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www1.folha.uol.com.br /ilustrissima/2022/06/brilho-da-ciencia-e-da-cultura-vai-nos-tirar-da-escuridao-diz-gil.shtml
[RESUMO] Em artigo, Gilberto Gil descreve a origem de seu interesse pela ciência, comenta os desafios
comuns de cientistas e artistas em desbravar novos mundos e defende a união de ciência e cultura
em um projeto arrojado que beneficie não apenas o Brasil, mas toda a humanidade.
Desde pequeno, me interesso por ciência e tecnologia. Em Ituaçu, no interior da Bahia, onde passei a
infância, acompanhava por revistas ilustradas e pelo rádio as revoluções tecnológicas do período, ao
mesmo tempo que via meu pai médico e minha mãe professora primária se dedicarem a seus ofícios de
cuidar e ensinar.
Não canalizei esse deslumbramento pela ciência a uma carreira profissional, como tantas crianças que,
apaixonadas por robôs e viagens espaciais, se formam engenheiras, físicas ou matemáticas.
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O cantor e compositor baiano Gilberto.Gil durante o show "Quanta", em 1997, trabalho que teve
como inspiração seu interesse por física - Niels Andreas/Folhapress
Acabei construindo uma trajetória na música, mas nunca deixei de me encantar com a capacidade humana
de esquadrinhar os mistérios do universo e produzir discursos, imagens, teoremas e técnicas para
compreender as dimensões da vida e do cosmos, do qual somos uma ínfima parte, se bem que
imensamente curiosa e questionadora.
O ser humano é um ser de perguntas, mas também se empenha em criar sistemas que procuram
respondê-las. Essa é a essência da ciência, mas também da cultura de um ponto de vista mais amplo.
Ciência e arte, embora distintas, se entrelaçam, penetram nessas frestas que o universo e a condição
humana nos apresentam sob a forma de mistérios. São linguagens e sistemas que, movidos pelo fascínio
do novo e pela ebulição do conhecimento, perseguem a busca por novos modos de imaginar o mundo, uma
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busca que se reveste de enorme sofisticação e especificidade na prática científica, mas que surge da
matéria ordinária de que é feito nosso cotidiano.
A física quântica foi uma das descobertas que me atraíram enquanto observador dos fazeres e saberes
científicos. Esse ramo da ciência, que inspirou meu disco "Quanta" (1997), é a busca de mais de um século
por uma linguagem que dê conta do absurdo do mundo nas minúsculas escalas subatômicas, sem a qual é
impossível entender a enormidade do cosmos.
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Para mim, a obstinação dessas mentes científicas em pensar o impensável, teorizar sobre a vida das
ondas-partículas em escalas abismalmente distintas daquelas dos objetos triviais, toca em desafios que são
também a matéria-prima da arte, da cultura, da filosofia ocidental e oriental: inventar linguagens novas com
base naquelas que já circulam, criar mundos distintos, mas que convivem com nossa vida corriqueira,
imaginar outros mundos possíveis e novas maneiras de nomear esses mundos, transformar a vida dos
sujeitos a partir de novas formas de dizer o universo.
Do mesmo modo, a ciência é parte da cultura, se por cultura entendemos não um conjunto de obras
canonizadas segundo uma régua histórica de desigualdade, mas como uma constelação dinâmica na qual
se inscrevem os atos criativos de um povo. E a tecnologia é o encontro da ciência com o terreno das
práticas culturais as mais diversas, propiciando a transformação de como organizamos nossa rotina
individual e nossa vida coletiva.
Essa busca por linguagens para expressar o novo ou de códigos para enformar o conhecido e o
desconhecido são as questões de todo artista. Como músico, integrei uma geração e uma coletividade que
se propôs pensar uma nova linguagem para a cultura brasileira que não fosse uma ruptura com a cultura
popular ou erudita, mas que também abraçasse seletivamente novas influências e confluências do período.
A tropicália e todos os seus ramos e transposições posteriores são um capítulo primordial do entrechoque
das culturas no Brasil. Foi a partir do encontro de ritmos africanos, instrumentos ocidentais, harmonias que
circulavam nas Américas, instrumentos indígenas e estrangeiros, de saberes e sensibilidades que pudemos
criar linguagens que expressassem um presente múltiplo e os futuros possíveis.
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A ciência para o futuro exige esse tipo de encontro e de energia disruptiva. A história da ciência no Brasil
ultrapassa as fronteiras das disciplinas e das instituições —ela se origina na etnociência dos povos
indígenas, passa pelas observações astronômicas dos jesuítas, se difunde entre médicos e boticários,
sangradores e curandeiros do Rio de Janeiro machadiano.
A ciência, à imagem do Brasil, é uma força em movimento que invade os mais diferentes corpos sociais e
culturais, misturando raças, culturas e religiões. Sua institucionalização no século 20 foi certamente
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desigual, cerceada, com idas e vindas, mas ainda assim rebelde e brilhante.
De Oswaldo Cruz ao SUS, de Nise da Silveira ao ingresso de Davi Kopenawa na Academia Brasileira de
Ciências, de César Lattes ao sequenciamento do genoma do coronavírus, a ciência se desenvolveu no
território nacional, prosperou em centros de excelência e avançou a despeito de ataques e de sua
desigualdade regional.
Ao tomar posse como ministro da Cultura, eu disse que "o Estado nunca esteve à altura do fazer de nosso
povo, nos mais variados ramos da grande árvore da criação simbólica brasileira" —e isso também vale para
a ciência.
O Estado, porém, mesmo se distante dessa mina preciosa de criatividade, sempre atuou como o indutor
fundamental desse processo, por meio de políticas de ensino superior e de ciência e tecnologia, mas
também em instituições como o SUS e o ICMBio.
Imaginar o futuro para o Brasil, e a partir do Brasil, é promover a urdidura entre as ciências mais avançadas
e os saberes populares, entre a sensibilidade dos povos das florestas e a dos quilombos, entre os métodos
dos cientistas sociais e a sabedoria das periferias, entre a ciência biomédica e o conhecimento que brota
dos encontros no asfalto, na terra e na mata.
Eclipse em Sobral que comprovou teoria da relatividade geral completou cem anos em 2019
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Somos um povo fundamentalmente sincrético, que sabe inventar o novo com base em tradições e signos a
princípio contraditórios ou incongruentes, mas que em seu entrechoque permitem que surjam contribuições
ao progresso mundial.
Nossas tradições indígenas, ribeirinhas, quilombolas e dos demais povos da floresta demonstram na prática
a potência dos saberes populares em premeditar e complementar, no tecido de suas vidas, as descobertas
das ciências que nos últimos anos mostraram a calamidade da emergência climática. No ativismo de
indígenas e jovens periféricos hoje, a grande inteligência do povo brasileiro se encontra com a ciência mais
avançada e com a urgente política climática global.
A cultura brasileira, cuja diversidade tem reconhecimento internacional, é o grande patrimônio do país, bem
como nossos ecossistemas, que guardam em si a maior biodiversidade do mundo. E, no caso da
Amazônia, é fundamental para qualquer possibilidade de imaginação de um futuro ao planeta.
Ao longo da pandemia, a adesão dos brasileiros à vacina foi um ato de resistência contra o negacionismo,
uma prova de que os valores da ciência estão bem assimilados pela sociedade e sobrevivem aos ataques.
Se, por um lado, com a pandemia a ciência se viu no centro do debate nacional, por outro, ela ultrapassa
em muito a conjuntura: a ciência alimenta nossa sociedade das mais diferentes formas, é a força motriz de
nosso futuro como humanidade.
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A política científica tem que ser reconstruída e expandida. Ela deve ser maior que um ou dois ministérios,
deve se organizar como um sistema cujos polos estejam mais interligados e com financiamento à altura do
desafio de fazer avançar a ciência nacional.
É fundamental que pesquisadores disponham de recursos para tocar seus projetos, elaborar novas
perguntas, engajar jovens cientistas em processo de formação, contratar pesquisadores que sejam
valorizados com bolsas que lhes permitam total dedicação a seus projetos.
Uma política científica, assim como uma política cultural que reconheça o território e suas gentes, tem de
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Quando ministro, tive a honra e o desafio de participar do processo de construção de uma rede de pontos
de cultura que foram espalhados pelo país. Imagino que algo parecido poderia ser também aplicado à
ciência e à tecnologia, com a disseminação, pelo território físico e pelos espaços virtuais, de pontos de
dinamização do conhecimento local, de encontros improváveis, e de liberação das energias sociais hoje em
grande medida represadas.
O momento de hiperbólica oclusão política que vivemos é um capítulo da longa história de tensão entre as
forças retrógradas que negam nosso potencial como nação e as forças criativas que teimam em continuar
existindo.
Precisamos superar essa tensão e pôr a cultura e a ciência no coração de um projeto de país. E isso não é
apenas uma missão de políticas públicas: é um dos vetores urgentes de reinvenção do Brasil frente aos
desafios climáticos, econômicos, sociais e humanos.
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A responsabilidade pública pelo fomento da ciência é parte do projeto civilizatório não só para garantir um
futuro ao Brasil, mas à humanidade, já que sem o Brasil é quase impossível que haja o humano. Promover
e disseminar a ciência é um projeto cultural que aposta no melhor do humano.
No texto-manifesto do disco "Realce" (1979), eu disse que a ciência a serviço do país e de sua gente é
"uma maneira de dizer a luz geral. Denominar o brilho anônimo, como um salário-mínimo de cintilância a
que todos tivessem direito".
Esse brilho anônimo é mais intenso que os raios de Marie Curie e a luz funesta de todas as bombas
atômicas: ele é o brilho da ciência e da cultura que nos ajuda a sair da noite escura.
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Este artigo é parte de projeto que convida intelectuais, cientistas e formuladores de políticas públicas a
pensar o papel da ciência na reconstrução do Brasil. Essa iniciativa é coordenada pelo Instituto
Serrapilheira e pela Maranta Inteligência Política
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