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Teto de gastos públicos e limites

jurídicos ao ativismo judicial

Soraya Gasparetto Lunardi


Professora associada do departamento de administração pública; vice-coordenadora
do Curso de Mestrado e Doutorado em Economia (UNESP/FCLAr). E-mail: soraya.
gasparetto@unesp.br.

Rodrigo Constantino
Doutorando em Economia (UNESP/FCLAr). E-mail: rodrigo.jeronimo@unesp.br.

Paula Wielewski Leme


Mestranda em Economia (UNESP/FCLAr). E-mail: paula.leme@unesp.br.

Osvaldo Ujikawa
Mestrando em Economia (UNESP/FCLAr). E-mail: osvaldo.ujikawa@unesp.br.

Paulo Caprara
Mestrando em Economia (UNESP/FCLAr). E-mail: paulo.caprara@hotmail.com.

Resumo: Lançando mão de uma leitura crítica sobre a figura da “austeridade” na condução de políticas
econômicas contemporâneas, bem como da discussão sobre o conceito de ativismo e passivismo
judiciais, o artigo apresenta uma análise dos limites impostos pelo teto dos gastos à capacidade
do Poder Judiciário de atuar na garantia de direitos fundamentais definidos na Constituição Federal.
A primazia do corte de gastos públicos na condução de políticas econômicas e o papel performativo
do argumento pela austeridade no senso comum resultou na adoção de regras fiscais que impactam
diretamente na capacidade estatal de garantir os direitos básicos definidos na Constituição de 1988
e, consequentemente, têm efeitos sobre o ativismo ou passivismo judicial.
Palavras-chave: Austeridade; ativismo judicial; direitos fundamentais; separação dos poderes; teto de
gastos

Sumário: 1 Introdução – 2 O Teto dos Gastos Públicos e a Constitucionalização da Austeridade – 3 Os


fenômenos do ativismo/passivismo judicial – 4 Políticas de Austeridade e o Judiciário Brasileiro – 5 A
inércia do STF perante as reformas da austeridade – Conclusão – Referências

1 Introdução
A Constituição Federal de 1988 representou um marco na construção social
do país, definindo, de maneira precisa, os direitos a garantias fundamentais.

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Adotando o compromisso com um projeto social em contraste com as experiên-


cias liberais vividas em mais de três décadas, como Estado Democrático de
Direito(s), assumiu uma série de deveres, como a educação, alimentação, dignida-
de humana, lazer, trabalho e segurança.
No entanto, as décadas de vigência desta Carta que introduziu a constitucio-
nalização dos direitos sociais conheceram também movimentos políticos confli-
tantes em que, majoritariamente, objetivos e políticas neoliberais limitaram o seu
potencial estruturante (POCHMANN, 2001; BIAVASCHI, 2016). Caminhando pela
via fiscal, crescem os argumentos que apontam para a “rigidez” e “extensão” da
Constituição como um obstáculo para a retomada do crescimento econômico.
Receituários para a redução do tamanho do Estado pelo ajuste fiscal foram e têm
sido apresentados como soluções chave para a superação das crises
econômicas.
Nos deparamos, assim, com a importante questão de encontrar formas jurí-
dicas (e políticas) para preservar as características fundamentais da Constituição
e implementar os programas constitucionais transformadores. Mesmo em perío-
dos de crise e instabilidade, a Constituição impõe a presença e implementação do
modelo transformador com base naquilo que Tavares (2014) denominou de Direito
diretivo, no sentido de um conjunto normativo que “visa amparar medidas transfor-
mativo-econômicas, pela compreensão do direito econômico que resulta em meto-
dologia e contextos próprios”.1
Após um período de crescimento econômico e de melhoria dos indicadores
sociais entre os anos de 2003-2013 (governos Lula e primeiro governo Dilma) com
valorização do salário mínimo, ampliação do acesso ao ensino e redistribuição de
renda (BIANCARELLI, 2014; BARBOSA, 2013), a grave crise econômica gerou uma
reversão do crescimento e das políticas sociais que são fundamentais para o
projeto de desenvolvimento nacional. Com uma queda expressiva do PIB (-4,5% no
segundo trimestre de 2016) e com alto desemprego (12% em dezembro de 2016),
se acentua a pressão por medidas corretivas. A austeridade fiscal passa a ser o
principal objetivo do Estado e, por sua vez, os direitos constitucionais e marcos
legais de proteção aos trabalhadores se tornam alvos de crítica enquanto obstá-
culos do equilíbrio nas contas públicas. O debate em torno das políticas de com-
bate à crise não se restringe ao âmbito das ciências econômicas, mas é

1 TAVARES, 2014, p. 394.

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indissociável do estudo do direito e do papel do Judiciário na implementação dos


mandamentos constitucionais.
A política fiscal com foco na austeridade se espalha rapidamente em diver-
sos setores do pensamento acadêmico e das opiniões públicas sobre a condução
adequada da economia, transformando-se também em argumento jurídico para
adaptar os mandamentos constitucionais ao economicamente “possível”, além do
surgimento de reformas que objetivam restringir os gastos do governo, como é o
caso da Emenda Constitucional nº 95, que introduziu o “teto de gastos”.
O presente artigo apresenta reflexões sobre a preservação do projeto consti-
tucional inicial, adotando a proposta apresentada por Ramos Tavares sobre a
densificação das medidas de implementação com o objetivo de “superação das
condições estruturais do processo produtivo econômico que permitem a reiteração
da pobreza e da desigualdade”.2
Para tanto, serão analisadas a mencionada Emenda do Teto de gastos e
outras Emendas constitucionais que promoveram a desvinculação de gastos do
governo federal com maior flexibilização para investimentos em gastos sociais. A
proposta é verificar se nesses casos que acarretam grande repercussão econômi-
ca, se o Supremo Tribunal Federal protege direitos fundamentais ou se baseia no
discurso da austeridade para analisar a (in)constitucionalidade das referidas
normas.

2 O Teto dos Gastos Públicos e a Constitucionalização da


Austeridade
“Se o governo está no vermelho, ele precisa economizar, da mesma forma
que a dona de casa faz muito bem com as contas domésticas”; “o Estado brasi-
leiro gasta muito mais do que arrecada e isso é errado”; “gastamos demais e
vamos pagar a conta da irresponsabilidade”. As frases aqui citadas são exemplos
de argumentos comuns no Brasil contemporâneo que transbordaram do âmbito
profissional de políticos, economistas e cientistas sociais e se tornaram parte do
imaginário coletivo nacional sobre o estado ideal para a economia. Por trás des-
ses discursos, é possível encontrar a convergência para receituários de austerida-
de como característica primordial de políticas econômicas ditas responsáveis.

2 TAVARES 2014, p. 394.

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A difusão dessa concepção concomitantemente ao avanço neoliberal inicia-


do na década de 1970 acabou transformando-a em dogma (BLYTH, 2017;
RESENDE, 2017). Blyth (2017) aponta a gênese do liberalismo como forma de
oposição às monarquias, sua ineficiência e corrupção. O Estado era visto como
“algo a evitar, a minimizar, a contornar, a restringir e, acima de tudo, não confiá-
vel” (BLYTH, 2017, p. 57). Já segundo Resende (2017), a defesa da austeridade
“vem de uma armadilha ideológica, imposta pelos cânones de uma teoria macroe-
conômica anacrônica”.
O estudo da intensificação de medidas de austeridade no Brasil contempo-
râneo não deve ocorrer sem considerar os aspectos políticos por trás de sua de-
fesa. Há disputa que supera o caráter técnico das decisões econômicas,
procurando os adeptos da austeridade apresentar sua proposta como científica e
ideal em cenário de crise econômica e de profundo questionamento das institui-
ções governamentais.
Dentre as principais áreas de interesse da Sociologia Econômica encontra-se
o estudo do papel simbólico da retórica na manutenção de estruturas de poder já
estabelecidos na realidade social. Tomemos como exemplo a abordagem de Pierre
Bourdieu (1989) no estudo do poder simbólico. Em iniciativas visando à manuten-
ção do seu poder, grupos socialmente dominantes adotam comportamentos que
legitimam a sua autoridade, sendo a linguagem uma forma importante de distin-
ção e demonstração do capital simbólico que detém certa pessoa. Diferentes
grupos desenvolvem práticas e compartilham comportamentos que os diferenciam
dos demais, como no caso de acadêmicos e de juristas com sua linguagem her-
mética para quem não pertence aos esses grupos. No entanto, essa mesma ca-
racterística que afasta “os de fora” é o elemento que faz o público aceitar
coletivamente o poder daquele grupo, reconhecendo sua distinção e legitimando
seu papel de especialista em determinada área.
De que forma o poder simbólico está presente no debate político e acadêmi-
co sobre a crise econômica brasileira e a política econômica mais adequada para
sua superação? Uma resposta possível é o estudo do papel simbólico da lingua-
gem matemática-econômica, conforme percebido por Resende (2017) como forma
de preservar o status de teoria dominante dos pressupostos “ortodoxos”. Modelos
matemáticos robustos se apresentam como instrumento adequado para legitimar
perante a opinião pública a figura do técnico em economia e que, somado à cons-
tante exposição de seus profissionais ao público com artigos e entrevistas opina-
tivas, é capaz de gerar argumentos indiscutíveis de autoridade. Esses discursos

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se transformam em senso comum. Assim como expôs o filósofo da linguagem


John Austin (1962), há poder por trás de toda manifestação oral. Muito além de
“apenas falar”, a linguagem é uma ação social, ou seja, a linguagem é performá-
tica. O interlocutor revela seus propósitos e sustenta suas crenças a partir da
autoridade de que ele dispõe. Desse modo, torna-se impossível avaliar qualquer
elemento de política econômica sem que se leve em consideração o papel simbó-
lico dos “dogmas” ortodoxos enraizados na sociedade e a forma performativa
como são difundidos na opinião pública.
Como mencionamos, a crise econômica dos anos 2010 marcou o encerra-
mento de uma década de crescimento considerável iniciado no Brasil em 2004
(ROCHA, 2017, p. 196). Como resultado da crise político-econômica e da crescen-
te insatisfação popular guiada pela oposição e sua negação dos resultados das
eleições nacionais de 2014, o Brasil passou pelo segundo processo de impeach-
ment da breve história republicana pós-redemocratização no país.
Dentre os eventos que seguiram com o fim do governo da coalizão liderada
pelo PT tivemos uma condução conservadora que se formou pela coalizão do go-
verno do PMDB que assumiu o governo após o impeachment e se legitimou pelo
discurso da austeridade. A publicação da carta “Uma Ponte Para o Futuro” (PMDB,
2015) pelo partido do então vice-presidente Michel Temer é indicativa nesse sen-
tido. Antes mesmo da concretização do impeachment, o partido apresentou um
plano de governo de retórica reformadora para a “reconstrução de um Estado
moderno, próspero, democrático e justo” (p. 19). Em sua agenda de austeridade,
a carta definia o desajuste fiscal como principal entrave ao crescimento econômi-
co, apontando para a necessidade de esforços coletivos de mudança estrutural. O
diagnóstico dos elementos agravantes da crise fiscal não os restringe à condução
política do país pelos diferentes partidos e suas ideologias. Aponta principalmente
para a existência de uma rigidez da legislação e das regras constitucionais sobre
o orçamento público que estariam tendo consequências econômicas indesejadas.
Seriam a causa de um desastre próximo, gerando “prognósticos cada vez mais
sombrios sobre o futuro das nossas contas públicas” (p. 8).
De fato, o desajuste fiscal e os esforços pela sua superação por meio de
reformas estruturais foram o fio condutor do governo Temer, materializando-se na
Proposta de Emenda Constitucional nº 241/55 de 2016. Popularmente tratada
como a “PEC do Teto de gastos”, a proposta teve sua gênese no argumento per-
formativo da necessidade de redução do Estado, bem como do ajuste de suas

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contas, como fica claro no parecer do relator deputado Darcísio Perondi


(PMDB-RS):

Nestes últimos e ásperos tempos enfrentados pelo conjunto da


Nação, agravou-se a tendência perversa de o Estado gastar mais
do que arrecada; de o governo ficar cada vez maior e mais pesado
do que a sociedade é capaz de suportar (…) essa PEC já está
fazendo história simplesmente pelo fato de que é a primeira vez que
um governo ajustará suas contas controlando as despesas e não
recorrendo ao expediente fácil, mas socialmente doloroso, de cobrar
mais impostos.

Após a promulgação da Emenda Constitucional nº 95, em dezembro de


2016, o novo regime fiscal do teto de gastos se apresentou como tentativa de
estabilizar o déficit primário do Governo Federal, em que essas despesas deve-
riam não deviam superar o nível dos gastos do ano anterior corrigidos pelo Índice
Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). O período previsto para duração
das medidas de limitação quantitativa do gasto foi estabelecido em 20 anos.
À época da proposta, despontaram críticas quanto ao longo período de aus-
teridade. Rossi e Dweck (2016) criticaram a decisão de realizar uma política res-
tritiva em meio a uma recessão econômica, enquanto a experiência histórica
demonstrava que esse caminho gera um ciclo vicioso, pois os cortes públicos não
impulsionam o crescimento do país, levando à necessidade de ulteriores cortes na
despesa, já que a receita estatal, tributária ou outra, não aumenta em quadros de
recessão. Para os autores,

com o congelamento das despesas com saúde e educação, estas


passarão de 4% do PIB em 2015 para 2,7% do PIB em 20 anos,
quando a população brasileira será 10% maior. Enquanto que os
outros gastos federais (excluindo previdência e juros) que eram 7%
do PIB em 2015 serão de 0,6% do PIB em 2036, o que não parece
tecnicamente, tampouco politicamente, factível (ROSSI, DWECK,
2016, p. 4).

Convergindo com essa análise, Paiva et al. elaboraram estudo para o Instituto
de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), prevendo que, logo no primeiro ano, a
opção pela austeridade eliminaria recursos significativos referentes à assistência
social. Segundo as projeções dos autores, até o último ano de vigência da política
fiscal (2036), as perdas para programas de caráter social poderiam chegar ao

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nível de R$ 868 bilhões, o que faria os gastos sociais comparados com o PIB re-
troceder ao patamar de 2006 (PAIVA et al. 2016, p. 13).
Estudos mais recentes conseguem identificar com maior profundidade as
consequências da Emenda Constitucional nº 95, corroborando as críticas anterio-
res. David (2019) lembrou que, ao adotar a austeridade, o Brasil contraria trata-
dos internacionais, notadamente o Pacto Internacional de Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais. Essa Emenda é um típico caso de “retrocesso social”, dimi-
nuindo propositalmente o grau de satisfação dos direitos sociais além de repre-
sentar uma série de prejuízos econômicos e ao desenvolvimento como demonstram
outros estudos (GOMES et al., 2020).
Um modelo fiscal restritivo como o consolidado no país em 2016 talvez pu-
desse ser justificado como medida temporária contra a crise, promovida apenas
quando todas as alternativas fossem descartadas. Isso não é o caso com a polí-
tica econômica expressa na Emenda do Teto de Gastos. Funcia e Ocké-Reis (2019)
indicam que a EC 95 agravou a situação do SUS com cortes de R$ 6 bilhões para
o período de 2016 a 2018, comparado aos investimentos anteriores. Além disso,
em termos federativos, a austeridade prejudica desproporcionalmente os municí-
pios mais pobres.
Para o sistema educacional, os efeitos da política de austeridade também
são negativos, tornando praticamente inalcançáveis metas estabelecidas e indis-
pensáveis ao desenvolvimento como as diretrizes do Plano Nacional de Educação
(PNE) (CARA, PELLANDA, 2019).
Ocorrendo concomitantemente uma crise política e econômica sem preceden-
tes no período pós-redemocratização, o argumento do corte de gastos se confunde
com a negação do papel social do Estado como agente propulsor do desenvolvimen-
to, conforme o projeto constitucional transformador. Tal fato tem impactos importan-
tes sobre a sociedade, uma vez que, sendo regido por uma Constituição
transformadora e garantidora de direitos, o Brasil conhece a reação de quem nega
direitos fundamentais e o papel do Estado em sua implementação.

3 Os fenômenos do ativismo/passivismo judicial


A constitucionalização dos direitos sociais trouxe consigo as bases para a
execução das políticas públicas capazes de atingirem tais fins, ao mesmo tempo
em que estabeleceu e compartilhou competências entre poderes e entes da fede-
ração no esforço conjunto da garantia dos direitos. A constitucionalização

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estabeleceu deveres de ação social do Estado, anteriormente definidas apenas


pelo processo político e pela legislação infraconstitucional, o que evidentemente
afetou também o planejamento fiscal, diminuindo as margens de decisão com
base em considerações políticas.
Do ponto de vista da separação dos poderes, uma ulterior consequência da
constitucionalização foi o incremento e a intensificação das competências de contro-
le do Judiciário para o cumprimento dos novos deveres estatais em casos de inércia
no caso concreto (determinando a outro Poder o fornecimento de uma prestação) ou
abstratamente (sanando a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo e, em parti-
cular, enfrentando a omissão normativa) (DIMOULIS, LUNARDI, 2016).
Dentre as principais consequências da constitucionalização de direitos e
políticas sociais está o surgimento de uma nova forma de litigâncias, a de interes-
se público (CHAYES, 1976). Em sua obra seminal sobre o assunto, Sabel e Simon
(2004) discutem esse tipo de litigância como forma de defender direitos contra
instituições governamentais omissas. Para os autores, na base da litigância de
interesse público estariam os “direitos desestabilizadores” (destabilization rights),
ou seja, direitos que podem perturbar uma instituição pública que sistematica-
mente falhou em cumprir seus deveres e mesmo assim permaneceu imune à
prestação de contas políticas (accountability). No entanto, um argumento central
é que as medidas de intervenção do Judiciário variam de intensidade, podendo
gerar distorções no debate político e acusações de “ativismo”, alegando que esse
poder atua fora do raio de sua missão constitucional competência que consiste
em controlar a legalidade e não escolher a “melhor” política em certo campo.
Nos últimos anos, o Poder Judiciário, em especial os tribunais constitucio-
nais, no Brasil e em outros países, vêm exercendo um papel ativo na vida institu-
cional, tomando decisões sobre questões de largo alcance político, que envolvem
escolhas em temas controvertidos na sociedade, matérias tradicionalmente afe-
tas ao Executivo e Legislativo (espaço da política majoritária).
Sabel e Simon (2004) noticiam que, nos EUA, durante as últimas três déca-
das do século XX, esses litígios de direito público foram processados de duas
formas. No paradigma do “comando e controle” (command-and-control), o Judiciário
fixa regras às partes, “de cima para baixo” (top-down), partindo de decisões cen-
tralizadas sem que haja necessariamente estudos técnicos de avaliação dos seus
impactos. O segundo paradigma, denominado “experimentalismo” (experimenta-
lism), privilegia a negociação entre as partes envolvidas na litigância, com a revi-
são permanente de metas de desempenho, a verificação de seu cumprimento e a

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transparência, dados os padrões gerais e objetivos fixados. São privilegiados os


outputs ou invés de inputs, conferindo às partes discricionariedade sobre a forma
de alcançar esses objetivos. Para os autores, o enfoque experimentalista resolve
uma questão que não enfrenta o modelo do comando. A discricionariedade do
juiz/tribunal por assim dizer desaparece por trás da negociação e do espaço de
liberdade deixado aos envolvidos. Além disso o modelo experimentalista deixa de
atribuir má conduta aos agentes governamentais e procura resolver o problema
com participação dos envolvidos.
Em leitura semelhante, Medeiros (2011) sugere que uma solução ao proble-
ma do ativismo seria priorizar as demandas coletivas referentes a políticas públi-
cas, fenômeno denominado macrojustiça, em que seriam considerados os efeitos
financeiros e sobre os recursos materiais e humanos da Administração da decisão
judicial e se permitiria o acesso equitativo às prestações estatais e não apenas
às pessoas com acesso ao Judiciário, que ainda é desigual no Brasil. Assim, por
meio do exercício da macrojustiça, o Judiciário faria o controle sobre as políticas
públicas de forma abrangente, revendo os aspectos que influenciam a efetividade
das políticas existentes ou formulando novas. Isso colaboraria para o acesso
universal e igualitário à prestação estatal, de acordo com a capacidade financeira
do Estado (ver também VIEIRA, 2020).
Até aqui consideramos que o Poder Judiciário tem papel ativo no processo
geral de garantir que políticas públicas sejam executadas e direitos sociais sejam
respeitados. No entanto, seria muito otimista “crer que a omissão [dos poderes]
será adequadamente suprida por decisões de órgãos de composição elitista, de
opiniões geralmente conservadoras e de baixíssima accountability, como é o Poder
Judiciário” (DIMOULIS e LUNARDI, 2016, p. 256). Por essa razão é necessário
cerro ceticismo em relação ao papel do Judiciário, assim como uma reflexão sobre
alternativas que consistiriam no fortalecimento institucional de instâncias repre-
sentativas da sociedade que poderão assumir papel de fiscalização do próprio
Judiciário.
Essa reflexão é importante para a análise que segue, uma vez que as pes-
quisas sobre a forma como o STF, enquanto órgão de cúpula do Poder Judiciário
nacional, responde à escalada das políticas de austeridade no Brasil a partir da
década de 2010 demonstrará se essa vem sendo uma via promotora de mudan-
ças ou não. A opção política pela austeridade impôs limites ao ativismo-passivis-
mo judicial que se observa em outras áreas de atuação do Judiciário? Teria a
Suprema Corte adotado o dogma da austeridade em suas decisões, como se

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sustenta na literatura (LUNARDI e DIMOULIS, 2018; BERCOVICI, 2019; SANTOS,


2021; COUTINHO, 2021), e afirma-se mesmo por integrantes da Magistratura em
clara postura crítica perante o STF?3

4 Políticas de Austeridade e o Judiciário Brasileiro


As medidas de austeridade no país não ficaram restritas na EC 95/2016,
mas se espraiam para outras áreas estratégicas do orçamento, como a reforma
da previdência social (EC 103/2019) e a desvinculação dos gastos do governo
(notadamente EC 93/2016). Tais medidas são discutidas aqui para que possa-
mos identificar as linhas de análise das respostas do Judiciário a questões de
competência primária do Legislativo, que apresentam alto impacto econômico,
social e democrático, verificando se temos regularidade nessas decisões e qual
sua direção política e econômica.
A Constituição Federal de 1988 determina a vinculação de determinadas
receitas (contribuições e parcela de impostos) com despesas sociais em certo
setor de política social (notadamente educação, saúde, previdência e assistência
social). Isso ocorre por uma dupla razão. Primeiro – mais evidente –, a relevância
desses setores de atuação do estado que correspondem à implementação de di-
reitos sociais dotados de fundamentalidade constitucional. Segundo – mais impor-
tante –, a desconfiança do constituinte perante futuras maiorias políticas que
poderiam abandonar o projeto de garantia dos direitos dos mais necessitados. Ao
limitar a liberdade de conformação do legislador, esperou-se que as metas consti-
tucionais pudessem ser cumpridas com maior fidelidade.
No entanto, desde 1994, com o advento do Plano Real, promoveu-se a des-
vinculação das receitas da União em relação aos aludidos gastos sociais. Isso
ocorreu com sucessivas Emendas constitucionais que suspendiam o dever de
elaborar o orçamento de acordo com os mandamentos quantitativos constitucio-
nais. Essa desvinculação foi estabelecida sob a alegação de necessidade de fle-
xibilizar a destinação da despesa estatal, o que tinha como finalidade última

3 “O vice-presidente do Tribunal Superior do Trabalho, ministro Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, criticou
decisões recentes do STF: ‘Antes, havia uma deferência à Justiça do Trabalho por parte do Supremo, no
sentido de uma limitação na apreciação das matérias trabalhistas, o que hoje já não mais ocorre (…)
os fundamentos expostos nas decisões majoritariamente proferidas no Supremo Tribunal Federal têm o
viés neoliberal de redução do Estado e do direito de proteção aos vulneráveis’” Disponível em: https://
monitormercantil.com.br/vice-do-tst-diz-que-supremo-tem-vies-neoliberal. Acesso em: 2 jun. 2022.

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Teto de gastos públicos e limites jurídicos ao ativismo judicial

diminuir a despesa geral e destinar mais recursos ao pagamento de juros da dívi-


da pública, em detrimento das despesas sociais.

Quadro 1 – Emendas Constitucionais com o objetivo de desvincular receitas

Receitas Percentual
EC Vigência Denominação ADCT
desvinculadas desvinculado
ECR Impostos e Fundo Social de
1994-1995 20% arts. 71-72
1/94 contribuições Emergência
Fundo de
EC Impostos e
1996-1997 20% Estabilização arts. 71-72
10/96 contribuições
Fiscal
Fundo de
EC Impostos e
1997-1999 20% Estabilização arts. 71-72
17/97 contribuições
Fiscal
Impostos e Desvinculação
EC
2000-2003 contribuições 20% de Receitas da art. 76
27/00
sociais União
Impostos, Desvinculação
EC
2003-2007 contribuições 20% de Receitas da art. 76
42/03
sociais e CIDE União
Impostos, Desvinculação
EC
2008-2011 contribuições 20% de Receitas da art. 76
56/07
sociais e CIDE União
Impostos, Desvinculação
EC
2012-2015 contribuições 20% de Receitas da art. 76
68/01
sociais e CIDE União
Contribuições Desvinculação
EC
2016-2023 sociais, CIDE e 30% de Receitas da art. 76
93/16
taxas União
EC Impostos, taxas e Estados, DF e arts. 76-A
2016-2023 30%
93/16 multas Municípios e 76-B
Fonte: Elaboração própria a partir de dados das Emendas Constitucionais.

Conforme pode se constatar no quadro acima, o mecanismo da desvincula-


ção, que deveria ser provisório, foi perenizado, aproximando-se já dos 30 anos.
Verifica-se, também, crescimento da desvinculação, que passou de 20% das recei-
tas de impostos, contribuições sociais e CIDE, para 30% das contribuições so-
ciais, CIDE e taxas, além da extensão do mecanismo aos Estados, Distrito Federal
e Municípios (EC 93/2016). Isso comprimiu ainda mais os gastos sociais em
nome da austeridade e estabilidade fiscais, conforme tendência examinada no

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presente artigo, com prejuízo aos direitos e políticas sociais previstos na


Constituição.
Conforme Tobaldini e Suguihiro (2011), entre os anos de 2000 e 2007, a
DRU (Desvinculação de Receitas da União) foi responsável por 62,45% do superá-
vit primário obtido no aludido período. Os mesmos autores afirmam que a
Seguridade Social foi superavitária, ao contrário do discurso oficial, já que, duran-
te o mesmo período, a DRU drenou da Seguridade Social R$ 278,4 bilhões e o
orçamento fiscal repassou para essa área R$ 161,62 bilhões, ou seja, 58,6% do
valor transferido pela DRU. No mesmo sentido, conforme relatório da ANFIP
(2017), o superávit anual médio da Seguridade Social, entre os anos de 2005 e
2016 foi de R$ 50,1 bilhões, mas valor equivalente foi retirado da Seguridade
Social via DRU (R$ 52,4 bilhões anuais médios).
No entanto, a Emenda Constitucional nº 103/2019 determinou que a DRU
não se aplica às receitas das contribuições sociais destinadas ao custeio da se-
guridade social (art. 76, §4º, do ADCT). Isso deveria gerar maior transparência
quanto ao alegado caráter deficitário da Seguridade Social, mostrando que ela é,
na realidade, superavitária.
A reforma da previdência foi aprovada em novembro de 2019, lançando mão
de argumentos performativos quanto à capacidade da austeridade de agir como
forma de solucionar os problemas econômicos, argumentos estes que foram di-
fundidos por veículos de impressa e órgãos oficiais do Estado.
A Emenda Constitucional nº 103/2019 introduziu a Reforma Previdenciária,
através de mudanças no sistema e regras de transição claras. A idade mínima
para aposentadoria e o tempo de contribuição tornaram-se mais exigentes para os
trabalhadores do setor privado e de municípios que participam do Regime Geral de
Previdência Social, exigindo das mulheres o mínimo de 62 anos de idade e 15
anos de contribuição, sendo para os homens a idade mínima de 65 anos de idade
com pelo menos 20 anos de contribuição. Já para os servidores públicos federais
que compõem o Regime Próprio de Previdência Privada, a regra estabelece tam-
bém 62 anos para mulheres e 65 anos para homens com ulteriores exigências de
tempo de serviço. Professores, policiais, militares e trabalhadores rurais possuem
regras diferenciadas (BRASIL, 2019).
O benefício e as alíquotas também sofreram alterações. O valor da aposen-
tadoria passa a ser realizado tomando como base todas as contribuições do indi-
víduo desde julho de 1994, enquanto os servidores públicos federais são
separados em dois tipos de cálculo a depender do ano de ingresso no cargo, com

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Teto de gastos públicos e limites jurídicos ao ativismo judicial

regras mais restritivas que as anteriores. As alíquotas passaram a ser caracteriza-


das como progressivas, devendo pagar mais os trabalhadores com maiores
rendimentos.
Deste modo, a Nova Previdência estabeleceu regras mais rígidas com o re-
sultado geral de postergar as aposentadorias e a diminuir os valores recebidos
pelos aposentados. Por essa razão, a EC 103/2019 constitui uma direta expres-
são da política de austeridade no campo econômico, conforme os próprios defen-
sores da reforma sempre sustentaram.
Em 2017 ocorreu a Reforma Trabalhista, que resultou em maior precarização
do trabalho denominado informal. Em 2020, em decorrência da pandemia de co-
vid-19, o desemprego se elevou e mais trabalhadores migraram para o setor infor-
mal, além da crise política, econômica e sanitária que envolveu o Brasil. Somados
à Reforma da Previdência promulgada em 2019, os cortes na tutela trabalhista
tiveram repercussão nas condições de vida das camadas populares, em contraste
explícito à concentração da renda na camada mais rica e mesmo os benefícios
dados a algumas categorias de funcionários públicos.
A reflexão sobre o teto de gastos deve iniciar-se com uma indagação geral.
Se o funcionamento basilar do orçamento é o equilíbrio entre receita e despesas,
por que o debate brasileiro se concentra na estrutura e no volume das despesas,
considerando que apenas os cortes drásticos poderiam trazer equilíbrio? Se as
receitas dependem dos ciclos econômicos que determinam o nível de produção e
de renda, não deveria ser levado em consideração que, a partir de 2014, o Brasil
entrou em um ciclo de desaquecimento econômico e, como consequência, houve
e continuará havendo queda da receita pública? Não seria necessário e desejável
realizar reformas para aumentar a receita do Estado com mudanças na tributação,
incluindo o efetivo combate à sonegação e a certos privilégios tributários?
Outro ponto problemático foi a referência à dívida pública com base em seu
valor bruto, sem levar em conta os ativos que poderiam reduzir essa dívida, apesar
de ser esse um procedimento básico das análises econômico-financeiras. Em
2014, a dívida pública líquida era 32,6% do PIB e a bruta 56,3%; em 2015, 35,6%
e 65,5% respectivamente. Quando o aumento da dívida de 9,3% é decomposto,
aparece que o déficit primário está longe de ser a razão básica do aumento.
Fatores decisivos desse resultado foi o serviço de dívidas (pagamento de juros) e
a própria evolução do PIB (CARVALHO, 2018).
Em 2014, o déficit primário foi de R$ 32,5 bilhões (0,57% do PIB) e o nominal
R$ 343,9 bilhões (com pagamento de juros). Em 2015 temos, respectivamente, R$

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111,5 bilhões (1,88% do PIB) e R$ 613 bilhões. Em 2014, as desonerações tribu-


tárias concedidas pelo governo (sem levar em consideração as estimativas sobre a
sonegação) atingiram R$ 101,3 bilhões e, em 2015, R$ 103 bilhões. Assim sendo,
juros mais desonerações perfazem um total de R$ 412,7 e R$ 604,5 bilhões para
cada um dos anos indicados segundo dados da Receita Federal e do Banco Central.
Se compararmos esses valores com o déficit da previdência (R$ 123 bilhões em
2014 e R$ 158 bilhões em 2015), percebemos que as desonerações e os juros
foram muito mais impactantes no orçamento federal, ainda que pouco tematizados
no debate público e nas “receitas” para sair da crise.
No período 2014-2018, o de menor crescimento real das despesas com
política de contração fiscal, ocorreu forte queda no resultado primário, devido
justamente à diminuição da receita real que foi muito maior que o aumento real
dos gastos. Ao que tudo indica, o período 2014-2018 foi marcado por um círculo
vicioso, em que os cortes de gastos levaram à queda real do PIB, que por sua vez,
acentuou a queda da arrecadação (DWECK, 2019).
Por vezes, o governo gerou desconfiança quanto à higidez de suas previsões
e propostas, pela ausência de uma base de cálculo transparente (LOBATO; COSTA;
RIZZOTTO, 2019, p. 6). Apresenta-se, assim, uma gama de fatores que deveriam
ter sido levados em consideração para decidir políticas de ajuste, tanto as conjun-
turais como as estruturais. Entretanto, o debate fixou-se unilateralmente nas
questões atuariais e fiscais, optando-se por diminuir as prestações aos aposenta-
dos e apresentando como reforma da Previdência social apenas medidas de aus-
teridade imposta aos aposentados.

5 A inércia do STF perante as reformas da austeridade


A busca pela “austeridade” na despesa estatal consolidou-se partir do gover-
no Dilma Rousseff com o objetivo de recuperação das contas públicas, debilitadas
em razão da severa crise fiscal vivenciada pelo país desde 2010. A EC 95/2016
definiu um novo regime fiscal para o teto dos gastos públicos devido a este cená-
rio com efeitos prejudiciais, principalmente para a educação e a saúde. Do ponto
de vista constitucional, várias vozes na doutrina argumentaram que a imposição
de um teto de gastos representa violação, indireta mas clara, dos direitos funda-
mentais prestacionais, pois sua consequência prática (e inescapável) será a limi-
tação do acesso a serviços básicos, a diminuição da ação redistributiva do

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Teto de gastos públicos e limites jurídicos ao ativismo judicial

Estado4 e, como consequência final, o aumento da pobreza e o agravamento da


desigualdade social no país.
A adoção de políticas regressivas não se restringiu ao estabelecimento do
teto dos gastos, mas se estendeu para outras áreas de controle da despesa pú-
blica. Isso ocorreu com as consecutivas Emendas constitucionais que desvincula-
ram o gasto público de sua destinação constitucional originária (em particular a EC
93/2016) e com a reforma da previdência (EC 103/2019), além de um conjunto
de mudanças legislativas que restringiram os direitos trabalhistas.
Entretanto, o Poder Judiciário não mostrou disposição em fiscalizar as refor-
mas neoliberais da Constituição de 1988. A nossa pesquisa na rica e diversificada
jurisprudência do STF nos permitiu oferecer o seguinte retrato.
a. A ADIn 5.595 questionou a constitucionalidade da Emenda Constitucional
nº 86 de 2015 que estabelecia o cumprimento apenas progressivo do dever da
União de dedicar à saúde 15% de sua receita corrente líquida de cada exercício
financeiro. Em decisão liminar de 2017, o Ministro Ricardo Lewandowski declarou
a inconstitucionalidade do sistema de aumento apenas gradual da alíquota, obser-
vando que esse sistema teve como consequência (esperada) a diminuição da
despesa da União com a saúde.
Ao fazer isso, o Ministro indicou uma regra geral em relação a lides que en-
volvem queixas de ineficácia das políticas públicas: “alterações que impliquem
retrocesso no estágio de proteção por eles alcançado não são admissíveis, ainda
que a pretexto de limites orçamentário-financeiros”.5
Trata-se de adoção da tese que veda o retrocesso no cumprimento dos direi-
tos prestacionais, tese essa defendida por constitucionalistas pátrios extensiva-
mente citados na decisão liminar. Até hoje não houve decisão do Plenário e, na
verdade, a ação perdeu seu objeto, já que a Emenda Constitucional nº 95 de 2016
(posterior à liminar do Min. Lewandowski) revogou o artigo que determinava o au-
mento apenas gradual da alíquota dedicada à saúde, convalidando por assim dizer
o entendimento do Ministro.
Essa decisão permanece isolada na jurisprudência do STF que, de maneira
constante, declara constitucionais as Emendas que estabelecem desvinculações

4 “Educação e saúde são direitos fundamentais, ínsitos à liberdade real que as pessoas devem ter, e que
estão protegidos como cláusula pétrea pela Constituição. De que adianta consagrar um direito como
fundamental e não dar os meios para sua execução?” (SCAFF, 2016). Detalhadamente a favor da tese da
inconstitucionalidade das desvinculações: KOSSMANN e BUFFON, 2021.
5 Medida cautelar na ADIn 5.595, decisão monocrática do Relator Min Ricardo Lewandowski, julgamento
31-8-2017.

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da receita (jurisprudência confirmando essas Emendas que minam a possibilidade


de se ter políticas públicas adequadas) (KOSSMANN e BUFFON, 2021, p. 302).
b. Em relação à reforma da Previdência, houve fortes questionamentos de
sua constitucionalidade nas ADIn 6.279 e interposta em dezembro de 2019. O
Ministro Barroso não concedeu a liminar solicitada. Confirmou a constitucionalida-
de de alguns artigos e deixou de se pronunciar sobre os demais.6 Até hoje não
houve decisão do Plenário, continuando sendo aplicável a Emenda da reforma da
previdência sem que o STF tenha se pronunciado a respeito de sua
constitucionalidade.
c. A reforma trabalhista foi questionada por uma longa série de ADIn. Houve
declarações de inconstitucionalidade de normas específicas,7 mas a maior parte
da reforma permaneceu em vigor. Em muitos casos, o STF simplesmente não se
pronunciou sobre alegações de inconstitucionalidade.
Isso observou-se na ADIn 5.870 e as que tramitam junto a ela dede 2017.
Essas ações foram julgadas extintas em 2021 após ter perdido validade a medida
provisória que restringia direitos do trabalhador.8 Já a ADIn 6.050 e apensadas,
protocoladas em 2018, a ADIn 6.188, protocolada em 2019, e a ADIn 5.994,
protocolada em 2018, ainda não tiveram julgamento de mérito sobre a inconstitu-
cionalidade em razão de pedidos de vista.9 Por fim, a ADIn 5.826 e apensadas
questionam grande número de normas trabalhistas e não receberam resposta
desde 2017. Mesmo após sua inclusão na pauta de julgamento em novembro de
2021 não houve pronunciamento do Tribunal.10 O mesmo silêncio constatou-se
em relação aos pedidos da ADIn 6.002.11

Conclusão
Verificamos que a reforma fiscal representada pela EC 95/2016 teve como
finalidade melhorar a gestão fiscal via redução da relação dívida/PIB, congelando
gastos do governo. Isso ocorreu sem análise profunda do impacto dessas

6 ADIn 6.254, decisão monocrática do Min. Roberto Barroso, julgamento em 28-11-2019; ADIn 6.279,
decisão monocrática do Min. Roberto Barroso, julgamento em 17-12-2019.
7 Exemplo: 5.766, relator Min. Alexandre de Morais, julgamento em 20-10-2021.
8 ADIn 5.938, relator Min. Alexandre de Moraes, julgamento em 29-5-2019.
9 Cf. o andamento processual das ações em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=
5612680; http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5731024; http://portal.stf.jus.br/
processos/detalhe.asp?incidente=5530775.
10 Cf. o andamento processual das ações em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=
5317595.
11 http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5537399

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Teto de gastos públicos e limites jurídicos ao ativismo judicial

medidas. A consequência econômica foi um ataque à renda da parte mais vulne-


rável da população que depende de serviços públicos e a retração econômica
(GOMES et al., 2020). O “teto de gastos” é, portanto, uma anomalia do ponto de
vista técnico econômico mesmo sendo apresentada ideologicamente como remé-
dio milagroso.
A atuação do Supremo Tribunal Federal em casos como esse poderia ser de
intervenção ou de omissão, ativista ou passivista. Constatamos que não há pa-
drão decisório em processos julgados pelo STF. Em um dos casos analisados
(ADIn 5.595), o Ministro Lewandowski declarou a inconstitucionalidade do aumen-
to gradual da alíquota que comprovadamente diminuiu a despesa da União com a
saúde. Nos demais casos analisados, apenas houve declaração de inconstitucio-
nalidade de normas específicas e periféricas. A maior parte das normas restritivas
de direitos sociais permanecem em vigor.
Verificamos, portanto, a inexistência de padrão de interpretação em questões
de grande impacto social que tratam de direitos sociais. A postura do STF confirma
as críticas de Sabel e Simon sobre a ausência de respostas consistentes do
Judiciário, podendo surgir distorções no debate político. Não foi constatado ativismo
no sentido de uma atuação que interfira nas decisões do legislador, mesmo quando
essas decisões sejam de constitucionalidade bastante duvidosa. A inércia do STF
na maioria dos casos indica um passivismo de cunho processual, uma vez que não
interfere e nem toma decisão final. O resultado é a falta de resposta constitucional
ao aumento da pobreza e à estagnação econômica vivida atualmente.

Public spending cap and legal limits to judicial activism


Abstract: Using a critical reading of the figure of “austerity” in the conduct of contemporary economic
policies, as well as the discussion on the concept of judicial activism and passivism, the article
presents an analysis of the limits imposed by the spending cap on the Judiciary’s ability to guarantee
fundamental rights defined in the Federal Constitution. The aim of cutting public spending in the
conduct of economic policies and the performative role of the argument for austerity in common sense
has resulted in the adoption of fiscal rules that directly impact the state’s ability to guarantee the basic
rights defined in the 1988 Constitution and, consequently, have effects on judicial control as “check
and balance” agent.

Keywords: Austerity; Brazilian Fiscal Spending Limit; Fundamental Rights; Judicial Activism; Separation
of powers

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Recebido em: 07.12.2021


Aprovado em: 31.05.2022

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2018 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

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