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A arquiteta, historiadora e diretora do Museu da Universidade Federal do Pará,

Jussara Derenji, tem uma relação de longa data com o Soledade. “O Cemitério
da Soledade me emociona. Quantas esperanças e sonhos terminaram ali”,
disse, enquanto combinávamos o melhor dia e horário para a entrevista, que
ocorreu pelo telefone. Entre confissões de ambas as partes, sobre quão à
vontade nos sentimos no sítio histórico, localizado no coração de Belém, nossa
convidada especial externou uma enorme preocupação pelo avançado estado
de degradação do Soledade. Entre saudades e afetos, revelou curiosidades e
afirmou que o local é uma reprodução da própria cena urbana – com
desigualdades e ostentações.

Troppo + Mulher: O Soledade é retrato de um período muito emblemático em


nossa história – desconcertantemente, vivemos novamente uma
epidemia/pandemia, um momento tão dramático quanto histórico. 170 anos se
passaram desde a inauguração do cemitério e... a exemplo dos memento mori,
quais lições ele deveria nos lembrar?
Jussara Derenji: O Soledade, sem dúvida, em função da epidemia, nasceu em
um período de luto, de dor, mas, também, quando a Belle Époque desponta em
Belém. O cemitério passou a refletir a fase do luxo, da ostentação, da riqueza
do período da borracha. Ele traz uma imitação dos modelos europeus, com o
surgimento dos cemitérios monumentais no Velho Continente, além do reflexo
de uma nova burguesia, que quer mostrar, no cemitério, esses privilégios, esse
poder e riqueza, diante da capacidade de erguer monumentos perenes. Eu,
particularmente, considero o Soledade uma cápsula do tempo, pelo curto tempo
em que ele funcionou [o local foi inaugurado em 1850 e encerrado em 1880, ou
seja, apenas 30 anos depois]. Então, ele ficou como uma amostra de um
período muito específico. Quanto à lição, é a mesma que todos os cemitérios
têm: qual a validade de certos sentimentos que temos em vida e para os quais
erguemos essas estátuas, monumentos... lembranças monumentais, que não
adiantam de nada? São vazios do sentido da própria vida. Ali, onde não jaz
vida, ficam todos as esperanças e sonhos. Fica a reflexão: a que nos damos
valor? Essa homenagem póstuma, para a época, era quase um dever para
quem fica, de fazer essa demonstração ostensiva de um pesar, de uma dor,
através de uma obra de arte.
Cemitério da Soledade (Lorena Filgueiras)

T+M: Para além de nos rememorar de um período de dor e riqueza, o que torna
o Soledade tão único? Qual o estado atual dele?
JD: Nesse período do Soledade, que é o primeiro cemitério católico daqui, ele
vai ter exemplos dos europeus, que se transformaram em cemitérios
monumentais e onde trabalham os grandes artistas do período. São artistas
que não necessariamente trabalhavam com arte funerária, mas que,
naturalmente, faziam túmulos de pessoas importantes da sociedade e que
realizaram verdadeiras obras de arte! É um período de enorme realismo e
temos, no Soledade, alguns exemplos da produção funerária de Gênova e da
região de Nápoles também, que primam pelos detalhes, pelas filigranas. Em
pedra, temos os detalhes das rendas, das flores bordadas, a delicadeza dos
cabelos – tudo é muito bem cuidado e com qualidade artística muito boa.
Muitas delas foram feitas na Europa e algumas, nas marmoarias daqui.
Infelizmente, nós não temos tantas identificações. Essa qualidade do que era
feito já se perdeu bastante, pelo estado em que se encontra o cemitério, que já
foi muito dilapidado e desfigurado... 

T+M: A sra., inclusive, chegou a elaborar todo um plano de revitalização do


cemitério, não?
JD: Exatamente. Em 1994, quando eu estava na gestão de patrimônio do
Município, foi feito um grande projeto que transformaria aquele lugar num
espaço de arte, sem deixar de ser um cemitério, até porque é uma área
tombada... inclusive, foi uma das primeiras áreas no Brasil, acho que em 1941,
a ser tombada como área paisagística [o tombamento como patrimônio histórico
e cultural ocorreu em 1964]. E isso é muito raro. 

T+M: O local é lindíssimo e tem esculturas muito diversas, mas, em maioria,


cuidadosas e bem elaboradas.
JD: As esculturas da época eram feitas por grandes artistas, que davam forma
às grandes simbologias: morte, saudade, tristeza, esperança. Alguns túmulos
têm simbologias ligadas às profissões das pessoas. Nos cemitérios europeus,
quando morria o chefe da família, ele e a família inteira eram simbolizados e
imortalizados; mãe e filho que morriam no parto também. Há grandes
conjuntos, monumentos enormes. Naquela época, dava-se muita importância à
arte funerária. Era, inclusive, um exercício obrigatório do curso de Arquitetura
na Europa. Eu não fiz, mas gerações antes de mim fizeram esse exercício: de
elaborar um túmulo. Aqui no Instituto Histórico e Geográfico, há estudos
detalhados de um túmulo. Até os anos 30, os túmulos eram objetos de
concursos públicos! O próprio túmulo do presidente Afonso Pena foi eleito em
um concurso. Em Belém, não havia escultores, mas é preciso que se diga que
um dos primeiros escultores era uma mulher! A Julieta de França, que nasceu
em Belém, e estudou por muito tempo em Paris, foi escultora. Embora tivesse
participado de inúmeros concursos, nunca ganhou. Voltando rapidamente às
esculturas, havia símbolos menores: a árvore caída, a flor quebrada, a tesoura
cortando o tempo, a ampulheta e flores... flores específicas para cada
sentimento. Um cemitério é como um livro, algo que pode ser “lido” e, por essa
razão, trabalhamos, em 1994, num projeto que o transformasse num museu a
céu aberto. Porque essa leitura é proporcionada pelos ícones, esculturas, que
foram colocadas ali justamente para serem lidas, interpretadas pelas gerações
posteriores. Agora, muita gente não conhece. Como ler tais simbologias
atualmente?   
Jussara Derenji (Acervo Pessoaç)

T+M: Uma das figuras mais emblemáticas da arte funerária é o “anjo da


morte”...
JD: É aquele anjo que leva a alma. O Vittorio Lavezzari [escultor genovês] foi
um grande escultor italiano e essa figura [o anjo da morte] é muito característico
do que ele [Lavezzari] fazia no cemitério de Gênova. O anjo acompanhava uma
mulher, cuja pose é quase sensual, uma vez que ela estava “coberta” por uma
túnica colada ao corpo, deixando evidente seus contornos. Em Gênova, ele fez
duas mulheres nuas. A arte funerária tinha uma enorme capacidade de
abrangência de temas. Imagine cemitérios imensos e os artistas querendo se
destacar uns dos outros. Mas voltando ao Lavezzari, ele foi advertido pela
direção do cemitério que ele deveria cobrí-las. 

T+M: Um pouco antes da entrevista, a sra. comentou algo interessantíssimo:


como o cemitério reflete a estrutura social da época...
JD: Ele, de fato, tem essa configuração. É uma reprodução do sistema social.
No caso de Gênova, os [túmulos] mais ricos ficam na parte mais alta do
cemitério; na área central, estão os mais poderosos e, no centro de tudo, o
símbolo religioso, que é a capela ou a igreja. Veja bem que estou falando dos
cemitérios católicos. No nosso caso, temos uma alameda central que leva à
capela, que, inclusive, foi toda restaurada em 1994, por uma equipe de
especialistas. Inclusive todos os túmulos, na alameda principal, foram
igualmente restaurados. E ali, estão as pessoas mais importantes – não quer
dizer que sejam as pessoas mais ricas! Eram pessoas importantes para a vida
social, para a comunidade. Depois, vão se espraiando as pessoas menos
conhecidas. As que não têm qualquer feito memorável, estão mais ao lado. 

T+M: Quem foi o primeiro enterrado do local?


JD: Ah, foi a babá de uma poderosa família da região! Se não foi o primeiro, foi
um dos primeiros enterramentos! Aí entramos na questão do valor que se dá a
essa dignidade na morte. É uma característica, inclusive, do período: o
cemitério era uma maneira de dar essa dignidade ao morto, uma valorização,
mostrando a todos o quanto aquela pessoa era querida. E veja bem, enterrar
uma babá, que obviamente era negra e ama de leite, é compreender o
entendimento do valor sentimental, o quanto essa pessoa foi importante para a
família: ela descansaria no cemitério recém-aberto. Até então, as pessoas
importantes eram enterradas nas igrejas.

T+M: É muito triste ver o Soledade morrer a olhos vistos, professora. 


JD: Boa parte do ferro de lá foi roubado. Triste ver as esculturas sendo
depredadas, cabeças roubadas para serem vendidas em antiquários...

T+M: ...movimentando todo um comércio ilegal.


JD: Exatamente! Isso tudo é oriundo desse espaço! Avalie uma cabeça de uma
mulher, que data desse período [1850-1880], com traços realistas, ricos,
românticos, sendo tirada desse contexto e vendida com todo um discurso...
ninguém suspeita que tenha sido tirada de um cemitério, que se trate de arte
funerária. Em Gênova, eles têm muito cuidado com isso, além de, no arquivo
municipal, um registro com todos os projetos catalogados dos túmulos. Os
projetos originais são guardados. Esse cuidado com o patrimônio deveria valer
aqui. Se a valorização não ocorre por questões religiosas ou de superstições,
que seja pelo valor de obra de arte! Não existe em Belém, desse período,
nenhum outro local que reúna tantas obras de artes como o cemitério! Esse
verdadeiro museu de esculturas está abandonado pelo poder público! E olhe
que em 1994, apresentei o projeto. Mais de vinte anos que não se faz nada
pelo Soledade. A proposta de cemitério parque foi apresentada num encontro
nacional de História e deixei o projeto na FUMBEL [Fundação Cultural do
Município de Belém], quando saí de lá. Ele contemplava, entre outras coisas, a
criação de uma oficina de restauro na parte de trás do cemitério.

T+M: Criando uma mão-de-obra local especializada, coisa que talvez não
tivéssemos naquela época.
JD: Não tínhamos e agora temos, pela UFPA, o Curso de Conservação e
Restauro, que está formando novos profissionais, mas ainda não há
profissionais em pedra, matéria-prima de 80% das obras. O mausoléu da
família Chermont, que é belíssimo, além de outros, cujas esculturas foram
trazidas de fora [do país]. 

T+M: E qual a maior lição que a morte nos deixa?


JD: Tive uma amiga sensacional, a Maria Sylvia Nunes [que nos deixou no
começo deste ano], que encantava a todos, pela maneira com que enfrentou e
superou a morte do professor Benedito [filósofo Benedito Nunes], porque viviam
os dois, sem filhos. Ela me dizia: “Jussara, não tenho vocação para ser infeliz!”
[Derenji ri bastante aqui] Pedi a ela: “Maria, posso usar isso?”. É exatamente
isso: os cemitérios trazem a compreensão da finitude, que é tão difícil para o
ser humano. Ali se acaba toda a vaidade, poder, ambição, glória. Tudo isso se
vai. Devemos valorizar a vida e cultivar a capacidade de ser feliz!

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