relevantes algumas
características físicas e a alusão a parte do seu nome. A restrição de informações,
especialmente a falta de dados quanto à vida posterior de Maria Eduarda ao lado da
mãe, é essencial para sustentar as dúvidas do avô sobre a neta e, por conseguinte, as
hipóteses do leitor sobre o destino da personagem na intriga.

É como uma estrangeira desconhecida, ao lado do brasileiro Castro Gomes e


da filha Rosa, que Maria Eduarda retorna à narrativa no capítulo VI. Nessa parte, sua
figuração depende da percepção admirada e, imediatamente, apaixonada de Carlos.
Toda adjetivação positiva, ajustada ao ponto de vista dele, cria uma imagem de
excepcional perfeição física, psicológica e comportamental, confirmada na visão de
alguns dos seus amigos. Já as revelações de Castro Gomes e de Guimarães, ao fim da
história, oferecem uma face distinta, subvertendo a qualidade da adjetivação e
fazendo oscilar essa tão favorável projeção de Maria.

A primeira impressão de Carlos adorna a aparência de Maria de esplendor e


majestade: “uma senhora alta, loura”, “com um passo soberano de deusa,
maravilhosamente bem-feita, deixando atrás de si como uma claridade, um reflexo de
cabelos de ouro, e um aroma no ar” (1147). Desde os encontros fortuitos do casal até à
plena convivência, cada vez que o olhar de Carlos “se demorava nela um instante mais,
descobria logo um encanto novo e outra forma da sua perfeição” (1281), insistindo em
compará-la com uma divindade. A mesma apreciação lisonjeadora recai sobre a
natureza espiritual de Maria Eduarda: “Parecia-lhe mais linda, agora que conhecia o
seu sorriso de uma graça tão delicada; era cheia de inteligência, era cheia de gosto; e a
pobre velha à porta, essa doente a quem ela mandava vinho do Porto, revelavam a
sua bondade” (1288). Também as falas e gestos de Maria, indiretamente, expressam
um pensamento sofisticado e moderno, um humor ameno e agradável, uma pose
sensual mas discreta.

Algo vago e misterioso, no entanto, insiste em embotar essa visão tão


harmônica: a presença acessória da cadelinha Niniche nas aparições de Maria (é
notável a insistente referência ao animal na primeira noite de amor com Carlos); as
leituras e objetos pessoais destoantes observados por Carlos no quarto do Hotel
Central; a curiosidade inusitada dela pelo Ramalhete e o confessado temor de Afonso;
as desconfianças diante das excentricidades decorativas da Toca e algumas imagens
simbólicas ali expostas ajudam o leitor atento a desconfiar dos segredos envolvidos na
configuração da personagem.

Esses sinais começam a fazer sentido no retorno de Castro Gomes a Portugal,


que nega a Carlos seu vínculo conjugal e legal com Maria e devolve a ela o atributo de
Madame Mac-Gren. A Carlos, Maria aparece, então, como mentirosa e degenerada,
indigna do amor recebido. No desespero de justificar-se (capítulo XV), ela reage e deixa
transbordar, pela primeira vez, seu conteúdo mais secreto, confessando parte de sua
existência pregressa: não conhecera o pai; passara boa parte da infância e juventude
internada em um convento na França, onde recebera educação formal; ao sair de lá,
tivera de conviver com a vida desregrada da mãe e turbulências de toda ordem, das
quais fugira ao casar-se com o primeiro marido, Mac-Gren, pai de Rosa; com o
falecimento deste na guerra e em obediência aos caprichos da mãe, mudara-se para
Londres, lá sujeitando-se a diversos trabalhos para evitar a fome e sustentar a filha,
inclusive ao envolvimento com Castro Gomes, mesmo sem amá-lo. A intervenção
casual de um conhecido de Maria Monforte em Paris, Sr. Guimarães, complementa os
contornos enigmáticos de Maria Eduarda e define seu destino: era filha de Maria
Monforte e, por conseguinte, irmã e amante de Carlos e neta de Afonso. Esses dados,
porém, são ignorados por Maria e só expressos a ela por João da Ega depois da morte
de Afonso e do afastamento definitivo de Carlos. Por isso, não é possível ao leitor
constatar sua reação emocional diante do avô e do irmão, nem tampouco acusá-la de
ter cometido, conscientemente, a transgressão do incesto.

Tais revelações, se servem para iluminar outras faces de Maria Eduarda, não
são suficientes para arruinar sua integridade moral perante o leitor. Antes, porém, a
neta de Afonso enfrenta com altivez a rede de fatalidades que sobre si recai, distante
da fragilidade romântica do pai e da libertinagem leviana da mãe, e próxima da
postura atribuída idealmente pelo avô à estirpe Maia. Sua dignidade nobre realça,
sobretudo, a força de um destino inexorável e imprevisível, avesso ao controle
sociocultural e educacional. Maria não age voluntariamente para a catástrofe final,
mas cada um dos seus passos vai ao encontro desse destino, como se conduzida por
um poder transcendental, analogamente aos heróis da tragédia clássica. Enfim, seu
percurso figural sublinha uma noção fatalista da existência, em concordância com a
crise de confiança do autor nas coordenadas positivistas do naturalismo.
Sendo assim, é mais difícil ao leitor nutrir sua representação de Maria Eduarda
com decalques comuns da vida real, ou com modelos femininos retirados de páginas
consagradas da época, como o da mulher satânica fatal do Romantismo ou o da
cortesã adúltera do realismo e naturalismo. Também não lhe é possível assemelhar a
personagem a tipos criados por Eça, como a burguesinha entediada da Baixa (O Primo
Basílio), a beata ingênua (O Crime do Padre Amaro), ou mesmo a afetada condessa de
Gouvarinho, envolvida com Carlos. Com uma figuração dinâmica e ambivalente,
baseada em valores mais positivos, Maria Eduarda atrai e surpreende o leitor, que é
convidado a amparar-se nas pistas e nuances do texto para compor e recompor seu
desenho enigmático.

Das várias releituras que, de um jeito ou de outro, contribuíram para alimentar


a sobrevida da personagem no imaginário do público, destacam-se: a minissérie
brasileira, com direção geral de Luiz Fernando Carvalho e roteiro de Maria Adelaide
Amaral, exibida em Portugal e no Brasil em 2001, o filme português, dirigido por João
Botelho, estreado em 2014 ea peça de José Bruno Carreiro encenada no Teatro D.
Maria II em 1945 e reencenada em 1962, a partir da qual surgiu a adaptação televisiva,
em 1979, com realização em cinco episódios por Ferrão Katzenstein. Tais produções, a
segunda de roteiro ainda mais fiel ao texto literário, exploram os principais atributos
físicos e psicológicos da personagem queirosiana e confirmam, pela audiência
extraordinária que tiveram, a permanência da força atrativa desse clássico da
Literatura Portuguesa. Num outro meio de representação artística (o teatro), a
personagem teve a sua sobrevida prolongada em Madame(2000), texto de Maria Velho
da Costa, com encenação de Ricardo Pais. Outras produções: uma adaptação pelo
Teatro Experimental do Porto (2013; encenação de Gonçalo Amorim), outra, com
propósito de apoio ao ensino, por ETCetera Teatro (encenação de Luís Trigo) e ainda a
telenovela Lusitana Paixão, com a ação transposta para a atualidade, em adaptação
livre de Francisco Moita Flores.

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