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EPISTOLAS GERAIS E HEBREUS


INTRODUÇÃO

Nesta pesquisa será apresentado as Cartas Gerais. As Cartas Gerais são assim
chamadas porque não foram destinadas a uma igreja específica, logo seu
conteúdo era de interesse de todos os crentes. As Cartas gerais são oito :
Hebreus, Tiago, 1 e 2 Pedro, 1,2,3 João e Judas.

1 – EPÍSTOLA DE TIAGO

Quem

Quem é Tiago? No NT temos diversas referências a Tg:


- Filho de Zebedeu (Mt 10,2; Mc 1,19; 3,17).
- Filho de Alfeu (Mt 10,3; Mc 3,18).
- Irmão de Jesus (Mt 13,55; Mc 6,3; At 12,17; Gl 1,19) O menor dos quatro irmãos
- Pai de Judas (Lc 6,16; At 1,13). (Mc 15,40).

Há certo consenso de que seria Tiago, o irmão de Jesus (Mc 6,3), o mesmo
judaizante de At 12,17; 15,13-21; 21,18; Gl 2,12). Flávio Josefo atesta que este Tiago foi
martirizado em 62.

O Que

Trata da fé concreta que se expressa em obras. Lutero a chamava de carta de palha e a


julgava em contradição com Paulo e com toda Escritura. O escrito se apresenta como uma
carta, mas não tem conclusão nem saudação final. Não se deixa situar no espaço e no
tempo. Parece texto inacabado. Pelo fato de só ter entrado no cânon bíblico no séc. IV,
alguns autores julgavam ser um escrito judaico que entrara no mundo cristão sofrendo
acréscimos de Tg 1,1; 2,1 onde se menciona Jesus. Seria uma alegoria judaica de Jacó
(Tiago) às doze tribos de Israel. Lutero supunha ser um escrito judaico, pouco apostólico.
Queria excluí-la. De fato, Tiago está fora das correntes teológicas cristãs do primeiro
século.

Na carta há excesso de referências ao AT: Abraão (2,21-23), Raab (2,25), profetas (5,10),
Elias (5,17), sinagoga (2,2), etc. Enquanto Jesus só aparece 2 vezes.
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É uma coleção de exortações encadeadas, sem grande coesão interna. O mesmo se percebe
nas parênese paulinas (Rm 12; Gl 5-6; Ef 4-6, em Hb, Didaque. Tg se assemelha às
parêneses do judaísmo e do helênico.

A carta vem escrita em estilo sapiencial do AT (cultura semita - versão dos LXX). Há grande
parentesco com o Sirácida (Eclo). Nenhuma semelhança com as teologias de Paulo e pouca
com os outros escritos do NT. O mistério da Paixão, Morte e Ressurreição não é mencionado.
Porém, percebe-se, em Tiago, uma certa semelhança com Mateus. Obedece ao gênero das
parêneses e se baseia nas palavras de Jesus (os 8`(4" Logia). Principalmente nas Bem-
aventuranças. Tiago teria usado uma tradição que também foi usada por Mt. Seria então a
tradição de Jerusalém, onde Tiago era bispo.

Comparar

Tg 1,5.17 com Mt 7,7ss = Boas dádivas.


Tg 1,22 com Mt 7,24ss = Pôr em prática a Palavra.
Tg 4,12 com Mt 7,1 = Não julgar
Tg 1,6 com Mt 11,23s = Orar sem duvidar

Para quem

Provavelmente adaptada aos Judeu-cristãos do mundo grego para não perderem os valores
cristãos herdados do judaísmo. Fala pouco de Jesus por ter usado suas próprias palavras
(Logia). Jesus também não falou muito de si. Uma hipótese mais plausível é que Tiago se
dirige a cristãos considerados o Novo Israel que vivem na terra como peregrinos (Gl 6,16;
Fl 3,3).

Quando

Não é possível fixar data. Mas se pode supor que seja do final do 1º século, 80. É
mais nova que os escritos paulinos. Parece que nesta época Tiago já estava morto. A carta
só entrou definitivamente no cânon geral, no século IV, porém, em muitas igrejas ela já é
aceita desde o princípio.

Por que

Parece que houve um esfriamento religioso. Talvez alguns cristãos, possivelmente ricos,
tiraram conseqüências desastradas da pregação paulina (Rm 4 e Gl 3-4 = justificação pela
fé sem as obras). Havia, então, problemas no culto (2,1-13; 3,1-13) ocasionados pelo
relacionamento entre ricos e pobres 1,9-11; 2,5-7; 4,13-17; 5,1-6).
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Como

Tg usa um grego elegante baseado na versão da LXX, porém marcado com semitismos.
Existe bastante proximidade com o Sirácida (Eclo). Enfim, segue a sabedoria judaica.
Menciona Jesus apenas duas vezes (1,1 e 2,1).

Estrutura

É difícil estabelecer uma estrutura de Tiago, pois parece uma coleção de exortações
agrupadas propõem a seguinte estrutura:

1 - Provação/tentação (exceto os v.5-11).


a) v.2-4.12
b) v.13-25

2 - A fé
a) v.1-13 a importância decisiva da fé na vida da comunidade.
b) v.14-26 fé e obras

3 - Fé e obras (3,1-4,10)
a) 3,1-12 não abusar da palavra
b) 3,13-18 verdadeira sabedoria não ensina por palavras mas por conduta.
c) 4,1-10 as guerras são fruto da sabedoria do mundo.

4 - Julgamento e salvação (4,11-5,20).


a) 4,11-5,6 não falar mal. Não ser jactancioso (4,13-17), não explorar (5,1-6).
b) 5,7-20 à espera da parusia do Senhor.
É preciso paciência (5,7-11).
Não jurar (5,12).
Oração e confissão - perdão (5,13-18).
Solidariedade na salvação (5,19-20).

De acordo com a leitura sociológica que se fará em seguida, tentar-se-á, aqui, uma estrutura
própria:
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1 - Exortação aos pobres - Tg 1


- firmeza 1,2-4
- humildade 1,5-8
- advertência aos ricos 1,10-11
- paciência 1,12
- a cobiça é causa dos males 1,13-18
- os sábios devem escutar 1,19-27
2 - Exortação aos ricos - Tg 2,1-5,5
- não separar fé e vida 2
- não ser arrogantes 3
- não cobiçar 4
- não roubar 5,1-6
3 - Exortação aos pobres - Tg 5,7-20
- paciência 5,7-11
- oração 5,13-14
- comunidade 5,14-20

LEITURA SOCIOLÓGICA

1 - O lado social

A carta de Tg mostra nitidamente conflitos surgidos na comunidade devido ao


comportamento dos ricos. Inicialmente o apóstolo exorta os pobres à firmeza (1,2-4), à
humildade (1,5-8). Adverte o rico (1,10-11). Dirige-se novamente ao pobre (1,12).

No cap. 2 surge claramente o problema dos ricos. Este problema se estende até o cap. 5,
onde novamente se volta falar aos pobres.

Os ricos querem privilégios até nas assembléias (2,1ss). Eles oprimem o pobre (2,7), ele
não têm piedade (2,13). Os ricos vivem uma religião sem compromisso (2,14ss). Não dão
comida ao pobre (2,16).

Os ricos se fazem passar por mestres (3,1ss), mas não controlam a língua, isto é, a
boca diz uma coisa e a prática é outra. Os ricos cobiçam, rivalizam, prejudicam a verdade
(3,14ss). Suas ambições são a causa das confusões e conflitos (4,1-4). Eles são arrogantes
(4,13-17). Exploram e roubam o pobre (5,1-6).

Em Tg 5,7 volta-se a falar aos pobres. Os pobres devem ter paciência, devem resistir (5,7-
11), devem recorrer à oração (5,13ss), devem recorrer à comunidade.
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2 - As Classes

Percebe-se a preocupação de Tg em encorajar os pobres à resistência diante da arrogância


dos ricos. Tanto no cap. 1 como no cap. 5, os pobres são exortados a resistir com seus
mecanismos, isto é, com a firmeza (1,2-4), humildade (1,5-8) e com a paciência (1,12).
Novamente no cap. 5, eles são exortados a recorrer à paciência (5,7-11), à oração (5,13ss)
e à comunidade (5,14ss).

Os ricos recebem repreensão desde o cap. 2 até o cap. 5. Eles não devem separar fé e
vida, eles não devem ser arrogantes, eles não devem explorar.

Ficam evidentes duas classes:

Ricos causadores de problemas;


Pobres que devem resistir.

3 - O lado político

Os ricos oprimem (2,6-7). Eles difamam o “Nome”. Eles não têm piedade (2,13). Cobiçam
(3,14), criam conflitos (4,1-4), Querem ser mestres (3,1). Exploram (5,1-6).

Tg propõe alternativa ao poder dos ricos que se baseia na cobiça e no roubo. A alternativa
é: a paciência (5,7ss), a comunidade (5,13-20).

4 - Lado ideológico

Tg arranca os argumentos dos ricos:


- a tentação não vem de Deus (1,13ss);
- o sábio deve escutar (1,19ss);
- religião requer prática da justiça (1,26-27).
- religião requer compromisso (2,14ss).

Tg tira aos ricos a vontade de dominar:


- não ser mestre (3,1);
- condena a sabedoria dos ricos (3,15); - condena a arrogância (4,11-12).
- condena a auto-suficiência (4,13-17).

5 - O conflito

Transparecem dois conflitos:


a) Os ricos na Igreja. Eles entram, mas não querem que a religião mexa nos seus
interesses e privilégios. Querem ser cristãos e continuar a fazer o que lhes convém: ter os
primeiros lugares, explorar, roubar, dominar. Eles são a causa dos conflitos da comunidade.
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b) Os pobres e a resistência: Eles são fracos, mas devem resistir, por isto necessitam
da força de Deus e principalmente se unir e buscar a força da comunidade.

6 - Teologia

Diante deste quadro, não se deve ficar a ver rastros de cobras e laje de pedra. A carta de
Tiago não é um tratado de Teologia, mas uma carta com zelo pastoral, ou seja, ela não quer
ensinar teologia, mas apenas resolver problemas concretos que afligem a comunidade. Daí
que, o tema da fé sem obras (2,14ss) não pode ser contraposto ao mesmo tema de Paulo
(Rm 4; Gl 3). Pois, enquanto Paulo se debate com judaizantes que ignoram a novidade de
Jesus e por isto trazem um conflito teológico, Tiago se debate com um problema social:
ricos e pobres. O assunto não é teológico, mas pastoral.

Os pontos teológicos que merecem destaque, são:

- O pobre deve ter paciência;


- O pobre deve ser humilde e resistir;
- O rico não deve ser arrogante;
- O rico não deve separar fé e vida;
- O pobre deve buscar apoio na comunidade.

Em síntese: Tg quer um comunidade de irmãos. Tudo o mais são meios para conseguir tal
objetivo.

2 – A 1º CARTA DE PEDRO
Introdução

Quem

O autor se apresenta como “Pedro, apóstolo” (1,1) e como o “ancião” (5,1). Ainda nos diz
que escreveu por meio de Silvano (5,12), na companhia de Marcos. A Tradição atribuiu esta
carta a Pedro desde Clemente, Irineu, Tertuliano. Papias diz que há estreita relação entre
Pedro e Marcos (At 12,12).

Aqui, no entanto, esbarramos em dificuldades: a - Um pescador da Galiléia


escreveria um grego belo assim? Quando cita o AT, usa a versão grega (LXX). b - Existe
paralelismo com a teologia paulina:
- Pedra de tropeço (1Pd 2,4-8 // Rm 9,32-33).
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- Exortação à submissão às autoridades (1Pd 2,13-17 // Rm 13,1-7).


Teria sentido pensar em uma influência paulina sobre Pedro, depois de Gl 2,11-14?
Talvez existisse um fundo catequético comum que ambos usassem. c - 1Pd parece um tanto
distante de Jesus. Só se refere à vida de Jesus de forma genérica. Faltam temas como: Filho
do Homem, Reino de Deus, etc. Será que Pedro, que caminhou com Jesus, omitiria temas
centrais? d - A carta se refere às primeiras perseguições oficiais generalizadas do tempo de
Domiciano, dos anos 81-96 (1Pd 4,12; 5,9). Isto extrapolaria os anos de vida de Pedro, que
deve ter sido assassinado por volta de 67. Alguns autores acham que as perseguições provém
do povo e não do governo.
Uma tese muito provável é que alguém anônimo escreveu a carta e, devido à proeminência
de Pedro, atribuiu a carta a ele.

Para quem

A carta é endereçada aos cristãos de 5 províncias romanas da Ásia Menor.

"Aos eleitos que vivem como estrangeiros na dispersão, no Ponto, Galácia, Capadócia, Ásia e
Bitínia" (1Pd 1,1).

O termo "dispersão" significa judeus fora do seu país, mas pode, por analogia, significar
judeu-cristãos ou simplesmente os cristãos dispersos no mundo (2,11).

Quando

Alguns autores julgam ser a carta de 64, neste caso seria ainda do tempo do apóstolo Pedro.
Outros, no entanto, julgam que há reflexos da perseguição de Domiciano (anos 90). Parece
que esta última data é mais provável.

Aonde

O autor diz que está na Babilônia (5,13). Isto seria uma referência a Roma (cf. também Ap
17-18).

O que

A carta é uma coleção de exortações. Contém pouca doutrina. Pode-se destacar: o


sacerdócio real (1Pd 2,9) e a descida aos infernos ((1Pd 3,19).

Estrutura
0 - Introdução 1,1-12
1 - Primeira exortação a cristãos de origem pagã 1,13-2,10.
2 - Segunda exortação: conduta entre os pagãos 2,11-3,12.
3 - Terceira exortação: apelo à confiança diante da oposição 3,13-4,11.
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4 - Quarta exortação: determinação diante a perseguição 4, 12-19.


5 - Exortações particulares 5,1-11.
6 - Conclusão 5,12-14

OS ESTRANHOS SEM CASA

1- O texto apresenta uma carta de Pedro (1,1) e de seus companheiros (5,12-13) enviada a
cristãos forasteiros em trânsito e estranhos residentes (1,1; 2,11) em províncias romanas da
Ásia Menor (1,1). Pedro exorta (5,12) estes cristãos em momentos difíceis: 1,6; 2,12.19-20;
3,14-16; 4,1-4.12-16.19; 5,9.

Os termos chave da presente leitura são:

estranhos residentes em terra estrangeira (2,11).


residência no estrangeiro (1,17).
Casa de Deus (4,17).
Casa espiritual (2,5).
Estrangeiro peregrino, breve estadia, forasteiros em trânsito.

Assim:
(1Pd 1,1).
"Pedro apóstolo de Jesus Cristo aos eleitos estrangeiros peregrinos (breve estadia,
forasteiros) na dispersão".

(1Pd 1,17). "Por todo tempo de vossa residência no estrangeiro".


Obs.: geralmente se traduz por "durante o exílio nesta terra".
(1Pd 2,11).
Amados rogo-vos como estranhos residentes e forasteiros em trânsito".

Uma leitura meramente exegética não percebe o alcance sociológico destes termos, caindo
num moralismo espiritualizante, como é o caso de 1,17.

2 - Sentido no mundo greco-romano

vizinho, habitante em casa de outrem, estranho, estrangeiro.


estrangeiro que não possui raízes nacionais, estranho à cultura, à religião, etc.
minha casa, meu lar, minha família, minha cultura, meus deveres e meus direitos.
morar permanente. parentesco, amigos, familiares.
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Então eles formam um grupo reconhecido pelo estado, abaixo dos cidadãos plenos e acima
dos meros estrangeiros escravos. Era uma classe intermediária, semimarginalzados. É difícil
saber a porcentagem destes no mundo greco-romano, mas parece que havia muitos.
Trabalhavam no comércio, nas artes, na agricultura, principalmente nas terra apoderadas
pelos citadinos. Era comum que o império desse terras aos cidadãos distintos (puxa-sacos).
Além disto, as cidades gregas possuíam glebas de terra nos arredores. Estas terras eram
cultivadas por semi-cidadãos que não possuíam direitos plenos. Estes eram os estrangeiros
residente Hoje seriam chamados arrendatários ou capatazes. Eram eles que sustentavam as
cidades.

Também na LXX se usa este termo:

Estranho residente: Abraão no Egito (Gn 12,10; 15,13).


Abraão em Canaã (Gn 17,88).
Ló em Sodoma (Gn 19,9).

O próprio Israel é muitas vezes visto como estrangeiro residente (Dt 23,8; 1Cr
29,15). O mesmo no Sl 38,12 e 11,19. Um texto bem ilustrativo da situação dos se encontra
em Eclo 29,21-28.
A origem destes podem ser encontradas:
- frutos das invasões e conquistas (seqüestros).
- frutos da redução a hóspedes em suas próprias terras (os nativos viram hóspedes).
- migrações (migrantes viram hóspedes).

Assim 1,17 e 2,11 mostram a real situação dos destinatários de 1Pd, isto é, são estrangeiro
e estranhos nos territórios que ocupam. No Império Romano se reduzia o povo conquistado
a peregrino em sua própria terra. Nem todos recebiam a cidadania romana (lembrar os
privilégios de Paulo).

3 - O sentido em 1Pd.

Os estrangeiros residentes e forasteiros tinham situação vulnerável no Império Romano.


Sofriam restrições quanto ao matrimônio, ao comércio, à propriedade, participação nas
assembléias. Pagavam mais taxas, tributos, penas civis e criminais.

A tudo isto soma-se o termo dispersão (1Pd 1,1). Isto lembra os judeus fora de Israel. Então
1,1 se refere a cristãos que, como outrora os judeus, vivem fora da Palestina. Em 5,13 se fala
da Babilônia. Babilônia pode representar o lugar do exílio.

Então, são em 1Pd indicativos da identidade político-jurídica, social e religiosa dos


destinatários e dos autores.

Estes termos são muitas vezes mal traduzidos, perdendo assim a dimensão política e
social.
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Assim, temos para 1Pd 1,1 as seguintes traduções que não são boas:

"Estrangeiros na dispersão" (TEB).


"Estrangeiros dispersos" (KJV).
"Exilados da dispersão" (RSV).
"Eleitos moradores por algum tempo na dispersão" (Beare).
"Povo eleito de Deus estabelecido temporariamente" (Kelly).
"aos eleitos estrangeiros peregrinos (breve estadia, forasteiros) na dispersão" (autor).

1Pd 1,17:
"o tempo de vossa moradia aqui" (KJV).
"durante o tempo de vossa estada nesta terra" (TEB).
"Todo tempo de vosso exílio" (RSV).
"Por todo tempo de vossa residência no estrangeiro" (autor).
Obs.: "nesta terra" torna o conteúdo alterado.

1Pd 2,11:
"Peregrinos e estrangeiros" (TEB).
"Estranhos exilados" (RSV).
"Estranhos em terra estrangeira" (NEB).
"Estranhos e exilados neste mundo" (TEV).
"estranhos residentes e forasteiros em trânsito" (autor).
Obs.: "neste mundo" altera o sentido.

Se olharmos as traduções comuns, conclui-se que o texto quer ser uma mensagem teológica
para peregrinos neste mundo que esperam sua verdadeira pátria no céu. Os fiéis seriam
estranhos no mundo porque seu destino é o céu. Assim desaparece a dimensão política e
social dos termos, tudo seria meramente espiritual. Porém, ao que parece, o texto aponta
para uma situação de conflito, própria a estranhos residentes e forasteiros que se vêem
limitados em seus direitos. O conflito não é céu e terra, mas social, ou seja:

"A comunidade cristã marginalizada e em tesão com seus vizinhos sociais" 1.

Mesmo que a carta fale do céu, ela transpira conflitos da terra. 1Pd 2,11-12 e 4,1-6 mostram
a vida dos estranhos e forasteiros entre os não-crentes, logo, não se trata de peregrinação
aqui na terra, mas de peregrinação em terra estranha.

Os destinatários de 1Pd são mescla de estrangeiros, estranhos permanentes e temporários


na Ásia Menor. Vivem em condições de estranhos e de alienação sociorreligiosa na diáspora
e Babilônia como os antigos Israelitas.
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4 - Recapitulação

"Em 1Pd, os termos paroikia, paroikoi e parepidemoi identificam os destinatários como uma
classe de pessoas deslocadas
Eram estranhos à sociedade, não ao mundo.

Destinatários de 1Pd e sua situação

1 - Localização geográfica

Ponto, Galácia, Capadócia, Ásia e Bitínia (1,1) são regiões da Anatólia que caíram no
domínio romano em 133/31 a.C. A área tinha uma população de 8.500.000 habitantes. É
uma região de diversidade de terras, povos e culturas.

A romanização e a helenização quase só atingiram as cidades. No interior vivia-se de forma


tribal. Havia poucas cidades e colônias militares.

Diante de um mundo tribal, a urbanização é sinônimo de domínio romano. A urbanização


traz também a língua grega e o latim, porém, as línguas nativas e suas tradições persistiram
muito tempo, ainda no século IV há vestígios. As tribos ignoravam a língua e os costumes
de seus dominadores, bem como sua dominação.

O processo de romanização deve ter usado de cautela, não impondo pura e simplesmente
sua religião (culto ao imperador). Parece que os problemas de 1Pd não são os mesmo do
Apocalipse (culto ao imperador). 1Pd 5,9 fala de um conflito social por todo o mundo. Fruto
das condições sociais, mas parece não ser confronto com Roma. Este conflito (1Pd 5,9 reflete
situação rural, já que nas cidades a romanização apagava o conflito.

Pode-se, então supor que 1Pd se destina a cristãos da roça que estão num tribalismo
decadente. Os paroikoi poderiam ser fazendeiros tribais vivendo em vilas, cujas terras iam
se anexando a centros maiores (cidades). Neste caso eles viravam estranhos residentes em
suas próprias terras.

Certamente havia cristãos entre todos os grupos, mas parece que predominavam entre os
agricultores:

Este é o chão encontrado pelo cristianismo e sobre o qual se move 1Pd.

2 - Constituição étnica

Parece que houve mistura de judeus e não-judeus, prevalecendo os não-judeus. 1Pd reflete
a vida de cristãos oriundos do paganismo que deveriam romper com a libertinagem da vida
passada (1,14; 2,10).
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3 - Seu estatuto legal, econômico e social

É difícil saber com exatidão como era a vida destes cristãos. Tendo por base o texto, eles
eram diferentes do comum do povo. Estas diferenças traziam desvantagens políticas, legais
e econômicas. Constituíam classe intermediária entre nativos e estrangeiros
(Sendo a maioria agricultores, constituíam a espinha dorsal da economia do império.
Produziam o que as cidades consumiam.)

Não votavam nas assembléias, não possuíam terras, não podiam casar com membros de
outras classes, eram forçados ao serviço militar, tinham liberdade religiosa, não podiam ser
sacerdotes das religiões oficiais, eram responsáveis por pesados tributos e taxas.

"Somente os cidadãos gozavam de plenos direitos civis, ao passo que os estranhos residentes (...)
eram considerados como nascidos no estrangeiro, ainda que de fato nascidos na cidade e lá tivessem
crescido"2.

Diante deste quadro, deviam ser responsáveis:


- ter procedimento exemplar 2,12; -
respeitar as autoridades 2,13s; - ser
servos obedientes 2,18.

São mencionados:
- homens livres 2,16;
- mulheres de homens não-cristãos 3,1-6;
- maridos de mulheres não-cristãs 3,7; -
presbíteros 5,1-4; - neoconvertidos 5,5.

A advertência às esposas sobre os adornos (3,3) pode indicar que havia algumas de certa
posição social. A exortação aos escravos (2,18-20) lembra que em geral eram de classe
pobre.

Enfim, escravos, semi-livres e livres, todos carregavam em seus ombros o ônus da Pax
Romana. Este cenário, economicamente dilacerado, fazia com que o povo se abrisse à
novidade cristã. O cristianismo foi um sinal de alívio para o povo sofrido.

4 - Sua identidade religiosa: sectarismo (atitude sectária intolerância fiel a sua causa)

O espírito sectarista caracteriza os destinatários de 1Pd. Isto lhes causava hostilidades.


Sofriam pelo nome de cristão (1Pd 4,14-16). Tal perseguição não seria propriamente movida
pelo império romano, como no Apocalipse, mas seriam as cruzes decorrentes de sua maneira
sectária de ser.
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Isto provoca reações na sociedade:

5 - A interação dos cristãos com os não-cristãos

O motivo de 1Pd foi a interação dos cristãos sectários com os demais grupos (nãocristãos).
O cristianismo havia se espalhado nas cidades e zonas rurais de algumas províncias da Ásia
Menor. A proposta de salvação tornou-se atraente, principalmente aos deslocados
(estranhos/estrangeiros) que necessitavam de segurança social e econômica. Expressavam-
se de forma judaica. Como os judeus, tinham fronteiras bem traçadas entre os membros e os
de fora. Eram alheios aos acontecem-tos da vida civil e social. Desta, forma, os de fora
olhavam estranhamente para os cristãos e estes se auto-excluíam. Os cristãos se faziam
estranhos social e religiosamente.

Estranhos sempre são, ou parecem ser, perigo para a ordem pública. Isto terá despertado
suspeição diante de pessoas que desconhecem a realidade. Ainda mais, seu líder foi
crucificado como rebelde e em Roma os cristãos eram acusados de incendiar a cidade. Tudo
isto deixava os cristãos suspeitos. Isto lhes trazia inúmeros sofrimentos.

Principais reações:

- Ignorância do povo 2,15


- Curiosidades 3,15
- Suspeita 2,12;4,14-16
- Hostilidade 3,13-14.16

Os de fora não conheciam a vida dos cristãos, tudo era mistério. Isto se tornava motivo de
desprezo.

Havia suspeitas:
- falta de lealdade civil 2,13-17
- desleais aos senhores 2,18-20
- desleais aos esposos pagãos 3,1-6
- desleais às esposas pagãs 3,7
- líderes desleais ao povo 5,2
Os antigos amigos estranhavam o rompimento de laços dos cristãos (4,4) Assim
denunciavam os cristãos e seu Deus (4,14). Os cristãos, diante deste quadro sentiam medo e
tristeza. Por isto, 1Pd quer encorajar estes cristãos estranhos, sofredores.

Conclusão: 1Pd não reflete perseguição oficial, mas popular. É comum em todo o NT se
falar de tal perseguição (At 28,22). 1Pd quer confirmar e consolidar este grupo.
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Significado e função de casa em 1Pd

Diante do quadro de Paroikoi e Parepidemoi, qual o sentido de oikos "casa" (2,5 e


4,17)?

Geralmente, nos estudos bíblicos, oikos só é visto como conceito teológico, esquecendo-se
sua função social. Em 1Pd encontram-se diversos termos derivados:

- casa espiritual 2,5


- casa de Deus 4,17
- criados 2,18
- ser edificado 2,5
- administradores 4,10
- residência temporária 1,17
- que mora no estrangeiro 2,11
- conviver 3,7

Então, oikos em 1Pd tem sentido de casa ou família, às vezes comunidade social, política e
religiosa. Ou ainda:

1 - Destinatários de 1Pd como casa de Deus

Em 1Pd, oikos é símbolo eclesiológico ou comunitário. Um grupo (seita) que vivia como
estrangeiros, estranhos, semi-cidadãos, recebendo hostilidades, recebe em 1Pd exortação e
encorajamento como uma fraternidade cristã, casa ou família de Deus.

Casa ou família é componente básico em 1Pd:

a - O radical oikos é usado muitas vezes:


casa=família 2,5;4,17
ser construído 2,5 - criados da casa 2,18
conviver na casa 3,7.

b - Muitos termos que no NT são usados, em 1Pd adquirem novo sentido, ligado à casa:
- maridos amar as esposas Cl 3,22; Ef 5,25
- maridos amar as esposas = conviver
- escravos Lc 2,29; Cl3,22; Ef 6,5-8
- servos = escravos
- templo 1Cor 3,16; Ef 2,21
- templo = casa espiritual - administradores 4,10
16

c - Outros termos lembram o caráter doméstico:


- fraternidade 2,17; 5,9
- amor fraterno 3,8

O julgamento começa com os de casa (4,17). Os outros não estão na casa. Os de dentro não
podem se comportar como os de fora (4,18). A divisa entre cristãos e não cristãos fica clara,
é a casa (4,12-19).

Por que a casa?

Seus destinatários estavam deslocados geograficamente, marginalizados, alienados social,


cultural e religiosamente. Eram inferiores. Sua conversão ao cristianismo lhes trouxe mais
sofrimentos. Seu caráter sectário, seu exclusivismo os opõem às chacotas. São vistos com
desconfiança. Estavam ameaçados de desintegração, internamente esfriavam e externamente
se conformavam ou se acomodavam.

Este sofrimento era dano irreparável ao espírito missionário. Para sobreviver era necessário:
reafirmar a identidade comunitária, reforçar a coesão grupal, mostrar a compatibilidade entre
a situação concreta e sua esperança e eleição divina.

Em síntese, esta é a perspectiva de 1Pd: Quer ser uma carta fraterna de encorajamento e
parênese, conforto e confirmação (5,12). Para afirmar a identidade, se chama a comunidade
de casa/família de Deus.

"Para os paroikoi cristãos - diminuídos, despossuídos e dispersos no seio de uma sociedade estranha
e alheia - a sua identificação com a casa eleita e santa de Deus constituía meio particularmente eficaz
de se afirmar sua identidade comunitária peculiar e distintiva e sua integridade sociorreligiosa" 19.
Assim, era ideologia que fazia levantar qualquer cabeça deprimida.

Existem, em 1Pd, outros termos coletivos para designar a comunidade cristã: geração eleita,
casa do rei, corporação de sacerdotes, nação santa, povo de Deus (1Pd 2,9-10). O fato de
serem povo de Deus (2,9-10) é a força para romperem com as antigas formas de vida pagã
(1,14.18; 2,11; 4,3).

Os fiéis são associados a Cristo:


- devem sofrer pelo seu nome (4,16), pois também ele foi rejeitado (2,4).
- Cristo sofreu injustamente (2,21-24), assim também o cristão (2,12.20).
- Cristo ressuscitou (1,3.21; 3,22), assim também o cristão ressuscitará (4,5-6).

Enfim, em tudo o cristão deve-se comportar como Cristo. Isto é ser casa/família de
Deus. Pela casa/família estão unidos a Jesus.
17

3 - Conclusão

Casa/família tem função social:


A Igreja casa/família torna-se assim a proteção de estranhos mal aceitos numa sociedade
hostil.

"Somente nesta família é que os outros rejeitados tornavam-se o povo eleito e os privilegiados de Deus"3.

Aqui os eles podem sonhar. Por isto, também, a carta assume um caráter de deveres
domésticos (2,18ss). Tudo gira ao redor da casa e visa fomentar a solidariedade interna da
igreja

"Em 1Pd, o código é nitidamente um código doméstico, usado para elaborar os papéis,
relacionamentos e responsabilidades do pessoal que integrava a casa de Deus" 4.

Sua ética não é mera conformação ao Estado (2,13ss), mas quer manter a casa, ou seja, a
coesão interna da igreja contra os de fora. Todas as pessoas devem respeitar o rei. Os cristãos
o fazem por causa de Cristo (2,13).

"Respeitai a todas as pessoas, amai vossos irmãos, temei a Deus e tributai honra ao rei" (2,17).

Não se deve pensar que os cristãos são estranhos e peregrinos neste mundo e que terão
pátria definitiva no céu, mas sim, que são estranhos na Ásia Menor e que terão uma casa
aqui e agora no seio da comunidade.

1Pd que manter a casa em pé.


18

3 – A EPÍSTOLA DE JUDAS
Introdução
O que

Judas é uma Carta-exortação contra falsos mestres que surgiram negando Jesus, o Senhor e
disfarçando a graça de Deus (v.4-5). A carta quer defender a fé tradicional (1,34). Adverte
para os castigos, apelando para a história de Israel, inclusive recorre a textos apócrifos:
- v.5 no Êxodo Deus fez perecer os incrédulos (Nm 14,35).
- v.6 os anjos maus (Gn 6,1-2 e também Ap. de Enoc).
- v.7 Sodoma e Gomorra (Gn 19 e também o Testamento de Neftali). - v.11 Caim (Gn
4), Balaão (Nm 22-24), Coré (Nm 16).

Os mesmos castigos que atingiram Israel no passado, devido à sua infidelidade, ameaçam
também os falsos mestres, pois seu comportamento é semelhante. O comportamento destes
falsos mestres pode ser assim descrito:
- v.8-16 libertinagem da carne, não respeitam a Deus nem aos anjos, avacalham as refeições.

Contra os abusos dos falsos mestres, o autor lembra a autoridade ou a pregação dos
apóstolos de Jesus (v.17-19). Neles repousa a autoridade para refutar quem incorreu em
erros.

Para que

Falsos mestres, supostamente gnósticos libertinos atrapalham as comunidades:


- provocam divisões (19).
- perturbam os agapes (12).
- são arrogantes (16).
- são mundanos, sem Espírito (19).
- são sonhadores (delírios) (v.8).
- negam a graça de Deus e o Senhor Jesus Cristo (4).
- não respeitam os seres celestes (8).
- vivem de forma licenciosa (4.7-8.10.18).

"São, por conseguinte, representantes de uma tendência gnóstica que sustenta e afirma uma
existência verdadeiramente pneumática de maneira alguma é afetada pelo que a carne faz" 5.

Este gnosticismo também é conhecido em Ap 2,6.14-15.20ss e 1Cor.


19

Judas escreve sua carta para repreender e ameaçar estes falsos mestres (5-7.1213.15) e
exorta os fiéis a permanecer na fé confiada aos santos (3) e usa argumentos dos apóstolos
para dar autoridade (17-19).
Para quem

"Aos que são chamados, que são amados por Deus Pai e guardados para Jesus Cristo" (1).

Parece que não são comunidades específicas. Provavelmente se dirige a cristãos vindos do
paganismo, pois aos judeus não seria necessário recomendar contra as licenciosidades.

Quem

"Judas, servo de Jesus Cristo, irmão de Tiago"


Judas é citado junto com Tiago, nos evangelhos, como o irmão do Senhor (Mc 6,3; Mt
13,55). Mas não se sabe se é o mesmo que o apóstolo Judas (Lc 6,16; At 1,13) que é chamado
Judas, filho de Tiago.

É difícil provar que o autor seja este mesmo Judas, o apóstolo, ou o irmão de Jesus. É mais
fácil admitir que o autor seja um cristão-judeu que se baseia nos escritos apocalípticos do
judaísmo: Ascensão de Moisés (9), Apocalipse de Enoc (14), Lendas Judaicas (9.11). Tem-
se a impressão que não seja o apóstolo, pois fala dos apóstolos como um grupo ao qual ele
não pertence (17).

A maneira bela de escrever e as referências aos livros apocalípticos certamente não são
atributos de uma galileu como Judas, o apóstolo.

Quando

A carta pertence à era tardia do NT, isto é, fim do primeiro século ou início do segundo.
Judas usa Tiago e por sua vez é usado por 2Pd. Já no segundo século a epístola está no cânon,
mas é contestado por alguns autores (Orígenes, Eusébio e Jerônimo), pelo fato de recorrer a
textos apócrifos. Sua canonicidade definitiva e geral acontece a partir do século IV.

Onde
O texto simplesmente não deixa nenhuma pista.
20

Plano da Epístola6

1-2 Endereço-saudação
3-4 Finalidade da carta: exortar os
destinatários a combate- rem pela fé,
porque homens perigosos para a
comunidade começaram a causar
prejuízos.
5-23 Argumentação:
5-7 Desejo trazer-vos 3 exemplos de cas-
tigo tirados do antigo
Testamento: o povo durante o
êxodo, os anjos
Sodoma e Gomorra.
8-16 Essas pessoas agem do mesmo modo, lo
go, são passíveis dos mesmos casti-gos.
17-23 Exortação: "Vós, porém, amados...",
lembrai-vos das palavras de vossos apóstolos... Vivei
na fé, no amor e na esperança...
24-25 Doxologia final.

Pontos a ponderar

- O v. 6 Anjos acorrentados. Lenda judaica inspirada em Enoc 6-10. A TEB em sua nota g
ao v.6 diz:

"Estes anjos tinham abandonado sua posição, seduzindo mulheres; desta união tinham nascido
gigantes que desolavam a terra (Enoc, cc 6-10).

Sobre 2Pd 2,4, que trata do mesmo assunto, a nota v da TEB diz:

"No judaísmo posterior, em volta de Gn 6,1-4 tinham-se desenvolvido especulações sobre o pecado
dos anjos - os filhos de Deus - e sobre seu castigo (livro de Enoc, cc. 19 e 21).

O v.7b"Corrido atrás de seres de outra natureza". A nota i da TEB no diz:

"Trata-se de vícios contra a natureza, praticados pelos habitantes de Sodoma e Gomorra. Segundo
Gn 19,1-25 eles quiseram abusar de anjos que tomaram por seres humanos.
21

O v.8 "Conspurcam (sujam) a carne, menosprezam a Soberania e insultam as glórias".


Conspurcar (sujar) a carne é sinônimo de contaminar-se por práticas libertinas. A soberania
se refere provavelmente ao Cristo (TEB). As glórias se refere a anjos (lendas).

O v.9 "Miguel e satanás". Esta lenda é encontrada em Zc 3,2; Dn 10,13 e era relatada nos
apocalipses judaicos, principalmente na Assunção de Moisés.
O v.10 "O que sabem de maneira instintiva". Conhecer gnóstico. Falta o espírito
(cf. Jd 19).

O v.12 "Maculam as vossas refeições". Os hereges ainda participam da vida da Igreja, mas
indignamente.

O v.14 "Enoc, o sétimo depois de Adão". Cf Gn 5,3-18. Este relato é retomado pelo
Apocalipse de Enoc 60,8.

9 - Conclusão

A Epístola combate falsos mestres de tendência gnóstica e que são libertinos. Eles criam
divisão na comunidade devido à sua maneira arrogante e mundana de viver. Prescindem da
graça de Deus e de Jesus. Querem ser mais que os seres celeste.

"O autor apresenta um retrato dos falsos mestres, que se dizem cristãos, mas negam o valor salvífico
dos atos de Jesus. Por amor ao dinheiro, eles falseiam os grandes princípios do Evangelho,
manipulando a fé dos ouvintes; para eles, a salvação está no conhecimento ou "gnose", que não tem
ligação nenhuma com a vida prática"7.

A autoridade para conter os abusos heréticos, é o ensinamento dos apóstolos de Jesus (17-
19).
22

4 – A PRIMEIRA EPÍSTOLA DE S. JOÃO


Introdução

Quem
O autor nunca se identifica. Percebe-se que é alguém com preocupação de corrigir erros
cristológicos nas comunidades. Ele combate grupos heréticos (2,18; 4,1-6). Um grupo de
dissidentes que saiu da comunidade (2,19) e continua a conflituar.
Seria ele o mesmo João que escreveu a 2ª e 3ª Carta de João, bem como o 4º Evangelho e
o apocalipse? 1Jo, 2Jo e 3Jo provavelmente são do mesmo autor, mas este certamente não
é o mesmo do Evangelho e do Apocalipse. No entanto, há consenso de que todos os escritos
joaninos venham do mesmo grupo, ou seja, as epístolas vêm da escola joanina, pois há
consideráveis semelhanças no estilo e na teologia. A tese mais aceita é que um grupo de
escribas joaninos escreveu as três cartas. Da escola joanina saiu o Evangelho e também as
epístolas.
Na 2ª e 3ª Carta, o autor se apresenta como o Presbítero (2Jo 1 e 3Jo 1). No fim do 1º
século havia presbíteros na Igreja (At 14,23; 20,17-30). Mas parece que o presbítero aqui
tem autoridade especial quando ataca os separatistas e interfere em comunidades alheias.
Parece um bispo, mas nas comunidades joaninas não se tem resquício de estrutura
episcopal. Papias e Irineu chamam de presbíteros a geração de instrutores que conheceu os
apóstolos. Isto significaria que o autor fosse um discípulo da escola joanina.

Por que
Alguém interpretou erroneamente o 4º Evangelho, ou seja, a alta cristologia, a
pneumatologia, a ética e a escatologia. Este grupo divide Jesus, negando-lhe a carne (4,23),
não guarda os mandamentos (1,6-8; 2,4). 1Jo quer corrigir erros de interpretação, por isto
ressalta o outro lado da moeda. O 4º Evangelho trata dos de fora: os judeus; 1Jo trata dos
de dentro: hereges (2,19).
23

O que
1Jo é uma releitura do 4º Evangelho, com vistas de corrigir erros. Interpretando o
Evangelho de forma diferente, o grupo está dividindo a comunidade. São separatistas. 1Jo
exorta os fiéis contra os erros dos separatistas, por ser ele representante da longa tradição
joanina (1,1-2). Ele reinterpreta o 4º Evangelho diante dos abusos dos separatistas.

Quando?
Percebendo-se em 1Jo uma releitura do Evangelho e, supondo-se ser este dos anos 90, as
epístolas podem ser aproximadamente do ano 100.

Quem eram os separatistas


Não se conhece este grupo, a não ser pela Carta de João (2,19). Eles não deixaram textos
escritos, por isto deve-se supor que pregavam aquilo que o autor condena. Conhecemo-los
indiretamente por meio de 1Jo. Isto, no entanto, é perigoso, pois João escreve de maneira
apaixonada e, talvez nem tudo o que deles diz é verdadeiro. Nosso retrato dos separatistas
será visto pela lente de João. Assim veremos um corpo de doutrinas que supostamente
professavam. Tanto 1Jo como os separatistas querem ser fiéis à Tradição joanina, isto é,
ambos são herdeiros do Evangelho de João. O Evangelho de João oferece certas
possibilidades de ambivalência. 1Jo é o intérprete abalizado que destitui os adversários.
Alguns autores vêem os separatistas como sendo gnósticos. No entanto, a gnose se firma no
século II. Os separatistas seriam pré-gnsósticos.

ÁREAS DE DEBATE

O debate, ou melhor, o combate se dá nas áreas de cristologia, da ética, da escatologia e da


pneumatologia, baseado no 4º Evangelho.

1 - Cristologia

O Evangelho de João tem uma cristologia elevada. No Prólogo já se fala da preexistência


de Jesus (Jo 1,1). Tal cristologia trazia conseqüências:
- a ênfase na divindade de Jesus ofusca a humanidade para cristãos que não o conheceram
pessoalmente.
- para cristãos perseguidos, qualquer falsa cristologia é motivo de guerra.

1.1 - Posição dos separatistas

Conforme as afirmações de 1Jo:

"Mentiroso o que nega que Jesus é o Cristo" (2,22s).


"Quem confessar que Jesus Cristo é o Filho de Deus, Deus permanece nele" (4,15).
"Todo o que crê que Jesus é o Cristo, nasceu de Deus" (5,1). "O
que crê que Jesus é o filho de Deus" (5,5).
24

Há uma clara insistência em dizer que Jesus é o Cristo (Messias, Filho de Deus). Isto
combate ideias contrárias (2,22-23).

Por que a epístola deve afirmar tal coisa, pois o Evangelho (20,31) já o fizera? Há uma
perspectiva diferente: O Evangelho descreve o Jesus histórico e o identifica com o Filho
de Deus preexistente. A Carta está num contexto onde não se conhece Jesus pessoalmente,
mas se conhece bem seus títulos messiânicos: Cristo, Filho de Deus, etc. Parte-se então dos
títulos e quer-se aplicá-los ao Jesus histórico.

Quem conheceu Jesus tem dificuldade de admiti-lo como Messias. Quem vive na
comunidade joanina e conhece bem os títulos messiânicos e tem dificuldade em admitir
que ele tenha vivido em Jesus (pobre e crucificado). 1Jo afirma: "Todo espírito que
confessa que Jesus Cristo vem na carne é de Deus" (4,2s). Isto nos mostra que os
adversários de 1Jo tanto enfatizam a divindade que esquecem a humanidade de Jesus.

No século II conhecem-se heresias que negam a humanidade de Jesus.


Os Docetas
(do grego δοκέω = aparência nome dado a uma doutrina cristã do século II,
considerada herética pela Igreja primitiva. Antecedente do gnosticismo,
acreditavam que o corpo de Jesus Cristo era uma ilusão, e que sua
crucificação teria sido apenas aparente.) diziam que o corpo de Jesus é só
aparência.

No Apocalipse de Pedro (apócrifo do séc. II) se fala de Jesus que ri dos que o atormentam
na cruz. Seu corpo aparente não sente dor. Cerinto (um dos primeiros líderes do antigo
Gnosticismo que foi reconhecido como um "Heresiarca" pelos primeiros Cristãos
devido aos seus ensinamentos sobre Jesus Cristo e suas interpretações sobre o
Cristianismo), doceta, dizia que Cristo desceu sobre Jesus no batismo e dele se afastou na
hora da cruz. 1Jo 5,6 refuta tal teoria.
O Evangelho de Jo mostra Jesus real (Jo 20,24-29 = Tomé). Talvez os separatistas não
chegassem ao extremo dos docetas, mas simplesmente acentuavam o divino e
empalideciam o humano. Não julgavam a humanidade de Jesus como algo importante para
a salvação. Isto encontra eco no Evangelho:

- Jesus joanino é muito divino. Ele preexistia (Jo 1,1). Mostrou sua glória (Jo 1,14).
O milagre de Caná manifestou glória de Jesus (Jo 2,11). Jesus usa o Eu sou
(8,24.28.58). O Jesus de João quase não come e nem bebe (Jo 4,32ss). Pão e água (4,7ss;
7,38 adquirem sentido espiritual. A postura de Jesus diante da morte de Lázaro é estranha.
Ele se alegra (Jo 11,11ss). Jesus sabe todas as coisas (Jo 16,30; 6,5s): sabia o que iria fazer.
Jesus já sabia que Judas o iria trair (Jo 6,64.70s). Jesus é um com o Pai (Jo 10,30).
- João empalidece a importância salvífica da vida terrena de Jesus. Parece que o
Verbo preexistente trouxe a salvação, sem muita importância o que o Verbo encarnado fez
(Jo 17,3.8. A salvação consiste em crer que Jesus foi enviado, não depende da Paixão,
Morte e Ressurreição. Mesmo o relato joanino da Paixão não tem aquele peso que tem nos
25

sinóticos. Enquanto estes e Paulo vêem a morte de Jesus como sacrifício para a salvação
(Mc 10,45; Hb 5,8; Fl 2,8) João vê a morte de Jesus de forma vitoriosa:

"Dou a minha vida para retomá-la. Ninguém ma arrebata, mas eu a dou livremente. Tenho poder de
entregá-la e poder de retomá-la" (Jo 10,17-18).

Nos sinóticos e Hb Jesus é vítima (Mc 14,35; Hb 5,8). Em Jo 18,6 os soldados caem por
terra. Jesus é superior a Pilatos (Jo 19,8-11). Até na cruz ele supera o relato de Mc. Declara
tudo consumado (Jo 19,30). Em Mc 15,34 clama pelo Pai que o abandonou.

Os separatistas viam nestes relatos apenas referências à vida de Jesus, mas o que importava
era sua divindade.

1Jo quer corrigir estes desmandos quando diz:

"Este é o que veio pela água e pelo sangue" (1Jo 5,6).

Jesus salva pela água (batismo = quem é Jesus cf. Mc 1,11) e pelo sangue (morte =
quem é Jesus cf. Mc 15,39). A salvação envolve batismo e morte.

1.2 - Posição de 1Jo

O autor de 1Jo refuta os erros, mas não nega os conceitos do Evangelho:


- a preexistência:
Ev.: "No princípio era o Verbo" (Jo 1,1).
Ep.: "O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vi-mos...o que contemplamos...o que apalpamos"
(1Jo 1,1).
- valor
"A vida eterna que estava com o Pai nos apareceu" (1Jo 1,2; 3,8; 4,9; 5,20).
salvífico da morte de Jesus:
O Evangelho também traz referências à morte expiatória de Jesus (1,29;
6,51; 10,11.15; 11,51s; 12,24; 18,14).
A Epístola insiste na morte expiatória:
"O sangue de Jesus nos purifica do pecado" (1,7).
"Ele é a vítima da expiação" (1Jo 2,2).
"Deu sua vida por nós" (3,16).
"Vítima de expiação" (1Jo 4,10).

O autor salienta o derramamento de sangue (sangue e água - 5,6).

Conclusão: O autor clareia idéias contidas no Evangelho de modo pálidas. O Jesus


de 1Jo é o mesmo do 4º Evangelho, mas salienta o redentor.

2 - Ética

Os separatistas incorrem em três problemas éticos:


26

2.1 - Não pecam mais

Os separatistas se julgam tão unidos a Deus que não pecam mais:

"Se dissermos que estamos em comunhão com ele e andamos nas trevas, mentimos e não praticamos
a verdade" (1,6).
"Se dissermos que não temos pecado, enganamo-nos a nós mesmos e a verdade não está em nós"
(1,8).
"Se dissermos que não pecamos fazemo-lo mentiroso e sua palavra não está em nós" (1,10). "Aquele
que diz: ´Eu o conheço`, mas não guarda os seus mandamentos é mentiroso" (2,4).
"Aquele que diz que está na luz, mas odeia seu irmão, ainda está nas trevas até agora" (2,9). "Se
alguém disser: ´Amo a Deus`, mas odeia seu irmão, é um mentiroso" (4,20).

Os separatista podiam se inspirar no Evangelho para afirmar tal coisa:

"Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim e eu nele" (Jo 6,56).
"Eu sou a luz do mundo. Quem me segue não anda nas trevas, mas terá a luz da vida" (Jo 8,12).
"Aquele que permanece em mim e eu nele produz muito fruto" (Jo 15,5).
"Eu lhes dei a conhecer o teu nome e lhes darei ainda mais a fim de que o amor com que me amaste
esteja neles e eu neles" (Jo 17,26).

Em 1Jo 1,8.10 o autor acusa aqueles que pretendem estar sem pecado (cf. exposto acima).
Tais afirmações concordam com o 4º Evangelho. Jesus chama de culpados de pecado (Jo
15,22) e escravos do pecado (Jo 8,31ss) aos não crentes. Nesta concepção, o crente é livre
do pecado.

Pode-se, ainda citar:

"Se não crerdes que Eu Sou, morrereis em vossos pecados"(Jo 8,24).


"Ele argüirá o mundo do pecado, da justiça e do julgamento. A respeito do pecado, porque não crêem
em mim" (Jo 16,8s).

Nesta perspectiva, os crentes não estão sujeitos ao pecado. Os separatistas levaram


isto ao extremo. Além do mais, Jo 3,17-21 diz que quem não crê é julgado. Em outras
palavras, a tradição joanina deixa a entender que quem segue a Jesus não é mais pecador.

Mesmo 1Jo reconhece a ausência de pecado:

"Todo aquele que permanece nele não peca" (1Jo 3,6).


"Todo aquele que nasceu de Deus não comete pecado" (1Jo 3,9).

Qual é a diferença entre o autor e os separatistas?

O Autor: ausência de pecado é conseqüência da adesão a Jesus. Mas ainda há a possibilidade


do pecado (1Jo 2,1).
27

Os separatistas: ausência de pecado é fato consumado. Não admitem exceção.

2.2 - Não observam os mandamentos

O autor insiste na observância dos mandamentos:

"E sabemos que o conhecemos se guardamos os seus mandamentos. Aquele que diz: ´Eu o conheço`,
mas não guarda os seus mandamentos é mentiroso" (1Jo 2,3-4).
"Porque guardamos seus mandamentos" (1Jo 3,22).
"Aquele que guarda seus mandamentos permanece em Deus e Deus nele" (1Jo 3,24).
"Quando amamos a Deus e guardamos seus mandamentos. Pois este é o amor de Deus: observar os
seus mandamentos" (1Jo 5,2-3).

Diante disto, pode supor, serem os separatistas libertinos? 1Jo não fala de vícios, a não ser
em 2,15-17. Mas chama os adversários de falsos profetas (4,1). Não se pode afirmar que
eles erram libertinos. Mais provável é que eles não ligavam para o comportamento, ou seja,
assim como não ligavam para a vida histórica de Jesus, também não atribuíam valor
salvador à vida moral do cristão. Consideravam-se fora do mundo (Jo 15,19; 17,16).

"Se a vida eterna consiste em conhecer a Deus, e aquele que ele enviou (17,3), pode-se afirmar que
se tem intimidade com Deus, independentemente do que se faz no mundo"8.

O Ev. de Jo é pobre em ensino moral. Tudo se resume em crer em Jesus.


"A obra de Deus é que acrediteis naquele que ele enviou" (Jo 6,29).
"Se não crerdes que eu sou, morrereis em vossos pecados" (Jo 8,24).
"Vós já estais puros por causa da palavra que vos fiz ouvir" (Jo 15,3).
"Aquele que permanece em mim e eu nele produz muito fruto" (Jo 15,5).

Jo não menciona os grandes vícios como os sinóticos. O grande pecado é não crer.
Tal cristologia teria levado os separatistas a menosprezar os mandamentos. O autor adverte
que o cristão deve andar como Jesus andou (1Jo 2,6; 3,3.7).

2.3 - Não cumprem o amor fraterno

Como poderiam os separatistas não se importar com os mandamentos se o Evangelho de


João fala explicitamente deles (Jo l3,34-35; l4,l5.21; 15,10.12.17)? Todas as vezes que o
Evangelho fala de mandamentos, fala também de amor. "Eu vos dou um mandamento
novo" (Jo 13,34).

O autor de 1Jo também reduz todos os mandamentos ao amor (3,22-24; 5,21; 5,3). Quando
ataca os separatistas, o faz em relação à falta de amor (2,9-11; 3,11-18; 4,20). Então, será

8 BROWN, Raymond Edward. A comunidade do discípulo amado. São Paulo: Ed. Paulinas,
1983, p.134.
28

corre-to supor que os separatistas não amavam? É possível que não dessem muita
importância a este mandamento, mas cabe uma observação:
- certamente amavam, mas somente os de dentro. O próprio 1Jo também só considera
irmãos os que estão em comunhão com ele.
- a falta de amor, de que são acusados, é o rompimento com a comunidade. A mesma
acusação poderia ser feita pelos separatistas ao autor e sua comunidade. A aspereza com
que o autor trata seus adversários seria prova de ódio. Isto mostra como o Escrito do NT
que mais insiste no amor (4,20), é também a voz que mais condena os adversários,
chamando-os de demônios, anticristos, falsos profetas (2,18.22; 3,4-5; 4,1-6). O amor do
autor só se estende aos de dentro da comunidade e se nega aos de fora, isto é, aos apóstatas.
Deve-se rezar pelos que pecam, mas somente se for pecado que não leva à morte (5,15-17).
O pecado da apostasia não merece amor.

Nisto há uma grande diferença com Mt 5,44 que pede oração pelos inimigos. Jo 13,34-35
e Jo 15,12-17 parece ser amor aos que são discípulos, não aos de fora. Até Jesus se recusa
a rezar pelo mundo (Jo 17,9).
3 - Escatologia

O Evangelho de João parece trazer uma escatologia já realizada. Enquanto os


sinóticos esperam o Reino de Deus para o futuro (Mc 1,15; 10,30; Lc 12,8-9), o 4º
Evangelho mostra Jesus já cumprindo sua missão.
"Quem crê nele não é julgado; quem não crê já está julgado" (Jo 3,18).
"Aquele que ouve a minha palavra e crê nAquele que me enviou tem a vida eterna; ele não vem a
juízo, mas passou da morte para a vida" (Jo 5,24).
"Aquele que come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna" (Jo 6,54). "Todo
aquele que vive e crê em mim não morrerá jamais" (Jo 11,26).

Com base nestas e em outras citações os separatistas tiravam suas conclusões: toda a
salvação já está consumada pelo Verbo. Por isto os cristãos não têm com que se preocupar
neste mundo. Jesus cuidou de tudo. O autor também concorda com tal escatologia (1,7;
2,9-10. 13-14). Mas não quer que tal escatologia reforce a posição alienada dos separatistas.

a - Requer compromisso:
"Mas se andamos na luz... então estamos em comunhão..." (1Jo 1,7).
"Mas o que guarda sua Palavra, nele o amor de Deus é verdadeiramente perfeito" (1Jo 2,5).

b - Apela para o futuro:


"Já somos filhos de Deus, mas o que seremos ainda não se manifestou" (1Jo 3,2).
"Todo o que nele tem esta esperança purifica-se a si mesmo" (1Jo 3,3).
"Quando se manifestar, teremos plena confiança e não seremos coberttos de vergonha" (2,28).
"Temos plena confiança para o dia do julgamento" (4,17).

A diferença entre os separatistas e o autor consiste nisto: os separatistas vêem a salvação


como fato consumado. O autor vê a salvação como fato, mas que é preciso cultivar com a
vida.
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4 - Pneumatologia

Ao que parece, na Igreja Joanina não havia estrutura apostólica. Então poderia haver nela
papéis de profetas e doutores com em 1Cor 12,28 e At 13,1. Porém, não há certeza sobre
isto. Pode-se supor que entre os separatistas alguns se arvoravam tais títulos e que diziam
falar pelo Espírito Santo. Pode-se deduzir isto das acusações do autor:

Ao que parece, na Igreja Joanina não havia estrutura apostólica. Então poderia haver nela
papéis de profetas e doutores com em 1Cor 12,28 e At 13,1. Porém, não há certeza sobre
isto. Pode-se supor que entre os separatistas alguns se arvoravam tais títulos e que diziam
falar pelo Espírito Santo. Pode-se deduzir isto das acusações do autor:

"Não tendes precisão de que alguém vos ensine" (1Jo 2,27). "Muitos
falsos profetas se espalharam pelo mundo" (4,1).
Os separatistas encontram apoio no Evangelho de João para suas teses. João fala muito no
Paráclito:

"O Pai vos dará um outro Paráclito que permanecerá convosco para sempre" (Jo l4,l7).
"O Paráclito, o Espírito Santo que o Pai enviará em meu nome, vos ensinará todas as coisas" (Jo
14,26).
"Quando vier o Espírito de verdade, ele vos conduzirá à verdade plena" (Jo 16,13).

O autor de 1Jo reage a estas pretensões dos separatistas:

a - Cita pouco o Espírito Santo (isto destoa do 4º Evangelho). Cita-o apenas em


duas ocasiões:

1º) 3,24-4,13 = Distinção ente o Espírito de Deus e o do Anticristo ( combate aos


separatistas).
2º) 5,6-8 = O Espírito como testemunha de Jesus (contra os separatistas).

b - Não usa de autoridade apostólica para corrigir. Uma vez que o Paráclito era o
Mestre, o autor tem dificuldades em corrigir. Ele apela para a orientação íntima
dos cristãos:
"Quanto a vós, tendes uma unção que vem do Santo, e todos tendes conhecimento" (1Jo 2,20). "Não
tendes precisão de que alguém vos ensine" (1Jo 2,27).

O autor lembra que cada cristão tem unção (Espírito) e não precisa dos mestres
separatistas. Assim não se autodenomina "Mestre". Assim, os separatistas estão errados
porque romperam a comunhão com os crentes (1Jo 2,19). O autor continua a tradição, pois
anuncia o Evangelho que vem deste o princípio (1Jo 1,1).

Percebe-se que o autor corrige sem muita autoridade hierárquica, as apenas moral. "Nós vos
anunciamos" (1Jo 1,3). "Nós" que permanecemos no grupo.
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"Não deis crédito a qualquer espírito...O Espírito de Deus confessa Jesus vindo na carne... o Espírito
que divide Jesus é o espírito do Anticristo" (1Jo 4,1-3).
"Nós somos de Deus. Quem conhece a Deus nos ouve, quem não é de Deus não nos ouve" (1Jo
4,6).

Mesmo assim, sua correção deve ter sido ineficaz, pois constata que eles crescem (1Jo 4,5).

Conclusão

A 1ª Carta de João é uma reinterpretação do 4º Evangelho, feita por algum membro das
comunidades joaninas, ou melhor, da tradição joanina. O Evangelho tem, às vezes, uma
linguagem ambígua. Para fiéis contagiados pela filosofia grega (dualismo grego), este
terreno era fértil para reduzir Jesus ao mundo das idéias. Jesus é divino, sua humanidade
pouco conta. Esta postura refletiu na ética, na pneumatologia e na escatologia. O autor de
1Jo, baseado na verdadeira tradição Joanina, corrige estes abusos, recorrendo ao próprio
Evangelho e ao Bom Senso dos fiéis.

3 – HEBREUS
Hebreus não e um texto abstrato, como muitas vezes se pensou, mas visa a uma
comunidade concreta a quem exorta (13,22). Não se pode precisar quem a escreveu, nem
quais sejam as comunidades, mas pode-se supor que o autor esteja afastado (13,19) e que
havia problemas de perseguição (13,23).

O que

Hebreus sempre foi apresentada como carta, mas não é. É antes um discurso, tratado ou
sermão. Mistura doutrina com parêntese (2,1-4;3,7-4,11; 4,14-16; 5,11-6,12; 10,19-39;
12,1-13,17). Pode-se perceber a seguinte estrutura:

a) A Palavra de Deus em Jesus 1,1-4,13

- Jesus é superior aos anjos 1,1-2,18


- Jesus é superior a Moisés e Josué 3,1-4,13

b) Jesus, o sumo sacerdote 4,14-10,31

- aproximar-se de Jesus, o sumo sacerdote 4,14-16


- Jesus, o sumo sacerdote solidário 5,1-10
- Parênese 5,11-6,20
- Jesus, sumo sacerdote perfeito = Melquisedec 7,1-28.
- Jesus, sumo sacerdote celeste se ofertou a si 8,1-10,18.
- Parênese 10,19-31
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c) Perseverar em Jesus (parênese) 10,32-13,17

- esperar a vinda de Jesus com paciência 10,32-39


- testemunhos, desde Abel até Jesus 11,1-12,3
- os sofrimentos são correção. É preciso suportar 12,4-17
- não negligenciar a Revelação de Deus em Jesus (12,18-29 - Amar o próximo, resignação
e obediência 13,1-17 - Conclusão 13,18-25.

Quem

Nos primeiros séculos da igreja Hb é vista como uma carta paulina (Orígenes), mas não
do próprio Paulo, antes de um discípulo seu (Lc?). No ocidente ela não é considerada
paulina até o século IV. Tertuliano a atribuiu a Barnabé. Só no século IV ela entra
definitivamente no cânon e é encarada como a 14ª carta de Paulo.

Lutero e outros reformadores duvidavam ser ela de Paulo. Trento a decretou paulina. Mais
tarde, ainda no século XVI, os protestantes voltaram a classificá-la de paulina. Só em 1828,
o biblista Bleek (protestante) concluiu definitivamente que ela não era paulina.
Em 1914 a Pontifícia Comissão Bíblica decidiu que Hb deve ser incluída nas paulinas,
ainda que talvez não fosse de Paulo. A partir de então, os biblistas católicos concluem
sempre mais que ela não é paulina. Bem mais tarde a Comissão deu o caso por vencido.

Não sobram elementos, no texto, que possam definir o autor. Sabe-se, no entanto que não
foi Paulo, nem sequer um discípulo seu, uma vez que a linguagem e os conceitos divergem
bastante.

Como

A estrutura de Hb é bem diferente das cartas de Paulo. Este sempre traz uma seção
principal contendo doutrina e depois vem a parênese. Hb mistura tudo.

O estilo e a linguagem são bem distantes de Paulo. Só a conclusão (13,18ss) tem certa
semelhança. O vocabulário é grego fino, os conceitos teológicos pouco tem de parentesco
com os do apóstolo:

Paulo = Ressurreição: Hb = Exaltação no céu


Paulo = Reconciliação: Hb = Purificação
Hb = S. sacerdote. ausente em Paulo. Paulo = Just. p/fé aus. em Hb

Hb se aproxima do judaísmo alexandrino e de Filon. Interpreta o AT livremente, sem se


importar com sua história (4,3; 7,2). Liga o NT com o AT = Melquisedec (7), o tabernáculo
(8,2. 5).
32

Hb, além da proximidade com a literatura helenista, tem parentesco com a gnose
(8,1ss;9,11.23s).

Para quem

Pensava-se ser um escrito para judeu-cristãos, pois usa muito o AT, argumenta conceitos
teológicos judaicos (Moisés, Aliança, etc.).

Não se pode dizer claramente quem é o destinatário, mas parece que se dirige a cristãos
vindos da gentilidade (Novo Israel (6,1; 11,6).

Pode-se, no entanto, dizer algo sobre a situação das comunidades:

Alguns destaques

- Jesus, o sumo sacerdote 4,14-10,39. O sumo sacerdócio é derivado de Aarão. Jesus tem
seu sacerdócio da ordem de Melquisedec. Sua base é a oferta de si mesmo.

- Exortações 12,1-13,17. A comunidade passa por momentos difíceis: perseguições (12,4),


certa letargia (12,2), lembrar-se dos presos (13,2), gente tentando desviar o povo (13,9).

- A comunidade tem um passado que enobrece 10,32.33.34. Por isto, não devem perder a
segurança (10,35), nem se voltar para trás (10,39).

- A história do povo de Deus é lembrada (11,1-40). Pela fé os grandes personagens do AT


permaneceram fiéis. Eles são modelos de fé. Assim como os heróis do passado, também
os cristãos devem permanecer fiéis (12,1).

- Acima de tudo, os cristãos devem ter o modelo de Jesus (12,2ss; 2,14-18; 4,14-
16). Ele sofreu a cruz, por isto os cristãos devem suportar

"Não há consolo maior do que saber que a causa dos leitores cansados e amedrontados está bem
representada junto ao coração de Deus"9.

Conclusão

Para que serve Hb? Pixeley supunha ser um evangelho espiritual para as massas urbanas,
próximo à filosofia platônica. Hb fala do imaterial que é visto como o real (8,5), o material,
como esboço do celeste. O Reino de Deus visto como imaterial (12,18-21.28). Porém, Hb
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acentua bastante a dimensão histórica do processo de salvação (1,1-3; 8.12). Isto, segundo
Ragaz seria sinal de Hb ser uma carta militante, antes de ser espiritual.

Pontos a ponderar

- A salvação não é desmaterializada da história como no êxtase, nem é intransponível.


Jesus fez um acesso para todos (6,19s; 9,8.11; 13.12).
- Encarnação, paixão e ascensão acontecem na história, não no mundo das idéias (2,17).
Também o processo salvífico só se dará na história (13,12-13).
- Se Cristo foi tão material, é de se supor que a salvação não seja imaterial 9,24). -
Como Cristo realiza a salvação na história, assim, os fiéis devem seguir o caminho histórico
de Jesus (10,19-20).

Concluindo

Hb insiste na historicidade de Jesus, bem como na dos heróis do AT. Isto é uma luta aberta
contra a a-historicidade dos mistéricos (11,1ss). A a-história é o veneno da história. Hb
reconta a história para neutralizar a a-história. Então, a fé no Cristo histórico estava em jogo
entre os fiéis. Hb quer resgatá-la.

A história do Deus encarnado, bem como a dos heróis históricos (11,1ss) são sinais de
resistência diante do a-historicismo. Deus é fiel na história, por isto mesmo, o Deus
apresentado em Hb é solidário com os sofrimentos (Hb 2,17ss; 4,15; 5,17). Sua história entra
na história dos sofredores. Um rebelde uniu a terra ao céu. Contando a história, Hb não
entende a vida como fuga do mundo. A salvação não é apenas da alma, mas realização
histórica da esperança escatológica.

FIM

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