Você está na página 1de 16

ENTRE PAISAGENS E TERRITORIALIDADES

a experiência do Corpo-Mulher na paisagem urbana

BETWEEN LANDSCAPES AND TERRITORIALITIES


the experience of the women body in the urban landscape

ENTRE PAISAJES Y TERRITORIALIDADES


la experiencia del cuerpo de mujer en el paisaje urbano

Resumo
A captura da experiência do corpo na cidade tem a intenção de registrar as territorialidades exploradas em
suas f restas. O olhar se volta para a apreensão da paisagem urbana intrínseca à perspectiva de gênero e
as manif estações artísticas que intervêm e transf ormam a cidade criando novos territórios existenciais. Ao
encarar as questões históricas em busca da alteridade dos corpos, o corpo-mulher se manif esta a partir
de uma posição de experimentação, valorizando narrativas que se contrapõem a um discurso hegemônico.
Busca-se um encontro com as proposições das artistas Laura Lydia, Márcia Sousa, Ana Mendieta e Isabela
Prado, articulando o modo de apreender a cidade e de habitar o espaço coletivo . Por f im, são tecidas
ref lexões acerca das territorialidades e paisagens contemporâneas.

Palavras-Chave: Mulher. Corpo. Paisagem urbana. Territorialidade. Cidade. Arte contemporânea.

Abstract
Capturing the experience of the body in the city is intended to record the territorialities explored in its
crevices. The gaze turns to the apprehension of the urban landscape intrinsic to the perspective of gender
and the artistic manifestations that intervene and transform the city, creating new existential territories.
When facing historical issues in search of the alterity of bodies, the woman-body manifests itself from a
position of experimentation, valuing narratives that are opposed to a hegemonic discourse. By seeking a
meeting with the propositions of the artists Laura Lydia, Márcia Sousa, Ana Mendieta and Isabela Prado,
articulating the way of apprehending the city and inhabiting the collective space. Finally, reflections are
made about contemporary territorialities and landscapes.

Keywords: Woman. Body. Urban landscape. Territoriality. City. Contemporary art.

Resumen
Capturar la experiencia del cuerpo en la ciudad tiene como objetivo registrar las territorialidades exploradas
en sus grietas. La mirada se vuelve hacia la aprehensión del paisaje urbano intrínseco a la perspectiva de
género y las manifestaciones artísticas que intervienen y transforman la ciudad, creando nuevos territorios
existenciales. Al enfrentarse a cuestiones históricas en busca de la alteridad de los cuerpos, el cuerpo -
mujer se manifiesta desde una posición de experimentación, valorando narrativas opuestas a un discurso
hegemónico. Buscando un encuentro con las propuestas de las artistas Laura Lydia, Márcia Sousa, Ana
Mendieta e Isabela Prado, articulando la forma de aprehender la ciudad y habitar el espacio colectivo.
Finalmente, se hacen reflexiones sobre territorialidades y paisajes contemporáneos.

Palabras Clave: Mujer. Cuerpo. Paisaje urbano. Territorialidad. Ciudad. Arte Contemporaneo.
INTRODUÇÃO

A apropriação do espaço urbano público pelas corporeidades1 se manifesta através de


intervenções no território urbano. A experiência de proximidade com a cidade proporciona a
invenção de múltiplas territorialidades, assim como são múltiplos os discursos imbuídos no
processo de atribuir significados aos territórios existenciais da cidade que habitamos.
O território urbano planejado, configurado e consolidado é construído a partir de
delineamentos de uma cultura que se constituiu a partir da esterilização dos espaços urbanos.
O termo “esterilização dos espaços” remete aos planos urbanísticos considerados higienistas,
que pregavam a racionalização e ordenamento da cidade através de um traçado racional, como
o Plano de Haussmann na cidade de Paris, no século XIX 2. Esses planos e políticas urbanas
construídos historicamente fomentam um modo de utilização do espaço urbano e transformaram
a paisagem ao longo do tempo.
Neste artigo, a discussão desses processos urbanos se volta para a apreensão da
paisagem urbana intrínseca à perspectiva de gênero e as manifestações artísticas que intervêm
e transformam a cidade que habitamos criando novos territórios existenciais. A perspectiva de
gênero é lançada pela escolha de quatro artistas mulheres que direcionam suas proposições
dando visibilidade a narrativas não-hegemônicas, presentes nas paisagens contemporâneas.
Esse movimento não-linear de criação e transformação de detalhes em meio a paisagens
distintas é indissociável dos processos históricos e geram terrenos férteis para o cultivo de uma
cultura específica. Por esse motivo, as propostas e trabalhos artísticos são consideradas como
micropolíticas e auxiliam na criação de novos repertórios que permeiam a realidade
contemporânea3.
A escritora estadunidense e crítica feminista Rebecca Solnit 4, em seu livro “A história do
caminhar”, apresenta um capítulo intitulado: Caminhadas depois da meia-noite: mulheres, sexo
e espaço público (2020). O texto discorre sobre a perspectiva de liberdade espacial e sexual em
meio a contextos de vida pública e espaço urbano. Nesse contexto, os aspectos que envolvem
a arquitetura e o urbanismo são ressaltados e considerados nos modos de existir e resistir das
mulheres em épocas distintas.

1 De acordo com Paola Jacques (2008), “vários autores para se opor a questão do “corpo”, principalmente no campo
das artes, vão propor a ideia de “corporeidade”, às vezes mesmo como um “anticorpo”, como Michel Bernard, que
define a corporeidade como “espectro sensorial e energético de intensida des heterogêneas e aleatórias”. In
BERNARD, Michel. De la corporéité fictionnaire. In Revue Internationale de Philosophie, n. 4/2002 (Le corps).
2 “O plano teve como ação radical a eliminação da superpopulação e das fortes densidades em certos bairros

populares, incluindo a destruição de cortiços e vários prédios históricos para a multiplicação das aberturas de vias,
construção de uma rede de água potável, ampliação da rede de esgoto, concepção de parques e de espaços verdes”
In: Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. n. 64 • ago. 2016 (p. 65 -74).
3 “A questão micropolítica é a de como reproduzimos (ou não) os modos de sub jetividade dominante" In: GUATTARI;

ROLNIK, 1986, p. 133.


4 A autora, ativista e historiadora, aborda em suas obras temas como meio ambiente, política e artes.
A perspectiva de que a subordinação da mulher se originou ao mesmo tempo em que a
propriedade privada e a família em um período em que os seres humanos deixaram de ser
nômades e se fixaram em povoações agrícolas, aparece no pensamento do filósofo Engels e é
pontuada no livro: “Nós, mulheres”, de Rosa Montero (2020), auxiliando-a na tessitura de
argumentos para a sua crítica.
De acordo com o historiador da arquitetura Mark Wiggins (1992, p.335 apud SOLNIT,
2016, p.392), no pensamento grego antigo havia uma diferença entre o autocontrole interior das
mulheres e dos homens. O “autocontrole” que era atribuído aos homens como sinal de
masculinidade, remetia a manutenção de limites seguros, ou ainda, a rigidez de ações
impulsionadas por aspectos racionais. Tais limites não podiam ser mantidos por uma mulher, já
que a própria sexualidade fluida inerente a ela, transbordava e os rompia espontaneamente. A
sexualidade feminina era vista usualmente como caótica, ameaçadora e subversiva, remetendo
a uma espécie de “natureza selvagem a ser subjugada pela cultura masculina”.
Nesse sentido, Wiggins coloca que o papel da arquitetura seria de controlar de maneira
explícita a sexualidade feminina, seja preservando a castidade da moça, ou ainda, a fidelidade
da esposa. Nas palavras do autor: “a casa protegia os filhos das intempéries, mas seu principal
objetivo era proteger as pretensões genealógicas do pai ao isolar as mulheres de outros homens”
(WIGGINS, 1992, p.335 apud SOLNIT, 2016, p.392).
Além disso, Solnit apresenta o pensamento histórico que construía uma realidade urbana
e de vida pública para as mulheres do século XIX, que “muitas vezes foram retratadas como
excessivamente frágeis e puras para o mar de lama da vida urbana e se viam comprometidas
quando saíam à rua sem um propósito específico'' (2016, p.393). As heranças culturais
estruturais interferem na liberdade de movimento das corporeidades e manifestam padrões que
violam o direito das mulheres de andar pela cidade.
A leitura da paisagem urbana se constituiu pela valorização de narrativas hegemônicas,
compreendendo a paisagem urbana como um processo de movimento de diferentes períodos
históricos que contribuíram para a configuração atual das cidades em que vivemos. A autora
Rosa Montero (2020) aponta em seu livro “Nós, Mulheres”, a Revolução Industrial como um fator
que impactou diretamente as atribuições usuais das mulheres ao propor uma reconfiguração de
papéis específicos (como por ex. o saber ancestral de ervas medicinais para o cuidado com a
saúde da família, o cultivo de hortas e animais, a confecção de roupas) em um momento em que
a população urbana crescia e o solo urbano ficava cada vez mais impermeabilizado, acarretando
na redução do cultivo de hortas e animais para subsistência. Nesse momento, a saúde passou
a ser domínio dos médicos.
Sobre caminhadas, mulheres e cidades

“Se caminhar é um ato primordialmente cultural e uma maneira crua de existir no


mundo, aquelas que se viram incapazes de caminhar até onde seus pés levassem
f oram privadas não só de exercício e recreação, mas de uma boa parte de sua
humanidade.'' (SOLNIT, 2016, p. 406)

Durante o processo não linear de luta e avanços em prol dos direitos da mulher, o
posicionamento de homens não sexistas também colaborou de maneira significativa para a
atitude crítica que deveria ser cultivada. O filósofo francês Condorcet, que participou da redação
da Constituição revolucionária, escreveu em 1790 o ensaio: “Sobre a admissão das mulheres no
direito da cidadania”5. Esse movimento impulsionou o debate de pautas relevantes até então não
consideradas pelos homens em reuniões públicas. Além da cidadania, a participação e
reconhecimento das mulheres na vida pública urbana contribuíram para o estabelecimento de
um vínculo de pertencimento com a cidade.
Atualmente, a cidade contemporânea imersa no processo de superação do pós-
estruturalismo6, acolhe múltiplas manifestações não-hegemônicas e reconhece a pluralidade de
narrativas existentes. A experiência na cidade, de acordo com Paola Berenstein Jacques (2012),
se aproxima do conceito de errância, considerado um fator em potencial para a produção de
narrativas. Em seu artigo “Corpografias urbanas”, na revista Vitruvius, a autora também traça
diálogos entre a relação corpo-cidade e considera essa experiência urbana como um tipo de
micro-resistência.
Em uma experiência micro narrada é possível existir um registro da exceção, do que diria
Derrida (2014) como o território da diferença. Questiona-se como o corpo-mulher habita a cidade
e os territórios das cidades dando espaço para proposições artísticas na paisagem urbana. A
discussão sobre o assunto está atrelada ao processo de reconhecimento da história do caminhar
e a apropriação da mulher no espaço urbano.
Na sequência, pretende-se explorar um percurso a partir da perspectiva de gênero e
proposições artísticas de mulheres compondo paisagens narrativas que se conectam com as
intervenções no espaço urbano. Além de evidenciar os trabalhos que tocam o meio ambiente e
a cidade, traz a postura política do ativismo feminino na perspectiva de um olhar atento à
natureza.

5 Esse ensaio é apresentado no livro “Arqueofeminismo” de Maxime Rovere (2019, p. 29). Nesse volu me, são
compilados textos escritos por duas mulheres que estão entre as maiores intelectuais dos séculos XVII e XVIII, Marie
de Gournay e Olympe de Gouges, além de três textos escritos por homens que defenderam, na teoria e prática, a
legitimidade das mulheres na da vida pública, política e intelectual, um deles é Nicolas Condorcet.
6 O pós-estruturalismo busca movimentos de ruptura e mudança. Na arquitetura, o que segue o estruturalismo é uma

visão pós-moderna que evoca uma combinação entre elementos tradicionais e novos, uma confluência de teorias e
estilos que culminam em uma obra heterogênea e complexa. Esse termo sugere uma condição múltipla, cujos códigos
se organizam de maneira mais livre, rompendo com uma série de regras pré-estabelecidas.
Nesse sentido, criam-se pontes que conectam esse texto aos registros de experiência e
invenção de territorialidades dos corpos-mulher nas paisagens. A captura da experiência do
corpo na cidade tem a intenção de encarar o território urbano e procura explorá-lo em suas
frestas. Ao encarar as questões do espaço urbano em busca da alteridade dos corpos, o corpo-
mulher se manifesta a partir de uma posição de experimentação e valoriza narrativas que se
contrapõem a um discurso hegemônico.

O percurso como processo

Foram escolhidas quatro artistas mulheres: Laura Lydia, Márcia Sousa, Ana Mendieta e
Isabella Prado, que desenvolveram trabalhos e intervenções em cidades ou ruínas, proposições
que são consideradas micropolíticas. Assim, as proposições artísticas possuem aspectos que
envolvem a temática “cidade e natureza”.
O registro fotográfico das proposições artísticas aparece como narrativa das vozes que
habitam o território. Desse modo, tem-se a fotografia como registro temporal das forças do campo
e a narrativa como estrutura verbal que delineia e se oferece como voz a territorialidades
distintas. O agenciamento7 de tais procedimentos colocam em conflito narrativas pré-
estabelecidas em torno da cidade contemporânea. Nesse viés, a possibilidade de criação
narrativa surge a partir de conexões rizomáticas8 imagéticas e textuais.
A arquiteta-autora-pesquisadora se vê entrelaçada no registro gerado a partir das
narrativas e a apreensão de territorialidades que produzem narrativas de uma paisagem urbana
em movimento. A criação desses percursos traz em si as narrativas contidas no espaço,
registrando as coexistências das forças e fluxos que atuam nos territórios. Considerando que “as
práticas não discursivas ou de visibilidade referem-se às ações mudas dos corpos e criam
modalidades de ver” (ESCÓSSIA, TEDESCO, 2015, p. 95 apud FOUCAULT, 1979). Por fim, as
proposições artísticas, servem como base para o percurso, para a compreensão e análise entre
paisagens urbanas e territorialidades contemporâneas.

7 "Segundo um primeiro eixo, horizontal, um agenciamento comporta dois segmentos, um de conteúdo, outro de
expressão. De um lado ele é agenciamento maquínico de corpos, de ações e de paixões, mistura de corpos reagindo
uns sobre os outros; de outro, agenciamento coletivo de enunciação, de atos e de enunciados, transformações
incorpóreas atribuindo-se aos corpos. Mas, segundo um eixo vertical orientado, o agenciamento tem ao mesmo tempo
lados territoriais ou reterritorializados, que o estabilizam, e pontas de desterritorialização que o impelem" (DELEUZE,
GUATTARI, 112, apud ZOURABICHVILI, 2004, p.8). Em uma p rimeira aproximação, um agenciamento acontece
quando podemos identificar e descrever o acoplamento de um conjunto de relações materiais e de um regime de
signos correspondente.
8 Conexões rizomáticas, termo baseado na filosofia da diferença, é uma das proposições dos filósofos Deleuze e

Guattari em Mil Platôs. Essas conexões não são consideradas em um grau hierárquico, mas em um grau semelhante.
ARTISTAS E INTERVENÇÕES URBANAS

Abordagem Artística

Após a apresentação de alguns aspectos da história, o percurso narrativo continua por


meio da abordagem artística que envolve o trabalho de quatro mulheres: Laura Lydia, Márcia
Sousa, Ana Mendieta e Isabela Prado.
Laura Lydia propõe intervenção nas ruas, durante um processo de catalogação e
identificação de espécies de comunidades vegetais. A artista e pesquisadora Márcia Sousa
intervém em casas e as faz brotar, explora as frestas da cidade, o corpo da mulher em ação e o
posicionamento político diante dessas questões. Ana Mendieta, artista Cubana que se
naturalizou nos Estados Unidos, a partir da própria silhueta modificou paisagens e marcou
territorialidades. Com a intenção de conceber diálogos que possibilitam repensar os espaços e
territórios que articulam a vida nas cidades, Isabela Prado, aparece com a proposta de dar
visibilidade aos corpos d’água aterrados pelos projetos de planejamento urbano que tensionam
e impactam os cursos naturais das águas.
Essa rede de conexão de artistas e trabalhos plurais é estabelecida para compor
pensamentos que permeiam tanto o espaço construído quanto o espaço imaginado, criando
novos mundos e outras maneiras de existir e resistir.

LAURA LYDIA: intervenção nas ruas

A artista Laura Lydia (Fig.1) desenvolve trabalhos que possuem como motivo principal
a relação entre cidade e espaço natural e transitam entre desenho, gravura, fotografia e
intervenções urbanas. O projeto multidisciplinar Ervas sp, que surgiu em 2010 na cidade de
São Paulo, foi realizado com a proposta de mapear a vegetação espontânea encontrada em
áreas urbanas. Com o intuito de oferecer maior visibilidade a esses tipos de brotações, os
registros em desenhos e fotografias são permeados por indicações de nomes científicos
(Fig.2).
Fig.1 Laura Lydia. Registro do processo de trabalho da artista Fonte:
https://antigo.funarte.gov.br/wp-content/uploads/2015/04/Ervas-SP3-e1427921016503.jpg

O projeto foi contemplado com o Prêmio Funarte Mulheres nas Artes Visuais – 2ª edição
em 2014, e as intervenções nos espaços públicos foram ampliadas com a proposição de
mapeamento e identificação de plantas pioneiras9 no Elevado Costa e Silva (Fig.3), conhecido
popularmente como o Minhocão10. Esse trabalho contou com a colaboração de convidados, tanto
durante o percurso como nos desenhos realizados ao longo do trajeto do viaduto.

9 Plantas pioneiras são tipos de espécies vegetais que podem se desenvolver em condições pouco favoráveis. Elas
são capazes de manter-se perfeitamente desenvolvidas em locais com poucos nutrientes ou água.
10 Disponível em: <https://antigo.funarte.gov.br/artes-visuais/projeto-ervas-sp-mapeou-plantas-de-viaduto-na-capital-

paulista/>.
Fig.2 Ervas_sp: ocupação Elevado Costa e Silva. Amaranthus lividus, 2015. São Paulo Fonte:
Fotograf ia Laura Lydia.

Fig.3 Mapa usado durante as expedições pelo Minhocão para mapear a vegetação existente e
realizar as intervenções. Projeto ervas-sp, Mapa das intervenções, 2015 (44x84 cm). São Paulo.
Fonte: https://www.lauralydia.com/ervas-sp?lightbox=image_1p8p

Os desenhos, inspirados em ilustrações botânicas, aparecem como registro de uma


identidade. A persistência dessas espécies vegetais aparece como metáfora de vida nas grandes
cidades, brotam nas frestas e rompem com a noção de ordenamento e controle da cidade, e,
ainda, auxilia na reflexão sobre a conexão entre vida, cidade e natureza. Fomenta o pensamento
sobre o direito à cidade, à vida e a potência de transformação inerente a cada ser e a cada
realidade11.

MÁRCIA SOUSA: intervenção nas casas que brotam

A artista e pesquisadora Márcia Sousa (Fig. 4), contribui com o texto e a proposição
artística apresentada no Caderno 2 de sua tese de doutorado12: “Uma casa que brota” (2016). A
autora une a escrita poética para o florescimento de narrativas entrópicas. Neste trecho,
permeados pela noção de casas não habitadas, o abandono e, possivelmente, o estado de ruínas
aparecem concomitantemente com as brotações espontâneas.

Fig.4 Márcia Sousa, intervenções em casas abandonadas, 2014. Casa na Rua Andrade Neves,
Pelotas, 22 de janeiro de 2014. Desenho a caneta sobre azulejo.
Fonte: Fotograf ia: Pedro Lorenzetti 13.

A artista constata que as casas reais e ficcionais ao deixarem de ser olhadas e percebidas
entram em entropia. Esse estado de ruína apresenta-se como efêmero e transformador. A obra
transita entre a efemeridade e questiona como reter o tempo em breves instantes de vida ou de
existência em meio as frestas, seja no interior das casas abandonadas ou não: “Passaram a
ocorrer surpreendentes encontros com casas e lugares que brotam. Passei também a percebê-

11
Disponível em: <https://mapeamentojardinagemterritorialidade.wordpress.com/ervas-sp-laura-lydia/>
12 A tese de doutorado da pesquisadora-artista é intitulada: “Reter o breve de casas que brotam, desenhos que
proliferam e coletas que tocam o tempo” (2016).
13 Disponível

em:<https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/158049/001020507.pdf?sequence=1&isAllowed=y>
los. Algumas dessas casas brotam no abandono. Imersas no tempo que passa, tornam-se solo”
(SOUSA, 2016, p. 73).

Fig.5 Márcia Sousa, intervenções em desenho em casas que brotam, 2014. Avenida Dom
Joaquim, Pelotas, 26 de novembro de 2014. Desenho a caneta sobre azulejo e sobre vidro. Fonte:
Registro: Vitor Pavan14.

Fig. 6 Intervenções em desenho em casas abandonadas, 2014. Casa na Rua Andrade Neves,
Pelotas, 22 de janeiro de 2014. Desenho a caneta sobre azulejo. Fotograf ia: Márcia Sousa

14Disponível em:
<https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/158049/001020507.pdf?sequence=1&isAllowed=y >
No recorte do trabalho escolhido, Márcia Sousa retoma o sentido das casas e explora o
potencial das brotações como proposição artística (Fig.6 e 7). Ao habitar a fresta e resistir ao
brotamento de uma natureza selvagem e fluida, compartilha “a vida que se propaga no interior e
exterior” (SOUSA, 2016, p.76). As intervenções evidenciam o fato de que, por vezes, as casas
vão abaixo e com o tempo germinam, mesmo entre as ruínas, reativando o potencial de vida
ainda pulsante com um novo olhar sobre elas.

ANA MENDIETA: silhueta forma e corpo-mulher

Ana Mendieta (1948 - 1985) foi uma artista visual cubana erradicada nos Estados Unidos
aos 12 anos e integrante da vanguarda artística e feminista do início dos anos 1970. Em sua
arte, trouxe expressões da vida expatriada e discussões acerca do feminismo, do corpo, da morte
e da identidade. Discutindo o retorno à Terra, à natureza e a descoberta do pertencimento ao
próprio corpo:
Eu tenho criado um diálogo entre a paisagem e o corpo f eminino – baseado em minha
própria silhueta. [...] Sou sobrecarregada do sentimento de ser expulsa desde o ventre [da
natureza] para a luta. Minha arte é a maneira que eu reestabeleço os laços que me unem
ao universo. É o retorno à f onte materna. Através das esculturas do corpo eu me torno um
com a Terra. Eu me torno extensão d a natureza e a natureza se torna uma extensão do
meu corpo. (MENDIETA, s.d., tradução da autora)

Fig. 7 Ana Mendieta, 1973. México. Fonte: https://www.artealdia.com/Printed -


Edition/111_Noviembre_2005/ANA_MENDIETA

Segundo Merewether (1996), o trabalho de Mendieta possibilitou construção de uma


estética feminista e crítica de caráter emancipatório frente à uma ordem simbólica dominante. A
artista (Fig. 7) compreende a possibilidade de existência no entre, sem compartilhar de fixidez
identitária e ocupando militantemente o interstício.
Confronta o que seria o corpo-mulher de uma maneira peculiar, utilizando-se de sangue,
areia, pedra e materiais orgânicos (galhos, flores, grama entre outros) para marcar o seu corpo
no território entrelaçando paisagens que percorre. Ao imprimir o seu corpo na natureza, Mendieta
provoca o tensionamento entre culturas: “Fazer minha silhueta na natureza faz a transição entre
minha pátria e minha nova nação. É um modo de reivindicar minhas raízes e tornar-me uma com
a natureza” (Mendieta apud Merewether, 1996, p.108).
O trabalho indicado pela Figura 8, faz parte da Série de fotografias Siluetas (1973 -
1985)15, cujas ressignificações estético-políticas levantadas por Mendieta conectam a estética
feminista à articulação arte-política no combate às opressões de ordem de gênero
(MEREWETHER, 1996). A artista traz o corpo como marca e sinuosidade, organicidade que
transforma o espaço e a terra.

Fig.8 Ana Mendieta, sem título (da séria Silueta), 1977. Fotograf ia. Fonte: MOCA, Los Angeles 16.

15 Disponível em: <https://www.icaboston.org/art/ana-mendieta/silueta-works-mexico>.


16 Disponível em: <https://www.moca.org/collection/work/silueta-works-in-mexico-3>.
Na visão de Mendieta, a terra era um processo vivo e fonte essencial da vida
culturalmente associada ao feminino. Em sua obra, destaca o modo como a terra é um constructo
ideologicamente marcado como uma metáfora de feminilidade, campo de inscrições
culturalmente fixadas. Ao se inscrever nas paisagens com a marca da própria silhueta, se liberta
dos aspectos culturais, de linguagem e ideologia para remarcá-la, ou ainda, reterritorializá-la17.

ISABELA PRADO: os cursos d’água ocultos na cidade

A artista visual Isabela Prado é idealizadora do projeto “Entre Rios e Ruas”, que sugere
uma reflexão poética das relações entre cidade, meio ambiente e indivídua(o). O projeto foi
desenvolvido na cidade de Belo Horizonte, teve como ponto de partida a (in)visibilidade dos rios
e córregos presentes em seu território e a relação histórica que foi estabelecida a partir das
transformações da paisagem.
A artista foi uma das vencedoras do Prêmio Funarte de Arte Contemporânea em 2011,
com a série Entre rios e ruas (2007 - 2012). O processo de projeto envolve intervenções
artísticas que vão desde performances à desenhos, vídeos e fotografias e a criação de outras
obras.
Na segunda publicação de Viés, Coleção Cadernos do Artista, o trabalho Entre Rios e
Ruas da artista Isabela Prado é apresentado a partir de aspectos físicos geográficos, explorando
a “arte como consequência”. Segundo Isabella Prado, as tensões que são criadas em suas
performances estabelecem relações com um coletivo que participa para finalizar ativa e
conscientemente o objeto (GÓMEZ, 2012).
A evolução dos trabalhos que compõe a série “Entre rios e ruas” fez com que a artista
sentisse a necessidade de propor algo mais perene para visibilizar os córregos escondidos. A
obra Sobre o Rio (Fig. 10), cuja execução foi posteriormente viabilizada por meio do Edital da Lei
Municipal de Incentivo à Cultura 2017-2018, aparece nesse contexto18.

17Territorialização-desterritorialização-reterritorialização são movimentos do ritornelo. O ritornelo tem os três aspectos


e os torna simultâneos ou os mistura: ora, ora, ora. Ora o caos é um imenso buraco negro e nos esforçamos para fixar
nele um ponto frágil como centro. Ora compomos em torno do ponto uma pose calma e estável. Ora enxertamos uma
escapada nessa pose, para fora do buraco negro. Esse processo de deslocamento é territorial, visto que o
agenciamento é territorial, ou ainda, de um território existencial – como forma de agir e produzir subjetividade. Em
Deleuze e Guattari, Mil Platôs, 1995.
18 Disponível em : <https://leia.org.br/entre-rios-e-ruas-as-margens-de-qual-corrego-ou-ribeirao-tampado-voce-

mora/>.
Fig.9 Isabela Prado, Belo Horizonte. Fonte: Fotograf ia de Alex de Jesus.

Para tanto, foram elaboradas placas de sinalização dos córregos para serem instaladas
junto às placas que sinalizam as ruas de Belo Horizonte. Foi prevista a sinalização de todos os
córregos canalizados dentro do perímetro da Avenida do Contorno, Região Centro-Sul de Belo
Horizonte, núcleo do “planejamento original da cidade”, tendo como base os afluentes do
Ribeirão Arrudas. Esse trecho foi escolhido por abranger os primeiros córregos a desaparecer
da paisagem, aterrados para a construção de vias e avenidas.

Fig.10 Placas de sinalização do Córrego do Leitão, Bacia do Ribeirão Arrudas, Belo Horizonte.
Fonte: Fotograf ia de Aline Xavier e Roberto Bellini 19.

19 Disponível em: <https://soubh.uai.com.br/noticias/variedades/projeto-de-artes-visuais-sinaliza-corregos-de-BH>


A ação previa a instalação de cerca de 230 placas, foi interrompida em março de 2020
pela pandemia da COVID-19 e retomada em novembro de 202020. As placas foram criadas com
objetivo de mostrar aos transeuntes atentos um pouco da história da hidrografia da cidade,
localizando o curso dos rios.

Reflexões acerca das territorialidades e paisagens contemporâneas

Tecendo relações e reflexões acerca das territorialidades é importante ressaltar que as


proposições artísticas das artistas não são exemplos ilustrativos, mas são reconhecidas como
micropolíticas, micro resistências, posicionamentos políticos de mulheres artistas que fazem
parte de uma história em movimento, que abala as estruturas sociais já construídas
historicamente.
A compreensão de aspectos manifestos na paisagem sugere pistas para a apreensão da
paisagem urbana contemporânea, considerando a realidade como resultado de modos de ver e
de dizer produzidos num determinado momento histórico. Ao retomar a história do caminhar ao
longo de décadas e atrelar ao processo de transformação da cidade contemporânea às
intervenções apresentadas, a transgressão dos corpos-mulheres-artistas exploram proposições
de resistência que existem nas frestas. Nesse prisma, as intervenções na paisagem são
indicadas como dinâmicas capazes de capturar os processos e, por vezes, estabelecem a prática
dos encontros e desenham novas possibilidades de manifestação do corpo-mulher no território
urbano.
Os detalhes, acerca das proposições de cada uma das artistas impressiona em meios e
modos, seja no reconhecimento de espécies vegetais pioneiras (que abrange também PANCS21
e plantas medicinais), ou mesmo nas ruínas que são marcadas por silhuetas de corpo-mulher.
Imersas no tempo que passa, se tornam um solo firme e fértil no qual pisamos, produzido por
casas que brotam do abandono em seu estado mais selvagem.
Atentas as modificações culturais no curso natural das águas, as proposições seguem o
próprio caminho reconhecendo e reivindicando outras maneiras de resistir. A rede de águas
negligenciadas na cidade trata da invisibilidade a partir de escolhas e posicionamentos, pela
forma como estão no ambiente, ora como corpos d’água canalizados e fechados, ora
canalizados e abertos ora em seus leitos naturais, trazendo à tona aspectos de visibilidade.
Ao trazer as águas e o movimento para a superfície da vida e do espaço comum da
cidade, novas paisagens são criadas e a paisagem submersa e fluida é valorizada. A prática
constante de valorização de narrativas não-hegemônicas em meio a paisagens é um dos

20 Disponível em: <https://www.otempo.com.br/diversao/artista-plastica-finaliza-projeto-que-sinaliza-rios-e-corregos-


canalizados-em-bh-1.2415326>
21 PANCS: Plantas Alimentícias Não Convencionais.
possíveis modos de ativar um processo de libertação do comportamento. Exige que as casas
vão abaixo para a criação de outros territórios, disseminando micro realidades pelo planeta e
reconectando uma rede.
Os diálogos concedidos entre paisagens urbanas e territorialidades, criam espaços para
reflexões sobre a contemporaneidade abordando micropolíticas que acolhem a cidade e a
natureza e o olhar atento de mulheres artistas. A paisagem tem uma ordem que respira e que se
ressignifica e, ao pensar novas possibilidades, as territorialidades se ampliam.
A liberdade do corpo-mulher sugere a capacidade de deslocamento através do
movimento. São nos rastros de cada percurso que as linguagens urbanas se imbricam para a
composição de paisagens, paisagens habitadas e experienciadas. A paisagem como um lugar
no mundo, em uma perspectiva de territorialização e reterritorialização, é um processo constante
que deixa rastros e vestígios, detalhes como marcas do presente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

SOUSA, Márcia Regina Pereira de. Reter o breve: casas que brotam, desenhos que proliferam
e coletas que tocam o tempo. Tese de doutorado UFRGS. Porto Alegre. 2016. 340 f. Disponível
em:<https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/158049/001020507.pdf?sequence=1&is
Allowed=y>

JACQUES, Paola Berenstein. Elogio aos errantes. Salvador: EDUFBA, 2012. 331 p.

MENDIETA, Ana. Pain of Cuba/ Body I am. Tate Modern, s/d. Disponível em:
<https://www.tate.org.uk/whats-on/tate-modern/film/ana-mendieta-pain-cuba-body-i-am>.

GÓMEZ, Jorge Cabrera (Org.). Belo Horizonte: SESC Minas, 2012. Viés: cadernos do artista
Isabela Prado: entre rios e ruas. Vol. 2. 75 p. Disponível em:
<https://issuu.com/sescmg/docs/entrerioseruascatalogo>

Você também pode gostar