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Irene Ramires 1
Marília Afonso Rabelo Buzalaf 2
1
Departamento de Ciências
Biológicas, Faculdade de
Odontologia de Bauru, USP.
Alameda Dr. Octávio
Pinheiro Brisolla 9/75, Vila
Universitária. 17012-901
Bauru SP. iramires@usp.br
2
Faculdade de Odontologia
de Bauru, USP.
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Ramires, I. & Buzalaf, M. A. R.
Introdução Revisão
A fluoretação é a adição controlada de um com- Em 1942, verificou-se que havia uma importante
posto de flúor à água de abastecimento público correlação diretamente proporcional entre a pre-
com a finalidade de elevar a concentração do mes- valência de fluorose dentária e concentração de
mo a um teor predeterminado e, desta forma, íon flúor na água de consumo e, também, uma
atuar no controle da cárie dentária1,2,3. importante correlação e, esta inversamente pro-
A fluoretação da água de abastecimento pú- porcional, entre a presença de íon flúor e a preva-
blico representa uma das principais e mais im- lência de cárie dentária. Desde então, ficou estabe-
portantes medidas de saúde pública, podendo lecido que o flúor presente na água de abasteci-
ser considerada como o método de controle de mento público em uma concentração em torno
cárie dentária mais efetivo, quando considerada de 1 mg/L promoveria a máxima redução no ín-
a abrangência coletiva2,4,5,6,7,8,9. O fato desta me- dice CPO-D, e que quando o teor excedia 1,5 mg/
dida não permitir uma abordagem seletiva para L, não havia melhora significativa no índice e, no
o controle da cárie explica as dúvidas e questio- entanto, predispunha a um aumento na ocorrên-
namentos sobre a mesma, que são frequënte- cia e na severidade de fluorose9,22. A constatação
mente uma questão de filosofia social e não cien- da fluorose dentária precedeu a adoção da fluo-
tífica, uma vez que está apoiada em sua seguran- retação da água de abastecimento público como
ça e efetividade comprovadas após cerca de cin- medida benéfica à saúde bucal. Da observação de
quënta anos de implantação2. Há mais de cinco tais efeitos e do desejo de investigá-los desenca-
décadas, desde 1945, o flúor tem sido utilizado deou-se uma série de estudos, que resultaram na
no controle da cárie dentária, resultando em uma descoberta da fluoretação da água de abasteci-
melhora significante na saúde bucal da popula- mento público como medida de controle de cárie
ção 8,9,10,11,12,13,14,15,16,17,18. O Centro de Controle e dentária2,9,25.
Prevenção de Doenças (CDC), dos Estados Uni- A Organização Mundial da Saúde, em 1958,
dos, admite que o poder preventivo da água flu- reconheceu a importância da fluoretação e insti-
oretada é de 40% a 70%, em crianças, dependen- tuiu um Comitê de Peritos em fluoretação da água,
do do índice de prevalência de cárie, reduzindo que em seu primeiro relatório deu parecer favo-
também a perda de dentes em adultos entre 40% rável à fluoretação, indicando-a como uma me-
e 60%5. dida de saúde pública. O mesmo Comitê sugeriu
A interrupção temporária ou definitiva da flu- que pesquisas de outros métodos e veículos de
oretação acarreta em perda do benefício por par- aplicação tópica de flúor fossem desenvolvidas, a
te da população, sendo que o mesmo ocorre quan- fim de permitir o uso do composto em locais onde
do os teores de flúor ficam abaixo do recomen- a fluoretação não pudesse ser implantada. Du-
dado. Em situações de paralisação da medida, o rante a 22ª Assembléia Mundial de Saúde, em 1966,
aumento na prevalência de cárie pode ser de 27% a mesma recomendação foi feita aos Estados-
para a dentição decídua e de aproximadamente membros10.
35% para a dentição permanente, após cinco A Organização Mundial da Saúde desenvol-
anos 2,3,9,10,11,12,15,17. veu um programa para a promoção da fluoreta-
Uma vez que os efeitos preventivos do flúor, ção de água de abastecimento de comunidades,
amplamente reconhecidos, em ações de saúde apresentado na 25ª Assembléia Mundial de Saú-
pública, são maiores quando a água é empregada de, em 1975. Ressaltando que o problema da cárie
como veículo2,10,12,13,17,19,20,21 e considerando sua dentária não seria resolvido por meio de procedi-
efetividade, custo e freqüência de consumo, a flu- mentos curativos, a Assembléia aprovou o pro-
oretação das águas de abastecimento tem sido grama e, ainda, enfatizou a importância de se uti-
apontada como o melhor método sistêmico de lizar o flúor nas concentrações adequadas na água
exposição sistêmica ao flúor8,9,11,17,21,22,23,24. Sendo de abastecimento. O programa obteve aprova-
assim, o objetivo deste trabalho é de proceder a ção por unanimidade dos 148 países membros,
uma revisão de literatura abordando desde a des- incluindo os países que adotam outros métodos
coberta do flúor presente na água como elemento sistêmicos (Suécia, Holanda, Áustria, Bélgica, Di-
capaz de interferir nas condições de saúde bucal, namarca, Itália, Suíça e outros)10.
legislação e sua ação no controle da cárie, sem a A Federação Dentária Internacional (FDI),
pretensão de esgotar o assunto. Fundação Kellogg (FK) e a Organização Mundial
da Saúde (OMS) realizaram, em 1982, a Confe-
rência sobre Fluoretos, na qual seus participantes
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Tabela 1. Índice CPO-D médio para a idade de 12 anos em algumas cidades no início da fluoretação da água
de abastecimento público, após 10 anos e a porcentagem de redução do índice.
CPO-D CPO-D
Cidade Início da fluoretação Após 10 anos Período Redução % Fontes
Araraquara - SP 11,7 6,8 1962/82 41,88 Vertuan 1986
Baixo Guandu - ES 8,61 2,66 1953/67 69,10 Barros, et al. 1993
Barretos - SP 8,37 3,54 1971/87 57,70 Viegas & Viegas 1988
Bauru - SP 9,89 3,97 1975/90 59,85 Bastos, et al. 1991
Belo Horizonte - MG 7,95 5,33 1975/91 32,95 Oliveira, et al. 1995
Campinas - SP 7,36 3,30 1961/76 55,16 Viegas & Viegas 1985
Grand Rapids - USA 8,07 3,47 1945/59 57 Arnold, et al. 1962
Paulínea - SP 3,4 1,6 1980/94 52,94 Moreira, et al.1996
Piracicaba - SP 8,60 3,47 1971/92 44,11 Basting, et al. 1997
Santos - SP 8,9 5,1 1975/89 42,69 Sales Peres 2001
Vitória - ES 9,3 1,47 1982/96 84,19 Ferreira, et al. 1999
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tadas. Embora a diferença média dos índices ocorre um declínio rápido, havendo uma aproxi-
CPO-D entre as cidades fluoretadas e não fluore- mação ou mesmo a tendência de se igualar às
tadas apresentasse valores importantes no final concentrações basais, dentro de uma a duas ho-
da década de 80, a magnitude desta diferença pa- ras. Assim, em uma região abastecida com água
rece estar diminuindo48. Um estudo longitudinal fluoretada, pode ser que, apesar de uma ou mais
que ilustra muito bem o mecanismo de ação do elevações transitórias na concentração de flúor
flúor, principalmente através da água fluoretada, que aconteçam durante o dia, de acordo com a
foi realizado nas cidades de Tiel e Culemborg, na freqüência do uso do dentifrício de cada indiví-
Holanda, onde a fluoretação foi implantada em duo, as concentrações de flúor durante a maior
1953. As crianças entre 7 e 18 anos foram exami- parte do dia são similares, independente do uso
nadas a cada dois anos até o ano de 1971, quando de dentifrício fluoretado51,52,53. Provavelmente, a
a fluoretação foi interrompida em Tiel. No ano maior eficiência na utilização diária de dentifrício
de 1988, quinze anos após a interrupção da fluo- fluoretado se deve ao fato deste procedimento
retação, a experiência de cárie na cidade de Cu- possibilitar, ao mesmo tempo, o controle da pla-
lemborg era menor que a de Tiel, apesar do índice ca bacteriana associado à aplicação tópica de
CPO-D em Tiel, naquele ano, ser menor do que flúor 25,51,52,53.
em 19682. Um outro importante aspecto a ser consi-
Este conceito da dinâmica de redução da cárie derado com relação aos efeitos de controle so-
é baseado em pesquisas sobre o efeito do flúor bre a cárie dentária, resultantes do uso do flúor,
durante a ocorrência da desmineralização, onde é que são específicos, de cada indivíduo e do
as elevações freqüentes nos níveis de flúor na boca tempo de exposição. Sendo assim, não podem
reduzem a perda mineral, reduzindo a progres- ser experimentados por pessoas não diretamente
são da lesão de cárie8,15,23,25,51,52. O consumo de expostas ao flúor. Ao contrário de outros mé-
água fluoretada não fornece apenas uma fonte de todos de prevenção de doenças, que resultam
flúor tópico quando a água é ingerida, mas tam- na erradicação de algum agente etiológico, os
bém quando o flúor circula pela boca através da benefícios do flúor não são transmissíveis para
saliva8,21,23, 25,45,51,52. as gerações futuras. Entretanto, é possível que,
O flúor normalmente presente na cavidade se a cárie dentária permanecer com índices bai-
bucal devido à fluoretação da água (flúor tópico) xos ou que estes declinem ainda mais, talvez a
não é capaz de controlar completamente a ocor- necessidade de continuar com a variedade e ex-
rência de cárie, mas reduz em torno de 50%. Sen- tensão dos programas de prevenção atualmen-
do assim, a fluoretação é considerada uma medi- te adotados seja questionada48.
da econômica, capaz de reduzir significativamen- Embora haja uma tendência em se afirmar
te a cárie de uma comunidade, e ainda, altamente que a ação da fluoretação no controle da cárie
efetiva do ponto de vista do administrador de dentária está diminuindo, na verdade o que está
saúde, pois um indivíduo recebe um composto acontecendo é um emprego disseminado do flúor.
de flúor que pode oferecer 50% de proteção para Em princípio, deve-se considerar que houve um
a doença cárie 25. aumento no uso de fontes alternativas de flúor,
Em acréscimo, em uma população abastecida como suplementos, aplicações tópicas, dentifríci-
com água fluoretada, a concentração de flúor na os, soluções para bochecho, vernizes e outros.
placa durante grande parte do dia não é significa- Além deste, outro aspecto importante é o fato de
tivamente aumentada pelo uso de dentifrício flu- que o benefício da fluoretação da água de abaste-
oretado. Não está totalmente estabelecido por que cimento tem uma ação difusa (fenômeno da di-
os dentifrícios fluoretados, cujas concentrações fusão), ou seja, os produtos e bebidas processa-
de flúor normalmente variam entre 900 e 1000 dos em áreas fluoretadas acabam beneficiando
mg/Kg, não têm se mostrado mais efetivos que a áreas não fluoretadas, onde são consumidos8,21,54.
água fluoretada na prevenção à cárie dentária. Segundo Horowitz55, a fluoretação da água de
Com base em considerações de dose-resposta, abastecimento público é tão efetiva como sempre
seria esperado que o uso regular de dentifrícios foi capaz de controlar a cárie dentária em popula-
produzisse concentrações de flúor na placa consi- ções com alto risco à cárie dentária e sem acesso a
deravelmente maiores e que, teoricamente, desen- outras fontes de flúor.
cadearia em um efeito cariostático maior51,52,53. Considerando que a interrupção definitiva da
Embora as concentrações de flúor na placa e fluoretação da água de abastecimento faz cessar
na saliva aumentem bruscamente durante o uso os benefícios, a adição de quantidades insufici-
de um dentifrício ou enxaguatório fluoretados, entes de flúor torna a medida inócua, enquanto
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Colaboradores
Referências
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