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Vinte anos da queda do muro de Berlim | Um debate interdisciplinar | Nilzo Ivo Ladwig e Rogério Santos da Costa (organizadores)

OS ORGANIZADORES A queda do muro de Berlim sinalizou o alvorecer de uma era mar- um debate Vinte anos da queda
MUNDO NOVO
Nilzo Ivo Ladwig possui Bacha-
cada pela transição de paradigmas e evidenciou a configuração de um ce-
nário, cujas dimensões não cabem no contexto de explicações monolíticas. interdisciplinar do muro de Berlim
relado e Licenciatura em Geografia, A falência dos modelos socialistas provocou uma infinidade de A obra Vinte anos da queda do
crises teóricas, ao mesmo tempo em que desempenhou um papel decisi- muro de Berlim: um debate interdis-
Mestrado e Doutorado em Engenha-
vo para a disseminação e robustecimento do fenômeno da Globalização
ria Civil. Atualmente é professor da ciplinar busca retratar a necessidade
hegemônica do capitalismo, processo que tem esculpido a nova face das
Universidade do Sul de Santa Catarina Relações Internacionais e que espraia seus efeitos nas searas políticas, eco- da interdisciplinaridade para o en-
e professor adjunto da Universidade nômicas e sociais. tendimento do complexo mundo que
do Extremo Sul Catarinense. Tem ex- O mapa-múndi ganhou novos contornos e o planeta tornou-se se configurou desde o acontecimento
periência na área de Engenharia Civil, completamente interligado. Essa aura de interdependência, entre os atores histórico. A queda do muro não signi-
nacionais e internacionais, impôs a necessidade de revisitar e repensar con- ficou apenas uma mudança na políti-
com ênfase em Planejamento Am-
ceitos clássicos das Ciências Humanas e Sociais. O estudo interdisciplinar
biental e Gestão Territorial, atuando ca internacional, mas, sobretudo, uma
de ciências como Direito, Economia, Turismo, Administração já espelha as
principalmente nos seguintes temas: incongruências e coerências derivadas desse processo inconcluso, em ace- mudança de postura de Estados, orga-
desenvolvimento sustentável, cadas- lerada marcha, cujas implicações sinalizam a constituição de uma categoria nizações e pessoas no intuito de redefi-
tro técnico multifinalitário, turismo com significados múltiplos. nirem suas prioridades, linhas de ação
e meio ambiente e planejamento sus- Nesse ambiente de mutações e aproximações, a sociedade interna- e ideologias, imensamente sacudidas.
cional figura como o epicentro de profundos câmbios. Uma intrincada teia As perguntas que não cessaram, em
tentável em turismo.
formada por novos e antigos atores, munidos de diferenciados instrumen-
vinte anos, nos remetem a pensar sobre
tos de cooperação e inter-relação, tem conduzido à formação de organi-
zações internacionais, de novos movimentos sociais e de inúmeros acor- o fim da história, o fim das ideologias,
Rogério Santos da Costa, Douto- dos de integração regional como é o caso do Mercosul e a União Europeia. a era das Organizações Internacionais,
rando em Ciência Política – Política In- Por conseguinte, as mais relevantes transformações atacam diretamente o do encontro de culturas, do choque de
ternacional, Mestre em Administração, coração do Estado-nação e redimensionam as condições do seu papel de civilizações, do começo do fim do ca-
centralidade, nas Relações Internacionais. Os Estados têm sentido os refle- pitalismo ou de sua eterna hegemonia.
Graduado em Economia, Coordenador
xos da concorrência estabelecida com as múltiplas entidades, que passam a
do Gipart – Grupo Interdisciplinar de Os Cursos de Administração, Re-
atuar nas recém-formadas redes de interconexões transnacionais.
Pesquisa em Administração, Relações Este é um cenário complexo, multidimensional, cuja dinâmica con- lações Internacionais e Turismo da
Internacionais e Turismo, Professor fere ritmo transnacional a todos os níveis de relações. Tudo o que antes se Unisul, Campus Norte da Ilha, em
da Unisul no Curso de Relações Inter- apresentava como nacional desempenha, agora, função global: bens, tecno- Florianópolis, buscaram, a partir da
nacionais, Pesquisador nas áreas de logia, trabalho, organizações, transportes, movimentos de pessoas. Do mes- formação e atividades do Gipart, pro-
mo modo, também se projetam em escala planetária a pobreza, a violência, porcionar um debate interdisciplinar
Integração Regional, com ênfase na
os mecanismos de exclusão e dominação. Também se evidenciam a exacer-
América do Sul e Organizações Interna- que abarcasse partes importantes des-
bação das alteridades e a construção de novos muros reais e imaginários.
cionais, particularmente em Segurança Enfim, a data de 09 de novembro de 1989 descortinou uma nova se cenário após 20 anos. O Seminário
Internacional. É membro da Associação etapa na história, revelando o surgimento de perplexidades que ainda ocu- Interdisciplinar de Pesquisa nestas
Brasileira de Relações Internacionais - parão o centro das atenções mundiais durante muitos dos anos vindouros. Nilzo Ivo Ladwig áreas e afins abre um novo espaço de
ABRI e membro da Associação Brasilei-
Profª Drª. Karine de Souza Silva Rogério Santos da Costa divulgação de estudos e pesquisas, na
tentativa de entendimento e troca de
ra de Ciência Política - ABCP.
Titular da Cátedra Jean Monnet da União Europeia
(organizadores) experiências do que está ocorrendo
neste mundo em rápidas e constantes
transformações.
VINTE ANOS DA QUEDA DO
MURO DE BERLIM
VINTE ANOS DA QUEDA DO
MURO DE BERLIM
um debate
interdisciplinar

Nilzo Ivo Ladwig


Rogério Santos da Costa
(organizadores)

2009
Reitor da Unisul
Ailton Nazareno Soares

Vice-Reitor
Sebastião Salésio Herdt

Pró-Reitor Acadêmico
Mauri Luiz Heerdt

Pró-Reitor de Administração
Fabian Martins de Castro

Chefe de Gabinete
Willian Corrêa Máximo

Diretor dos Campi


de Tubarão e Araranguá
Milene Pacheco Kindermann

Diretor dos Campi da


Grande Florianópolis e Norte da Ilha
Hércules Nunes de Araújo

Diretora do Campus UnisulVirtual


Jucimara Roesler
APRE SENTAÇÃO

O livro “Vinte anos da queda do muro de Berlim: um de-


bate interdisciplinar” traz à tona uma certeza, a de que o
mundo nunca mais será o mesmo após este acontecimen-
to histórico. Nesse sentido, o leitor não encontrará aqui um foco
único nas causas da queda do muro, nem em suas repercussões
para a Política Internacional ou para a humanidade. O objetivo
do livro não é expor a Guerra Fria como o debate centralizador,
mas as consequências para o mundo, com o fato e as transfor-
mações que se sucederam. É muito controversa a problemática
política da queda, mas é incontestável que o acontecimento cau-
sou mudanças profundas nas diferentes partes do mundo e em
diferentes áreas.
A administração, as relações internacionais e o turismo fa-
zem parte desta história, e nos últimos vinte anos, a aceleração da
globalização impacta de diferentes formas nessas áreas.
O fim da Guerra Fria teve um papel singular na adminis-
tração, em função das perspectivas de mais informação e fluxo
de informações a serem tratados, do aumento da flexibilidade
organizacional e dos novos desafios que as instituições têm, em
consequência das ações dos impactos ambientais.
Ao turismo, os últimos vinte anos trouxeram uma sequ-
ência de mudanças muito significativas, passando pela abertura
dos países do leste, do aparecimento dos países asiáticos como
destino e origem, proporcionando o encontro de culturas e a misci-
genação de informações, mas também encontrando retrações impor-
tantes após o 11 de setembro, que, só a pouco tempo, está se tornando
algo do passado, apesar de trazer muitas preocupações.
As Relações Internacionais tiveram, igualmente, suas mudan-
ças, principalmente pelo fato da queda do muro significar o fim da
ordem bipolar e o aparecimento de uma nova ordem, ainda por ter
uma definição substancialmente aceita, pois é possível classificá-la
desde multipolar, até unipolar ou, ainda, de polaridades indefinidas.
Particularmente, para a região sul do Brasil e para o Estado de
Santa Catarina, a presente obra significa um passo importante na con-
solidação de áreas de pesquisa e de pesquisadores em uma instituição,
a Unisul, que a cada dia revela-se ávida por continuar a trilhar os ca-
minhos do conhecimento, do debate, da contribuição à sociedade, em
entender e encaminhar seus principais problemas e desafios. Nesse ca-
minho, a Unisul, o Gipart, dentre muitas instituições, grupos de pesquisa
e pesquisadores, continuam a contar com o forte incentivo da Fundação
de Apoio à Pesquisa Científica e Tecnológica de Santa Catarina – Fapesc.
Muitas pessoas e instituições foram responsáveis pela criação do
Gipart, pelo I SPI e por este livro, a elas somos extremamente gratos.
Se não nos faltar a memória e já pedindo desculpas por algum esque-
cimento, queremos agradecer, especialmente, aos colaboradores deste
livro que, com suas palestras e apresentações, trouxeram muita satisfa-
ção aos objetivos do Gipart e do 1 SPI. Agradecemos também à Fapesc,
pelo incentivo financeiro, aos Coordenadores dos Cursos envolvidos,
Professora Silvia Back, José Tavares, Eliza Bianchini Dallanhol Locks,
Thiago Sardá, Carlos Montenegro e Zacaria Nassar, aos professores Ál-
varo Souto, Márcio Voigt, Kristiane Sanches e Victor Ferreira, do comitê
técnico-científico, ao Diretor da Editora da Unisul, Raimundo Caruso
e sua equipe, aos alunos do Centro Acadêmico de Relações Internacio-
nais, ao pessoal do setor de eventos da Unisul, Professor Geraldo Cam-
pos, Isabel Scafuto e equipe, à professora Claudia Gohr e Ana Dutra,
pela importante participação na fundação do Gipart, ao pessoal do SIC
da Unisul, em especial Sabrina Faraco e Alessandra Turnes, ao Costão
do Santinho, ao Hotel Cecontur e ao Restaurante Freguesia, pelo apoio.

Nilzo Ivo Ladwig

6
PREF ÁCIO

T
erminada a Segunda Guerra Mundial, duas superpotências, os
Estados Unidos da América e a União das Repúblicas Socia-
listas Soviéticas dividiam o poder militar, político e econômi-
co. Os Estados Unidos lideravam o bloco de países capitalistas e a
União Soviética o bloco socialista.
A corrida armamentista criava tensão permanente entre esses
rivais caracterizando a época como sendo o período da Guerra Fria.
Durante a disputa política o mundo viveu o perigo de uma nova guer-
ra mundial. Em nossos dias o Turismo de Guerra não tem por foco
viagens a lugares em guerra deflagrada. Do mesmo modo, a viagem
pelas paginas de 20 anos da queda do muro de Berlim, não transporta
o leitor somente a fatos e lugares aonde ocorreram tais conflitos, e que
hoje preservam fragmentos desses episódios para manter viva parte
de sua história, em museus, mausoléus, cemitérios, monumentos, sí-
tios arqueológicos, entre outros elementos constantes na paisagem.
Mais que visita a lugares, o incentivo a leitura é um convite para
uma viagem a historia das mudanças significativas do mundo, trans-
formações tecnológicas, culturais que desfilam diariamente na mídia
ainda trazendo fragmentos da guerra fria. Sem notar, vivemos o impac-
to e as conseqüências das causas nascidas da força social que derrubou
o muro. O binômio queda do muro de Berlim – fim da guerra fria faz
emergir muito do que se vive hoje nas novas relações de trabalho, rela-
ções internacionais, empresariais, de negócios e, sobretudo culturais. É
a descoberta que fará o leitor de 20 anos da queda do muro de Berlim.

Vinícius Lummertz
Secretário Especial de Articulação Internacional
Governo do Estado de Santa Catarina

7
SIC - Sistema Integrado de Comunicação
Laudelino J. Sardá
Editora Unisul
Raimundo C. Caruso
Secretárias Executivas
Alessandra Turnes
Deise Wernke
Endereço
Avenida Pedra Branca, 25
Fazenda Universitária
CEP 88132-000
Palhoça- SC
Fone (48) 3279-1088

e-mail
editora@unisul.br
Editoração
Officio

Revisão
Monier dos Passos Júlio
e Joselane Theodoro

V79 Vinte anos da queda do muro de Berlim : um debate


interdisciplinar. / organização Nilzo Ivo Ladwig, Rogério
Santos da Costa. – Palhoça : Ed. Unisul, 2009.
183 p. : il. ; 23 cm

ISBN 978-85-86870-91-0

1. Relações internacionais. 2. Guerra fria. 3. Integração


econômica internacional. 4. Turismo. I. Ladwig, Nilzo Ivo,
1965-. II. Costa, Rogério Santos da, 1965-. III. Título.

CDD - 327

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Universitária da Unisul


INTRODUÇÃO

E
ste livro é o resultado do I Seminário de Pesquisa Interdis-
ciplinar – I SPI, realizado entre 22 e 24 de julho de 2009. O
I SPI, por sua vez, é resultado de um trabalho iniciado em
2007, quando da organização e criação do Grupo Interdisciplinar
de Pesquisa em Administração, Relações Internacionais e Turismo
– GIPART. Foram inúmeras reuniões de harmonização das diferen-
tes linhas de pesquisa dos professores envolvidos, até se chegar a
um denominador comum, que atendesse a todos, dando a confor-
mação interdisciplinar para o grupo. Dessa forma, o I SPI é uma
primeira aproximação do que quer o Gipart em termos de inter-
disciplinaridade, e desta para ações de pesquisa e extensão, com
retornos qualitativos ao ensino de graduação e pós-graduação.
O objetivo do I SPI foi disseminar pesquisas e debater, de for-
ma interdisciplinar, temas gerais dentro das três áreas do Gipart,
Administração, Relações Internacionais e Turismo, mas tendo como
foco os vinte anos após a queda do muro de Berlim. Desse modo, os
trabalhos apresentados e as palestras que estão aqui, em forma de ar-
tigo, são construções que têm como prioridade, elencar as mudanças
e o estado da arte de seus respectivos focos, a partir da visão de que
o mundo sofreu grandes transformações após a queda do muro de
Berlim.
O livro conta com 9 (nove) artigos. Os dois primeiros artigos se
referem às palestras feitas durante o evento. O artigo do Embaixador
Paulo Roberto de Almeida inicia traçando um panorama geral sobre
a Guerra Fria, para depois se concentrar nas principais características
das Relações Internacionais e a inserção do Brasil nesse ambiente.
Além do já reconhecido rigor histórico conceitual do Professor Paulo
Roberto de Almeida, sua experiência como Diplomata de carreira, dá
um contorno especial ao seu artigo e uma importância muito grande
para toda a obra. O artigo do Professor Mário Beni, da mesma forma.
Convidado a palestrar, em função de sua trajetória na área do Turis-
mo e Administração, o Professor Beni nos brindou com uma impor-
tante análise da perspectiva interdisciplinar e de suas percepções e
impactos nos últimos vinte anos, com foco todo especial nas áreas de
Administração, Turismo e Relações Internacionais.
Os outros 7 (sete) foram os artigos apresentados no I SPI e se-
lecionados para compor esta publicação. Paulo Roberto Ferreira faz
uma análise das teorias de RI no contexto do pós-Guerra Fria, eviden-
ciando os limites impostos ao realismo e liberalismo pela nova con-
figuração do sistema internacional, ao mesmo tempo em que aponta
as características do construtivismo, como arcabouço conceitual que
se distingue das linhas teóricas tradicionais nas Relações Internacio-
nais. No trabalho seguinte, três autores, Gizelli Alini da Cruz, Luiza
Roberta de S. Pimentel e Rafael Gustavo de Lima dividem as respon-
sabilidades em apontar como a ideia de economia solidária desafia a
economia capitalista após a queda do muro de Berlim, apontando as
características em relação ao mundo socialista do debate da Guerra
Fria, bem como elencando a trajetória e os desafios dessa nova forma
de fazer economia para o Brasil.
No artigo seguinte, Juliana Wüst Panceri traz um retrato da
União Européia, no contexto das mudanças nas Relações Internacio-
nais após o fim da Guerra Fria, evidenciando os dilemas enfrentados
pelos integracionistas europeus e as ações que foram sendo tomadas
para que o processo de integração tivesse continuidade, resultando
numa dinâmica lenta, mas consistente de aprofundamento. Em se-
guida Gustavo Gerlach da Silva Ziemath e Antônio M. Elíbio Júnior
compartilham com o leitor as experiências de vida e estudo no leste
europeu, particularmente naquela que era o grande símbolo da Guer-
ra Fria e da divisão leste – oeste, a Alemanha, que após ver seus povos
de ambos os lados derrubarem o muro de Berlim, assiste a uma rea-
lidade desafiadora e longa de unificação.
Leandro Antônio Dariva escreve sobre as exportações de fran-
go catarinense, com foco nas relações que o Estado de Santa Catarina
estabelece com os Emirados Árabes Unidos, evidenciando uma das
facetas do pós-Guerra Fria, que é a emergência de importantes ato-
res governamentais e não governamentais no fenômeno conhecido
como de paradiplomacia. No artigo seguinte o leitor poderá ver uma
contribuição com enfoque interdisciplinar de Rafael Dall´Agnol, ava-
liando uma metodologia de desempenho jurídico-ambiental empre-
sarial, brindando o leitor com oportunidade ímpar de pensar estudos
e ações administrativas e jurídicas, que tragam resultados positivos
para as empresas e para o desenvolvimento sustentável mundial. Por
fim, Eliza Bianchini Dallanhol Locks e Hernanda Tonini trazem ao
leitor os resultados de suas pesquisas sobre o imaginário do turista
italiano, quando o Brasil é seu destino imaginado, dando contribui-
ção significativa para o entendimento das mudanças que a atividade
do Turismo sofreu com a queda do muro de Berlim, o fim da Guerra
Fria e a consequente aceleração do processo de globalização
Ao publicarmos esta obra, temos certeza de que estamos tri-
lhando um caminho de construção de ensino, pesquisa e extensão
com qualidade, contribuindo para alicerçar nossa sociedade com o
que de melhor a interdisciplinaridade pode trazer. Temos a convicção
de que o II SPI, no primeiro semestre de 2010 e seus resultados serão
muito bem-vindos, contamos com todos.
Até o próximo e boa leitura!

Rogério Santos da Costa


SUMÁRIO

O Brasil e as relações internacionais 15


no pós-guerra fria
Paulo Roberto de Almeida

A moderna Educação Superior e as 39


exigências inter e transdisciplinares:
enfoque para as formações em administração,
relações internacionais e turismo
Prof. Dr. Mário Carlos Beni

As teorias das relações internacionais 54


no Pós-Guerra Fria: as teorias tradicionais
e o Construtivismo frente aos novos temas
Paulo Roberto Ferreira

Vinte anos de unificação no leste alemão 71


Gustavo Gerlach da Silva Ziemath e Antônio M. Elíbio Júnior

Os reflexos do fim da guerra fria na estrutura 83


político-econômica da União Europeia
Juliana Wüst Panceri

A economia solidária no contexto 103


capitalista pós-queda do muro de Berlim
Gizelli Alini da Cruz, Luiza Roberta de S. Pimentel e
Rafael Gustavo de Lima

Intercâmbio comercial entre Santa Catarina e 127


os Emirados Árabes Unidos: análise do mercado
exportador de frango catarinense
Leandro Antônio Dariva

Uma alternativa para a avaliação 146


jurídico-ambiental de uma organização
Rafael Dall´Agnol

Destino Brasil: o imaginário do turista italiano 166


Eliza Bianchini Dallanhol Locks e Hernanda Tonini
14
O BRA SIL E A S
R EL AÇÕE S INTERNACION AIS
NO PÓS- GUE RRA F RIA

Paulo Roberto de Almeida1

RESUMO: Análise política e histórico-conceitual dos principais de-


senvolvimentos das relações internacionais desde o final da Guerra
Fria, com ênfase nas posições do Brasil e o posicionamento de sua
diplomacia no contexto da agenda política e econômica mundial
do período recente. Depois de uma apresentação sumária sobre a
era da Guerra Fria e as transformações ocorridas no sistema in-
ternacional desde o seu término, apresentam-se os efeitos da nova
conjuntura, ainda de transição, sobre o Brasil, bem mais impactado
pelas consequências econômicas – retomada do processo de glo-
balização – do que por eventuais mudanças no plano estratégico-
militar. São discutidas as características principais da diplomacia
brasileira na atualidade, destacando-se as mudanças em relação ao
governo anterior.

PALAVRAS-CHAVE: Relações internacionais. Pós-Guerra Fria.


Diplomacia brasileira.

1 Doutor em Ciências Sociais, Mestre em Planejamento Econômico, Diplomata


de carreira; Professor de Economia Política Internacional no Mestrado em
Direito do Centro Universitário de Brasília (Uniceub). (www.pralmeida.org;
pralmeida@mac.com). Nenhuma das opiniões e nenhum dos argumentos
contidos no presente trabalho podem ser interpretados como representando
posições ou políticas das entidades às quais se encontra vinculado o autor.

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1. BREVÍSSIMA SÍNTESE SOBRE A GUERRA FRIA
A Guerra Fria constituiu o elemento definidor por excelência
das relações internacionais durante grande parte da segunda metade
do século 20. Ela se estendeu, grosso modo, desde 1946, quando fra-
cassou a conferência de Paris que deveria aplicar as decisões de Ialta
e Potsdam relativas à reorganização democrática da Europa, até o ano
de 1991, quando finalmente se desfez, por auto-implosão, o regime
socialista, no seguimento de alguns anos de relativa abertura política
(a chamada glasnost) e de tentativas de reforma do sistema econô-
mico esclerosado (a perestroika), iniciadas por Mikhail Gorbachov
desde que ele assumiu a liderança do PCUS em 1985.2 O ato final
foi dado pela dissolução oficial da União Soviética, pela qual o novo
regime russo, liderado por Boris Ieltsin, declarou a rejeição de setenta
anos de comunismo.3
O processo de transição da Guerra Fria para um regime (qua-
se) normal de interdependência econômica, entre a Rússia e os países
ocidentais, demoraria ainda alguns anos. Primeiro, passou pela ad-
missão política da Rússia no G7 e nas instituições de Bretton Woods,
na primeira metade dos anos 1990; depois, pelo seu reconhecimento,
pelo G7, como uma ‘economia de mercado’, o que foi obtido na reu-
nião de cúpula de Kananaskis, em 2002.4 Esses são, cronologicamen-

2 Sobre as origens da Guerra Fria, ver Daniel Yergin, The Shattered Peace: The
Origins of the Cold War and the National Security State (Boston: Houghton
Mifflin, 1978; edição revista: Nova York, Penguin Books, 1990). Para a sua fase
final, ver Paulo Roberto de Almeida, “Neo-détente & Perestroika: Agendas para
o Futuro”, Política e Estratégia (vol. 6, n. 1, janeiro-março 1988, p. 67-74), e “A
Parábola do Comunismo no Século XX: A propósito do livro de François Furet:
Le Passé d’une Illusion”, Revista Brasileira de Política Internacional (vol. 38, n.
1, janeiro-junho 1995, p. 125-145). Para uma análise sobre o conjunto de trans-
formações geopolíticas pós-Guerra Fria, ver o amplo estudo de Thierry Garcin,
Les Grandes Questions Internationales depuis la Chute du Mur de Berlin (2a.
ed.; Paris: Economica, 2009).
3 Cf. Paulo Roberto de Almeida, “As duas últimas décadas do século XX: fim do
socialismo e retomada da globalização”. In: José Flávio Sombra Saraiva, Relações
internacionais: dois séculos de história, vol. II: Entre a ordem bipolar e o policen-
trismo (1947 a nossos dias) (Brasília: Instituto Brasileiro de Relações Inter-
nacionais, IBRI; Fundação Alexandre de Gusmão, FUNAG; Coleção Relações
Internacionais, 2001, vol. II, pp. 91-174).
4 Remeto a meus artigos “De Bretton Woods a Bretton Woods: a longa marcha
da URSS de volta ao FMI”, Revista Brasileira de Política Internacional (ano 34,

16
te, os marcos históricos extremos da Guerra Fria, muito embora ela
tenha conhecido etapas distintas ao longo de seu desenvolvimento
político-estratégico, cada qual com seu grau de acirramento na opo-
sição fundamental entre, de um lado, os países capitalistas (e formal-
mente democráticos) do chamado Ocidente e, de outro, os países so-
cialistas, concentrados em uma imensa faixa territorial da Eurásia.5
Algumas dessas etapas foram caracterizadas pela exacerbação
dos conflitos entre os principais contendores: os Estados Unidos, na
liderança do Ocidente, e a União Soviética, comandando o que seria
o bloco dos países socialistas, alegadamente destinados a superar o
capitalismo, segundo velhas concepções doutrinais marxistas, que de
fato nunca foram testadas na prática. Um desses episódios de ‘subida
aos extremos’ foi, reconhecidamente, o enfrentamento diplomático e
quase militar em torno dos mísseis soviéticos instalados em Cuba,
em 1962, quando as duas superpotências chegaram a acionar seus
dispositivos nucleares em caso de confrontação global. Outras etapas
conheceram o que se convencionou chamar de détente, ou coexistên-
cia pacífica, caracterizada por negociações bilaterais ou multilaterais
de redução de armamentos estratégicos e de contenção de armas nu-
cleares, a exemplo do Tratado de Não Proliferação Nuclear (1968) ou
dos acordos de limitação de mísseis balísticos dos anos 1970.6

ns. 135-136, 1991/2, p. 99-109); “Camaradas, agora é oficial: acabou o socialis-


mo”, Espaço Acadêmico (ano 2, n. 14, julho de 2002; link: http://www.espacoa-
cademico.com.br/014/14pra.htm).
5 O processo de transição política da antiga União Soviética, sob regime comu-
nista, para uma Rússia formalmente democrática – mas ainda conservando
traços da velha autocracia típica dos períodos czarista e comunista, o que
leva alguns analistas a classificar a Rússia como uma ‘democracia de facha-
da’, como o fez Max Weber, em 1917, a respeito do governo transitório saído
da revolução de fevereiro – não será examinado neste ensaio. Embora essas
características também tenham importância para as posturas internacionais
da nova Rússia, um exame das peculiaridades – e sobretudo limitações – da
democracia no país exigiria uma extensão bem maior do que a contemplada
no presente ensaio, razão pela qual apenas os aspectos relativos às relações
internacionais pós-Guerra Fria serão aqui considerados.
6 Cf. Paulo Roberto de Almeida, “Retorno ao Futuro: A Ordem Internacional
no Horizonte 2000”, Revista Brasileira de Política Internacional (ano 31, n.
123-124, 1988/2, p. 63-75); “Retorno ao Futuro, Parte II”, Revista Brasileira
de Política Internacional (ano 33, n. 131-132, 1990/2, pp. 57-60); “Retorno ao
Futuro, Parte III: Agonia e Queda do Socialismo Real”, Revista Brasileira de
Política Internacional (ano 35, n. 137-138, 1992/1, p. 51-71).

17
Caberia também registrar o rompimento da unidade relativa
do campo socialista, a partir dos conflitos político-ideológicos entre a
União Soviética e a República Popular da China, entre 1958 e 1962, o
que redundou num cenário mais complexo e difuso de relações entre
os grandes centros de poder do que o maniqueísmo anterior poderia
admitir. Na verdade, o campo socialista nunca foi perfeitamente uni-
ficado. Mas os países da Europa central que permaneceram sob estri-
ta dominação soviética correspondem aos mesmos que foram ocu-
pados pelo Exército Vermelho, no final da Segunda Guerra Mundial.
As relações internacionais, em todo caso, sempre foram mais
complexas e multifacetadas do que se poderia supor a partir de uma
visão exclusivamente dicotômica daquilo que já foi chamado de ‘Ter-
ceira Guerra Mundial’, ou seja, o impasse inconciliável, ainda que não
levado ao abismo nuclear, entre os Estados Unidos e a União Sovié-
tica. Caberia igualmente recordar que, na sua etapa de maior expan-
são territorial e demográfica, os países socialistas, presumidamente
empenhados em enterrar o capitalismo e as democracias ‘burguesas’,
cobriam boa parte da superfície da Terra e de sua população, com-
preendendo não apenas as ‘democracias populares’ do Leste Europeu
e da China, mas outros países formalmente identificados como em
desenvolvimento, na periferia capitalista.7
À exceção da crise dos mísseis soviéticos em Cuba, o Brasil e os
países da América Latina, em geral, não tiveram maior envolvimento
nos grandes lances estratégicos da Guerra Fria; estes se concentraram
no coração da Europa, em especial na Alemanha dividida, e em partes
da Ásia, aliás, a única região a conhecer a ‘guerra quente’, com os con-
flitos da Coréia (1950-53, mas até agora ainda não pacificada) e do
Vietnã (1965-1975, no período de envolvimento americano). A Amé-
rica Latina quase inteira – com exceção de cubana – esteve sujeita
ao que se convencionou chamar de hegemonia americana, embora o
seu caráter fosse diversificado, em função dos interesses econômicos,
políticos ou estratégicos em jogo em cada sub-região.8

7 Ver Paulo Roberto de Almeida, Os primeiros anos do século XXI: o Brasil e as


relações internacionais contemporâneas (São Paulo: Editora Paz e Terra, 2002);
O Estudo das Relações internacionais do Brasil: um diálogo entre a diplomacia e
a academia (Brasília: LGE Editora, 2006).
8 Ver José Flávio Sombra Saraiva (org.), Relações internacionais: dois séculos de
história, vol. II: Entre a ordem bipolar e o policentrismo (1947 a nossos dias)

18
O Caribe e a América Central, de toda forma, já tinham sido
colocados sob o domínio americano desde o início do século 20, sen-
do que os demais países tinham mais importância como fornecedo-
res de matérias primas, como receptores dos investimentos diretos de
empresas americanas e, adicionalmente, como mercados consumi-
dores. A dimensão estratégica estava mais restrita à primeira região,
o que não impediu a conclusão de um acordo de segurança coleti-
va – o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (1947), base
conceitual do tratado de Washington (1949), que criou a OTAN – e
a participação americana em diferentes episódios de crises políticas
que poderiam significar o descolamento de alguns países do círculo
de influência dos EUA, como, entre outros, na Guatemala (1954), no
próprio Brasil (1964) e no Chile (1973).

2. O PÓS-GUERRA FRIA: TRAÇOS


GERAIS DO SISTEMA INTERNACIONAL
O que ocorreu na sequência da queda do muro de Berlim, em
novembro de 1989, da implosão da maior parte dos regimes socialis-
tas, entre essa data e 1991, e do próprio desaparecimento da União
Soviética e unificação das duas Alemanhas, no mesmo intervalo, não
foi tanto um ‘fim da História’, como pretendido por alguns, mas mais
precisamente um “fim da Geografia’, esta representada pelo declínio
irremediável do socialismo, enquanto alternativa ao modo capitalista
de produção. A tese do ‘fim da História’, por sinal, não foi pensada
exatamente em sua forma literal por Francis Fukuyama, que foi quem
primeiro lançou a hipótese sob a forma de uma discussão conceitual,
aliás, dotada do devido ponto de interrogação; quem a divulgou, de
forma totalmente equivocada, foram seus críticos apressados, que
obviamente recusam o argumento, mas incidiram na armadilha fi-
losófica, que era propriamente marxista. Fukuyama não ‘decretou’ o
fim da História; ele apenas questionou se o mundo não teria chegado
ao esgotamento das alternativas às democracias de mercado, no que
ele aparentemente tem razão, mas apenas no muito longo prazo, cabe
sublinhar. Este é o destino inescapável das ditaduras ainda existentes
– por mais que seus corruptos dirigentes ainda resistam aos avanços

(Brasília: Instituto Brasileiro de Relações Internacionais, IBRI; Fundação


Alexandre de Gusmão, FUNAG; Coleção Relações Internacionais, 2001).

19
democráticos da sociedade civil – porque este é, como diria Marx, o
‘sentido da História’.9
O ‘fim da Geografia’, em todo caso, teve consequências mais
impactantes do que seu pretenso equivalente histórico. Com efeito,
enquanto, o socialismo se manteve presente como força política e
militar, representado por duas grandes potências nucleares e certo
número de outros países, mais ou menos arrastados para esse sistema
de forma involuntária, o mundo esteve dividido e compartimentado
entre dois sistemas de produção e de distribuição em grande medida
incompatíveis entre si. Isso impedia a unificação planetária do mun-
do sob o mesmo regime produtivo, o do capitalismo ‘natural’, digamos
assim, algo antevisto e desejado por Karl Marx e Friedrich Engels no
Manifesto de 1848. De fato, esse panfleto revolucionário constitui, an-
tes de tudo, um hino em louvor da globalização capitalista.10
Acontece que o socialismo era medíocre economicamente: ele
tinha certa presença no mercado de matérias-primas, mas era pou-
co competitivo na indústria manufatureira e totalmente irrelevante
nas áreas financeira e tecnológica. Sua componente mais importan-
te seria a mão-de-obra, mas esta estava completamente isolada da
divisão internacional do trabalho por enormes ‘muralhas da China’
e ‘cortinas de ferro’, por força do sistema de escravidão oficializada
que vigorava naquele regime. Quando esses regimes vieram a termo,
por implosão ou autoesclerose econômica, o aporte para a economia
mundial, em termos de PIB ou de fluxos de bens comercializáveis,
não foi muito relevante e praticamente nulo na parte financeira e tec-
nológica. Na vertente mão-de-obra, contudo, o efeito da incorporação

9 Cf. Paulo Roberto de Almeida, “A globalização e seus benefícios: um contra-


ponto ao pessimismo” in Wagner Menezes (org.), O Direito Internacional e
o Direito Brasileiro: homenagem a José Francisco Rezek (Ijuí: Editora Unijuí,
2004), p. 272-284.
10 Marx, talvez para desespero de seus muitos órfãos da atualidade e dos antiglo-
balizadores ingênuos que protestam contra esse fenômeno, foi essencialmente
um globalizador capitalista, considerando que o acabamento desse processo
apressaria a vinda milenarista do socialismo; para uma adaptação do Mani-
festo aos tempos modernos, ver Paulo Roberto de Almeida, Velhos e novos
manifestos: o socialismo na era da globalização (São Paulo: Editora Juarez de
Oliveira, 1999); para os desenvolvimentos econômicos do processo, Almeida,
“Dinâmicas da economia no século XX”. In: Silva, Francisco Carlos Teixeira
da (org.). O Século Sombrio: uma história geral do século XX (Rio de Janeiro:
Campus-Elsevier, 2004), p. 47-70.

20
desse enorme exército industrial de reserva ao mercado mundial foi
decisivo na retomada da globalização capitalista, interrompida seten-
ta anos antes.
O fim da Geografia também significou, a partir da implosão do
socialismo pela queda do muro do Berlim, a derrubada de uma outra
barreira, simbolicamente identificada com o começo da Guerra Fria:
a famosa ‘cortina de ferro’ que dividia a Europa de Stettin a Trieste,
de acordo com a famosa imagem criada por Winston Churchill, no
seu discurso de Fulton, no Missouri. Derrubada a nova muralha da
China que dividia o continente, a Europa realizou, nos vinte anos se-
guintes, seu movimento de unificação econômica e política, por meio
da União Europeia e da OTAN, com uma pequena ajuda da OSCE. O
processo ainda não está completo, mas as fronteiras foram, em gran-
de medida, contornadas, ou superadas, segundo o caso: a integração
de mercados e a gradual aproximação dos modelos políticos tornarão
os conflitos militares, senão uma impossibilidade teórica, pelo menos
uma ocorrência remota. A periferia russa, contudo, ainda tem alguns
obstáculos a vencer.
Em qualquer hipótese, portanto, o pós-Guerra Fria represen-
tou, acima de tudo, a terceira ou quarta onda da globalização plane-
tária, alterando de maneira decisiva o equilíbrio econômico no mun-
do, muito mais do que o equilíbrio geopolítico ou militar, que aliás
foi relativamente reconcentrado em favor dos EUA, tendo em vista
o encolhimento da Rússia e sua notável diminuição estratégica: ela
perdeu a sua capacidade de projetar poder que tinha tido até a inva-
são do Afeganistão, em 1979, e durante a fase de disputa estratégica
com o Ocidente, pelo apoio que prestava a regimes ditos progressistas
no Terceiro Mundo. Para todos os efeitos práticos, o sistema mundial
virou temporariamente unipolar, com a presença indisputada e in-
disputável dos EUA em todos os cenários estratégicos concebíveis,
mesmo para operações que seriam normalmente deixadas para os
pacificadores da Europa, como, por exemplo, o conflito nos Bálcãs ou
guerras civis e massacres na África.11
De fato, os EUA emergem no período como um poder solitário
por excelência: muito pela ausência de competidores à altura; pela

11 Cf. Paulo Roberto de Almeida, “A ordem internacional assimétrica e a reforma


da ONU: uma perspectiva histórica”, in Wagner Menezes (org.), Estudos de
Direito Internacional (Curitiba: Editora Juruá, 2005, vol. V), p. 236-252.

21
autocontenção europeia em gastos militares; pela diminuição notá-
vel da capacidade russa de aperfeiçoar seus equipamentos em face
de orçamentos restritos durante os anos 1990; como também pela
ausência chinesa em capacidade de projeção externa (porta-aviões
ou forças aero-transportadas, por exemplo); um pouco pela própria
disposição dos dirigentes americanos de continuar a modernização
tecnológica dos seus arsenais; mas, sobretudo, pelo choque provoca-
do pelos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 e o incremen-
to extraordinário dos orçamentos militares em seu seguimento, sem
deixar de mencionar a doutrina Bush e suas implicações guerreiras
desde então, os EUA se distanciaram enormemente de qualquer ou-
tro competidor estratégico.
Como escreveu um analista, “[o] final da Guerra Fria eviden-
ciou aos EUA a necessidade de repensar sua inserção internacional.
Ganhou destaque, o que Posen e Ross (2001) cunharam de Primazia,
ou seja, a preponderância norte-americana no sistema internacional
como ferramenta ideal para a manutenção da paz em todo o globo. O
país não deveria almejar a mera posição de primus inter pares. Para
sua própria segurança e para a segurança dos demais, os EUA deve-
riam assumir sua posição de primus solus.”12 Na verdade, a concepção

12 Cf. Aureo de Toledo Gomes, “O Impacto do 11 de Setembro na formulação da


Política Externa Norte-Americana”, Cena Internacional, (vol. 10, n. 2, 2008, p.
55-71), p. 62. Os autores citados são: Barry Posen e Andrew Ross, “Competing
Visions for U.S. Grand Strategy”, in Michael Brown et al. America’s Strategic
Choices (Londres: The MIT Press, 2001). A nota a esta passagem informa
que: “Sinteticamente, as demais estratégias eram o neo-isolacionismo, que
vaticinava um isolamento dos EUA; o Engajamento Seletivo, que salientava a

22
estratégica da primazia militar dos EUA sobre qualquer outro com-
petidor – amigo ou inimigo – data dos primeiros tempos da Guerra
Fria, ainda no final dos anos 1940.
Em outros termos, até que a China, isoladamente, ou uma co-
alizão formada por esta última e, eventualmente, a Rússia, com al-
guns aliados ocasionais, decidam, hipoteticamente, contestar o poder
solitário dos EUA, ou até que os próprios EUA não se decidam por
algum outro tipo de arranjo cooperativo com seus tradicionais alia-
dos da OTAN, é muito provável que o mundo tenha de conviver com
a primazia militar americana pelo futuro previsível. Tendo em vista
as concepções estratégicas ‘supremacistas’ dos EUA, independente-
mente do tipo de governança política alternadamente no poder – ou
seja, uma orientação republicana supostamente mais unilateralista,
ou uma administração democrata presumidamente mais aberta ao
multilateralismo –, e levando em conta os instintos históricos pre-
dominantemente westfalianos, que são a marca registrada dos EUA
desde sempre, seja por predisposição cultural, seja por disposições
constitucionais, é mais provável, de fato, que os EUA se mantenham
isoladamente na dianteira estratégica, no horizonte histórico à frente.
Em todo caso, eles farão todo o possível para jamais serem ultrapas-
sados por quaisquer outros adversários e, a menos de uma decadên-
cia econômica irresistível, tudo indica que conseguirão.13

3. O QUE O FIM DA GUERRA FRIA


REPRESENTOU PARA O BRASIL?
Considerando que o foco geográfico principal da Guerra Fria
era a Europa central e partes da Ásia e que, no plano estratégico glo-
bal, o que estava em causa era, essencialmente, uma competição pela

importância da manutenção do equilíbrio de poder entre as grandes potên-


cias, ainda que estas não pudessem competir com o poderio norte-americano;
e a Segurança Cooperativa, que destacava a importância da colaboração do
país com organismos internacionais.”; ibidem, p. 68.
13 Ver a esse respeito meus dois artigos seguintes: “O império americano em sete
teses rápidas: uma hegemonia involuntária, envergonhada e não reconhecida”,
Via Política (20.04.2008; link: http://www.viapolitica.com.br/diplomatizan-
do_view.php?id_diplomatizando=65); “O império e sua segurança: quatorze
novas teses sobre equilíbrio estratégico e auto-suficiência militar”, Via Política
(27.04.2008; link: http://www.viapolitica.com.br/diplomatizando_view.
php?id_diplomatizando=66).

23
hegemonia mundial entre as duas superpotências, por meio de veto-
res balísticos nuclearmente armados, era natural que o Brasil e gran-
de parte da América Latina, irrelevantes nos dois terrenos, ficassem
à margem de seus episódios mais importantes. Estes foram aqueles
constituídos pela crise de Berlim (1948), pela guerra da Coreia (1950-
53), pela guerra do Vietnã (1965-1975) e por diversos episódios lo-
calizados no Oriente Médio, na África ou na Ásia-Pacífico, com a
exceção já referida da crise dos mísseis soviéticos em Cuba (1962).
Cuba permaneceu, aliás, o único ponto de contenção estratégica, pelo
menos até 1991, num continente que se distinguia, sobretudo, pela
pobreza disseminada, pelas desigualdades extremas, pela recorrente
instabilidade política de muitos regimes e, principalmente, pela ad-
ministração caótica das economias nacionais, regularmente marca-
das por surtos inflacionários, por troca de moedas, por planos eco-
nômicos mirabolantes e inadimplências ocasionais nos pagamentos
externos, bem mais, propriamente, do que pela disputa estratégica
entre as duas grandes superpotências do período ou por conflitos en-
tre os países (embora eles também tenham ocorrido).
O fim da Guerra Fria não representou, assim, nenhuma mu-
dança fundamental para o Brasil, ou para a região, a não ser uma
oportunidade para que sua diplomacia demandasse, de modo talvez
idealista, que os ‘dividendos da paz’ fossem empregados para fins de
desenvolvimento econômico e social dos países do Terceiro Mundo.
Obviamente, nada mudou nesse plano e, se mudou, foi para pior, pos-
to que na ausência de competição direta entre elas, as grandes potên-
cias e os países avançados, de modo geral, diminuíram seu ímpeto
na cooperação ao desenvolvimento, ou mesmo na simples assistência
humanitária, cujos volumes de recursos direcionados, bilateralmente
ou por meio de organismos multilaterais especializados, diminuíram
absoluta e relativamente ao longo das últimas décadas.
Ocorreu aquilo que alguns observadores chamaram de “fadiga
dos doadores”, inclusive porque os resultados efetivos de décadas de aju-
da a título de cooperação ao desenvolvimento foram pífios, para dizer
o mínimo, ou mesmo negativos, ao colocar muitos países objeto dessa
ajuda na dependência estrita do socorro externo, quando não houve
desvio de recursos para os bolsos e as contas externas de responsáveis
menos escrupulosos. No plano estratégico, como os países periféricos
deixaram de ser, momentaneamente, terreno de disputa por posições-

24
chaves no grande xadrez da Guerra Fria, eles não mais precisam ser
cortejados, comprados ou de alguma forma sustentados por algum dos
contendores em conflito ideológico: o grande jogo tático resumiu-se,
novamente, a conquistas puramente econômicas ou comerciais.

Os efeitos do fim da Guerra Fria para o Brasil foram, em gran-


de parte, indiretos e se situam quase todos no novo impulso dado
à globalização econômica em âmbito regional e mundial. Ou seja, a
globalização ampliada pelo fim da Guerra Fria estimulou os esforços
do Brasil em prol da integração regional e com vistas à inserção da
economia brasileira nos grandes fluxos globais de comércio, de inves-
timentos, de tecnologia e em outros circuitos relevantes da interde-
pendência mundial. Essa inserção deve, contudo, ser vista pelos dois
lados: ela tanto abriu o Brasil aos impulsos da competição mundial,
abrindo novos mercados para os produtos nos quais o país apresen-
ta vantagens naturais ou adquiridas segundo os padrões típicos da
teoria ricardiana, como submeteu a economia brasileira aos desafios
de novos competidores inseridos nos circuitos mundiais de comércio
pela globalização, a começar pela China e outros asiáticos.14
Esse processo começou ainda antes do término ‘oficial’ da
Guerra Fria, posto que deslanchado logo depois da aprovação da nova
Constituição brasileira, em outubro de 1988, que também coincidiu,
ainda que não oficialmente, com o início da campanha eleitoral pre-
sidencial, a primeira a ser livremente realizada desde 1960, depois
de 21 anos de regime militar e de eleições indiretas para os princi-
pais cargos executivos. Os dois principais candidatos nas eleições de
1989, que disputaram o segundo turno do escrutínio, representavam,
cada qual de seu lado, concepções opostas de política e de economia.
Concorrendo pela primeira vez, Lula encarnava ainda as tradicionais
propostas socialistas e estatizantes da velha esquerda (no seu caso da
nova), as mesmas que estavam sendo enterradas nas ruínas do muro
de Berlim; ao passo que um oportunista alegadamente modernizan-
te, Collor de Mello, prometia retirar o Brasil da liderança dos países
pobres para integrá-lo ao clube dos países ricos, mediante reformas
profundas em sua estrutura econômica.

14 Cf. Paulo Roberto de Almeida, “A inserção econômica internacional do Brasil


em perspectiva histórica” in Cadernos Adenauer: O Brasil no cenário interna-
cional (São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, 2000, v. 2), p. 37-56.

25
De fato, independentemente da fraude política que o segundo
candidato representou, uma vez empossado – e antes de ser impedi-
do, dois anos depois – ele deu início ao único, ainda que inconsisten-
te, processo de reforma radical que o Brasil conheceu em toda a sua
história: reforma tarifária, redução do tamanho do Estado, abertura
econômica e liberalização comercial, além da revisão completa da
política nuclear herdada do regime anterior, começando pelo des-
mantelamento do seu vetor militar. Ainda que de maneira relutan-
te, o vice-presidente empossado, Itamar Franco, não obstaculizou o
programa de privatização iniciado por Collor. O presidente Fernando
Henrique Cardoso deu continuidade à reforma da Constituição, ao
programa de desestatização e continuou o itinerário que levaria o
Brasil à ratificação do Tratado de Não Proliferação Nuclear, recusado
durante 30 anos. Collor de Mello foi, provavelmente, o presidente que
terminou o equivalente da Guerra Fria no plano interno do Brasil,
isto é, o ancien régime da velha economia estatizante e dirigista, assim
como Cardoso, foi o presidente que inseriu o Brasil na globalização.15
Ambos os presidentes também deram impulso ao processo de
integração regional consubstanciado no Mercosul, primeiro em for-
mato bilateral, com a Argentina, depois quadrilateral, incorporando
o Uruguai e o Paraguai. Collor de Mello foi ousado o suficiente para
modificar a própria metodologia da liberalização comercial herdada
do período anterior. Até então, ela era conduzida pela via gradual e
flexível dos protocolos setoriais de complementação econômica e de
redução paulatina das tarifas alfandegárias; pelo Protocolo de Buenos
Aires (julho de 1990), o prazo estabelecido no Tratado de integração
Brasil-Argentina, de 1988, para a conformação de um mercado co-
mum bilateral, foi reduzido à metade (com o prazo final trazido de
1998 a 1994), assim como a metodologia de liberalização foi automa-
tizada, sem qualquer dispositivo setorial, passando as tarifas a serem
reduzidas linearmente de 7% a cada semestre, até alcançar 100% de
preferência (ou seja, tarifa zero) em 31 de dezembro de 1994. Foi essa
aceleração da integração Brasil-Argentina que determinou, de fato, a
passagem do processo bilateral para um esquema quadrilateral, resul-
tando na assinatura, em março de 1991, do Tratado de Assunção, que

15 Ver Paulo Roberto de Almeida, Relações internacionais e política externa do


Brasil: história e sociologia da diplomacia brasileira (2ª ed.: revista, ampliada e
atualizada; Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004).

26
pretendia criar até 1994 um mercado comum entre os dois grandes e
os dois pequenos do cone sul – Paraguai e Uruguai –, com a preserva-
ção da mesma metodologia de liberalização automática e completa.16
Esses avanços na integração sub-regional respondiam, na
verdade, a iniciativas já tomadas no hemisfério norte no sentido de
complementar o processo de globalização com o aprofundamento da
regionalização: o Ato Único Europeu de 1986 fixou o acabamento do
mercado unificado para 1992, ao mesmo tempo em que os EUA e
o Canadá negociavam um acordo de livre comércio (1988), depois
estendido também ao México, sob a forma do Nafta, consolidado em
1994. Todos esses esforços se inserem no novo padrão de relações
internacionais pós-Guerra Fria, combinando avanços da integração
de mercados – globalização – e impulsos discriminatórios e minila-
teralistas, consubstanciados na regionalização.17

4. O QUE O FIM DA GUERRA FRIA PODERIA


TER REPRESENTADO PARA O BRASIL?
O fim da Guerra Fria representou, igualmente, a esclerose con-
ceitual das divisões artificiais entre os grupos de países, embora a
maior parte dos atores seja conservadora a ponto de preservar as ve-
lhas classificações onusianas, mesmo depois do desaparecimento do
grupo socialista e a ascensão de alguns países em desenvolvimento ao
grupo dos desenvolvidos (como a Coreia do Sul e o México, mesmo
que, indevidamente, neste último caso). No plano doméstico, porém,
alguns grupos políticos ainda se veem afetados de esclerose mental,
ao persistirem nos mesmos modelos políticos e nas mesmas receitas
econômicas ultrapassadas que levaram os países socialistas à bancar-
rota: essa é uma característica que afeta a vários outros movimentos
políticos na região, dominados da mesma forma por concepções re-
gressistas de organização econômica – como um estatismo arraigado
– e uma débil adesão aos princípios democráticos.

16 Ver Paulo Roberto de Almeida, Mercosul: Fundamentos e Perspectivas (São


Paulo: LTr, 1998).
17 Cf. Paulo Roberto de Almeida, “Acordos minilaterais de integração e de
liberalização do comércio: uma ameaça potencial ao sistema multilateral de
comércio”. In: Sidney Guerra (org.), Globalização: desafios e implicações para o
direito internacional contemporâneo (Ijuí: Ed. Unijuí, 2006), p. 187-203.

27
O presidente Collor deu início ao processo de aproximação do
Brasil à OCDE, que Fernando Henrique Cardoso teria continuado se o
Brasil não se visse afetado pelas crises financeiras da segunda metade
dos anos 1990. Tendo ingressado no Centro de Desenvolvimento da
OCDE e no Comitê do Aço, o Brasil também foi aceito como observa-
dor em diversos comitês da OCDE, o que poderia ter preparado o cami-
nho da adesão, se não existissem conhecidas reticências políticas a essa
passagem do grupo dos países em desenvolvimento para uma inserção
num agrupamento conhecido como um ‘clube de países ricos’.18
O Brasil foi várias vezes solicitado a encetar o mesmo cami-
nho da transição de uma economia em desenvolvimento para uma
já desenvolvida, como realizado pela Coreia, o que ele simplesmente
recusou, mais por razões de natureza política do que por algum im-
pedimento de ordem econômica, já que é de fato, no plano industrial
pelo menos, uma economia avançada para os padrões dos mercados
capitalistas. Mas ele sempre recusou essa possibilidade, seja por con-
servadorismo diplomático, seja por indecisões do seu establishment
econômico, que prefere a conveniência do tratamento preferencial e
mais favorável para países em desenvolvimento do que o mundo da
competição global das economias de mercado.19
Em outros termos, o fim da Guerra Fria poderia ter representado
para o Brasil uma oportunidade para seu reposicionamento no cenário
internacional num sentido inédito em relação à sua história econômica
passada, que suas equipes dirigentes poderiam ter aproveitado. A transi-
ção do governo Fernando Henrique Cardoso para o governo Lula repre-
sentou, contudo, em termos de posicionamentos externos, uma rever-
são a padrões anteriores de inserção internacional, bem mais ancorados
no velho terceiro-mundismo e na chamada dimensão Sul-Sul, do que
orientados para uma adesão paulatina ao universo conceitual da OCDE.
O pensamento político da política externa brasileira, no gover-
no Lula, pode ser definido, por ordem aparente de relevância, como

18 Cf. Paulo Roberto de Almeida, “OCDE, UNCTAD e OMC: uma perspectiva


comparada sobre a macroestrutura política das relações econômicas interna-
cionais” in Paulo Borba Casella e Araminta de Azevedo Mercadante (coords.),
Guerra Comercial ou Integração Mundial pelo Comércio? a OMC e o Brasil (São
Paulo: Ltr Editores, 1998, p. 149-198).
19 Cf. Paulo Roberto de Almeida, “O Fim do Desenvolvimento (agora só falta me-
lhorar socialmente o Brasil)”, Intellector (vol. 1, n. 2, janeiro-junho 2005; link:
http://www.4shared.com/file/6388387/6f93ba6f/pauloralmeida.html).

28
um híbrido conceitual entre: (a) posições e preferências políticas do
Partido dos Trabalhadores; (b) preferências políticas pessoais dos
atuais dirigentes da chancelaria (Ministro de Estado e Secretário Ge-
ral, com maior incidência “teórica” deste último, um dos raros diplo-
matas que escreve para um público mais vasto, com certa audiência
nos círculos acadêmicos); (c) posturas e tradições diplomáticas estri-
to senso, embora temperadas, estas últimas, pelas novas concepções
e prioridades políticas dos dirigentes políticos; vêm por último, mas
são operacionalmente importantes.
Obviamente, os dois primeiros conjuntos são mais impor-
tantes no plano das definições políticas, do que o último, que tem
um simples papel de assessoramento técnico ou de fundamentação
operacional, atuando, portanto, mais no plano dos procedimentos
do que no das grandes orientações a serem adotadas (ou já adota-
das e em curso de implementação). Essas ideias e posições recupe-
ram todo um estoque de políticas pertencentes ao arco desenvol-
vimentista e nacionalista, tradicional no pensamento brasileiro de
meados do século XX, acrescentadas de várias – mas não todas –
contribuições da chamada esquerda brasileira em matéria de rela-
ções internacionais. Essas contribuições têm como base o socialis-
mo, embora temperado pelas experiências de derrota e fracasso nas
várias tentativas ao longo do século XX, o que obviamente diminuiu
o ímpeto para reformas ou orientações econômicas declaradamen-
te estatizantes ou dirigistas. Mas permaneceu o apelo e o apoio a
regimes de esquerda, na região e fora dela, em primeiro lugar o de
Cuba, assim como foram preservados alguns “instintos básicos” da
esquerda do passado.
Esses “instintos básicos” podem ser resumidos assim: (a)
anti-capitalismo (agora moderado); (b) rejeição do mundo da al-
ta-finança e das multinacionais (o que não impede posturas prag-
máticas, mais por necessidade, do que por convicção); (c) anti-im-
perialismo de velha inspiração leninista (mas carente de maiores
reflexões sobre o que ele significa, na verdade, na atualidade); (d)
antiamericanismo ingênuo (na medida em que os EUA estariam
supostamente não apenas comprometidos com o apoio a regimes
de direita, a ditaduras militares, o embargo a regimes socialistas e a
preferência pelo capital, em lugar da classe trabalhadora, mas tam-
bém pelo fato de os EUA se apresentarem como a maior potência

29
capitalista do planeta, ipso facto oposta ao “campo socialista”, que
ainda recebia um apoio do princípio dos partidos de esquerda, in-
diferentes ao totalitarismo); (e) estatismo exacerbado, que sempre
ficou como uma marca registrada de movimentos supostamente de
esquerda (e nisso não há qualquer recuo filosófico, apenas uma aco-
modação temporária ou oportunista).

5. O QUE, DE FATO, MUDOU NA DIPLOMACIA


BRASILEIRA NO PERÍODO RECENTE?

No plano diplomático, essas preferências e orientações – que


correspondem a uma ideologia difusa, não formalizada em grandes
obras teóricas ou reflexões mais elaboradas no plano histórico ou con-
ceitual, mas apenas em programas e declarações partidárias, de frágil
consistência analítica – se traduzem numa série de posturas, algumas
velhas, outras novas, que caracterizam e definem as preferências atuais
da diplomacia brasileira: (a) terceiro-mundismo instintivo (posto que
o Brasil é definido como país em desenvolvimento, e aparentemente
condenado a sê-lo); (b) soberanismo retórico, em grande medida agi-
tado para fins de imagem política; (c) nacionalismo superficial (mas
que encontra eco nos meios militares e em setores de opinião iden-
tificados com velhas reações de introversão econômica); (d) desen-
volvimentismo ingênuo do passado, pois que correspondendo a uma
agenda típica do Brasil agrário, com tarefas industrializantes típicas do
velho stalinismo em matéria econômica; (e) anti-hegemonismo infan-
til, pois que justificando algumas “alianças estratégicas” com parceiros
que não são exatamente modelos acabados de democracias ou de regi-
mes comprometidos com uma gestão econômica de mercado; (f) ati-
vismo em políticas setoriais, decorrente do instinto estatizante acima
referido, o que se traduz em oposição de princípio a todo e qualquer
avanço multilateral que implique regulação restritiva do ponto de vista
das políticas públicas e setoriais, ou a regulação permissiva do ponto
de vista das empresas e dos particulares em geral; (f) apoio a movi-
mentos ditos progressistas, o que inclui governos, partidos, ONGs, com
uma nítida prevalência de objetivos sociais ou políticos sobre metas
econômicas ou comerciais, como revelado no caso dos organismos
geneticamente modificados (OGMs), agricultura familiar, subsídios a
programas sociais, mecanismos de correção de “assimetrias” etc.; (g)

30
limitação da cooperação bilateral basicamente a países do Sul, ou coo-
peração com o Norte apenas nos temas de interesse do Sul.
No plano da diplomacia prática, essas posturas redundaram em
diversas iniciativas, aliás, múltiplas, num ativismo que parece ter sido
feita expressamente para superar a diplomacia presidencial anterior,
criticada como parte da “herança maldita” de suposta submissão a inte-
resses externos, falta de soberania e de não defesa dos interesses nacio-
nais. Três grandes temas foram colocados explicitamente no topo das
prioridades da agenda externa, tal como declarados no início de 2003:
(a) reforço e expansão do Mercosul, servindo como base da criação de
um espaço econômico integrado na América do Sul, a partir de esque-
mas de coordenação política, nos quais a liderança brasileira ficasse
realçada naturalmente; (b) busca de uma cadeira no Conselho de Se-
gurança da ONU, vista como uma das grandes “aspirações nacionais” e
objetivo maior da diplomacia multilateral do Brasil, em função da qual
foi montada a operação Haiti; (c) conclusão da rodada multilateral de
negociações comerciais e busca de acordos comerciais, eventualmente
de livre comércio (mas limitados em escopo), no âmbito regional ou
multilateral, com a rejeição concomitante de acordos intrusivos com
as grandes potências comerciais (ou limitando-os a meros acordos de
acesso a mercados). Não é preciso dizer que nenhum desses objetivos
foi alcançado ao longo do período, nem todos por incapacidade própria
da diplomacia brasileira, mas por dificuldades estruturais que podem
ter sido ampliadas pelo irrealismo dos métodos e procedimentos, sem
descurar algum voluntarismo ideologicamente motivado.
Outras prioridades expressamente declaradas eram: (d) a di-
namização e o estímulo à integração regional, com escassos resul-
tados práticos, mas ainda assim com diversas iniciativas políticas e
sociais (à falta de resultados tangíveis no terreno econômico e co-
mercial); (e) as alianças seletivas no contexto da diplomacia Sul-Sul,
ditas estratégicas: IBAS, cúpulas inter-regionais com África e países
árabes, mas também os Brics; (f) o protagonismo mundial, para re-
forçar as pretensões ao CS da ONU e para criar uma nova relação de
forças no plano mundial; (g) a reforma das instituições econômicas
internacionais, embora a agenda aqui seja pouco clara; (h) a preser-
vação da agenda ambiental anterior, que de fato beneficia os maiores
poluidores do mundo em desenvolvimento, e tentativa de transferên-
cia dos custos da mitigação brasileira para os países mais desenvolvi-

31
dos e as agências internacionais; (i) as iniciativas de combate à fome
e de redução da pobreza, com mobilização de apoios internacionais,
duplicação de esforços já mantidos pelas agências multilaterais e
definição de mecanismos inovadores de financiamento (mesmo em
contradição com os interesses do Brasil, posto que tendentes, num
primeiro momento a fórmulas equivalentes à da Tobin Tax ou taxa-
ção de transações específicas).
Com a possível exceção dos grandes temas da segurança in-
ternacional – ainda assim, com o ativo envolvimento do Brasil nas
questões multilaterais da área nuclear e de armas de destruição em
massa, de modo geral, bem como por ocasião da presença ocasional
no CSNU –, a diplomacia do Brasil tem buscado o envolvimento e
maior presença em foros abertos à sua participação. Provavelmente,
por orientação presidencial, o Brasil também buscou a liderança po-
lítica em diversos órgãos do multilateralismo contemporâneo – BID,
OMC, OMPI, OACI, UIT – ademais do já referido protagonismo re-
gional, no âmbito do qual ele se ofereceu para “secretariar” a Casa,
o foro de coordenação sul-americana que acabou sendo substituído
pela Unasul.
Mesmo sem uma presença direta nas instâncias diretivas des-
sas instituições, o grau de envolvimento brasileiro aumentou e – por
força da candidatura ao CSNU – as obrigações financeiras foram, pela
primeira vez, em muitos anos, regularizadas. Mais especificamente,
ocorreu uma seleção de foros para a atuação prioritária da diploma-
cia brasileira, bem mais identificados com os chamados interesses do
Sul, do que com os da “interdependência capitalista”. Foram, assim,
revitalizados os laços com mecanismos regionais ou de países em
desenvolvimento e, de certa forma, rechaçados aqueles que tinham
a ver mais diretamente com o “universo capitalista”, como a OCDE.
Mais ativamente ainda, a diplomacia brasileira forjou foros
próprios de atuação, a começar do IBAS, das parcerias estratégicas,
das reuniões de cúpula com os países africanos e árabes, ademais de
um intenso programa de viagens e visitas presidenciais em todas as
latitudes e longitudes, mas, em especial, no Sul e com grande ênfase
na África. No contexto regional, os esforços foram ainda duplicados,
ainda que os aspectos comerciais e econômicos, de modo geral, da
integração regional não tenham conhecido progressos notáveis (tal-
vez até mesmo estagnação, quando não retrocesso). O Mercosul foi

32
“oferecido” a novos parceiros regionais: Chile, Bolívia, Equador e, so-
bretudo, Venezuela, com uma perigosa diluição dos compromissos
jurídicos e das regras pertinentes à união aduaneira. Foram especial-
mente valorizados novos aspectos da integração regional, como os
“políticos” – com a constituição de um Parlamento do Mercosul, su-
perdimensionado – e “sociais” – igualmente com comissões e grupos
de trabalho, envolvendo todo tipo de interlocutores nessa esfera.
O objetivo mais ambicioso, quiçá, foi a Casa, oportunamente
substituída pela Unasul, num formato talvez não desejado inteiramen-
te pelo Brasil, que teve de ceder espaços de administração e controle
para outros parceiros (secretariado instalado em Quito, por exemplo).
Também de iniciativa brasileira foi o Conselho de Defesa Sul-Ame-
ricano, no âmbito da Unasul, instalado oficialmente por ocasião de
reunião de cúpula deste organismo, em dezembro de 2008. Na mesma
ocasião, foi concretizada outra iniciativa mais abrangente da diploma-
cia brasileira, a Cúpula da América Latina e do Caribe (Calc), de nítido
sabor anti-hegemônico, como, aliás, expressamente reconhecido pelos
organizadores brasileiros: estes se orgulharam de que, em quase 200
anos de história independente, era a primeira vez que se fazia uma
reunião de cúpula sem a presença de “potências tutelares”.
A reforma dos organismos internacionais e, em especial, das
instituições financeiras internacionais, já fazia parte do programa do
PT desde praticamente a sua origem, não sendo de se estranhar que
o tema reaparecesse de maneira mais enfática na presente fase da di-
plomacia brasileira. Além da demanda, porém, não existe uma visão
muito clara sobre como devem ser feitas essas reformas, a não ser pelo
desejo genérico de que a presença e a capacidade decisória dos países
em desenvolvimento, em especial a do Brasil, sejam reforçadas. Tendo
em vista que o processo é necessariamente lento, a despeito dos esfor-
ços conduzidos, havendo a consciência de que, dificilmente, se conse-
guirá romper o monopólio das grandes potências nessas instâncias, a
diplomacia do Brasil tem-se voltado para a constituição de instâncias
paralelas, ou informais, que possam lhe trazer presença internacional,
sem ter de passar pelos mecanismos de controle dos países mais ricos.
Em consequência, o formato dos grupos tem sido realçado e pri-
vilegiado, desde o G3 (IBAS), até o tradicional G77, passando pelo G4
(reforma do CSNU, com os outros três candidatos assumidos), pelo G20
comercial (que o Brasil liderou desde o início), pelo G20 financeiro (que

33
assumiu maior importância com a crise financeira), pela eventual trans-
formação do G8 em G13 (com a incorporação do chamado Outreach-5:
Brasil, China, Índia, África do Sul e México) e por uma miríade de outros
grupos mais ou menos informais. Alguns são discretamente abandona-
dos – como o foro iberoamericano, em função, justamente, da presença
das ex-metrópoles coloniais – enquanto outros são revitalizados e refor-
çados, como o Grupo do Rio – que estava praticamente desativado, mas
que foi “renascido” para acolher Cuba numa instância de diálogo latino-
americana (já que seria difícil incorporá-la diretamente ao Mercosul; seu
ingresso nesse grupo, aliás, foi apresentado como um grande feito). Cuba
foi objeto da atenção generosa de quase todos os latino-americanos, pres-
surosos em anular sua expulsão da OEA (ocorrida em 1962), mas menos
engajados, entretanto, em exigir-lhe o cumprimento das cláusulas demo-
cráticas estabelecidas pela mesma OEA, no período pós-Guerra Fria.
De forma geral, todos esses grupos e instâncias de coordenação e
de atuação em determinados foros – ONU, OMC, agências especializadas
– visam a potencializar a ação da diplomacia brasileira, embora os fins
explícitos e proclamados sejam o reforço da solidariedade dos países em
desenvolvimento, para os objetivos tradicionais desses países: comércio,
cooperação, transferência de tecnologia, reforma das instituições, etc.
Esse ativismo brasileiro, por vezes, pode criar focos de fricção ou de re-
sistência por parte de alguns parceiros, que se sentem melindrados com
a desenvoltura diplomática do Brasil, ou até com o que eles possam clas-
sificar como oportunismo e protagonismo excessivos. Tal ocorreu, por
exemplo, com o impulso para o exercício de uma liderança regional bra-
sileira, mal recebida em vários países da região sul-americana.
Os objetivos brasileiros, em cada uma das várias iniciativas di-
plomáticas, podem ser específicos aos foros e temas envolvidos na
agenda de cada uma dessas instâncias. Mas o objetivo geral parece ser
um só, e é de natureza essencialmente política: realçar a presença do
Brasil, provavelmente a do próprio presidente, no plano internacio-
nal, como parte de um projeto de colocar o Brasil no círculo restrito
das grandes potências mundiais (senão no terreno militar ou econô-
mico, pelo menos nos planos político e diplomático). Em torno desse
projeto, foram mobilizados grandes recursos materiais e humanos
e é em função dele que é construída a agenda de viagens presiden-
ciais. Os temas envolvidos em cada uma dessas iniciativas recebem
um tratamento superficial no campo diplomático – posto que várias

34
iniciativas carecem de estudos aprofundados para o seu adequado
embasamento técnico, já que podem, inclusive, representar perdas
econômicas para o Brasil – mas são sistematicamente apresentados
como consistentes com o interesse nacional brasileiro. O problema
da integração energética, na América do Sul, e a questão mais geral
da cooperação Sul-Sul representam dois exemplos de investimentos
políticos carentes de análises mais profundas no plano técnico.

6. CONCLUSÕES: O ATIVISMO DIPLOMÁTICO


BRASILEIRO NUMA CONJUNTURA DE TRANSIÇÃO
O governo dispõe, obviamente, de grandes recursos publicitá-
rios e pode contar, em parte, com o desconhecimento ou alheamento
do grande público – para nada dizer dos próprios jornalistas – em
relação aos itens da agenda externa, dado que é notório o fato de o
Brasil carecer de centros de pesquisa e de especialistas em temas in-
ternacionais. O governo conta, assim, com grande latitude de ação,
mas também com o respeito que a diplomacia profissional do Ita-
maraty granjeou ao longo do tempo. Mais importante, talvez, para
seus objetivos imediatos e de propaganda: ele conta com um grande
capital de simpatia adquirida ou já ganha por antecipação, de muitos
atores sociais, seduzidos pelo aparente progressismo de sua política
externa, que atua como uma espécie de compensação prática para os
aspectos mais conservadores de sua política econômica.
Existem poucas avaliações independentes e poucos estudos fi-
áveis, inclusive envolvendo o lado do custo-benefício, da maior parte
das iniciativas diplomáticas do governo. Alguns jornalistas bem in-
formados, sobretudo na área econômica, exibem algum espírito crí-
tico, mas são raros. Apenas o jornal O Estado de São Paulo tem exer-
cido sua visão crítica sobre a diplomacia brasileira, acompanhado de
maneira muito tênue pela Folha de São Paulo e O Globo. Não há pers-
pectiva de que esse panorama pouco crítico – inclusive de escassa
reflexão mais aprofundada – venha a mudar no horizonte previsível,
o que permite supor a continuidade incontestada das grandes linhas
da atual diplomacia brasileira.
Independentemente, porém, das ações governamentais, parece
claro que o Brasil tem emergido como grande ator regional e, quiçá,
internacional, em função da dimensão própria de sua economia, da

35
estabilidade macroeconômica alcançada desde o Plano Real e a partir
do regime de metas de inflação e de flutuação cambial, da decorrente
capacidade de atrair capitais de risco e da sua posição naturalmen-
te protagônica no quadro da América do Sul, como maior mercado
regional. No plano mundial, o Brasil tem de fato ocupado maiores
espaços em função do ativismo de sua diplomacia. Cabe apenas saber
se esses esforços vêm sendo direcionados para os temas e objetivos
mais adequados aos interesses permanentes do Brasil.

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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38
A MODERNA EDUCAÇÃO SUPERIOR E AS
EXIGÊNCIAS INTER E TRANSDISCIPLINARES:
enfoque para as formações em administração,
relações internacionais e turismo

Prof. Dr. Mário Carlos Beni1

RESUMO: A educação multicultural é a direção necessária que deve


tomar o processo educativo para fazer face à complexidade de um
mundo que se globaliza num ritmo crescente. Assim como a biodiver-
sidade é essencial para a continuidade da vida, a diversidade cultural é
essencial para a evolução do potencial criativo de toda a humanidade.
A preservação de identidades nacionais num mundo em processo de
globalização, com a crescente movimentação de populações, é de fun-
damental importância. Daí a relevância da educação multicultural. A
mudança de paradigma no campo científico requer a formação de uma
nova visão da educação, de caráter multicultural, que sirva de sustenta-
ção para a diversidade que se apresenta na base dos processos criativos.
PALAVRAS CHAVE: educação, paradigma, inter e transdisciplinaridade,
holístico, sistema

1.A VEZ DA TRANSDISCIPLINARIDADE


A educação multicultural é a direção necessária que deve tomar
o processo educativo, para fazer face à complexidade de um mundo
que se globaliza num ritmo crescente. O grande objetivo é evitar que o

1 Professor da USP.

39
processo de globalização conduza a uma homogeneização, cujo resul-
tado é a submissão e mesmo a extinção de várias expressões culturais.
Assim como a biodiversidade é essencial para a continuidade da vida, a
diversidade cultural é fundamental para a evolução do potencial criati-
vo de toda a humanidade. Novos modos de pensamento e de expressão
só podem resultar de uma dinâmica de encontros culturais.
Os erros do colonialismo não podem ser repetidos nessa nova
fase das relações entre os indivíduos, as comunidades, os povos e as
nações que chamamos de globalização. Isso nos conduz, necessaria-
mente, a uma análise das distintas formas de explicar, conhecer, en-
tender, lidar e conviver com a realidade, reconhecidas nas inúmeras
e distintas culturas.
A preservação de identidades nacionais num mundo em proces-
so de globalização, com a crescente movimentação de populações, é de
fundamental importância. Daí a relevância da educação multicultural.
Em países com uma forte presença indígena e africana, como é o caso
das Américas, essas considerações são muito importantes.
A Educação neste século, no propósito de seu corpus, rompe
a cristalização do ensino de disciplinas e técnicas estanques, visan-
do à formação de especialidades limitadas à compreensão de seus
próprios conhecimentos e artes, partindo para a integração de vida,
universo e mente, na execução de uma educação (informação mais
formação) ética, fundamentada na visão interativa de estudantes,
professores, pesquisadores e comunidade.
É a experiência do transmitir e aprender em união total, em que
a herança acumulada do passado é reinterpretada e visualizada, apenas
no que permanece de universal por e para todos. Assim, de perquirir
no presente em suas mudanças para apresentar à humanidade todos os
níveis de realidade que se pode alcançar, desde o filosófico ao estético,
num esforço trans, para, com isso, colocar de novo o homem e sua re-
lação com os outros e com o meio planetário – em suma, seu conheci-
mento, como fonte geradora de todas as atividades. Desta feita, porém,
reconhecendo o valor do particular no entendimento da totalidade, quer
dizer, sua construção será possível somente quando a agregação desses
particulares for significativa a todos no entendimento trans.
A preocupação maior desse processo pedagógico reside em
encontrar respostas adequadas para o século 21, notadamente, do
papel reservado às instituições educacionais e aos Centros de Exce-

40
lência e de Referência de ensino e pesquisa, já que estamos na “era do
conhecimento”, que significa a aceleração vertiginosa do avanço das
fronteiras não demarcadas da ciência e do aumento na dependência
da tecnologia em relação aos desenvolvimentos científicos.
Ao contrário do que vem sendo propalado por quase todos os
meios eletrônicos e tradicionais da mídia, a Universidade, com suas
escolas, é, e continuará sendo o centro irradiador de respostas aos
desafios do moderno e veloz processo universal de mudança socio-
econômica, que parece engolfar em vórtices sempre mais céleres de
aparente destrutivismo caótico, a competência das mentes humanas
e seu comportamento regulador no embate dualístico sobreviver/ser.
O desafio da educação está na energia que aplica na formação
de novas mentalidades, suficientemente, preparadas e capacitadas
para desenvolver a visão holística e transdisciplinar.
Portanto, subjacente aos conteúdos dos cursos oferecidos, está
a transdisciplinaridade, uma evolução da educação. Novo processo
multicompreensivo que busca entre as disciplinas, no meio delas e
além delas, pontos de intersecção e um vetor comum entre as dife-
rentes áreas do conhecimento teórico e prático.
A mudança de paradigma, no campo científico, requer a for-
mação de uma nova visão da educação, de caráter multicultural, que
sirva de sustentação para a diversidade que se apresenta na base dos
processos criativos.
Tal visão revolucionária, holística, sistêmica, interativa e inde-
terminada, exige que sejam repensados os conceitos de disciplinas,
estruturas e conteúdos curriculares, bem como o papel do verdadeiro
professor universitário, que jamais deve se limitar a repetir o feito
e o escrito por outros na acumulação passiva de conhecimentos, e
sim sempre gerar com seus alunos conhecimentos e produzir novos
pensamentos, a despeito e apesar da disciplina que ministra, dentro
da plena interatividade.
Em suma, houve uma mudança radical na maneira como o ho-
mem concebe a si mesmo, a realidade e o mundo circundante. Essas
mudanças ajudam a compreensão do sentido de inter e transdisci-
plinaridade, que é uma atitude e um ato de vontade de superação de
todas as visões fragmentadas e dicotômicas que, tradicionalmente,
vêm sedimentando em modelos de racionalidade científica, defendi-
dos por grandes grupos e corporações da sociedade.

41
O processo de construção do conhecimento científico é con-
tínuo, permanente e aberto, abrangendo em sincronia o histórico, o
coletivo e o individual.
Portanto, jamais poderá ser linear, cumulativo, estático, her-
mético, dogmático e final. A preocupação não recai no ato de conhe-
cimento, mas justamente no processo de conhecimento. Construir
uma teoria que expresse as funções e os resultados das dimensões
da Adminsitração, das Relações Internacionais e do Turismo deve ser
sempre uma conquista interdisciplinar, onde cada momento é, simul-
taneamente, produzido e produtor, numa recursão organizacional em
que a parte está no todo, e o todo está na parte. A maior contribuição
dos pensadores modernos está em chamar a atenção sobre a partici-
pação de cada ser humano nesse processo construtivo.
Convém sempre recordar que o homem, na verdade, é um todo
que interage com o mundo em encontros holísticos de ações, pensa-
mentos, desejos, prazeres, paixões, sonhos.
Essa totalidade significa que a construção do conhecimento não
exige a explicação de todas as coisas. Não é necessário conhecer o tudo
para entender as partes; o todo cria a si mesmo na interação das partes.
O todo não é imediatamente cognoscível, será apenas por meio
da observação, identificação, interpretação e correlação de suas partes.
Nesse ponto, a teoria de Sistemas constitui importante instru-
mento para permitir a percepção e observação do acima exposto.
Podemos definir sistema como um conjunto de partes que in-
teragem de modo a atingir um determinado fim, de acordo com um
plano ou princípio; ou conjunto de procedimentos, doutrinas, ideias
ou princípios, logicamente, ordenados e coesos, com a intenção de
descrever, explicar ou dirigir o funcionamento de um todo.
Miller2 apresenta outra definição, destacando que “sistema é
um conjunto de unidades com relações entre si.” A palavra conjunto,
para ele, “implica que as unidades possuem propriedades comuns”,
ou seja, “ o estado de cada unidade é controlado, condicionado ou
dependente do estado das outras unidades.” Assim, o conjunto en-
contra-se organizado em virtude das interrelações entre as unidades,
e seu grau de organização permite que assuma a função de um todo,
que é maior que a soma de suas partes.

2 MILLER, J.G: “Living systems: basic concepts”, em Behavioral Science, nº 10, 1965.

42
Congressos, simpósios e seminários sucedem em vários países
e organismos, estruturando-se em torno da teoria holística.
Desde que Smuts lançou, em 1926, a visão holística bem mais
tarde definida por Monique Thoenig3 como uma nova consciência
para uma nova era. Essa autora criou em Paris, em 1979, a primei-
ra Universidade Holística. Um primeiro ensaio de síntese sobre esse
movimento vem sendo realizado por Roberto Crema4.
Creio necessário apresentar alguns dos princípios básicos que
caracterizam o novo paradigma holístico.
Quanto mais nos aprofundamos na definição desse paradigma
e de suas repercussões na epistemologia e na vida prática, mais lúci-
dos poderão ser os propósitos e a atuação da ecologia, sobretudo no
que concerne è educação ecológica, e mesmo à educação em geral.
Assim, em primeiro lugar, é importante destacar algumas con-
siderações sobre a nova visão holística do Real.
Convém, portanto, explicar por que e como chegamos a essa
nova visão e abordagem do real, sobretudo, para mostrar que não se
trata de um novo dogma científico ou religioso. Muito pelo contrá-
rio, os princípios enunciados a seguir são, de um lado, resultados de
uma revolução de paradigma dentro da própria ciência e, de outro,
de uma necessidade pragmática de salvar a vida das espécies, huma-
no ou não, ameaçadas pelas tecnologias da ciência, nos seus aspectos
destrutivos, do antigo paradigma.
Diga-se de passagem que o isolamento da inteligência, dentro
do próprio homem, e a prevalência do raciocínio lógico-formal, na pro-
cura do conhecimento, são fatores essenciais da crise contemporânea.
Vivemos na atualidade uma crise de fragmentação sem pre-
cedentes, que está chegando ao ponto máximo de ameaças a nossa
própria existência. As suas raízes se encontram na dualidade de base
sujeito-objeto, característica de uma fantasia de separatividade pró-
pria do antigo paradigma newtoniano-cartesiano.
São três, principalmente, os documentos que nos inspiraram e en-
corajaram a desenvolver uma teoria fundamental que constitui, hoje, a
base da pesquisa, ensino e ação da Universidade Holística Internacional:

3 THOENING, Monique apud "Rumo à Nova Transdisciplinaridade", WEIL,


Pierre: Summus, 1993 pág. 43.
4 CREMA, Roberto apud "Rumo à Nova Transdisciplinaridade", WEIL, Pierre:
Summus, 1993 pág. 43.

43
- a Declaração de Veneza da Unesco (1986), ao afirmar que a ci-
ência chegou aos confins em que não pode mais assistir impassível às
aplicações irrefletidas das suas descobertas, e que é chegado o momento
do seu encontro complementar com as grandes tradições culturais da
humanidade, recomenda o desenvolvimento da transdisciplinaridade.
- a Declaração de Vancouver da Unesco (1990), ao reforçar os
termos da Declaração de Veneza e insistir no caráter de emergência
em relação à vivência da vida e ao caráter limitado dos recursos na-
turais da Terra.
- a Carta Magna da Universidade Holística Internacional (1986)
ao representar um primeiro esforço para definir o novo paradigma:
“Este paradigma considera cada elemento de um campo como um
evento que reflete e contém todas as dimensões do campo (a metáfora
do holograma). É uma visão em que o todo e cada uma das suas siner-
gias estão ligadas, em interações constantes e paradoxais.”
Vejamos agora o sumário dos princípios básicos que regem o
antigo e o novo paradigma; esses princípios básicos definem a antiga
e nova a transdisciplinaridade.
Antigo Paradigma
Novo Paradigma (holístico)
(newtoniano-cartesiano)
Princípios Princípios
Não-dualidade. Sujeito
e objeto são, indissocia-
1. Dualidade sujeito-objeto Não-
Dualidade velmente, interdepentes
(Eu, Universo, Eu/Não-Eu). dualidade
e, segundo o princípio 2,
feitos da mesma energia.
2. No universo tudo é
2. O universo é “feito” de
“feito” de espaço e energia
Atomimo e partículas sólidas e eternas
Espaço- indissociáveis. Toda
mecanicis- em interação mecânica. As
Energia partícula subatômica é
mo partículas são diferentes
luz. O conceito de evento
da luz.
substitui o de elemento.
3. Matéria, vida e informa-
3. Matéria, vidade e informa-
ção são manifestações da
ção são assuntos separados
mesma energia, provinda
no universo. Assim sendo, as
e inseparável do mesmo
estruturas materiais, vitais e
Não- espaço. O universo é feito de
Superativi- programáticas do universo
separativi- sistemas; todos os sistemas
dade são objetos de ciências
dade são de natureza energética.
separadas: Física, Biologia
Logo, quem conhece as leis
e Ciências da Informação
da energia, conhece as leis
e Programática (ainda por
de todos os sistemas físicos,
definir).
biológicos e psíquicos.

44
4. Todo o fenômeno tem
4. Há uma recursividade
uma causa; ele é efeito de Contradi-
entre o efeito e causa ou
uma causa. O efeito pode ção e não
Casualida- inter-retroação. Existem
tornar-se causa, assim indefi- contra-
de e deter- também fenômenos
nidamente. Esta causali- dição. A
minismo acausais e vistos como pa-
dade é linear. Nas mesmas causalidade
radoxais dentro da lógica
circunstâncias, as mesmas e paradoxos
formal clássica.
produzem o mesmo efeito.
5. Não somente as partes
5. O todo contém as partes,
Conteúdo/ Holopro- estão no todo, mas o todo
mas não pode ser contido
Continente gramática está em todas as partes,
nestas.
como num holograma
3. Matéria, vida e informa-
3. Matéria, vida e informação ção são manifestações da
são assuntos separados no mesma energia, provinda
universo. Assim sendo, as e inseparável do mesmo
estruturas materiais, vitais e espaço. O universo é
Não-
Superativi- programáticas do universo feito de sistemas; todos os
separativi-
dade são objetos de ciências sistemas são de natureza
dade
separadas: Física, Biologia energética. Logo, quem
e Ciências da Informação conhece as leis da energia,
e Programática (ainda por conhece as leis de todos os
definir) sistemas físicos, biológicos
e psíquicos.
6. O conhecimento é
produto de uma relação
indissociável da mente do
6. A verdade como objeto da
Eliminação Integração sujeito observador, do obje-
investigação científica, inde-
do sujeito do sujeito to observado e do processo
pende da mente do sujeito
de observação. As três vari-
áveis são “feitas” da mesma
energia (princípio 1)
7. A vivência (V) da
7. A verdade só pode ser
Realidade(R) é função (F)
aceita se passar pelas sensa- Relativismo
Absolutis- do estado de consciência
ções e pelo raciocínio lógico. conscien-
mo racional (EC) em que se encontra o
(este princípio está em con- cial
sujeito.
tradição com o de nº 6).
VR=f(EC)

2. O AXIOMA DA TRANSDICIPLINARIDADE
O último aspecto assinalado como característico da metodo-
logia dentro do paradigma holístico é o da interdisciplinaridade e a
transdisciplinaridade.
Tal como a palavra holística, o termo transdisciplinar se torna
cada vez mais usado e conhecido.

45
Creio que chegamos ao momento de fazer um esforço para se
ter uma análise comparativa desses dois termos e, mais particular-
mente, aprofundar o significado da transdisciplinaridade, já que
esse termo representa uma tentativa de sair da crise de fragmentação
em que se encontra o conhecimento humano.
O que encobre esse conceito? Como distingui-lo de outros ter-
mos como multi, pluri e interdisciplinaridade? Existe uma ou várias
trasndisciplinaridades? Qual a relação desse termo com o conceito
de holística?
Enrich Jantsch5, em 1980, apresentou-nos um trabalho síntese
sobre interdisciplinaridade.
Ele procurou primeiro explicar o porquê da transdisciplinari-
dade. Para isso, partiu, em primeiro lugar, da fragmentação do saber
em setores distintos e fechados, que são, segundo ele, carcaterísticas
de um enfoque particular real e de um sistema específico de relações
dos seres humanos com seu entorno. O autor contesta essa visão par-
cial que corresponde a uma visão racional de um mundo estável e
estático. Tal visão foi imposta como última verdade da ciência. E esta
resistiu e tendeu a abafar e rechaçar outra espécie de enfoque, devido
ao sucesso tecnológico e econômico que reforçou a visão segundo a
qual a ciência seria uma abordagem mais verdadeira que aquela de-
senvolvida por outras culturas que enfatizam a interrelação de tudo
com tudo. A realidade é mais complexa. Essa complexidade só pode
ser abordada pela interdisciplinaridade.
O autor procura então, fazer uma distinção entre vários ter-
mos, e mostra que há equívocos e interpretações confusas entre eles:
Pluri ou multidisciplinaridade é a justaposição de várias dis-
ciplinas sem nenhuma tentativa de síntese. É o modelo que predomi-
na na universidade francesa.
Interdisciplinaridade “trata da síntese de duas ou várias disci-
plinas, instaurando um novo nível do discurso (metanível), caracteri-
zado por uma nova linguagem descritiva e novas relações estruturais.”
Transdisciplinaridade, segundo o autor, “é o reconhecimento
da interdependência de todos os aspectos da realidade”. A transdisci-
plinaridade é a consequência normal da síntese dialética provocada

5 JANTSCH, Enrich apud in “Rumo à Nova Transdisciplinaridade”, WEIL, Pierri,


Summus, 1993.

46
pela interdisciplinaridade, quando esta for bem-sucedida. Esse ide-
al, afirma o autor, nunca estará completamente ao alcance da ciência,
mas poderá orientar de modo decisivo a sua evolução.
São três os fatores que impulsionaram a síntese interdiscipli-
nar: “o processo de impulso da atração inerente à evolução mesma da
ciência; a força de atração do social; e a força de atração exercida por
uma visão transdisciplinar.”
Depois de fazer uma análise mais detalhada desses três fato-
res no que se refere ao terceiro fator transdisciplinar, o autor, embora
não tendo se referido à teoria geral dos sistemas que relembramos
nesse artigo, como também a cibernética, ambas, pela primeira vez,
tentaram chegar a um novo paradigma que relacione os diversos ní-
veis físicos, sociocultural e biológico. Mas esses ensaios continuaram
aderindo a uma visão estável e estática do mundo. Um novo tipo de
ciência está nascendo, não mecanicista, holística, a partir de Smuts, e
orienta-se em primeiro lugar pelos modelos vivos, levando em consi-
deração a mudança e se resumindo a noções tais como autodetermi-
nação, auto-organização e autorrenovação, reconhecimento de uma
interdependência sistêmica e muitos outros aspectos. Há um sentido
que é o da vida, o qual junto com a alegria, são inerentes a essa nova
visão transdisciplinar.

47
O profissional de Administração, Relações Internacionais e Tu-
rismo, hoje, é o gerente dele mesmo. Ligações “para sempre”, emprego
para a vida toda e com estabilidade já acabaram.
Eles estarão, constantemente, entrando e saindo de projetos
temporários para os quais serão convidados por sua capacidade e co-
nhecimento. Eles serão os empreendedores de si mesmos.
Hoje, valoriza-se cada vez mais o trabalhador da inteligência. É
o que se proclama, e se isso estimula docentes, pesquisadores e estu-
dantes, também por certo, deve amedrontá-los pela alta qualificação
e capacidade profissional que precisam conquistar e conseguir.
Administrar, hoje e amanhã, é fazer a ação instaurar-se; é ins-
pirar para a ação e fazê-la acontecer. Vocês terão de saber gerenciar
o “conhecimento”, o “capital intelectual”, a “inteligência”. Inteligência,
conhecimento e futuro estão sempre interligados, e é o que mais de
perto interessa a vocês.
A inteligência é a capacidade de antecipar, de planejar cursos
de ação, até então, inéditos, ensaiando-os na mente antes de agir. In-
teligência é olhar para frente antes de agir. Inteligência é olhar para
frente de forma criativa e visualizar o que ainda não é óbvio.
Devo chamar a atenção para um fato: com a globalização e a
Internet, o estudo das relações internacionais e do turismo, das ciên-
cias da administração e da gestão hoteleira deu um salto.
Apesar de vocês terem de estudar o comportamento do con-
sumidor, contabilidade financeira, estatística e um longo etc., terão,
deverão e precisarão saber business intelligence, e-commerce e e-bu-
siness.
As empresas de hoje não são mais iguais às de um passado re-
centíssimo, de dois ou três anos atrás. Já estamos vivendo o futuro e,
para isso, a academia deve prepará-los para o mundo, que agora tem
outro tipo de lógica. A lógica da estratégia.
Logo mais, desaparecerá a fronteira entre o dia e a noite, entre
a semana e o fim de semana. O tempo será – já está sendo – uma di-
mensão contínua em que a atividade humana acabará fragmentada
em nanossegundos perfeitamente cronometrados.
A nova economia em que vivemos é toda estratégica. A tecno-
logia, valor preponderante ainda ontem, há muito está ao alcance de
todos, graças à comunicação, pois ela interconectou cada vez mais
longe e realizou o que McLuhan já chamara de aldeia global.

48
Estratégia é uma coisa que trata de ser diferente, que requer
pensamento original, produzindo, vendendo e administrando as
mesmas coisas que outros. Trata da criação de um diferencial, por
menor que seja e distinga uma empresa de outra e atraia os clientes.
Vocês terão de administrar empresas virtuais. Vocês de um lado do
computador e concorrentes, fornecedores e clientes, do outro.

3. DO PROFISSIONAL QUE TEMOS


Estudos, pesquisas, dissertações e teses sobre a formação e
capacitação superior na atualidade, têm evidenciado o confronto de
ideias, a troca de experiências, a formalização de sistemas de ação, o
estabelecimento de metodologias programáticas, cristalizando crité-
rios de trabalho num espaço pedagógico repleto de potencialidades,
mas ainda carente em grande parte de planejamento educacional.
Revelam a necessidade de análise da definição e implantação
de um projeto pedagógico para o ensino superior, que leve em conta
as características geoeconômicas e socioculturais das regiões em que
se situam as escolas.
Verificou-se que a própria prática pedagógica, em poucos ca-
sos, contempla a interatividade das disciplinas e conteúdos progra-
máticos.
Constata-se que o perfil profissional requerido do moderno
aluno de turismo deixa muito a desejar na maioria dos cursos ofere-
cidos, devido à deficiência dos agentes envolvidos.
Ainda que melhor referenciadas, hoje, com uma visão holística
e sistêmica, instrumentalizados com tanta bibliografia segmentada, os
alunos não conseguem transladar para a prática, circunstanciadas aná-
lises quantitativas e qualitativas de mercado, para dimensionar e orien-
tar o planejamento estratégico de seus respectivos cursos de formação.

4. ASSIM O PROFISSIONAL QUE QUEREMOS


Deve estar preparado para pensar a complexidade da nova era
do conhecimento e integrá-lo a esse novo momentum, assegurando
oportunidades de construir novos meios de interpretação e sentido.
Saber compreender os níveis de realidade e o grau de sua inter-
ferência nessa realidade, exercitando uma nova liberdade ampliada,

49
construindo a coragem de experimentar soluções e buscando as me-
lhores condições de interveniência.
Permitir, nessa re-tomada do universal, poder observar e ana-
lisar as características distintivas da nova sociedade surgente das par-
cerias, alianças e fusões empresariais, gestão de inovação e de tecno-
logia, da vantagem competitiva, do indivíduo versus as coletividades,
da autogestão de carreiras, da comunicação e universidade virtual, e
do lazer cultural.
A rápida expansão atual das disciplinas acadêmicas, conduz a
um crescimento exponencial de saber distribuído em especialidades
fracionárias que inviabilizam a visão integral do ser humano.
Ao mesmo tempo em que acentua o domínio da tecnociência,
descreve o valor do homem como ser e, por extensão, das formas de vida.
A existência de direfentes níveis de realidades regidos por lógi-
cas diferentes é inerente à atitude transdisciplinar.
A inter e a transdisciplinaridade fazem emergir, da confronta-
ção das disciplinas, dados novos que as articulam entre si, oferecendo
uma nova visão da natureza e da realidade. Ela não procura o domí-
nio sobre as disciplinas, mas o caminho da abertura de todas elas
àquilo que as atravessa e as ultrapassa.
A visão inter e transdisciplinar está decididamente aberta, na
medida em que ultrapassa o domínio das ciências exatas por seu diá-
logo e sua reconciliação, não somente com as ciências humanas, mas
também com a arte, literatura, poesia e a experiência espiritual.
O reconhecimento da Terra como pátria é um dos imperativos
da transdisciplinaridade, o que remete todo habitante do planeta à
cidadania transnacional.
Portanto, a educação autêntica não deve privilegiar a abstração
no conhecimento. Deve, sim, ensinar a contextualizar, concretizar e
universalizar.
É preciso romper a cristalização do ensino de disciplinas e
técnicas estanques, visando à formação de especialidades limitadas
à compreensão de seus próprios conhecimentos e artes, e partir para
a integração de vida, universo e mente na execução de uma educação
ética, fundamentada na visão interativa de estudantes, professores e
pesquisadores.
É preciso viver efetivamente a experiência do transmitir e
aprender em união total, onde a herança acumulada do passado é

50
reinterpretada e visualizada apenas no que permanece de universal
e para todos.
Perquerir no presente e em suas mudanças para apresentar à hu-
manidade todos os níveis de realidade que se possa alcançar, desde o fi-
losófico ao estético, num esforço trans, para, com isso, colocar de novo o
homem e sua relação com outros e com o meio planetário – em suma,
seu conhecimento, como fonte geradora de todas as atividades. Desta
feita, porém, reconhecendo o valor do particular no entendimento da to-
talidade, quer dizer, sua construção será possível somente quando a agre-
gação desses particulares for significativa a todos no entendimento trans.
A interdisciplinaridade tem uma ambição diferente daquela
da multi ou pluridisciplinaridade. Elas dizem respeito à transferência
de métodos de uma disciplina para outra. Podemos distinguir três
graus de interdisciplinaridade:
a) Grau de aplicação: por exemplo, os métodos quali-quantitativos
matemáticos transferidos para o desempenho da gestão pública
ou privada, para análise de desempenho de redução de custo, defi-
nição de prioridades, alcance e cobrança de resultados. Ou ainda,
instrumentos de gestão como “Balanced Score Card”, que transfor-
ma a gestão em princípios estratégicos, focando as ações na imple-
mentação de políticas mais eficazes.
b) Grau epistemológico: por exemplo, nas Relações Internacionais
que surgem com domínio teórico na Ciência Política, as novas exi-
gências temáticas nos estudos internacionais, que abordam desde
questões de ciências já consolidadas como a Sociologia, Economia,
Geografia e como também em outros campos do conhecimento:
questões ambientais, internacionalização de fluxos de capitais,
antropologia, segurança, terrorismo, religião, saúde pública, entre
outras. Muitas dessas novas discussões se pautam em conceitos
e categorias de análises alternativas àqueles empregados tradicio-
nalmente nos debates de Mainstream.
c) Um grau de geração de novas disciplinas: por exemplo, o surgi-
mento de novos conceitos e categorias de análise, o emprego de
variáveis de ciências consolidadas como instrumentalização te-
órica para novas abordagens científicas, ocorrendo nesse caso, a
transdisciplinaridade, ou seja, aquilo que está ao mesmo tempo
entre as disciplinas, através das diferentes disciplinas e além das
disciplinas.

51
Por exemplo: Tenho conceituado turismo como um elaborado
e complexo processo de decisão sobre o que visitar, onde, como e a
que preço. Nesse processo, intervêm inúmeros fatores de realização
pessoal e social, de natureza motivacional, econômica, cultural, eco-
lógica e científica que ditam a escolha dos destinos, a permanência, os
meios de transporte e o alojamento, bem como o objetivo da viagem
em si, para fruição, tanto material como subjetiva dos conteúdos de
sonhos, desejos, de imaginação projetiva, de enriquecimento existen-
cial histórico-humanístico, profissional e de expansão de negócios.
Esse consumo é feito por meio de roteiros interativos espontâneos ou
dirigidos, compreendendo a compra de bens e serviços da oferta ori-
ginal e diferencial das atrações e dos equipamentos a ela agregados
em mercados globais, como produtos de qualidade e competitivos.

5. EDUCAÇÃO E CIBERCULTURA
Qualquer reflexão sobre o futuro dos sistemas de educação e
da formação na cibercultura, deve ser fundada em uma análise prévia
da manutenção contemporânea da relação com o saber. Em relação a
isso, a primeira constatação diz respeito à velocidade de surgimento e
de renovação dos saberes e savoir-faire. Pela primeira vez na história
da humanidade, a maioria das habilidades e competências adquiri-
das por uma pessoa no início de seu percurso profissional, estarão
obsoletas no fim de sua carreira.
A segunda constatação, fortemente, ligada à primeira, diz res-
peito à nova natureza do trabalho, cuja parte de transação de conhe-
cimentos não para de crescer. Trabalhar quer dizer, cada vez mais,
aprender, transmitir saberes e produzir conhecimentos. Terceira
constatação: o ciberespaço suporta tecnologias intelectuais que am-
plificam, exteriorizam e modificam numerosas funções cognitivas
humanas.
O saber-fluxo, o trabalho – transação de conhecimento, as no-
vas tecnologias da inteligência individual e coletiva mudam, profun-
damente, os dados do problema da educação e da formação.
De onde duas grandes reformas são necessárias nos sistemas
de educação e formação. Em primeiro lugar, a aclimatação dos dispo-
sitivos e do espírito do EAD (ensino aberto e a distância) ao cotidiano
e ao dia-a-dia da educação. O EAD explora certas técnicas de ensino a

52
distância, incluindo as hipermídias, as redes de comunicação intera-
tivas e todas as tecnologias intelectuais da cibercultura.
Nesse contexto, o professor é incentivado a tornar-se um ani-
mador da inteligência coletiva de seus grupos de alunos em vez de
um fornecedor de conhecimentos.
As ferramentas de ciberespaço permitem pensar vastos sistemas
de testes automatizados, acessíveis a qualquer momento e em redes de
transações entre oferta e procura de competência. Organizando a co-
munidade entre empregadores, indivíduos e recursos de aprendizagem
de todos os tipos, as universidades do futuro contribuirão assim para a
animação de uma nova economia do conhecimento.

6. BIBLIOGRAFIA
BENI, M.C.: Análise Estrutural do Turismo. 13ª ed., São Paulo: Senac, 2008.
D’AMBROSIO, Ubiratan: Transdisciplinaridade. São Paulo: Palas Athenas,
1997.
NICOLOESCU, Bassarab et al.: Educação e transdisciplinaridade. Tradução
Judite Vero, Maria F. De Mello e Américo Sommerman. Brasília: UNES-
CO, 2000.
WEIL, Pierre.: Rumo à nova transdisciplinaridade: sistemas abertos de co-
nhecimento. Ubiratan D’Ambrosio, Roberto Crema. São Paulo: Sum-
mus, 1993.

53
A S T EORIA S DA S RE L AÇ ÕE S
INT ER NACIONAIS NO PÓS- GUE RRA F RIA:
as teorias tradicionais e o Construtivismo
frente aos novos temas 1

Paulo Roberto Ferreira2

RESUMO: O objetivo desta pesquisa é apresentar as principais ca-


racterísticas do chamado quarto debate teórico das Relações Interna-
cionais e mostrar, como cada campo teórico se comporta diante das
novas questões que surgiram após o fim da Guerra Fria. Num segundo
momento, o artigo aborda como o construtivismo surge e toma espaço
das teorias tradicionais, quando estas se encontram na dificuldade de
explicar a complexidade do mundo pós fim da Guerra Fria.

PALAVRAS-CHAVE: Relações Internacionais, Pós-Guerra Fria, Teorias


Tradicionais e Construtivismo

1. INTRODUÇÃO
Este trabalho tem como objetivo contextualizar uma parte do
quarto debate teórico da disciplina de Relações Internacionais, abor-
dando as principais questões de ordem internacional que surgiram

1 Este trabalho contou com auxilio de bolsa de iniciação científica do programa


Unisul e governo de Santa Catarina do Artigo 170 da constituição do Estado.
2 Acadêmico e bolsista de Iniciação científica do Curso de Relações Internacio-
nais da Unisul.

54
após o fim da Guerra Fria. Os paradigmas envolvidos são as teorias
tradicionais da disciplina, o realismo, liberalismo e o construtivismo.
Dentre os sem-números de temas que assumem relevância, atual-
mente, escolheu-se para análise, o advento de novos atores e novas
formas de integração entre os países, e também as consequências da
globalização acentuada.
A disciplina de Relações Internacionais assumiu relevância
acadêmica e teórica no início do século XX, sobretudo, após a Primeira
Guerra Mundial. É comum encontrar em referências da área, o fato de
que o tema, antes do período citado, era restrito ao âmbito diplomáti-
co e jurídico, após a configuração da estrutura westfaliana. Devido aos
acontecimentos nas primeiras décadas do século XX, que os estudos
sobre as relações entre Estados, a paz, a guerra e sobre organizações
internacionais assumem relevância acadêmica e social. Foi durante o
entre guerras, que aconteceram os principais fatos do século XX. Surgiu
a Liga das Nações, a Revolução Russa, o fascismo, o nazismo, a maior
crise econômica da história, modelos econômicos como o Keynesianis-
mo, a Guerra Civil espanhola, entre outros. Concomitantemente, acon-
tecia o chamado primeiro debate teórico das relações internacionais
entre os liberalistas, tidos como utópicos, e os realistas.
A principal preocupação dos estudiosos, classificados como li-
berais, era estudar as causas da guerra e traçar o caminho para a paz
mundial, através de uma teoria normativa que guiasse os países para
longe dos conflitos. Com concepções diametralmente opostas, estavam
os realistas. Assim, eram classificados os estudiosos os quais defendiam
que as relações entre os Estados, na qual deveriam ser estudadas levan-
do em conta as noções de poder, egoísmo e interesse nacional, e que a
iminência de novos conflitos internacionais não deveria ser descarta-
da. Com a crise da Liga das Nações e a conflagração dos conflitos na
década de 30, o realismo emergiu como a teoria vitoriosa do debate.
Temas como poder, segurança e guerra ganharam precedência sobre
temas, como a cooperação econômica, a paz e o progresso.
Esse debate (ontológico), que dividiu os especialistas a respeito
do que deveria ser estudado nas Relações Internacionais, e que divi-
de até hoje os estudiosos, quando se discute se a disciplina evoluiu e
evolui por debates teóricos, foi o primeiro de quatro. (WAEVER, apud
NOGUEIRA & MESSARI 2005). O segundo debate teórico ocorreu
após a Segunda Guerra Mundial e, como afirmam Nogueira e Messari

55
(2005), foi um debate metodológico, que primava por um maior rigor
científico dos estudos das relações internacionais, diante das incer-
tezas geradas pela Guerra Fria. Seu ponto alto foi em 1979, quando
Waltz publicou o livro “Teoria das Relações Internacionais”, tornan-
do-se o principal autor desse debate epistemológico. O neorrealismo
de Waltz tinha como objetivo construir uma teoria sistêmica para as
Relações Internacionais. O terceiro debate acontece no mesmo pe-
ríodo, envolveu o realismo e o liberalismo contra as teorias críticas,
fortemente, influenciadas pelo marxismo. Nesse debate, o estadocen-
trismo foi contestado e novas questões sociais da política mundial
adentraram ao mundo das teorias das Relações Internacionais.
O quarto debate teórico surge na década de 80, e é marcado
pelo confronto das ideias positivistas contra as pós-positivistas. Por
positivistas entendem-se os racionalistas, representantes das teorias
tradicionais das Relações Internacionais, neorrealismo e neolibera-
lismo. Já os pós-positivistas são representantes de duas novas teorias,
o construtivismo e os pós-modernistas. A variedade intelectual dos
autores do construtivismo, e a própria riqueza dessa teoria, faz com
que uma definição da teoria seja incompleta, não apresentando as
opiniões diferentes e discordantes características de cada autor. No
entanto, nesse trabalho, vamos dar preferência ao construtivismo ela-
borado por Alexander Wendt, que tenta buscar uma ponte entre as
teorias tradicionais e as ideias pós-modernas, e por isso mesmo, se
torna uma teoria singular. Os pós-modernistas, por sua vez, contes-
tam e “desconstroem” os discursos mais aceitos nas Relações Interna-
cionais, principalmente, a dicotomia anarquia/soberania.
Todas essas contendas teóricas acompanharam um contexto
histórico. A associação desses contextos ao desenvolvimento de te-
orias, que servissem de ferramentas para a consecução de ações e
legitimação de ideais de interesse nacional, como interesse univer-
sal, foi uma das denúncias feitas pelos pós-positivitas. Para Jackson e
Sorensen (2007), a disciplina de Relações Internacionais evoluiu por
meio de debates, não obstante, eles estarem, fortemente, vinculados
aos seus contextos. Já na visão de Saraiva (2007), não é correto afir-
mar que a disciplina evoluiu por meio desses debates, uma vez que a
história comprova que as teorias foram formuladas para atenderem
interesses políticos, como é o caso do realismo e a lógica da anarquia
internacional no pós-Segunda Guerra Mundial.

56
Foi durante o predomínio dessa lógica citada que aconte-
ceu a Guerra Fria. A queda do muro de Berlim simbolizou o fim
da Guerra Fria e o fim do socialismo. A “vitória” do liberalismo fez
o pensador norte-americano Fukuyama decretar o fim da História.
Segundo o autor, não haveria mais na História da humanidade um
embate dialético, pois o espírito liberal democrático representaria
a ferramenta, para atingir a plenitude do potencial e das aspirações
humanas. E o Estado, para Fukuyama, seria o agente paciente da
dinâmica das relações internacionais do pós-Guerra Fria. No en-
tanto, essa teoria é contestada seguindo uma lógica dialética. A pós-
síntese seria o período atual e teve como marco inicial o 11 de se-
tembro. O ambiente atual da política internacional estaria fincado
em duas grandes contradições: o capitalismo financeiro global de
cunho predatório e desterritorializado, e o choque das civilizações
que potencializa o terrorismo, a insegurança e as assimetrias entre
o centro e a periferia. (CASTRO 2005) Esse é o contexto do quarto
debate, diferenciando-se do famoso primeiro debate, entre realistas
e “idealistas”, devido ao novo cenário das relações internacionais,
que engloba novos temas como a integração entre Estados e os ato-
res transnacionais.
Além dessas considerações iniciais, o trabalho contém mais
três partes. No item dois faz-se uma apresentação do contexto pós-
Guerra Fria e considerações sobre o surgimento de uma nova ordem
mundial. Apontam-se os principais acontecimentos e questões que
são importantes para o momento atual, e pertinentes para o debate.
No item seguinte apresentam-se as principais considerações
sobre o neorrealismo, o neoliberalismo e o construtivismo, teorias
que formam o atual debate teórico na disciplina de Relações Inter-
nacionais. Em cada teoria, consta a análise das suas principais pre-
missas, ficando evidentes os seus pontos conflitantes. E por último, as
considerações sobre as teorias e o atual contexto internacional.
O panorama científico que envolve o trabalho é o de salientar a
importância do surgimento de novas formas de abordagens teóricas,
diante da dinamicidade e imprevisibilidade das relações internacio-
nais. O crescente processo de integração entre as nações, o advento de
atores não estatais, o clamor pela importância dos assuntos ambien-
tais para a agenda global, o terrorismo apátrida e a tentativa de gover-
nos de mudarem a identidade de seus Estados, diante da sociedade

57
internacional, como tenta os EUA com Barack Obama3, são questões
novas e que não se encaixam na dicotomia anarquia/soberania, tão
presente durante a Guerra Fria.
Vale esclarecer, ainda, que o presente trabalho não tem como ob-
jetivo afirmar qual teoria é melhor ou qual irá “vencer o debate”, mas
sim mostrar o quanto é importante, para a disciplina, a contestação de
velhos paradigmas por novos. E por fim, o trabalho não se utiliza da
questão se a disciplina evoluiu ou não por meio de debates, mas da
importância do contexto das relações internacionais sobre o debate.

2. O CENÁRIO INTERNACIONAL APÓS A GUERRA FRIA


Antes da Primeira Guerra Mundial, a ordem internacional era
multipolar e os pratos e pesos da balança de poder estavam concen-
trados na Europa. No final da Segunda Guerra Mundial, menos de
meio século depois, a ordem internacional transformou-se em bipo-
lar. EUA e URSS formavam os novos pratos da balança de poder, e a
Europa estava enfraquecida com o recém término do conflito mun-
dial. Com a queda do Muro de Berlim, rapidamente, a maioria dos
especialistas anunciou o início de uma nova ordem unipolar, coman-
dada pelos EUA. A aceitação desse argumento durou pouco, tanto
devido ao seu reducionismo analítico, quanto aos novos problemas e
conflitos regionais, que surgiram na década de 90. Vidigal (2006) cita,
dentre esses conflitos, a Guerra da Bósnia-Herzegovina (1992-1995),
os testes nucleares da França em 1996, a crise financeira Asiática em
1997 e a ingerência da OTAN em Kosovo (1997-1999). Na primeira
década do século XX, temos o famigerado 11 de setembro de 2001,
seguido da invasão americana no Afeganistão em 2002, a Guerra no
Iraque em 2003, os atentados terroristas na Europa, a acentuação dos
conflitos no oriente médio e mais, recentemente, a crise financeira e
a ameaça do recrudescimento de uma corrida armamentista nuclear.
Além das demais questões que estão no centro de disciplinas como a
geografia, história, sociologia e economia.
Todos esses fatos que permearam e permeiam o mundo das
Relações Internacionais após a Guerra Fria, evidenciam o quão difícil
é conceituar a atual ordem mundial. Hungtington (apud VIDIGAL
2006) fala de uma ordem unimultipolar, onde os EUA dominam no
3 Ver o artigo de Singer (2009). Link disponível nas referências.

58
campo militar e dividem o poder econômico com a União Europeia,
Japão e China. No entanto, esse conceito não é satisfatório, uma vez
que várias questões ficam de fora da análise. A aceleração da globa-
lização, por exemplo, conferiu às grandes empresas transnacionais,
poderes financeiros maiores do que muitos Estados. Portanto, uma
análise da nova ordem mundial, que utiliza somente a noção do Esta-
do unitário e a lógica da anarquia, é reducionista.
A globalização é um dos fenômenos que deve ser analisado
para se entender o atual contexto das relações internacionais. Para
Vidigal (2006 p. 7) “a globalização deve ser compreendida [...] como
um produto da expansão cada vez mais ampliada do capitalismo e da
sociedade de consumo, numa sociedade moldada pelo fetichismo da
mercadoria.” Diante desse conceito, algumas questões são levantadas
sobre o seu efeito na formação de uma ordem mundial. A principal
delas é a respeito do papel do Estado nacional frente à eminência da
economia desterritorializada. O argumento de enfraquecimento do
Estado nação é contestado pelo grande número de Estados que sur-
giram durante a última metade do século XX, e pelas ações desenvol-
vidas pelos Estados para proteger pessoas e indústrias nacionais das
ameaças da interdependia econômica. (VIDIGAL 2006)
Outra característica dessa nova ordem mundial pós-Guerra
Fria é o grande número de processos de integração entre as nações,
sem, contudo, se vislumbrar algum tipo de governança global. O pro-
cesso de integração mais avançado é o da União Europeia, já definida
como uma instituição supranacional. Nos países subdesenvolvidos,
antes denominados de Terceiro Mundo, a integração econômica é
vista como a melhor maneira de projeção internacional. Nesse sen-
tido, destacam-se o Mercado Comum do Sul (MERCOSUL) e a As-
sociação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN). Outra forma de
cooperação também é a chamada cooperação Sul-Sul, envolvendo os
países subdesenvolvidos. (SARAIVA 2007)
Para as grandes potências Europeias, os principais objetivos
são aprofundar ainda mais o processo de integração. Encontram-se
ainda, nesses países, uma forte tendência ao protecionismo econô-
mico e preocupação com a segurança do bloco. As potências da Ásia
voltam-se às para as preocupações internas. Há que se ressaltar a pre-
ocupação dos EUA e do Japão com a importância política e econômi-
ca assumida pela China. (CERVO 2007)

59
Mikhail Gorbachev
No leste europeu as preocupações são sobre a ex-área de in-
fluência da URSS. Os recentes conflitos entre a Rússia e a Geórgia re-
lembram o clima da Guerra Fria e colocam em xeque as tentativas de
aproximação cooperativa do ocidente nesse último país, que ensaiava
uma integração à OTAN.
Diante de tantas questões plurais e com várias origens, Cervo
(2007) chama a atenção da diminuição do prestígio das instituições
internacionais multilaterais como a ONU, o Conselho de Segurança,
o FMI e a Organização Mundial do Comércio. Ao contrário do que
se imaginava, o Estado nação assumiu relevância diante dos novos
temas globalizantes, e as organizações internacionais citadas têm di-
ficuldade em lidar com o alargamento institucional.
No Oriente Médio, os conflitos entre palestinos e israelenses
estão envoltos no estado iraniano, na Síria e no grupo Hizbollah, ins-
talado no sul do Líbano. Em meados de 2006, Israel atacou o grupo
Hizbollah. No início de 2009, Israel iniciou mais uma ofensiva con-
tra a Palestina, com o objetivo de destruir o Hamas. Ambos os fatos
foram condenados no mundo todo, devido à ação desproporcional,
por parte do exército israelense e à morte de civis libaneses e pales-
tinos. Atualmente, Israel mantém o discurso de não aceitar o Hamas

60
na Palestina e continua construindo os assentamentos judaicos na
Cisjordânia. Por sua vez, Hamas e o Hizbollah não reconhecem Israel
como um Estado. O Irã, representado pelo presidente Ahrmadinejad,
desenvolve um programa nuclear defendido como pacífico, mas que
é condenado e hostilizado por Israel.
Todos os acontecimentos expostos nos parágrafos anterio-
res desse item, fazem parte do contexto político mundial dos anos
pós-Guerra Fria. Esses vinte anos, desde a queda do muro de Berlim
são vistos por alguns especialistas como um período de transição
para uma nova ordem global, mais definida e clara. Outros analis-
tas definem o período como uma multipolar ou apolar. Há aqueles
ainda que falam de uma pax americana. Para Saraiva (2007), não se
deve reduzir o período citado à ideia de transição ou de uma nova
ordem mundial, excluindo as características do presente. No entan-
to, a natureza das relações internacionais ainda guarda caracterís-
ticas dos anos da Guerra Fria, com as peculiaridades do período
atual, o que evidenciaria uma época de transição para uma nova
ordem global.
Essa transição acompanha as mudanças nos paradigmas das
Relações Internacionais e a demanda por análises mais abrangentes
e explicativas. Nos itens seguintes, adentramos no chamado quarto
debate teórico das relações internacionais. Um debate definido como
epistemológico, onde se confrontam as teorias tradicionais da dis-
ciplina que se consagraram durante a Guerra Fria e as teorias pós-
positivistas, aqui somente o construtivismo de Wendt, que surgiu na
década de 80 e assumiu relevância acadêmica nos anos 90.

3. O QUARTO DEBATE TEÓRICO:


PRINCIPAIS PREMISSAS DAS TEORIAS
Na apresentação de cada teoria, inicia-se com as ideias histó-
ricas e os seus primeiros pensadores até as suas configurações atuais.
Isso é mais evidente no caso do realismo e liberalismo.

3.1. REALISMO/NEORREALISMO
Três pensadores são, normalmente, citados quando se discute
o início do realismo como uma teoria social e das relações interna-
cionais. Tucídides (471 a.C. – 400 a.C.), Maquiavel (1469 – 1527) e
Hobbes (1588 – 1679).

61
O historiador grego Tucídides na sua obra “História da Guerra
do Peloponeso” faz uma análise do comportamento humano e das
cidades no conflito entre Atenas e Esparta, que ocorreu de 431 a.C
a 404 a.C. Para Sarfati (p. 63, 2005), a descrição de Tucídides sobre a
guerra compreendeu “todos os elementos das relações internacionais
modernas”. O historiador escreveu sobre a natureza das guerras, as
ambições de uma sociedade perante outra, o pragmatismo das alian-
ças, a forma como o poder é usado para subjugar outras “cidades”, o
caráter egoísta da natureza humana, etc.
De Maquiavel, o realismo moderno extrai o pragmatismo para
a análise e condução da política externa. A centralidade do poder do
Estado, onde o príncipe deve agir no intuito de defender seus interes-
ses e obter o máximo possível de vantagens externas, é definido por
Maquiavel como um misto de comportamento entre a natureza sábia
da raposa e o poder do leão. Nesse célebre exemplo, o pensador italia-
no descreve o mundo como um lugar perigoso, logo cabe ao príncipe
(Estado) ser leão para se impor e sobreviver, e ser raposa para reco-
nhecer ameaças e oportunidades.
É de Tomas Hobbes que o realismo extrai o conceito de “anar-
quia internacional”. O ambiente das relações internacionais entre as
nações seria análogo ao estado de natureza descrito por Hobbes, an-
tes da elaboração do Estado para regular as relações entre os indi-
víduos. Sem o poder do Estado, o convívio ordenado seria inviável,
por isso o homem, como lobo do próprio homem, seria a maneira
mais racional de convívio. Com o advento do Estado, através de um
contrato social, os indivíduos abrem mão da liberdade do estado de
natureza e se submetem a um poder soberano, que regula as suas
ações. Assim, para Hobbes, acontece a transição do “estado de guerra
de todos contra todos” para o “estado civil”. No sistema internacional
não há um poder supranacional e nem os países estão dispostos a
abrirem mão da liberdade de sua política externa, para construírem
e se submeterem a tal poder. Sem um governo de segurança global,
as relações internacionais são regidas pela lógica do poder e a guerra
sempre está em um estágio iminente.
Esses três pensadores formularam os conceitos que, trabalha-
dos pelos pensadores do século XX, formaram o Realismo moderno.
Dentre os principais realistas do século XX estão Carr, Morgenthau
e Waltz.

62
O diplomata britânico Edward Hallet Carr é frequentemente
citado na literatura de Relações Internacionais como o primeiro au-
tor do século XX, a enquadrar as ideias realistas e liberalistas da épo-
ca na forma de um debate teórico. Seu livro, intitulado “Vinte Anos de
Crise 1919 – 1939”, representa a síntese do combate às ideias liberais
pelos realistas. O prefácio da primeira edição data de 30 de setembro
de 1939, já no início da guerra na Europa, e, nele, Carr já expõe críti-
cas à conferência de paz de 1919 e ao Tratado de Versalhes.
Mas foi com o livro “A Política entre as Nações” de Hans Mor-
genthau, que o realismo assumiu o status de principal teoria das Rela-
ções Internacionais. Uma das grandes características do pensamento
de Morgenthau é a definição do espaço político internacional como
uma arena onde os Estados travam batalhas políticas e militares, para
a manutenção ou destruição do status quo. Desse “axioma” são extra-
ídos os conceitos de imperialismo, diplomacia e equilíbrio de poder.
Keneth Waltz, em 1979, publicou um livro que, segundo No-
gueira e Messari (2005), revolucionou a disciplina de Relações Inter-
nacionais. No livro “Teoria das Relações Internacionais”, Waltz defende
a construção de uma teoria sistêmica para a disciplina, fundamentada
por um alto rigor científico. Para Waltz, há dois elementos essenciais de
uma teoria sistêmica das relações internacionais: “a estrutura do sis-
tema e as suas unidades em interação” (2001 p. 140). Waltz defende a
predominância da estrutura sobre as unidades ou agentes. O autor, por
exemplo, ao considerar que, nas relações entre os estados, prevalece a
lógica da auto-ajuda, afirmou que, “em qualquer sistema de auto-ajuda,
as unidades preocupam-se com a sua sobrevivência, e a preocupação
condiciona o seu comportamento4” (p. 147). A teoria proposta por
Waltz é conhecida como Neorrealismo ou Behavirionismo.

3.2. LIBERALISMO/NEOLIBERALISMO
O pensamento da tradição liberal está contido em um vasto
número de pensadores, movimentos filosóficos e sociais. O pensa-
mento idealista da tradição liberal está alicerçado em alguns temas
cruciais para o seu entendimento: valores universais, cooperação
através do livre comércio, instituições democráticas e, sobretudo, a
liberdade do indivíduo.

4 Grifo nosso.

63
Kant é um dos principais pensadores. Ele discorreu sobre va-
lores universais inatos (o imperativo categórico) e sobre governos
republicanos, fundados na liberdade democrática dos indivíduos. Na
sua obra “A Paz Perpétua”, ele afirmou que nações republicanas, ao se
relacionarem com outras nações republicanas, iriam, de forma pro-
gressiva, construir um ambiente pacífico e ad eternum. As repúblicas
seriam baseadas na liberdade dos indivíduos, e estes, usando a razão
(o imperativo categórico), não escolheriam ir à guerra. Kant afirmava
que a guerra era “o esporte dos reis” (KANT, apud NOGUEIRA; MES-
SARI, 2005, p. 61).
A visão do progresso humano baseado em Estados-nações de-
mocráticos nos moldes do liberalismo, que adotem o livre comércio
e que se submetam a regras de instituições internacionais, foi o ar-
gumento principal da teoria liberal para as relações internacionais
no entre guerras. Esse argumento foi proposto pelo presidente ame-
ricano Wilson, após a Primeira Guerra Mundial, e foi sobre esse ar-
gumento que se tentaram construir e se sustentar a Liga das Nações.
Wilson deu suporte ao liberalismo democrático como uma teoria que
deveria revolucionar as relações internacionais ao facilitar as relações
cordiais entre os países. (KISSINGER, 2001)
Um ponto importante, e que distingue os liberais dos realistas,
é a noção positiva sobre a natureza humana. Não obstante, o reconhe-
cimento de que o homem é competitivo e egoísta, os liberais idealis-
tas afirmam que os interesses comuns existentes, quando governados
pela razão humana e por regras, podem gerar o progresso social. (JA-
CKSON; SORENSEN, 2007). O exemplo mais conhecido sobre este
pensamento seria a teoria da “Mão Invisível” de Adam Smith. (NO-
GUEIRA; MESSARI, 2005)
Os liberais partem do princípio de que os Estados são racionais,
buscam ganhos absolutos, são movidos pelo auto-interesse e a coope-
ração e o conflito são aparatos lógicos. Nesse sentido, a realidade da
política internacional seria análoga à política de mercado. Por isso é
conferido às Organizações Internacionais (OIs), o papel de superar a
dicotomia entre a cooperação possível e o conflito iminente. Para os
liberais, as instituições internacionais podem mudar as relações entre
os Estados, na qual a interdependência econômica favoreceria ao es-
tabelecimento de uma diplomacia aberta. Esse neoliberalismo institu-
cionalista seria o corolário do processo econômico liberal em escala

64
mundial, haveria um processo de transnacionalização e consideração
das OIs perante os Estados. Elas teriam como função principal facilitar
as negociações entre os países, atores não estatais e a sociedade civil de
forma geral. O ambiente internacional seria modificado, e, concomi-
tantemente, as OIs ganhariam a capacidade de constranger o compor-
tamento dos Estados, uma vez que os ambientes internos e externos se
entrelaçam (HERZ; HOFFMANN, 2004).
A justificativa da corrente liberal para como os Estados, racio-
nais e egocêntricos, adotariam uma atitude cooperativa no cenário
mundial, está baseada no famigerado exemplo da Teoria dos jogos
cooperativos. Nesse caso, a frequente repetição das negociações in-
ternacionais – entre egoístas e egoístas –, levaria os Estados racio-
nais a escolherem sempre a melhor alternativa para todos, já que o
inverso se tornaria irracional, uma vez que todos os Estados também
adotariam uma mesma posição egoísta. As duas principais críticas
à perspectiva liberal para a política internacional referem-se à justi-
ficativa supramencionada. Os liberais não estariam reconhecendo as
relações de poder das relações internacionais e em nenhum momen-
to vislumbram uma perspectiva ética (HERZ; HOFFMANN, 2004).

3.3. CONSTRUTIVISMO
O construtivismo, como teoria para a disciplina de Relações In-
ternacionais, surgiu no final dos anos de 1980. Duas publicações mar-
cam o início da teoria: World of our making – Rules and Rule in Social
Theory and International Relations, título do livro de Nicholas Onuf, e
o famoso artigo de Alexander Wendt, de 1992, “Anarchy is What Sta-
tes Make of it”. (MESSARI; NOGUEIRA, 2005). A teoria se desenvolveu
durante a década de 90 e tornou-se um contraponto, tanto das teorias
tradicionais positivistas, neorrealismo e neoliberalismo.
Em linhas introdutórias, a teoria construtivista apresenta as
seguintes premissas básicas: o mundo em que vivemos é socialmen-
te construído junto com nossos interesses e identidades, inclusive a
anarquia internacional e o interesse nacional; os agentes têm a capa-
cidade de modificar o mundo no qual vivem, mas agentes e estrutura
são co-constituídos. Nas relações internacionais, os construtivistas
conferem precedência ao papel das ideias, dos valores, das regras que
compõem o discurso, da interação de diferentes culturas e tudo que é
inerente ao mundo social. (MESSARI; NOGUEIRA, 2005)

65
O construtivismo, desta forma, possui, atualmente, um papel
importante no quarto debate das relações internacionais, ao trazer
para a discussão a célebre dicotomia sociológica, e das relações inter-
nacionais, agente-estrutura.
Wendt entra nas discussões das Relações Internacionais abor-
dando o tema agente-estrutura com seu artigo “The Agent-Structure
Problem in International State”, de 1986, somente, sete anos depois
do lançamento do famoso livro de Waltz, Teoria das Relações Inter-
nacionais, que defendia a antecedência ontológica das condições es-
truturais do sistema internacional. A novidade em Wendt era o uso
da Teoria Social na sua argumentação da co-constituição de agentes
e estrutura. (MESSARI; NOGUEIRA, 2005)
A principal crítica de Wendt, já no seu artigo mais famoso,
“Anarchy is What States Make of it”, ao pensamento racionalista, é a
explicação “reducionista” para a premissa dos princípios de auto-ajuda
e da Política de Poder nas relações internacionais, definidos de modo
exógeno pela estrutura do sistema. Para Wendt, o argumento oferece
pouca explicação sobre o comportamento dos Estados. Wendt discute
o pensamento neorrealista formulado por Waltz, que afirma ser a anar-
quia o princípio ordenador das relações internacionais. A estrutura da
política, para Waltz, é definida em três dimensões, Wendt contesta duas
no artigo: o regulamento de princípios e a distribuição das capacidades.
Usando o construtivismo, Wendt afirma que os Estados agem
de acordo com os seus objetivos. A anarquia e a distribuição de poder
podem influenciar as relações entre os Estados, mas para Wendt, é o
processo intersubjetivo de interação e expectativas que irá definir a con-
cepção que um Estado possui do outro. O objetivo de um Estado, no
relacionamento com outro Estado, não pode ser pré-definido, sem antes
acontecer o processo de interação. Por isso, Wendt afirma: “It is colective
meanings that constitutive the structures which organize our actions”.
Para Wendt “identities are the basis of interestes”. Numa clara crítica ao
estruturalismo, Wendt afirma que os atores não carregam uma lista de
interesses, independentemente, do contexto social em que atuam. Dian-
te de situações inéditas, o ator, segundo Wendt, primeiro interpreta o
significado da situação, e depois define o seu interesse e suas ações.
Sobre o papel das instituições, Wendt afirma que elas são constru-
ídas pelos atores em um processo coletivo, e que o processo de institucio-
nalização e internalização de novas identidades e interesses é cognitivo.

66
Para esclarecer o seu argumento de que a auto-ajuda é uma
instituição, dentre outras que são construídas sob a anarquia, Wendt
ilustra três sistemas de segurança contínuos nas relações internacio-
nais: o competitivo, o individualista e o de cooperação. O sistema de
segurança competitivo é caracterizado pela identificação negativa
entre os Estados e não há possibilidade de ações coletivas, pois Esta-
dos buscam vantagens em detrimento de outros Estados. No sistema
de segurança individualista, os Estados continuam egoístas e preocu-
pados em garantir a segurança diante de outros Estados, mas a ação
coletiva é possível, porque os Estados cooperam com o objetivo de
conseguirem vantagens mútuas. Por último, há o sistema de segu-
rança cooperativo, no qual os Estados se identificam, positivamente,
a segurança de cada um equivale à segurança de todos e os interesses
nacionais são também os internacionais. Dados os exemplos, Wendt
afirma que a instituição auto-ajuda (o sistema competitivo) é só um
tipo de anarquia, uma vez que ela só tem significado para aqueles Es-
tados que compartilham da mesma concepção negativa de anarquia.
Para um autor o qual afirma que agentes e estrutura são co-
constituídos, a afirmação de que os Estados podem modificar a anar-
quia, fez com que o construtivismo de Wendt fosse criticado por ser
centrado no Estado. Em 1994, em um novo artigo, “Collective Indentify
Formation and the International States”, Wendt traz mais um argumen-
to novo para o debate teórico das Relações Internacionais. Para No-
gueira e Messari, Wendt “acabou fechando um ciclo” (p. 176, 2005) ao
argumentar que as identidades dos Estados não são predeterminadas,
como defendem as teorias tradicionais, mas são frutos de processos re-
lacionados que podem modificar as identidades coletivas dos Estados
e, por consequência, mudar a lógica da anarquia “hobbesiana”.

4. ANÁLISE DAS TEORIAS FRENTE


AO CONTEXTO ATUAL
Como foi argumentado na introdução desse artigo, cada deba-
te teórico que as teorias das relações internacionais viveram foi vin-
culado aos acontecimentos do contexto.
No atual debate, o construtivismo apresenta uma maior ca-
pacidade de análise devido à sua aproximação com o atual cenário
das relações internacionais e com as principais questões. É o papel de
metateoria do construtivismo, que lhe dá essa vantagem.

67
Wendt contesta a epistemologia estruturalista das relações
internacionais, ao afirmar que anarquia internacional não define
a natureza dos Estados. Segundo o autor, não será a estrutura que
ditará o comportamento egoísta, belicoso ou cooperativo do ator. A
premissa construtivista de que interesses e identidades são cons-
truídos de forma intersubjetiva, é fortemente explorada por Wendt.
Inclusive, a famigerada teoria dos jogos é revista pelo autor. A ponte
entre positivistas e pós-positivistas, que Wendt estabelece como ob-
jetivo construir, é feita com base na ideia de que agente e estrutura
são constituídos mutuamente. Wendt chama isso de estruturacio-
nismo (estructurationist).
Nesse sentido, Wendt apresenta uma teoria que não impõe pre-
missas estáticas às Relações Internacionais e que não enxerga as inte-
rações entre os Estados de maneira estática. Ao afirmar que, a anarquia
é o que os Estados fazem dela, Wendt apresenta a ponte entre as duas
vertentes supracitadas. A anarquia como a estrutura que prevalece e os
Estados construindo instituições sob ela. É interessante notar que, atu-
almente, os conflitos entre nações são regionais e retóricos, e em outros
casos há harmonia de objetivos resultando em cooperação.
No atual contexto das relações internacionais, com múltiplos
atores, são os Estados que ainda possuem a maior relevância e são
através deles que acontecem as mudanças de ordem. Para Saraiva
(2007), os Estados são os mantenedores da organização socioeconô-
mica e legitimados a agirem de acordo com o seu interesse.
Esse fato confere poder explicativo ao Neorrealismo, mas só
nos casos em que a lógica da auto-ajuda ainda persiste. Para o Neo-
liberalismo também há poder explicativo, mas só nos casos em que a
cooperação econômica não é influenciada por questões políticas ou
de identidades, como é o sucesso cooperativo da Asean. De acordo
com Saraiva (2007), o ambiente da Guerra Fria foi regionalizado. São
nesses ambientes que reside a importância das Teorias Tradicionais.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Procurou-se com esse trabalho contextualizar parte do cha-
mado quarto debate teórico da disciplina de Relações Internacionais.
Fala-se “parte”, porque o quarto debate não se limita às teorias e aos
acontecimentos citados aqui. Mas de uma maneira geral, pode-se

68
afirmar que a fase de transição da ordem mundial influenciou a acei-
tação acadêmica das perspectivas construtivistas e as críticas das teo-
rias tradicionais. A principal crítica é a de que essas teorias perderam
o poder explicativo e abrangente, com os novos temas e questões que
surgiram após a queda do muro de Berlim.
No entanto, as teorias das Relações Internacionais são, diaria-
mente, testadas pelos acontecimentos imprevisíveis do início do sé-
culo XXI. O acompanhamento de novos temas e paradigmas, como as
ideias pós-modernas, a questão de gênero, os problemas dos Estados
falidos, entre outras formas de abordagem às relações internacionais,
ampliariam os resultados aqui obtidos.

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69
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WALTZ, Kenneth N.. Teoria das relações internacionais. Lisboa: Gradiva,
2002

70
VINTE ANOS DE UNIF I C AÇ ÃO
NO LESTE ALE M Ã O

Gustavo Gerlach da Silva Ziemath1


Antônio M. Elíbio Júnior2

RESUMO: O presente trabalho abordará as consequências da reu-


nificação alemã para os moradores do leste do país, região, até en-
tão, sob controle da União Soviética. O objetivo maior da pesquisa é
mostrar as mudanças decorrentes do fim da era socialista, especial-
mente, na cidade de Hoyerswerda, ao norte do estado da Saxônia.
Além disso, o texto retratará como a sociedade lida ainda hoje com
a nova estrutura geopolítica (migração, investimentos, turismo). O
trabalho está dividido em partes que retratam o passado, o presente
e a busca por um futuro promissor – ainda que difícil - para essa
região e cidade que tiveram que se adaptar, rapidamente, ao capi-
talismo neoliberal. Fica evidente a dificuldade em reestruturar eco-
nomica e socialmente uma região, onde os índices de desemprego
estão acima da média nacional e o êxodo populacional é grande.
Contudo, um planejamento sustentável envolvendo o turismo po-
deria ser a saída para uma recuperação.

PALAVRAS-CHAVE: Hoyerswerda, República Democrática Alemã, Leste alemão.

1 Graduando em Relações Internacionais na Universidade Federal de Santa


Catarina (UFSC)
2 Doutor em História Social – UNICAMP. Professor dos Cursos de Relações
Internacionais da UNISUL e da UFSC.

71
1. INTRODUÇÃO
O período entre 1945 e 1990 foi tão importante para a políti-
ca, economia e sociedade, que ainda mostra suas marcas em mui-
tas regiões do planeta, inclusive em países desenvolvidos como a
Alemanha3. Propõe-se, então, um estudo sobre as consequências da
administração do governo soviético no leste alemão e como a re-
gião vem se reestruturando neste novo mundo interdependente4. O
presente texto dá um enfoque maior à cidade de Hoyerswerda, uma
das cidades mais atingidas com o fim do antigo regime, no início
dos anos 90. E, o que o corpo administrativo do município propõe,
hoje, como solução para manter viva a economia local e para a ci-
dade poder voltar a prosperar.

2. O RECOMEÇO
É evidente que os cinco estados da região leste da Alemanha
(Turíngia, Saxônia-Anhalt, Saxônia, Brandemburgo, Pomerânia)
passaram por enormes transformações políticas, sociais (consumo,
transporte, educação) e econômicas, a partir da reunificação. Inicial-
mente, a região dividida em 15 distritos na RDA, agora voltava à sua
divisão política anterior à Segunda Guerra Mundial: 5 estados au-
tônomos, membros da União. Além disso, a população local passou
a viver sob um regime, verdadeiramente democrático, no qual a ex-
pressão de opinião e a reestruturação de organizações, como a igreja,
se fizeram presentes.
Sob o ponto de vista social, além da liberdade civil até en-
tão restringida e reprimida por órgãos do governo, como a stasi,
a população presenciou a chegada de uma enorme quantidade de
produtos. A variedade de mercadorias que o capitalismo trouxe
consigo era desconhecida da população, que tinha acesso a muitos
produtos iguais aos vendidos no ocidente, porém, sem a diversi-
dade de marcas lá presente. Outras mudanças socias também fo-
ram rapidamente assimiladas, como o sistema educacional que foi
unificado na Alemanha toda, seguindo os padrões da República

3 Segundo dados do FMI, o PIB alemão, em abril de 2008, de 3,322.147 Bilhões


de dólares era o quarto maior do mundo.
4 Sobre o fim do socialismo real ver: HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos: O
Breve século XX – 1914-1990. Cia. das Letras: São Paulo

72
Federativa Alemã (RFA). Também, na área dos transportes, houve
uma grande mudança: os carros na RDA deviam ser encomendados
com uma antecedência prévia de anos, além de custarem uma boa
quantia de dinheiro e serem obsoletos. Com a chegada das grandes
montadoras, a frota de veículos se renovou, assim como as estradas,
que precisaram ser ampliadas e reformadas para acompanhar as
mudanças que vinham ocorrendo.
No que compete às alterações econômicas, essas foram, pro-
vavelmente, as mais intensas e que mais refletiram no dia-a-dia da
população de toda a Alemanha. No curto e médio prazo, as mudanças
econômicas trouxeram problemas sociais, como a migração em mas-
sa, o desemprego e a escassez de mão-de-obra qualificada.
Dados do “Instituto Berlin para o Desenvolvimento da Popu-
lação” mostram que o número de emigrantes, dos “novos estados”
para os “velhos estados”, teve seu pico em 1991, quando mais de 160
milhões de alemães migraram para a RFA. O principal motivo para
essa migração em massa inicial, não era necessariamente econômi-

73
co, mas sim social, pois o principal fator desse êxodo foi o medo que
a população tinha de que o antigo regime voltasse a vigorar nos cin-
co novos estados. Contudo, o índice de migração permaneceu alto
nos últimos vinte anos, fortemente, influenciado pela falta de traba-
lho na região, devido ao fim das empresas estatais do antigo regime
que empregavam grande parte da mão de obra no setor secundário.
Vale ressaltar outro dado da instituição, o qual mostra que, no ano
de 2005, 2,5% das mulheres jovens (18-25anos) se mudaram para o
oeste contra 1,5% dos homensi.
No que se refere ao desemprego, a situação é grave. A Figura 1
nos mostra a disparidade ainda existente nos índices de desemprego
entre os velhos e os novos estados alemães. Isso ocorre, entre outros
motivos, porque os jovens das pequenas e médias cidades, que saem
para estudar nos grandes centros do país, e acabam por ficar nesses
locais (que estão na sua maioria no oeste alemão). A ausência da mão
de obra jovem e qualificada na região, não permite a implantação de
muitas empresas que teriam interesse em investir nesses novos esta-
dos, onde o custo de vida é mais barato e os salários são claramente
inferiores. Além disso, uma infra-estrutura inferior à oferecida no
oeste é outro fator agravante que, associado a um envelhecimento da
população não qualificada, que fica nos novos estados, torna difícil o
desenvolvimento econômico regional.
Isso tudo se associa à tendência européia de encolhimento da
população: segundo dados do instituto, a idade média das mães no
leste subiu cerca de cinco anos, enquanto no oeste é três, além disso,
a média de filhos por mulher é inferior no leste. Acrescenta-se ainda
o dado alarmante da instituição, de que a maioria dos jovens, que se
mudam para o oeste, são mulheres.
Assim, o envelhecimento da população, a baixa taxa de natali-
dade, o alto índice de migração devido, inicialmente, a instabilidade
político-social e hoje o desemprego elevado, comprovam os dados
levantados pelo instituto: dos cerca de 82 milhões de habitantes do
país, apenas 16,6 milhões estão nessa área que ocupa boa parte do
território nacional, mais alarmante é saber que essa população é li-
geiramente inferior à população da RDA em 1989 (16,7milhões), e
que hoje vivem aproximadamente 4 milhões de pessoas em Berlim,
ou seja, um quarto do total de habitantes da antiga RDA.

74
Figura 1 - nível de desemprego nos estados e distritos alemães
Fonte: Agência nacional do trabalho, do site: <http://www.mittelstandsblog.de/
wp-content/uploads/2009/03/815_arbeitslosenquote_nach_kreisen.png>
acessado em: 13/05/2009.

2. ASPECTOS ATUAIS DA VIDA E


ECONOMIA NO LESTE ALEMÃO
Nesta seção far-se-á uma análise de como se vive, de manei-
ra geral, nos cinco novos estados da Alemanha. Vale lembrar que tal
análise não é estrutural, ou seja, não é exclusiva, nem única e deve
variar conforme a região. O modo de vida nos grandes centros do
leste, como Berlin, Leipzig e Dresden não é muito diferente do levado
nos grandes centros do oeste alemão. Contudo, ainda se vive de forma
muito diferente nas pequenas e médias cidades da antiga RDA. Para
demostrar tal variação social econômica e política em uma cidade do

75
leste, o texto presente fará uma apresentação de uma cidade média
ao norte da saxônia: Hoyerswerda. Essa cidade, talvez, mostre mais
claramente as mudanças que ocorreram nesses novos estados, pois
foi uma das localidades que mais sofreu com as transformações eco-
nômicas e sociais expostas na seção anterior.
Hoyerswerda sempre foi uma pequena cidade ao norte do es-
tado da saxônia, no extremo leste alemão. Porém, com a ruptura da
unidade alemã, na década de 1950, vários novos projetos surgiram
para a região. Entre eles, estava o de criar-se um complexo termoelé-
trico nas proximidades da cidade. A cidade passaria então a abrigar
os trabalhadores do complexo termoelétrico Schwartze Pumpe. Com
o passar dos anos, a demanda por moradia cresceu enormemente, e
vários prédios modelo foram construídos na cidade, que virou cidade
modelo para o sistema socialista, além de, por certo período da dé-
cada de 70, ser a cidade com a maior taxa de natalidade do país. No
ano de 1981, a cidade alcançou sua maior população: quase 72.000
habitantes que, na sua maioria, dependiam da termoelétrica estatal
para continuar trabalhando e vivendoii.
Com a mudança do regime político e do sistema econômico,
na década de 90, a produção de energia da termoelétrica se reduziu
extremamente, assim como o número de empregados. Aliado a isso,
várias outras empresas da região fecharam ou mudaram seu polo em-
presarial para regiões mais rentáveis. Fora isso, vale ainda lembrar
que muitos habitantes decidiram migrar para o oeste, que apresenta-
va melhores condições de vida.
O quadro se agravou tanto que, segundo dados da revista the
economist e do Estado da Saxônia, a cidade tem hoje um índice de
desemprego de 22,3%, além de ser a cidade com maior concentração
de idosos no estado, uma das maiores concentrações do país e de, ano
após ano, notar a população emigrar. Segundo dados da administra-
ção local, a cidade modelo de 40 anos atrás viu a população diminuir
em mais de 35%, de 1988 até os dias atuaisiii. Hoje, como pode ser
visto nas Figuras 1 e 3, a população vê os complexos, antes cheios de
crianças e lojas, serem demolidos e, em seu lugar, ficar apenas um
grande espaço vazio.
Tal quadro não é peculiar somente a Hoyerswerda. Muitas re-
giões que durante o regime socialista tiveram um grande desenvolvi-
mento socioeconômico devido a implantação de empresas estatais nas

76
redondezas, sofreram com um grande fluxo emigratório e altas taxas
de desemprego após 1989, como por exemplo, Zwickau e Plauen.
Em contra partida, existem algumas excessões a esse quadro
de decrescimento socio-econômico, praticamente, generalizado nas
cidades do leste alemão: a cidade de Potsdam, capital do estado de
Brandemburgo, situada ao lado de Berlim, tem hoje a maior popu-
lação de sua história. Muito embora deva levar-se em conta que tal
crescimento ocorre devido à proximidade com a capital nacional e
às melhorias no sistema de trasporte e rodoviário, que permite o mo-
vimento pendular à capital, a cidade tem o mérito de ter usado os
incentivos vindos diretamente da União Européia (UE) e da nação,
em prol de uma melhor qualidade de vida da região. Tais melhorias
se deram, inicialmente, em regiões turísticas, como o centro antigo
e o parque, onde estão os castelos dos antigos reis da Prússia. Assim,
a cidade voltou a ser um forte atrativo turístico, alterou e aumentou
suas fontes de arrecadação de verba para poder investir em melho-
rias para a população. Como exemplo, segundo dados da administra-
ção localiv, a rede hoteleira da cidade aumentou em 120% de 1996 a
2006, e o número de turistas que pernoitaram na cidade, no mesmo
período, aumentou em 230%.
Faz-se necessário também descrever a importância do auxílio
financeiro que o estado alemão e a UE concederam e ainda conce-
dem aos novos estados. Desde a reunificação, foram tomadas várias
medidas financeiras em nome da diminuição das diferenças entre,
até então duas Alemanhas: incentivo a reconstrução de moradias e
monumentos, isenção de tarifas, reunificação monetária, e entre ou-
tras, várias medidas que descapitalizaram, em parte, os estados ve-
lhos e causaram e, ainda causam desconforto na sociedade em geral.
Contudo, segundo noticiado recentemente pelo governo, o auxílio à
reestruturação do leste tente a diminuir e acabar nos próximos anos,
por exemplo, a subvenção à reconstrução de companias, irá diminuir
dos atuais 10% para 2,5% em 2014v.
Não seria possível analisar a atual situação dos novos estados
alemães, sem considerar os movimentos migratórios. Na verdade,
os grandes centros dos novos estados, principalmente, a capital Ber-
lim, são hoje destino de uma quantidade de imigrantes do mundo
todo, exatamente, como ocorre em grandes cidades do oeste. Berlim,
por exemplo, possui a maior comunidade turca do país e a presen-

77
ça destes, segundo dados da cidadevi, tem aumentado ano após ano.
Contudo, existem cidades onde a imigração estrangeira passa quase
despercebida, Hoyerswerda é um exemplo claro: a cidade ficou co-
nhecida na Alemanha toda, por ter um grupo neonazista muito ativo,
o qual incendiou a moradia de exilados estrangeiros que habitavam
a cidade e provocou um êxodo de vários imigrantes não alemães, que
moravam na região. A cidade hoje ainda convive com o mesmo gru-
po, o qual desde então, promove manifestações pacíficas, e o número
de imigrantes - na maioria do Leste Europeu e Turquia – aumentou,
porém de maneira insignificante para a economia local.

Figura 2 - Demolição de um complexo habitacional


Fonte: <http://www.werkstatt-stadt.de/de/suche/?kategorie=massnahmen/
stadtumbau> Acessado em: 15/05/2009

78
3. O FUTURO: UMA GAMA DE POSSIBILIDADES

Quando se analisa os dados socioeconômicos de regiões mais


afastadas das metrópoles dos estados novos, é difícil perceber, hoje,
alguma melhoria significativa que possa garantir um futuro próspero
para a região. As grandes cidades já foram reincorporadas ao sistema
capitalista internacional, e já fazem parte do mundo, extremamen-
te, globalizado das multinacionais e da interdependência. Mas, ao se
afastar da cidade grande, a situação se altera de maneira sutil: a popu-
lação vive sim em um mundo globalizado, capitalista, internacional.
Todavia, alguém que analise, de maneira externa a situação, não per-
ceberá isso. Faz-se necessário, então, perceber os planos que a região
tem para o futuro, para assim, ver que a cabeça das pessoas e os ideais
regionais já estão abertos ao mundo capitalistas.
Ao se parar para estudar os projetos regionais atuais, pode-se
perceber uma vasta quantidade de ideias, objetivos e oportunidades.
A região, como dito anteriormente, está aberta a investidores e possui
hoje uma boa infra-estrutura e ainda um custo de vida relativamen-
te baixo. E de se esperar, que aos poucos os investidores se sintam
seguros e passem a aumentar o capital aplicado na região, e é o que
vem acontecendo. Grandes companhias já reestruturam a economia
da região em geral, como é o caso da Vatenfall, quinta maior empresa
de energia da Europa.
Os exemplos possíveis de serem apresentados são diversos, de
shopping centers em regiões, onde há vinte anos ainda se encontra-
va resquícios da 2ª Grande Guerra, até a instalação de companhias
transnacionais de software, em locais nos quais, o computador era
produzido, exclusivamente, por subsidiárias do estado e obsoleto, se
comparado ao produzido no mundo capitalista.
Entretanto, o exemplo que mais chama a atenção pela sua pecu-
liaridade é o da região onde fica a cidade de Hoyerswerda. A implan-
tação de uma termoelétrica aconteceu devido à presença de grande
quantidade de carvão nas próximidades. A retirada desse combustível
fóssil foi feita em larga escala pelo estado, e hoje, é efetuada por uma
empresa sueca. A consequência maior disso, além daquela já mencio-
nada na seção anterior, foi a criação de enormes buracos que perma-
neceram até, recentemente, sem utilidade. Surge, então a ideia, de fazer
desses buracos quilométricos, lagos artificiais. A ideia do projeto lausit-

79
zer seeland (ver Figura 3) é construir o maior complexo de lagos artifi-
ciais do mundo e interligalos por mais de 500 km em ciclovias, além de
fazer canais, pelos quais pequenos barcos possam passar de um lago a
outro. Além disso, vários projetos auxiliares servem para atrair os mais
diversos tipos de turistas: hotéis flutuantes, wakeboarding, campos de
golfe e entre outras atrações. O projeto engloba, assim, a região próxima
a Hoyerswerda, estando a cidade numa posição ideal para torná-la cen-
tro desse complexo aquático. Por meio dessa oportunidade de turismo
internacional, a cidade e as redondezas, veem uma luz para um futuro
próspero. Tal projeto seria irrealizável há vinte anos, quando os habi-
tantes da região não tinham sequer acesso às notícias internacionais e
fontes de renda, como o turismo, não eram as mais importante para a
maioria das localidades.
No entanto, a cidade apresenta, ainda, problemas quanto à falta
de emprego e de mão de obra qualificada. Assim, são de suma im-
portância os projetos de criação de empresas do setor tecnológico.
Somente com a implantação de alguma compania, que demandasse
mão-de-obra avançada, a cidade poderia pensar em criar uma escola
de ensino superior ou uma universidade, para assim, atrair morado-
res e voltar a ser um polo de imigração.

Figura 3 - Complexo de lagos artificiais – Na imagem, parte dos lagos


artificiais que estão sendo construidos e, nas fotos menores, as duas
grandes fontes de energia da região: termoelétrica e eólica.
Fonte: <http://www.energieregion-seenland.de/images/Lausitzer-Seenland.jpg>
Acessado em: 16/05/09

80
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sob a ótica internacionalista, os cinco novos estados membros
da RFA passam ainda hoje, depois de 20 anos de reunificação, por
transformações econômicas sociais e políticas. Adaptar-se a um siste-
ma diferente daquele vigente por cerca de 40 anos, requer mudanças
consideráveis, seja por parte da população ou por parte das institui-
ções. A análise que pode ser feita sob a ótica das Relações Interna-
cionais, é que a região está pronta para receber os investimentos, os
quais ocorreram na Alemanha capitalista na década de 50. Contudo,
se considerarmos a situação contemporânea, fica claro que não será
tão fácil e rápido desenvolver economicamente a região, como se fez
no pós-guerra, quando a região era o centro das atenções internacio-
nais. A competição, por mercado com países periféricos, coloca em
cheque, não somente, o leste alemão, como também o leste europeu.
Essas últimas regiões apresentam desvantagens, como o custo de
vida, porém podem garantir uma excelente mão-de-obra e uma esta-
bilidade política que não está sempre presente naqueles.
O turismo pode ser outra peça crucial para a região, no aspec-
to que atrairá os olhos do mundo, para esta que foi uma área muito
sombria e desconhecida, na segunda metade do século passado, pe-
ríodo no qual emergiram as grandes empresas transnacionais, que
fizeram a periferia poder realizar uma tardia revolução industrial e
começar a fazer parte do sistema internacional.
Resta, então, esperar para ver se os cinco novos estados, tão di-
ferentes do oeste, há vinte anos atrás, e hoje, tão globalizados quanto,
poderão suprir os problemas e deixar de ser o primo pobre, na grande
potência global, a Alemanha.

i <http://www.berlin-institut.org/newsletter/wanderung2.jpg> Acessado em:


14/05/2009
ii <http://www.hoyerswerda.de/city_info/webaccessibility/index.cfm?region_
id=185&waid=34&design_id=0&item_id=837359&link_id=213554520&fsize=1>
Acessado em 12/05/2009
iii <http://www.hoyerswerda.de/city_info/webaccessibility/index.cfm?region_
id=185&waid=34&design_id=0&item_id=837359&link_id=213554520&fsize=1>
Acessado em 12/05/2009
iv <http://www.potsdam.de/cms/beitrag/10041342/620526/> Acessado em 16/05/2009
v <http://www.bundestag.de/aktuell/hib/2008/2008_257/01.html >Acessado em
14/05/2009
vi <http://www.statistik-berlin-brandenburg.de/> Acessado em : 14/05/2009

81
5. BIBLIOGRAFIA
Nogueira, J.P; Messari, N. Teoria das Relações Internacionais: correntes e
debates. 3ª.ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005
KOELER, J.O. Stasi: the untold story of the East German secret police.
Berlim: Westview Press, 2000.
S.Pfaff. Exit-voice dynamics and the collapse of East Germany: the cri-
sis of Leninism and the revolution of 1989. [S.l.]: Duke University
Press, 2006
“STILL Troubled” The Economist 27/08-02/09/2005

82
OS R EFLEXOS DO F IM DA GUE RRA
FRIA NA E STRUTURA POL ÍTICO-
ECONÔMIC A DA UNIÃO EUROPE IA

Juliana Wüst Panceri1


RESUMO: Definida pelo cientista político Raymond Aron como um
período em que “a guerra era improvável, mas a paz era impossível”, a
Guerra Fria estabeleceu uma tensa divisão bipolar na esfera interna-
cional entre capitalismo e socialismo. Nesse ambiente, o recém criado
organismo europeu, teve sua história marcada pelo mencionado con-
flito. O fim dessa contenda ideológica representou, portando, grandes
transformações para a referida Organização. Sendo assim, o presente
artigo objetiva investigar as principais transformações ocorridas na
União Europeia em decorrência do fim da Guerra Fria. Para tal fim,
o primeiro capítulo do texto busca posicionar, historicamente, o sur-
gimento e desenvolvimento do bloco europeu durante o período do
conflito. Na sequência, o segundo item investigará a relevância do fim
da referida contenda, no tocante à expansão geográfica da organização
europeia. Por fim, identificar-se-ão as mudanças político-econômicas
da sociedade internacional, decorrentes do termo da Guerra Fria e os
reflexos desta na União Europeia. Utilizando-se, portanto, do método
indutivo de pesquisa, o presente texto encaminhar-se-á dentro do rol
de discussões acadêmicas, vinculadas ao estudo do desenvolvimento
do modelo de integração mais avançado da sociedade internacional.
PALAVRAS-CHAVE: Guerra Fria, União Europeia, globalização.

1 Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade do Vale do Itajaí (2008/2).


* Para confecção do presente trabalho, foram utilizadas algumas obras de origem
estrangeira, cuja tradução, em caráter não oficial, é de responsabilidade da autora.

83
1. INTRODUÇÃO
Na década de 50, após o fim da Segunda Guerra Mundial e sob
os reflexos deste conflito, o mundo presenciou o início de duas histórias
que marcariam o século XX. Em 1951, buscando cimentar a paz no
continente, surgiu com a criação da Comunidade Europeia do Carvão
e do Aço (CECA), o embrião da presente União Europeia (UE). Simul-
taneamente, a instituição e desenvolvimento do que seria a UE, houve
o recrudescimento de um conflito conhecido como Guerra Fria (G.F.).
Definida pelo cientista político Raymond Aron como um pe-
ríodo em que “a guerra era improvável, mas a paz era impossível” 2,
a Guerra Fria estabeleceu uma tensa divisão bipolar na esfera inter-
nacional entre capitalismo e socialismo. Nesse ambiente de relações
engessadas entre os dois grandes blocos, o recém criado organismo
europeu, teve sua história marcada pelo mencionado embate. O fim
desta contenda ideológica representou, portando, grandes transfor-
mações para a referida Organização, na medida em que pôs termo à
divisão da Europa e alterou as configurações de poder no globo.
Com esse cenário, o presente artigo propõe-se a investigar as
principais transformações ocorridas na União Europeia em decorrên-
cia do fim da Guerra Fria. Para tal fim, o primeiro capítulo deste texto
busca posicionar, historicamente, o surgimento e desenvolvimento do
bloco europeu durante o período do conflito. Na sequência, o segundo
item investigará a relevância do fim da referida contenda no tocante à
expansão geográfica da organização europeia. Por fim, identificar-se-ão
as mudanças político-econômicas da sociedade internacional, decor-
rentes do termo da Guerra Fria e os reflexos desta na União Europeia.
Utilizando-se, portanto, do método indutivo de pesquisa, o
presente texto encaminhar-se-á dentro do rol de discussões acadê-
micas, vinculadas ao estudo do desenvolvimento do modelo de inte-
gração mais avançado da sociedade internacional.

2. OS PRIMEIROS MOMENTOS DA GUERRA FRIA E O


SURGIMENTO DO BLOCO EUROPEU.
Com o fim da Segunda guerra Mundial e o advento de duas su-
perpotências no sistema global, teve início um dos períodos mais tensos

2 ARON, Raymond. Paz e Guerra entre as Nações. Brasília: UNB, 1986

84
da história. A partir das conferências pós-guerra3, que definiram os limi-
tes territoriais na Europa, entre os aliados, estruturou-se uma divisão do
globo entre capitalistas, sob a égide do poderio americano, e socialista,
sob o comando soviético. Essa divisão potencializou o início da compe-
tição entre as mencionadas potências, ambas em busca de acréscimo de
poder político, através do aumento de seus arsenais bélicos, conquista de
aliados e propagação de seus antagônicos modos de produção.
A Guerra Fria pode assim ser definida como um período de difí-
ceis relações entre as duas hegemonias da época e seus aliados, em que o
conflito armado era iminente em função do poderio militar, acumulado
por ambos os lados. Conflito este que se ocorresse seria provavelmente
o último, justamente, em função da grande capacidade de destruição
dos dois lados. “Nem paz, nem guerra e sim um equilíbrio de forças en-
tre os dois blocos, baseado no poder de mútua destruição: equilíbrio
do terror.”4 Esse contexto perdurou de 1947, quando do lançamento da
doutrina Trumman, até 1989 com a queda do muro de Berlim5.
Nesse cenário, em plena Guerra Fria, foi iniciado o projeto
integração dos países europeus, que compreende hoje quase que a
totalidade da área geograficamente reconhecida como continente eu-
ropeu. Nessa trajetória de expansão territorial, a organização evoluiu

3 Na conferência de Potsdam, última de uma série de conferências realizadas


entre os vencedores da 2ª G.M. (...) foi consagrada e regulamentada a partilha
do mundo entre comunistas e capitalistas, dando origem aos dois blocos. Na-
quela ocasião, Stálin apresentou a seus aliados de guerra um fato consumado:
o Exército Vermelho havia ocupado a região da Europa situada entre Báltico e
o Mar Negro e não tinha a menor intenção de se retirar dali. Essa região, que
mais tarde seria batizada de Europa do Leste, passaria dessa forma à esfera
de influência soviética. Inaugurava-se, assim, um período histórico que só
seria encerrado em novembro de 1989 com a queda do Muro de Berlin. IN:
JUNIOR, Jose. Arbex. Guerra Fria: terror de Estado, política e cultura. Coleção
Polêmica. São Paulo: Moderna, 1997
4 JUNIOR, J. A. op.cit., p.8.
5 A ordem geopolítica internacional “Bipolar”. Disponível em: <http://pessoal.
educacional.com.br/up/ 4770001/ 1306260/t133.asp>. Acessado em 27 de
maio de 2009. A “Doutrina Truman” foi utilizada para designar o conjunto de
medidas políticas e econômicas assumidas pelos Estados Unidos na sua polí-
tica externa depois de março 1947, data em que o então presidente dos EUA,
Harry Truman, proferiu um violento discurso contra a “ameaça comunista”,
onde salientou o compromisso americano de defender o mundo dos soviéti-
cos. Doutrina Truman. Disponível em: <http://www.infoescola.com/historia/
doutrina-truman/>. Acessado em: 21 de março de 2009

85
para além da originária cooperação econômica, configurando um
ambiente de integração política, jurídica e social, em uma sistemática
de aprofundamento das relações entre os membros do bloco. Nesse
processo, a UE teve suas fronteiras expandidas para os países do Leste
Europeu. Ultrapassando, portanto, o limite que, por décadas, dividi-
ram o “Velho Continente” em realidades sócio-econômicas diferen-
ciadas em virtude da Guerra Fria.
Até alcançar sua presente configuração, a União Europeia per-
correu uma longa trajetória iniciada após o fim da Segunda Guerra
Mundial (2ªG.M.), quando começou a ser estruturada na Europa, uma
organização que viesse a solidificar um ambiente de paz e prosperidade
econômica entre os países vizinhos. A efetiva integração dos Estados
europeus, já presente nas reflexões de vários teóricos6, teve como pe-
dra basilar, a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA)7 em
1951, com a participação da França, Alemanha, Itália, Holanda, Bélgica
e Luxemburgo. Estes mesmos países, em 1957, assinaram o Tratado de
Roma que fundou a Comunidade Econômica Europeia (CEE) e a Co-
munidade Europeia da Energia Atômica (CEEA) 8.
É nesse momento, segundo Odete Maria de Oliveira, que surge
“uma nova Europa: a Europa da integração supranacional”9. Sendo

6 Nesse sentido consultar: MANGAS MARTÍN, A., LIÑÁN NOGUERAS, D. J. Insti-


tuciones y derecho de la Unión Europea. 2. ed. Madrid: McGraw-Hill, 2003, p.33.
7 Este organismo possuía como norte o Plano Schuman, que propunha colocar
sob a gerência de uma alta autoridade comum a utilização dos recursos mine-
rais da região. Procurava-se, com isso, pôr termo à histórica rivalidade franco-
germânica no mencionado setor. O autor da referida estratégia foi o notório
diplomata do governo Frances, Jean Monet. “(...) O plano visava estabelecer
uma trajetória de fusão das soberanias francesa e alemã, rompendo a lógica de
conflito nacional que prevalecera até então. (...) Na ótica de Monnet, o Plano
Schuman representava uma estratégia de política externa, na qual os aspectos
econômicos eram quase que apenas um pretexto”. MAGNOLI, D. União Euro-
péia: história e geopolítica. 5.ed. São Paulo: Moderna, 1995. p. 33.
8 BORCHARDT, K. ABC do Direito Comunitário. Luxemburgo: Publicações
oficiais das Comunidades Européias, 2000. p.8.
9 OLIVEIRA, O. M. de. União Européia: processos de integração e mutação.
Curitiba: Juruá. 2005. p. 96. Nesse sentido, conforme comenta Borchardt, cabe
ressaltar que a União Européia distinguiu-se das demais formas de associa-
ção entre Estados pelo fato de seus membros renunciarem a partes de suas
soberanias em prol da referida organização, conferindo a esta poderes inde-
pendentes e a competência de promulgar atos de igual valia a atos nacionais.
BORCHARDT, op. cit., p.8.

86
assim, inicialmente, vale ressaltar que a integração nem sempre li-
near, com suas etapas de institucionalização e alargamentos, foi per-
meada de objetivos comuns, mas, também, em última instância, por
uma intrincada rede de relações e interesses políticos de cada país.
Com relação a isso, Neill Nugent salienta que:
A UE deve (...) ser vista no contexto das forças que a fizeram e con-
tinuam fazendo. Algumas destas forças servem para aproximar os
Estados. Outras resultaram em progresso através de cooperação e in-
tegração por vezes lenta, difícil e contestada.10

Nesse sentido, importa salientar que uma das forças a influen-


ciar o surgimento e desenvolvimento do bloco europeu foi a Guerra
Fria e o embate ideológico entre as duas superpotências do momento.
No contexto pós 2ª G.M., conforme comenta o historiador
Demétrio Magnoli, o mundo presenciou “(...) a redução do poder
geopolítico dos Estados Europeus (...)”, em um contexto onde “(...)
a Europa transformou-se num subsistema de Estados, inserido no
sistema mundial”11. Nesse novo sistema mundial marcado G.F. “a Eu-
ropa perdeu sua condição de centro do poder internacional”12, sendo
todavia considerada o centro do referido conflito,

10 NUGENT, N. The government and politics of the European Union. 5.ed. New
York: Palgrave Macmillan, 2003, p. 1.
11 MAGNOLI, D. União Européia: história e geopolítica. 5.ed. rev. e atualizada.
São Paulo: Moderna, 1995. p. 27
12 MAGNOLI, D.. op.cit., p.28.

87
(...)o principal cenário de confrontação das superpotências. O sub-
sistema europeu de Estados organizou-se em função da bipolarida-
de de poder mundial, que provocou o alinhamento da parte ociden-
tal do continente com os EUA e a subordinação da parte oriental à
União Soviética13.

Em 1947, com a entrada em vigor da Doutrina Trumam e sua


vertente econômica, o Plano Marshall, houve um estreitamento dos
laços já existentes entre a Europa Ocidental e os Estados Unidos. O
referido plano que visava à reestruturação econômica dos países eu-
ropeus, funcionava como um instrumento de contenção do avanço
do comunismo, uma vez que se supunha ser mais difícil a propagação
dos ideais socialistas em países estáveis economicamente, e com bom
desenvolvimento social14.
Para definir de que forma se daria a distribuição dos fundos do
Programa de Recuperação Europeia (Plano Marshall) e para incentivar
o comércio entre seus membros, foi criada em 1948 a Organização Euro-
péia para Cooperação Econômica (OCDE). Os países que faziam parte de
tal entidade eram: Áustria, Bélgica, Dinamarca, França, Grécia, Holanda,
Irlanda, Islândia, Itália, Luxemburgo, Noruega, Portugal, Reino Unido, Su-
écia, Suíça e Turquia; também eram integrantes desse pacto as zonas de
ocupação ocidental da Alemanha e o território de Trieste. Embora confi-
gurasse uma organização de cunho intergovernamental, a aproximação
dos Estados através desta, levou-os a possibilidade de discussão de suas
necessidades; funcionando de maneira a minimizar as barreiras à inte-
gração e aumentar a solidariedade entre os vizinhos europeus.15

13 MAGNOLI, D.. op.cit., p.28.


14 Plano elaborado pelos Estados Unidos e destinado à recuperação dos países
da Europa Ocidental após a Segunda Guerra Mundial. Seu nome oficial era
Programa de Recuperação Européia, mas ficou conhecido como nome do Se-
cretário de Estado George Marshall. O Plano foi elaborado após uma reunião
com os Países euroupeus em julho de 1947. A União Soviética e os países da
Europa Oriental foram convidados a participar mas se recusaram. Durante os
seus quatro anos de funcionamento transferiu cerca de 13 bilhões de dólares
(em valores da época) a título de assistência técnica e econômica. Dicionário
Político. Disponível em: < http://www.marxists.org/portugues/dicionario/verb
etes/p/plano_marshall.htm> Acessado em: 04 de maio de 2009
15 A Política Externa e de Segurança Comum e a Política Européia de Segurança
e Defesa. Disponível em: <http: // www2.dbd.puc-rio.br/pergamum/tesesaber-
tas/0210270_04_cap_03.pdf >. Acessado em: 21 de maio de 2009

88
É nesse contexto de economias em reestruturação e aproxima-
ção através da aplicação dos recursos provindos do Plano Marshall,
sob orientações capitalistas liberais, que começa a se estruturar a
Comunidade Europeia. Essa entidade, por quase 40 anos, represen-
tou a barreira geográfica ao avanço do comunismo para o ocidente
europeu, sendo um modelo de desenvolvimento econômico e social,
aliado aos interesses americanos no contexto da guerra fria.

3. O FIM DA GUERRA FRIA E OS PROCESSOS


DE ALARGAMENTO DA UNIÃO EUROPEIA.
A integração dos países europeus, como já mencionado, conta-
va de início com apenas seis Estados, passou por sucessivos processos
de expansão. Seguindo um roteiro estabelecido pelo Direito Comuni-
tário16, o movimento integracionista expandiu seus limites para mui-
to além dos seis Estados fundadores, contando atualmente, com vinte
e sete membros plenos.
Os primeiros Estados a unirem-se, em 1973, aos seis membros
fundadores foram: o Reino Unido (fato só consolidado após duas ten-

16 O processo de entrada de um novo integrante na organização inicia-se com a


candidatura do Estado perante o Conselho Europeu, instituição a qual cabe a
prerrogativa de definir sobre a aceitabilidade dessa solicitação. Após o aceite
do Conselho, a Comissão divulga um parecer oficial relatando a situação
política e econômica do país requerente, bem como uma recomendação sobre
início imediato das tratativas para adesão, ou atraso das mesmas. No caso de
recomendações para retardamento do início do processo, costuma-se produzir
um plano de ação, normalmente envolvendo acordos de associação entre a
UE e o Estado candidato, visando à aproximação destes e objetivando reforçar
a candidatura do pretendente, fornecendo mecanismos para correção dos
“problemas” apontados no relatório da Comissão. A partir das conclusões da
Comissão, se o Conselho aceitar a abertura do processo de adesão, é definida
uma data para início das negociações. Esta futura etapa compreende o traba-
lho de grupos de especialistas em diversas áreas envolvidas (política, econo-
mia, direito, etc.), escolhidos pela Comissão, que definirá a posição oficial da
União Européia para com o Estado demandante. Com a concordância de que
os termos da União foram satisfatoriamente cumpridos, está terminado o
processo de adesão. Conclusivamente, na seqüência da aprovação do Conselho
de Ministros é elaborado um Tratado de Adesão, o qual terá de ser aprovado
pelo Parlamento da UE e, posteriormente, pelo parlamento do país candidato
. Respeitam-se assim, os interesses dos “três componentes” da organização:
os Estados, a população e a própria UE. ALARGAMENTO: Unificação de um
continente. Disponível em: <http:// europa.eu/scadPlus/ leg/pt/lvb/li4536.
htm> Acessado em: 21 setembro 2008

89
tativas vetadas pela França), Irlanda e Dinamarca. A seguir, a Comuni-
dade Europeia estendeu-se ao sul do continente, quando se efetivaram
as adesões da Grécia, no ano de 1981 e de Portugal e Espanha em 1986.
Com o fim da Guerra fria, foi incorporado à CE, em 1990, o
território da Alemanha Oriental, até então sob o regime comunista. Já
em meados da década de 90, após um longo período de relações for-
matadas por acordos preferenciais no âmbito econômico, aderiram à
União Europeia, em 1995, Áustria, Finlândia e Suécia. Cabe ressaltar,
que, nesse ano (a exemplo do ocorrido em 1973) a Noruega, devido à
nova negativa de um referendo, recusou-se mais uma vez a integrar
a organização. Em 2004 ocorreu, o quinto e maior alargamento, com-
preendendo os seguintes países: Chipre, República Checa, Estônia,
Hungria, Eslovênia, Letônia, Lituânia, Malta, Polônia e Eslováquia. No
ano de 2007 deram-se as acessões de Romênia e Bulgária que, atual-
mente, encontram-se em processo de adesão Turquia e Croácia17.
Cronologicamente datadas as fases da expansão do bloco eu-
ropeu, faz-se premente discutir os processos de adesão, diretamente,
influenciados pelo fim da Guerra Fria. A queda do Muro de Berlim18,
em nove de novembro de 1989, representou o fim da divisão ideológi-
ca do continente, e abriu as portas para a aproximação de muitos paí-
ses à UE. Já em 1990, com a reunificação da Alemanha, o território da
Alemanha Oriental, até então sob o regime comunista, passou a fazer
parte da CEE. A rápida incorporação desse território, defasado eco-
nomicamente em comparação aos demais da CEE, justificou-se em
função do temor dos governantes dos países do bloco, principalmen-
te, da Alemanha Ocidental, de que o território oriental se mantivesse
afastado do ocidente e voltasse à esfera de influência de Moscou.19

17 Mais informações sobre processos de alargamento disponíveis em:< http://


europa. eu/ pol/ enlarg/ > índex_pt.htm> Acessado em: 15 de abril de 2008
18 Representação máxima da “cortina de ferro” que, segundo o ex-ministro
inglês Winston Churchill, os comunistas haviam formado da Europa, o Muro
de Berlin representava a divisão ideológica do continente entre as realidades
comunista e capitalista e também a divisão física da cidade de Berlin e do
atual território da Alemanha, sob os governos destes dois modos de produção.
A leste imperava a administração da economia planificada e a oeste instituísse
a economia de mercado. JUNIOR, J. A. op.cit., p.97.
19 KROK-PASZKOWSKA, A.; ZIELONKA, J. European Union Enlargment. In:
HAY, C.; MENON, A. (Org.). European Politics. New York: Oxford University
Press Inc., 2007, p.368.

90
Na sequência, o quarto alargamento foi efetivado em 1995,
com as acessões de Áustria, Finlândia e Suécia, três países, historica-
mente, considerados neutros. Assume-se, que a ocorrência das referi-
das adesões foi possível, pois o status de não-alinhados, cuja tentativa
de manutenção os havia deixado de fora da União Europeia, foi des-
pojado em muito de seu significado, com a desintegração do Império
Soviético e com o final da Guerra Fria20. É certo também, que a adesão
destes países foi motivada pelo interesse de participarem ativamente
do jogo político europeu. Eles já haviam assinado acordos no âmbito
do mercado comum europeu, mas, por não serem membros do blo-
co, estavam excluídos da elaboração das regras que deviam obedecer.
Sendo assim, esses antigos “sócios” da UE, via tratados de coopera-
ção21, finalmente, aderiram a essa e passaram a ocupar uma posição
ativa na tomada de decisões da organização.
Para a UE, Áustria, Finlândia e Suécia, eram consideradas, eco-
nomicamente, “saudáveis e contribuintes líquidos em potencial para
o orçamento comunitário, que estaria sob grande pressão, se os paí-
ses do centro e leste europeu fossem eventualmente aceitos”22. Essas
adesões já se caracterizavam então como um ganho de reservas da
União, uma preparação para o futuro alargamento a leste, agora emi-
nente, com o fim da divisão do continente.
Concluído o alargamento em direção aos países ocidentais
desse continente, nos idos da década de 1990, começou a ser consi-
derada a necessidade de reestruturação das instituições da UE para
adequarem-se a uma realidade mais alargada, politicamente diversi-
ficada e populacionalmente ampliada. As evidências de novos alar-
gamentos proporcionaram aos líderes europeus o temor de que estes
acabassem por ocasionar uma paralisação da estrutura institucional
europeia. Tendo como um de seus objetivos minimizar esse temor,
foram elaborados pelos Estados-membros os Tratado de Maastricht
(1993), Amsterdã (1997) e Nice (2001)23.

20 KROK-PASZKOWSKA; ZIELONKA, op. cit., p.370.


21 Sobre histórico dos acordos de cooperação econômica da UE consultar: EFTA
History at a glance . Disponível em: <http://www.efta. int/content/about-efta/
history >. Acessado em: junho 2008.
22 BACHE, I.; GEORGE, S. Politics in the European Union. 2.ed. New York: Oxford
University Press Inc.2006.p.547.
23 KROK-PASZKOWSKA; ZIELONKA, op. cit., p.370.

91
O artigo 49 do Tratado de Maastricht definiu os critérios a serem
seguidos pelas novas adesões. De acordo com o artigo, “qualquer Estado
europeu que respeite os princípios enunciados no nº 1 do artigo 6º pode
pedir para se tornar membro da União.24 Os princípios mencionados re-
ferentes ao artigo 6º do TUE são: liberdade, democracia, respeito pelos
direitos humanos e pelas liberdades fundamentais e o Estado de Direito25.
No tocante ao Tratado de Amsterdã, destaca-se “a introdução no
Tratado da UE de uma cláusula de flexibilidade (...). Estava assim, aberta a
via, não obstante os limites impostos por certas exigências, para uma Eu-
ropa de várias velocidades.”26. No Tratado de Nice, foram postas em debate
questões como o tamanho e composição da Comissão27, pesos dos votos no
Conselho e extensão da votação por maioria qualificada28. Estavam, assim,
lançadas algumas bases dos próximos alargamentos da União Europeia.

24 ARTIGO 49 do TUE. Disponível em: <http://eur-lex.europa.eu/pt/treaties/


dat/11997M/htm/11997 M.html#0145010077> Acessado em: 14 de maio de
2008.
25 ARTIGO 6º do TUE. Disponível em: <http://eur-lex.europa.eu/pt/treaties/
dat/11997M/htm/ 11997M.html#0145010077> Acessado em: 14 de maio de
2008.
26 BORCHARDT, op. cit., 2000. p.8. Com relação à Europa de várias velocidades,
Maria Amparo Alcoceba assinala tratar-se este de um modelo integração que
permite a existência de diversos níveis de integração dentro da União, por um
período de tempo indeterminado, mas não infinito. A origem deste sistema
fundamenta-se na falta de capacidade objetiva de um Estado-membro de
assumir efetivamente, em um dado momento, a execução de determinado
objetivo aos quais se comprometeu juridicamente, da mesma maneira que
todos os outros membros do bloco. Esta autora ressalta que os Estados que es-
tejam seguindo “velocidades diferenciadas” têm obrigação jurídica de superar
sua incapacidade de cumprir com determinado objetivo da UE o mais breve
possível. Além do sistema de várias velocidades Maria Amparo ainda refere-se
ao que muitos denominam de Europa à la carte, ou seja, níveis de integração
diferenciadas em algumas áreas com relação a determinados assuntos. Este
modelo encontraria sua origem no fato de que nem todos os Estados “estão
igualmente dispostos a avançar no processo integracionista”, tratando-se, por-
tanto, de uma questão de vontade e não de capacidade, como no primeiro caso.
Nesse sentido, consultar: ALCOCEBA, M. A. Fragmentatión y diversidade em lá
construcción Europea. Valencia: Tirant lo Blanch, 2005.
27 Nesse sentido consultar: Tratado de Nice: Modo de utilização: A Comissão
Européia. Disponível em: <http://europa.eu /scadplus/nice_treaty/commis-
sion_pt.htm#COMPOSITION>. Acessado em 23 de setembro de 2008.
28 Nesse sentido consultar: Tratado de Nice: Modo de utilização: O Conselho da
União Européia. Disponível em: <http://europa.eu/scadplus/nice_treaty/coun-
cil_pt.htm#DEFINITION> Acessado em 23 de setembro de 2008.

92
Por fim, após anos de preparativos por parte da União Europeia
e também dos Estados candidatos, ainda sob os reflexos da Guerra Fria
e do fim da divisão continental, concretizou-se em 2004 o maior alar-
gamento do bloco, com a acessão de Chipre, República Checa, Estônia,
Hungria, Eslovênia, Letônia, Lituânia, Malta, Polônia e Eslováquia. Para
Bache e George, este processo, que incorporou à União dez novos pa-
íses, foi uma tentativa das ex-repúblicas soviéticas de firmarem suas
posições como “europeias” e, assim, afastarem qualquer possibilidade
de retorno à esfera de influência Russa29. Ademais, considerações so-
bre a segurança europeia levaram os países já membros a aceitarem
os processos de adesão (apesar das grandes disparidades econômicas),
haja vista a instabilidade política que imperava na maioria dos países
do leste europeu, na sequência do final da G.F., convulsionados por
contendas nacionalistas, como no caso dos conflitos da ex-república
da Iugoslávia30. Buscava-se com o apoio da União, solidificar no leste da
Europa, Estados democráticos e estáveis, afastando com isso o perigo
de conflitos armados nas “fronteiras” da Organização.
O professor espanhol Carlos Taibo advoga que a UE foi a gran-
de beneficiada com o referido processo de alargamento, uma vez que
trouxe, para dentro de suas fronteiras um amplo mercado consumi-
dor, além de numerosa e barata mão-de-obra. Com isso, a organização
manteve nos seus limites geográficos grandes empresas que estavam
transferindo seus capitais para o leste europeu, em busca das condições
flexibilizadas de direitos sociais. Segundo Taibo, “o regime de relações
comerciais entre a União e os países da Europa central e do leste se ca-
racterizam, em qualquer caso, por um notável superávit em benefício
da primeira”31. Benefícios estes, fundamentais para que a UE pudesse
aumentar seu poder competitivo no novo cenário globalizado, onde
despontava a concorrência entre mega blocos econômicos.
Cabe ressaltar que, no processo de alargamento findado em
2004, foi pela primeira vez imposta aos candidatos a obrigação de

29 BACHE; GEORGE, op. cit., p.548


30 Como exemplo da mencionada instabilidade, há que se citar os conflitos na
região dos Bálcãs, envolvendo territórios da Ex-Iugoslávia que resultaram na
Guerra do Kosovo e desmembramento deste Estado, desestabilizando toda
região centro-leste européia BACHE; GEORGE, op. cit., p.549.
31 TAIBO, C. Crítica de la Unión Europea: argumentos para la izquierda que
resiste. Madri: Catarata, 2006. p. 80.

93
observância de algumas condições para efetivação da adesão. Esses
requisitos, conhecidos como Critérios de Copenhague, formalizados
na conferência intergovernamental de 1993, determinam que, para
fazer parte da União, os Estados candidatos devem apresentar: a) a
presença de instituições estáveis, que garantam a democracia, o Es-
tado de Direito, os direitos humanos, o respeito pelas minorias e a
sua proteção-critério político; b) a existência de uma economia de
mercado em funcionamento e a capacidade para fazer face à pressão
da concorrência e às forças de mercado no interior da União Euro-
péia - critério econômico; c) a capacidade para assumir as obriga-
ções decorrentes da integração, incluindo a adesão aos objetivos de
união política, econômica e monetária - critério da adoção do acervo
comunitário. A União Europeia, por sua vez, de acordo com as deter-
minações de Copenhague, deve ter capacidade para absorver novos
membros sem prejudicar o caminhar da integração europeia. 32 Os
supracitados requisitos configuram uma clarificação das condicio-
nantes impostas aos pedidos de adesão pelo já mencionado artigo 49
do TUE33. A instituição desses critérios foi fundamental para nortear
o alargamento de 2004, considerado o mais diversificado, em termos
geográficos, culturais, econômicos e políticos, até então realizado.
Devido a não observância por completo das condições mencio-
nadas, a adesão de Romênia e Bulgária em 2004 foi adiada34. Em 2007,
com a verificação do cumprimento dos critérios de Copenhague, esses
dois países puderam, por fim, adentrar na União Europeia, que passou
a contar então com seus atuais vinte e sete Estados-membros.
Importa salientar que, durante os sucessivos alargamentos, a
União Europeia disponibilizou, via estratégias pré-adesão, considerá-
veis aportes financeiros aos Estados candidatos. Os referidos recur-
sos tinham como objetivo auxiliar os países pretendentes, alguns em
sérias dificuldades econômicas35, a implantar as reformas estruturais

32 A respeito dos citados critérios mais informações disponíveis em: < http://
ec.europa.eu/ enlargement/ enlargement_process/accession_process/criteria/
index_en.htm > Acessado em: 30 maio 2008.
33 FONTE: Condições para adesão. Disponível em: <http://europe.eu/pol/ enlarg/
overview_pt.htm> Acessado em: 10 de agosto de 2008.
34 Sobre processos de adesão Búlgara e Romena, consultar: < http://europa.eu/
scadplus/leg/ pt/lvb/e40101. htm>. Acessado em: 06 de setembro de 2008.
35 Com exceção da RDA (República Democrática da Alemanha), que recebeu volu-
mosos subsídios da Alemanha Ocidental, os países do leste, sem os subsídios que

94
necessárias ao cumprimento das condições impostas pela própria
União. Nessa política, os principais instrumentos utilizados foram:
acordos bilaterais, os chamados “diálogos político-econômicos”, par-
cerias para adesão, programas nacionais para adesão do acervo comu-
nitário (PNAA) e as assistências financeiras pré-adesão36. Dentre es-
sas assistências encontram-se: o programa de ajuda comunitária aos
países da Europa Central e Oriental (Phare)37, Instrumento agrícola
de pré-adesão (SAPARD)38 e o Instrumento estrutural de pré-adesão
(ISPA)39. Com relação aos próximos alargamentos, já se encontra de-
finido que, para o período de 2007 a 2013, o auxílio aos candidatos
será fornecido pelo Instrumento de Assistência Pré-adesão (IAP).40

recebiam da União Soviética, passaram por uma difícil transição. Tendo de lidar
com a dissolução da COMECON e com uma economia baseada em indústrias
obsoletas, os antigos países satélites da URSS sofriam com grave grave reces-
são econômica no momento de suas candidaturas à UE. BELIN, Luís; COSTA,
Diego. A Queda do Muro de Berlin e o seu significado para a Europa. Disponível
em: http://www.uma.pt/dpeh/index2. php?option=com_docman&task=doc_
view&gid=90&Itemid=59. Acessado em: 26 de maio de 2009.
36 Para mais informações sobre os supracitados instrumentos de pré-adesão,
consultar: “O processo de adesão de um novo Estado-membro”. Disponível
em: <http://europa.eu/scadplus/leg/pt/lvb/ l14536.htm> . Acessado em: 09 de
setembro de 2008.
37 O programa de ajuda comunitária aos países da Europa Central e Oriental
(Phare – ou Poland/ Hungary Assistance for Reconstruction of Economies),
inicialmente destinado apenas à Polônia e à Hungria, passou a constituir o
principal instrumento de cooperação financeira e técnica da Comunidade
Europeia para com os países da Europa Central e Oriental (PECO), candidatos
à adesão. O programa concentra-se, essencialmente, em duas prioridades: o
reforço das instituições e das administrações; o financiamento dos investi-
mentos. O Programa Phare. Disponível em: <http://europa.eu/scadplus/leg/pt/
lvb/e50004.htm> Acessado em: 31 de agosto de 2008.
38 O SAPARD surge na sequência da Comunicação da Comissão «Agenda 2000»
e das conclusões do Conselho Europeu de Luxemburgo, tendo como objetivo o
apoio à agricultura e ao desenvolvimento rural dos países candidatos da Euro-
pa Central e Oriental (PECO). Instrumento agrícola de pré-adesão (SAPARD).
Disponível em: < http://europa.eu/ scadplus/leg/pt/lvb/l60023.htm> Acessado
em: 31de setembro de 2008.
39 O Instrumento pré-adesão (ISPA) dirigiu-se inicialmente ao PECO e propunha
apoio financeiro no domínio da coesão econômica e social e, mais especifi-
camente, no domínio do ambiente e dos transportes. Instrumento estrutural
de pré-adesão (ISPA). Disponível em: < http://europa.eu/scadplus/leg /pt/lvb/
l60022.htm> Acessado em: 31 de agosto de 2008.
40 “(...) o IAP fornece assistência em função dos progressos realizados pelos
países beneficiários e das suas necessidades, nos termos do expresso pelas

95
Composta então por vinte e sete Estados, a União Europeia
recebeu solicitações de novos candidatos: Croácia, Turquia, e antiga
República Iugoslávia da Macedônia, todos os países a leste do conti-
nente. Tantas adesões do lado oriental do que, costumeiramente, se
compreende como continente europeu, acabaram por suscitar dis-
cussões sobre os limites de expansão da organização. Nessa seara,
conforme comentam Christopher Hill e Michael Smith, “deve existir
uma linha em algum lugar onde a UE termine (...) Mas a linha depois
de 2004 ainda deixa inúmeros Estados de fora, (...) e a UE terá de
decidir como manejar com as expectativas destes. O “fantasma” do
alargamento vai pairar sobre as relações da União Europeia com seus
vizinhos por algum tempo porvir. ”41 Nesse sentido, as futuras expan-
sões da organização Europeia representam um dos vários desafios
colocado à Organização, no novo e multifacetado cenário que abre-se
sobre o contexto internacional após o fim da Guerra Fria.

4. A INSERÇÃO DA UNIÃO EUROPEIA NA NOVA ORDEM


GLOBAL PÓS- GUERRA FRIA.
Com o final da Guerra Fria, o mundo presenciou grandes
transformações geopolíticas, sociais e econômicas que passaram a
enunciar a configuração de uma nova ordem mundial. A dissolução
da URSS e declínio do bloco socialista tornou factual o fim da di-
visão bipolar do globo em dois eixos antagônicos, com a afirmação
do sistema capitalista como principal modo de produção do sistema
de Estados. O desaparecimento das fronteiras ideológicas e econômi-
cas possibilitou a re-configuração da ordem mundial, marcada pela
prevalência das economias de mercado. Essa surgente ordem trouxe
ainda um novo elemento: o movimento de globalização.
Para Robert W. Cox,
(...) as características da marcha da globalização incluen a internacio-
nalização das finanças e seguros comerciais, a mudança da divisão in-

avaliações e pelos documentos de estratégia anuais da Comissão” In: O proces-


so de adesão de um novo Estado-membro. Disponível em: <http://europa.eu/
scadplus/ leg/pt/leg/pt/lvb/<http > . Acessado em: 09 de setembro de 2008.
41 SMITH, E. K. Enlargment and European Order. In: HILL, C.; SMITH, M.
(Edit.). International relations and the European Union. 4th ed. New York:
Oxford University Press, 2005, cap.13, p.272

96
ternacional do trabalho (...) na natureza dos Estados e nos sitemas de \
estado. Os Estados estão sendo internacionalizados em suas estruturas
internas e funções. “ Por toda a maior parte deste século, o papel dos
Estados era concebido como um aparato protetor das economias nacio-
nais (...). Nas últimas décadas, a prioridade modificou-se, no sentido de
adaptar as economias nacionais às exigências da economia mundial.42
Seguindo o referido roteiro de adaptação das economias nacio-
nais, acima colocado, simultaneamente, ao movimento de globalização
presente no sistema mundial, ganhou força, no cenário internacional,
o fenômeno da regionalização. Nesse acontecimento, as nações espa-
lhadas pelo globo trataram de compor-se segundo sua proximidade
geográfica, para em conjunto responderem / terem maior poder de
competição econômica e política, no novo contexto globalizado.
Em consequência dessas mudanças, “(...) a prosperidade das
áreas centrais e a sua difusão por áreas geográficas mais próximas,
abrem as perspectivas de um mundo dividido em três grandes blocos
hegemônicos, liderados pela Europa, Estados Unidos e Japão”43. Nesse
sentido, importa salientar que, de acordo com Vicentino e Scarletto:
O fim do mundo bipolarizado da Guerra fria não significou a elimi-
nação automática dos conflitos e atritos internacionais. Hoje esse con-
fronto se reveste de um conteúdo muito mais econômico-comercial do
que político-ideológico.44
Nesse contexto multilateral ampliado e regionalizado, a Comu-
nidade Europeia desponta como um dos grandes agentes econômi-
cos. Possuindo o maior mercado livre do mundo e uma moeda única
forte. Isso, pois o fim da divisão do globo em dois, e a configuração da
UE, enquanto bloco, permitiu que esta se colocasse como uma força
competidora no novo cenário global.
O término do conflito ideológico e os eventos que o seguiram,
não trouxeram apenas mudanças econômicas quanto ao posicio-
namento da União no cenário internacional, mas proporcionaram
também significativas mudanças para as políticas da Organização,

42 COX, R. W. Globalization, Multilateralism and Social Change, Work Progress.


United Nations University, vol. 13, nº 1, Tóquio, julho de 1990, p. 2.
43 JUNIOR, Jose. Arbex. Guerra Fria: terror de Estado, política e cultura. Coleção
Polêmica. São Paulo: Moderna, 1997, p.97.
44 SCALZARETTO, Reinaldo; VICENTINO, Cláudio. Cenário mundial: A nova
ordem internacional. São Paulo: Scipione, 2002, p.48.

97
principalmente, no que diz respeito à Política Externa e de Seguran-
ça Comum (PESC). Essa política compreende um trabalho de quase
meio século das lideranças europeias, ainda inacabado e cujo tortuo-
so desenrolar deve-se ao fato de envolver temas de high politics, usu-
almente, de única e exclusiva competência do poder soberano dos
Estados, que apenas recentemente, passou a ser tratado em fóruns de
discussão comunitários45.
Desde o final da 2ª G.M. até os momentos conclusivos da
Guerra Fria, qualquer indício de políticas de segurança, envolvendo
os países a oeste do Muro de Berlin, envolvia a Organização do Tra-
tado de Atlântico Norte (OTAN), que alinhava as políticas das citadas
nações europeias à coordenação e segurança proporcionadas pelos
EUA. Apenas no final da década de 1980, com a entrada em vigor do
Ato Único Europeu (AUE), questões de política externa foram, pela
primeira vez, incorporadas no âmbito dos Tratados da Comunidade·.
Nesse período, os momentos finais da G.F. e a decorrente re-
configuração do sistema internacional, puseram perante a Comuni-
dade Europeia, uma sorte de desafios a serem respondidos no âm-
bito das políticas externas. Dentre os desafios mencionados, cabe
destacar: 1º) desintegração da URSS e consequentemente do Pacto
de Varsóvia, que voltou a colocar lado a lado países antes inimigos,
impulsionando com isso a reavaliação dos desafios da segurança
europeia; 2º) A reunificação Alemã. Após a queda do Muro de Ber-
lin, acreditava-se que “uma maior integração política europeia seria
necessária para que os europeus aceitassem a unificação alemã”46,
por sua vez os franceses “(...) almejavam uma maior unificação
para lidar com uma Alemanha reunificada.”47; 3º) A ocorrência da
Guerra do Golfo tornou factual a existência de uma ameaça fora
do continente, com envolvimento de forças militares de países
europeus; 4º) O conflito na Bósnia e a tragédia que se abateu so-
bre aquele povo, “(...) fez com que as atitudes da CE fossem vistas

45 A Política Externa e de Segurança Comum e a Política Européia de Segurança


e Defesa. Disponível em: <http: // www2.dbd.puc-rio.br/pergamum/tesesaber-
tas/0210270_04_cap_03.pdf >. Acessado em: 21 de maio de 2009
46 A Política Externa e de Segurança Comum e a Política Europeia de Segurança
e Defesa. Disponível em: <http: // www2.dbd.puc-rio.br/pergamum/tesesaber-
tas/0210270_04_cap_03.pdf >. Acessado em: 21 de maio de 2009
47 Idem

98
como ineficientes pela opinião pública europeia”48. Com todos esses
elementos, acordou-se na necessidade de revisar os Tratados das
Comunidades, no tocante à integração política e política externa.
Nesse roteiro, o Tratado de Maastrich definiu oficialmente uma po-
lítica externa e de segurança para a União Europeia, colocando sob
a égide de um pilar intergovernamental questões, tradicionalmente,
de competência exclusiva dos Estados49.
Por fim, para além de questões geopolíticas e econômicas, a queda
do Muro de Berlim também forneceu elementos para que fosse repensa-
da a questão da identidade da União Europeia. Essa afirmação é possível
em função da continuidade do processo de integração comunitário, que
abriu as portas da Organização para as recém instauradas democracias
do leste europeu50. Este alargamento foi o primeiro a ser condicionado
à observância dos critérios de Copenhague, e, nesse sentido, conforme
assevera Paul Kubicek, pode ter auxiliado a definir uma identidade ba-
seada na observância de princípios do direito51. Ou seja, afirmou-se, em
2004, a UE enquanto uma entidade baseada nos princípios da alterida-
de, democracia, economia de mercado e Estado de Direito.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS:
Nos seus aproximadamente cinquenta anos de existência, a
União Europeia teve sua estruturação e expansão diretamente in-
fluenciadas por um dos principais conflitos do século XX, a Guerra
Fria, posicionada, geograficamente, no centro da contenda, tendo a
Oeste os Estados Unidos (ainda que interposta pela barreira do Atlân-

48 Idem, ibidem
49 Os objetivos principais da PESC encontram-se enunciados no Artigo 11 do
TUE. São eles: salvaguardar os valores comuns e interesses fundamentais da
União; reforçar a segurança da União; preservar a paz e fortalecer a segurança
internacional; promover a cooperação internacional; e desenvolver e reforçar a
democracia e o Estado de direito, incluindo o respeito pelos direitos humanos.
Artigo 11 do Tratado da União Européia disponível em: < eur-lex.europa.eu/
LexUriServ/ LexUriServ.do? uri=OJ:C:2006:321E:0001:0331:PT:pdf -> Acessa-
do em 30 maio de 2009.
50 GASPAR, Carlos. Identidade Europeia. Disponível em: <http://www.ieei.pt/
post.php?post=309> Acessado em: 31 maio de 2009
51 KUBICEK, P. Turkey’s Place in the ‘New Europe’. Disponível em: <http://www.
sam.gov.tr/ perceptions/volume9/Autumn2004/PaulKubicek.pdf>. Acessado
em: 21 de setembro de 2008

99
tico) e a leste da URSS, a Organização Europeia deveu uma parcela de
seu impulso integracionista ao plano americano de reestruturação de
suas economias. Projeto este, que possuía, como um de seus objetivos,
a contenção do avanço do comunismo no continente europeu.
Não somente o surgimento da UE foi influenciado pelo referi-
do embate ideológico, mas também os alargamentos desta sentiram
os efeitos dos momentos finais da GF. Após a queda do muro de Ber-
lim, com o término da divisão do continente, o Organismo Europeu
pôde de fato tornar-se uma entidade europeia por completo, sem
barreiras que dividissem leste e oeste em dois semi-continentes, com
realidades totalmente diferenciadas e antagônicas.
Ademais, importa salientar ainda, que o fim da bipolariza-
ção e a nova ordem internacional do sistema de Estados, trouxeram
novas perspectivas para a União enquanto ator global. Na crescente
interdependência e globalização da sociedade internacional, a UE
desponta como um forte ator político e econômico. Apresentando-
se ainda como modelo para outros processos de integração regional,
que constituem uma nova tendência do sistema de Estados.

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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102
A ECONOMIA SOLIDÁRIA NO
CONT E X TO C APITALISTA PÓS - QUE DA
DO M URO DE BE RLIM

Gizelli Alini da Cruz1


Luiza Roberta de S. Pimentel
Rafael Gustavo de Lima

RESUMO: Este artigo tem como objetivo analisar histórica e criti-


camente o conceito de Economia Solidária nos últimos vinte anos,
que vão da queda do muro de Berlim (1989) até os dias atuais (2009).
Além disso, o artigo expõe o crescimento e a consolidação da Econo-
mia Solidária no Brasil das últimas duas décadas. Discussões críticas
acerca de convergências e divergências sobre o capitalismo e o socia-
lismo diante da Economia Solidária são, ainda, exploradas pelos au-
tores deste artigo que, por sua vez, pretendem o esclarecimento con-
ceitual deste novo tipo econômico, a situação histórica e atual, além
das críticas teóricas relativas ao conceito de Economia Solidária.

PALAVRAS-CHAVE: Economia solidária, análise histórico-conceitual, Brasil,


queda do muro de Berlim.

1. INTRODUÇÃO
O artigo visa explorar a Economia Solidária do contexto capi-
talista pós-queda do muro de Berlim e suas influências no Brasil das
duas últimas décadas.

1 Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, estudantes de Graduação em


Relações Internacionais. E-mail de contato: r.limma@gmail.com

103
Assim, como modo de produção da contemporaneidade, o capi-
talismo expõe, ainda, algumas mazelas sociais, ecológicas e econômi-
cas, tais como a poluição generalizada de águas e terras, a expropriação
dos meios de produção pela propriedade privada e, por conseguinte, a
monopolização de setores vitais à economia de um país. O desemprego
crescente surgido nas grandes metrópoles, decorrentes de consecuti-
vas revoluções manufatureiras, gera o desemprego estrutural e, ainda,
aquele que compõe o exército industrial de reserva. Além disso, o capi-
talismo se configura como promotor de miséria e exclusão social, por
meio da concentração de riquezas em mãos da restrita elite detentora
do monopólio dos meios de produção.
Destarte, a Economia Solidária, por meio de uma multiplici-
dade de conceitos como a autogestão, o cooperativismo e a solidarie-
dade, propugna uma forma de assegurar renda para trabalhadores
organizados em meio ao paradigma capitalista de crises cíclicas pró-
prias desse modelo econômico. Assim, enquanto o cooperativismo se
torna uma alternativa ao individualismo econômico capitalista, os
lucros são substituídos por “sobras” que são, igualmente, divididas
entre todos os autogestores envolvidos; enquanto a coletividade auto-
gestionária democrática é realidade na Economia Solidária, a cadeia
hierárquica de governança corporativa se impõe nos modelos capita-
lista. Nesse novo modelo de economia social, a solidariedade toma o
espaço de precárias condições de trabalho que, no modo de produção
capitalista, acaba por ser estimulada como em vistas ao acúmulo per-
pétuo de capital.
A Economia Solidária constitui uma resposta ao agravamento
da crise do trabalho desde o final do século XX e da crescente insatis-
fação com o desempenho do sistema público de seguridade social. A
emergência da Economia Solidária na América Latina tem a mesma
origem na crise do desemprego e precarização das relações de traba-
lho. Destaca-se a Economia Solidária brasileira pela sua diversidade,
relacionada às formas de organização, nível de estruturação e insti-
tucionalização.
Em suma, o artigo pretende analisar os conceitos supracitados
e como estes influenciam a realidade econômica do capitalismo cor-
rente, além de expor as críticas, a história e a relação do capitalismo e
do socialismo com a Economia Solidária.

104
2. ANÁLISE HISTÓRICA E CONCEITUAÇÃO
DA ECONOMIA SOLIDÁRIA
Nos últimos anos, tem-se indagado a respeito de um novo
método socioeconômico que preza a valorização do ser humano
e reprova a consideração deste, como uma simples mercadoria à
disposição do capitalismo globalizado e neoliberal. Essa nova for-
ma de organização econômico-social se estabelece a partir de um
conjunto institucional, que possui uma longa linhagem histórica.
Esta mantém diferentes cunhos de interdependência entre seus
participantes, sejam eles pertencentes a entidades públicas, à so-
ciedade civil ou a comunidades. Tal sistema econômico é designado
‘’Economia Solidária’’.
Os primeiros sinais da ideologia econômica solidária apare-
ceram durante o século XIX na Europa, especificamente, na França,
tendo como seus principais pensadores Claude Saint-Simon (1760-
1825), Charles Fourier (1772-1873), Pierre-Joseph (1809 – 1865) e
Robert Owen (1773-1858). Suas ideologias foram elaboradas em
meio ao processo e ao fortalecimento da Revolução Industrial, ao
aparecimento de crises e às condições miseráveis de vida levadas pelo
proletariado, como por exemplo, quando das excessivas jornadas de
trabalho, da intensa utilização da mão de obra infantil, do crescen-
te aumento de desempregados devido ao desenvolvimento técnico
ocorrido durante a Revolução Industrial e, ainda, quando da preca-
riedade das condições de trabalho existentes.
Charles Fourier, filósofo e economista francês que sugeriu a
criação de falanstérios2 para organizar a vida em comunidade, ideali-
zava uma sociedade formada, essencialmente, por fazendas coletivas,
onde todos os membros desenvolveriam suas atividades em prol do
bem comum. A sistematização da riqueza seria elaborada de acordo
com a quantidade e a qualidade do trabalho de cada indivíduo.
A sociedade objetivada por Claude Saint Simon, por sua vez,
fazia menção à presença de um Estado Industrializado que objetivas-
se, primordialmente, o bem-estar das classes trabalhadoras, partindo
do princípio de que a produção seria baseada de acordo com as ne-

2 Espécie de comunas de produção e moradia, deveriam abrigar cerca de 1,6 mil


pessoas e não só dedicar-se à produção agrícola e industrial local, mas tam-
bém dar conta das atividades lúdicas e de aprendizado intelectual

105
cessidades dos cidadãos e de que o Estado garantiria uma distribui-
ção coerente das riquezas.
Já Pierre-Joseph, considerado um diligente defensor da anar-
quia e crítico fervoroso à propriedade privada, almejava uma socie-
dade formada por pequenos produtores que seriam financiados por
bancos de troca, e assim, obteriam meios para realizar a produção.
Dessa forma, haveria a substituição da moeda monetária por certifi-
cados de circulação, que, por sua vez, possibilitariam para à sociedade
uma ampla troca de serviços.
Robert Owen, por seu turno, intercedia em favor de uma socie-
dade comunista que seria obtida através da formação e da organização
de colônias cooperativas. Como o principal resultado disso, observar-
se-ia a extinção da propriedade privada nos meios de produção.
Entretanto, por não apresentar uma formulação objetiva de
transformação na sociedade, tais pensadores foram imputados, por
Karl Marx, economista, socialista e filósofo alemão do século XIX,
como socialistas utópicos. Dessa forma, o pensamento solidário só
reapareceria no início do século XX, durante a crise, que mais tarde,
ficaria conhecida como a ‘‘Grande Depressão’’ de 1929. Crise esta que,
ocasionou um crescimento acelerado na taxa de desemprego e mani-
festou, uma vez mais, a imperfeição do sistema econômico capitalista.
Dessa forma, é apenas com o desenvolvimento do processo co-
operativista/associativista desempenhado pelas classes trabalhistas,
durante a segunda metade da década de 70, que tal ideologia soli-
dária reaparecerá mais fortalecida. Seu principal objetivo se dará a
partir da luta contra a exclusão social e da iniciativa do salvamento
e até mesmo da criação de empregos, como cita Edson Nascimento:
"Os valores centrais da Economia Solidária são: o trabalho, o conheci-
mento e atendimento das necessidades sociais da população, a partir
de uma gestão responsável dos recursos públicos. A Economia Solidá-
ria representa instrumento de combate à exclusão social na medida
em que apresenta alternativa viável para a geração de trabalho e ren-
da e para a satisfação direta das necessidades humanas, eliminando
as desigualdades materiais e difundindo os valores da ética e da so-
lidariedade. A Economia Solidária é também um projeto de desen-
volvimento integral que visa a sustentabilidade, a justiça econômica
e social e a democracia participativa, além da reservação ambiental
e a utilização racional dos recursos naturais. Além disso, a Economia

106
Solidária exige o compromisso dos poderes públicos com a democrati-
zação do poder, da riqueza e do saber, e estimula a formação de alian-
ças estratégicas entre organizações populares para o exercício pleno e
ativo dos direitos e responsabilidades da cidadania (controle social).’’
[NASCIMENTO, 2006, p. 8]
No Brasil, a Economia Solidária aparece como uma forma de-
fensiva utilizada pelos trabalhadores contra o desemprego. Dessa for-
ma, a classe trabalhadora, que se encontrava desempregada passou a
reordenar seus próprios negócios. É nesse cenário, que importantes
entidades surgidas de movimentos sociais social como a Cáritas, a qual
atua na defesa dos direitos humanos e do desenvolvimento sustentável
solidário na perspectiva de políticas públicas, com uma mística ecumê-
nica, a ANTEAG - Associação Nacional dos Trabalhadores e Empresas
de Autogestão e Participação Acionária -, entre outras, que formulam
propostas alternativas para as comunidades, auxiliando-as a se desen-
volverem, coletivamente, em suas variadas atividades econômicas.
Um autor fundamental, no que diz respeito à conceituação e ao
desenvolvimento da Economia Solidária global, é o atual Secretário
Nacional de Economia Solidária, Paul Singer. Para o especialista, a
definição de Economia Solidária faz referência a um outro modo de
produção, cujos princípios básicos estão relacionados à propriedade
coletiva e ao direito à liberdade individual.
São formas de organização da produção, do consumo e do crédito fei-
tas de forma democrática. Ou seja, as unidades são possuídas e geridas
por seus trabalhadores - no caso de comunidades de produção, por seus
consumidores - nas cooperativas de consumo e por depositantes e mu-
tuários – nas cooperativas de crédito. São de posse coletiva e os direitos
de decisão sobre a unidade ou sobre a empresa são idênticos. Isto é, nin-
guém tem mais poder de votos do que outros’. [Singer, [2007?]]

Para o Sistema Nacional de Informações em Economia Solidá-


ria (SIES), órgão responsável por identificar e registrar os empreen-
dimentos que se encaixam nessa categoria, bem como as entidades
de apoio, assessoria e fomento aos mesmos, conceitua-se Economia
Solidária como o conjunto de atividades econômicas (composto pela
produção, pela distribuição, pelo consumo, pela poupança e pelo cré-
dito) elaboradas solidariamente por trabalhadores sob a forma auto-
gestionária.

107
Destacam-se na prática da Economia Solidária, quatro carac-
terísticas fundamentais que, embora complementares, nunca funcio-
nam singularmente: a cooperação, a autogestão, a viabilidade econô-
mica e, intuitivamente, a solidariedade.

Fonte: SIES

Cooperação refere-se à junção de objetivos comuns, a união de


esforços e capacidades, e a divisão dos resultados e da responsabilida-
de perante as dificuldades.
A Autogestão, por sua vez, visa à prática nas definições estra-
tégicas e cotidianas dos empreendimentos na direção e coordenação
das manifestações, nos seus múltiplos graus e interesses.
De acordo com a figura apresentada abaixo, observam-se algu-
mas características presentes na prática da autogestão. Dentre elas, a
que mais se destaca percentualmente, é a participação nas decisões
cotidianas do EES (Empreendimentos Econômicos Solidários), e, por
conseguinte, a de menor relevância, se encontra presente nos Planos
de Trabalho definidos em Assembleia.

AU TO GESTÃO
CARACTERÍSTICAS DOS EES %
Participação nas decisões cotidianas do EES 66
Periodicidade de assembléia mensal 62
Prestação de contas em assembléia geral 61
Eleição direta dos dirigentes 60
Facilidade de acesso a registros e informações 60
Coletivo de sócios(as) definem destino das sobras euso de fundos 49
Plano de trabalho definido em Assembléia 42
Fonte:SIES

108
A Atuação Econômica prevê a agregação dos esforços, recur-
sos e ideais nas possibilidades coletivas de produção e prestação de
serviços.
Finalmente, a solidariedade preocupa-se com a distribuição
coerente dos resultados, com a melhoria nas condições de vida dos
indivíduos agregados à prática de economia solidária, com o compro-
metimento em relação à saúde ambiental e comunitária e com o bem
estar dos trabalhadores e dos consumidores.
Cooperação: existência de interesses e objetivos comuns, união dos
esforços e capacidades, propriedade coletiva, parcial ou total de bens,
partilha dos resultados e responsabilidade solidária diante das difi-
culdades.
Autogestão: as pessoas envolvidas exercitam as práticas participati-
vas de autogestão dos processos de trabalho, das definições estratégi-
cas e cotidianas dos empreendimentos, da direção e coordenação das
ações nos seus diversos graus e interesses.
Atuação econômica: são empreendimentos que desenvolvem ativi-
dades econômicas de produção, beneficiamento, crédito comercializa-
ção e consumo etc.
Solidariedade: expressa na justa distribuição dos resultados alcançados; nas
oportunidades que levam á melhoria das condições de vida de participantes;
no compromisso com um meio ambiente saudável; na participação nos pro-
cessos de desenvolvimento territorial ou local; nas relações com movimentos
sociais e populares emancipatórios; no bem-estar dos trabalhadores e consu-
midores. (SHIOCHET; SILVA; BERTUCCI apud LIMA, 2005, p.42)

3. CRÍTICAS À ECONOMIA SOLIDÁRIA


A Economia Solidária, de acordo com Paul Singer, tem sido,
durante muitos anos, em países de todo o mundo, uma das principais
formas de oposição ao capitalismo. Entretanto, muitas das articulações
formuladoras da política econômica solidária, vêm provocando inquie-
tações e polêmicas diante de especialistas sociais. Algumas dessas críti-
cas estão presentes no artigo ‘’Reestruturação capitalista e trabalho: no-
tas críticas acerca da economia solidária’’, de autoria de Daniela Neves
de Souza, a qual afirma que um dos problemas apontados em torno da
ideologia econômica solidária, se deve aos preceitos que a originaram e
à sua desvinculação com tais formulações.

109
Apesar de temas como autogestão, auto-organização dos trabalha-
dores, sociedade de “produtores livres”, justiça social, entre outros, es-
tarem vinculados historicamente às origens do socialismo moderno
do século XIX, esse conceito – “economia solidária” – é cunhado na
atualidade, nas duas últimas décadas do século XX, sob a marca da
solidariedade indiferenciada transclassista resultante dos processos
de “desresponsabilização do Estado” (contra-reforma do Estado no
Brasil), e das transformações do capital e suas estratégias de controle
sobre o trabalho [SOUZA, 2008, p. 57]
Outra crítica parte da inquietação em relação aos segmentos
ou às práticas econômicas que constituem a Economia Solidária:
  [...] se tal proposta se vincula ao projeto emancipatório em alternativa
ao capitalismo, como amparar em seu conteúdo formas de associação
tão diferentes e com conteúdos tão díspares, pois congrega, em suposto
consenso de interesses, parcelas da classe capitalista e trabalhadora. A
“economia solidária” congrega também, no mesmo bojo, organizações
formais e informais, de representação de trabalhadores ou patronal,
associações de interesses sociais, econômicos e políticos, indivíduos co-
muns, e experiências ligadas ao poder estatal.[SOUZA, 2008, p. 58]
  Finalmente, uma terceira consideração faz referência à difu-
são conceitual da Economia Solidária utilizada pelos teóricos e pela
sociedade civil e a contradição, que a mesma impõe às relações so-
ciais no capitalismo.
  As classes sociais fundamentais, a partir do referencial solidário, desre-
ferenciam o conteúdo central da exploração, qual seja: produção coletiva
e apropriação privada da riqueza. Assim, o enfoque central da “economia
solidária” destina-se a discutir a gestão do trabalho, a regulação econômi-
ca, ignorando mediações fundamentais do modo de produção capitalista,
e particularmente do seu estágio atual de desenvolvimento. [SOUZA,
2008, p. 58]
Claus Magno Germer, doutor em Ciências Econômicas pela
Universidade Estadual de Campinas e professor associado da Univer-
sidade Federal do Paraná, opõe-se também à Economia Solidária, no
que se refere à sua conceituação por Paul Singer:
A concepção da ‘’Economia Solidária’’ como novo ‘’modo de pro-
dução’’, elaborada por Singer, nada tem em comum com o conceito
correspondente de Marx, do qual o autor toma emprestada, indevi-

110
damente, a expressão modo de produção. O empréstimo é indevido
porque o uso que faz do conceito não corresponde ao de Marx, e o
autor não só não explicita o seu próprio entendimento do conceito,
como não esclarece os leitores sobre o fato de ter adotado a expressão,
mas não o seu conteúdo. Sendo assim, o conceito de ‘’Economia Soli-
dária’’, de Singer, permanece desprovido de conteúdo teórico, sendo,
portanto inconsistente. (GERMER, apud LIMA, 2005, P.09)
Dessa forma, Germer afirma que Singer empregou de forma
inadequada o conceito de, ‘‘modo de produção’’, defendido primor-
dialmente por Karl Marx e que, além disso, a conceituação elaborada
por Singer para definir ‘‘Economia Solidária’’ é inconsistente.
Outra importante crítica à Economia Solidária, pode ser en-
contrada no artigo denominado ‘‘A luta pela estatização, contra a
‘‘Economia Solidária’’ do autor Serge Goulart. Tal julgamento narra
a respeito da ideia de que acontece, na prática da Economia Soli-
dária, a desagregação organizacional da classe trabalhadora. Para
o autor, a saída para os trabalhadores que perdem seus empregos
relaciona-se à estatização.
Numa época em que todos os governantes e muitos sindicalistas falam
de "Economia Solidária’’, a autogestão e as cooperativas são aponta-
das como a solução para salvar os empregos. Só que não salva em-
pregos e desagregam a luta e as organizações dos trabalhadores. Só a
estatização dá uma verdadeira perspectiva para os trabalhadores em
luta. (GOULART, apud LIMA, 2004, p.96)

Graziela Lima, em seu trabalho de conclusão de curso sobre


Economia solidária e Responsabilidade Social Corporativa, se opõe a
essa opinião, fundamentalmente, pelo fato de que inúmeras empresas
privadas, ao serem configuradas à forma de cooperativa por motivo de
falência, deram prosseguimento às suas atividades. A autora cita exem-
plos como a Companhia Brasileira Carbonífera Araranguá, transfor-
mada em Cooperminas - Cooperativa de Extração de Carvão Mineral
dos Trabalhadores de Criciúma Ltda e a Sidesa, que se transformou em
Coopermetal - Cooperativa dos Metalúrgicos de Criciúma.
Além disso, Lima considera que a Economia Solidária propor-
ciona aos trabalhadores oportunidades pessoais (emancipação, parti-
cipação política, prática em conjunto, entre outras) cuja contribuição
pode ser observada socialmente.

111
[...] se entende que o trabalho na perspectiva da Economia Solidária,
dentro seus princípios, possibilita ao trabalhador uma série de benefícios
enquanto ser humano, como por exemplo, seu empoderamento, emanci-
pação, participação política, preocupação com o meio ambiente, desen-
volvimento para atuar em equipe, dentre outras características propor-
cionadas pela ação coletiva na perspectiva da Economia Solidária, que
contribuem para que o trabalhador seja mais atuante enquanto cidadão
e mais contributivo para uma sociedade mais justa. (LIMA, 2006, p.40)
Dessa maneira, percebe-se que a Economia Solidária não é,
ainda, um movimento sócio-econômico que demonstra perfeição em
sua estruturação. Todavia, é válida a consideração de que, a partir da
Economia Solidária, nascem maneiras diversificadas de se produzir,
vender, comprar e trocar o que é necessário para a sobrevivência, sem
que seja feito uso de qualquer tipo de exploração ou destruição. Ou-
tros fatores relevantes, na experiência Econômica Solidária, indepen-
dente, de críticas ou considerações, são os resultados positivos que tal
prática tem alcançado. Tais como:
»» A formação de parcerias com organizações e/ou entidades
dos três setores da sociedade;
»» O aumento da credibilidade dos participantes de cooperati-
vas diante do poder público e da sociedade;
»» O envolvimento com diversas organizações que se tornaram
parceiras;
»» A inserção de produtos advindos da prática da economia
solidária nos mercados.
Dessa forma, observam-se características benéficas na prática
Econômica Solidária, que não são possibilitadas na economia tra-
dicional, e, mesmo que assim o fossem, apenas seriam garantidas, a
partir de leis, dificultando a liberdade e o crescimento pessoal dos
trabalhadores envolvidos.

4. CAPITALISMO, SOCIALISMO E ECONOMIA


SOLIDÁRIA: CONVERGÊNCIAS E DIVERGÊNCIAS
Paul Singer parece reescrever a história da luta dos trabalhado-
res pelo socialismo, nos últimos 200 anos, como se ela fizesse parte do
desenvolvimento progressivo da economia solidária, dando ênfase ao
cooperativismo de produção. O elemento verdadeiro dessa história

112
é que as lutas anticapitalistas tiveram seu início há quase 200 anos
(primeiras décadas do século XIX). Todavia, a formação de coope-
rativas não foi o eixo central da luta do proletariado contra o capi-
talismo. Para dar destaque ao equívoco de Singer, faz-se necessário
mostrar as grandes fases que podem ser identificadas na história da
luta do proletariado mundial contra o capitalismo.
A primeira fase vai do início do século XIX até 1848. Entre os fa-
tos destacados desse período, está o Ludismo, no qual trabalhadores des-
truíram muitas máquinas, que consideravam como as grandes culpadas
pelo desemprego, além de se observar, também, as primeiras tentativas
de formação de sindicatos. O cooperativismo desse período, por um lado,
era o subproduto das lutas práticas dos trabalhadores, que ocupavam fá-
bricas falidas e tentavam convertê-las em cooperativas, como uma me-
dida para reverter o desemprego causado pelas crises industriais e, por
outro lado, constituía as bases de utopias sociais pensadas por intelec-
tuais (como Fourier e Saint-Simon), porquanto essa fase é considerada
a fase do socialismo utópico. Segundo Singer, essa seria a fase inicial da
economia solidária, denominada “cooperativismo revolucionário” que
crescia como um modo de produção alternativo ao capitalismo.
Singer parece não distinguir as iniciativas práticas dos traba-
lhadores das propostas teóricas de intelectuais preocupados com o
agravamento da questão social. Apesar de importantes, esses proces-
sos se caracterizavam como uma reação defensiva dos trabalhadores,
quando em situação crítica do que a criação de projetos conscientes
de socialização dos meios de produção.
A segunda fase inicia-se em 1848, caracterizada pela interven-
ção do proletariado no processo social como classe consciente de seu
papel social e político. O proletariado supera a fase inicial, quando da
fusão das lutas práticas e teóricas, dando origem ao socialismo mo-
derno – este, baseado na ciência da história e no empirismo da socie-
dade. O proletariado fez sua primeira aparição, como classe indepen-
dente, nas revoluções burguesas de 1848. A partir desse momento, as
propostas utópicas, pautadas no cooperativismo como eixo central,
converteram-se como obstáculo ao avanço das lutas pelo socialismo,
uma vez que desviavam os esforços dos trabalhadores da luta pelo
poder de Estado, fator decisivo para a transformação social real. Nes-
te aspecto, evidencia-se o fato de que a classe proprietária dos meios
de produção e o Estado, que na fase anterior eram contrários às me-

113
didas cooperativistas dos socialistas utópicos, mudam de posição ao
perceber o seu caráter limitado em relação à nova fase socialista, e
passaram a adotar algumas medidas cooperativistas da fase anterior.
Ainda na segunda fase, passaram a ocorrer disputas internas, na clas-
se trabalhadora, entre o caminho das lutas meramente econômicas,
concentradas no cooperativismo e autolimitadas pela ampla superio-
ridade competitiva do capital e, as lutas na esfera da ideologia, da
cultura e da política, visando à conquista do poder de Estado.
A fase moderna de luta pelo socialismo, a partir de 1848, deu
origem a mais de um século de conquistas políticas dos trabalhado-
res, a partir do primeiro episódio significativo, que foi a Comuna de
Paris, em 1871 (primeira experiência histórica de governo dos traba-
lhadores). Em contraste com isso o cooperativismo, núcleo estraté-
gico de economia solidária, segundo Singer, em nenhum momento
foi capaz de catalisar um processo significativo de mudança social
dirigido pela classe trabalhadora.
A adoção da Economia Solidária, em lugar da disputa pelo po-
der de Estado, como estratégia de transição para o socialismo, consis-
tiria no abandono do terreno em que as condições de luta são mais
favoráveis aos trabalhadores, por um terreno onde as condições são
extremamente desfavoráveis. Os trabalhadores deixariam de concen-
trar sua força na arena política, onde numericamente são maiores,
para concentrar suas forças na arena econômica, a qual seriam di-
vididos em pequenos grupos – as cooperativas. Dessa forma, seriam
lançados no terreno da concorrência econômica, em que são inferio-
res à classe capitalista, pois nesse terreno o que conta é a qualidade
do capital e dos meios de produção e não a quantidade populacional.
Na formulação marxista, o socialismo, baseia-se na proprie-
dade social ou coletiva dos meios de produção e no planejamento da
economia como o oposto ao modelo do mercado. Na medida em que
a Economia Solidária, formulada por Singer, se opõe a essas duas pre-
missas do socialismo, conclui-se que ela não é um projeto socialista e,
portanto, não reflete os interesses do proletariado como classe.
Como já acima citado, Singer afirma que a “cooperativa de pro-
dução” é a “unidade típica da Economia Solidária”, e que a luta pelo co-
operativismo constitui a linha de continuidade histórica das lutas an-
ticapitalistas. Singer não forneceu qualquer definição da “cooperativa
de produção”, apesar de ser o centro da sua concepção de Economia

114
Solidária; portanto, se é induzido a pensar que a omissão conceitual
não é casual, mas impõe-se como condição para conferir um mínimo
de plausibilidade. Tentando pôr isso em evidência, faz-se necessário
rever os processos históricos do desenvolvimento do cooperativismo.
O cooperativismo surgiu há muito tempo no capitalismo e,
desenvolveu-se ao longo do tempo. O cooperativismo surgiu a partir
de duas diferentes origens: formação de associações de pequenos ca-
pitalistas, que evoluíram para a forma de cooperativas empresariais.
A motivação dessas cooperativas é puramente comercial, com o ob-
jetivo de reduzir custos individuais nas operações complementares
realizadas em grande escala; reação de trabalhadores assalariados, à
piora de suas condições de vida, em contexto de conflito político com
a classe capitalista. Também, nesse caso, há duas variantes que dife-
rem qualitativamente.
Por um lado, as cooperativas de consumo, nas quais a coopera-
ção não se dá na produção, na sua maioria, os associados se beneficiam
apenas como consumidores. A outra variante é a fábrica-cooperativa,
na qual, quem coopera são os próprios trabalhadores da empresa. As
fábricas-cooperativas surgiram a partir do início do século XIX, re-
sultante da tomada do controle das fábricas falidas em período de
crise industrial pelos trabalhadores. As fábricas-cooperativas foram
o tipo de cooperativas que menos se desenvolveu, porquanto nela
os próprios trabalhadores assumem o controle pleno da empresa e
da produção, no estágio mais avançado da produção capitalista. Isso
permite compreender o motivo pelo qual a cooperativa, símbolo do
chamado movimento cooperativista moderno, exaltado por Singer,
não seja a fábrica-cooperativa, mas sim a cooperativa de consumo.
Marx e Engels interessaram-se pelo fenômeno cooperativista,
na medida, em que representava elementos de uma nova estrutura
social em gestão. Por essa razão, o interesse concentrou-se nas fábri-
cas-cooperativas. Para Marx o fato mais importante das Fábricas-
cooperativas é o fato de que ela demonstra a possibilidade de o traba-
lhador assumir o controle da produção. Mas essa avaliação positiva
não levou Marx a ignorar o quadro global, onde essas cooperativas
estavam inseridas, caracterizados pela subordinação dos trabalhado-
res aos capitalistas. Ao contrário de Singer, não as considera como
um novo modo de produção. O novo modo de produção se manifesta
na própria estrutura do modo de produção vigente. Não há dois cor-

115
pos sociais lado a lado, mas um mesmo corpo social em processo de
transfiguração; não é o antigo, mas ainda não é o novo. Como o novo
modo de produção nasce no interior do antigo, a fase de transição do
capitalismo para o socialismo deve, necessariamente, caracterizar-se
pela contradição, das quais as fábricas-cooperativas são exemplos.
Marx iguala as cooperativas com as sociedades anônimas,
como formas contraditórias, que estavam emergindo no interior do
capitalismo. O que elas têm em comum, é que ambas separam a
gestão da produção da propriedade privada dos meios de produção
e são administradas por gestores indicados pelos proprietários co-
letivos, entretanto, ambas permanecem como prisioneiras da lógica
do capital, como capitalistas coletivos que são. Marx ainda indica
que a transição da propriedade privada para a propriedade coletiva
é gerada pelo desenvolvimento do próprio capitalismo e não pela
oposição da classe trabalhadora. Em uma primeira fase, a expansão
do capitalismo implica na expropriação dos produtores diretos e
na expansão do trabalho assalariado na sociedade. Na fase seguin-
te, a difusão das sociedades anônimas implica na expropriação dos
capitalistas individuais e na inserção da propriedade coletiva dos
meios de produção. Assim, a propriedade individual dos meios de
produção desaparece, sendo substituída pela propriedade coletiva
dos meios de produção.
Dessa forma, a Economia Solidária não é uma criação em
processo contínuo da luta dos trabalhadores contra o capitalismo,
ao contrário do que afirma Singer. Em seus textos sobre o tema, o
autor foi incapaz de identificar o processo real da luta dos traba-
lhadores.

5. O HISTÓRICO BRASILEIRO
DA ECONOMIA SOLIDÁRIA
Ao resgatar as lutas históricas de trabalhadores do século XIX, a
Economia Solidária surge como uma das formas de conter o avassalador
capitalismo industrial. As mudanças estruturais dos empregos ofertados,
o gradativo aumento da informalidade, a precarização das condições for-
mais de trabalho, além do desgaste das bases do modelo tradicional do
capitalismo, no tocante às relações empregatícias, instilam, nos trabalha-
dores mais afetados por crises econômicas e de desemprego, a busca pela

116
renda e pela sobrevivência própria e de seus conviveres, de uma maneira
alternativa e, acima de tudo, digna: a Economia Solidária.
Especificamente, no Brasil, a Economia Solidária surge, segun-
do Paul Singer, em uma provável resposta à grande crise de 1981/83,
quando da concordata de muitas indústrias de grande porte na re-
gião nordeste e centro-oeste do país:
É desta época a formação de cooperativas que assumem a indústria
Wallig de fogões, em Porto Alegre, a Cooperminas, que explora uma
mina de carvão falida em Criciúma (Santa Catarina) e as cooperati-
vas que operam as fábricas (em Recife e em São José dos Campos) da
antiga Tecelagem Parahyba de cobertores. Todas elas continuam em
operação até hoje. (SINGER, 2002, p. 07)
Entretanto, o fechamento de empresas continuaria e a de-
missão de numerosos trabalhadores perduraria nas décadas de
1980 e 1990. Graziela Lima, nesse contexto de desemprego que o
capitalismo promove, sugere a Economia Solidária como a criação
de uma nova economia no Brasil, por meio da organização de mo-
vimentos sociais:
Como forma de enfrentar esta realidade de miséria e exclusão,
promovida pelo capitalismo, e a partir da necessidade dos traba-
lhadores gerarem renda, emerge no Brasil, por meio da organi-
zação de movimentos sociais, uma nova economia, diferente da
tradicional, e que se desenvolve basicamente no âmbito de coope-
rativas populares, na qual seus princípios estão ligados à autoges-
tão, cooperativismo, coletividade, igualdade e solidariedade (...).
(LIMA, 2006, p. 34)
Aliada ao desenvolvimento pleno da Economia Solidária como
política pública no Brasil, surge em 2003, a Secretaria Nacional de
Economia Solidária – SENAES – que, junto ao Ministério do Traba-
lho e Emprego do governo federal, além de diversas outras atribui-
ções, é a responsável pela coleta e organização de dados sobre empre-
endimentos da Economia Solidária em território nacional:
Em consonância com a missão do Ministério do Trabalho e Emprego,
tem o objetivo viabilizar e coordenar atividades de apoio à Economia
Solidária em todo o território nacional, visando à geração de trabalho
e renda, à inclusão social e à promoção do desenvolvimento justo e
solidário. (MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO, 2009)

117
Ainda, de acordo com a SENAES, a Economia solidária deve
muito de seu sucesso a sistemáticos esforços de instituições apoiado-
ras, além do apoio governamental em proporcionar fóruns de debate
sobre o a nova economia:
No Brasil, a economia solidária se expandiu a partir de instituições e
entidades que apoiavam iniciativas associativas comunitárias e pela
constituição e articulação de cooperativas populares, redes de produção
e comercialização, feiras de cooperativismo e economia solidária, etc.
Atualmente, a economia solidária tem se articulado em vários fóruns
locais e regionais, resultando na criação do Fórum Brasileiro de Econo-
mia Solidária. Hoje, além do Fórum Brasileiro, existem 27 fóruns esta-
duais com milhares de participantes (empreendimentos, entidades de
apoio e rede de gestores públicos de economia solidária) em todo o ter-
ritório brasileiro. Foram fortalecidas ligas e uniões de empreendimentos
econômicos solidários e foram criadas novas organizações de abrangên-
cia nacional. (MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO, 2009)
Destarte, a Economia solidária contou com apoio de organi-
zações que possibilitaram o encadeamento de interesses múltiplos
que nasciam das relações sociais da Economia Solidária, em que em-
preendimentos solidários serviam de geradores de insumos dentro
de uma cadeia de interesse que, antes de chegar a consumidor final,
proporcionavam o sucesso econômico de outros empreendimentos
solidários em todo o Brasil.
Assim, delineia-se a silhueta de uma economia que demarcaria
seu espaço quantitativa e qualitativamente no contexto brasileiro da
atualidade, e que é objeto da próxima seção.

6. ATUALIDADE: COMPORTAMENTO E EVOLUÇÃO DA


ECONOMIA SOLIDÁRIA NO BRASIL
A Economia Solidária ao longo dos últimos 20 anos mostra
que se desenvolve rapidamente no Brasil, num panorama em que, se-
gundo Singer, “qualquer balanço tem que ser considerado provisório”.
Segundo dados oficiais da SIES – Sistema Nacional de Informações
em Economia Solidária, a recente expansão de empreendimentos so-
lidários em todo território nacional, num período que compreende
1979 e 2007, registra um crescimento de mais de 31 vezes ou um au-
mento de 3109,6 %, como é possível visualizar na gráfico 1:

118
Gráfico 1 – Crescimento de Empreendimentos Solidários – Brasil
Fonte: SIES

Não menos importante, é a estruturação proposta pelo SENA-


ES das primeiras conferências estaduais e da primeira conferência
nacional brasileira de Economia Solidária, como descreve Lima:
Outro avanço conquistado pelo movimento de Economia Solidária foi
a realização em 2006, das primeiras conferências estaduais, organiza-
das em todos os estados brasileiros, seguida da primeira conferência
nacional de Economia Solidária, que aconteceu em Brasília entre os
dias 26 e 29 de Junho do mesmo ano. O levantamento dos dados e as
conquistas no âmbito da Economia Solidária, evidenciam seu cresci-
mento e fortalescimento em todo o país (LIMA, 2006, p. 34)
Singer cita ainda que, atualmente, o desenvolvimento da Eco-
nomia Solidária não se dá apenas pelo agravamento do desemprego
em massa e da exclusão social, como o observado nas décadas de 80 e
90. Hoje, para o autor, o que impele a nova economia, em sua difusão
extrondosa nos últimos 20 anos, é a expansão do conhecimento concei-
tual da Economia Solidária, além da tecnologia social, econômica e ju-
rídica na implementação desse novo tipo econômico. Ele ainda conclui:
A construção dum modelo de produção alternativo ao capitalismo no
Brasil ainda está no começo, mas passos cruciais já foram dados, eta-
pas vitais foram vencidas. Suas dimensões ainda são modestas diante
do tamanho do país e se sua população. Mesmo assim, não há como
olvidar que dezenas de milhares já se libertaram pela solidariedade. O
resgate da dignidade humana, do auto-respeito e da cidadania destas
mulheres e destes homens já jusifica todo esforço investido na Economia
Solidária. É por isso que ela desperta entusiasmo. (SINGER, 2002, p. 37)
Por mais modestas que sejam as dimensões da Economia Soli-
dária apontadas por Singer no fragmento acima, é impactante e notó-

119
ria a evolução do espraiamento da nova economia no país, como in-
dicam os dados dos Empreendimentos de Economia Solidária (EES)
das figuras 1 (até 1990) e 2 (1990-2007) abaixo:

Figura 1 – EES até 1990


Fonte: SIES

Figura 2 – EES de 1990 até 2007


Fonte: SIES

120
Como fomentadora de mudança social, na qual a renda e a
gestão são igualmente geridas e divididas, a Economia Solidária des-
perta o interesse de milhares de pessoas, e uma estatística recente do
SENAES, ilustra a proporção desse interesse por regiões brasileiras,
como indicado na figura 3:

Figura 3 – EES e a participação popular por Região - Brasil


Fonte: IES

O apoio de organismos governamentais e não-governamentais


também se revela um dado importante na conjuntura da atualidade
brasileira, como é citado na página eletrônica do Ministério do Tra-
balho – SENAES:
A economia solidária também vem recebendo, nos últimos anos, cres-
cente apoio de governos municipais e estaduais. (...). Fruto do inter-
câmbio dessas iniciativas, existe hoje um movimento de articulação
dos gestores públicos para promover troca de experiências e o forta-
lecimento das políticas públicas de Economia Solidária. . (MINISTÉ-
RIO DO TRABALHO E EMPREGO, 2009)
Lima corrobora tal situação, mas, ademais de organizações go-
vernamentais, atenta-se às organizações sociais não pertencentes ao
governo federal:

121
Entre as principais instituições que vem trabalhando com este tema no
Brasil, pode-se destacar a Anteag (Associação Nacional dos Trabalha-
dores em Empresas de Autogestão e Participação Acionária), a Fase (Fe-
deração de Órgãos para Assistência Social), o Ibase (Instituto Brasileiro
de Análises Sociais e Econômicas), o PACS (Instituto Políticas Alterna-
tivas para o Cone Sul), a ADS (Agência de Desenvolvimento Solidário
da Central Única dos Trabalhadores), a Cáritas Brasileira (Instituição
ligada a Cáritas Internacional de atuação social da Igreja Católica), a
Rede Unitrabalho (Fundação Interuniversitária de Estudos e Pesquisa
sobre o Trabalho), a Rede de Gestores de Políticas Públicas de Fomento
a Economia Solidária, a SENAES (Secretaria Nacional de Economia
Solidária), outras ONG´s (Organizações não governamentais), alguns
sindicatos, Igrejas e Universidades, através das ITCPs (Incubadoras Tec-
nológicas de Cooperativas Populares). (LIMA, 2006, p. 41)
Ao se tratar dos principais motivos que corroboram a criação
de EES em todo o Brasil, dados oficiais da Secretaria Nacional de
Economia Solidária, por meio do SIES (Sistema de Informações de
Economia Solidária), informam que, hoje, o desemprego e a comple-
mentação de renda ainda figuram como os principais aspectos que
os trabalhadores apontam ao listarem tais motivos, como mostra a
tabela 1 abaixo:

Tabela 1 – Principais motivos de criação e formas de Organização


dos EES Brasil - Fonte: SIES

122
Finalizando, nota-se que a Economia Solidária, ao longo das
últimas décadas tem se fortalecido em todo o Brasil e possibilitando
assim a geração de renda e oportunidade para aqueles que geralmen-
te são mais afetados pelas crises capitalistas da contemporaneidade.
Ademais de ser uma economia nova e ao tratar de novos conceitos
como a autogestão e a solidariedade, a economia solidária sugere um
diferenciado padrão de envolvimento dos trabalhadores com o tra-
balho e, consequentemente, com a empresa em que trabalham. Mais
que renda, a Economia Solidária no Brasil, dá oportunidade a milha-
res de brasileiros de se sustentarem, dentro do cenário capitalista, de
maneira digna e honesta.

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esse artigo traz a Economia Solidária como uma medida de-
mocrática de socializar as relações de trabalho (patrão-empregado);
uma forma de propiciar a autogestão dos meios de produção, em
detrimento do sistema autocrático da estrutura capitalista vigente;
uma solução viável ao desemprego pela geração de trabalho e ren-
da, na implementação de políticas públicas de inclusão social; e, por
fim, uma alternativa em que a própria sociedade propõe a solução de
questões econômicas sem, necessariamente, a gestão estatal ou em-
presarial por meio de modelos cooperativos.

123
O rompimento com ideologias paternalistas ou assistencialis-
tas estatais, permite que a Economia Solidária crie um novo caráter
de autonomia, o qual se difunde entre os seus membros autogestores.
A existência do trabalho informal e o crescente desemprego
propiciam a organização de trabalhadores e, consequentemente, um
sistemático aprofundamento dos níveis organizacionais do terceiro
setor. Assim, a Economia Solidária se apresenta como um fator basi-
lar de tais tipos de organização social.
Além de tudo, e em contrapartida aos pressupostos estabele-
cidos no modo de produção capitalista, a Economia Solidária preza
por conceitos, como solidariedade e humanização das formas e con-
dições de trabalho, em que a valorização do ser humano passa a ser
um dos focos desse novo conceito econômico.
Muitos ainda são os desafios que devem ser superados pela
Economia Solidária, nesse movimento de construção teórica que
contribui na formação do conceito de Economia Solidária e ainda
como política pública no cenário brasileiro. Todavia, mais que difi-
culdades a superar, a Economia Solidária dá mostras de ser um mo-
delo econômico que conquista seu espaço na sociedade e se consolida
de maneira progressiva na atualidade.

8. REFERÊNCIAS
BRASIL, Ministério do Trabalho e Emprego. Secretaria Nacional de Eco-
nomia
Solidária. Apresentação. Disponível em: <http://www.mte.gov.br/ecosoli-
daria/secretaria_nacional_apresentacao.asp>. Brasília: SENAES, 2009.
Acesso em: 27 de maio de 2009
BRASIL, Ministério do Trabalho e Emprego. Secretaria Nacional de Eco-
nomia
Solidária. As Origens Recentes da Economia Solidária. Disponível em: <
http://www.mte.gov.br/ecosolidaria/ecosolidaria_origem.asp>. Brasí-
lia: SENAES, 2009. Acesso em: 27 de maio de 2009
BRASIL, Ministério do Trabalho e Emprego. Sistema de Informações de
Economia Solidária. O que é o SIES - apresentação. Disponível em: <
http://www.mte.gov.br/ecosolidaria/sies.asp>. Brasília: SENAES, 2009.
Acesso em: 27de maio de 2009
COSTA, Leopoldo et al. Integração: A Revista Eletrônica do 3º Setor. Dispo-
nível em: <http://integracao.fgvsp.br/4/opiniao.html>. Acesso em: 05
jun. 2009

124
LIMA, Graziela Luisa de. Responsabilidade Social Empresarial e Econo-
mia Solidária: análise da relação entre as instituições envolvidas no
programa de geração de trabalho e renda do Instituto do Consulado da
Mulher. 2006. 97 f. Dissertação (Graduação) - Curso de Serviço Social,
Universidade Regional de Blumenau, Blumenau, 2006.
NASCIMENTO, E. R. “PRINCÍPIOS DA ECONOMIA SOLIDÁRIA”. Bra-
sília: Ferreira, 2006.
SOUZA, D. N. de. Revista Katálisys. Florianópolis v. 11 n. 1 p. 53-60 jan./
jun. 2008
SINGER, Paul.(2002), “A recente ressureição da economia solidária no
Brasil”, In: B. S. Santos (org.), Produzir para viver: os caminhos da pro-
dução não capitalista, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.

125
126
INTE R CÂM BIO COM E R CIA L
ENTRE S ANTA C ATARIN A E OS
EMIRADOS ÁRABE S UNIDOS :
análise do mercado exportador
de frango catarinense

Leandro Antônio Dariva1

RESUMO: O artigo contextualiza o intercâmbio comercial de car-


ne de frango exportada pelo estado de Santa Catarina aos Emirados
Árabes Unidos, identificando, nessa relação, a importância econômi-
ca para o estado. Propõe-se ainda, analisar as possibilidades de ex-
pansão do comércio bilateral. De modo descritivo e fundamentado
em pesquisas bibliográficas de órgãos governamentais e entidades de
classe da indústria avícola catarinense, se apontam os resultados al-
cançados e os processos passíveis de melhoria. A conclusão é de que
o predomínio do capitalismo foi determinante para a atuação global,
tanto de empresas quanto de governos, exigindo que Santa Catarina
acompanhe essa tendência e amplie, constantemente, sua inserção
internacional no segmento que é mais competitivo: o agronegócio.
Nesse quesito, o mercado alimentício emirense, que movimentou
mais de US$ 6,2 bilhões em 2006, dos quais coube ao Brasil a parcela
de apenas US$ 810,23 milhões, sinaliza uma clara oportunidade de
incremento comercial que não pode ser desprezada, tendo em vista a
intensa concorrência característica do mundo Pós Guerra-Fria.
PALAVRAS - CHAVE: Intercâmbio Comercial; Relações Santa Catarina-Emirados
Árabes Unidos; exportação de frango.

1 Graduado em Relações Internacionais pela Univali.

127
1. INTRODUÇÃO

A crise vivenciada pelo socialismo já em meados da década de


80, sinalizava o fracasso do bloco soviético e a futura consolidação do
modelo capitalista em âmbito global. A incapacidade do comunismo,
de responder como um modelo eficaz de desenvolvimento, provocou
sua derrocada e possibilitou a expansão de novos valores, dentre eles
o neoliberalismo.
Introduzido, ainda, em 1980 nos Estados Unidos, pelo presi-
dente Ronald Reagan, o neoliberalismo significou a valorização do
indivíduo em detrimento dos valores coletivos. Com efeito, as ge-
rações oriundas daquele período histórico viram-se comprometi-
das apenas com a ascensão profissional em detrimento de questões
sociais, característica que, em um primeiro momento, passou a ser
predominante no mundo ocidental. Sem alternativas, uma vez que
o capitalismo saíra como única ideologia triunfante do período da
Guerra Fria, passou a ser visto como “a forma ideal de organizar a
vida, a política e a economia do planeta”. (TV CULTURA, 2000)
Como consequência, todos os continentes foram se inserindo
num contexto de multiplicação de disputas econômicas, ascensão
de Organizações Internacionais voltadas ao comércio e à formação
de blocos supranacionais. E foi no bojo dessas transformações que
a Comunidade Econômica Europeia (CEE), constituída em 1957,
ampliou-se para União Europeia (UE) em 1991, formaram-se a Coo-
peração Econômica da Ásia e do Pacífico (Apec) e o North American
Free Trade Agreement (Nafta) ambos em 1989, e o Mercado Comum
do Sul (Mercosul) em 1991. (Boulos, 2006)
No atual ambiente globalizado, os países passaram a se articular
cada vez mais com vistas a aumentar sua projeção externa sobre o sis-
tema financeiro mundial, uma vez que a capacidade econômica passou
a reger as relações de poder entre esses Estados. Essa condição tem pro-
porcionado uma busca crescente pela abertura econômica, pelo avanço
tecnológico e pela internacionalização de empresas, que acabam, por
sua vez, dinamizando o comércio mundial. Tal conjuntura e seus refle-
xos sugerem um estudo centrado nas oportunidades comerciais a serem
aproveitadas pelo Brasil, e em especial pelo estado de Santa Catarina.
Com pouco mais de 6 milhões de habitantes distribuídos em
95,4 mil km², Santa Catarina possui uma economia dinâmica, na qual

128
a agricultura forte, baseada em minifúndios rurais, divide espaço
com um parque industrial atuante, o quarto maior do país. (GOVER-
NO DO ESTADO DE SANTA CATARINA, 2008).
Embora diversificada, dados recentes revelam que a carne de
frango (carnes inteiras e miudezas) predominou na pauta exportadora
catarinense em 2007, respondendo por 47,59% do seu comércio exte-
rior. Em termos monetários, significa que o estado obteve (FOB) US$
1.192.286.374 milhões em 2007, US$ 384.447.861 milhões a mais do
que o arrecadado em 2006 (US$ 807.838.513 milhões). (FEDERAÇÃO
DAS INDÚSTRIAS DO ESTADO DE SANTA CATARINA, 2008).
Apresentando relações comerciais com diversos países, Santa
Catarina encontra-se dentre os mercados mais tradicionais e promis-
sores os Emirados Árabes Unidos (EAU). Localizado no Golfo Arábi-
co, é um pouco menor que o estado catarinense (83 mil quilômetros
quadrados) e abriga uma população de quase 5 milhões de habitan-
tes. Governado desde 1971 por um xeque com total controle sobre os
assuntos internos, empregou-se durante vários anos um processo de
diversificação econômica, que lhe possibilitou despontar como uma
importante economia do mundo árabe e origem de grande parte das
demandas de importação regional. (CÂMARA ÁRABE DE NOTÍ-
CIAS, 2006).
Especificamente para o segmento avícola catarinense, sua re-
levância advém, justamente, de sua posição como grande importador
mundial. De acordo com o Departamento de Agricultura dos Estados
Unidos, apenas em 2006, as estimativas para o consumo per capita
de carne de frango no país árabe chegavam a 60,3 quilos per capi-
ta, consolidando-o como principal consumidor mundial (AVISITE,
2006). Somente em 2007, foi o segundo maior importador de carne
avícola brasileira, estimulando um comércio de US$ 282,2 milhões,
com crescimento de 71,56% em relação ao ano anterior. (CÂMARA
DE COMÉRCIO ÁRABE-BRASILEIRA, 2007).
Porém, apesar de apresentar um dos maiores índices mundiais
de renda per capita, ser destaque na pauta comercial agropecuária
brasileira, e um dos mais relevantes centros de distribuição e reex-
portação do Oriente Médio, ainda é um Estado relativamente desco-
nhecido, até mesmo por alguns setores empresariais. Já para um esta-
do de competitividade agropecuária, é fundamental ter um parceiro
comercial consolidado, responsável pelo estímulo à produção interna

129
e incorporação do excedente. Como o mercado emirense acaba res-
pondendo em grande parte por este papel, é de considerável impor-
tância identificar, observar, analisar e apontar caminhos que levem a
uma maior inserção catarinense nesse mercado.
Para tanto, o trabalho perpassará, inicialmente, um breve his-
tórico da intensificação do comércio internacional, especialmente,
a partir do final da Guerra Fria, para então contextualizar o atual
processo de globalização e tratar especificamente do comércio entre
Emirados Árabes Unidos e Santa Catarina.

2. GLOBALIZAÇÃO E COMÉRCIO INTERNACIONAL


No processo de globalização vigente, é crescente o número de
mudanças sociais, políticas, estruturais e, sobretudo, econômicas. Em
geral, o termo é utilizado para expressar a integração de muitas so-
ciedades sob todos esses pontos de vista. (SANTIAGO, 2006). Porém,
há várias definições para esse conceito.
Para alguns autores, abrange a associação histórica de três di-
mensões. A primeira é a tecnológica, com inovações no campo técni-
co-científico. A segunda, de caráter geopolítico, remete à abertura da
China e a desintegração do bloco soviético. Já a terceira, responde às
estratégias empresariais de conglomerados transnacionais em corpo-
rações globais. (MAGNOLI e SERAPIÃO, 2006).
Em relação às transformações econômicas, alguns autores afir-
mam que o crescimento no fluxo internacional do comércio come-
çou a atingir caráter mundial somente nos séculos XVI, XVII e XVIII,
com a expansão europeia à Ásia através das companias comerciais.
Além disso, o comércio triangular britânico no tráfico de escravos
acabou por criar condutas políticas globalizantes entre os países, as
indústrias e os mercadores. (OLIVEIRA, 2004).
Já no século XIX, de acordo com dados da Organização Mun-
dial do Comércio, no período anterior à Primeira Guerra Mundial, as
relações comerciais entre os países tiveram um crescimento médio
de 2,5% ao ano, com incremento na produção de 2,2%. (FEDERA-
ÇÃO DAS INDÚSTRIAS DO ESTADO DE SANTA CATARINA, 2001).
Posteriormente, em meados dos anos de 1950 e 1972, as relações
comerciais se intensificaram e atingiram um índice anual de 5,8%. Já
em relação à produção, também se verificou crescimento em torno de

130
3,9% (OLIVEIRA, 2004). Para efeito de comparação, a Federação das
Indústrias do Estado de Santa Catarina (2001, p. 11) atesta que
Na segunda metade do século, enquanto o comércio em 1958 era na or-
dem de US$ 114 bilhões, em 1975 estava em US$ 903 bilhões e chegou
em 1996 a US$ 6,3 trilhões. De forma acumulada, no período que com-
preendeu os anos de 1970 e 1998, o volume global de exportações cresceu
1600,8%, e o Produto Interno Bruto (PIB) mundial aumentou 889,5%.
Comparando-se os dados acima expostos, percebe-se que as
trocas internacionais tiveram franca expansão, especialmente, a par-
tir da década de 70. Nesse período, em particular, o início do declínio
comunista já começava a apontar para a primazia do comércio, sobre
as formas tradicionais de projeção do poder entre os blocos, como o
militar, por exemplo. Nesse ínterim, através do comércio, as necessi-
dades relacionadas ao bem-estar de uma sociedade podem ser obti-
das de forma pacífica. De acordo com tal concepção, pode-se dizer, ao
menos, teoricamente, que a liderança militar ou territorial já não é
mais prioridade estatal.
Portanto, foi somente na Idade Contemporânea através de sig-
nificativas transformações nas áreas de tecnologia e informatização,
além da criação de instituições de fomento ao comércio internacional,
que as trocas comerciais atingiram o maior nível de todos os tempos.
Foi a partir desse período histórico que
[...] o processo do comércio global tem a seu favor o aperfeiçoamento
das redes de comunicação e o baixo custo do transporte, minimização
das barreiras tarifárias, nova divisão internacional do trabalho e das
tendências de sua estratificação global. A instituição do sistema de co-
mércio mundial pelo regime GATT 1947 e GATT 1994 fez expandir as
relações de comércio, que livre de normatizações estatocêntricas, intensi-
ficou as relações de comércio como um todo. (OLIVEIRA, 2004, p. 166).
A partir de então, ocorre um aumento no fluxo do comércio de
pequenas e grandes empresas que passam a atuar nos mais variados
mercados internacionais. Não obstante, Oliveira (2004, p. 164-165)
assevera que como consequência
[...] cresce também a competência global, emergindo a evolução de
um sistema de relações comerciais globais e de mercados globais,
porque também a produção doméstica pode potencialmente ser
disponível em rede, ficando sujeita à competência desses mercados

131
mundiais, uma vez que as relações do comércio global se conectam
com as relações comerciais internas dos Estados, seja no plano local
e doméstico, seja no plano nacional. Com o grande fomento dos mer-
cados globais opera-se mais volume de venda da produção interna,
ocasionando um relacionamento crescente entre comércio global e a
economia interna.

A Federação das Indústrias do Estado de Santa Catarina


(FIESC) aponta que em razão dessa interação entre comércio glo-
bal e economia interna, os países em desenvolvimento também se
beneficiaram. Isso porque “no período 1999/2000 o volume de ex-
portações dobrou e a pauta de produtos exportados tornou-se mais
diversificada, proporcionando aumento da produção desses países”.
(FEDERAÇÃO DAS INDÚSTRIAS DO ESTADO DE SANTA CATA-
RINA, 2001, p.11).
Notadamente, apesar da oscilação nos níveis globais de inter-
câmbio comercial, seu crescimento tem se apresentado de forma con-
tínua. Por consequência, países economicamente estáveis, a exemplo
dos Emirados Árabes Unidos, ao ganharem cada vez mais destaque
no ambiente de trocas, justificam uma maior atenção sobre as suas
relações comerciais com o Brasil, em específico com o estado de San-
ta Catarina.

3. RELAÇÃO COMERCIAL ENTRE OS EMIRADOS


ÁRABES UNIDOS E O ESTADO DE SANTA CATARINA
(2003-2008)

Pelo fato de representar um ambiente relativamente novo para


investimentos e oportunidades de negócios, o mercado emirense deve
ser foco de atuação do segmento exportador catarinense no Oriente
Médio, de modo a consolidar o comércio já existente, e expandi-lo a
outros setores e produtos.
Nesse sentido, faz-se relevante identificar a evolução das suas
relações comerciais com o estado de Santa Catarina, em especial nos
últimos cinco anos, com o objetivo de demonstrar o enorme poten-
cial para o aprofundamento desse comércio. Para tanto, é possível ob-
servar no gráfico a seguir o comportamento dessa balança comercial,
com clara predominância das exportações catarinenses.

132
Gráfico 1. Evolução do intercâmbio comercial entre Santa Catarina e
Emirados Árabes Unidos em US$ milhões (FOB).
Apesar de ampla balança favorável, verificou-se, a partir de da-
dos disponíveis na Secretaria de Comércio Exterior (SECEX) do Mi-
nistério do Desenvolvimento Indústria e Comércio Exterior brasilei-
ro, que em 2003, os Emirados Árabes Unidos foram apenas o 24º país
de destino às exportações de Santa Catarina. Em valores percentuais,
a participação desse mercado na balança comercial do estado corres-
pondeu a 0,69%, com embarques no valor de (FOB) US$ 25.465.551
milhões. Já quanto às importações estaduais, não se efetuou qualquer
compra daquele país. (MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO IN-
DÚSTRIA E COMÉRCIO EXTERIOR, 2008).
Em 2004, a participação no mercado emirense sofreu pequena
redução. Configurando-se como 26º país de destino, os Emirados pas-
saram a responder por 0,66% do comércio internacional do estado, ge-
rando receitas na ordem de (FOB) US$ 32.265.625 milhões. Em contra-
partida, naquele ano também não foi registrada nenhuma importação
catarinense desse parceiro comercial. (MINISTÉRIO DO DESENVOL-
VIMENTO INDÚSTRIA E COMÉRCIO EXTERIOR, 2008).
Posteriormente, em 2005, os EAU voltaram a se configurar
como o 24º principal importador do estado. Em números, as expor-
tações catarinenses somaram (FOB) US$ 42.328.344 milhões, repre-
sentando acréscimo na participação daquele mercado para 0,76%.
Neste ano, em questão, foram registradas pela primeira vez importa-
ções catarinenses do país, totalizando (FOB) US$ 31.981 mil. Ao final,
o saldo comercial manteve-se positivo em US$ 42.296.363 milhões.
(MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO INDÚSTRIA E COMÉR-
CIO EXTERIOR, 2008).

133
O ano de 2006, por sua vez, terminou com os Emirados Ára-
bes na 25º posição de destino às exportações estaduais. Seu índice
de participação, no comércio exterior do estado, manteve-se o mes-
mo do ano anterior (0,76%). Mas o montante gerado por suas im-
portações sofreu considerável aumento, fechando o ano em (FOB)
US$ 45.174.473 milhões. No entanto, mais uma vez, não houve im-
portações catarinenses desse país. (MINISTÉRIO DO DESENVOL-
VIMENTO INDÚSTRIA E COMÉRCIO EXTERIOR, 2008).
Já em 2007, apesar do aumento gradual do intercâmbio comer-
cial entre as duas regiões, o país árabe não alterou sua posição de 25º
país de destino dos produtos catarinenses, importando em valores FOB
US$ 69.882.009 milhões. Sua participação nas transações comerciais
do estado, contudo, sofreu aumento para 0,95%. Logo, Santa Catarina
acabou importando cerca de (FOB) US$ 117.677, mantendo assim am-
plo superávit de US$ 69.764.332 milhões. (MINISTÉRIO DO DESEN-
VOLVIMENTO INDÚSTRIA E COMÉRCIO EXTERIOR, 2008).
Até o primeiro semestre de 2008, mais uma vez, consolidou-
se a estabilidade na balança comercial com os Emirados Árabes,
com as exportações catarinenses excedendo as importações. Entre-
tanto, pôde-se observar, especialmente, nesse ano, uma intensifica-
ção nesse comércio bilateral. Até o último mês, por exemplo, essa
corrente comercial já havia movimentado (FOB) US$ 60.385.858
milhões, dos quais (FOB) US$ 58.944.616 foram provenientes das
exportações, e (FOB) US$ 1.441.242 milhão em importações. (MI-
NISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO INDÚSTRIA E COMÉRCIO
EXTERIOR, 2008).
Ao final, é possível observar a partir do gráfico e dos dados
relacionados à evolução do intercâmbio comercial entre as regiões,
uma ocupação gradual dos produtos catarinenses no mercado árabe
em questão. Contudo, ainda há um enorme espaço a ser preenchido
pelo comércio bilateral, uma vez que essas relações ainda se encon-
tram muito desproporcionais. Nesse sentido, embora a jovem nação
árabe tenha condições de dinamizar seu comércio com o estado, seu
potencial, ainda assim, é pouco explorado pelos segmentos econô-
micos estaduais, muitas vezes restritos a setores limitados, como o
moveleiro, alimentício e calçadista.

134
4. EVOLUÇÃO DO INTERCÂMBIO COMERCIAL DE CARNE
DE FRANGO ENTRE OS EMIRADOS ÁRABES UNIDOS E
O ESTADO DE SANTA CATARINA (2003-2008)

Ainda com o intuito de identificar a evolução do comércio en-


tre as duas regiões, embora dessa vez de modo mais restrito a um
gênero de produto, serão utilizados novamente dados oficiais do go-
verno brasileiro, disponíveis a todos os interessados em contribuir
com o avanço dessas relações.
Assim sendo, através da comparação de dados compilados no
sistema governamental aliceweb, é possível ter uma clara dimensão da
composição da carne de frango e seus derivados, na pauta exportadora
catarinense aos Emirados Árabes Unidos. Porém, para um estudo mais
detalhado, serão abordados apenas os índices de 2003 (ano em que o
Brasil assumiu a liderança na exportação mundial de carne de frango)
ao primeiro semestre de 2008 (jan-jul). Já os produtos escolhidos foram
as carnes de galos e galinhas não cortados e congelados, e os pedaços e
miudezas comestíveis de galos e galinhas congelados, por representa-
rem os itens mais relevantes nas exportações avícolas.

Gráfico 2. Evolução das Exportações de Carne de Frango Catarinense


aos Emirados Árabes Unidos em US$ milhões (FOB).

A partir da observação do gráfico, embora sejam perceptíveis


oscilações no intercâmbio comercial, as carnes de galos e galinhas
não cortadas em pedaços e congeladas terminaram o ano de 2003
auferindo aos exportadores catarinenses US$ 12.928.760 milhões
(FOB), com um volume negociado de 16.746.658 kg. Em 2004, no

135
entanto, houve uma sensível redução tanto nos valores comerciali-
zados quanto no volume embarcado. Dessa forma, a receita obtida
foi de (FOB) US$ 10.586.191 milhões, enquanto o peso líquido che-
gou aos 12.901.381 kg. No ano seguinte (2005), porém, houve me-
lhora no desempenho comercial desses produtos, ainda que, timi-
damente. Como resultado, registrou-se faturamento de (FOB) US$
12.571.003 milhões, em razão dos 11.443.697 kg vendidos. Essa
recuperação, no entanto, não se manteve no ano de 2006, marcado
por novos retrocessos. Por isso, registraram-se valores comerciais
na ordem de (FOB) US$ 10.092.659 milhões, resultado da queda
no volume exportado, que chegou a 9.953.310 kg. Tais oscilações
permaneceram em 2007, embora dessa vez com reflexos positivos.
Assim, configurou-se no ano recordes de exportação, garantindo às
empresas catarinenses, surpreendentes (FOB) US$ 22.225.572 mi-
lhões, correspondentes à venda de 16.517.689 kg. Todavia, as ex-
portações do produto para o ano de 2008 geraram expectativas de
superar todos os índices até então registrados. Isso porque, somente
até o mês de julho, o faturamento com esse item alimentício exce-
deu todo o exportado em 2006, aproximando-se, rapidamente, do
registrado em 2007, gerando (FOB) US$ 17.190.973 milhões. Assim,
até julho daquele ano, 10.613.384 kg já haviam sido vendidos aos
Emirados Árabes. (MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO IN-
DÚSTRIA E COMÉRCIO EXTERIOR, 2008).
Já em relação às exportações dos pedaços e miudezas comestí-
veis de frango, se comparados à versão inteira da ave, observa-se que
tanto o seu volume quanto o seu faturamento são menores. Mas os fa-

136
tos mais relevantes e passíveis de análise são justamente os sucessivos
aumentos nesses dois quesitos, ocupando uma parcela de mercado
mais estável, embora inferior.
Comprovando tal afirmativa, tem-se que em 2003 foi exportado
um montante de (FOB) US$ 1.902.460 milhões, relativos ao embarque
de 1.829.211 kg do alimento. Um ano depois (2004), a receita já atingiu
o patamar de (FOB) US$ 3.872.833 milhões, movimentando um volu-
me de 3.472.793 kg. Seguindo o ritmo de crescimento, o ano de 2005
fechou com vendas no valor de (FOB) US$ 6.917.973 milhões, com
um total de 4.729.306 kg destinados aos Emirados Árabes. Em 2006,
por sua vez, o produto conferiu aos exportadores catarinenses (FOB)
US$ 7.472.857 milhões, em face da venda de 6.164.213 kg. Ainda em
expansão, tais produtos alimentícios movimentaram, em 2007, (FOB)
US$ 12.905.086 milhões, correspondentes aos 6.975.040 kg importa-
dos pelos EAU. Até o mês de julho de 2008, manteve-se a tendência de
expansão do produto, uma vez que em apenas seis meses, o valor total
arrecado com suas exportações aos Emirados, praticamente, se igua-
lou ao obtido em todo o ano de 2007. Em termos financeiros, foram
arrecadados até aquele momento (FOB) US$ 12.839.348 milhões, com
5.579.315 kg embarcados. (MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO
INDÚSTRIA E COMÉRCIO EXTERIOR, 2008).
Com relação às informações citadas, cabe ressaltar que embo-
ra o volume exportado de miudezas de galos e galinhas tenha sofrido
certo recuo, os altos faturamentos se explicam pela alta nos preços
dos produtos alimentícios no mercado mundial, em razão do aumen-
to de sua demanda.

5. MECANISMOS PARA O INCREMENTO COMERCIAL


ENTRE O ESTADO DE SANTA CATARINA E OS
EMIRADOS ÁRABES UNIDOS
Num cenário profundamente globalizado, a alta concorrência
internacional acaba por exigir dos produtores avícolas catarinenses a
adoção de mecanismos com vistas à manutenção das suas exporta-
ções ao mercado árabe. Nesse sentido, informações precisas a respei-
to dos indicadores sociais, políticos, econômicos, culturais, tecnoló-
gicos, marcos regulatórios, capacidade de consumo, ciclo de vida dos
produtos congêneres, forma de atuação da concorrência local, entre

137
outros, possibilitam uma melhor inserção internacional, maximizan-
do os lucros e reduzindo os riscos. Para tanto, faz-se indispensável
uma pesquisa de mercado concentrada, identificando os principais
nichos de mercado e possibilidades de expansão.
Nos Emirados Árabes Unidos, a forma liberalizada como é tra-
tado o mercado alimentício, principalmente, através da isenção de
taxas de importação sobre a carne de frango, somada às altas possibi-
lidades de ganho em um segmento que movimenta mais de 3 bilhões
de euros anuais, acabam por torná-lo um ambiente extremamente
competitivo. (AGÊNCIA DE NOTÍCIAS ÁRABE BRASIL, 2008).
Como consequência, deve haver por parte da empresa catari-
nense uma busca crescente pela inovação, diversificação e qualidade
de seus produtos, dedicando-se de fato ao mercado local. Para tan-
to, além de investimentos produtivos, deve-se dar especial atenção
à mão-de-obra, para que esta esteja apta a suprir todos os requisitos
indicados pelo importador.
Além disso, a constante capacitação dos profissionais encar-
regados das estratégias empresarias com os países árabes, garantirá
aos mesmos a habilidade necessária para identificar oportunidades e
concretizar intercâmbios comerciais. Por isso, mais do que a simples
realização, é importante a presença marcante dos empresários, nos
diversos seminários sobre negociações e mercados árabes, promo-
vidos no estado pela Federação das Indústrias do Estado de Santa
Catarina (FIESC), em parceria com a Câmara de Comércio Árabe
Brasileira. Tais eventos são sempre de grande valia para profissionais
engajados em comercializar, de modo correto e eficaz com os impor-
tadores dos Emirados Árabes Unidos e região.
Paralelamente, é relevante tomar conhecimento de outros ins-
trumentos que se bem utilizados, poderão se tornar um diferencial,
contribuindo assim para a ampliação da corrente comercial de carne
de frango com o país árabe. E é, justamente, com essa finalidade, que
se realizam a promoção comercial, a divulgação de material promo-
cional, as rodadas de negócios, as aberturas de escritórios ou repre-
sentações comerciais e o auxílio das câmaras de comércio.
A promoção comercial, entendida como a divulgação da ima-
gem e dos produtos de uma empresa, com vistas a construir um am-
biente favorável à sua atuação, pode ser um dos componentes para o
sucesso catarinense na região arábica. Isso porque a promoção pres-

138
supõe uma gama variada de atividades, dentre elas a participação em
eventos internacionais como feiras e missões. (FARO, 2007).
Em relação às feiras, exposições e mostras internacionais, as
empresas catarinenses têm à sua disposição uma importante ferra-
menta de marketing. Pelo fato de algumas delas serem relativamen-
te desconhecidas no mercado emirense, as participações em feiras
comerciais são de grande impacto na sua promoção comercial. Isso
porque ao mobilizar um grande número de potenciais consumidores
em um único espaço, acabam possibilitando o fechamento imediato
de negócios. Não obstante, é um evento em que os visitantes podem
ser observados como eventuais consumidores, demonstrando sua re-
ação ante os produtos expostos. (FARO, 2007).
No tocante às feiras, os EAU são particularmente atraentes. Isso
porque são realizados anualmente no país cerca de 600 eventos comer-
ciais, dentre eles a principal feira de produtos alimentícios do Oriente
Médio: a Gulfood. (CÂMARA ÁRABE NOTÍCIAS, 2008). Organiza-
da desde 1987, a feira contou somente em 2008 com cerca de 2,5 mil
expositores de 72 países, distribuídos numa área de mais de 60 mil
metros quadrados. Além disso, o alto grau de internacionalização do
evento gerou a expectativa de contar com a presença de mais de 38 mil
visitantes, dos quais, empresários de 140 países, ressaltando sua impor-
tância na geração de oportunidades. (ROCHA, 2008).
Outro mecanismo bastante difundido são as missões empre-
sariais, ou seja, “as viagens realizadas com o objetivo de promover a
aproximação de representantes dos segmentos produtivos dos mer-
cados envolvidos nessa iniciativa (o visitante e o visitado)” (FARO,
2007, p. 213). Nesse quesito em particular, o empresariado de Santa
Catarina está há muito tempo engajado, tomando como exemplo a
iniciativa do governador catarinense Luís Henrique da Silveira em
liderar uma missão empresarial aos Emirados Árabes Unidos, no mês
de novembro de 2008. Previamente, discutida e elaborada em Floria-
nópolis, segundo o embaixador dos Emirados em Brasília, Youssuf
Ali Al-Usaimi, a viagem teria como objetivo colocar frente a frente
empresários dos dois países e alavancar as oportunidades de negó-
cios (ROCHA, 2008).
Outra iniciativa de expansão comercial pode ser desenvolvi-
da através da divulgação de materiais promocionais. Nesse quesito,
incluem-se itens como “[...] folders, brochuras, catálogos, listas de

139
produtos, ou, ainda, Cds e DVDs, por se tratar de elementos de fácil
obtenção, custo relativamente baixo, e que não enfrentam dificulda-
des extremas no seu desenvolvimento e elaboração, podem e devem
ser utilizados à exaustão”. (FARO, 2007, p. 211).
Mecanismo, igualmente, importante para alavancar a expor-
tação, é a abertura de escritórios e representações comerciais no país
foco. Através dessa iniciativa, a empresa pode realizar de maneira
mais efetiva sua promoção comercial. Além disso, estando mais próxi-
ma dos importadores e do mercado local, facilita-se tanto a prospec-
ção de novas oportunidades de negócios, quanto o acompanhamento
das tendências do mercado. Segundo Amilcar Lacerda de Almeida,
gerente de comércio exterior da Associação Brasileira da Indústria da
Alimentação (ABIA), “ter um escritório no local é fundamental para
aumentar a exportação”. (DANIEL, 2008).
Na sequência, observa-se a contribuição das rodadas de negó-
cios, como forma de promover o conhecimento mútuo das partes en-
volvidas na negociação. Geralmente, reuniões previamente agendadas,
de curta duração, as rodadas de negócios são as principais responsáveis
por colocar frente a frente os potenciais importadores e exportadores.
Cada vez mais comuns devido ao baixo custo, são empreendidos inclu-
sive com a ajuda de organizações como o Serviço Brasileiro de Apoio às
Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE). (FARO, 2007).
As empresas catarinenses atuantes no comércio exterior têm
ainda o incentivo das Câmaras de Comércio, responsáveis, direta-
mente pelo fomento dos intercâmbios comerciais. Sociedades civis
sem fins lucrativos são reconhecidas oficialmente pelo país que re-
presentam. Nesse contexto de participação ativa no estímulo às tro-
cas bilaterais, especificamente, no tocante ao Brasil e os países árabes,
que se apresenta a Câmara de Comércio Árabe Brasileira (CCAB).
(MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO INDÚSTRIA E COMÉR-
CIO EXTERIOR, 2008).
Fundada há mais de 50 anos, a CCAB tem a missão de incre-
mentar o intercâmbio econômico e cultural entre as regiões, sendo
a única representante dos 22 países da Liga dos Estados Árabes re-
conhecida do país. Integrando ainda a União Geral das Câmaras de
Comércio, Indústria e Agricultura dos Países Árabes, está capacitada
a oferecer os serviços mais relevantes ao segmento empresarial, como
a coleta de informações sobre hábitos de consumo e de comércio, di-

140
vulgação do calendário islâmico, consultas comerciais, certificação de
documentos, publicidade e embalagens, recebimento de delegações
internacionais, e promoção de seminários e palestras, tudo com a fi-
nalidade de melhor assessorar empresários árabes e brasileiros. (CÂ-
MARA DE COMÉRCIO ÁRABE BRASILEIRA, 2008).
Com efeito, auxilia ainda um dos mecanismos mais eficazes ao
setor empresarial brasileiro, desejoso por comercializar com os Emi-
rados Árabes: o Centro de Negócio Dubai (CN Dubai).
Fruto de uma parceria entre a Câmara Árabe e a APEX Brasil
(Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos), o
CN Dubai coloca à disposição dos exportadores, escritórios e servi-
ços administrativos, além de espaços destinados à armazenagem,
com o objetivo de facilitar a operacionalização das vendas, atender
à dinâmica da demanda local (estoques), garantir acesso a mercados
regionais e reduzir os custos e riscos de internacionalização. (CÂMA-
RA DE COMÉRCIO ÁRABE BRASILEIRA, 2008).
Por fim, é importante destacar a atuação do governo brasileiro
ao longo dos anos, no sentido de fomentar a participação do país no
comércio internacional, principalmente, a partir do Ministério das Re-
lações Exteriores (MRE) e do Ministério de Desenvolvimento, Indús-
tria e Comércio Exterior (MDIC). Nesse sentido, estão à disposição do
empresariado uma grande variedade de sites e instrumentos governa-
mentais, que se propõem a auxiliar as atividades de comércio exterior.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A queda do Muro de Berlim significou o predomínio do mo-
delo capitalista, desenvolvido a partir da premissa de que a iniciativa
privada e o mercado são dois condicionantes para o desenvolvimento
de uma nação. O papel do Estado, por sua vez, ao menos interna-
mente, passou de indutor do progresso a mero regulador das relações
econômicas, ainda que com poderes limitados frente ao capital.
Geralmente, associado à ineficiência administrativa pela tese
neoliberal, o que se viu foi a intensificação do intercâmbio interna-
cional de bens, capitais, serviços e pessoas, que limitaram ainda mais
sua atuação a mero espectador de transações e investimentos inter-
nacionais, que, não raras vezes, contribuíram para a vulnerabilidade
econômica nacional.

141
Essa condição deveu-se em grande parte ao alto grau de endi-
vidamento dos países em via de desenvolvimento, resultado da aber-
tura econômica sem capacidade competitiva. Como consequência, à
recorrente busca por financiamentos externos, especialmente, junto
ao Fundo Monetário Internacional, atrelavam ainda mais o Estado
devedor ao compromisso de “[...] zerar o déficit público, tomar atitu-
des claramente de recessão, que, evidentemente, não seriam as mais
adequadas para o Terceiro Mundo”. (FARIA, 1997, p. 205)
Contudo, muitos Estados estão recuperando seu papel ativo
não somente através da formulação de políticas que visam o aumen-
to das exportações nacionais, como também se fazem notar na pros-
pecção, consolidação e ampliação de mercados. Atualmente, não só
o governo brasileiro, mas também as suas unidades federativas e a
iniciativa privada têm trabalhado de forma conjunta e coordenada no
intuito de atrair recursos externos.
Nesse sentido, a liberalização econômica possibilitou a inserção
das empresas nacionais nos mais distintos mercados, o que seria, pra-
ticamente, impossível num ambiente conflituoso e fechado, a qualquer
iniciativa alheia a um dos blocos dominantes. Como resultado, os mer-
cados árabes passaram a ser mais visíveis, atrativos e viáveis, sugerindo
uma maior participação brasileira nas suas relações econômicas.
Com cerca de 60% de sua população estabelecida em áreas ári-
das ou semi-áridas, e, portanto, de baixa produtividade, esses países
têm a necessidade de importar cerca de 90% de suas demandas por
alimentos, sendo muito promissores nesse segmento. Essa necessidade,
por sua vez, faz com que o comércio não seja profundamente afetado
por recorrentes crises mundiais, uma vez que nesses períodos de in-
certeza, os itens alimentícios são sempre os últimos a serem cortados
pelos consumidores. O mercado emirense em especial, ao importar, em
2006, itens alimentícios na ordem de US$ 6,2 bilhões, dos quais o Brasil
representou parcela de US$ 810,23 milhões desse comércio, acaba de-
monstrando o enorme potencial ainda a ser conquistado.
Santa Catarina, por sua vez, no segmento alimentício, abastece
esse mercado árabe, principalmente, com a carne de frango, item que
compõe a dieta daquela população local. Como consequência, o esta-
do tem, no Golfo Arábico a figura dos Emirados Árabes Unidos como
tradicional parceiro comercial, cujo destaque tem crescido, especial-
mente, a partir de 2003.

142
Oscilando entre a 24ª e 26ª posição de destino às exportações es-
taduais, os Emirados proporcionam uma sinergia comercial, em grande
parte, pelo crescimento populacional do país árabe, cuja parcela majo-
ritária da população é muçulmana, e por isso, consome diariamente a
carne de frango. Paralelamente a tal crescimento populacional, está o
alto poder de compra dos nacionais, com renda per capita em torno de
aproximadamente US$ 25 mil dólares, ainda em 2005. Tais fatores, num
contexto de crescimento sustentável, principalmente, voltado ao turismo
como meio de diversificação econômica, fazem deste Estado um ambien-
te propício para uma maior participação catarinense em seu mercado.
Responsável pela posição de principal exportador brasileiro
de carne de frango em termos de receita, o estado de Santa Catarina
mantém com os Emirados Árabes Unidos um intercâmbio comercial
oscilante em relação ao produto alimentício. Nesse sentido, a carne de
frango na versão congelada, embora tenha variado algumas vezes, reto-
mou o crescimento em 2008, alcançando, somente no primeiro semes-
tre, valores muito próximos do total obtido em 2007. Já as miudezas de
galos e galinhas, mesmo que tenham representados valores e volumes
exportados inferiores aos registrados pelo item anterior, ainda assim
demonstraram maior estabilidade e a tendência de franca expansão.
De acordo com a pesquisa de mercado “Hábitos de Consumo e
Decisão de Compra nos Emirados Árabes Unidos”, elaborada e divul-
gada pelo secretário-geral da Pan Arab Research, a carne de frango é
a preferência nacional dentre as carnes, compondo o terceiro item de
maior consumo semanal (41%). Já dentre as suas versões, prevalece
a natural (50%), seguida pela versão congelada (41%) e pela carne já
pronta (39%). Essa relativa paridade de escolha entre elas, por sua
vez, demonstra a ampla aceitação do consumidor nacional pelas dife-
rentes versões da carne, desde que apresentem qualidade. (CÂMARA
ÁRABE NOTÍCIAS, 2008). Em razão disso, esse mercado diversifica-
do e atrativo deve ser mais bem divulgado.
Levando essas afirmativas em consideração, tem-se, portanto,
que em relação ao intuito de identificar se há capacidade importado-
ra nos Emirados para ampliar o comércio bilateral do produto sele-
cionado, a resposta é positiva, no sentido de haver amplo espaço a ser
ocupado pelo produto catarinense.
De modo geral, é importante aprofundar estudos nessa área
para que a partir de novas abordagens, os acadêmicos, estudiosos, e

143
interessados no tema dos Emirados, disseminem, entre os leitores, o
propósito de ser um internacionalista, aplicando seu conhecimento
para desenvolver, ainda mais, o estado catarinense através da parce-
ria, da cooperação, e do diálogo com os países árabes.

7. REFERÊNCIAS
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comprar alimentos do Brasil. Disponível em: <http://www.anba.
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145
U MA ALTERNATIVA PARA A
AVALIAÇÃO JURÍDICO-AM BIE N TAL
DE UM A ORGANIZ AÇÃ O

Rafael Dall´Agnol1

RESUMO: O presente trabalho apresenta uma proposta de metodo-


logia de avaliação do desempenho jurídico-ambiental empresarial. A
preocupação mundial com o desempenho das organizações produ-
tivas em relação ao atendimento à legislação ambiental ganha força
e expressão Mundial, somente, após a queda do Muro de Berlim. A
fundamentação da ferramenta, denominada Ferramenta de Avalia-
ção Jurídico-Ambiental, pauta-se na análise do conjunto de normas
e dispositivos legais da área ambiental aplicáveis a pessoas jurídicas.
A partir desse delineamento do que se chamou de arcabouço jurí-
dico-ambiental, são estudas metodologias de gestão já consagradas
aplicáveis à gestão ambiental, para incorporação na estrutura da fer-
ramenta. Como resultando, define-se uma metodologia que avalia o
reconhecimento do arcabouço jurídico-ambiental, o comportamento
empresarial expresso em termos de ações realizadas, para atender os
atributos jurídico-ambientais e o desempenho resultante da empresa.
A ferramenta apresentada preenche uma lacuna na área de gestão,
por não existirem mecanismos para que a empresa identifique de for-
ma estruturada a eficácia jurídico-ambiental do processo produtivo.

PALAVRAS-CHAVE: Desempenho Jurídico Ambiental; avaliação


organizacional; Direito ambiental

1 Doutor pela Universidade Federal e Santa Catarina-UFSC. Professor da Facul-


dade Estácio de Sá de santa Catarina- FESSC

146
1. A QUEDA DO MURO DE BERLIM, O DIREITO
AMBIENTAL E O COMPROMETIMENTO EM
ATENDER A LEGISLAÇÃO AMBIENTAL
Com toda certeza, o marco histórico da queda do muro de
Berlim também contribuiu muito com o rompimento das barreiras
que resguardavam o preconceito, acerca do debate do protecionismo
legal do meio ambiente para todo o setor produtivo.
Em 09 de novembro de 1989, com a crise do sistema socialis-
ta no leste da Europa e o fim deste sistema na Alemanha Oriental,
ocorreu a queda do muro. Cidadãos da Alemanha foram para as ruas
comemorar o momento histórico e ajudaram a derrubar o muro.
O ato simbólico representou também o fim da Guerra Fria e o
primeiro passo na reintegração da Alemanha com a Europa e o resto
do Mundo.  O mundo todo vivenciou esse final de ciclo, e o início do
rompimento dos paradigmas.
Novos paradigmas surgiam, e muito mais que isso, utópicos visavam
um mundo sem paradigmas, um modelo interligado de relações comple-
xas, aonde não se justifica copiar o modelo e sim desenvolvê-lo livremente.
Os modelos jurídicos de proteção ambiental, até a queda do
muro de Berlim eram modelos não homogêneos e apenas reconheci-
dos em cada um dos poucos países que o possuíam. No caso do Brasil,
a estrutura jurídica ambiental até 1988 era completamente esparsa e
sem reforço constitucional.
Com o advento da Constituição Federal de 1988, ao meio am-
biente além de ser elevado ao grau constitucional, ganhou em nossa
Carta Magna espaço próprio em um capítulo a ele dedicado. Porém,
como sabemos, a lei por si só não afeta a consciência e o pensamento
das pessoas, dos cidadãos e tão pouco do setor produtivo.
Com a abertura de mercados, que simbolicamente teve iní-
cio, ou retomada, com a queda do muro de Berlim, o setor produtivo
começa a repensar as questões ligadas ao meio ambiente. Surge, no
mundo, a preocupação com a demonstração das organizações com o
seu comprometimento com as interfaces ambientais de sua produção.
E é nessa linha de pensamento, aberta com os simbolismos da
queda do muro de Berlim e sua repercussão econômica mundial, que,
hoje, passamos 20 anos deste marco simbólico, apresenta-se uma fer-
ramenta capaz de medir, mensurar o desempenho jurídico ambiental
de uma organização produtiva.

147
2. FERRAMENTA PARA A AVALIAÇÃO DO DESEMPENHO
JURÍDICO-AMBIENTAL EMPRESARIAL
Os elementos originais da ferramenta apresentada envolvem a
projeção do desempenho jurídico-ambiental das empresas, contem-
plando a análise dinâmica das pressões da estrutura política, legal e
judicial sobre as empresas e do comportamento jurídico-ambiental
das mesmas.
Pretende-se com a ferramenta apresentada, portanto, dotar as
empresas de um instrumento para avaliar de forma qualitativa, seu
posicionamento estratégico atual em relação ao desempenho jurídi-
co-ambiental, permitindo a definição de qual a posição desejam ocu-
par, em relação ao atendimento à legislação ambiental.
Muito embora, no mercado de sistemas jurídicos, existam fer-
ramentas que auxiliam na identificação da legislação aplicável à de-
terminada empresa, ainda existe uma lacuna. No ambiente jurídico,
não existem ferramentas que permitam avaliar o comportamento
das empresas frente ao conjunto de normas e dispositivos legais, que
compõem o arcabouço legal a qual estão submetidas. Os mecanis-
mos jurídicos existentes e os modelos de apoio à gestão estratégica
já desenvolvidos, são indutores no desenvolvimento da ferramenta
apresentada neste trabalho.

2.1. FUNDAMENTOS CONCEITUAIS DA FERRAMENTA


Uma vez localizada, a empresa, no sistema atual de mercado
aberto, estará ela sujeita a pressões externas, que de forma dinâmica
interferem nas estratégias adotadas pela empresa no trato da questão
ambiental. Por exemplo, alguns produtos como frutas, sucos de frutas
e cereais sofreram restrições, por parte dos mercados consumidores,
sob a alegação de uso indiscriminado de agrotóxicos em seus cultivos
(Rosa, 2001).
Porter (1999) salienta ainda, que as normas ambientais ela-
boradas de forma adequada são capazes de desencadear inovações
que reduzem os custos totais de um produto ou aumentam seu valor.
Essas inovações tecnológicas atuam como pressões externas e permi-
tem que as empresas utilizem uma gama de insumos (matéria-prima,
energia e mão-de-obra) de maneira mais produtiva, compensando,
assim, os custos da melhoria do impacto ambiental.

148
A sociedade civil organiza-se por meio das mais diversas per-
sonalidades jurídicas, sejam elas Organizações Não Governamentais
- ONGs´ ou Sociedades Civis, sem Fins Econômicos. As Organizações
da Sociedade Civil de Interesse Público- OSCIP´s têm contribuído
como forte instrumento de pressão, uma vez que tais entes jurídicos
são obrigados a terem, dentre os seus objetivos estatutários, a defesa,
preservação e conservação do meio ambiente, como também a pro-
moção do desenvolvimento sustentável.
Percebe-se, também, uma mudança na maneira da sociedade
enxergar a questão ambiental, compreendendo a perspectiva de que
os problemas ambientais globais são de responsabilidade não mais
de unidades isoladas (instituições, empresas, comunidades científi-
cas ou governos), mas sim de toda a sociedade, o que acarreta a pos-
sibilidade de alterações na estrutura jurídica-ambiental do País.
Por fim, conforme o acima exposto, estruturam-se como pres-
sões externas consideradas para a ferramenta apresentada, denomi-
nada Ferramenta de Avaliação Jurídico-Ambiental (FAJA) os seguin-
tes itens:
a) Pressão da sociedade civil organizada;
b) Acidentes ambientais catastróficos;
c) Ações governamentais;
d) Novas Tecnologias;
e) Evolução da Consciência Ambiental pela Sociedade;
f) Comportamento ambiental de concorrentes.
As pressões externas agem como um conjunto de forças que
levam o Estado a apertar os laços que compõem a legislação ambien-
tal. Ou seja, o conjunto de normas e dispositivos legais, bem como o
conjunto de agentes aplicadores da legislação é atualizado, normal-
mente, no sentido da maior severidade, em grande parte devido a
estas pressões externas.
As questões jurídicas fazem parte da gestão empresarial, nos
planos estratégicos, táticos e operacionais, ainda mais, se considerar-
mos o fato de que a tutela jurídica ambiental brasileira foi revigorada
nas últimas décadas, com foco nas atividades industriais.
A estrutura jurídica de nosso País é consistente e engloba prin-
cípios fundamentais para a proteção do meio ambiente, dentre os
quais, o princípio da prevenção, onde os atos e ações somam esforços
jurídicos no intuito de se evitar o dano ambiental.

149
A tutela ambiental, que é a forma como agem o estado e a so-
ciedade, pela via judicial ou administrativa, para regulamentar as
atividades produtivas, potencialmente, danosas ao meio ambiente,
molda o comportamento dos cidadãos e empresas. Sendo, esse traba-
lho voltado ao campo empresarial, trataremos apenas do conjunto de
elementos da tutela ambiental voltados à atividade empresarial, que
será tratado como arcabouço jurídico-ambiental.
O arcabouço jurídico-ambiental faz parte do ambiente exter-
no no qual a empresa está submersa, junto com os demais fatores
externos considerados na avaliação estratégica da indústria. Influi,
diretamente, em decisões estratégicas, na criação de empresas e na
manutenção das atividades industriais.
O arcabouço ambiental depende basicamente de três elementos:
a) Da legislação aplicável, nas esferas federal, estadual e mu-
nicipal;
b) Da efetividade da ação dos agentes aplicadores, por exem-
plo, CONAMA e IBAMA na esfera federal, FATMA na esfera
estadual de Santa Catarina e FLORAM na esfera municipal
em Florianópolis;
c) Os tipos de atividades realizadas pela empresa. Uma em-
presa química que produz efluentes de alta toxidade, es-
tará sujeita a dispositivos legais não pertinentes a uma
madeireira.
A empresa, para se adequar aos requisitos contidos do arca-
bouço jurídico ambiental, deve identificar o conjunto de normas e
dispositivos legais, que regulamentam a atividade típica de sua área
de atuação. Essa avaliação parte da análise das atividades executadas
pela empresa e da identificação de elementos do arcabouço jurídico-
ambiental, relacionados com cada elemento do fluxo de valor.
Para que essa identificação seja possível, o arcabouço jurídico
deve ser desmembrado em elementos mais tangíveis, que para fins
desse trabalho são denominados atributos jurídico-ambientais.
A figura 1 ilustra os elementos que definem o arcabouço jurí-
dico-ambiental aplicável.

150
Figura 1 – Arcabouço jurídico-ambiental traduzido em um conjunto
de atributos.

Um atributo é um elemento do arcabouço jurídico-ambiental,


que a empresa deve reconhecer como um requisito jurídico-ambien-
tal. Dependendo do tipo de atividade produtiva existente, pode haver
atributos que se relacionam com apenas parte dos elos que compõem
o fluxo de valor. Por exemplo, se a empresa extrai a matéria-prima
utilizada, estará sujeita a uma série de atributos a uma concorrente
que adquire tais insumos de terceiros, não terá que observar. É im-
portante ressaltar, que a ferramenta apresentada nesse trabalho, no
estado de desenvolvimento atual, não prevê a análise da co-partici-
pação, ou seja, se os fornecedores e clientes da empresa em estudo,
também atendem aos atributos jurídico-ambientais relacionados
com suas atividades.
Na figura 2, são exemplificados alguns atributos jurídico-am-
bientais. Nota-se que um atributo deve ser expresso por uma frase
curta, a qual a empresa pode utilizar em uma lista de requisitos para
verificar se a contempla ou não em suas práticas de gestão.

151
COMÉRCIO
FLUXO DE PROJETO INSUMOS DESTINO
PRODUÇÃO
VALOR MAT.PRIMA FINAL

• preservação dos processos ecológicos essenciais.


• promoção do manejo ecológico das espécies e ecossistemas
• preservação da diversidade e a integridade do patrimônio
genético.
• estudo prévio de impacto ambiental para instalação de obra ou
atividade potencialmente causadora de significativa degradação
do meio ambiente.
• risco de perda sua função ecológica da fauna e a flora .
• extinção de espécies ou submissão de os animais à crueldade.
ATRIBUTOS • controle dos impactos da produção sobre a fauna
• controle dos impactos da produção sobre a flora.
• controle dos impactos da produção sobre os recursos hídricos.
• controle dos impactos da produção sobre o solo.
• controle dos impactos da produção sobre o sub solo.
• comercialização de substâncias que comportem risco para a vida
da população e ao meio ambiente.
• emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco
para a vida da população e ao meio ambiente.
• restauração dos processos ecológicos essenciais.
• prática de medidas mitigadoras.
• promoção da educação ambiental.
• iniciativas de proteção da fauna e a flora além de seu entorno.

Figura 2: Exemplos de atributos considerados na avaliação jurídico-


ambiental.

Tendo identificado os atributos jurídico-ambientais aos quais


deverá se adequar, a empresa deve passar a incorporá-los como variá-
veis no processo decisório, nos níveis estratégico, tático e operacional.
Diante de um atributo como, por exemplo, preservação dos pro-
cessos ecológicos essenciais, a empresa pode optar pela simples obser-
vância da legislação, ou pode ir além, agindo de forma pró-ativa, através
de investimentos em recuperação de áreas afetadas por outras empre-
sas, financiamento de estudos ambientais ou promoção da educação
ambiental para seus colaboradores e para a comunidade em geral.
Essa forma de agir, traduzida em intensidade, pró-atividade
e amplitude das ações, é definida na ferramenta apresentada como
comportamento jurídico-ambiental, que pode inclusive exceder os
limites da atuação jurídica, no caso de ações que extrapolem os re-
quisitos contidos nos atributos jurídico-ambientais. Assim, como o
conjunto de atributos é a parte tangível do arcabouço jurídico-am-
biental, as ações são os elementos palpáveis, através dos quais, se
percebe o comportamento jurídico-ambiental empresarial, à luz do
fluxo de valor da empresa, conforme representado na figura 3. A ideia

152
que a figura representa, são as atividades da empresa, representadas
pelo fluxo de valor, sofrem influência dos atributos contidos no arca-
bouço jurídico. Como contrapartida, a empresa realiza ações para se
adequar a esses atributos. Tais ações, que definem o comportamento
jurídico-ambiental da empresa, são incorporadas nos processos que
compõem o fluxo de valor.

Figura 3: Os atributos jurídico-ambientais atuam sobre o fluxo de


valor, exigindo ações por parte da empresa.

O objetivo da Ferramenta de Avaliação Jurídico-Ambiental


(FAJA) é avaliar como ocorre a estratégia jurídico-ambiental adotada
pela empresa, através da avaliação do reconhecimento dos atributos
jurídico-ambientais e das ações que traduzem o comportamento ju-
rídico-ambiental empresarial.
Define-se, dessa forma, para fins desse trabalho, o desempenho
jurídico-ambiental, como a forma de mensurar os resultados do com-
portamento da empresa, face aos atributos que compõem o arcabou-
ço jurídico-ambiental pertinente.
Para a medição do desempenho jurídico-ambiental, é necessária
a adoção de indicadores de desempenho específicos. Os indicadores de

153
desempenho são divididos em categorias, segundo a função a ser con-
siderada, que oferece à empresa, após a aplicação do modelo, uma posi-
ção classificatória em relação ao seu desempenho positivo ou negativo.
A divisão é feita da seguinte forma, com suas respectivas fun-
ções de análise:
a) Poluição/Impacto;
b) Administração e Gerência Jurídica Ambiental;
c) Passivo Jurídico Ambiental.
Verifica-se até então, nessa discussão inicial de conceitos que
suportam a Ferramenta de Avaliação Jurídico-Ambiental, que o cres-
cente foco, na questão ambiental vem resultando em maior rigidez na
tutela ambiental. Com isso, a empresa fica imersa em um arcabouço
jurídico-ambiental, traduzido na forma de diversos atributos jurídi-
co-ambientais. As ações que a empresa realiza para atender ou su-
perar esses atributos, moldam o comportamento jurídico-ambiental
empresarial. O resultante desse confronto, arcabouço-jurídico versus
comportamento, é o desempenho jurídico-ambiental. Para que a es-
tratégia empresarial possa ser realinhada, para se adequar à variável
jurídico-ambiental, é necessário que a empresa seja dotada de um
mecanismo de avaliação do desempenho jurídico ambiental, que au-
xilie no processo decisório, sendo que a ferramenta apresentada nes-
se trabalho busca preencher essa lacuna.

2.2. VISÃO GERAL DA FERRAMENTA


A ideia geral da ferramenta é avaliar como a empresa se
comporta, em cada um dos elementos do fluxo de valor, frente aos
atributos do arcabouço legal, através de ações incorporadas ao seu
sistema de gestão. A partir daí, a ferramenta busca avaliar o enqua-
dramento dessas ações nos níveis: preserva, cumpre, remedia e ante-
cipa, utilizando um sistema de pontuação que permite não só medir
o desempenho resultante deste comportamento, como possibilita o
acompanhamento do desempenho ao longo do tempo e ainda análi-
ses comparativas entre empresas.
A figura 4 traz o framework da FAJA, com seus elementos
constituintes. Cada elemento que compõe o framework será objeto de
mensuração qualitativa, segundo análise situacional durante a apli-
cação da ferramenta.

154
Figura 4: Framework da Ferramenta de Avaliação Jurídico-Ambiental.

A Ferramenta de Avaliação Jurídico-Ambiental (FAJA) tem


como indutor o modelo ECP-Ambiental, proposto por Abreu (2001).
Seu objetivo é constituir, ao final da coleta e análise de dados especí-
ficos, uma base sólida para o apoio das decisões gerenciais que envol-
vam a organização em estudo e a legislação ambiental a esta aplicável.
Para o início do desenvolvimento da FAJA, é necessário o le-
vantamento de um conjunto de elementos circunstanciais, determi-
nados pelo modelo como indicadores. Esse conjunto de indicadores
está dividido em indicadores do arcabouço jurídico-ambiental, in-
dicadores de comportamento jurídico-ambiental e indicadores de
desempenho jurídico-ambiental. A ferramenta também considera
a existência de pressões externas, que impulsionam o dinamismo
ao modelo. Cada elemento que compõe o Framework da FAJA será
abordado a seguir.
Salienta-se que, especificamente, em relação ao comportamento
jurídico-ambiental, a ferramenta considera a verificação de ações atra-
vés de atributos dentro de um fluxo de valor considerado. A FAJA abor-
da um fluxo de valor padrão, considerando-se desde o projeto, os insu-
mos e as matérias-primas, a produção até seu comércio/destino final.
Os atributos a serem considerados surgem a partir da leitura
da estrutura jurídica ambiental aplicável, sendo muitos destes inte-
grantes diretos de legislações ambientais específicas, tendo a impor-
tância neste ponto de ressaltar o caráter dinâmico desse processo da
modelagem do arcabouço jurídico-ambiental. A legislação acompa-
nha, ainda que com certo amortecimento, a evolução da consciência

155
ambiental e o agravamento dos problemas ambientais. As ações dian-
te do conjunto de atributos que compõem o arcabouço jurídico-am-
biental, é que irão determinar o comportamento jurídico-ambiental
da organização.
Apresentada essa visão geral da ferramenta, passa-se a defini-
ção de cada um dos elementos circunstanciais que a compõem, com
detalhamento de seus fundamentos e funções dentro do framework
da ferramenta.

2.2.1. INDICADORES DE ESTRUTURA JURÍDICA


AMBIENTAL APLICÁVEL
Para a Ferramenta de Avaliação Jurídico-Ambiental (FAJA), a
estrutura jurídica ambiental aplicável é considerada em duas instân-
cias: inicialmente, o corpo jurídico vigente e aplicável; e em seguida,
os meios e formas de sua aplicabilidade. Na sequência, considera-se
também a existência de determinadas competências, observando-se
a classificação legal, segundo a escala hierárquica da legislação fede-
ral, estadual e municipal.
Já o Comportamento Jurídico-Ambiental para a ferramenta
apresentada, é caracterizado a partir de três elementos básicos de
compreensão:
a) Fluxo de Valor: Para um enfoque mais eficiente e amplo,
faz-se necessário o uso do conceito que Porter (1989, p. 42)
denominou como sendo cadeia de valor ou fluxo de valor:
“(...) conjunto de atividades criadoras de valor desde as fontes de
matérias-primas básicas, passando por fornecedores de componen-
tes e indo até o produto final entregue nas mãos do consumidor”.
b) Ação: Na Ferramenta de Avaliação Jurídico-Ambiental, uma
ação significa um movimento no sentido de atender os atri-
butos jurídico-ambientais em uma ou mais etapas do fluxo
de valor. O comportamento jurídico-ambiental se manifesta
através do conjunto de ações executadas. Essas ações não
devem ser esparsas e pontuais, devendo fazer parte do sis-
tema de gestão da empresa. As ações são classificadas em
preserva; cumpre; remedia; antecipa.
c) Atributos: Surgem a partir do conjunto de requisitos legais
aplicáveis.

156
Na figura 5, observa-se a classificação da ação empresarial na
análise do comportamento Jurídico-Ambiental no Modelo ECP Jurí-
dico-Ambiental.

FLUXO
AÇÃO ATRIBUTO
DE VALOR
Preserva • preservação dos processos ecológicos essenciais;
Cumpre • promoção do manejo ecológico das espécies e ecossistemas;
PROJETO
Remedia
Antecipa • preservação da diversidade e a integridade do patrimônio
genético;
Preserva
INSUMOS/ • estudo prévio de impacto ambiental  para instalação de obra
Cumpre
MATÉRIA- ou atividade potencialmente causadora de significativa de-
Remedia
PRIMA
Antecipa gradação do meio ambiente;
Preserva • risco de perda de sua função ecológica da fauna e a flora ;
Cumpre • extinção de espécies ou submissão dos animais à crueldade;
PRODUÇÃO
Remedia
Antecipa • controle dos impactos da produção sobre a fauna e flora;
• controle dos impactos da produção sobre os recursos hídricos;
• controle dos impactos da produção sobre o solo e subsolo;
• comercialização de substâncias que comportem risco para a
saúde da população e o meio ambiente;
Preserva
COMERCIO/ • emprego de técnicas, métodos e substâncias que compor-
Cumpre
DESTINO tem risco para a saúde da população e o meio ambiente;
Remedia
FINAL
Antecipa • restauração dos processos ecológicos essenciais;
• prática de medidas mitigadoras;
• promoção da educação ambiental;
• iniciativas de proteção da fauna e a flora além de seu entorno.

Figura 5: Classificação da Ação Empresarial na Análise do Compor-


tamento Jurídico-Ambiental no Modelo ECP-Jurídico Ambiental.

O desempenho jurídico-ambiental é o conjunto de resultados


decorrentes do comportamento jurídico-ambiental da empresa. Os
indicadores de desempenho jurídico-ambiental são divididos em ca-
tegorias, segundo a função a ser considerada, que oferece à empresa
após a aplicação do modelo, uma posição classificatória em relação
ao seu desempenho positivo ou negativo. A divisão é feita da seguinte
forma, com suas respectivas funções de análise:
a) Poluição/Impacto;
b) Administração e Gerência Jurídica Ambiental;
c) Passivo Jurídico Ambiental.

157
Para esse item da avaliação do comportamento jurídico-am-
biental, consideram-se as seguintes funções mensuráveis:
a) A empresa atende a Legislação Ambiental;
b) A empresa atende parcialmente a Legislação Ambiental;
c) Não Atende a Legislação Ambiental.
Em algumas circunstâncias, não basta apenas atender a legis-
lação aplicável, e sim se faz necessária a administração e a gerência
desse atendimento. Todas as atividades na empresa são planejadas,
coordenadas, dirigidas e controladas. A questão jurídico-ambiental
também merece certo grau de estruturação.
Aplicando-se tal conceito aos indicadores de desempenho
jurídico-ambiental, relacionados à administração e gerência jurídica
ambiental, conota-se a sua aplicabilidade, diretamente, sobre os se-
guintes itens a serem administrados:
a) Autorização por meio de licença ambiental;
b) Leitura dos dados existentes na empresa, indicativos de
possível comprometimento com o atendimento a legislação
ambiental;
c) Planos e Programas de Gestão;
Em termos contábeis e passivos, são obrigações das empresas com
terceiros, sendo que, tais obrigações, mesmo sem uma cobrança formal
ou legal, devem ser reconhecidas. O passivo ambiental provém dos danos
causados ao meio ambiente ao longo do tempo, representando, assim, a
obrigação e a responsabilidade social da empresa com aspectos ambien-
tais. Nessa proposta, no balanço patrimonial de uma empresa é incluído,
através de cálculos estimativos, o passivo ambiental (danos ambientais
gerados), e no ativo (bens e direitos), são incluídas as aplicações de recur-
sos voltadas para a recuperação do ambiente, bem como investimentos
em tecnologia de processos de contenção ou eliminação de poluição.
Nos aspectos administrativos, estão enquadradas as observân-
cias, às normas ambientais, os procedimentos e estudos técnicos efe-
tivados pela empresa, relacionando-se:
»» Registros de cadastros junto às instituições governamentais;
»» Cumprimento de legislações;
»» Efetivação de Estudo e Relatório de Impacto Ambiental das
atividades;
»» Conformidade das licenças ambientais;
»» Pendências de infrações, multas e penalidades;

158
»» Acordos tácitos ou escritos com vizinhanças ou comunidades;
»» Acordos comerciais (por exemplo: certificação ambiental);
»» Pendência do PBA Programa Básico Ambiental;
»» Resultados de auditorias ambientais;
»» Medidas de compensação, indenização ou minimização
pendentes.
Portanto, o passivo jurídico-ambiental nada mais é, que o
resultado do não atendimento dos atributos contido no arcabouço
jurídico-ambiental, que já fora identificado pelos órgãos ambientais
competentes, e que ainda estão pendentes de cumprimento, por par-
te das organizações, das sanções que lhe foram aplicadas, sendo que
estas sanções podem ser:
a) Administrativas (Plano Material Administrativo): conside-
ram-se sanções administrativas as que podem estar com-
pondo o passivo jurídico-ambiental da organização, como
sendo: advertência, multa simples, multa diária, apreensão
dos animais, produtos e subprodutos da fauna e flora, instru-
mentos, apetrechos, equipamentos ou veículos de qualquer
natureza utilizados na infração; destruição ou inutilização
do produto;  suspensão de venda e fabricação do produto;   
embargo de obra ou atividade; demolição de obra; suspen-
são parcial ou total das atividades; restritiva de direitos.  
b) Sanções Judiciais (Plano Jurídico Processual): consideram-
se sanções judiciais as que podem estar compondo o passivo
jurídico-ambiental da organização, como sendo: multa; res-
tritivas de direitos, com a suspensão parcial ou total de ati-
vidades; interdição temporária de estabelecimento, obra ou
atividade; proibição de contratar com o Poder Público, bem
como dele obter subsídios, subvenções ou doações e ainda
prestação de serviços à comunidade. 
  No item passivo jurídico-ambiental para a avaliação do de-
sempenho jurídico- ambiental, consideram-se as seguintes funções
mensuráveis:
a) Possui;
b) Em Geração, ou
c) Não Possui.
Uma vez apresentados os elementos que compõem a Ferra-
menta de Avaliação Jurídico-Ambiental, percebem-se que os resul-

159
tados que serão obtidos após a sua aplicação, servirão de subsídio
ao processo de tomada de decisões gerenciais, envolvendo tópicos
ambientais com implicações jurídicas. Cada indicador do desem-
penho jurídico-ambiental terá uma pontuação, conforme descrito
no quadro 1.

Valor Atribuído à
01 (um) Ponto 03 (três) Pontos 05 (cinco) Pontos
Resposta

Índice Mínimo Meso Máximo

Abaixo do Padrão Dentro do Padrão Acima do Padrão


Significado Jurídico-Ambiental Jurídico-Ambiental Jurídico-Ambiental
exigido exigido exigido

Quadro 1 - Atribuição de valores às respostas que compõem o instru-


mento de coleta de dados do modelo ECP-Jurídico Ambiental.

A partir da aplicação da ferramenta nos diferentes setores da


empresa, gera-se uma matriz de compilação de informações, nas
quais, também são considerados dados adicionais incluídos pelo co-
laborador responsável, em fornecer as informações solicitadas, nos
instrumentos de coleta de dados.
Com a aplicação da Ferramenta de Avaliação Jurídico-Am-
biental, os indicadores são analisados segundo as três categorias:
reconhecimento do arcabouço jurídico-ambiental; comportamento
jurídico-ambiental, e desempenho jurídico-ambiental.
Para cada uma das três categorias é atribuída uma pontuação,
que vai de 1 a Pmax, na qual Pmax é a pontuação máxima de cada
categoria. A pontuação máxima variará de acordo com o número de
questões ou atributos utilizados na aplicação da Ferramenta de Ava-
liação Jurídico-Ambiental.
A aplicação da Ferramenta de Avaliação Jurídico-Ambiental -
FAJA, com base nos conceitos abordados até então, e fazendo uso do
framework já detalhado, exige certo grau de planejamento e acompa-
nhamento das atividades, sendo que as etapas de aplicação são apre-
sentadas de modo resumido no esquema exposto na figura 6:

160
Figura 6: Etapas de aplicação da ferramenta FAJA.

3. CONCLUSÕES
Após 20 anos do marco histórico que refez o pensamento
mundial relacionado ao meio ambiente, pela simbologia da queda do
muro de Berlim, aliado ao rompimento dos paradigmas de produção
até então vigentes, percebe-se que a Ferramenta de Avaliação Jurí-
dico-Ambiental, torna possível a verificação do Arcabouço Jurídico-
Ambiental aplicável à organização, com base na visualização de cada
um dos processos de fluxo de valor da empresa.
O Comportamento Jurídico-Ambiental da organização pode
ser verificado, utilizando-se para a análise, as suas ações em relação
a aspectos pré-definidos no próprio Arcabouço Jurídico-Ambiental
aplicável à organização.
De posse dos dados obtidos na aplicação da Ferramenta de
Avaliação Jurídico-Ambiental no estudo de caso, conclui-se ser veri-
ficável o desempenho jurídico-ambiental de uma organização.

161
A partir da análise dos resultados obtidos, têm-se um apoio
para a tomada de decisão no tocante ao gerenciamento jurídico-am-
biental da organização em estudo
A ferramenta desenvolvida contribui para a tomada de decisão
por meio da avaliação do desempenho jurídico-ambiental empresa-
rial, com foco na legislação ambiental aplicável.
O uso da Ferramenta de Avaliação Jurídico-Ambiental contri-
bui, portanto, para que as empresas avaliem, de forma simplificada, seu
posicionamento estratégico atual, em relação ao desempenho jurídico-
ambiental, e definam qual a posição que desejam ocupar em relação ao
atendimento à legislação ambiental. Assim, a ferramenta se apresenta
como elemento eficaz de provimento de informações atuantes, distintas
e integradas que apresentam relações de causa e efeito, no auxílio do pro-
cesso de tomada de decisões em nível tático e estratégico, quando em
voga a temática do desempenho jurídico-ambiental de uma organização.
Por fim, com o desenvolvimento de novas tecnologias, todos
os segmentos do conhecimento científico passaram a reservar uma
pequena parcela de suas produções, objetivando melhor equacionar
a utilização dos recursos naturais, bem como impedir que a desme-
dida ou desatenciosa atuação do homem, inviabilize a perpetuação
da espécie sob a superfície da Terra; um planeta de todos para todos,
integrado no objetivo conservacionista, assim como o ocorrido há 20
anos, no instante em que toneladas e mais toneladas de concreto vie-
ram ao chão, momento histórico da integração de uma nação para
com o Mundo; do Mundo para consigo e o Meio Ambiente.

162
4. REFERÊNCIAS
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165
DESTINO BRA SIL : O IM AGIN ÁRIO
DO TURISTA ITALIANO

Eliza Bianchini Dallanhol Locks1


Hernanda Tonini2

RESUMO: A imagem de um destino turístico é responsável, em


muitos aspectos, pela atratividade que este possui junto aos turistas.
Nesse sentido, o presente artigo objetiva identificar o imaginário do
Brasil como destino para os turistas italianos, utilizando pesquisa bi-
bliográfica e a aplicação de questionários. Os resultados obtidos mos-
traram algumas alterações sobre a imagem do Brasil, considerando-
se as ações de marketing que, ao longo das décadas, comercializaram
o destino Brasil como o paraíso dos “quatro esses” -Sun, Sea, Sand and
Sex3- (SAVELLI, 2002)

PALAVRAS-CHAVE: Imagem, Imaginário, Turismo, Brasil, Itália.

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A sociedade atual é produto de inúmeras modificações ocor-
ridas no transcorrer dos séculos. Processos de construção e descons-
trução política, econômica, cultural, que incidem direta ou indireta-

1 Mestre em Economia e Gestão do Turismo (Ca’Foscari), Professora do Curso


de Turismo da Unisul.
2 Mestre em Turismo (UCS), Professora da Faculdade Anglo Americano Passo
Fundo, Bacharel em Turismo pela Unisul.
3 Sol, mar, areia e sexo. Tradução livre das autoras.

166
mente no dia-a-dia de todos os indivíduos do globo, intercalam-se
com períodos de guerra e paz, de fartura e de pobreza.
Apesar dessa evolução histórica que se traduz no modus vi-
vendi presente, as principais transformações podem ser apontadas
no decorrer do século passado: as duas Guerras Mundiais, as crises
econômicas, a revolução tecnológica, a industrialização, a força do ter
perante o ser. Para chegar até este mundo capitalista e globalizado,
onde impera a cultura de consumo (SLATER, 2002), uma série de
impasses, combates e negociações percorreram presidentes e nações.
Após a 2ª Guerra Mundial, duas superpotências emergi-
ram: Estados Unidos (EUA) e União Soviética (URSS). Na busca pelo
domínio internacional, os dois países encabeçaram uma luta entre
o modelo capitalista – defendido pelos EUA – e o socialista – dire-
cionado através da URSS – que reverteu em uma barreira física: a
construção do Muro de Berlim, em 1961, separando a Alemanha em
dois Estados ideológicos: a República Federal da Alemanha e a Repú-
blica Democrática da Alemanha. Além de dividir a cidade de Berlim
ao meio, o Muro simbolizou a divisão do mundo em dois blocos: o
ocidente – capitalista – e o oriente – socialista -, caracterizando a
chamada Guerra Fria (HOBSBAWN, 2008).
Numa guerra sem armas expostas, os países de cada bloco
lutavam pela hegemonia de um sistema econômico, capaz de solucio-
nar diferentes problemas sociais resultantes das duas grandes guer-
ras mundiais. A população crescia de modo expressivo, e maior era a
necessidade de produtos. Com isso, a industrialização e o modelo de
produção fordista se espalharam pelos países e aos poucos o capita-
lismo deixava claro seu avanço. Bens e serviços que até então eram
restritos a uma minoria detentora de poder, passaram a ser produzi-
dos em massa, como é o caso das viagens a praias ensolaradas (HO-
BSBAWN, 2008).
A queda do Muro de Berlim, articulada em 1989, reunificou as
duas Alemanhas, formando a República Federal da Alemanha. Muito
além disso, a queda representou o fim da divisão mundial em dois blo-
cos – o término da Guerra Fria – e a afirmação do capitalismo. Como
consequência, intensificou-se um processo de globalização, onde tudo
passa da escala local para mundial, desde o deslocamento de produ-
tos até o deslocamento de pessoas (DIAS, 2005). A queda do Muro de
Berlim, propriamente dita, representa o fim de uma fronteira, de um

167
limite, e o retorno à liberdade de ir e vir, do fluxo de pessoas (GASTAL;
CASTROGIOVANNI, 2006). Fluxo este que é atualmente incentivado
pelo governo alemão através de visitações ao local onde existia o Muro,
inclusive fazendo a reconstrução de alguns trechos.
O processo de globalização possibilitou que o turismo alcan-
çasse taxas de crescimento outrora vistas. Esse consumo turístico em
massa produz uma série de consequências, tanto na localidade recep-
tora quanto nos próprios turistas. Impactos estes de cunho econômi-
co, cultural, social, que estão além do simples fato de deslocaram-se
em busca de lazer.
São diversas as razões pelas quais um grande contingente de
pessoas migra, temporariamente, de um local para outro, tendo como
ponto inicial a crença de que o destino escolhido produzirá a satisfa-
ção desses motivos, a partir de uma pré-concepção. Considerando-se
as características intangíveis do produto turístico, a percepção dos
destinos por parte da demanda – o turista – é construída de forma
subjetiva. Ou seja, é constituída sob a ótica de uma demanda hetero-
gênea, que busca saciar seus desejos e necessidades individuais asso-
ciados à realização da prática turística, desenvolvendo uma imagem
relacionada aos lugares turísticos visitados.
É através dessa imagem sobre os destinos turísticos que sua
comercialização é facilitada – no caso de uma imagem positiva – ou
torna-se um obstáculo quando a visão dos turistas sobre o local é ne-
gativa, sob diversos aspectos. O trecho a seguir, extraído de uma revista
italiana, é um exemplo de como uma imagem pode ser desenvolvida:
Quello brasiliano è un popolo misto, una “razza nuova” nata dalla
commistione dei bianchi europei, dei néri africani discendenti degli
schiavi ( deportati a partire dal 500) e delle popolazioni índios lo-
cali. L’incrocio dei ceppi etnici e il mèlange di queste tradizioni alla
base della ricchezza culturale del Paese. Inoltre, un’innata propensio-
ne musicale ha favorito la nascita di nuovi e inconfondibili ritmi. Il
brasiliano è esuberante, fantasioso, focoso, ospitale e disponibile verso
lo straniero, incline al gioco e allo scherzo. È inoltre inguaribilmente
ottimista, nonostante i paradossi sociali di un stato Che, anche se tra
i dieci più progrediti al mondo, convive ancora con le favelas, e tollera
il lavoro sottopagato delle fazendas. L’ accettazione di tali paradossi
prevale, e con una frase viene giustificato questo atteggiamento di fa-
talismo: “Isso é Brasil” , questo é il Brasile. Nello stile di vita brasiliano

168
vi sono anche una straordinaria naturalezza e un’assoluta mancanza
di formalismi. Un esempio: per molti, soprattutto nello stato di Ba-
hia, è invalsa l’abitudine di fissare appuntamenti con molte persone
contemporaneamente, nella speranza Che almeno una arrivi.( e con
meno di un’ora di ritardo).4
Devido à importância da imagem no desenvolvimento ou re-
trocesso de um destino turístico, o presente artigo, utilizando a análi-
se estatística de dados coletados em questionário semi-aberto, traduz
a visão de turistas italianos com relação ao Brasil, contribuindo para
o conhecimento dos pontos relevantes que favorecem a vinda desses
estrangeiros para o País.

2. REFERENCIAL TEÓRICO
2.1. TURISMO: IMAGENS E IMAGINÁRIOS
DE UM MUNDO POSSÍVEL
O turismo desembarcou no mundo promovendo o lazer, o
prazer, o contato entre diferentes culturas, e tantas outras situações e
sentimentos vivenciados no momento em que uma pessoa desloca-se
do local de sua residência para outro.
Inicialmente, associada a uma necessidade vital de movimen-
to, com o decorrer dos anos, a atividade turística se caracterizou
como um segmento de negócios, que comercializa um conjunto de

4 “O brasileiro é um povo misturado, uma “raça nova” nascida da miscigena-


ção dos homens brancos europeus, dos negros africanos descendentes dos
escravos (que começaram a chegar em 1500) e dos índios. O cruzamento das
etnias e a combinação destas tradições deram a base da riqueza cultural do
país. Além disso, uma propensão musical nata favoreceu o nascimento de
novos e inconfundíveis ritmos. O brasileiro é exuberante, fantasioso, ardente,
hospitaleiro e disponível para com o estrangeiro, dado as brincadeiras. E além
disso, incuravelmente otimista, apesar dos paradoxos sociais de um estado
que, mesmo se entre os dez que mais progrediram no mundo, convive ainda
com as favelas, e tolera o trabalho a baixo custo nas fazendas. A aceitação
de tais paradoxos prevalece, e com uma frase justifica este comportamento
de fatalidade: “Isso é o Brasil”. No estilo de vida dos brasileiros há também
uma naturalidade extraordinária e uma falta absoluta das formalidades. Um
exemplo: para muitos, sobretudo no estado da Bahia, desenvolveu-se o hábito
de marcar vários compromissos ao mesmo tempo, na esperança de que pelo
menos um chegue. (e com menos de uma hora de atraso).” ( tradução livre das
autoras) Extraído da revista Traveller: a descoberta dos lugares mais lindos do
mundo: BRASIL – Ottobre 2001

169
momentos somados a uma infra-estrutura que visa satisfazer os in-
teresses dos turistas.
Os primeiros estudos com relação ao turismo identificavam al-
guns elementos essenciais para caracterizá-lo: o deslocamento tem-
porário, as inter-relações oriundas, o uso de equipamentos necessá-
rios fora do local de residência e o tempo livre – compreendido como
um período sem exercer uma atividade remunerada. Após algumas
discussões relacionadas ao fato de ser turismo ou não, quando a via-
gem é motivada por algum fim profissional, a Organização Mundial
do Turismo entende que o turismo “comprende las actividades que re-
alizan las personas durante sus viajes y estâncias en lugares distintos al
de su entorno habitual, por un período de tiempo consecutivo inferior
a un año côn fines de ócio, por negócios y otros.”5 (OMT, 1998, p.44).
No entanto, independente do motivo relacionado ao desloca-
mento do indivíduo, este possui um contato prévio com o destino,
fornecido através de imagens do local e criando um imaginário. Mas
de que forma ocorre essa interação?
Uma das características do produto turístico é sua intangibilida-
de (RUSCHMANN, 1997). Nesse sentido, a comercialização do turismo
ocorre através de uma série de ferramentas que estimulam o interesse
do indivíduo em conhecer determinada localidade, correspondendo a
sensações que o mesmo desenvolve estando em contato com informa-
ções a respeito da destinação. Muito além dos textos publicitários, o ma-
rketing turístico trabalha fortemente com os apelos visuais, com o maior
número de imagens que provoquem o desejo do turista pela destinação.
A tecnologia propiciou – e ainda o faz – diferentes formas de
ver o mundo: pelas lentes de uma câmera fotográfica, pelos olhos de
uma filmadora, vasculhando sites da Internet. Esses equipamentos
reproduzem momentos e permitem o registro visual, a memória.
A conceituação do termo imagem é muito mais complexa do
que simplesmente remeter a um aspecto visual. Bignami (2002) afir-
ma que a palavra imagem pode ser associada a percepções, repre-
sentações ou lembranças do indivíduo. Com base nisso, a percepção
sofre influência de aspectos culturais e sociais e assim, a imagem se
solidifica a partir do mundo das ideias e ideologias.

5 Compreende as atividades realizadas pelas pessoas durante suas viagens e estadas


em locais diferentes de seu entorno habitual, por um período de tempo consecuti-
vo inferior a um ano, com fins de ócio, negócios e outros. Tradução das autoras.

170
Para Zunzunegui (1998), a imagem só existe através de um ob-
servador que organiza o que vê, ou seja, materializa “um fragmento
do universo perceptivo e que apresenta a característica de prolongar
sua existência ao longo do tempo”.
Este “fragmento” não representa necessariamente algo verídi-
co, pois está diretamente relacionado à subjetividade e individualida-
de perceptiva. A fotografia não pode ser considerada a realidade, mas
sim um recorte, uma leitura que conduz o olhar de quem a vê. Alem
disso, não é apenas o visual que se apresenta em uma imagem, mas
também uma série de sentimentos, sensações a respeito (GASTAL,
2005).
No caso da comercialização dos destinos turísticos, a leitura
das imagens é direcionada para todos os aspectos positivos e belos da
localidade. Isso está, diretamente, ligado à estetização, à padronização
quanto ao belo exigida na pós-modernidade. Tudo tem que ser boni-
to, inclusive as tragédias (GASTAL, 2005).
O esforço do marketing vai de encontro à visão de Kotler
(1998), que considera a imagem de um lugar como condições essen-
ciais para a forma como as pessoas e os negócios reagem a este local.
No entanto, a percepção da imagem varia de um indivíduo para outro.
A imagem sobre determinado lugar é criada através de uma
experiência que remete a significados elaborados durante a vida do
turista, ou seja, é uma questão de interpretação dos elementos que
compõem o destino visitado. Essa ideia explicaria por que uma loca-
lidade turística pode ser uma experiência positiva para um turista e
ao mesmo tempo negativa para outro (VAR, 2002).
Segundo Wainberg (2003), o turismo vende o “estranho”, ade-
quando roteiros a diferentes “paladares” turísticos. Na concepção de
Droguett (2004, p. 23), o turismo “encontra na comunicação fragmen-
tos conceituais para justificar sua prática de pesquisa – publicidade,
símbolos, ritos interativos entre agências e turistas – e para a análise
cultural da interação do ser humano com o espaço.” Com a afirmação
de Aoun (2001, p.32), fica evidente o apelo que a mídia faz à ilusão:
As diversas imagens que em grande parte são fabricadas secretamente
pela fantasia e pelo desejo humanos, como resposta à insatisfação da
vida urbana, são resgatadas pela publicidade e convertidas em reali-
dade na forma de espaços turísticos apresentados como alternativos e
postos à disposição para o consumo.

171
As imagens de uma localidade turística são relacionadas a ele-
mentos naturais e culturais. O produto turístico tenta aproximar-se
da sensação e das imagens de um paraíso relacionado a questões re-
ligiosas, que desde a Antiguidade possui inúmeros textos e alusões,
a maior parte destes referindo-se a um local inacessível aos mortais
(SILVA, 2004).
As diferentes ferramentas de comunicação que relacionam a
imagem de um destino turístico, objetivam a comercialização e ma-
ximização do mesmo. Comercialização esta obtida no momento em
que o turista associa a imagem do produto turístico com à satisfação
de seus desejos e necessidades.
A compreensão quanto à relação entre imagem e turismo não
seria suficiente, sem abordar as discussões a respeito do imaginário.
Pensar imagem não se restringe a um campo visual, mas sim associa-
do a outros elementos que não são visíveis, mas que também estão
presentes, dependendo de quem olha. Mas de que forma é possível?
Ao ver uma foto, o indivíduo já possui uma série de infor-
mações a respeito da imagem em sua memória. Assim, reúne esses
aspectos de seu conhecimento à foto, o que difere do olhar de uma
outra pessoa sobre a mesma fotografia. Essa diferença no olhar é que
está relacionada à percepção individual.
Para Silva (2003, p.11), o imaginário é um reservatório com

...imagens, sentimentos, lembranças, experiências, visões do real que


realizam o imaginado, leituras de vida e, através de um mecanismo
individual/grupal, sedimenta um modo de ver, de ser, de agir, de sen-
tir e aspirar ao estar no mundo. [...] O imaginário emana do real,
estrutura-se como ideal e retorna ao real como elemento propulsor.

O turismo lida muito mais com o imaginário para fortalecer


sua comercialização, do que o simples apelo visual das imagens. Na
visão de Maffesoli (apud SILVA, 2001), o imaginário é um conjunto
de ideias; é quem determina um conjunto de imagens e é o responsá-
vel por satisfazer desejos e necessidades dos indivíduos.
Ao comercializar um destino turístico, não basta representar
imagens, mas sim, alimentar, reforçar ou renovar imaginários. Além
disso, Gastal (2005) afirma que o imaginário deve ser incorporado na
fase de planejamento turístico, não apenas através do marketing. Na
sua visão, “planejar, hoje, significa conduzir o olhar”.

172
Ao conduzir o olhar dos turistas, a divulgação do produto Bra-
sil ao longo das décadas do século XIX, criou o imaginário que asso-
cia o País a belas mulheres. As primeiras ações para a divulgação do
Brasil no exterior foram realizadas na década de 1930, durante o Go-
verno de Getúlio Vargas. Naquele período, foi criado o Departamento
de Imprensa e Propaganda (DIP), com três divisões, sendo uma delas
a de Turismo e Imprensa. Esse órgão editou folhetos com ilustrações
das cidades do Rio de Janeiro e Poços de Caldas, distribuídos no Ja-
pão e Estados Unidos. A comunicação foi marcada pelas imagens
de apelo sexual e pela identificação do País como um lugar sensual,
pela musicalidade, pelas manifestações culturais retratas através do
Carnaval, por rituais exóticos e mulheres bonitas. Esse conjunto de
elementos fazia do Brasil um sinônimo do paraíso, acessível com a
evolução dos transportes (VAR, 2002).
É importante ressaltar que para a comercialização do produto
turístico, não é suficiente divulgar uma nova imagem, mas sim ade-
quar a oferta, como um todo, às necessidades e desejos do público alvo,
sendo este o verdadeiro problema apontado por Bignami (2002) em
termos de dificuldade para captação de turistas estrangeiros no Brasil.
Segundo Var (2002), as pessoas associam a imagem a um fator
de atratividade específico e parecem ficar insensíveis a outros atrati-
vos. No caso do Brasil, o imaginário está atrelado, em um primeiro,

173
momento à mulher brasileira, evidenciando-se sobre os demais ele-
mentos turísticos presentes no País.
De modo a desvendar o imaginário com relação ao destino
Brasil para os turistas italianos, será apresentado, no tópico a seguir,
os detalhes metodológicos e os resultados da pesquisa.

2.2. PROCEDIMENTOS METODÓLOGICOS


Do ponto de vista dos procedimentos técnicos, o presente ar-
tigo fez uso de pesquisa bibliográfica no intuito de fundamentar os
termos turismo e imagem, além da coleta de dados, objetivando co-
nhecer o comportamento do universo pesquisado.
O instrumento utilizado para a coleta de dados foi um questio-
nário estruturado com 13 questões, dentre as quais, seis eram fechadas
(de múltipla escolha) e sete eram questões abertas. As três primeiras
perguntas buscavam informações sócio-econômicas do respondente,
as questões quatro a sete relacionavam-se a aspectos gerais do Brasil e
as demais eram direcionadas à percepção da imagem do País.
Antes da aplicação definitiva do instrumento, foi realizado um
pré-teste para verificar sua eficiência, com amostras intencionais que
representassem o “bom julgamento” da população pesquisada (não pro-
babilística). A caracterização e a seleção da amostragem pesquisada fo-
ram realizadas em um padrão de pessoas consideradas clientes e clien-
tes potenciais da Operadora Tucano Viaggi e Ricerca di Willy Fassio6.
Após alguns ajustes, o questionário final foi enviado por en-
dereço eletrônico, em maio de 2007, acompanhado de uma carta de
apresentação, para uma amostra de 50 pessoas, segundo os mesmos
critérios de seleção da amostra. Deste total, 44 pessoas retornaram o
instrumento preenchido. Todos os questionários foram enviados por
e-mail e demoraram em média dez dias para retornarem respondidos.
Os dados recebidos foram tabulados eletronicamente. Quanto
aos métodos e técnicas de análise, utilizou-se o método dedutivo e
estatístico. No tratamento das informações, foram utilizadas tanto a
forma quantitativa, que permite a identificação expressa em núme-
ros, quanto a qualitativa, que permite a percepção da opinião da so-
ciedade e a forma como esta encara determinado problema.

6 Operadora italiana que trabalha um nicho de turistas diferenciados, e que tem


como lema o “viajar para conhecer”.

174
3. RESULTADOS
O instrumento aplicado identificou que apenas 19% dos entre-
vistados já visitaram o Brasil. O imaginário destes é formado pelas
informações que obtiveram antes das viagens, somadas às experiên-
cias e memórias vivenciadas no destino. A grande maioria (81%) dos
respondentes não conhece o País, embora todos queiram conhecer,
possui um imaginário criado através dos recortes temporais e espa-
ciais, que entram em contato através da mídia ou de pessoas conheci-
das que já estiveram no Brasil.
Do universo dos entrevistados, 53% são do sexo feminino, en-
quanto os outros 47% são do sexo masculino, o que demonstra que o
resultado da pesquisa foi bastante homogêneo no que diz respeito a
esse item. Quanto à faixa etária, 30% dos entrevistados encontram-se
na faixa que vai dos 32 aos 45 anos de idade, 26% pertencem à faixa
que vai dos 26 aos 31 anos, 23% correspondem à faixa de idade que
vai dos 18 aos 25 anos, 19% dos entrevistados possuem entre 46 e 59
anos, e apenas 2% tem mais de 60 anos. Quanto à profissão, a maioria
dos entrevistados ocupa cargos gerenciais (21%), são profissionais li-
berais (18%) ou são funcionários tanto de empresas públicas quanto
privadas (16%). Uma pequena parcela dos respondentes corresponde
a operários (5%).
No que tange às motivações, cabe ressaltar que muitos dos
respondentes citaram mais de um motivo. Dentre eles, em primei-
ro lugar estão as pessoas, ou seja, o povo brasileiro (21%), seguido
pela natureza (19%), o fator motivacional relativo à cultura do povo
brasileiro (17%), a alegria (14%), a curiosidade em conhecer o Brasil
(10%), as contradições sociais (7%), a música (5%) e, por último, cada
um com 2% dos votos estão o turismo e o clima (quente).
Dentre os respondentes que visitaram o Brasil, 13 cidades
foram citadas. Em primeiro lugar aparece Rio de Janeiro (22%),
seguido por São Paulo (18%), em terceiro lugar estão empatadas
as cidades de Natal, Recife, Blumenau e Florianópolis (8% cada),
seguidas pelas cidades de Manaus, Brasília, Salvador, Camboriú,
Curitiba, Maceió e Fortaleza (4% cada). Se pudessem retornar em
outra oportunidade, 17% dos entrevistados gostariam de visitar as
cidades do Rio de Janeiro e Fortaleza. Em segundo lugar, com 12%,
foram indicadas todas as cidades do Brasil, seguidas das outras ci-

175
dades/regiões citadas, que foram: Sul do Brasil, Salvador, Costa Bra-
sileira, Cidades do Interior, Porto Alegre, Florianópolis, São Luiz,
Recife e Natal, cada uma com 6%.
Para identificar os possíveis concorrentes do País, os entrevis-
tados foram questionados para quais países viajariam ao invés do
Brasil. Em primeiro lugar apareceu os Estados Unidos (25%), seguido
de Cuba (15%), Caribe e México (11% cada) e Venezuela (9%). Com
menores preferências estão Nova Zelândia, Polinésia, Índia e Austrá-
lia (cada um com 4%), e por fim Holanda, Argentina e Japão, com 2%
do total do universo pesquisado.
Nas questões direcionadas a descobrir o imaginário do Brasil
para o turista italiano, o primeiro elemento que se destaca é a pobre-
za. Conforme o gráfico a seguir, cada entrevistado citou vários as-
pectos que podem ser determinantes na decisão de não viajar para
o País, sendo que o elemento negativo mais citado foi a pobreza da
população (26%), seguida da falta de segurança (20%). O fator crimi-
nalidade foi o terceiro mais indicado (18%), seguido de três aspec-
tos que dividem o quarto lugar: as favelas, as desigualdades sociais
e econômicas e nada, todos com 6%. O fato de o Brasil ser um País
subdesenvolvido, o turismo sexual e a propaganda negativa feita nos
países de origem, tiveram cada um 4% dos votos. Por último, com 2%,
foi indicada a falta de planejamento.

Figura 01: Quais são os aspectos negativos do Brasil e quais elemen-


tos transmitem insegurança e a/o impedem de viajar para o Brasil?

176
Com relação aos motivos para uma viagem ao Brasil, os en-
trevistados consideraram que os principais atrativos são a natureza
(18%), a Floresta Amazônica (17%), o povo brasileiro (14%), o Car-
naval e as praias (12%), o clima e a gastronomia (7%), as mulheres
bonitas (6%). Menor destaque para o futebol, os museus e as igrejas,
cada um com 4%, 2% e 1%, respectivamente.

Figura 02: Na sua opinião, quais são os atrativos mais significativos


para uma viagem ao Brasil?

Os motivos pelos quais o turista italiano escolhe o Brasil como


destino turístico podem ser agrupados em 3 categorias: a natureza,
que é o principal motivo apontado pelos entrevistados, unindo os
atrativos naturais, Floresta Amazônica, clima e praias, obtendo mais
de 50% das indicações. As pessoas, o Carnaval, a gastronomia, os mu-
seus, as igrejas e o futebol podem ser reunidos na categoria cultural. O
item mulheres bonitas, com apenas 6%, identifica a categoria sexual.
O baixo percentual dessa última categoria nos remete à ideia de que a
visão do Brasil sexual, construída através das ações de divulgação do
País pode estar, finalmente, sendo desfeita. No entanto, o alto índice,
obtido pelos atrativos, pessoas e o carnaval pode subentender que os
respondentes têm um interesse erótico manifestado por alternativas
apresentadas na questão.
Quando questionados sobre a gastronomia brasileira, resultou
o seguinte gráfico:

177
Figura 03: Conhece a diversidade da gastronomia brasileira? Se sim,
cite os prato que conhece.
No gráfico acima, 34% dos entrevistados lembraram o chur-
rasco/picanha como parte da gastronomia brasileira, seguido pela
feijoada, com 31%, a caipirinha com 11%, a banana frita com 6%, e
os demais pratos, açaí, batidas, feijão com arroz, farofa, coxinha de
galinha e cerveja “Brahma”, cada um com 3%.
Apesar de fazer parte da cultura da região sul do País, o chur-
rasco está tão atrelado ao imaginário do Brasil quanto à feijoada,
considerada pelo senso comum como o prato típico mais conhecido
pelos estrangeiros, bem como a caipirinha.
Quando questionados sobre o custo de uma viagem ao Brasil, a
maioria dos turistas entrevistados considera caro, enquanto uma peque-
na parcela avalia como um destino econômico, conforme o gráfico abaixo:

Figura 04: Uma viagem para o Brasil é:

178
Cabe ressaltar que, durante as entrevistas, os participantes dei-
xaram claro que o que encarece a viagem é o valor do bilhete aéreo e
não o que se gasta no País.
Quando perguntados sobre a duração ideal de uma viagem ao
Brasil, 29% dos entrevistados indicaram um período de vinte dias
como ideal. Como segunda opção, os respondentes dividiram-se en-
tre 25 e 15 dias, cada um com 20%. Para 16% dos turistas pesqui-
sados, o ideal para uma viagem ao Brasil é mais de 30 dias, 13% do
total acreditam que 30 dias seriam suficientes, enquanto apenas 2%
acreditam que 10 dias seriam o bastante para visitar o País.
No gráfico a seguir pode-se observar que para 37% dos entre-
vistados existem quatro estações bem definidas no Brasil, 20% acham
que o clima é sempre quente, enquanto 15% acreditam, que em algu-
mas regiões, neva no inverno. Do total pesquisado, 28% responderam
“outros”, sendo que destes, 37% referem-se a um clima que varia de
acordo com a região, empatado com 18%, foi identificada a existência
de apenas duas estações, a predominância do clima equatorial, e o ca-
lor na costa e um clima mais ameno na região amazônica, e, por fim,
com 9%, a presença de 9 meses de calor durante o ano.

Figura 05: Como é o clima no Brasil?

Conforme visto anteriormente (Figura 2), o povo brasileiro foi


um dos principais atrativos apontados pelos entrevistados. Aprofun-
dando essa visão, os pesquisados foram questionados sobre como é
o povo brasileiro com relação à hospitalidade. Nenhum dos respon-
dentes vê a recepção no País com pouca hospitalidade. Pelo contrário,
60% consideram as pessoas muito hospitaleiras e 40% as consideram
hospitaleiras.

179
Para concluir a percepção sobre a imagem do Brasil para o tu-
rista italiano, os entrevistados foram questionados a respeito da situ-
ação sócio-econômica no País. Para a grande maioria (65%), a situa-
ção sócio-econômica não é um motivo suficiente para que se deixe de
viajar para o Brasil. Para 21% dos entrevistados a situação brasileira é
crítica o suficiente para que se deixe de visitá-lo, sendo que todos eles
citaram o perigo, a criminalidade e as desigualdades sociais como
fatores decisivos. O restante dos pesquisados (14%) não deixariam de
visitar o Brasil, porém ficariam atentos aos itinerários e aos destinos
escolhidos.
Apesar do fato de que um número considerável de responden-
tes não deixaria de viajar para o Brasil devido à situação sócio-eco-
nômica, cabe ressaltar que a pobreza foi identificada como o aspecto
mais negativo presente no País (Figura 1), sendo o principal motivo
para não visitar o destino.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A preocupação com a imagem do Brasil turístico, não é um fato
recente. Após anos de ações políticas que vendiam o País como um
destino dos “quatro esses” (Sun, Sea, Sand and Sex) (SAVELLI, 2002),
entramos agora em uma fase de “arrependimento coletivo” e orgulho
ferido. Esse imaginário criado, que por anos foi divulgado por ima-
gens direcionadas e aceita, tanto pelos autóctones quanto pelo olhar
do turista, hoje já não é mais satisfatória. O turismo no Brasil é mais
do que o apelo sensual, porém o imaginário existente nos turistas
estrangeiros não pode ser desfeito com um passe de magia.
O turismo existe, enquanto existe o imaginário a respeito de
um lugar; quanto mais distante do concreto que é a visita em si, maior
será a criação de ideias a respeito destes locais. São essas ideias que
cada turista vai formando de determinado destino, baseado nas tra-
dições histórico-literárias (como uma ilha, que remete ao imaginário
paradisíaco, um lugar desligado do resto do mundo), na mídia, na
comunicação social, no sistema educativo; tudo isso filtrado por um
sistema cultural externo. Ou seja, a imagem tem sim uma parte sub-
jetiva, mas tem também muito do que é concreto que nos circunda;
muito das informações recebidas diariamente, tanto de maneira for-
mal quanto informal.

180
Através do questionário e da análise dos dados, pôde-se veri-
ficar que ainda são poucos os italianos que já visitaram nosso país,
porém todos que ainda não visitaram têm vontade de fazê-lo e des-
tacam, como principal atrativo para uma viagem ao Brasil, o povo
brasileiro. Essa é uma questão curiosa: os italianos têm uma grande
admiração pelo povo brasileiro, pois veem aqui um povo que, ape-
sar de todas as dificuldades, desigualdades e problemas, possui uma
alegria muito grande. Em outra pergunta semelhante a essa, porém
fechada, o atrativo principal para essa viagem passa a ser a natureza.
Dentre as cidades já visitadas, ocupa o primeiro lugar o Rio de
Janeiro, mas chama a atenção o fato de que cidades como Blumenau e
Florianópolis já aparecem em percentual maior, do que cidades como
Salvador.
Quando questionados sobre os aspectos negativos que pode-
riam impedir uma viagem ao Brasil, em primeiro lugar, aparece a
pobreza e não a falta de segurança, muito embora esta venha na se-
quência, com 6 pontos percentuais de diferença. Apesar de a pobreza
fazer parte da realidade do País, esse aspecto constrói um imaginário
negativo, pois o indivíduo pós-moderno vive na época da estetização,
da padronização do belo. Tudo tem que ser bonito, inclusive as tragé-
dias (GASTAL, 2005).
Com relação à gastronomia brasileira, a maioria dos italianos
conhece apenas o churrasco e a feijoada, enquanto nossa diversidade
cultural permite uma gama variada de pratos típicos. Isso denota um
grande atrativo turístico em potencial, que não está fazendo parte do
imaginário sobre o Brasil.
Quanto ao clima do País, os entrevistados têm informações
contraditórias. Poucos sabem, por exemplo, que aqui neva. Alguns
acreditam que o clima é muito quente. Isso pode ser tanto positivo
quanto negativo, dependendo das preferências do turista com relação
às temperaturas. Todos os entrevistados consideram o povo hospita-
leiro, sendo que a maioria deles avalia como muito hospitaleiro.
Pode-se considerar que, do universo pesquisado, o turista italia-
no possui um imaginário positivo com relação ao Brasil, e aos poucos,
o País está deixando para trás, anos de uma imagem atrelada quase que,
exclusivamente, ao atrativo sexual, elemento pouco destacado durante
os questionários. Em suas pesquisas, BIGNAMI (2002) dividiu o Brasil
turístico em 5 categorias: o Brasil paraíso, o Brasil do brasileiro, o país

181
do Carnaval, o lugar do exótico e do místico e o lugar de sexo fácil.
Dessas categorias, os principais elementos resultantes da presente pes-
quisa, associados ao imaginário do Brasil para o turista italiano, fazem
parte das três primeiras categorias citadas, o que reforça o fato de que
as ideias com relação ao País podem estar mudando.
Por fim, para os turistas italianos, o imaginário criado referen-
te ao Brasil ao longo dos anos, é de um destino turístico caro, que
apesar da pobreza e insegurança, é povoado por pessoas alegres e
muito hospitaleiras que compensam seus aspectos negativos, além
dos fortes atrativos naturais existentes no País.

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