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Métodos de pesquisa qualitativa para etnobiologia

Book · May 2021

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4 authors:

Ulysses Paulino de Albuquerque Luiz Vital Fernandes Cruz da Cunha


Federal University of Pernambuco Universidade Católica de Pernambuco (UniCaP)
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SEE PROFILE SEE PROFILE

Reinaldo Farias Paiva de Lucena Rômulo Alves


Universidade Federal da Paraíba Universidade Estadual da Paraíba
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Uso e Conhecimento de Cactos por moradores do semiárido da Paraíba Brasil View project

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Ulysses Paulino de Albuquerque
Luiz Vital Fernandes Cruz da Cunha
Reinaldo Farias Paiva de Lucena
Rômulo Romeu da Nóbrega Alves
(Editores)

MÉTODOS DE PESQUISA

ETNO
QUALITATIVA PARA

BIO
LO
GIA 1ª edição - 2021
Recife/PE
Primeira edição publicada em 2021 por NUPEEA
www.nupeea.com
Copyright© 2021

Impresso no Brasil/Printed in Brazil

Editor-chefe: Diagramação
Ulysses Paulino de Albuquerque Erika Woelke | www.canal6.com.br

Revisão de normas técnicas Imagens da capa


Os autores Alexander Sinn e Michail Dementiev/Unsplash

Esta obra contém capítulos traduzidos do inglês previamente publicados no livro


Methods and Techniques in Ethnobiology and Ethnoecology (Springer, 2019),
sendo aqui reproduzidos com a autorização da editora.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(BENITEZ Catalogação Ass. Editorial, MS, Brasil)

M552 Métodos de pesquisa qualitativa para etnobiologia / [editores] Ulysses


1.ed. Paulino de Albuquerque...[et al.]. – 1.ed. – Recife, PE: Nupeea, 2021.
184 p. ; 21 cm.

Outros editores : Luiz Vital Fernandes Cruz da Cunha, Reinaldo Farias


Paiva de Lucena, Rômulo Romeu da Nóbrega Alves.
Bibliografia.
ISBN 978-65-88020-08-1 (e-book)
ISBN 978-65-88020-07-4 (impresso)

1. Etnobiologia. 2. Graduação. 3. Método de pesquisa. 4. Pesquisa qua-


litativa. I. Cunha, Luiz Vital Fernandes Cruz da. II. Lucena, Reinaldo Farias
Paiva de. III. Alves, Rômulo Romeu da Nóbrega.
04-2021/88 CDD 304.2

Índice para catálogo sistemático:


1. Etnobiologia : Pesquisa de campo 304.2

Bibliotecária responsável: Aline Graziele Benitez CRB-1/3129

É proibida a duplicação ou reprodução deste volume, no todo ou em parte, sob


quaisquer formas ou por quaisquer meios (eletrônico, mecânico, gravação, fotocópia,
distribuição na Web e outros), sem permissão expressa do editor.

NUPEEA
Recife – Pernambuco – Brasil
APRESENTAÇÃO

E m 2004 surgiu a primeira edição do livro Métodos e Técnicas


na Pesquisa Etnobiológica e Etnoecológica, que tinha a inten-
ção de preencher uma lacuna de materiais de referência e acessíveis
em língua portuguesa. Nesse período existia uma carência muito
grande de literatura que desse suporte teórico e metodológico para
os novos alunos e investigadores que estavam se aventurando na et-
nobiologia. Diante do sucesso da edição de 2004, nós resolvemos
publicar novas edições, sempre aprimorando e aumentando o con-
teúdo a cada nova edição. Nesse sentido, foram publicadas mais
duas edições nos anos de 2008 e 2010, sempre incorporando novos
capítulos e atualizando os anteriores. Passados 17 anos, o material
ainda continua relevante, em face da cada vez maior comunidade de
profissionais e estudantes de etnobiologia no Brasil.
Como consequência disso, e a partir da terceira edição no ano
de 2010, surgiu a versão em língua inglesa publicada pela Springer
no ano de 2014. Essa edição trouxe também colaborações de pes-
quisadores de outros países, ampliando cada vez mais o escopo do
material. Em 2019, um novo volume é publicado pela Springer com
capítulos inéditos que complementaram as abordagens do volume
anterior. Essa edição, sem versão equivalente em português, gerou
vários pedidos para um texto contendo os capítulos em língua
portuguesa.

APRESENTAÇÃO 3
Esta obra atende a essa demanda, trazendo novas contribui-
ções, em especial as que tratam de métodos qualitativos, visando
contribuir com o ensino e a pesquisa no Brasil e em outros países
de língua portuguesa, servindo como referência para pesquisas que
investigam as relações dos seres humanos com a biodiversidade. Ao
longo dos anos a etnobiologia foi se fortalecendo no Brasil e, como
resultado disso, temos a presença cada vez maior como disciplina
acadêmica nos cursos de graduação e pós-graduação de diferen-
tes universidades nas mais distintas regiões brasileiras. Assim, es-
peramos que este pequeno livro siga sendo útil para todas as pes-
soas que se fascinam com as complexas interações entre humanos e
biodiversidade.

Recife, 10 de abril de 2021.


Os editores

4 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


Sumário

7 CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E LEGAIS PARA A PESQUISA ETNOBIOLÓGICA


Sofia Zank
Rafaela Helena Ludwinsky
Graziela Dias Blanco
Natalia Hanazaki

45 PREPARACÃO DA PESQUISA QUALITATIVA


Joelson Moreno Brito Moura
Risoneide Henriques da Silva
Nylber Augusto da Silva
Daniel Carvalho Pires de Sousa
Ulysses Paulino de Albuquerque

63 EXECUTANDO A PESQUISA: PRÉ-TESTES, CONTROLE


DE QUALIDADE E REVISÕES DE PROTOCOLO
Temóteo Luiz Lima da Silva
Joelson Moreno Brito de Moura
Juliane Souza Luiz Hora
Edwine Soares de Oliveira
André dos Santos Souza
Nylber Augusto da Silva
Ulysses Paulino de Albuquerque

77 ANÁLISE DE DADOS QUALITATIVOS


Daniel Carvalho Pires de Sousa
Henrique Fernandes de Magalhães
Edwine Soares de Oliveira
Ulysses Paulino de Albuquerque
95 OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE E DIÁRIO DE CAMPO:
QUANDO UTILIZAR E COMO ANALISAR?
Juliana Loureiro Almeida Campos
Taline Cristina da Silva
Ulysses Paulino de Albuquerque

113 DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO COMO MÉTODO DE


ANÁLISE DE DADOS EM PESQUISAS ETNOBIOLÓGICAS
Izabel Cristina Santiago Lemos de Beltrão
Gyllyandeson de Araújo Delmondes
Diógenes de Queiroz Dias
Irwin Rose Alencar de Menezes
George Pimentel Fernandes
Marta Regina Kerntopf

135 COLETA E ANÁLISE DE DADOS EM PERCEPÇÃO DE RISCO AMBIENTAL


Henrique Fernandes Magalhães
Regina Célia da Silva Oliveira
Ivanilda Soares Feitosa
Ulysses Paulino de Albuquerque

153 MÉTODO DE AVALIAÇÃO ETNONUTRICIONAL RÁPIDA


PARA AVALIAR A BIODIVERSIDADE DE PLANTAS
ALIMENTÍCIAS EM INQUÉRITOS ALIMENTARES
Michelle Cristine Medeiros Jacob
Ivanilda Soares Feitosa (in memoriam)
Joana Yasmin Melo de Araújo
Natalia Araújo do Nascimento Batista
Temóteo Luiz Lima da Silva
Virgínia Williane de Lima Motta
Dirce Maria Lobo Marchioni
Ulysses Paulino de Albuquerque

179 EDITORES

181 AUTORES
CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E LEGAIS
PARA A PESQUISA ETNOBIOLÓGICA

Sofia Zank, Rafaela Helena Ludwinsky,


Graziela Dias Blanco, Natalia Hanazaki

A pós anos de discussões sobre direitos humanos, ética na ciên-


cia, acesso ao conhecimento e direitos dos povos indígenas e
tradicionais, precisamos analisar as ferramentas que temos e como
as usamos para garantir um compromisso ético na pesquisa (CBD
1992;ISE 2006; Albuquerque et al. 2013). O desenvolvimento de pes-
quisas etnobiológicas e etnoecológicas deve respeitar as leis nacio-
nais, os acordos internacionais e os preceitos éticos relacionados ao
respeito ao ser humano, ao meio ambiente e aos direitos dos povos
indígenas e comunidades locais (PICL) e agricultores familiares em
relação aos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade
e aos recursos genéticos que administram e inovam.
Antes de abordar as questões éticas e legais, será apresentada
uma visão geral do contexto que deu origem à legislação relacio-
nada à proteção ambiental e ao patrimônio genético, aos direitos
dos PICL e aos direitos humanos em geral. Assim, primeiro abor-
damos um breve histórico da regulamentação dos aspectos éticos e
legais da pesquisa etnobiológica por meio de marcos internacionais

CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E LEGAIS PARA A PESQUISA ETNOBIOLÓGICA 7


e nacionais (Fig. 1). Posteriormente, apresentamos os procedimen-
tos que devem ser seguidos pelos pesquisadores de acordo com
as diretrizes éticas da Sociedade Internacional de Etnobiologia
(International Society of Ethnobiology - ISE) e de outros documen-
tos relacionados à legislação brasileira.
É comum os pesquisadores que nunca trabalharam com seres
humanos se sentirem confusos e até desestimulados pela quantidade
de informações, procedimentos e dispositivos legais levados em
consideração na pesquisa. Neste capítulo, apresentamos diretrizes
práticas sobre esses procedimentos para pesquisa etnobiológica e
forneceremos o passo a passo dos procedimentos com algumas ob-
servações no final.

Figura 1. Linha do tempo com os principais marcos legais internacionais e nacionais


sobre procedimentos éticos e legais na pesquisa etnobiológica.

8 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


Marcos internacionais

O tripé formado pelo Código de Nuremberg (1947), a


Declaração de Helsinque (1964) e as Diretrizes para Pesquisa em
Seres Humanos do Conselho Internacional de Organizações de
Ciências Médicas (International Council of Medical Sciences
Organizations - ICMSO) (1993) dirige as discussões sobre liberdade
e consentimento popular na pesquisa. A atenção ética e as preocu-
pações com o consentimento da participação na pesquisa vieram
em primeiro lugar nos estudos de saúde. O julgamento de crimes
cometidos por médicos nazistas na segunda guerra mundial susci-
tou discussões sobre a posição e a voz do paciente, uma vez que o
juramento de Hipócrates havia sido quebrado em benefício de um
Estado. Essas discussões resultaram no Código de Nuremberg em
1947, no qual o primeiro tópico manifesta o livre-arbítrio em par-
ticipar da pesquisa (Shuster 1997; Sardenberg et al. 1999). Para ga-
rantir este consentimento essencial, a declaração de Helsinki (1964)
implementa os seguintes itens na rotina médica: uma explicação
clara dos objetivos dos tratamentos aplicados, os riscos e benefícios,
e o livre arbítrio para participar e retirar-se da pesquisa a qualquer
momento. Em 1993, o Conselho Internacional de Organizações de
Ciências Médicas em colaboração com a Organização Mundial da
Saúde, criou comitês de ética para revisar projetos e protocolos de
pesquisa (CIOMS 1993).
Em uma convergência em relação aos preceitos éticos, o
avanço das discussões sobre o acesso ao conhecimento tradicio-
nal e à repartição de benefícios veio mais tarde com a Convenção
sobre Diversidade Biológica (CDB), o Tratado Internacional (TI) da
Organização para a Alimentação e Agricultura (FAO) e o Protocolo

CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E LEGAIS PARA A PESQUISA ETNOBIOLÓGICA 9


de Nagoya. Os direitos dos povos indígenas são especificamen-
te abordados na Convenção 169 da Organização Internacional do
Trabalho (OIT), na Declaração Americana dos Povos Indígenas
e na Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos
Indígenas. A partir desses marcos internacionais, cada país signa-
tário vem desenvolvendo sua legislação e procedimentos específicos
para abordar essas questões.
A CDB é um instrumento de direito internacional que foi
acordado na reunião das Nações Unidas em 1992. A CDB aborda
todas as questões que se relacionam direta ou indiretamente com a
biodiversidade, servindo como uma estrutura legal e política para
outras convenções e acordos ambientais específicos. Na CDB, pela
primeira vez, foi reconhecida a importância dos PICL na conserva-
ção da biodiversidade e dos direitos destes em relação aos conheci-
mentos que produzem sobre a biodiversidade e sobre o patrimônio
genético que conservam e inovam. Além de instituir a noção de que
os países têm direitos soberanos sobre seus próprios recursos gené-
ticos, esse marco também menciona a distribuição justa e equitativa
dos benefícios derivados da utilização dos recursos genéticos e do
conhecimento associado (CBD 1992). O Tratado Internacional sobre
Recursos Genéticos de Plantas para Alimentação e Agricultura (TI)
da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura
(FAO) foi assinado em Roma em 2001. Hoje, está intrinsecamente
ligado à CDB. Enquanto a CDB lida com a biodiversidade nativa, a
TI lida com a biodiversidade agrícola (FAO 2001). O objetivo do TI
é a conservação e uso sustentável dos recursos genéticos, de plan-
tas para alimentação e agricultura, e a partilha justa e equitativa
dos benefícios derivados do seu uso para agricultura sustentável e
segurança alimentar (FAO 2001). O Protocolo de Nagoya de 2010,

10 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


que está em vigor desde 2014, é um acordo suplementar para a CDB
e busca alcançar os objetivos da CBD e do TI. O consentimento
prévio informado e os acordos sobre a repartição justa e eqüitativa
dos benefícios são elementos fundamentais, além do reconhecimen-
to de leis e procedimentos consuetudinários e o uso e troca tradicio-
nais de recursos genéticos (Gross 2013). O Protocolo de Nagoya foi
assinado pelo Brasil, e ratificado apenas em agosto de 2020 e, desta
forma, ainda não está em pleno vigor em nosso país.
A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho
(OIT), assinada em 1989, é o mais importante documento de polí-
tica internacional que trata especificamente dos direitos dos povos
indígenas e tribais. A Convenção 169 afirma os direitos relativos à
identidade, aos territórios tradicionalmente ocupados e aos direitos
de participação dos povos indígenas no uso, gestão e conservação de
seus territórios, incluindo consultas livres, prévias e informadas. O
Brasil ratificou a convenção em 2002 pelo Decreto 5051 de 2004. A
declaração das Nações Unidas de 20 de dezembro de 2006 foi outro
marco importante para os direitos dos povos indígenas na América
Latina. Desde então, os direitos individuais de cada indígena são
reconhecidos como iguais aos de todos os outros cidadãos de cada
nação. Além disso, destacou a importância de salvaguardar e re-
conhecer as distinções culturais das comunidades indígenas como
únicas. Entre os deveres que os estados têm com seus povos indíge-
nas estão a provisão de acesso a uma educação pública e saúde de
qualidade e a proteção e incentivo de práticas culturais. Também
relativa aos povos indígenas, a Declaração Americana sobre os
Direitos dos Povos Indígenas (DADPI), da Organização dos Estados
Americanos (OEA), promove e protege os direitos dos povos indí-
genas nas Américas. Aprovada em 2016, essa declaração demorou

CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E LEGAIS PARA A PESQUISA ETNOBIOLÓGICA 11


17 anos para ser escrita e aprovada. O DADPI aborda quatro novos
temas: 1) reconhecimento e respeito pela natureza multicultural e
multilingue dos povos indígenas; 2) reconhecimento das diferentes
formas de organização comunitária; 3) o reconhecimento e direito
dos povos indígenas de manter e promover seus próprios sistemas
familiares; e 4) liberdade de escolha para crianças indígenas, o que
garante que cada criança tenha o direito de desfrutar de sua pró-
pria cultura, religião ou idioma (ISA 2018a). Outro ponto importan-
te está relacionado às comunidades indígenas que estão isoladas ou
em estado de contato inicial e que têm o direito de permanecer nesta
condição e viver livremente e de acordo com suas culturas.
No âmbito dos estudos etnobiológicos, a Declaração de Belém
(1988) é reconhecida como o principal marco internacional que nor-
teia o código de ética da Sociedade Internacional de Etnobiologia
(ISE). Essa declaração também influenciou outros documen-
tos, como o Código de Ética da Sociedade Latino Americana de
Etnobiologia (SOLAE) (Contreras et al. 2015) e o Código de Conduta
Ética Tkarihwaié: ri (CBD 1992).

Marcos Nacionais: O contexto brasileiro

Apoiado pelas discussões do cenário internacional, o


Conselho Nacional de Saúde (vinculado ao Ministério da Saúde)
padronizou as diretrizes de pesquisa no campo da saúde e estabe-
leceu comitês de ética em pesquisa humana desde 1988. Mais re-
centemente, as diretrizes para pesquisa com os seres humanos na
área da saúde foram estendidas à pesquisa com seres humanos em
outras áreas, especialmente por meio das Resoluções do Conselho

12 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


Nacional de Saúde 466/2012 e 510/2016. Esta última resolução, por
exemplo, definiu regras aplicáveis à pesquisa em ciências sociais e
humanas nas quais os procedimentos metodológicos envolvem o
uso de dados obtidos diretamente dos participantes. No entanto, é
comum encontrar artigos científicos em que o consentimento para
participar da pesquisa não seja mencionado (Liporacci et al. 2015).
Em relação ao meio ambiente, o marco legal da Constituição
Federal de 1988 assegura um capítulo específico (artigo 225) que
impõe o dever de defender e preservar o meio ambiente pelo poder
público e pela sociedade. As responsabilidades das autoridades pú-
blicas incluem a preservação da diversidade e integridade do pa-
trimônio genético do país, a supervisão de entidades dedicadas à
pesquisa e manipulação de material genético e a definição de espa-
ços territoriais e seus componentes para serem especialmente pro-
tegidos. Parte dessas responsabilidades foram regulamentadas pela
Lei 13.123/2015 e pelo Decreto 8.772 / 2016, que dizem respeito ao
acesso ao patrimônio genético, proteção e acesso ao conhecimento
tradicional associado à biodiversidade, e à repartição de benefícios
pela conservação e uso sustentável da biodiversidade. Estes dois re-
gulamentos exigem a realização de procedimentos legais por parte
dos pesquisadores, que serão detalhados mais a frente. Essas res-
ponsabilidades da autoridade pública também resultaram na Lei
9.985/2000, que estabeleceu o Sistema Nacional de Unidades de
Conservação (SNUC).
O estabelecimento do SNUC definiu critérios e padrões para
a criação, implementação e gestão de áreas protegidas, ou unida-
des de conservação, incluindo também áreas de uso sustentável.
Entre as questões abordadas por esta lei, a comunidade científica é
incentivada a articular o valor dos conhecimentos tradicionais no

CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E LEGAIS PARA A PESQUISA ETNOBIOLÓGICA 13


desenvolvimento de pesquisas sobre a biodiversidade de áreas prote-
gidas e sobre o uso sustentável. A pesquisa científica dentro de áreas
protegidas depende de aprovação prévia e está sujeita à supervisão
da instituição responsável pela sua administração. No nível federal,
a instrução normativa do Instituto Chico Mendes de Conservação
da Biodiversidade (ICMBio) número 03/2014 estabeleceu e regula-
mentou o Sistema de Autorização e Informação em Biodiversidade
(SISBIO). Através do SISBIO, os pesquisadores devem solicitar as au-
torizações e licenças do ICMBio para atividades científicas ou didá-
ticas que envolvam o uso da biodiversidade ou o acesso às unidades
de conservação federais.
Outro importante avanço da Constituição Federal de 1988 foi
a inclusão de artigos voltados para os direitos indígenas. Os artigos
231 e 232, juntos, são ferramentas importantes que reconhecem e
protegem os direitos e conhecimentos culturais dos povos indíge-
nas do Brasil. Esses artigos asseguram o reconhecimento das práti-
cas culturais e linguísticas dos povos indígenas; o reconhecimento
e a legitimidade da presença multicultural dos povos indígenas no
Brasil; a proteção e os direitos à terra, água e recursos naturais; e a
legitimação dos povos indígenas como organizações independentes,
podendo atuar em defesa de seus próprios direitos e interesses.
No Brasil, consideramos povos indígenas como de origem
ameríndia (ou descendentes de habitantes pré-colombianos). O
órgão público responsável pela permissão de pesquisa com indíge-
nas é chamado de Fundação Nacional do Índio (FUNAI). A FUNAI
foi criada em 1967, durante o período da ditadura militar no Brasil
(1964-1985). Este período inicial de operação da FUNAI foi marca-
do por duas situações: por um lado, foram criadas estratégias para
atrair indígenas para áreas de interesse, como batalhões de defesa,

14 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


e; por outro, foram afastadas de outras áreas estratégicas (por exem-
plo, menor liberdade no autogerenciamento de suas terras) (Cunha
1987; ISA 2018b). Essa situação foi alcançada devido ao monopólio
das relações tutelares, no qual atividades como o acesso à educação
e à saúde foram centralizadas na FUNAI. Essa situação deixou os
indígenas com pouca ou nenhuma liberdade de ação, tornando-se
extremamente dependentes da FUNAI para qualquer tipo de ação.
Estruturalmente, a FUNAI foi dividida (e continua até hoje) em três
níveis espaciais: nacional, regional e local. A partir das décadas de
1970 e 1980, movimentos sociais e indígenas começaram a surgir
com mais força no Brasil e no mundo. Esses movimentos fomenta-
ram o surgimento de instituições e de legislações em favor das comu-
nidades indígenas, o que influenciou algumas mudanças na FUNAI
(Santilli 1991; ISA 2018b). A Funai, a partir do Decreto Presidencial
nº 7.056, passou por uma grande reestruturação administrativa em
2009. A partir deste momento, técnicos qualificados começaram a
desenvolver atividades e planos, com a participação e atuação dos
povos indígenas. No entanto, o grande desafio da FUNAI hoje é,
com pouco recurso e falta de profissionais, poder lidar com uma
grande diversidade de povos indígenas com demandas diversas.
Além disso, a Política Nacional para o Desenvolvimento
Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNDSPCT),
instituída pelo Decreto 6040/2007, reconheceu formalmente as co-
munidades tradicionais brasileiras e estendeu a esses grupos os di-
reitos que antes eram reservados aos indígenas e quilombolas, se-
gundo a Constituição Federal de 1988. Os Povos e Comunidades
Tradicionais (PCT) são definidos neste decreto como segue:
“grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como
tais, que possuem formas próprias de organização social, que

CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E LEGAIS PARA A PESQUISA ETNOBIOLÓGICA 15


ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para
sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica,
utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmi-
tidos pela tradição.”
Entre os povos e comunidades tradicionais do Brasil estão
quilombolas, ciganos, matriz africana, pescadores artesanais, serin-
gueiros, quebradeiras de coco-de-babaçu, comunidades de fundo
de pasto, faxinalenses, ribeirinhos, caiçaras, sertanejos, açoria-
nos, campeiros, pantaneiros, entre outros (veja também o Decreto
8.750/2016, o qual estabelece o Conselho Nacional de Povos e
Comunidades Tradicionais). O PNDSPCT visa reconhecer, fortale-
cer e garantir os direitos territoriais, sociais, ambientais, econômi-
cos e culturais dos povos e comunidades tradicionais, com respei-
to e valorização por sua identidade, suas formas de organização e
suas instituições. Entre esses direitos estão aqueles relacionados ao
reconhecimento e proteção de conhecimentos, práticas e usos tra-
dicionais, que são o foco da pesquisa etnobiológica e etnoecológica.

Lei 13.123 e Decreto 8.772

A Lei 13.123 e o Decreto 8.772 (em vigor desde 2015 e 2016,


respectivamente) fixam o marco legal atual relacionado à CDB, de-
terminando o acesso ao patrimônio genético, proporcionando pro-
teção e acesso ao conhecimento tradicional associado à biodiversi-
dade e estabelecendo a repartição de benefícios para a conservação e
uso sustentável da biodiversidade (Brasil 2015; 2016). O Brasil ratifi-
cou a CDB em 1994, que se tornou lei, mas não se tornou operativa
sem regulamentação.

16 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


O primeiro regulamento para operacionalizá-lo foi a Medida
Provisória (MP) 2.186-16, aprovada em 2001. Esta MP criou o
Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN) e determi-
nou que o acesso e a remessa de patrimônio genético e acesso ao
conhecimento tradicional associado no país dependia da autoriza-
ção deste conselho. Esta MP foi controversa (Liporacci et al. 2015)
e criticada devido à sua excessiva burocracia (Pedrollo & Kinupp
2015); no entanto, ao longo do tempo, as resoluções e deliberações
do CGEN criaram condições para que o sistema funcionasse de
maneira um pouco mais ágil, visando adequar a regulamentação à
realidade da pesquisa científica e do desenvolvimento tecnológico
(Besunsan 2017). A MP esteve em vigor por quase 15 anos, quando
foi substituída pela Lei 13.123/15. Esta lei trouxe avanços e retroces-
sos em relação aos direitos dos povos indígenas, povos e comunida-
des tradicionais e dos agricultores tradicionais.
De acordo com a Lei 13.123/15, em relação à pesquisa cientí-
fica, o acesso ao patrimônio genético ou conhecimento tradicional
associado realizado exclusivamente para esse fim, não requer au-
torização prévia. No entanto, os pesquisadores precisam se regis-
trar eletronicamente no Sistema Nacional de Gestão do Patrimônio
Genético e do Conhecimento Tradicional Associado – SISGEN, que
está em operação desde 2017. A lei trata do conhecimento tradicio-
nal associado ao patrimônio genético de populações indígenas, co-
munidades tradicionais e agricultores tradicionais, ocorrendo uma
adaptação do termo PICL utilizado na CDB para manter a coerên-
cia com as demais normativas brasileiras. Cabe ressaltar que os seg-
mentos afetados pela lei criticaram estas denominações, pois eles se
reconhecem como povos indígenas, povos e comunidades tradicio-
nais e agricultores familiares. Desde a promulgação da Lei 13.123/15,

CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E LEGAIS PARA A PESQUISA ETNOBIOLÓGICA 17


é necessário o registro ou autorização para acesso ao conhecimento
tradicional, mesmo que obtido de fontes secundárias (por exemplo,
feiras, publicações, inventários, filmes, artigos científicos, registros
e outras formas de sistematização e registro desse conhecimento).
Além disso, as pesquisas que não envolvem o acesso ao conhecimen-
to tradicional, mas acessam o patrimônio genético, ou “informação
de origem genética de espécies vegetais, animais, microbianas ou
espécies de outra natureza, incluindo substâncias oriundas do me-
tabolismo destes seres vivo”, também precisam ser cadastradas no
SISGEN.
A Lei divide o conhecimento tradicional associado ao pa-
trimônio genético em duas categorias: 1) origem identificável; e 2)
origem não identificável. O conhecimento de origem identificável
é aquele ao qual é possível identificar pelo menos um povo ou co-
munidade que o detém. O de origem não identificável seria aquele
que não é possível identificar um povo ou comunidade que o detém.
Segundo o decreto nº 8.772/16, “Qualquer população indígena, co-
munidade tradicional ou agricultor tradicional que cria, desenvol-
ve, detém ou conserva determinado conhecimento tradicional as-
sociado é considerado origem identificável desse conhecimento”.
Este conceito corrobora com o consenso existente entre os povos
indígenas, povos e comunidades tradicionais e agricultores tradicio-
nais sobre o fato de que todo conhecimento tradicional é de “origem
identificada”(Miranda 2017) (Quadro 1).

18 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


Quadro 1. Qual a consequência de considerar um conhecimento como de origem não
identificável?

De acordo com a Lei 13123, para este tipo de conhecimento, o


consentimento prévio informado não é obrigatório. Em outras palavras,
uma empresa ou pesquisador pode acessá-lo sem o consentimento prévio
informado. Além disso, o compartilhamento de benefícios decorrentes do
acesso a esse tipo de conhecimento seria destinado ao Fundo Nacional de
Repartição de Benefícios.
Em que outros casos há isenção de consentimento prévio?
Isso ocorre em casos de acesso ao patrimônio genético da variedade
tradicional local ou crioula ou raça localmente adaptada ou crioula para
atividades agrícolas.
...mas a ausência de consentimento prévio do PICL ou agricultor
familiar que cria, desenvolve, mantém ou preserva variedade ou raça é
considerada uma violação dos direitos humanos!

Uma das inovações da lei foi a criação do Fundo Nacional de


Repartição de Benefícios (FNRB), que visa valorizar o patrimônio
genético e o conhecimento tradicional associado e promover seu uso
de forma sustentável. No entanto, um dos pontos controversos da re-
partição de benefícios é a existência de várias isenções que levaram a
distorções nos fundamentos da CDB e no marco legal internacional.
De acordo com a Lei da 13.123/15, a repartição de benefícios ocorre
somente quando há exploração econômica de um produto acabado
ou material reprodutivo decorrente do acesso ao patrimônio genéti-
co ou conhecimento tradicional associado. A lei isenta os fabrican-
tes de produtos intermediários, microempresas, pequenas empresas
e microempreendedores individuais de compartilhar benefícios.
A Lei garante os direitos dos povos indígenas, comunidades
tradicionais e agricultores tradicionais de ter: 1) reconhecida sua

CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E LEGAIS PARA A PESQUISA ETNOBIOLÓGICA 19


contribuição para o desenvolvimento e conservação de patrimônio
genético, em qualquer forma de publicação, utilização, exploração
e divulgação; 2) ter indicada a origem do acesso ao conhecimento
tradicional associado em todas as publicações, utilizações, explora-
ções e divulgações; perceber benefícios pela exploração econômica
por terceiros, direta ou indiretamente, de conhecimento tradicional
associado, nos termos desta Lei; 3) participar do processo de tomada
de decisão sobre assuntos relacionados ao acesso a conhecimento
tradicional associado e à repartição de benefícios decorrente desse
acesso, na forma do regulamento; 4) usar ou vender livremente pro-
dutos que contenham patrimônio genético ou conhecimento tradi-
cional associado; 5) conservar, manejar, guardar, produzir, trocar,
desenvolver, melhorar material reprodutivo que contenha patrimô-
nio genético ou conhecimento tradicional associado.

Procedimentos éticos e legais na pesquisa etnobiológica

Procedimentos éticos

Antes das preocupações com procedimentos legais, é essen-


cial que os pesquisadores sejam esclarecidos e orientados sobre pro-
cedimentos éticos na pesquisa etnobiológica. Usamos aqui como re-
ferência o código de ética ISE, desenvolvido ao longo de mais de
uma década e produto de uma série de fóruns de discussão baseados
em consenso envolvendo membros do ISE (ISE 2006). Escolhemos
este documento por sua importância histórica, mas enfatizamos
as convergências com o Código de Ética da SOLAE e o Código de
Conduta Ética Tkarihwaié: ri.

20 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


Um conceito importante é o de “atenção plena”, ou mindfulness,
chamando a atenção para a obrigação de estar “plenamente conscien-
te do conhecimento e da omissão, do fazer e do não fazer, da ação e
da inação” (ISE 2006). Os 17 princípios, alinhados com o cumprimen-
to da legislação nacional e internacional e práticas consuetudinárias
(Quadro 2), descrevem a condução da pesquisa ou a organização de
coleções, publicações, bases de dados e gravações de áudio ou vídeo,
entre outros produtos de pesquisa e atividades relacionadas. Apesar
de uma direção política bem marcada, sabemos que a absorção de tais
princípios pelos pesquisadores etnobiológicos ainda é tímida.

Quadro 2. Princípios para a pesquisa etnobiológica com povos indígenas, socieda-


des tradicionais e comunidades locais (PICL) (Adaptado de ISE 2006).

1. Direitos e responsabilidades prévios


PICL possuem interesses, responsabilidades e direitos de propriedade
prévios sobre todos os recursos naturais que se encontram dentro de
locais tradicionalmente habitados ou utilizados por tais povos, como
também sobre todo o conhecimento e propriedade intelectual associado
a esses recursos.

2. Princípio de autodeterminação
O PICL tem o direito à autodeterminação (ou determinação local para
comunidades tradicionais e locais), e os pesquisadores e organizações
devem reconhecer e respeitar esses direitos em suas relações com esses
povos e comunidades.

3. Princípio da Inalienabilidade
Os direitos dos PICL em relação aos seus territórios tradicionais e
aos recursos naturais dentro deles e aos conhecimentos tradicionais
associados são inalienáveis. Esses direitos são coletivos por natureza,

CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E LEGAIS PARA A PESQUISA ETNOBIOLÓGICA 21


mas podem incluir direitos individuais; e a natureza, escopo e
alienabilidade de seus respectivos regimes de direitos de recursos devem
ser determinados por eles mesmos.

4. Princípio da Custódia tradicional


A humanidade tem uma interconexão holística com os ecossistemas de
nossa Sagrada Terra e a obrigação e responsabilidade do PICL de preservar
e manter seu papel como guardiões tradicionais desses ecossistemas,
através da manutenção de suas culturas, identidades, línguas, mitologias,
crenças espirituais e leis e práticas consuetudinárias.

5. Princípio da Participação Ativa


É crucial que os PICL participem ativamente de todas as fases da pesquisa
e atividades relacionadas, desde o início até a conclusão, bem como
na aplicação dos resultados da pesquisa. A participação ativa inclui a
colaboração em projetos de pesquisa para atender às necessidades e
prioridades locais e a análise prévia dos resultados antes da publicação
ou divulgação.

6. Divulgação integral
Os PICL têm o direito de serem plenamente informados sobre a natureza,
o escopo e o objetivo final da pesquisa proposta (incluindo objetivo,
metodologia, coleta de dados e disseminação e aplicação dos resultados).
Esta informação deve ser dada em formas que são entendidas e úteis
a nível local, considerando as preferências culturais e modos de
transmissão desses povos e comunidades.

7. Princípio do Consentimento Prévio Informado e Esclarecido


O consentimento prévio informado e esclarecido é obrigatório antes
que qualquer pesquisa seja realizada nos níveis individual e coletivo,
conforme determinado pelas estruturas de governança da comunidade.
O consentimento prévio informado é um processo contínuo baseado em
um relacionamento e mantido em todas as fases da pesquisa. Os PICL
possuem o direito de dizer não.

22 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


8. Princípio da Confidencialidade
Os PICL, a seu exclusivo critério, têm o direito de excluir da publicação e /
ou manter confidencialidade qualquer informação relativa à sua cultura,
identidade, idioma, tradições, mitologias, crenças espirituais ou genômica.

9. Princípio do Respeito
Este princípio reconhece a necessidade dos pesquisadores respeitarem a
integridade, moralidade e espiritualidade da cultura, tradições e relações
do PICL com seus mundos.

10. Princípio da Proteção ativa


Os pesquisadores devem tomar medidas ativas para proteger e melhorar
as relações dos PICL com o seu ambiente e, assim, promover a manutenção
da diversidade cultural e biológica.

11. Princípio da Precaução


Ações proativas e antecipatórias são necessárias para identificar e prevenir
danos biológicos ou culturais resultantes de atividades ou resultados de
pesquisa, incluindo a responsabilidade de evitar a imposição de conceitos
e padrões externos ou estrangeiros.

12. Princípio da Reciprocidade, Benefício Mútuo e Compartilhamento


Equitativo
Os PICL possuem o direito de participar e se beneficiar dos processos e
dos resultados que se obtêm, direta ou indiretamente e a curto e a longo
prazo, da pesquisa etnobiológica e das atividades relacionadas que
envolvem seus conhecimentos e seus recursos.

13. Princípio de Apoio à Pesquisa Indígena


Este princípio reconhece e apoia os esforços dos PICL em empreender
suas próprias pesquisas com base em suas próprias epistemologias e
metodologias. Para tanto, a capacitação, o intercâmbio de treinamento e a
transferência de tecnologia para os PICL devem ser incluídos na pesquisa
sempre que possível.

CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E LEGAIS PARA A PESQUISA ETNOBIOLÓGICA 23


14. Princípio do Ciclo interativo dinâmico
A pesquisa e as atividades relacionadas não devem ser iniciadas, a
menos que todas as etapas possam ser concluídas: (a) preparação e
avaliação; (b) implementação total; (c) avaliação, divulgação e retorno
dos resultados; e (d) treinamento e educação como parte integral do
projeto. Todos os projetos devem ser vistos como ciclos de comunicação
e interação continuada.

15. Princípio de Ação de remediação


Todos os esforços serão feitos para evitar quaisquer consequências
adversas para os PICL dos resultados de pesquisa e de atividades
relacionadas. Qualquer ação corretiva pode incluir restituição, quando
acordada e apropriada.

16. Princípio de devido reconhecimento e mérito


Os PICL devem ser reconhecidos de acordo com sua preferência e dado
o devido crédito em todas as publicações acordadas e outras formas de
divulgação de suas contribuições tangíveis e intangíveis para atividades
de pesquisa. A coautoria deve ser considerada quando apropriado. Isso se
estende a usos e aplicações secundárias ou posteriores.

17. Princípio da Diligência


Espera-se que os pesquisadores tenham uma compreensão ativa
do contexto local antes de entrar em relações de pesquisa com uma
comunidade e conduzir pesquisas no idioma local na medida do possível.

Procedimentos legais
Sistema Nacional de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos

Atualmente, organizações internacionais e agências de fomen-


to à pesquisa em todo o mundo desenvolveram seus próprios proto-
colos de submissão de projetos (Vandebroek 2017). Recomendamos
estudar a legislação e os protocolos atuais específicos para o país

24 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


no qual a coleta de dados ocorrerá. Lembramos que os protocolos
podem mudar, mas as informações prévias e o consentimento para
participação na pesquisa permanecem como uma base sólida.
No Brasil, de acordo com os marcos legais da área de saúde
para pesquisa com seres humanos, que também se aplicam à pes-
quisa fora da área da saúde, os projetos de pesquisa devem ser
previamente aprovados por um comitê de ética em pesquisa de
uma universidade ou instituição de pesquisa (Comitê de Ética em
Pesquisa com Seres Humanos, CEPSH) e ser consentida pelos cola-
boradores da pesquisa. O CEP é um órgão institucional que tem o
papel de revisar projetos de pesquisa científica, além de possuir um
papel consultivo e educacional (Freita & Hossne 2002; Brasil 2004).
Um ponto crucial nesta aprovação por um CEP é a prepara-
ção de um documento chamado “Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido” (TCLE). O TCLE, também conhecido como consenti-
mento prévio, tem o papel de esclarecer e proteger o colaborador da
pesquisa, bem como o pesquisador (Brasil 2012). Esses procedimen-
tos convergem com alguns dos requisitos da Lei 13.123/15, os quais
são tratados no item seguinte deste texto. Em seguida, no quadro 3,
resumimos uma lista de verificação com diretrizes para as etapas
anteriores à condução da pesquisa e para a elaboração de um TCLE,
de modo a garantir os preceitos éticos que norteiam os estudos com
seres humanos. No caso do acesso ao conhecimento dos PICL e dos
agricultores familiares, que devem seguir a Lei 13.123/15, é neces-
sário incluir os impactos resultantes da realização da pesquisa, os
direitos e responsabilidades de cada parte, o direito de negar acesso,
e no caso de pesquisas com viés econômico, informações sobre a re-
partição de de benefícios (artigos 16 do Decreto 8.772/2016).

CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E LEGAIS PARA A PESQUISA ETNOBIOLÓGICA 25


Quadro 3. Diretrizes e checklist das etapas obrigatórias na preparação do Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) no Brasil.

1. Convite para participar da pesquisa


A participação em um projeto de pesquisa não é obrigatória. Nesse
momento, o pesquisador deve tentar estabelecer uma relação de
confiança entre o pesquisador e o colaborador da pesquisa. Assim, o
convite para participar é essencial.

2. Identificação da pesquisa
Título da pesquisa, objetivos, justificativa e procedimentos devem ser
identificados, sempre escritos de forma clara e objetiva.

3. Métodos de Pesquisa
Como os dados serão coletados? Quem vai fazer as entrevistas? O que será
incluído na entrevista? Como esses dados serão gravados ou registrados?

4. Direito de não participar


O documento deve deixar claro o direito de recusa da participação na
pesquisa em qualquer momento ou etapa da pesquisa.

5. Acompanhamento de pesquisa
Além do pesquisador, quem mais fará a pesquisa? O pesquisador deve
fornecer o nome do seu orientador e das pessoas que ajudarão na coleta
de dados e suas respectivas instituições.

6. Sigilo
O pesquisador precisa explicar como os dados serão armazenados e
garantir o anonimato do entrevistado.

7. Publicações e uso da informação


Forneça uma breve explicação de como os dados serão usados ​​
(publicações de artigos, desenvolvimento de drogas, cosméticos, etc.).
Encorajamos uma menção sobre o compartilhamento de benefícios e

26 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


o retorno dos dados aos colaboradores da pesquisa e como isso deve
acontecer.

8. Riscos e Benefícios
Riscos da pesquisa são comumente negligenciados na formulação
do TCLE. Mesmo que sua coleta de dados envolva uma entrevista, é
necessário considerar o cansaço e o tédio durante a participação na
pesquisa, bem como constrangimento, desconforto e até mesmo quebra
de confidencialidade. Este último, mesmo que involuntário, deve ser
incluído no TCLE. Reembolso e indenização também devem ser garantidos
no caso de qualquer dano resultante da pesquisa. Quanto aos benefícios,
espera-se que toda a pesquisa científica traga algum benefício para
a sociedade. Podemos então explicar o que esperamos alcançar em
relação a benefícios tangíveis e intangíveis a curto e longo prazo. Além
disso, dependendo do tipo de benefício, como aqueles que resultam
em resultados monetários da pesquisa, você precisará descrever em
detalhes como isso será assegurado ao colaborador.

9. Consentimento / acordo
O TCLE deve conter um campo para registro da aceitação para colaborar com a
pesquisa. Quando o colaborador for menor de idade, analfabeto ou apresentar
alguma deficiência intelectual, o documento deverá solicitar o consentimento
dos pais ou responsável legal. O TCLE não precisa necessariamente ser
obtido por escrito: outras mídias são permitidas (ver CNS 510/16).

10. Assinatura do pesquisador


A assinatura do pesquisador é uma forma de demonstrar legalmente o
compromisso de cumprir os termos do código etnobiológico de ética e a
atual resolução relacionada à pesquisa com seres humanos utilizados
no país (p. Ex., CNS 466/12 no Brasil; lembre-se sempre de citar estes
documentos).

11. Como contatar o pesquisador ou o comitê de ética?


Inclua informações sobre como entrar em contato com o pesquisador,
grupo de pesquisa ou laboratório e o comitê de ética que aprovou o projeto
(endereço, telefone do pesquisador e supervisor e endereços de e-mail).

CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E LEGAIS PARA A PESQUISA ETNOBIOLÓGICA 27


No Brasil, a submissão de um projeto de pesquisa é feita atra-
vés de um portal online chamado Plataforma Brasil (http://platafor-
mabrasil.saude.gov.br). Através deste portal, todos os documentos
relacionados à pesquisa devem ser enviados, e as avaliações podem
ser monitoradas (Quadro 4). Quando o projeto é aprovado, relató-
rios anuais ou finais (dependendo da duração do projeto) devem ser
enviados para a plataforma como forma de acompanhamento da
pesquisa. No caso de não aprovação do projeto pela indicação de
questões pendentes, é necessário ler atentamente a avaliação para
fazer uma nova submissão. O projeto deve ser aprovado antes do
início da coleta de dados.

Quadro 4. Checklist para inserção de documentos na Plataforma Brasil.

1. Projeto de pesquisa.
2. Modelo do termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE); veja as
diretrizes no Quadro 3.
3. Autorizações de organismos competentes no caso de coleta da flora e
fauna.
4. Autorização de líderes comunitários (se aplicável).
5. Declaração de autorização da(s) instituição(ões) participante(s):
declaração da(s) instituição(ões) envolvida(s) autorizando a pesquisa
assinada pelo responsável da(s) instituição(ões).
6. Preenchimento do formulário com detalhes da pesquisa na Plataforma
Brasil.
7. Folha de rosto gerada dentro da Plataforma Brasil: ao final do
preenchimento do formulário, será disponibilizada uma folha de rosto,
que deverá ser assinada pelo coordenador da pesquisa e pela pessoa
responsável pela instituição proponente.

28 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


Acesso ao conhecimento tradicional associado, aos recursos
genéticos e a repartição equitativa de benefícios:

Para o cumprimento da Lei 13.123 e Decreto 8.772, nós apre-


sentamos as etapas para o desenvolvimento de uma pesquisa que
não visa a exploração econômica de um produto pelo usuário (pes-
quisador, empresa, governo etc.), que é a realidade da maioria das
pesquisas etnobiológicas. No entanto, no caso de pesquisas com ex-
ploração econômica, é necessário que o leitor busque informações
detalhadas sobre o processo de autorização da pesquisa e sobre a re-
partição equitativa dos benefícios (Brasil 2015, Brasil 2016).
O primeiro passo no desenvolvimento da pesquisa é a obten-
ção do consentimento prévio e informado da comunidade a ser in-
vestigada, o que, como mencionado anteriormente, é convergente
com os objetivos da obtenção do consentimento livre e esclarecido
(TCLE) (Quadro 3). De acordo com a lei, o consentimento prévio e
informado pode ocorrer mediante assinatura de termo de consen-
timento prévio, obtenção de registro audiovisual do consentimento,
averiguação de opinião do órgão oficial competente ou reconheci-
mento através do protocolo da comunidade. Os protocolos comu-
nitários são regras internas criadas pelas próprias comunidades que
dizem como o governo, empresas, pesquisadores e outros interes-
sados em
​​ acessar seu conhecimento tradicional associado devem
proceder de maneira que respeite os costumes, usos e tradições. O
instrumento de comprovação do consentimento deve ser preparado
em linguagem acessível, contendo a descrição do processo de con-
sentimento, a organização e representação da comunidade estuda-
da, as informações sobre a pesquisa (objetivo, duração, orçamen-
to, financiamento, etc.), o uso que se pretende dar ao conhecimento

CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E LEGAIS PARA A PESQUISA ETNOBIOLÓGICA 29


associado, a área de cobertura do projeto e as comunidades estu-
dadas, e se a comunidade recebeu assessoria técnica e jurídica no
processo (Artigos 17 do Decreto 8.772/2016). Embora seja possível
na legislação brasileira comprovar o consentimento prévio e infor-
mado por meio da opinião de um órgão oficial competente, é impe-
rativo que ocorra uma consulta prévia e informada com as pessoas
ou comunidades a serem estudadas, sem violar os preceitos éticos
e os direitos humanos internacionalmente reconhecidos (ISE 2006;
OIT 2011).
Acreditamos que toda pesquisa etnobiológica e etnoecológi-
ca deve seguir os preceitos éticos do Código de Ética do ISE (ver
seção Procedimentos éticos) e os instrumentos legais internacional-
mente reconhecidos sobre os direitos do PICL (ver seção Marcos in-
ternacionais), mesmo nos casos em que a Lei 13.123/15 sugere que
o acesso ao conhecimento de origem não identificada não requer
consentimento prévio informado. Em outras palavras, toda pesqui-
sa deve solicitar o consentimento prévio e informado da comuni-
dade e respeitar a organização coletiva (por exemplo, mesmo que a
pesquisa trabalhe com especialistas locais, é importante obter uma
autorização coletiva para a pesquisa através de sua organização co-
munitária). É importante também que no consentimento já seja
acordado com a comunidade o prazo para a realização do cadastro
no SISGEN, respeitando a regra geral da legislação vigente. O pes-
quisador deve estar ciente de que a comunidade tem o direito de
negar acesso ao conhecimento tradicional associado, e essa decisão
deve ser respeitada.
Depois de obter o consentimento prévio informado da co-
munidade a ser estudada, o pesquisador pode realizar o registro
no SISGEN (ver lista de verificação no Quadro 5). Por mais que a

30 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


legislação brasileira só exija o cadastro de pesquisas com povos in-
dígenas, povos e comunidades tradicionais e agricultores familiares,
nós sugerimos que as pesquisas com comunidades locais também
sejam registradas, como uma forma de salvaguardar os conhecimen-
tos destes grupos que no futuro podem vir a ter exploração econô-
mica. Deve-se notar que a pesquisa com dados secundários também
deve ser registrada no SISGEN. De acordo com a lei, o registro deve
ser feito antes da divulgação de resultados (finais ou parciais) em
meios científicos; do envio de amostras para terceiros; do pedido de
direito de propriedade intelectual sobre um processo, produto ou
cultivar desenvolvido a partir do acesso; da notificação ao CGEN
do produto acabado ou material reprodutivo desenvolvido como re-
sultado do acesso; e da comercialização do produto intermediário.
No caso de pesquisas que não acessem o conhecimento tradi-
cional dos povos e comunidades citados na lei, mas acessem patri-
mônio genético, também precisam realizar o cadastro no SISGEN.

Quadro 5. Checklist para o registro no Sistema Nacional de Gestão do Patrimônio Ge-


nético e do Conhecimento Tradicional Associado, SISGEN.

1. Informações básicas sobre a atividade de pesquisa ou desenvolvimento


tecnológico, incluindo:
• Resumo da atividade e seus objetivos.
• Setor de aplicação, no caso do desenvolvimento tecnológico.
• Resultados esperados ou obtidos, dependendo do tempo de registro.
• Equipe de pesquisa, incluindo informação sobre estudantes ou
bolsistas.
• Outras instituições nacionais que participam na realização da
pesquisa, quando aplicável, incluindo instituições internacionais.
• Quando a atividade aconteceu ou vai acontecer.

CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E LEGAIS PARA A PESQUISA ETNOBIOLÓGICA 31


• Qual foi o patrimônio genético acessado (identificação no nível
taxonômico mais estrito possível).
• declaração se o patrimônio genético é variedade tradicional local
ou crioula ou raça localmente adaptada ou crioula, ou se a espécie
consta em lista oficial de espécies ameaçadas de extinção.
• Quem forneceu o conhecimento tradicional associado e uma descrição
das fontes desse conhecimento (incluindo fontes secundárias).
• Onde o estudo foi feito (coordenadas geo-referenciadas), exceto para
conhecimento de origem não identificável.
• Registro prévio ou número de autorização no caso de pesquisa ou
desenvolvimento tecnológico realizado após 30 de junho de 2000.
2. Testemunho para obter o consentimento prévio informado do provedor
de conhecimento tradicional associado de origem identificável.
3. Se necessário, solicite a confidencialidade das informações
apresentando a fundamentação legal relevante e um resumo não
confidencial.
4. Quando aplicável, declarar o enquadramento em hipótese de isenção
legal ou de não incidência de repartição de benefícios.

Se as informações fornecidas ao SISGEN forem alteradas, o


pesquisador deve atualizar os dados relevantes pelo menos uma vez
por ano. Os pesquisadores devem indicar a fonte do conhecimento
tradicional associado em divulgações e publicações. Esta é uma ma-
neira de reconhecer o conhecimento tradicional e, mais importante,
é um direito dos PICL que deve ser respeitado.
O sistema ainda precisa ser melhorado, pois atualmente
alguns pontos dificultam a legalização das pesquisas pelos pesqui-
sadores, como a inserção no CPF ou no CNPJ de informantes de
pesquisa realizados desde 2000 ou a necessidade de inserir manual-
mente as informações de conhecimento tradicional para cada recur-
so genético acessado. Assim, o pesquisador deve estar ciente de que

32 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


muitos ajustes no sistema ainda são esperados, mas dependem dos
gestores do SISGEN.
A legislação determina multas por infrações, tais como: a)
acesso ao conhecimento tradicional de origem identificável sem
obter consentimento prévio e informado, ou em desacordo com ele;
b) divulgar resultados, finais ou parciais, em meios científicos ou
de comunicação sem registro prévio; c) deixar de indicar a origem
do conhecimento tradicional associado de origem identificável em
publicações, usos, acervos e divulgações resultantes do acesso; e d)
apresentar informação total ou parcialmente falsa ou enganosa, seja
nos sistemas oficiais ou em qualquer outro procedimento adminis-
trativo relacionado ao patrimônio genético ou conhecimento tradi-
cional associado.

Pesquisa com Povos Indígenas

No Brasil, as instituições responsáveis por autorizar a pesqui-


sa com povos indígenas são aquelas já mencionadas neste texto (CEP,
CGEN, SISGEN, SISBIO e FUNAI). Para obter autorização, o pes-
quisador pode iniciar os procedimentos com um CEP e a FUNAI,
ao mesmo tempo. Os projetos com povos indígenas submetidos aos
comitês locais de ética (CEP) através da Plataforma Brasil serão en-
caminhados à Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP).
Para iniciar o processo de autorização pela FUNAI, o pes-
quisador deve enviar uma série de documentos por correio con-
vencional, sendo que o passo-a-passo dos documentos a serem en-
caminhados estão listados no Quadro 6 (a lista de verificação dos
documentos necessários para enviar à FUNAI) (FUNAI 2018). Após

CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E LEGAIS PARA A PESQUISA ETNOBIOLÓGICA 33


o registro do projeto na Plataforma Brasil e a aceitação dos docu-
mentos fornecidos, o pesquisador poderá enviar o parecer técni-
co da CONEP para a FUNAI. Em seguida, a FUNAI é responsável
por coletar as assinaturas da comunidade indígena e por apresen-
tá-los o projeto. No entanto, é importante notar que essa estrutura
de aquisição de autorizações para trabalhar com povos indígenas
muitas vezes se torna impraticável dentro da realidade do pesquisa-
dor, que tem tempo limitado para realizar sua pesquisa. A FUNAI
é dividida estruturalmente em nacional, regional e local, todavia,
devido ao grande número de aldeias no Brasil, esta prática de coleta
de assinaturas é muito complexa, o que dificulta a obtenção formal
da autorização. Por esta razão, a coleta de autorizações é frequente-
mente passada e realizada pelo próprio investigador (a), mesmo que,
em teoria, não seja permitido entrar na aldeia antes da obtenção da
autorização. Além disso, a falta de comunicação entre instituições
como a FUNAI e os comitês de ética locais torna o processo ainda
mais lento e difícil.
Além dessas autorizações, no caso de coleta de material botâ-
nico, animal, microbiológico ou fúngico, bem como quando a aldeia
está localizada dentro de uma área protegida, o pesquisador deve se
registrar no SISBIO e, no caso de realizar acesso ao conhecimento
tradicional associado ou recursos genéticos, o pesquisador também
deve registrar a pesquisa no SISGEN (ver seção Acesso ao conheci-
mento tradicional associado, aos recursos genéticos e a repartição
equitativa de benefícios).

34 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


Quadro 6. Checklist dos documentos que devem ser enviados à FUNAI

1- Carta do pesquisador solicitando permissão para entrar no território


indígena, dirigida à Presidência da FUNAI, especificando a terra e a aldeia
indígena, o povo indígena, o período de entrada, informações de contato
do pesquisador e uma lista de membros da equipe, se houver.
2 - Carta do orientador da pesquisa, apresentando o pesquisador.
3 - Declaração de vínculo formal com a instituição de pesquisa.
4 - Projeto de pesquisa.
5 - Currículo do pesquisador.
6 - Cópia dos documentos de identificação pessoal do pesquisador e da
equipe. No caso de um pesquisador estrangeiro, uma cópia do passaporte
com identificação e vistos de entrada no país.
7 - Autorização publicada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação
(MCTI) quando é pesquisador estrangeiro.

Coleta de material biológico e pesquisa em áreas protegidas

Muitos pesquisadores etnobiológicos também precisam cum-


prir as normas relacionadas à coleta de material biológico (animais
ou plantas) em áreas protegidas como unidades de conservação. A
autorização para coleta de material biológico e para pesquisa em
áreas protegidas e cavernas federais é realizada através do SISBIO
(http://ibama.gov.br/sisbio/sistema/).
Os pesquisadores devem cadastrar e atualizar continuamen-
te seus dados pessoais, a identificação da instituição científica re-
levante e seu currículo na Plataforma Lattes do Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Para registro
no SISBIO, além do projeto, o pesquisador deve fornecer outros de-
talhes, como os táxons que serão coletados, capturados, marcados

CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E LEGAIS PARA A PESQUISA ETNOBIOLÓGICA 35


ou transportados; o destino pretendido para o material coletado;
quando a coleta vai acontecer; e se haverá acesso ao patrimônio ge-
nético ou conhecimento tradicional associado.
No caso de coleta de materiais botânicos, fúngicos ou micro-
biológicos que não estejam em unidades de conservação e espécies
que não estejam ameaçadas de extinção, não é necessário solicitar
autorização via SISBIO.

Conclusão: Passo a Passo para a Pesquisa


Etnobiológica Cumprindo as Questões Éticas e Legais

Para ajudar o leitor na compreensão da complexidade das


questões legais, apresentamos um resumo das etapas que os pesqui-
sadores da área de etnobiologia e etnoecologia devem realizar para
conduzir suas pesquisas de acordo com a legislação brasileira (Fig.
2). Para o uso deste fluxograma, estamos assumindo que as pesqui-
sas acessam conhecimento e que todas as instituições e sistemas en-
volvidos estão em pleno funcionamento.

36 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


Figura 2. Resumo dos passos para o cumprimento dos procedimentos legais na pes-
quisa etnobiológica.

CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E LEGAIS PARA A PESQUISA ETNOBIOLÓGICA 37


Entendendo a realidade local

Antes de iniciar qualquer atividade de pesquisa, deve haver


uma boa compreensão do contexto local, das instituições represen-
tativas da comunidade e do seu interesse pela pesquisa, bem como
do conhecimento dos protocolos comunitários da comunidade.

Consentimento prévio e informado

O consentimento prévio e informado deve ser estabelecido


antes de realizar qualquer atividade de pesquisa. Este consentimen-
to deve ser desenvolvido com as pessoas ou instituições deliberati-
vas identificadas como as autoridades mais representativas de cada
comunidade potencialmente afetada. Além disso, no caso de pro-
jetos envolvendo mais de uma comunidade, este processo deve ser
realizado com cada comunidade em estudo. É essencial enfatizar
que, antes de qualquer obrigação legal, existe um dever ético de so-
licitar o consentimento prévio informado.

Processo de autorizações legais

O pesquisador precisa solicitar autorização do CEP ou da


CONEP (por meio da Plataforma Brasil). Após a aprovação, o pro-
cesso de consentimento prévio informado pode ser iniciado. Se a co-
munidade autorizar o projeto, os próximos passos podem ser segui-
dos: a) Se a pesquisa acessar patrimônio genético ou conhecimento
tradicional associado de povos indígenas, povos e comunidades tra-
dicionais e agricultores familiares sem interesse econômico, deve ser

38 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


registrado no SISGEN. Nós recomendamos que todas as pesquisas
etnobiológicas sejam cadastradas, como uma forma de salvaguar-
dar o conhecimento de comunidades locais, por mais que não exista
essa exigência na lei brasileira. No caso de pesquisa com interesse
econômico, isso deve ser notificado no SISGEN, e o procedimento
de repartição de benefícios deve ser realizado. b) Se material zoo-
lógico for coletado ou material botânico, fúngico e microbiológico
ameaçado de extinção ou dentro de área protegida for coletado, o
pesquisador precisará da autorização do SISBIO.
Após o projeto ter sido autorizado pelo CEP ou pelo CONEP
e pelo SISBIO e estar registrado no SISGEN, os pesquisadores
devem estar atentos aos prazos dos relatórios e atualizar as infor-
mações quando necessário. No caso de pesquisas com povos indí-
genas, as autorizações devem ser enviadas para a FUNAI e CONEP
concomitantemente.

Conduzindo a pesquisa usando de boa-fé

A pesquisa deve ser conduzida usando boa fé, respeitando e


agindo de acordo com as normas culturais e a dignidade de todas as
comunidades potencialmente afetadas, e respeitando as normas e os
sistemas de crença relevantes das comunidades seguindo um con-
texto holístico.

Divulgação e publicação de resultados

Nesse estágio, é importante especificar a atribuição, o cré-


dito, a autoria, a coautoria e o devido reconhecimento a todos os

CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E LEGAIS PARA A PESQUISA ETNOBIOLÓGICA 39


colaboradores dos processos de pesquisa e seus resultados, reco-
nhecendo e valorizando especialistas locais e também especialistas
acadêmicos. Além disso, todos os usos educacionais dos materiais
de pesquisa devem ser consistentes com boa fé e respeito à integri-
dade cultural e desenvolvidos em colaboração com tais comunida-
des para uso mútuo. Os pesquisadores devem estar atentos a outros
acordos necessários antes das publicações e divulgação dos resulta-
dos, tais como o uso de fotos e partes de entrevistas ou mesmo dados
sobre espécies e usos baseados em conhecimentos tradicionais.

Compartilhando resultados

As formas de compartilhar os resultados, mesmo quando não


enquadradas nas estipulações legais para a repartição de benefícios,
devem ser acordadas com as comunidades. Esse processo deve de-
finir o formato, as informações e os resultados que serão compar-
tilhados com cada comunidade afetada. É importante oferecer su-
porte a sistemas de gerenciamento de informações da comunidade,
como registros locais e bancos de dados locais. Às vezes, produzir
materiais que possam ser usados nas escolas locais pode ser uma
maneira de colocar o conhecimento tradicional em primeiro plano,
ou produzir materiais impressos usando linguagem acessível, cur-
tas-metragens ou outras formas de disseminar os resultados entre
os sujeitos da pesquisa. Os pesquisadores devem ser criativos e se
preocupar com a realidade local.
***
No momento do fechamento do texto deste capítulo, é im-
portante enfatizar que o sistema legal ainda apresenta problemas

40 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


operacionais que podem minar o propósito inicial por trás dessas
discussões, que são os direitos dos PICL. Resolver esses proble-
mas é um desafio para as instituições governamentais envolvidas, e
também requer o posicionamento e opiniões informadas de pesqui-
sadores de etnobiologia. Finalmente, enfatizamos a importância de
etnobiólogos e etnoecólogos, sejam ou não membros de sociedades
científicas, de assegurar que as propostas de projetos, planejamento
e orçamento sejam apropriados para a colaboração de pesquisa in-
terdisciplinar e multicultural e que estejam de acordo com os prin-
cípios éticos que orientam as pesquisas etnobiológica. Desta forma,
devemos também sensibilizar agências de financiamento e insti-
tuições acadêmicas sobre o aumento de tempo e custos que podem
estar envolvidos na adesão a esses princípios éticos. A pesquisa et-
nobiológica deve envolver não apenas as etapas convencionais de
racionalidade teórica / coleta de dados / discussão de resultados /
publicação, mas também a incorporação adequada de elementos es-
senciais anteriores, tais como consentimento prévio informado e
autorizações legais, e elementos subsequentes, como a dissemina-
ção de resultados. e compartilhamento de benefícios. Não se trata
apenas de seguir as normas legais; trata-se principalmente de res-
peitar os direitos humanos fundamentais dos povos indígenas e das
comunidades tradicionais e locais.

Agradecimentos

Somos gratas à toda equipe do Laboratório de Ecologia


Humana e Etnobotânica da UFSC por discussões criteriosas sobre
os tópicos deste capítulo. RHL e GDB agradecem à CAPES para

CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E LEGAIS PARA A PESQUISA ETNOBIOLÓGICA 41


bolsas de doutorado. NH agradece ao CNPq por uma bolsa de pes-
quisa (309613 / 2015-9). Agradecemos ainda a Springer pela per-
missão concedida para reprodução deste texto, publicado no livro
Methods and Techniques in Ethnobiology and Ethnoecology (2019),
(Número da Licença: 5032130275897).

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44 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


PREPARACÃO DA PESQUISA QUALITATIVA

Joelson Moreno Brito Moura,


Risoneide Henriques da Silva, Nylber Augusto da Silva,
Daniel Carvalho Pires de Sousa e Ulysses Paulino de Albuquerque

A pesquisa qualitativa é uma abordagem bastante utilizada,


principalmente nas ciências sociais, para entender qualquer fe-
nômeno que envolva seres humanos e suas relações sociais nos mais
variados ambientes. Desde a década de 1920, o campo da Psicologia
e Ciências Sociais já utilizavam métodos qualitativos (Flick 2014).
Na sociologia aplicada nos Estados Unidos, por exemplo, métodos
biográficos, estudos de caso e métodos descritivos — todos em-
pregados na pesquisa qualitativa — foram centrais durante toda a
década de 1940, mas a medida em que a complexidade dos fenôme-
nos estudados por essa ciência aumentou, o uso da abordagem qua-
litativa diminuiu e houve uma maior procura por métodos quanti-
tativos (Flick 2014). Foi somente a partir década de 1960 que houve
uma forte crítica à utilização de métodos quantitativos, devido a sua
falta de subjetividade para entender os seres humanos, o que fez res-
surgir a relevância dos métodos qualitativos (ver Flick 2014).
Algumas das características mais marcantes da pesquisa qua-
litativa são a utilização de diferentes métodos e perspectivas teóricas,
além da importância dada ao ponto de vista subjetivo do pesquisador

PREPARACÃO DA PESQUISA QUALITATIVA 45


e das pessoas que estão sendo estudadas (Flick 2014). A abordagem
qualitativa é frequentemente utilizada em estudos descritivos que in-
vestigam as populações humanas de determinada região. Essas des-
crições podem estar relacionadas aos costumes, as crenças e lingua-
gem de algum grupo social. Além disso, a pesquisa qualitativa pode
ajudar na descrição de como as pessoas estão lidando com eventos e
circunstâncias em que estão envolvidas, tal como falta de alimento
devido a alguma catástrofe (ver Paley 2014; Kelly 2016).
Uma vez que se decide realizar uma pesquisa qualitativa, o
pesquisador iniciante deve ter uma compreensão considerável das
abordagens existentes para identificar qual delas se aplica melhor
ao seu questionamento. Ao fazer isso, o erro comum de não saber
por onde começar ou não saber que dados coletar pode ser evitado.
Nesse sentido, iremos mostrar os principais métodos e os passos ne-
cessários para a realização de uma pesquisa qualitativa robusta e de
qualidade.

Preparação e execução da pesquisa qualitativa

A preparação e execução de uma pesquisa qualitativa


requer que alguns passos sejam seguidos, para evitar dificul-
dades durante sua realização. Assim, mostramos abaixo duas
importantes etapas para executar uma pesquisa de qualidade.

Revisão bibliográfica e Pergunta de Investigação

Antes de iniciar uma pesquisa qualitativa, uma etapa impres-


cindível é a realização de uma revisão bibliográfica robusta para

46 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


entender o estado da arte do fenômeno a ser estudado. De acordo
com Flick (2014), um erro comum nos livros didáticos sobre pes-
quisa qualitativa é não abordar em seus capítulos a relevância de
utilizar a literatura existente para direcionar os questionamentos do
pesquisador. Isso é reflexo de uma compreensão antiga da pesquisa
qualitativa, mais especificamente no seu surgimento, em que qual-
quer aspecto estudado de uma população humana era novidade. É
um equívoco pensar que existem áreas do conhecimento completa-
mente novas para explorar, em que nada foi publicado anteriormen-
te, e mesmo levando em conta que nem tudo foi pesquisado, quase
tudo o que se quer pesquisar provavelmente vai estar interligado
com um campo científico existente (Flick 2014).
Fazer uma revisão de literatura é imprescindível, pois ajuda
o pesquisador a compreender: os conceitos utilizados e discutidos;
os debates teóricos e metodológicos ou controvérsias existentes na
abordagem utilizada; o que ainda não foi investigado; a situação
social da população de se pretende entrevistar ou observar entre
outras vantagens (Flick 2014).
Entender o estado da arte possibilita a identificação de lacu-
nas — questões em aberto —, e com isso é possível formular uma
pergunta de investigação relevante e pertinente para o avanço do
seu campo de interesse. Essa é uma etapa fundamental que vai de-
terminar o sucesso e guiar todo seu estudo (Flick 2014).
Em toda pesquisa, para se obter êxito, a questão de investiga-
ção deve determinar qual a melhor abordagem a ser utilizada — se
qualitativa ou quantitativa, por exemplo, pois o método escolhido
deve se ajustar a questão que pretendemos abordar como cientistas
(Leppink 2017).

PREPARACÃO DA PESQUISA QUALITATIVA 47


Escolha do local da pesquisa e Questões Éticas

Trabalhar com seres humanos demanda uma atenção espe-


cial para as questões éticas. O pesquisador deve, antes de iniciar seu
estudo, obter todas as autorizações legais necessárias para a reali-
zação da pesquisa em determinado local. As autorizações podem
variar de acordo com a região ou país, mas na esfera da ética, algo
que o pesquisador não pode deixar de obter é o consentimento das
pessoas que aceitarem participar do seu estudo, sendo esse um re-
quisito universal (Hammersley 2013).
No Brasil, por exemplo, para realizar pesquisa envolvendo
seres humanos é necessário: elaboração de um protocolo de pesqui-
sa; aprovação do protocolo por um Comitê de Ética em Pesquisa
(CEP); obtenção do consentimento do participante por meio de um
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) que esclareça
o objetivo da pesquisa, riscos, benefícios, permissão para divulga-
ção os resultados entre outros esclarecimentos.
Tendo em vista as diferentes exigências para obter certas au-
torizações, além do tempo necessário, ao escolher um local de pes-
quisa deve-se levar em conta a viabilidade de conseguir as autoriza-
ções pertinentes. Certas populações humanas, como as indígenas,
possuem particularidades que exigem autorizações específicas dife-
rentes das exigidas para se estudar uma população e pescadores tra-
dicionais, por exemplo, e isso pode vir a inviabilizar toda a pesqui-
sa. Assim, a questão de como obter acesso ao campo — ou seja, ao
local de pesquisa — e às pessoas é crucial em um estudo qualitativo
(Flick 2014).

48 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


Métodos para desenvolver pesquisa qualitativa

Método pesquisa-ação

Pesquisa-ação é um método das ciências sociais que utiliza


uma maneira cíclica ao refletir sobre os aprimoramentos e/ou so-
luções à problemas práticos que ocorrem durante uma ativida-
de de pesquisa (Hannigan 1997). Assim, por possuir característi-
cas intervencionistas, geralmente é utilizada por professores que
buscam entender e superar as dificuldades que surgem no processo
de aprendizado (Bath 2009; Wilson 2013; Laudonia et al. 2017). Essa
ferramenta envolve a participação de vários tipos de atores sociais, e
pode ser considerado bastante útil na solução dos problemas “ime-
diatos” que necessitem de soluções “urgentes” (Engel 2000).
Os objetivos desse método podem ser caracterizados em duas
diferentes perspectivas: i) auxiliando o pesquisador na organização
de um conjunto de etapas para guiar o aprimoramento de suas prá-
ticas de campo (Tripp 2005) — por exemplo, adaptar a forma de
conduzir as entrevistas para melhorar a coleta de dados sobre de-
terminado domínio de conhecimento —; e ii) como ferramenta de
mudança social do grupo humano pesquisado, analisando critica-
mente suas estruturas de poder e investigando as melhores manei-
ras de empoderamento e transformação social (Oliveira e Oliveira
1990). Após a identificação de um “problema”, o praticante1, uti-
lizando ou não técnicas de pesquisa já estabelecidas na literatura,
planeja as melhores alternativas de ação que devem ser realizadas,

1 Nesse texto, os “praticantes” são os atores envolvidos na realização de qualquer


prática de pesquisa, ensino ou extensão.

PREPARACÃO DA PESQUISA QUALITATIVA 49


monitora os resultados obtidos dessas ações e então avalia quais
foram os mais eficientes e porquê. Assim, após refletir sobre quais
mudanças foram as melhores ou não, utilizam ou recomendam uma
“solução” (Tripp 2005; Bath 2009; Beal 2011). Esse processo envolve
a utilização de abordagens sistemáticas na identificação de informa-
ções para tomadas de decisão e pode, assim, auxiliar alguns estudos
etnobiológicos na construção de soluções práticas que podem surgir
durante o exercício das atividades de pesquisa.
Segundo Tripp (2005), são três os principais tipos de pesqui-
sa-ação: i) técnica, em que a solução é testada tomando emprestado
outra ferramenta metodológica, aplicando-a diretamente na própria
esfera prática em que se busca efetuar a melhora; ii) prática, que uti-
liza-se do ciclo da pesquisa-ação no desenvolvimento das mudanças
realizadas para alcançar o determinado objetivo, sendo o pratican-
te estimulado a questionar o quê, como e quando realizar e aplicar
essas mudanças, buscando sempre incluir todos os atores sociais en-
volvidos; e iii) política, quando o objetivo é ter a intenção de trans-
formar o conhecimento ou crenças do grupo em relação a mudanças
de seus sistemas culturais — como, por exemplo, a ressignificação
de preconceitos sociais. A escolha da melhor abordagem depende da
situação da qual a pesquisa está inserida e de como os pesquisadores
articulam os questionamentos cooperativamente entre si ou entre o
objeto de estudo (Wilson 2013).

Etnografia

A etnografia pode ser entendida como um método para


coleta de dados baseado no contato direto do pesquisador com os

50 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


indivíduos ou grupos de pessoas que se deseja estudar, durante um
determinado período, em que a observação participante e/ou as en-
trevistas são utilizadas para investigar e descrever fenômenos em
determinado contexto (Almagor e Skinner 2013; Creswell 2013).
O termo, originário da fusão das palavras “pessoas” — ethnos
— e “representação escrita” — graphe —, surgiu no final do século
XIX e início do século XX, a partir da necessidade dos pesquisado-
res da época de investigar o hábito e costumes de populações tidas
como exóticas (Jones 2010).
A etnografia é um método que requer muito tempo para ser
realizado de forma adequada, geralmente um ano ou mais de tra-
balho de campo e um período igual para o processo de amadure-
cimento junto às pessoas que estão sendo estudadas (Humphreys e
Watson 2009; Waal 2009). Nesse período, espera-se que os pesqui-
sadores envolvidos no estudo se aproximem do fenômeno analisado
num esforço de obter uma visão mais rica, tal qual a experenciada
pelos indivíduos no contexto investigado (Sandberg e Tsoukas 2011;
Bass e Milosevic 2016).
Durante esse período, as informações desejadas podem ser
obtidas por meio da integração de outros métodos — como observa-
ção participante e entrevistas —, sendo esses direcionados pelos ob-
jetivos da pesquisa e pelo posicionamento metodológico do pesqui-
sador, no que se refere à forma como as questões de pesquisa podem
ser respondidas (Whitehead 2004).
Dentro das outras técnicas utilizadas para obter dados com
o método etnográfico, os pesquisadores também podem utili-
zar simultaneamente métodos como: grupos focais, histórias de
vida, registros fotográficos, gravações de vídeo, mapeamento entre
outros (Adams 2012). Por meio da triangulação destes métodos, o

PREPARACÃO DA PESQUISA QUALITATIVA 51


pesquisador pode oferecer uma representação e interpretar de forma
confiável o que os participantes dizem em suas próprias palavras e
nas formas em que se comportam (Taylor e Bogdan 2010).

Fenomenologia

Fenomenologia é uma palavra de origem grega compos-


ta pelas palavras phainomenon, que significa o que se manifesta, o
que aparece, e logos, que tem como significado o que reúne, unifi-
ca, dentre outras (Silva et al. 2012). O termo tem ampla utilização
e pode assumir diferentes significados conforme o contexto que se
encontre. Por exemplo, na perspectiva filosófica, a fenomenologia
está associada a um movimento filosófico sobre como olhar para
o mundo, já no sentido metodológico o termo fornece aspectos de
como realizar pesquisas qualitativas (Dowling 2007).
A abordagem fenomenológica na pesquisa qualitativa é desti-
nada à descrição do significado de um conceito ou fenômeno a partir
da experiência vivida por vários indivíduos (Anthea 2015). Assim, a
adoção dessa abordagem oferece subsídios para o pesquisador redu-
zir as experiências individuais de pessoas sobre um fenômeno “X”
para uma descrição de sua essência universal (Creswell 2007). Para
atingir esse objetivo, o pesquisador conduzirá a pesquisa obedecen-
do as seguintes etapas: i) identificação de um fenômeno para estudo;
ii) coleta das informações sobre como as pessoas experimentam esse
fenômeno; e iii) descrição do que há em comum nessas experiências,
que é considerada a essência do fenômeno estudado (Shi 2011). O
acesso a essas informações pode ser obtido a partir de outros mé-
todos incluindo entrevistas, conversas, observação participante,

52 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


pesquisa-ação, reuniões de foco, análise de diários e outros textos
pessoais (Mayoh e Onwuegbuzie 2015).
No geral, o método fenomenológico é projetado para ser
menos estruturado e mais aberto, para incentivar o participante a
compartilhar detalhes sobre sua experiência. Em outras palavras,
a fenomenologia enfatiza a subjetividade. O objetivo desse método
é maximizar a profundidade da informação coletada e, portan-
to, as entrevistas menos estruturadas são mais eficazes (Mayoh e
Onwuegbuzie 2015).
Um exemplo da adoção do método fenomenológico pode ser
encontrado no estudo realizado por Anggerainy et al. (2017). Esse
método foi utilizado com o propósito de compreender os fenôme-
nos relacionados ao uso da medicina tradicional pelas pessoas da
tribo Davak, em Bornéu, na Indonésia. Para atingir seus objetivos,
os referidos autores desenvolveram sua pesquisa obedecendo às se-
guintes etapas:

i) Identificação de um fenômeno para estudo


Buscaram identificar os fatores que levam pessoas da tribo
Davak a adotarem a medicina tradicional para tratar crianças doen-
tes em casa ao invés de procurar assistência médica convencional.

ii) Coleta das informações sobre como as pessoas experimen-


tam esse fenômeno
Os pesquisadores selecionaram intencionalmente e entrevis-
taram cuidadores de Dayak que trataram crianças doentes em casa
usando medicina tradicional antes de decidirem procurar por aten-
dimento em unidades de saúde modernas. Informações a respeito
dessa prática foram obtidas por meio de entrevistas abrangentes e

PREPARACÃO DA PESQUISA QUALITATIVA 53


gravação de voz, sendo esses dados analisados por meio da análise
do conteúdo — trata-se de uma análise que quantifica a frequência
de ocorrência de determinado termo em um texto.

iii) Descrição das semelhanças entre essas experiências (essên-


cia do fenômeno)
A partir do relato de dez informantes selecionados, os autores
identificaram seis temas principais no uso da medicina tradicional
pela tribo Dayak para tratar crianças doentes, sendo eles: 1) medi-
cina tradicional como primeiros socorros; 2) facilidade de acesso e
custo-efetividade; 3) a medicina tradicional nem sempre foi eficaz;
4) uma combinação de ingredientes naturais e crenças; 5) a impor-
tância de se “comunicar” com as plantas; e 6) envolvimento com
forças metafísicas.
Assim, os autores concluem que os temas recorrentes iden-
tificados na medicina tradicional dos Davak para o tratamento
de crianças podem ajudar a conciliar o seu uso junto a assistência
médica convencional quando necessário.

Teoria fundamentada nos dados/grounded theory

Teoria fundamentada (TF) é um método de análise e coleta de


comparação constante entre categorias de estudo, que permite que
o pesquisador conheça antecipadamente as “propriedades emergen-
tes” de um fenômeno, antes de iniciar o processo indutivo de for-
mulação de suas perguntas de investigação (Lingard et al. 2008).
Essas propriedades são as primeiras relações verificadas entre os
diferentes níveis de experiência entre atores e os ambientes sociais,

54 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


orientando sistematicamente as pesquisas qualitativas no processo
de criação de teorias (Urquhart et al. 2010; Kenny e Fourie 2014;
Markey et al. 2014).
Na TF, após a coleta do material relacionado às visões de
mundo, experiências, sentimentos e intenções dos atores sociais
estudados — por meio de entrevistas, gravações de áudio e vídeo,
observação participante, etc. —, as etapas para se desenvolver uma
teoria fundamentada nos dados pode tomar vários caminhos que
dependem dos objetivos da pesquisa, mas sempre se iniciam após as
primeiras categorizações. O final do processo ocorre na identifica-
ção dos códigos e das estruturas sociais e a possibilidade de teorizar
sobre as relações entre eles.
Por exemplo, no estudo de D’Avigdor et al. (2014), os autores
buscaram entender o estado atual do conhecimento sobre plantas e
ervas medicinais de uma comunidade de Etiópia. Para isso, realiza-
ram 15 entrevistas integrando métodos de história de vida, grupos
focais, questionários abertos e semiestruturados. As perguntas aber-
tas buscavam entender, por exemplo, “como você usa essa planta?”,
“com quem você aprendeu a preparar esses remédios?”, “como você
chama essa planta?”. Após transcrição e análise dos dados através
da lógica da TF, foi identificado alguns temas principais que eram
semelhantes entre os entrevistados. Dentre os temas identificados
pelos autores estão: a “consciência da diminuição da vegetação”, a
“necessidade de conservação das ervas e plantas medicinais” e a “se-
gurança na forma de preparar os remédios”.
No quadro 1 mostramos as etapas que devem ser seguidas
para desenvolver a TF.

PREPARACÃO DA PESQUISA QUALITATIVA 55


Quadro 1. Etapas para desenvolver a Teoria Fundamentada

Imagine que você queira estudar os fatores que influenciam o


compartilhamento de informação entre os coletores de lenha de
determinado local utilizando a TF. As etapas necessárias seriam:

1- Etapa exploratória
Após definição dos questionamentos do estudo, o primeiro passo da TF é
exploratório, realizando entrevistas piloto com os primeiros informantes
do estudo para coletar os relatos das experiências pessoais sobre o
uso de lenha — a seleção dos participantes é intencional e direcionada
ao contexto e à pergunta investigativa do trabalho — (Charmaz 2006).
As entrevistas podem ser individuais ou em grupo focais. As perguntas
devem ser abertas, do tipo: “fale um pouco sobre como você coleta lenha”,
“a quanto tempo você coleta?”, “quais as maiores dificuldades na coleta?”,
“como você resolve essas dificuldades?”, “quais os locais que têm
maior quantidade de lenha?”. O uso de gravadores de áudio e escrita de
memorandos, notas de campo e relatórios das observações participantes
são fortemente recomendados para enriquecer a análise dos códigos
(Flick 2014).

2- Etapa de codificação
Após transcrição das informações obtidas, a segunda etapa da TF é a
codificação inicial e focada linha-por-linha (ver Seidel and Recker 2009).
As informações passam por um processo de codificação e comparação
de categorias que vai indicando possíveis discursos sobre temas
principais que são semelhantes entre os participantes. Por exemplo,
pode-se identificar os seguintes temas: como o conhecimento sobre
lenha é adquirido da geração anterior, consciência sobre a diminuição da
disponibilidade de lenha, segurança na coleta dentre outros temas (ver o
trabalho de D’Avigdor et al. 2014).

3- Etapa de amostragem teórica


Na etapa da amostragem teórica, as informações codificadas agora
são analisadas e as relações entre os discursos começam a indicar as
primeiras relações categóricas, auxiliando o pesquisador na construção

56 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


de possíveis explicação dos dados (Charmaz 2008). Por exemplo, “as
habilidades dos coletores de lenha” estariam influenciando na “forma que
o conhecimento está sendo transmitido” pois “quem tem mais habilidade
não gosta de compartilhar informação”? Essas poderiam ser as primeiras
perguntas de pesquisa e a amostragem teórica que direcionaria novas
coletas à fim de saturar essas categorias e concretizar as relações nesse
grupo social.

4- Etapa de teorização
Nessa última etapa, o pesquisador chega a uma possível explicação das
relações encontradas entre as categorias. Essa etapa é resultado de um
minucioso processo de coleta e análise do fenômeno e apresenta um
conjunto estruturado das relações sobre o ambiente e permite que os
pesquisadores discutam suas características ou proponha melhorias
para problemas identificados nos dados. Ao fim de nossa pesquisa com os
coletores de lenha, poderíamos concluir, por exemplo, que a habilidade e
o tempo de experiência são os principais fatores que influenciam a pouca
interação entre os coletores.

Estudo de caso

O estudo de caso permite a exploração e a compreensão de


questões complexas, especialmente quando é necessária uma inves-
tigação profunda, consistindo em uma investigação detalhada de
grupos ou organizações, com o objetivo de fornecer uma análise do
contexto e dos processos envolvidos no fenômeno em estudo (Meyer
2001; Zainal 2007; Baxter e Jack 2008). Esse método permite ao pes-
quisador ir além dos resultados quantitativos e compreender, por
exemplo, condições comportamentais (Zainal 2007). O estudo de
caso pode apresentar quatro etapas, representadas na Fig. 1 confor-
me Hancock e Algozzine (2006).

PREPARACÃO DA PESQUISA QUALITATIVA 57


Figura 1. Etapas do estudo de caso, adaptado de Hancock e Algozzine (2006).

Dentro do contexto etnobiológico, por exemplo, o pesquisa-


dor pode representar o conhecimento e as práticas culturais associa-
das à saúde e à cura de doenças em um sistema médico, fornecendo
um guia abrangente do comportamento adotado pelos membros da
sociedade estudada (Berlin e Berlin 2005). De acordo com Zainal
(2007), existem três categorias para o estudo de caso: exploratório,
descritivo e explicativo.

a) Estudo de caso exploratório


Explora qualquer fenômeno que serve como um ponto de in-
teresse para o pesquisador. Por exemplo, um pesquisador que rea-
liza um estudo de caso exploratório sobre o uso de um determina-
do recurso natural pode fazer as seguintes perguntas gerais: “existe
alguma estratégia para o uso desse recurso pela população?” E em
caso afirmativo, “com que frequência?” Questões gerais como essas
devem ser o ponto de partida para a realização de um exame mais
profundo do fenômeno a ser estudado.

58 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


b) Estudo de caso descritivo
São utilizados para descrever os fenômenos observados du-
rante o estudo. Por exemplo, descrever quais estratégias diferentes
são utilizadas por uma determinada população no uso de um de-
terminado recurso natural. O objetivo estabelecido pelo pesquisa-
dor é descrever os dados à medida que eles ocorrem. No entanto,
o desafio do estudo de caso descritivo é que o pesquisador deve
começar com uma teoria descritiva para apoiar a descrição do fe-
nômeno ou história, e se isso não for feito a descrição pode não ser
rigorosa.

c) Estudo de caso explicativo


Examinam os dados de perto, tanto a nível superficial como
em profundidade, para explicação dos fenômenos. Por exemplo,
um pesquisador pode explicar o motivo de uma população utili-
zar uma determinada estratégia para a coleta de um recurso. Além
disso, pode ser utilizado para explicar fenômenos mais complexos
que possam surgir durante o estudo de caso.

Agradecimentos

Agradecemos a Springer pela permissão concedida para re-


produção deste texto, publicado no livro Methods and Techniques
in Ethnobiology and Ethnoecology (2019), (Número da Licença:
5032011498352).

PREPARACÃO DA PESQUISA QUALITATIVA 59


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62 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


EXECUTANDO A PESQUISA:
PRÉ-TESTES, CONTROLE DE QUALIDADE
E REVISÕES DE PROTOCOLO

Temóteo Luiz Lima da Silva, Joelson Moreno Brito de Moura,


Juliane Souza Luiz Hora, Edwine Soares de Oliveira,
André dos Santos Souza, Nylber Augusto da Silva e
Ulysses Paulino de Albuquerque

A pós definir suas hipóteses e perguntas de pesquisa, os pesqui-


sadores escolhem os métodos que podem fornecer as informa-
ções necessárias para avaliar suas ideias. No campo da etnobiolo-
gia, as entrevistas são uma das técnicas básicas mais comumente
usadas para obter informações (detalhes sobre os vários tipos de en-
trevistas, suas aplicações, vantagens e desvantagens podem ser en-
contradas em Albuquerque et al. (2014). No entanto, antes de iniciar
a coleta de dados, os pesquisadores precisam se certificar de que
os seus protocolos de coleta de dados (formulários e/ou questioná-
rios) servirão bem aos seus propósitos, fornecendo dados de quali-
dade, replicáveis e que responderão às suas perguntas de investiga-
ção. Nesse sentido, a validade e replicabilidade dos protocolos são
importantes principalmente quando os mesmos serão utilizados por
diferentes pesquisadores simultaneamente ou quando se pretende
utilizar um protocolo já validado para um novo contexto.

EXECUTANDO A PESQUISA: PRÉ-TESTES, CONTROLE DE QUALIDADE E REVISÕES DE PROTOCOLO 63


Dessa forma, focaremos em etapas que não podem ser negli-
genciadas nas pesquisas etnobiológicas que são: os estudos pilotos,
os pré-testes e as avaliações de confiabilidade e validade de proto-
colos. O estudo piloto envolve a simulação do processo formal de
coleta de dados em pequena escala, visando identificar problemas
práticos em relação aos instrumentos, etapas e métodos do estudo
(Hurst et al. 2015). São nesses estudos que ocorrem os pré-testes dos
protocolos, momento em que podemos analisar se nossos instru-
mentos de pesquisa estão ajustados à realidade local e aos objetivos
do estudo.

Desenhando o protocolo de pesquisa

A elaboração do protocolo é o momento ideal para garantir a


sua qualidade e replicabilidade. Aaker et al. (2001) consideram que
o processo de construção de um protocolo corresponde a uma “arte
imperfeita”, justamente pelo fato de não existirem procedimentos
específicos que garantam a qualidade dos instrumentos. No entan-
to, existem algumas recomendações que, quando seguidas, podem
facilitar esse processo e diminuir o tempo e esforço dedicados às
etapas futuras de avaliação de validade e confiabilidade dos instru-
mentos de pesquisa.
Para elaborar a perguntas que vão compor os protocolos,
além da consulta a literatura e a pesquisadores especialistas na área
temática (Rattray & Jones 2007), é recomendado a visita as comuni-
dades onde o estudo será desenvolvido para conversar com lideran-
ças e especialistas locais. Isso pode contribuir para que a redação e
conteúdo das perguntas se tornem mais adequadas a realidade local.

64 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


Deve-se usar linguagem clara e compreensível e uma estrutura curta
e simples para que o pesquisador consiga conduzir a sua pesquisa
com fluidez, simplicidade e, principalmente, não confundir o parti-
cipante. Outras recomendações relevantes para a elaboração e tipos
de perguntas podem ser encontradas em Albuquerque et al. (2014).
Além de pensar na formulação das perguntas, o pesquisador
precisa atentar para a ordem em que elas serão organizadas, prin-
cipalmente para questionários auto administrados. As perguntas
iniciais devem ser fechadas, simples e precisam prender a atenção
do participante do estudo (Slattery et al. 2011). Evite começar com
perguntas emotivas ou controversas pois podem causar desconfor-
to no participante (Rattray & Jones 2007). Perguntas relacionadas
ao perfil socioeconômico (e.g. renda mensal, idade, etc) podem ser
colocadas no final para não dar uma impressão inicial de intromis-
são e porque elas são geralmente mais fáceis de responder (Slattery
et al. 2011). Questões mais gerais devem preceder questões mais es-
pecíficas e perguntas que sugerem uma ordem cronológica devem
ser apresentadas seguindo essa ordem (Slattery et al. 2011). Evite
também incluir perguntas que não estão diretamente relacionadas
com os seus objetivos de pesquisa, pois isso pode aumentar o tempo
da entrevista e cansar o participante, fazendo com que ele passe a
responder sem fidedignidade.

Execução de Estudo Piloto e Pré-testes

Por definição, um estudo piloto pode ser considerado como


um estudo em pequena escala dos procedimentos propostos, bem
como das técnicas escolhidas (Mackey & Gass 2015) e são realizados

EXECUTANDO A PESQUISA: PRÉ-TESTES, CONTROLE DE QUALIDADE E REVISÕES DE PROTOCOLO 65


principalmente para descobrir falhas e/ou pontos fracos nos méto-
dos e instrumentos da pesquisa, bem como examinar a sua validade
e replicabilidade (Slattery et al. 2011). Embora muitos pesquisadores
considerem que a preparação e o planejamento prévio sejam sufi-
cientes para que a pesquisa tenha sucesso, a execução de um estudo
piloto é decisiva, pois consegue revelar falhas sutis na estruturação
do projeto, que dificilmente seriam reveladas durante a etapa de pla-
nejamento da pesquisa.
Podemos nos perguntar, qual é o universo amostral que de-
vemos incorporar para um estudo piloto? Levando em considera-
ção que cada estudo possui suas peculiaridades, cabe ao pesquisa-
dor definir a quantidade de pessoas e quanto tempo disporá para a
sua realização. Para Canhota (2008) a quantidade de participantes
no estudo piloto não precisa ser superior a 10% da amostra almejada
para o estudo completo. Esse recorte seria suficiente para garantir
resultados capazes de responder as perguntas de pesquisa e testar os
instrumentos.
São nos estudos piloto que realizamos os pré-testes dos pro-
tocolos de pesquisa, que consistem na testagem e aplicação destes
para verificar a precisão e fidedignidade das informações que serão
obtidas. Na pesquisa etnobiológica, os principais instrumentos
que são testados em estudos piloto são os questionários e/ou for-
mulários utilizados nas entrevistas. De maneira geral, a intenção é
apenas uma: testar a validade dos instrumentos que serão utiliza-
dos para levantar informações. Dependendo do tipo de entrevista
utilizada na pesquisa (estruturada, não estruturada ou semiestru-
turada), existem recomendações a serem seguidas, como formas de
avaliar se as perguntas utilizadas no pré-teste são compreendidas e
interpretadas corretamente pelas pessoas. No caso das entrevistas

66 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


semiestruturadas – a mais utilizada no levantamento de dados et-
nobiológicos - recomenda-se a utilização de um guia de entrevista,
contendo pontos principais que não podem passar despercebidos no
momento da entrevista (Combessie 2004).
Por fim, fornecer os protocolos de pesquisa para que outros
profissionais do mesmo campo de pesquisa analisem é uma boa re-
comendação que pode favorecer a qualidade dos mesmos (Slattery
et al. 2011). Assim, muitos dos problemas com a elaboração das per-
guntas podem ser descobertas antes mesmo do pré-teste. A prin-
cipal vantagem é que as informações obtidas no pré-teste poderão
ser utilizadas para o estudo principal se os protocolos de pesquisa
elaborados não apresentarem problemas durante os estudos-piloto,
desde que sejam coletados exatamente da mesma maneira.

Controle de qualidade de protocolos

Os protocolos de pesquisa precisam ser analisados quanto a


sua confiabilidade e validade para garantir a qualidade das informa-
ções que serão obtidas. A confiabilidade está relacionada a replicabi-
lidade do instrumento de pesquisa, ou seja, a capacidade de o mesmo
obter resultados consistentes ou estáveis ao longo do tempo ou se for
usado por dois ou mais pesquisadores diferentes (Salmond 2008).
A validade é o grau no qual o instrumento de pesquisa mede o que
ele se propõe a medir, ou seja, a capacidade de o mesmo obter infor-
mações confiáveis e acuradas sobre o fenômeno estudado (Long &
Johnson 2000). Esses dois conceitos são distintos e independentes.
Assim, os protocolos de pesquisa podem ter confiabilidade, mas não
serem validos e vice-versa.

EXECUTANDO A PESQUISA: PRÉ-TESTES, CONTROLE DE QUALIDADE E REVISÕES DE PROTOCOLO 67


A confiabilidade dos protocolos pode ser testada por meio de
sua estabilidade e equivalência, a depender de características espe-
cificas de cada pesquisa. A estabilidade mede o quão estável o proto-
colo é ao longo do tempo (assumindo que o que está sendo medido
deveria permanecer constante) (Brink 1991; Salmond 2008) e pode
ser verificado por meio da técnica test-retest (Mackey & Gass 2015).
A técnica consiste na aplicação do protocolo com os mesmos indi-
víduos em dois momentos distintos (Mackey & Gass 2015), poden-
do ser realizada com todo o n amostral inicial ou com um grupo
representativo escolhido por meio de aleatorização. A aplicação do
retest permite que os pesquisadores observem a consistência das res-
postas que foram obtidas na primeira aplicação do protocolo (test),
verificando se são similares ou comparáveis (Sousa et al. 2017). O
tempo entre o test e o retest deve ser bem pensado, especialmen-
te para protocolos que buscam mensurar informações que podem
mudar devido a mudanças no desempenho e/ou aprendizagem ao
longo do tempo. No entanto, a técnica possui como limitação o fato
de as experiências anteriores dos participantes da pesquisa no pri-
meiro test influenciarem as respostas retest.
A equivalência está mais diretamente relacionada com a repli-
cabilidade dos protocolos e pode ser testada pelo uso de formas al-
ternativas de uma pergunta com o mesmo significado durante uma
única entrevista (Brink 1991), ou pela aplicação simultânea de dois
ou mais pesquisadores diferentes utilizando o mesmo protocolo
(Salmond 2008). Um protocolo confiável deverá fornecer as mesmas
informações mesmo se executado por pessoas diferentes.
Existem dois tipos de validade que podem ser testados nos
protocolos de pesquisa. A validade de conteúdo é a mais básica delas
e está relacionada a capacidade do protocolo de medir o fenômeno

68 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


estudado. A mesma pode ser alcançada convidando “juízes compe-
tentes” na área temática para revisar o conteúdo dos itens dos proto-
colos e determinar se o instrumento mede o fenômeno de interesse
(Salmond 2008). Os juízes podem ser pesquisadores especialistas na
área temática bem como integrantes da população humana que será
estudada. Considerando as sugestões desses juízes, podem ser rea-
lizadas alterações nos protocolos que vão aumentar a sua validade
de conteúdo.
A validade relacionada ao critério é estabelecida quando um
protocolo de pesquisa pode ser comparado com outras medidas
validadas do mesmo fenômeno (Roberts et al. 2006) ou com um
padrão estabelecido na literatura (Long & Johnson 2000). No en-
tanto nem sempre esse tipo de comparação é possível pela falta de
medidas válidas para comparação. É importante destacar que um
instrumento é válido para um determinado grupo de pessoas, sendo
necessário estabelecer novamente a validade quando o protocolo for
usado em diferentes grupos.

Revisão de protocolos

A revisão do protocolo é uma importante etapa que deve ser


realizada antes de se iniciar a pesquisa, pois auxilia o pesquisador
a perceber se o seu protocolo é apropriado para abranger todo o fe-
nômeno que se pretende estudar. Devido às peculiaridades que de-
terminadas populações humanas podem possuir, a estruturação e
vocabulário dos protocolos podem não ser adequados, comprome-
tendo a qualidade das informações coletadas.

EXECUTANDO A PESQUISA: PRÉ-TESTES, CONTROLE DE QUALIDADE E REVISÕES DE PROTOCOLO 69


Nesse sentido, uma ferramenta que pode ajudar na adequa-
ção de um protocolo para a realidade de determinada população é
a aplicação da técnica conhecida como entrevista cognitiva (Gray et
al. 2014). Essa técnica é caracterizada principalmente pelo uso de
questões de sondagem verbal para observar as respostas dos parti-
cipantes de forma mais completa, o que ajuda a avaliar a qualidade
da resposta ou determinar se a questão está gerando a informação
desejada pelo pesquisador (ver Beaty &Willis 2007 e Willis 2006).
No quadro 1, descrevemos um exemplo de como diagnosticar pro-
blemas em um protocolo utilizando a entrevista cognitiva.

Quadro 1. Exemplo do uso da entrevista cognitiva para revisar protocolos, adaptado


de Willis (2006).

1. Em uma situação hipotética um cientista procurou conhecer melhor os


critérios dos moradores de determinado local para coletar plantas para o
uso medicinal. Vamos mostrar uma questão do protocolo desse cientista
seguida com questões de sondagens verbais:
Pergunta: Com que frequência você coleta plantas para tratar doenças?
Sondas verbais usadas para testar a questão:
a) Conte-me mais sobre isso...
b) Com que frequência você coleta plantas no geral?
c) O que é “doença” para você?
d) Você procura plantas com características específicas ou escolhe
plantas que alguém lhe disse que servem para tratar doenças?

2. Comentários do cientista baseado na entrevista cognitiva:


a) Alguns participantes relatam que só coletam madeira;
b) Alguns participantes relatam que só coletam frutos;
c) Alguns participantes não sabem ao certo o que é “doença” e confundem
com “fome” ou “fedor”;

70 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


d) Os participantes relataram selecionar plantas que sabiam servir para
tratar doenças, ao invés de verificar características específicas;
e) O período que o participante costuma coletar plantas não foi especificado
na pergunta. Devido a isso, as interpretações entre entrevistados em
relação a frequência das coletas variaram bastante;
f) Perguntar sobre a frequência do comportamento de coletar plantas
é inviável, porque as pessoas podem não reportar com confiança a
frequência exata de tal comportamento.

3. Modificações sugeridas para melhorar essa questão do protocolo:


a) Nos últimos 12 meses quantas vezes você coletou plantas? Nenhuma,
cinco vezes ou mais de dez vezes?
b) Se coletou: nos últimos 12 meses, quando coletou plantas, você a
escolheu devido a alguma característica específica?
c) Se sim: qual característica?
d) Qual parte da planta você coleta?
e) Em geral, com que frequência você coleta plantas com características
específicas: frequentemente, uma vez por mês, duas ou três vezes por
ano?

A entrevista cognitiva fornece informações sobre como os


participantes construíram suas respostas, explicações sobre como
eles interpretaram as perguntas e relatos de alguma dificuldade que
apresentaram para responde-las. Além disso, para utilizar essa téc-
nica não é necessário amostras grandes — geralmente 8 a 12 indiví-
duos já é o suficiente —, pois ao testar a viabilidade de um protoco-
lo pequenas amostras evidenciam rapidamente se a sua estrutura é
falha (Willis 2006).
Apesar de ser comumente utilizada como um método de pré-
-teste, o uso da entrevista cognitiva pode ocorrer em outros estágios

EXECUTANDO A PESQUISA: PRÉ-TESTES, CONTROLE DE QUALIDADE E REVISÕES DE PROTOCOLO 71


da pesquisa, podendo fornecer informações que permitam a ade-
quação do protocolo para o fenômeno estudado.
Podem existir outras situações em que a coleta de informa-
ções continue difícil ou os participantes não consigam responder às
perguntas, mesmo que o pesquisador desenvolva um protocolo to-
mando todas as precauções necessárias. Nesses casos, o pesquisador
pode recorrer ao recrutamento de terceiros que vivem no local estu-
dado para auxiliar durante as entrevistas.
De acordo com Quetulio-Navarra et al. (2015), em algumas
fases da entrevista, outros membros da família dos entrevistados e
também amigos ou vizinhos, podem ser autorizados a ajudar na re-
cordação da informação solicitada. Essa abordagem possui a vanta-
gem de favorecer a coleta informações em que os participantes têm
dificuldades de relembrar, como nome de líderes comunitários ou
datas específicas, ou em situações em que o idioma local inviabilize
a realização da pesquisa.
Por exemplo, em um estudo realizado por Zambrana et al.
(2018) nas regiões bolivianas de Chácobo e Pacahuara, os autores
recrutaram e treinaram 12 moradores que vivem na região para que
realizassem as entrevistas com os participantes, devido a barreira do
idioma local. Todavia, esse método possui limitações, uma vez que
esses ajudantes podem não ser capazes de identificar informações
importantes que os participantes podem fornecer durante a realiza-
ção das entrevistas.
Dessa forma, de acordo Quetulio-Navarra et al. (2015), algu-
mas precauções devem ser tomadas para diminuir possíveis vieses
que o método de recrutamento de terceiros possa vir a gerar:
1. Sondagem de verificação no campo para observar quem
pode auxiliar nas entrevistas;

72 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


2. Somente pessoas que compartilhem a informação alvo da
pesquisa podem ser escolhidas para ajudar;
3. A participação de terceiros deve ser controlada e permi-
tida apenas para perguntas não ameaçadoras, como no
caso de datas reais em que se iniciou serviços básicos —
por exemplo, serviços de fornecimento de eletricidade;
4. Terceiros podem ser autorizados a dar sugestões, mas so-
mente o respondente/entrevistado pode fornecer a res-
posta definitiva;
5. O nome do ajudante e seu relacionamento com o entre-
vistado deve ser registrado e as seções onde a assistência
foi fornecida devem ser marcadas;
6. Instruir os ajudantes para deixarem o local da entrevista
quando a assistência não for mais necessária.
Se o principal problema do protocolo estiver relacionado a
coleta de informações para questões sensíveis — por exemplo, per-
guntas sobre detalhes da saúde da mulher/homem quando o entre-
vistador é do sexo oposto —, uma solução para evitar que os dados
coletados sejam duvidosos ou inválidos, é a utilização de um ques-
tionário auto-administrado (SAQ). O SAQ refere-se a um questioná-
rio desenvolvido especificamente para ser preenchido por um entre-
vistado sem intervenção dos pesquisadores. Todavia, como o SAQ é
preenchido sem o feedback de um entrevistador treinado, as ques-
tões devem ser redigidas com bastante atenção para evitar erros de
medição (Rodriguez et al. 2015).
A principal vantagem do SAQ é que essa ferramenta elimina
a possível influência da presença do entrevistador sobre as respostas
do entrevistado, pois essa privacidade anula a inclinação das pes-
soas para fornecer respostas socialmente desejáveis para questões

EXECUTANDO A PESQUISA: PRÉ-TESTES, CONTROLE DE QUALIDADE E REVISÕES DE PROTOCOLO 73


delicadas (Rodriguez et al. 2015). Todavia, mesmo que esse método
deixe o participante mais confortável, isso não assegura que as res-
postas serão sempre verdadeiras e honestas. Além disso, esse método
exige que os participantes sejam alfabetizados, o que inviabiliza sua
utilização em determinados contextos sociais.

Considerações finais

Ao longo desse capítulo apresentamos uma série de técnicas


para que os pesquisadores possam garantir a qualidade de seus pro-
tocolos. O quadro 2 sintetiza as principais recomendações para os
leitores e pode ser consultado sempre que um pesquisador for de-
senvolver um novo protocolo de pesquisa ou migrar para uma nova
área de estudo.

Quadro 2. Recomendações para verificar a validade e confiabilidade dos protocolos


de pesquisa

• Utilize 10% da amostra pretendida no trabalho final para executar o


estudo piloto;
• Fique atento a ordem em que as perguntas estão organizadas nos
protocolos;
• Elabore os protocolos em uma estrutura curta, simples, clara e
compreensiva;
• Elabore e revise os protocolos com auxílio de pesquisadores que
tenham conhecimento prévio e experiência com a área temática;
• Verifique a veracidade dos dados obtidos no estudo piloto por meio
do test-retest;
• Realize uma entrevista cognitiva com 8 ou 10 pessoas antes de
iniciar a pesquisa.

74 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


Agradecimentos

Agradecemos a Springer pela permissão concedida para re-


produção deste texto, publicado no livro Methods and Techniques
in Ethnobiology and Ethnoecology (2019), (Número da Licença:
5032020133864).

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76 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


ANÁLISE DE DADOS QUALITATIVOS

Daniel Carvalho Pires de Sousa, Henrique Fernandes de Magalhães,


Edwine Soares de Oliveira, Ulysses Paulino de Albuquerque

A pesquisa qualitativa utiliza variados métodos de coleta de


dados (e.g., entrevistas, memorandos, notas de campos, ob-
servação participante, etc.), porém, para transformar os relatos em
dados utilizáveis, todas as informações obtidas por essas ferramen-
tas devem ser transcritas, sendo esses textos as fontes de dados fun-
damentais para a codificação e análise (Bernard 2006). A análise de
dados qualitativos pode oferecer ricas explicações complementares
sobre as características dos sistemas socioecológicos estudados pela
Etnobiologia.
Dessa forma, iremos descrever as principais ferramentas e
etapas da análise qualitativa, desde como uma amostragem repre-
sentativa deve ser realizada, quais as formas e diretrizes de trans-
crição dos dados coletados em campo, os métodos de codificação e
categorização das informações coletadas (agrupando e relacionando
discursos e comportamentos). Finalmente, mostramos as principais
maneiras de realizar a triangulação dessas informações para evitar
interpretações equivocadas da realidade ou explorar contradições
percebidas no material.

ANÁLISE DE DADOS QUALITATIVOS 77


Amostragem populacional

O pesquisador, usualmente, não conhece a priori a quanti-


dade e característica total das pessoas que fazem parte do contex-
to social observado, e a amostra ideal para os questionamentos das
pesquisas são baseadas nos esgotamentos das informações sobre as
categorias de análise, ou a chamada saturação teórica.
Saturação teórica, conceito primeiramente discutido em 1967
por Glaser e Strauss (1967), é uma forma de “desenho amostral” da
pesquisa qualitativa. Após o desenvolvimento da pergunta de traba-
lho, o pesquisador sai a campo e começa a entrevistar intencional-
mente os informantes envolvidos no fenômeno, iniciando a coleta
de dados do estudo (Charmaz 2006). Essa coleta vai enriquecendo
os primeiros bancos de informações e permite a codificação dos pri-
meiros discursos e respostas das pessoas envolvidas, sendo finali-
zada quando novas pessoas (novos discursos) não revelam novos
‘códigos’ sobre o fenômeno (Ando et al. 2014). Essa forma de sele-
ção de participantes é comum nas pesquisas qualitativas, e mostra
a importância da codificação como guia de amostragem. Porém, de
maneira geral, quantas pessoas são necessárias para esgotar as in-
formações temáticas? Essa pergunta é amplamente discutida pela li-
teratura social.
Atingir uma amostra representativa nos estudos qualitativos
geralmente se concentra em três principais pressupostos: 1) o co-
nhecimento do passado, que seria basicamente, olhar na literatura
publicada e seguir a seleção de participantes utilizada por estudos
anteriores; 2) experiencia do pesquisador, aqui o número de pessoas
suficiente para saturar as categorias de análise é definida de acordo
com a “complexidade” do contexto social, sendo o conhecimento

78 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


teórico e prático do pesquisador ou grupo de pesquisa a “palavra
final” sobre os participantes do estudo; e a 3) base quase-empírica,
onde o número de participantes local é determinado por uma série
de métodos desenvolvidos por pesquisas sociais que estudaram di-
retamente as características da saturação teórica (ver Galvin 2015).
As duas primeiras possuem críticas quanto a subjetividade da sele-
ção amostral, enquanto a última seria uma alternativa mais obje-
tiva, baseada em estudos que utilizaram a metodologia da análise
qualitativa para investigar qual a amostragem populacional é ideal
nos trabalhos.
Vários estudos de amostragem qualitativa orientados pelo
pressuposto três citado acima, vêm mostrando que a saturação teó-
rica de diversos tópicos e temas de pesquisa é atingida com amos-
tras relativamente pequenas, que variam praticamente entre 10-50
pessoas (Hagaman e Wutich 2017). Guest e colaboradores (Guest
et al. 2006) buscando levantar dados para desenvolvimento de in-
formativos sobre HIV e saúde sexual para comunidades da Nigéria
e Gana, entrevistaram 60 mulheres, maiores de 18 anos e de vida
sexual ativa, com questionários e entrevistas semiestruturadas pa-
dronizadas, sobre seus comportamentos, prevenção e conhecimento
sobre temas relacionados a suas vidas íntimas. Após intensa codi-
ficação e análise, encontraram que somente 12 informantes foram
necessários para saturar 100 códigos (92%) e 80 deles (73%) pelos
seis primeiros informantes. Hagaman and Wutich (2017), investi-
gando sobre a ordem do aparecimento das categorias de pesquisa
de quatro populações de diferentes contextos sociais (relaciona-
dos a manejo de águas, renda e acesso a água potável), mostraram
que 12-16 entrevistas eram necessárias para registrar os temas mais
comuns dentro de cada cultura (escala populacional local) e 20 a 40

ANÁLISE DE DADOS QUALITATIVOS 79


entrevistas para registrar os temas compartilhados regionalmente
por todas as pessoas da amostra (escala macro populacional). Esses
autores defendem que esses números de entrevistas são suficientes
quando os fenômenos estudados são locais e bem contextualiza-
dos, e grupos grandes e heterogêneos de pessoas precisam de maior
esforço de coleta e seleção das unidades amostrais (Hagaman and
Wutich 2017).
Baseado nessa discussão, entendendo que métodos qualitativos
são diferentes dos quantitativos, as investigações etnobiológicas que
optarem em utilizar abordagens indutivas de investigação deveriam
seguir os mesmos pressupostos da pesquisa qualitativa para a se-
leção amostral, i.e., delimitar bem o fenômeno a ser investigando,
definir um limite mínimo entrevistas para pesquisas intraculturais
e selecionar qualitativamente os informantes, assim como codificar
sistematicamente as informações coletadas sempre focando em uma
saturação teórica de conteúdo (para exemplo de análise qualitativa
em sistemas socioecológicos, ver D’Avigdor et al. 2014).

Transcrição de dados

Após a finalização da coleta de dados (ver capítulo


“Preparação da pesquisa qualitativa”), é necessário seguir para aná-
lise das informações. A transcrição vem a ser, então, uma pré-aná-
lise do material. Suas diretrizes auxiliam os pesquisadores a orga-
nizar sistematicamente as informações (independente das técnicas
analíticas e ferramentas que serão utilizadas) para uma análise pos-
terior (McLellan et al. 2003). Vale ressaltar que a transcrição dos
dados é uma importante etapa da pesquisa e não apenas um detalhe

80 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


técnico que precede a análise. Portanto, é de suma importância de-
finir quais serão as regras e critérios que irão conduzir as transcri-
ções, de modo que contenham todos os elementos necessários para
transformação das informações em dados utilizáveis.
A depender do objetivo da pesquisa, é interessante que as
transcrições sejam realizadas apenas do que é exigido pela ques-
tão de estudo. Dessa forma, o tempo e a energia que seriam inves-
tidos no processo de transcrever elementos desnecessários (como
interrupções ou assuntos aleatórios que venham surgir na conver-
sa com o entrevistado), passariam a ser investidos na interpretação
dos dados. Existem casos, porém, em que é importante que todos os
elementos sejam transcritos, permitindo um maior detalhamento
da análise posterior (Flick 2009). Nesse sentido, a transcrição pode
ser completa (de todo o contexto e discurso, inclusive pausas, inter-
rupções, etc), parcial ou resumida (só de trechos relevantes para a
pesquisa).
Por não existir um padrão geral e por ser um processo que
demanda bastante tempo por parte do pesquisador, é importante
que se estabeleça um formato para que todas as transcrições pos-
suam a mesma estrutura, como, por exemplo, o processador de
texto que se utiliza, a fonte mais adequada, formatações específi-
cas para determinadas situações, dentre outros elementos (exempli-
ficados no quadro 1). Essa padronização na estrutura minimiza o
tempo que será utilizado na localização dos elementos nas falas dos
entrevistados.
Durante todo o processo é fundamental que o pesquisador
seja direcionado pela questão de pesquisa que a análise busca res-
ponder (McLellan et al. 2003). Deve-se ter sempre em mente que

ANÁLISE DE DADOS QUALITATIVOS 81


tudo aquilo que é transcrito e a forma que essa transcrição é estru-
turada influenciará no processo de análise dos dados (McLellan et
al. 2003).

Quadro 1. Exemplo de elementos úteis para estruturação de uma transcrição (adap-


tado de Flick 2009).

Estrutura
Processador de texto Microsoft Word 2016
Fonte Times New Roman 12
Margem Esquerda 2cm, direta 5cm
Espaçamento 1,5cm
Numeração Acima e a direita de cada página
Entrevistador Símbolo: PESQ
Entrevistados Símbolo: INFn

Convenções de transcrições utilizadas

Tipo de transcrição Completa

Caixa-alta: indica aumento da amplitude do


PALAVRA
som
Palavra Sublinhar: indicar stress
Pausas: na fala do entrevistado ou em entre
(1, 2, etc.)
entrevistados, em segundos
Corte de texto: Falas consideradas
[...]
desnecessárias para a pesquisa
Palavras incompreensíveis: quebras de
(palavras...)
transcrição e “melhor chance” do transcritor

82 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


Codificação

A identificação e o refinamento de conceitos importantes são


etapas fundamentais na pesquisa qualitativa. Esses processos come-
çam, muitas vezes, com simples observações interpretadas separa-
damente e depois agrupadas e organizadas em categorias de pes-
quisa (Chambliss e Schutt 2013), o que pode resultar em um grande
volume de material. Dessa forma, métodos que possibilitem a orga-
nização desses dados de forma prática e didática precisam ser ado-
tados (Flick 2009).
A codificação consiste no tratamento de dados qualitativos
por meio da nomeação de passagens de texto, categorizando seus
conteúdos (Creswell 2007). Dessa forma, o pesquisador poderá es-
tabelecer uma estrutura de ideias temáticas próprias, direcionan-
do o seu raciocínio no texto e, consequentemente, possibilitando
as interpretações dos fenômenos sociais (Chambliss e Schutt 2013).
Para ter um controle dos códigos criados, pode-se classificá-los, de
acordo com Gibbsn (2008), com base em três critérios, exemplifi-
cados logo a seguir (quadro 2): a 1) classificação descritiva, na qual
o pesquisador descreve um código segundo suas palavras e as pa-
lavras dos informantes para representar comportamentos cultu-
rais importantes para a pesquisa; a 2) classificação analítica, na qual
busca-se representar códigos que retratam os discursos-chave utili-
zados para as análises diretas das questões de pesquisa; e a 3) classi-
ficação teórica, que pretende caracterizar os códigos relacionados a
passagens nos discursos que abordem questões êmicas e éticas teó-
ricas importantes.

ANÁLISE DE DADOS QUALITATIVOS 83


Quadro 2. Exemplo de processo de caracterização de códigos, inspirado em Gibbs
(2008), de um estudo etnobiológico hipotético sobre a percepção local de mudanças
climáticas e respostas adaptativas.

Dado Qualidade do Classificação


Codificação
qualitativo código do código
Descrever
“Sempre que passagens
chove a gente nos discursos
‘Mudança da
planta: o pasto que indicam a Descritiva
paisagem’
fica verde e percepção da
bonito” mudança das
paisagens
“Quando o
clima começa Discursos
a ficar mais relativos as
‘Resposta
quente temos questões Analítica
adaptativa’
que ir atrás de principais do
água em locais estudo
distantes”
Passagens do
“Na escassez,
texto relativo
comemos
‘Famine foods’ a questões Teórica
plantas de
teóricas da
gado”
literatura

A forma como o pesquisador codifica um determinado dado


qualitativo depende do tipo de filtro que ele vai utilizar. Em outras
palavras: um mesmo dado pode ser codificado com base em diferen-
tes critérios de classificação, a depender do olhar de quem interpreta
e analisa a informação (Saldaña 2009). Por exemplo, uma pesquisa
qualitativa sobre as práticas médicas de uma determinada comuni-
dade local pode identificar relatos como na seguinte passagem:

84 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


“Normalmente eu rego minhas plantas toda manhã assim que
levanto da cama (...), mas regar deve ser uma das primeiras coisas que
penso quando acordo (...). Volto, confiro mais uma vez se as plantas
que estavam muito murchas de manhã já tinham recuperado o vigor
que eu sei que elas têm, que indica que a água foi bem aproveitada
por elas (...). Dá uma alegria tão grande ver elas [as plantas do quin-
tal] nessa época porque me sinto bem e sei que cuidando bem delas
sempre vou ter sempre elas perto de mim”.
O hábito de se preocupar com as plantas do quintal pode ser
categorizado como “preocupações com a perda [de plantas do quin-
tal]”, “atividades de lazer” ou até “terapias ocupacionais”. Depende,
logicamente, do objetivo do estudo de quem investiga essa ativida-
de social e por isso a importância da explicação detalhada de todo
o processo de análise, classificação e categorização das informações
textuais (Flick 2009).
Dentre as principais técnicas de codificação utilizadas por
pesquisadores de áreas diversas, duas merecem destaque por serem
especialmente simples e úteis. A primeira delas é a 1) codificação li-
nha-por-linha, na qual cada linha de texto é codificada, mesmo que
não correspondam a orações completas, e a segunda é a 2) compara-
ção caso-a-caso, na qual as partes do texto de um mesmo documen-
to, ou trechos de documentos diferentes, são comparadas (exemplos
desses dois tipos de codificação no quadro 3) (Gibbs 2008).

ANÁLISE DE DADOS QUALITATIVOS 85


Quadro 3. Exemplo de codificação linha-por-linha e comparação caso-a-caso.

Linha-por-linha
Texto Codificação
“Eu crio minhas cabras desde menino. (...) ‘Domesticação de animais’
Não gosto de depender dos outros, (...), ‘Padrões de personalidade’
o problema todo é quando o tempo muda ‘Mudanças climáticas’
muito, as secas são terríveis”.

Comparação caso-a-caso
Atitude em relação ao código
Informante Biografia
“Domesticação de animais’

Cria cabras desde criança.


Tem muita. Mora sozinho e
Senhor x Dedicação integral
não conta com a ajuda de
ninguém.

Cria galinhas em casa.


É professora em tempo
Senhora y integral. Os animais ficam Dedicação parcial
soltos o dia inteiro e
presos a noite.

Não cria animais, apesar


de ter pais agricultores.
Senhor x Não há dedicação
É motorista em tempo
integral. Mora com os pais.

Após a realização da codificação, o pesquisador poderá aces-


sar sistematicamente os textos codificados com informações im-
portantes para o entendimento do fenômeno social investigado
(Chambliss e Schutt 2013).

86 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


A codificação manual é ideal para coletas cujas amostras são
relativamente pequenas. No entanto, se a pesquisa contém gran-
des amostras, a utilização de softwares especializados na análi-
se de dados qualitativos (CAQDAS, do inglês Computer Assisted
Qualitative Data Analysis Software) são indispensáveis (Saldaña
2009). Além do tamanho da amostra, o tempo disponível e a expe-
riência do pesquisador devem ser avaliados para a escolha do tipo do
método a ser utilizado na análise dos dados coletados (Basit 2003).
As tabelas são um dos recursos mais utilizados, pois auxiliam
na organização do pensamento durante a criação dos códigos, pos-
sibilitando a comparação entre eles (Gibbs 2008) (ver exemplo de
codificação de uma passagem textual no quadro 4). Memorandos
também são fontes de codificação manual bastante didáticas e di-
fundidas, e correspondem a notas de campo usadas pelo pesqui-
sador para registrar os nomes de cada código desenvolvido. Além
disso, informações adicionais podem ser inseridas, como as datas
em que cada codificação foi feita e uma descrição sobre da ideia re-
metida aos códigos (Saldaña 2009). O CAQDAS, por sua vez, ofere-
ce ao pesquisador uma série de recursos, ajudando-o a avaliar ca-
racterísticas e relações entre os textos (Saldaña 2009). No entanto,
muitos especialistas recomendam a utilização desses softwares com-
binados com recursos manuais (textos impressos ou escritos à mão,
por exemplo). Assim, o pesquisador poderá desenvolver uma maior
familiaridade com os dados, ajudando na interpretação e na criação
de códigos de análise.

ANÁLISE DE DADOS QUALITATIVOS 87


Quadro 4. Exemplo hipotético de codificação de uma passagem de um informante
sobre sua história de saúde referente à preferência por plantas no tratamento de
doenças. Codificar permite resumir uma ideia dos textos analisados em um conceito
que facilita a comparação com as outras desenvolvidas durante a pesquisa.

“Aqui em casa quando ficamos Codificação


doentes, a gente só usa remédio de
1. ‘Preferência [por plantas
planta mesmo1. (...) e remédio de
medicinais]’
farmácia é para esse povo novo, que
já nasceu nesse tempo moderno, 2. ‘Percepção individual [sobre o
então não entende de remédio do conhecimento dos outros]’
mato, né?2 (...). E as plantas são muito
boas, melhor do que os remédios de 3. ‘Percepção de eficácia/poder
farmácia3. (...). Agora quando o tempo de cura’
tá seco, muitas plantas somem, aí só
4. ‘Comportamento adaptativo’
sobram os remédios de farmácia, né?4
Às vezes a gente pega um pouco mais
de folha e guarda, pra quando vim a
seca a gente não ficar sem nossos
remédios do mato4”

Triangulação

Triangular as informações para avaliar os dados coletados e


analisados em campo, talvez seja uma das principais etapas da aná-
lise qualitativa. Aqui, o objetivo é confrontar resultados, buscando
refletir sobre a confiabilidade e generalizações das informações in-
terpretadas (e.g., verificar se o comportamento relatado condiz com
a prática ou analisar diversos pontos de vista de um determina-
do fenômeno) (Gibbs 2008). Esse processo ocorre simultaneamen-
te ao desenvolvimento do estudo e ajuda os pesquisadores na solu-
ção de conflitos e/ou busca de evidências sobre a validade dos dados

88 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


observados (Beal 2011). As práticas de triangulação de dados ocor-
rem por meio de ferramentas como análises de biografias, validação
dos entrevistados, comparações constantes e revisão textual.
Analisar as biografias, oferece ao pesquisador variadas in-
formações sobre como as pessoas organizam suas compreensões de
mundo (Flick 2009). “Fale um pouco da relação de ‘x’ com sua histó-
ria de vida?”, e.g., sendo o ‘x’ o fenômeno a ser estudado, geralmen-
te levam a narrativas cronológicas que refletem experiências indi-
viduais e compartilhadas das pessoas com seus contextos coletivos
(e.g., institucional, político etc.) e socioeconômicos (e.g., infância,
formação profissional, casamento, paternidade etc.) (Gibbs 2008).
Esses textos narrativos são uma visão particular de mundo e cons-
tituem um conjunto de informações importantes para as análises
qualitativas, retratando experiências de vida das pessoas com os fe-
nômenos estudados.
A validação do entrevistado é comparar as respostas e os com-
portamentos dos entrevistados em diferentes momentos de coleta,
para validá-las em diferentes situações de pesquisa (Flick 2009). A
validação verbal é uma ferramenta comum desse processo, con-
sistindo em repetir entrevistas com os mesmos informantes, com
seus discursos investigados e sistematizados, para conferir as infor-
mações através dos resultados das análises (Gibbs 2008). Segundo
Flick (2009) para validar as informações dessa maneira é preciso
seguir três considerações: a) validar se o discurso dito está correto,
comparando respostas antigas e atuais, por exemplo; b) se seu con-
teúdo está relacionado com as informações socialmente comparti-
lhadas; e c) se o conteúdo é sincero em termos de autorrepresenta-
ção do entrevistado. Esse processo auxilia na inspeção dos achados
de pesquisa e para a análise qualitativa, essencial como método de

ANÁLISE DE DADOS QUALITATIVOS 89


triangulação de dados (ver formas de validação de dados em quadro
5). As divergências dependem muito do contexto e devem sempre
ser levadas em consideração para questionamento sobre quais fato-
res influenciaram essas mudanças de ideias e opiniões (e.g., como
novos eventos culturais, pressões externas à entrevista, conflitos de
interesse, etc.) (Beal 2011).
Comparar constantemente os códigos de pesquisa para inves-
tigar as suas relações é uma maneira de triangulação de dados im-
portante nas pesquisas qualitativas (Flick 2009). Após as primeiras
entrevistas e a codificação de todas as informações textuais, desen-
volvendo um livro com a lista de todos os códigos utilizados na aná-
lise e descrições de seus significados, auxiliando na identificação e
ajuste das categorizações da pesquisa (MacQueen et al. 2008), o pes-
quisador inicia o processo de hierarquização dos códigos coletados,
relacionando os discursos, práticas ou notas de campo para criar ca-
tegorias, informações que serão relacionadas investigadas sobre um
determinado fenômeno social estudado (Gibbs 2008). Nesse sentido,
é importante estruturar os códigos e as passagens textuais relacio-
nadas de uma maneira que permita uma comparação sistemática
mais eficiente entre as informações apresentadas (Charmaz 2006).
Utilizar tabelas ou fluxogramas pode ser uma boa estratégia, auxi-
liando na construção de matrizes que permitem relacionar diferen-
tes categorias de análise com auxílio de softwares de computador
que possibilitem organizar essa grande quantidade de dados, bus-
cando por diferenças e semelhanças entre os relatos das pessoas no
processo de categorização (Beal 2011).
Estruturar as informações dessa maneira, impede erros e
duplicações no livro de códigos e permite uma visualização geral
dos pontos de vistas de todos os atores envolvidos no fenômeno

90 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


observado (Gibbs 2008). A pós análise, entrevistas e observações de
campo podem ser pensadas para preencher lacunas explicativas ou
realizar novos questionamentos que surgem da análise dessas ca-
tegorias, e esse processo vai sendo retroalimentado até a saturação
teórica do fenômeno.
Por último, a revisão textual consiste, literalmente, em revisar
os dados textuais em busca de irregularidades. Essa prática permite
uma revisão de expressões dos informantes e atualizações no livro
de códigos, além de revisitar as informações gerais dos dados coleta-
dos, estabelecendo oportunidades para uma análise densa das rela-
ções desde as primeiras perguntas de pesquisa (Gibbs 2008).

Quadro 5. Checagem constante de validação (extraído de Bernand 2006, tradução


livre)

1. Se você está entrevistando pessoas, procure consistências e


inconsistências entre informantes bem informados e descubra por
que esses informantes discordam sobre coisas importantes.

2. Sempre que possível, verifique os relatos de comportamento ou das


condições ambientais das pessoas em comparação com evidências
coletadas de maneira mais objetivas. Se você fosse um jornalista e
enviasse uma história com base em relatórios de informantes sem
verificar os fatos, você nunca iria passar pela mesa do seu editor. Por
que não impor aos antropólogos o padrão que os jornalistas enfrentam
todos os dias?

ANÁLISE DE DADOS QUALITATIVOS 91


3. Esteja aberto a evidências negativas, em vez de ficar irritado quando
elas surgirem. Quando você se depara com um caso que não se
encaixa em sua teoria, pergunte-se se é o resultado de: (a) variação
intracultural normal, (b) sua falta de conhecimento sobre a gama de
comportamentos apropriados, ou (c) um caso de comportamento
genuinamente incomum.

4. À medida que você entende como algo funciona, procure explicações


alternativas de informantes-chave e/ou colegas de pesquisa e
ouça-as com atenção. A cultura folclórica americana, por exemplo,
sustenta que as mulheres saíram de casa pela força de trabalho por
causa do que é amplamente chamado de “feminismo” e “liberação
das mulheres”. Essa é uma explicação êmica popular. Uma explicação
alternativa é que os valores e orientações feministas são apoiados,
se não causados, por mulheres sendo expulsas de suas casas e para
a força de trabalho pela hiperinflação durante a década de 1970,
que reduziu o poder de compra da renda de seus maridos. Tanto a
explicação êmica, popular e a explicação ética são interessantes por
diferentes razões.

5. Tente encaixar casos extremos em sua teoria e, se os casos não se


encaixarem, não se apresse em descartá-los. É sempre mais fácil
descartar casos do que reexaminar suas próprias ideias, mas a saída
mais fácil dificilmente é a maneira certa na pesquisa.

Agradecimentos

Agradecemos a Springer pela permissão concedida para re-


produção deste texto, publicado no livro Methods and Techniques
in Ethnobiology and Ethnoecology (2019), (Número da Licença:
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94 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE
E DIÁRIO DE CAMPO: QUANDO
UTILIZAR E COMO ANALISAR?

Juliana Loureiro Almeida Campos,


Taline Cristina da Silva, Ulysses Paulino de Albuquerque

A pesquisa qualitativa tem sua origem nas Ciências Sociais e


constitui uma abordagem interpretativa que se preocupa em
entender os significados que as pessoas dão a certos fenômenos que
ocorrem dentro de seus contextos sociais (Snape & Spencer 2003).
A tradição antropológica da pesquisa qualitativa fez com que esta
seja conhecida muitas vezes como pesquisa etnográfica (Triviños
1987), a qual busca compreender e descrever algum grupo social,
suas crenças e práticas culturais por meio da imersão do pesqui-
sador no contexto social a ser investigado (Snape & Spencer 2003).
Entretanto, outros autores preferem considerar a etnografia como
parte da pesquisa qualitativa e não como sinônimo (Richardson et
al. 2012; Krefting 1991).
Na investigação qualitativa, a coleta e análise dos dados
devem ser preferencialmente realizadas de maneira simultânea, de
forma que a análise acompanhe o processo de coleta de informações
desde o início, norteando assim o trabalho de campo (Pineda et al.

OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE E DIÁRIO DE CAMPO: QUANDO UTILIZAR E COMO ANALISAR 95


2011). É comum que os conceitos e hipóteses sejam desenvolvidos e
revisados ao longo do processo de pesquisa. Os métodos qualitati-
vos utilizados para coletar dados são diversos e envolvem entrevis-
tas, métodos participativos, história oral, pesquisas em arquivos his-
tóricos, interpretação de fotografias e vídeos, entre outros.
Nesse capítulo, iremos nos deter na abordagem de dois méto-
dos muito utilizados nesse tipo de pesquisa: a observação partici-
pante e o diário de campo. Nós discutiremos quando esses métodos
devem ser utilizados e como os dados coletados podem ser analisa-
dos e apresentados, bem como as vantagens e desvantagens do uso
de cada um deles.

A observação participante

Antes de definirmos em que consiste a observação partici-


pante, consideramos pertinente introduzir brevemente o conceito
de observação. Segundo Richardson et al. (2012) a observação é o
exame minucioso sobre um fenômeno no seu todo ou em algumas
de suas partes, é a captação precisa do objeto examinado.
Existem duas maneiras de executar a observação dentro de
uma abordagem qualitativa de pesquisa: a observação não partici-
pante e a observação participante. Também chamada de observação
direta, na observação não participante o investigador não se insere
em um grupo social como se fosse membro do grupo observado,
apenas atua como espectador atento, procurando ver e registrar o
máximo de ocorrências que interessa ao seu trabalho (Richardson
et al. 2012). De forma contrária, na observação participante o obser-
vador não é apenas um espectador. O pesquisador se une a cultura

96 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


estudada para registrar ações, interações ou eventos que ocorrem,
permitindo não só que os fenômenos sejam estudados à medida que
surgem, mas também oferecendo ao pesquisador a oportunidade de
obter informações por meio da experiência dos fenômenos por si
mesmos (Ritchie 2003). O observador participante tem mais condi-
ções de compreender os hábitos, atitudes, interesses, relações pes-
soais e características da vida diária da comunidade do que o ob-
servador não participante (Richardson et al. 2012). Nesse sentido,
Bernard (2006) destaca a importância de o pesquisador realizar uma
imersão profunda no grupo estudado, estabelecendo, dessa forma,
relações de confiança que podem facilitar o trabalho da observação
participante. Para Minayo et al. (2002), a importância dessa técnica
está no fato de permitir captar diversas situações ou fenômenos que
não são obtidos por meio apenas de perguntas, uma vez que o pes-
quisador vivencia o dia a dia da cultura estudada.
Uma questão importante com relação a observação participan-
te é que muitos pesquisadores creem erronemanente na ideia de que,
durante o trabalho de campo, existe a necessidade de que os mesmos
ajam e se comportem da mesma forma que o grupo cultural estudado.
Por exemplo, não é porque você está estudando um grupo indígena
que você deve se comportar como um indígena. Pelo contrário, esse
tipo de comportamento pode soar artificial e até causar um distan-
ciamento por parte do grupo. O importante é ser aceito no ambiente
de pesquisa e adquirir a confiança do grupo a ser estudado. Whyte
(1943) traz um ótimo exemplo desse tipo de atitude. Tentando se ajus-
tar ao comportamento do grupo urbano que estudava em Boston,
Estados Unidos, o pesquisador entrou em uma roda de conversa na
qual o grupo falava palavras obscenas e vulgares. O mesmo começou,
então, a agir e falar da mesma forma com que o grupo falava. Whyte

OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE E DIÁRIO DE CAMPO: QUANDO UTILIZAR E COMO ANALISAR 97


(1943) relata que todos olharam para ele, surpreendidos, e um deles
falou que não esperava que ele falasse desse jeito, insistindo que o
grupo queria que ele continuasse a ser diferente deles. O pesquisador
percebeu que não havia expectativa para que ele se tornasse alguém
exatamente igual ao grupo cultural estudado, e que as pessoas esta-
vam satisfeitas com ele porque o viam diferente. Em sua obra, Whyte
(1943) argumenta que, na observação participante, é preciso aprender
quando perguntar e quando não perguntar, assim como deve-se saber
que tipo de pergunta pode ser feita. Richardson et al. (2012) apontam
que o fato de o pesquisador se sentir “tão participante” pode levar ao
esquecimento, por parte do mesmo, sobre seus objetivos de pesquisa,
negligenciando-os, involuntariamente, e perdendo a objetividade do
trabalho científico. Não raro essa falta de objetividade leva ao pesqui-
sador a observar os fenômenos não a partir da perspectiva do acadê-
mico (do pesquisador), mas do integrante da cultura com a qual inte-
rage, enviesando as suas interpretações.

Coletando os dados por meio da observação participante

Bernard (2006) acredita que o maior desafio da observação


participante é o início dela, ou seja, a chegada e instalação do pes-
quisador dentro de uma cultura. O autor sugere que a escolha de um
grupo que se mostre aberto e de fácil acesso irá facilitar o processo
de coleta de dados. Além disso, Richardon et al. (2012) destacam a
obrigatoriedade do pesquisador apresentar previamente os objetivos
e a justificativa da pesquisa, para que não ocorram dúvidas sobre os
objetivos do estudo e elevar o grau de aceitação do pesquisador pelo
grupo.

98 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


O tempo de permanência necessário para realizar uma boa
observação participante pode variar muito em função dos objetivos
da pesquisa. Bernard (2006) argumenta que provavelmente será ne-
cessário um bom tempo até que o pesquisador se estabeleça dentro
do grupo social, aprenda e domine a língua se for o caso, estabeleça
uma boa relação de confiança, a ponto de poder fazer bons questio-
namentos e receber boas respostas. Por exemplo, Berreman (1962)
precisou de seis meses para que os moradores da aldeia Sirkanda,
na Índia, se sentissem confortáveis e realizassem sacrifícios animais
na sua frente, uma prática comumente realizada pelo grupo. Por sua
vez, Yu (1995) passou quatro meses como observador participante
em um restaurante chinês para observar as diferenças nas percep-
ções de empregados chineses e não-chineses com relação a um bom
serviço, remuneração adequada e as funções administrativas.
Para que a observação participante atinja rigorosamente os
objetivos da pesquisa, é importante que o pesquisador elabore cui-
dadosamente suas anotações do fenômeno observado, descrevendo
ao máximo todos os acontecimentos percebidos (Selltiz et al. 1987).
Portanto, antes de iniciar a observação, o primeiro passo é
escolher as formas de registro de tais observações. Mais adiante dis-
cutiremos o diário de campo e notas de campo como instrumentos
bastante adequados para o registro dessas percepções, permitindo
a organização dos dados da forma que parecer mais conveniente ao
observador.
A fotografia é um ótimo instrumento de registro e representa
parte da experiência de mundo do fotógrafo a partir de sua percep-
ção inicial, podendo assumir posteriormente novas interpretações
do grupo social que é fotografado (Soilo 2012). Assim, as fotografias
não só auxiliam o pesquisador a compreender a cultura estudada,

OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE E DIÁRIO DE CAMPO: QUANDO UTILIZAR E COMO ANALISAR 99


como também podem permitir que as pessoas estudadas interpre-
tem o próprio comportamento ou fenômeno que é objeto de estudo
do pesquisador (Harper 2002). Um ótimo exemplo do uso da foto-
grafia para registrar dados e comportamentos sociais é a obra de
Malinowski, “Os Argonautas do Pacífico Ocidental”, publicada em
1922, que consiste no relato do trabalho de campo do antropólogo
nas Ilhas Trobiand ao estudar os grupos humanos que lá habitavam
(ver Malinowski 1922).
Outra forma de registro inclui a utilização de gravadores de
som e filmadoras, lembrando sempre de solicitar a permissão de uso
por parte dos observados. Recomendamos a utilização de gravado-
res sempre que houver a necessidade de registrar uma conversa ou
um diálogo, já que seu uso permite que a conversa flua livremente
e sem interrupções. O vídeo, por sua vez, proporciona o registro de
detalhes que não são capturados por meio de fotografias ou grava-
dores de som (Brigard 1995). Além disso, o vídeo permite que a prá-
tica estudada seja observada em outros momentos, podendo ser in-
terpretada posteriormente ao trabalho de campo (Fuller 2007). No
entanto, é necessário que o pesquisador disponha de recursos finan-
ceiros para a produção do vídeo, visto o alto custo dos equipamen-
tos e a necessidade de contratação de pessoal.

O diário de campo

O diário de campo é um documento pessoal e consiste em


uma forma de registro de observações, comentários e reflexões para
uso individual do pesquisador (Falkembac 1987). Segundo Triviños
(1987), no âmbito das ciências sociais, as anotações realizadas no

100 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


diário de campo podem ser entendidas como todo o processo de
coleta e análise de informações, isto é, compreenderiam descrições
de fenômenos sociais, explicações levantadas sobre os mesmos e
a compreensão da totalidade da situação em estudo. É um docu-
mento que apresenta tanto um “caráter descritivo-analítico”, como
também um caráter “investigativo e de sínteses cada vez mais pro-
visórias e reflexivas”, ou seja, consiste em “uma fonte inesgotável
de construção, desconstrução e reconstrução do conhecimento pro-
fissional e do agir através de registros quantitativos e qualitativos”
(Lewgoy & Arruda 2004).
Destacamos que o diário de campo pode ser empregado em
diferentes tipos de investigações, com diferentes objetivos e formas
de registro. Nas ciências humanas, por exemplo, essa ferramenta
consiste no registro completo e preciso das observações dos fatos
concretos, acontecimentos, sentimentos, relações verificadas, expe-
riências pessoais do profissional/investigador, suas reflexões e co-
mentários. Desse modo, deve ser usado diariamente para garantir
uma maior sistematização e detalhamento possível de todas as si-
tuações ocorridas no dia e das entrelinhas nas falas dos sujeitos du-
rante a investigação ou intervenções.
O estudo etnográfico reside na construção de um diário de
campo. É um exercício que se baseia na observação direta a respei-
to dos comportamentos culturais de um grupo social. É importante
destacar que um etnógrafo pode deter, além do diário de campo, di-
versas notas de campo para anotações sobre as entrevistas e obser-
vações no desenrolar do cotidiano. Enquanto as observações regis-
tradas no diário de campo apresentam uma redação mais livre, nas
notas de campo o pesquisador registra observações de forma a fa-
cilitar a análise dos dados (Arthur & Nazroo 2003). Spradley (2016)

OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE E DIÁRIO DE CAMPO: QUANDO UTILIZAR E COMO ANALISAR 101


sugere dois tipos de notas de campo: as condensadas e as extensas.
As notas de campo condensadas envolvem frases pequenas e pala-
vras, se tornando uma maneira prática e rápida de registro de dados.
Por outro lado, as notas de campo extensas devem apresentar textos
mais detalhados, nos quais o pesquisador deve destacar ao máximo
as observações que não foram registradas nas notas de campo con-
densadas. Bernard (1988) recomenda que as notas de campo sejam
codificadas, de modo a reduzir a informação complexa a um con-
junto menor de ideias, tornando possível a localização de padrões
dentro do conjunto de dados coletados.
Nas ciências naturais, o diário de campo, cada vez menos
usado, pode ser útil para fornecer um registro permanente do que
está acontecendo no mundo natural. Como exemplo, temos os diá-
rios de naturalistas famosos que forneceram informações a res-
peito da biodiversidade, como Charles Darwin (ver Darwin 1989).
Quando se refere as reflexões que a experiência do pesquisador em
campo suscitou, esse será o diário de campo íntimo (Weber 2009).
Uma visão do diário de campo como um material que retrata a inti-
midade do pesquisador pode ser vista na publicação do diário pes-
soal de Malinowski (1967), publicado por iniciativa de sua esposa
Valetta Malinowska. Nesse livro encontramos um Malinowski
muito humano e que muitas vezes não fez questão de esconder seus
sentimentos de antipatia e até mesmo de agressividade pelos nativos
com os quais trabalhou. Sem dúvida alguma, a publicação do mate-
rial íntimo do antropólogo gerou muitas discussões sobre o trabalho
de campo, mas que também levou a discussão da dimensão subje-
tiva do pesquisador que encara o desafio de estudar outras culturas
carregando o “fardo” de sua humanidade, portanto, de suas fraque-
zas, desejos, vícios e virtudes.

102 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


Como utilizar o diário de campo

O diário de campo facilita criar o hábito de observar, des-


crever e refletir com atenção os acontecimentos do dia de trabalho,
por essa condição ele é considerado um dos principais instrumentos
científicos de observação e registro. Os fatos devem ser registrados
no diário o quanto antes após o observado para garantir a fidedig-
nidade do que se observa (Falkembach 1987).
Recomenda-se que, para a boa estruturação do diário de
campo, é preciso que o pesquisador saiba que tipo de informação
será necessário registrar. Por exemplo, pode ser importante regis-
trar informações que descrevam o local onde o trabalho de campo
é desenvolvido, quais informações o ajudarão a entender o que se
observa, e que outras informações o pesquisador gostaria de ter ao
analisar suas anotações depois de uma semana, um mês ou um ano.
Angrosino (2007) destaca a importância de registrar os dados de
uma forma organizada e que contenha a maior quantidade de deta-
lhes possíveis, como a descrição do cenário escolhido, o número de
participantes da pesquisa e suas características socioeconômicas, a
cronologia dos eventos (anotar data, local e hora de ocorrência do
evento), descrições dos comportamentos e interações, registros de
conversas e outras interações verbais.
O diário de campo é importante para o processo etnográfico,
para que vários componentes da pesquisa não sejam esquecidos. A
escrita contínua no diário de campo também é importante porque as
perspectivas e interpretações do etnógrafo frequentemente mudam
ao longo da duração do processo de trabalho de campo. Isso ocorre
porque interpretações precoces são muitas vezes norteadas por pa-
radigmas que o pesquisador traz para o campo. À medida que ele

OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE E DIÁRIO DE CAMPO: QUANDO UTILIZAR E COMO ANALISAR 103


ou ela passa pelo processo de aprendizagem do sistema cultural em
estudo, eles muitas vezes acham que interpretações posteriores dos
mesmos fenômenos diferem daquelas interpretações anteriores. Por
exemplo, Malinowski (1922) registrou em seu livro: “Imagine your-
self then, making your first entry into the village, alone or in com-
pany with your white cicerone. Some natives flock round you, espe-
cially if they smell tobacco. Others, the more dignified and elderly,
remain seated where they are. Your white companion has his rou-
tine way of treating the natives, and he neither understands, nor is
very much concerned with the manner in which you, as an ethno-
grapher, will have to approach them. The first visit leaves you with
a hopeful feeling that when you return alone, things will be easier.
Such was my hope at least.” (p.4).

Analisando os dados coletados

Após os dados devidamente coletados, é chegada a hora da


análise. Minayo (2000) recomenda a reflexão sobre as finalidades
da fase de análise, que são: estabelecer uma compreensão dos dados
coletados, confirmar ou não os pressupostos da pesquisa e /ou res-
ponder às questões formuladas, e ampliar o conhecimento sobre o
assunto pesquisado, articulando-o ao contexto social do qual faz
parte. Angrosino (2007) sugere duas formas principais de análise de
dados: a análise descritiva que consiste em decompor os dados, veri-
ficando padrões e regularidades, e a análise teórica que é a explica-
ção dos padrões e regularidades encontrados a partir de um cenário
teórico adotado pelo pesquisador.

104 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


Como primeiro passo, sugerimos que o pesquisador transfira
suas notas de campo, gravações de áudio e qualquer outro registro
para um computador. Isso permite que o pesquisador tenha uma
cópia dos seus dados, além de facilitar a localização de qualquer pa-
lavra ou expressão que se deseje rever ou analisar. A seguir, apre-
sentamos algumas formas de análise dos dados coletados, ficando a
critério do pesquisador a escolha da forma que mais considerar ade-
quada, seja em função dos objetivos da pesquisa, seja em função dos
tipos de dados que foram coleados.

Categorias

Trabalhar com categorias implica em agrupar elementos,


ideias ou expressões em torno de um conceito que seja capaz de
abranger tudo isso (Minayo et al. 2002). É a classificação das notas
de campo, agrupando-as em temas (Angrosino 2007). As catego-
rias podem ser estabelecidas antes do trabalho de campo ou no mo-
mento da coleta de dados. No entanto, Minayo et al. (2002) sugerem
que a escolha das categorias seja feita antes do trabalho de campo,
mas também logo após este, dessa forma as categorias poderão ser
comparadas. As categorias estabelecidas antes da coleta de dados
são conceitos mais gerais e abstratos, exigindo uma fundamentação
teórica sólida por parte do pesquisador (Minayo et al. 2002). Por
exemplo, imagine que você, leitor, está investigando a concepção de
natureza dos membros de uma comunidade de pescadores. Antes
da coleta de dados, a categoria estabelecida poderá ser “representa-
ção ambiental”, entendida como a forma com que os indivíduos ex-
ternalizam o que é percebido, influenciada por aspectos biológicos

OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE E DIÁRIO DE CAMPO: QUANDO UTILIZAR E COMO ANALISAR 105


e culturais (Silva et al. 2016). Após o trabalho de campo, suponha-
mos que os seguintes trechos das falas dos pescadores tenham sido
registrados:
i) natureza é o rio e os animais que nele se encontram;
ii) a natureza é linda, sem ela nós não existiríamos;
iii) são as árvores com frutos como manga, abacate, mamão,
banana...;
iv) natureza é tudo que foi criado por Deus.
Se fôssemos estabelecer categorias para as frases acima, pode-
ríamos dizer que os trechos i e ii podem ser enquadrados na catego-
ria “visão romântica”, o trecho iii pode pertencer a categoria “visão
utilitarista” e o trecho iv pode pertencer a categoria “visão sagra-
da” de natureza. O próximo passo é relacionar essas categorias com
aquelas definidas antes do trabalho de campo, que no nosso caso foi
a categoria geral “representação ambiental”. Nesse sentido, o pesqui-
sador pode se esforçar para compreender como os conceitos de na-
tureza são determinados pelos filtros biológicos e culturais detidos
pelos pescadores, procurando aprofundar as contradições entre as
ideias apresentadas.
Essa análise de categorias pode ser apresentada em tabelas ou
quadros. Na primeira coluna podem ser inseridas as categorias, na
segunda coluna serão inseridos os trechos de falas ou diálogos que
abrangem tais categorias, e na terceira coluna podem ser inseridas
as interpretações destes trechos relacionados às categorias elenca-
das, discutindo os achados com base em referenciais teóricos. Caso
prefira, as informações da terceira coluna podem ser transpostas
para um texto corrido logo abaixo da tabela ou quadro.

106 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


Método hermenêutico-dialético

Discutido por Rychlak (1986) e Stein (1987) e proposto por


Minayo (2000) como um método de interpretação qualitativa de
dados, o método hermenêutico-dialético sugere que a fala dos atores
deve ser situada em seu contexto socioeconômico e político para que
seja melhor compreendida, e que as categorias sejam formuladas a
partir dessa contextualização. Minayo (2000) propõe três passos
para a execução do método proposto: o primeiro passo é a ordena-
ção dos dados, onde se faz um mapeamento dos dados coletados, en-
volvendo a transcrição do texto, releitura do material e a organiza-
ção dos relatos; o segundo passo é a classificação dos dados por meio
da releitura dos textos e a identificação de informações relevantes,
que darão origem às categorias; o terceiro passo é a análise final, ou
seja, o momento de articular os dados e os referenciais teóricos rela-
cionados ao tema de pesquisa, respondendo as perguntas de pesqui-
sa com base nos objetivos.

Análise de Conteúdo

A análise de conteúdo é um conjunto de técnicas de análise


das comunicações visando obter, por meio da descrição do conteú-
do das informações, indicadores que permitam inferir conhecimen-
tos relativos às condições de produção/recepção dessas mensagens
(Bardin 1977). A técnica da análise de conteúdo pode ser resumida
como um tratamento da informação contida em mensagens e textos,
e podem ser aplicadas nos mais diversos tipos de conteúdo, como
discursos, documentos, livros, textos de revistas e jornais. Diante da

OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE E DIÁRIO DE CAMPO: QUANDO UTILIZAR E COMO ANALISAR 107


diversidade de informações pelas quais essa análise pode ser apli-
cada, vamos nos deter às técnicas direcionadas a análise de conteú-
dos coletados por meio da observação participante e do diário de
campo.
Richardson et al. (2012) destacam a importância de atentar
para características como objetividade, sistematização e inferência
ao realizar a análise de conteúdo. Por exemplo, em uma análise de
conteúdo em forma de categorias, apresentada anteriormente, os au-
tores sugerem que, para alcançar a objetividade, devem ser atingidos
a homogeneidade (não misturar critérios de classificação), a exaus-
tividade (classificar a totalidade do texto), a exclusão (um mesmo
elemento não deve ser classificado em mais de uma categoria) e a
objetividade. A sistematização consiste em aplicar regras consisten-
tes, e a inferência está relacionada com o ato de procurar esclarecer
as causas da mensagem ou as consequências que ela pode provocar.
Os critérios para a organização de uma análise são a pré-a-
nálise, a exploração do material e o tratamento dos dados, a infe-
rência e a interpretação (Bardin 1977). Na fase de pré-análise, é feita
a organização do material, a elaboração das hipóteses e objetivos e
a definição do campo de pesquisa. Durante a descrição analítica,
o material coletado e as informações registradas serão analisados
tendo como base as hipóteses e referenciais teóricos. Essa fase en-
volve a codificação e categorização das unidades de registro, que
podem ser um tema, uma palavra ou uma frase. É uma fase de ex-
ploração do material, que implica em leituras exaustivas, quando se
aplica o que foi definido na fase anterior, inserindo o discurso em
categorias de análise. Por fim, a fase de interpretação inferencial im-
plica em desvendar o conteúdo, voltando-se para a busca de tendên-
cias comuns entre os dados. Os resultados são tratados de maneira

108 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


a serem significativos e válidos, podendo ser submetidos a testes es-
tatísticos, o que não exclui a interpretação qualitativa (Richardson
et al. 2012). As formas de tratamento são diversas, e envolvem o cál-
culo de frequências e porcentagens, análise fatorial, análise de con-
tingência, entre outros (Richardson et al. 2012). Nesta fase são pro-
postas inferências e interpretações dos resultados alcançados. Para
um maior aprofundamento do método de análise de conteúdo, ver
Bardin (1977), Triviños (1987) e Richardson et al. (2012).

Considerações finais

Como vimos neste capítulo, o uso do diário e notas de campo


em associação com a observação participante são instrumentos de
pesquisa importantes para etnobiologia, uma vez que essa lida di-
retamente com grupos humanos e fenômenos da natureza. Estes
métodos permitem que o pesquisador observe e registre, com pro-
fundidade, informações úteis para sua pesquisa. É importante res-
saltar que estas técnicas podem ser facilmente complementadas com
outros métodos de coleta de dados de características qualitativas ou
quantitativas, os quais podem ser encontrados em outros capítulos
desta obra. Finalmente, recomendamos atenção, cautela e muita de-
dicação na utilização desses métodos por parte do pesquisador para
que os resultados das pesquisas etnobiológicas sejam alcançados
com sucesso.

OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE E DIÁRIO DE CAMPO: QUANDO UTILIZAR E COMO ANALISAR 109


Agradecimentos

Agradecemos a Springer pela permissão concedida para re-


produção deste texto, publicado no livro Methods and Techniques
in Ethnobiology and Ethnoecology (2019), (Número da Licença:
5032020240143).

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112 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO
COMO MÉTODO DE ANÁLISE DE DADOS
EM PESQUISAS ETNOBIOLÓGICAS

Izabel Cristina Santiago Lemos de Beltrão,


Gyllyandeson de Araújo Delmondes, Diógenes de Queiroz Dias,
Irwin Rose Alencar de Menezes, George Pimentel Fernandes &
Marta Regina Kerntopf

O que hoje consideramos como estudos de abordagem qualitati-


va surgiram no século XIX, no âmbito das ciências sociais. Em
1932 tem-se a publicação da obra Methods of social investigation, por
Sidney e Beatrice Webb, nomes expoentes da sociologia inglesa. Na
referida obra, o casal Webb difundia o uso das entrevistas, dos do-
cumentos e das observações pessoais como instrumentos para cole-
tar dados referentes à realidade empírica dos seres humanos (Turato
2005).
No entanto, não existia uma clareza metodológica no que
concerne ao tratamento dos dados e a comparação massiva com
os métodos quantitativos apregoados pelas ciências naturais deixa-
vam os estudos qualitativos ofuscados no meio acadêmico, ficando
restritos, quase que exclusivamente, à Antropologia – devido às in-
fluências de Malinowsky e Boas e seus estudos etnográficos. Pelo

DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO COMO MÉTODO DE ANÁLISE DE DADOS EM PESQUISAS ETNOBIOLÓGICAS 113
menos, foi assim até a década de 60, com o surgimento de periódi-
cos dedicados exclusivamente aos métodos qualitativos, bem como
à defesa da abordagem qualitativa por expoentes dos estudos das
ciências naturais e exatas (Godoy 1995).
Além dos estudos etnográficos, notoriamente reconheci-
dos como qualitativos, tem-se ainda os estudos de caso (histórias
de vida) e as pesquisas documentais (reportagens, filmes, fotos, de-
senhos) que podem ser consideradas apropriadamente como pes-
quisas qualitativas. Assim, na atualidade, a abordagem qualitativa
é amplamente utilizada e reconhecida no meio acadêmico, tendo se
consolidado gradativamente como uma forma lídima de produzir
dados. No que concerne ao tratamento desses dados, há duas formas
clássicas ou usuais – embora não sejam as únicas – de conceber a
análise em pesquisas qualitativas: a análise de conteúdo e a análise
de discurso (Bauer & Gaskell 2015).
A análise de conteúdo (AC) surgiu antes mesmo da própria
consolidação dos estudos qualitativos, sendo, portanto, tradicio-
nalmente, um método quantitativo, ancorado em processos que
norteiam sua aplicação de forma lógica e sequencial. Esse tipo de
método foi utilizado originalmente para analisar matérias jornalís-
ticas veiculadas durante períodos de conflitos armados, apontan-
do variáveis e frequências de citação. Ou seja, era aplicado ao texto
escrito. Na atualidade, alguns autores conferiram uma abordagem
qualitativa à AC, reconhecendo a necessidade de ir além da palavra
escrita e adotando concepções teóricas para fundamentar melhor as
análises (Krippendorff & Bock 2009).
Por sua vez, a análise de discurso (AD), fundamenta-se em
três eixos históricos principais: a linguística, o marxismo e a psi-
canálise, tendo como seu principal expoente Michel Pêcheux,

114 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


representante máximo da tradicional AD francesa. Assim, a AD
propôs-se uma análise mais cabal, associando elementos internos
e externos na produção do discurso, e por essa razão, indissociáveis
da realidade social que o criou, sustentados por uma ideologia.
Segundo Pêcheux (1990), a ideologia é, portanto, as repre-
sentações de uma determinada classe. Assim, uma vez que existem
diversas classes, uma sociedade expressará diferenças ideológicas,
capazes de expressar, de maneira concreta, diferentes formações
discursivas, sendo as formações discursivas “o que se pode e se
deve dizer em determinada época”. Dessa forma, pode-se inferir a
máxima: “não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia”.
Assim, ancorados nos preceitos das pesquisas qualitativas –
embora não restrito à essa abordagem, como veremos – e da AD
surge a proposta do Discurso do Sujeito Coletivo – DSC de Lefèvre
& Lefèvre (2005b) como método de organização e tabulação de
dados qualitativos, aliando a busca pela essência do pensamento ex-
presso em um dado contexto social e o rigor metodológico no trata-
mento dos dados da pesquisa, tornando possível “fazer a coletivida-
de falar diretamente” (p.16).
Portanto, nosso objetivo é evidenciar os princípios para ope-
racionalização do DSC, destacando suas características principais e
lançando luz à sua utilização no campo das pesquisas em etnobiolo-
gia, como importante recurso para análise de dados.

O método

Tem-se que o DSC consiste na busca pela representação do


pensamento coletivo, a partir da construção de um discurso-síntese

DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO COMO MÉTODO DE ANÁLISE DE DADOS EM PESQUISAS ETNOBIOLÓGICAS 115
originado de conteúdos discursivos de indivíduos distintos. Dito em
termos simples, o DSC é a junção de discursos individuais, gerados
por meio de uma pergunta aberta, que expressa eficazmente o pen-
samento de uma coletividade (Lefèvre & Lefèvre 2005b).
Nesse sentido, através dessa proposta do DSC de tabulação
de dados qualitativos oriundos de natureza verbal, torna-se possível
que cada indivíduo entrevistado no estudo possa contribuir para a
construção do pensamento coletivo. Esse procedimento metodoló-
gico está respaldado na perspectiva empírica de que o caráter co-
letivo do pensamento social pode ser mensurado pela quantidade
de escolhas de um determinado grupo de pessoas que pertencem a
uma dada comunidade, por isso pode ser considerado socialmente
compartilhado, embora expresso de maneira individual (Lefèvre &
Lefèvre 2012).
De acordo com Lefèvre & Lefèvre (2005b), o DSC sustenta-se
na hipótese de que os indivíduos, quando em sociedade, comparti-
lham crenças, valores e representações sociais. Conseguintemente,
elaborou-se um processo metodológico capaz de gerenciar uma or-
ganização das expressões verbais geradas pelas pesquisas sociais que
utilizam instrumentos abertos para a coleta de dados.
Esse processo metodológico orienta-se sistematicamente por
meio de elementos específicos para o seu desenvolvimento, denomi-
nados de operadores, sendo eles a Ideia Central, as Ancoragens, as
Expressões Chave e os DSC como produto final Lefèvre & Lefèvre
2005b).
Segundo Lefèvre e Lefèvre (2005b, p. 17) “as expressões-cha-
ve (ECH) são transcrições literais do discurso que revelam a es-
sência dos depoimentos, conduzindo até sua significação, propria-
mente dita, evidenciando a ideia central que permeia determinado

116 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


pensamento”. Por essa razão, também, os autores referem que não
há como dissociar as ECH das ideias centrais (IC), sendo esses ope-
radores indispensáveis para a formação do DSC.
No caso das ideias centrais, define-se que elas são uma descri-
ção do sentido dos depoimentos. Segundo os autores: “A ideia cen-
tral tem [...] a importante função de individualizar um dado dis-
curso, ou conjunto de discursos, descrevendo, positivamente suas
especificidades semânticas” (Lefèvre & Lefèvre, 2005b, p. 25). Frisa-
se ainda que um indivíduo pode apresentar, em seu discurso, para
uma mesma questão, mais de uma IC.
Por sua vez, as ancoragens (AC) são manifestações explícitas
de uma crença que o autor do discurso professa e que é usada para
enquadrar uma situação específica. Podem ser comentários genera-
listas, guiados por senso-comum, marcadamente notórios nos dis-
cursos e costumam ser de fácil identificação. Destaca-se que as AC,
ao contrário do que ocorre com as ECH e IC, não são obrigatórias
para compor o DSC.
Portanto, identificando as figuras metodológicas citadas
acima (ECH, IC e AC) ter-se-á a formação do DSC, considerado
como a principal figura metodológica expressa a partir do método.
De acordo com Lefèvre e Lefèvre (2005b, p. 18): “O Discurso do su-
jeito coletivo é um discurso-síntese [...] composto pelas ECH que
têm a mesma IC ou AC”. Conforme exemplificado nos esquemas
abaixo:

Representação A: DSC1 = [ECH(n2) + ECH(n5) + ECH(n8) + ECH(nx)]IC1


Representação B: DSC 2 = [ECH(n3) + ECH(n7) + ECH(n9) + ECH(nx)]AC1

Fonte: Esquemas propostos pelos autores, Lemos et al. 2018

DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO COMO MÉTODO DE ANÁLISE DE DADOS EM PESQUISAS ETNOBIOLÓGICAS 117
Onde:
DSC = Discurso do Sujeito Coletivo;
ECH = Expressão-Chave;
IC = Ideia Central;
AC = Ancoragem;
n = participante da pesquisa.

Outra característica do DSC é o fato de ser evidenciado no


modo discursivo. Os referidos autores defendem que a representa-
ção por meio de quadros, tabelas e categorias caracteriza-se como
mais distante da realidade como os indivíduos concretos pensam,
sendo, portanto mais adequado o uso do discurso, como uma forma
de representação mais vívida e real do pensamento coletivo (Lefèvre
& Lefèvre 2005a).
Não obstante, frisa-se que a representação de dados adjuvan-
tes – tais como número de informantes, sexo, profissão –, bem como
das IC prevalentes, apresentam formas multivariadas de apresenta-
ção, podendo ser expressos quer utilizando a representação escrita
descritiva simples, quer valendo-se de recursos auxiliares para orga-
nização e visualização geral dos referidos dados.
Nesse âmbito, destaca-se que para chegar ao almejado pen-
samento coletivo, faz-se necessário uma amostra representativa de
uma população considerada para o estudo. Apenas desse modo será
possível ter no conjunto das individualidades opinantes a represen-
tação das ideias internalizadas, ou seja, o sujeito coletivo (Lefèvre &
Lefèvre 2006).
Contudo, para desencadear o pensamento coletivo é neces-
sário a utilização de um objeto imprescindível: a questão aberta. A
questão aberta será responsável por produzir o pensamento, sendo
considerada ainda como o procedimento de pesquisa que estimula

118 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


de forma mais intensa a expressão dos pensamentos dos indiví-
duos em um discurso (Lefèvre & Lefèvre 2005a). Destaca-se que é
importante deixar explícita a questão norteadora na apresentação
dos resultados. Segue abaixo, na Tab. 1, um exemplo de organiza-
ção e apresentação dos dados que pode ser utilizado em estudos
etnobiológicos.

Tabela 1. Relação entre ideia central da pergunta X, proporção das respostas de acor-
do com os participantes da pesquisa e DSC para a questão X.

Pergunta X: Qual sua opinião sobre […]?

Informantes
Ideias Centrais
N %
A
B
C
...
Total de informantes = *
DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO
DSC – Ideia Central A: […]
CSD – Ideia Central B: […]
CSD – Ideia Central C: […]
* Um discurso pode apresentar mais de uma ideia central.

Fonte: Modelo de organização de dados proposto pelos autores.

Conseguintemente, cada DSC é confeccionado na primeira


pessoa do singular, assim o pensamento de um grupo ou coletivi-
dade irá ser expresso como se fosse um discurso individual. Essa é a

DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO COMO MÉTODO DE ANÁLISE DE DADOS EM PESQUISAS ETNOBIOLÓGICAS 119
variável qualitativa do DSC. Contudo, após a construção do discur-
so-síntese, torna-se possível identificar a variável quantitativa para
cada DSC. Essa variável possui dois atributos, a saber: intensidade e
amplitude (Lefèvre & Lefèvre 2006).
Dessa forma, Lefèvre e Lefèvre (2006) caracterizam intensi-
dade como o número ou percentual de indivíduos que contribuíram
com ECH e IC que esboçaram semelhanças ou se complementaram
em determinado momento para a confecção dos diferentes discur-
sos-síntese. No que diz respeito à amplitude, pode ser compreendi-
da como a medida da presença do DSC considerando o campo ou
universo.
Pode-se dizer, desse modo, que o DSC é apropriadamente
uma técnica qualiquantitativa, pois a pesquisa de resgate de repre-
sentações sociais é de natureza qualitativa no sentido do seu objeto
de investigação, ou seja a busca pelo pensamento coletivo, que não
pode, imediatamente, ser identificado por recursos meramente
quantificáveis (Lefèvre & Lefèvre 2006).
Todavia, após a identificação das ideias centrais, expressões-
-chaves, ancoragens e confecção do DSC, é possível aplicar um tra-
tamento quantitativo. Uma vez que a dimensão quantitativa da opi-
nião se faz a partir de uma integração indissociável com a dimensão
qualitativa, tendo em vista que dizem respeito à quantidade de indi-
víduos ou de respostas que contribuíram para a confecção de cada
discurso-síntese (Lefèvre & Lefèvre 2005a).
Portanto, ao contrário do que alguns pesquisadores apre-
goam, quantidade e qualidade são conceitos complementares e não
mutuamente excludentes. Na técnica do DSC, por exemplo, há uma
fusão inerente entre qualidade e quantidade, conforme defendem os
autores (Lefèvre & Lefèvre 2005b).

120 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


Assim, o DSC emerge como uma proposta que insere uma
significativa mudança no campo das pesquisas qualitativas, que
através desse procedimento metodológico assumem o status de pes-
quisas qualiquantitativas, ou de abordagem mista, uma vez que se
possibilita conhecer e mensurar as representações de discursos de
coletividades a respeito dos mais diversificados temas que interajam
no âmago de sua realidade social (Figueiredo et al. 2013).
Assim, para a aplicação correta da técnica do DSC, faz-se
necessário o resgate do sentido das opiniões coletivas de um dado
grupo, no âmago dessas opiniões coletivas será originado inúmeros
DSC, sendo esse um processo complexo, que deve ser subdividido
em vários momentos, respeitando uma ordem hierárquica de etapas
bem estabelecidas, efetuado mediante operações que serão realiza-
das sobre o material coletado (Lefèvre & Lefèvre 2005a).

Softwares para a construção do DSC:


Qualiquantisoft e DSCsoft

Posteriormente, os dados coletados devem ser apropriada-


mente transcritos para análise. Nesse momento, o pesquisador pode
optar por executar a técnica manualmente ou utilizar, como auxílio
para análise, o Qualiquantisoft. O uso do software é incentivado,
considerando os aspectos particulares de organização dos registros
e valorização da abordagem mista.
Dessa forma, destaca-se que a finalidade desse programa é
possibilitar uma notável otimização do trabalho técnico para a aná-
lise dos dados da pesquisa. Além disso, o software permite rela-
cionar de modo eficaz os aspectos qualitativos e quantitativos de

DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO COMO MÉTODO DE ANÁLISE DE DADOS EM PESQUISAS ETNOBIOLÓGICAS 121
estudos que utilizem o DSC para a análise de dados (Lefèvre &
Lefèvre 2014b).
O software é composto por cadastros (possibilitando arqui-
var dados e bancos de dados relativos a entrevistados, pesquisas
e perguntas, entre outros); análises (são quadros e processos que
tornam possível a realização das etapas pertinentes à construção dos
Discursos do Sujeito Coletivo); ferramentas (responsáveis pela ex-
portação e importação de dados, bem como dos resultados de pes-
quisa) e relatórios (realizam a organização e permitem a impressão
dos resultados da pesquisa) (Lefèvre & Lefèvre 2014b).
Todavia, salienta-se, em especial pelo Instituto de Pesquisa do
Discurso do Sujeito Coletivo (IPDSC), que o QualiQuantiSoft pode
ser classificado corretamente como um facilitador e não substituto,
em nenhuma instância, do trabalho que deve ser realizado pelo pes-
quisador. Sendo, de fato, o referido software um auxílio relevante
para o investigador.
Assim, o Qualiquantisoft permite produzir o DSC adotando
procedimentos mais fidedignos, sistemáticos, explícitos e padroni-
zados, construindo, por meio da fala dos indivíduos, a fala do social,
almejada pelo pesquisador. Esse processo, realizado com o uso do
software, representa uma maior eficácia da atividade investigativa,
além da economia de tempo para o pesquisador.
No mais, o uso do Qualiquantisoft torna possível realizar
o trabalho de pesquisa com amostras relativamente numerosas –
quando se considera a realidade de pesquisas qualitativas – além
de cadastros de dados importantes e a aplicação de filtros de acordo
com as diferentes variáveis consideradas.
Destaca-se que, atualmente, está disponível outro software
para pesquisas com o DSC, o DSCsoft, considerado o novo software

122 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


do Discurso do Sujeito Coletivo. Salienta-se que o DSCsoft foi idea-
lizado pelos mesmos criadores do Qualiquantisoft e a tendência é
que ele o substitua gradativamente, uma vez que se apresenta como
um software aperfeiçoado em comparação ao seu predecessor e com
novos recursos e amplitude de alcance da análise das amostras.
Portanto, é útil pontuar que o DSCsoft, além das ferramentas
do Qualiquantisoft, dos avanços operacionais e visuais, apresenta uma
capacidade maior para o registro dos discursos, possibilitando análise
com amostras numericamente mais representativas. Permite também
associar de forma mais efetiva os aspectos qualitativos e quantitati-
vos dos estudos, produzindo o cruzamento de variáveis subjetivas e
objetivas, tais como “crenças” e “idade”, por exemplo (DSCsoft 2015).
Não obstante, embora a transição do Qualiquantisoft para o
DSCsoft seja uma tendência natural e esperada, o Qualiquantisoft
ainda é largamente utilizado por diversas instituições de ensino su-
perior (IES) portadoras da licença, sendo adotado como programa
padrão em instituições públicas e privadas que utilizam o DSC, o
que justifica sua relevância no que tange à aplicação do método.

O DSC e as pesquisas com abordagens etnobiológicas

Conforme exposto anteriormente, no DSC, o pensamento é


coletado a partir do uso de questões abertas, o que permite ao pen-
samento internalizado expressar-se por meio de um comportamen-
to discursivo, possibilitando externar um fato social de interesse
para o pesquisador.
Dessa forma, o DSC possibilita empregar uma análise de
dados capaz de aliar as vozes dos indivíduos que participaram da

DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO COMO MÉTODO DE ANÁLISE DE DADOS EM PESQUISAS ETNOBIOLÓGICAS 123
pesquisa em diferentes discursos representativos, não excluindo sua
subjetividade, característica de pesquisas qualitativas, ao mesmo
tempo em que torna viável uma avaliação fidedigna e quantitati-
va das ideias expressas, a partir de um método específico, claro e
reprodutível.
Logo, considerando todas as razões apresentadas, que partem
da gênese da análise de discurso firmando-se como método, da fun-
damentação teórica do DSC, bem como da aplicabilidade da técni-
ca, reforça-se que o DSC é apropriado para a análise de dados em
pesquisas etnobiológicas. Vejamos apenas alguns exemplos nesse
sentido.
Em estudo conduzido no município de Igarassu, na Mata
Atlântica, estado de Pernambuco, Brasil, Silva et al. (2010) buscaram
identificar as percepções da paisagem local pela visão de alunos do
quinto ao oitavo ano, sendo o discurso do sujeito coletivo utilizado
como uma das abordagens metodológicas para a análise dos dados,
provavelmente, essa foi a publicação pioneira na utilização do DSC
no campo das pesquisas em etnobiologia.
Assim, no referido estudo, foram identificadas doze ideias
centrais, juntamente com as expressões-chave correspondentes,
apresentadas em tabelas, sendo possível traçar um panorama do
pensamento coletivo das crianças acerca da paisagem local. Alguma
importantes IC foram: I love the forest; We are happy because we
have forests, they have many types of life; We are killing the fores-
ts, we have to preserve; People are destroying the forests and that
is bad. We have to have preservation. Essas IC foram expressas por
alunos da quinta, sexta, sétima e oitava séries, respectivamente
(Silva et al. 2010).

124 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


Destacam-se ainda expressões-chaves sensíveis indica-
das pelos autores, tais como: “We are destroying the green of our
forest… trees cut down and animals hunted… deforestation is a
crime against nature. We humans have to cut down trees and then
plant others” (Silva et al. 2010, p. 204) and “I think of the riches
that the forest gives us. I am afraid that the day will come when we
won’t see these landscapes any more… People should take care of
the forest” (Silva et al., 2010, p. 205). Algo que se tornou evidencia-
do mediante os DSC foi a visão conservacionista em todas as séries
consideradas na pesquisa.
Na dissertação de Lemos (2015), a técnica também foi utiliza-
da. O objetivo do estudo foi conhecer saberes tradicionais acerca do
uso de recursos naturais utilizados para o tratamento de infecções
respiratórias agudas, diarreias e anemias em crianças residentes
em uma comunidade tradicional localizada no nordeste do Brasil.
O enfoque qualitativo do estudo deu-se mediante a busca da com-
preensão do significado atribuído ao uso desses recursos tradicio-
nais pelas mães ou responsáveis das crianças, bem como o reflexo
dessa prática para a medicina convencional.
Na análise de dados com o DSC, foram identificas 46 ideias
centrais para cinco perguntas, que revelaram uma valorização do
uso de recursos naturais para tratar as doenças comuns na infância.
Um aspecto relevante a ser pontuado foi a organização dos dados
priorizando a abordagem mista permitida pelo DSC, expondo as-
pectos qualitativos e quantitativos dos discursos. Os dados foram
organizados em tabelas e quadros, além da representação escrita
(Lemos 2015).
Uma das perguntas realizadas foi: em algum momento,
chegou a conversar com um profissional de saúde sobre o uso que

DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO COMO MÉTODO DE ANÁLISE DE DADOS EM PESQUISAS ETNOBIOLÓGICAS 125
faz de plantas ou de partes de animais no tratamento das doenças de
seus filhos? Conte como foi. Apenas para essa pergunta, emergiram
nove IC. Dentre elas destacam-se: Sim, mas fui repreendida (o) e não
falei mais; Não, porque tive medo e/ou vergonha; Já tentei, mas eles
não deram atenção; Não, porque eles não perguntam, não demons-
tram interesse e Não, porque eles não acreditam na eficácia desse
tipo de tratamento (Lemos, 2015).
Assim, de acordo com a autora, os resultados oriundos das
análises pelo DSC tornaram possível evidenciar que considerar as-
pectos culturais na abordagem assistencial à saúde da criança é rele-
vante, uma vez que são recursos largamente utilizados pelas famílias
e encarados como opções terapêuticas eficazes para uma gama de
sintomas e de situações de saúde no contexto das doenças prevalen-
tes na infância (Lemos, 2015).
No artigo de Sousa et al. (2017), conduzido em uma comuni-
dade quilombola do nordeste do Brasil, o DSC também foi o método
de escolha para organização e análise dos dados, o objetivo da pes-
quisa foi investigar as formas de uso e de armazenamento de plantas
encontradas na comunidade. Diferentemente dos exemplos anterio-
res mencionados, para esse estudo os dados foram elencados dando
ênfase apenas aos DSC como os principais operadores do método e
focando, exclusivamente, na análise qualitativa dos discursos.
Alguns trechos particularmente interessantes do estudo de
Sousa et al. (2017) e que podem ser pontuados nos discursos repre-
sentados são: “Eu aprendo com os mais velhos daqui [...] Minha avó
foi uma benção, foi uma bênção para pessoas daqui e do Coqueiro.
Minha tia orou aqui e minha mãe é [...] uma curandeira para as
crianças” – sobre com quem aprendeu a utilizar as plantas (p. 233);
“Eu planto aqui no quintal. Eu planto e cuido para que não morra

126 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


com a seca. Quando não há (plantas) aqui ao redor da casa, eu pro-
curo na casa da minha mãe ou na casa de um vizinho.” – sobre como
consegue as plantas mencionadas (p. 234) e “Faz o bem, não faz o
mal. O remédio da planta é melhor que o remédio da farmácia. Faz
a gente ficar melhor. Então, faz bem e não prejudica. Não faz mal
algum” – sobre os efeitos adversos e contraindicações relacionadas
ao uso das plantas (p. 235).
Na pesquisa de mestrado de Alves (2017), o autor buscou ana-
lisar a relação entre o uso de plantas, suas significações, e o trata-
mento convencional e tradicional para pessoas diagnosticas com
hipertensão arterial sistêmica (HAS) em uma comunidade quilom-
bola do nordeste do Brasil. Nesse estudo foi possível evidenciar inú-
meras IC, a partir da aplicação da técnica do DSC com a realização
de seis perguntas subjetivas.
Portanto, no estudo de Alves (2017), alguns pontos peculia-
res foram: a realização da análise em consonância com a teoria das
representações sociais – o que possibilita uma visão mais crítica e
ampla dos processos investigados –, a identificação de ancoragens
para respaldar e validar um pensamento largamente difundido na
comunidade e a abordagem interdisciplinar que permeou todo o
estudo, aliando discussões relevantes no âmago das ciências bioló-
gicas e das ciências da saúde. Os dados foram apresentados median-
te representação escrita dos discursos e organizados em quadros,
priorizando o enfoque qualitativo do método.
Nesse sentido, segundo o referido autor, através dos discursos
foi possível compreender o significado atribuído à HAS e sua rela-
ção direta com a cultura e com os aspectos psicossociais, fatores que
vão refletir diretamente nas formas de tratamento e no esquema te-
rapêutico adotado por diferentes populações. No caso investigado,

DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO COMO MÉTODO DE ANÁLISE DE DADOS EM PESQUISAS ETNOBIOLÓGICAS 127
isso ficou evidente através do uso de plantas em detrimento ao tra-
tamento convencional, conforme reportado por alguns moradores
(Alves 2017).
Vale mencionar ainda a pesquisa de Brasil et al. (2017), que
buscou avaliar a preferência entre fármacos ou plantas para o
manejo da dor em uma comunidade quilombola. Nesse aspecto, o
estudo adotou o DSC como método de análise das expressões ver-
bais dos participantes, aliando variáveis qualitativas e quantitativas,
com uma amostra expressiva – no contexto dos métodos qualitati-
vos para análise – de cinquenta e dois residentes.
Assim, a pesquisa de Brasil et al. (2017), concluiu que a maio-
ria dos participantes do estudo utilizavam chás para o manejo da
dor e, embora alguns utilizassem medicamentos convencionais,
atribuíam às plantas uma maior eficácia no tratamento da dor. Um
aspecto notório da pesquisa foi a utilização da representação clássica
na expressão dos dados, com todas as IC elencadas para cada per-
gunta e todos os DSC expressos para uma visualização mais fidedig-
na dos pensamentos representados pela comunidade.
Frisa-se que foram vinte e seis IC distribuídas para um corpo
de quatro perguntas subjetivas. Por exemplo, para a questão que ver-
sava sobre a opinião dos moradores no que tange ao preparo caseiro
com plantas para o tratamento da dor, as IC prevalentes foram: “É
bom porque é eficaz/ funciona”, expressa por 61,54% e “É bom, mas
depende do tipo de dor”, foi indicada por 21,15% dos participantes
(Brasil et al., 2017).
Para a pergunta que tratava acerca da visão dos moradores
no que diz respeito aos fármacos convencionais, a IC mais pontua-
da foi: Eles são eficazes, mas o chá é melhor, para 38,46% da amos-
tra. Sobre o uso em associação das plantas e dos fármacos, 88,46%

128 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


relataram que não utilizam porque pode causar envenenamento. No
que concerne à substituição dos fármacos pelas plantas, 51,92% ex-
pressaram não substituir, mas não souberam identificar as razões
para isso (Brasil et al. 2017).
Vale pontuar ainda alguns importantes discursos na pesqui-
sa de Brasil et al. (2017), tais como: “[...] o remédio da farmácia não
funcionou, com fé em Deus eu fiquei bom, com remédios das plan-
tas. Já tomei paracetamol uma vez e não deu certo [...] tomei chá e re-
solveu ”. (p. 777); “Não! “Deus!” Você não pode pegar os dois porque
pode envenenar. Todos aqui sabem que você não pode pegar os dois
juntos: a planta e a droga; é arriscar demais” (p. 776) e “eu não troco
meu chá, eu bebo chá primeiro. Eu vejo as pessoas indo para os cen-
tros de saúde, para o hospital, eu não vou. Acho que é uma perda de
tempo porque tenho tudo aqui [...]” (p. 775).
Contudo, alguns aspectos devem ser discutidos no que diz
respeito à utilização do DSC em pesquisas etnobiológicas, visando
um aperfeiçoamento do emprego da técnica, possibilitando análises
mais aprimoradas e, consequentemente, uma maior qualidade das
pesquisas publicadas. Assim, pelo menos dois aspectos são dignos
de nota: a forma de apresentação dos dados e o caso da teoria das
representações sociais.
Uma das grandes vantagens do DSC é possibilitar a represen-
tação de dados subjetivos, de forma precisa, traçando um quadro
geral dos pensamentos expressos de uma dada população. Quando
não evidenciamos alguns dos operadores básicos do método na apre-
sentação dos nossos resultados, tais como ECH e IC, podemos dis-
torcer ou tornar nebulosa a compreensão geral dos resultados alcan-
çados. Sendo cabível uma organização meticulosa dos operadores

DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO COMO MÉTODO DE ANÁLISE DE DADOS EM PESQUISAS ETNOBIOLÓGICAS 129
básicos, quer na forma textual escrita simples, ou utilizando tabelas
e quadros.
Em parte, esse problema deve-se à internalização das formas
mais comuns de análise de dados qualitativos, bem como sua
apresentação. No entanto, esse fato pode comprometer, como fri-
sado, a compreensão dos resultados, assim como não evidenciar
características próprias do método, o que seria lamentável. Atrela-se a
essa problemática, também, a falta de domínio da operacionalização
do DSC.
Outro fato que contribui para uma organização e apresenta-
ção ineficaz dos dados é a não utilização dos softwares específicos
para o DSC. Embora, frise-se, não seja um requisito, é largamente
aconselhável a utilização do Qualiquantisoft e, mais recentemen-
te, do DSCsoft, como ferramentas auxiliares no processo de análise
pelo DSC, possibilitando uma melhor organização e tabulação dos
resultados, aliando aspectos objetivos e subjetivos.
Outro aspecto que precisa ser melhorado nas publicações
que se valem do DSC é a consideração da fundamentação teórica
do método, ancorada na Teoria das Representações Sociais (Lefèvre
& Lefèvre 2014), quando alijada do contexto das análises, essas tor-
nam-se superficiais e não elucidadoras, fornecendo apenas uma
visão pragmática e descritiva dos achados. Assim, o DSC não pode
ser dissociado das considerações teóricas que permeiam o método,
caso contrário, estaríamos analisando somente conteúdos, numa
perspectiva clássica, e não discursos.

130 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


Considerações finais

Desse modo, os estudos citados no decorrer do capítu-


lo são apenas alguns exemplos práticos de como o DSC pode ser
eficazmente aplicado no contexto das pesquisas etnobiológicas, in-
dependente da vertente etnobiológica considerada. Defende-se, por-
tanto, que o DSC vai além da simples representação mecânica dos
discursos ou representação escrita de expressões verbais alocadas
em uma dada categoria de forma impessoal e aleatória, conforme
observa-se em outros métodos largamente utilizados para as pes-
quisas qualitativas.
Enquanto método de organização, tabulação e análise de
dados fundamentado na teoria das representações sociais, o DSC
constitui-se particularmente interessante pois possibilita aliar dife-
rentes vozes representativas de um dado pensamento coletivo em
sentenças claras e consonantes, traçando um panorama real e tan-
gível dos discursos de diferentes indivíduos, auxiliando na análise
mais cabal dos resultados obtidos em campo.
Sua operacionalização sistemática – além do auxílio dos soft-
wares desenvolvidos especificamente para análises pelo DSC – contri-
bui na construção de sentenças bem delineadas e precisas, sem perder,
contudo, a subjetividade inerente ao pensamento e possibilita-nos,
mediante os discursos expressos, esquadrinhar o âmago das repre-
sentações imbuídas em cada frase, o que repousa no cerne da AD.
Outro aspecto vantajoso, é o fato do DSC ser aplicável em
amostras de larga amplitude e isso deve-se ao processo metodoló-
gico adotado para ele, possibilitando, inclusive, o cruzamento pos-
terior de variáveis objetivas e subjetivas. Conseguintemente, de
acordo com os autores do método, o DSC não apenas permite esse

DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO COMO MÉTODO DE ANÁLISE DE DADOS EM PESQUISAS ETNOBIOLÓGICAS 131
tipo de associação qualitativa e quantitativa, como também eviden-
cia a necessidade de um tratamento misto dos dados (Lefèvre &
Lefèvre 2012).
Dessa forma, diante de todas as características salientadas
para o DSC e sua singularidade no âmbito das análises de dados dos
estudos qualitativos, reforça-se que sua utilização em pesquisas et-
nobiológicas tem o potencial para enriquecer as análises subjetivas
de pensamentos, de crenças e de conceitos.
Assim, quando vamos ao campo, realizar nossos levantamen-
tos, nossas anotações e registros, há sempre uma presença que per-
passa por esses dados objetivos, quer seja antes da pesquisa, durante
a condução do estudo ou após as impressões iniciais e as avaliações
de impactos, essa presença é a presença humana, rica em relatos
subjetivos, experiências e valores.
Esses aspectos qualitativos, que se confundem historicamen-
te com o próprio surgimento de estudos etnográficos com Boas e,
mais notoriamente, Malinowski, podem ser explícitos ou implícitos
e desconsiderá-los não nos aproxima de uma análise mais robusta e
cientificista, mas afasta-nos de um dos aspectos centrais de nossos
estudos etnobiológicos e que repousa no berço da Antropologia: as
próprias relações e representações humanas.

Agradecimentos

Agradecemos a Springer pela permissão concedida para re-


produção deste texto, publicado no livro Methods and Techniques
in Ethnobiology and Ethnoecology (2019), (Número da Licença:
5034390903877).

132 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


Referências
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134 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


COLETA E ANÁLISE DE DADOS EM
PERCEPÇÃO DE RISCO AMBIENTAL

Henrique Fernandes Magalhães, Regina Célia da Silva Oliveira,


Ivanilda Soares Feitosa e Ulysses Paulino de Albuquerque

A percepção humana é responsável pela organização e interpre-


tação da realidade pelas pessoas, para que as mesmas atribuam
significado sobre o seu meio. Nós percebemos o ambiente por meio
dos nossos sentidos. A maneira como nós o percebemos, por sua vez,
pode ser influenciada por filtros físicos, psicológicos (Bell 2001) e cul-
turais (Okamoto 2002). Chegamos, assim, ao conceito de percepção
ambiental que corresponde à representação que os indivíduos fazem
do seu ambiente, o que possibilita que compreendam os cenários e
mudanças ambientais que os cercam (García-Mira & Real 2005).
Muitas das mudanças ambientais que as pessoas percebem
podem ser interpretadas como circunstâncias potencialmente desfa-
voráveis ou prejudiciais, o que pode ser definido como risco (Smith
et al. 2000). Outras definições apontam risco ambiental como a
probabilidade de ocorrer efeitos adversos como consequência de
um fenômeno ambiental (Sjöberg 2000a; b; United Nations Office
for Disaster Risk Reduction 2009). Diante de variações e conota-
ções para o mesmo termo, é importante que o pesquisador tenha

COLETA E ANÁLISE DE DADOS EM PERCEPÇÃO DE RISCO AMBIENTAL 135


o cuidado de definir bem o que está considerando como risco am-
biental em sua pesquisa.
Em pesquisas etnobiológicas, a análise da percepção de risco
pode ser uma ferramenta muito útil na busca de uma melhor com-
preensão e busca de soluções para problemas percebidos e enfrenta-
dos localmente (Smith et al. 2000; Quinn et al. 2003). Na coleta e na
análise dos dados de percepção de risco ambiental, diferentes mé-
todos podem ser utilizados, a depender dos objetivos da pesquisa.
Nesse capítulo, detalharemos alguns desses métodos, conceituan-
do-os e mostrando a sua aplicabilidade em diferentes tipos de estu-
dos de percepção de risco ambiental.

Métodos de coleta e análise de dados na


pesquisa em percepção de risco ambiental

Entrevistas

Uma das técnicas mais comumente utilizadas para acessar a


percepção local de riscos ambientais são as entrevistas (Campos et
al. 2014; Wang & Cao 2015). Dentre as vastas opções de entrevistas,
o que mais se observa nesses tipos de estudos são as semiestrutura-
das. Elas se baseiam em um roteiro contendo perguntas flexíveis, le-
vando em consideração questões que possam surgir no decorrer da
entrevista (Albuquerque et al. 2014). Essa técnica também possibili-
ta que o informante fique a vontade para se expressar em seus pró-
prios termos e de acordo com suas convicções próprias. No entanto,
o pesquisador deve ficar atento para que o foco da pesquisa não seja
perdido em função dessa flexibilidade (Albuquerque et al. 2014).

136 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


Embora esse método seja feito “face a face” com o informan-
te, e qualquer dúvida possa ser esclarecida na ocasião, dependendo
de como a pergunta for feita, é possível que ocorram diferentes in-
terpretações. Por exemplo, se perguntarmos ao informante “Como
o senhor percebe e se ajusta as mudanças climáticas?”, pode ser que
ele não entenda do que se trata, devido a forma como a pergunta foi
elaborada. Nesse caso, ele pode tomar uma dessas duas atitudes: ele
pode responder que não sabe, ou que não entendeu.
Diante da situação relatada acima, o pesquisador deve refor-
mular a pergunta de forma que fique mais claro para o informan-
te. Em alguns casos, o mesmo pode agir diferente dessas duas si-
tuações, tentando responder com base no seu entendimento, o que
muitas vezes não é pautada no pleno entendimento da questão de
interesse do investigador.
Geralmente, as entrevistas apresentam duas seções prin-
cipais. A primeira consiste em informações socioeconômicas dos
informantes como: nome, idade, gênero, profissão entre outros.
A segunda parte se destina a identificar as questões especificas
do estudo como: a percepção das pessoas sobre o risco ambiental,
quais são os potenciais impactos gerados por esses riscos, como eles
podem afetar suas atividades diárias, e quais medidas eles tomam
para se adaptarem, ou prevenirem os riscos percebidos localmente
(Wang & Cao 2015). Assim, as pessoas podem informar ao pesqui-
sador sobre as suas formas de gerenciar os riscos de acordo com
o clima atual, que pode ser feita, por exemplo, a partir da diver-
sificação de culturas agrícolas, cultivando as espécies mais resis-
tentes a seca em tempos de escassez de chuva, o uso de irrigação
para suprir a demanda de água das plantações (Campos et al. 2014),
entre outros.

COLETA E ANÁLISE DE DADOS EM PERCEPÇÃO DE RISCO AMBIENTAL 137


Estímulo com desenhos

O método de estímulo com desenhos é uma ferramenta que


pode ser usada com pessoas de diferentes faixas etárias. No entan-
to, é mais comumente utilizado para integrar crianças em estudos
de percepção de risco ambiental, visto que evidências apontam que
diante de mudanças ambientais extremas como seca e inundações,
as crianças estão mais expostas e vulneráveis a esses riscos (United
Nations Children’s Fund 2008). Além disso, o desenho é conside-
rado uma maneira de comunicação e expressão de sentimentos e
uma forma de representar como o indivíduo vê os acontecimentos
do mundo externo (Barraza 1999; Hume et al. 2005). Logo, por meio
do desenho, as crianças podem representar sua compreensão do
mundo natural, tornando-se uma maneira eficaz de aprender como
os desastres afetam suas vidas, bem como os perigos podem ser mi-
nimizados (Pellier et al. 2014; Taylor & Peace 2015). No entanto, é
importante alertar que esse método requer um maior tempo para
execução, e uma eventual falta de habilidade do público infantil com
desenho pode ser uma limitação que deve ser levada em considera-
ção pelo pesquisador (Silva et al. 2016a).
De fato, os desenhos são uma importante ferramenta para
acessar a percepção e/ou conhecimento ambiental local, mas ainda
são poucos os estudos que trabalham com essa perspectiva, e em
se tratando do público infantil, os estudos ainda são mais escassos
(Taylor & Peace 2015). Além disso, é importante destacar que em
comparação com as gerações mais antigas, crianças podem ter uma
visão mais atualizada sobre as condições ambientais locais e essas
informações podem ser úteis para entender a realidade ambiental
atual em comparação com a passada (Pellier et al. 2014).

138 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


Como exemplo, apresentamos o estudo de Taylor & Peace
(2015) na Indonésia. Entre métodos múltiplos, os autores usaram o
desenho para avaliar a percepção de risco infantil e sua capacidade
de responder aos impactos de inundações (Quadro 1, Fig. 1). Taylor
& Peace (2015) observaram que as crianças apresentaram suas pró-
prias ideias e perspectivas de ação diante dos riscos ambientais en-
frentados, sugerindo que o desenho pode fornecer informações im-
portantes sobre a resiliência infantil face catástrofes ambientais.

Quadro 1. Etapas, com adaptações, usadas por Taylor & Peace (2015) para acessar
a percepção ambiental de crianças e entender como elas agem diante de eventos
inundações na comunidade local.

Fase 1
Elaboração de perguntas-chaves para direcionar as crianças no momento
da pesquisa que estejam diretamente relacionadas ao objetivo da
pesquisa.

Fase 2: Percepção de risco ambiental


“Como você vê as enchentes aqui na comunidade (...)”
“Desenhe sobre a enchente que ocorre aqui na comunidade (...)”

Fase 3: percepção sobre adaptação diante risco percebido


“O que sabem sobre prevenção das enchentes (...)”
“O que você faz em momentos de enchentes (...)”
“O que te impede de fazer essa ação (...)”

Pellier et al. (2014) apontaram que, por meio de desenhos, as


crianças foram capazes de transmitir suas percepções acerca das

COLETA E ANÁLISE DE DADOS EM PERCEPÇÃO DE RISCO AMBIENTAL 139


condições ambientais atuais e futuras. As crianças podem ainda
fazer associações sobre condições da fauna e flora local úteis em es-
tudos que visem gestão sustentável dos recursos naturais face às mu-
danças ambientais globais (ver Pellier et al. 2014). Sendo assim, para
uma melhor compreensão de como direcionar e analisar informa-
ções obtidas neste tipo de estudo, no quadro 2 apresentamos um
caso hipotético, elaborado a partir de uma adaptação da metodo-
logia usada por Silva et al. (2016a) em um estudo de percepção am-
biental com crianças.

Quadro 2. Etapas para analisar o conteúdo dos desenhos, adaptado de Silva et al.
(2016a).

Considere, como exemplo, a Fig. 1 e veja as etapas descritas abaixo:


(a) Criar categorias para analisar as informações contidas nos
desenhos, por exemplo, categoria para inserir componentes bióticos
e abióticos;
(b) Criar categoria para percepção de risco evidenciado pela criança, por
exemplo, desmatamento oriundo do ser humano;
(c) Contagem de cada elemento contido no desenho e posterior
agrupamento em suas respectivas categorias;
(d) O pesquisador poderá optar por ver a frequência de citação por
gênero, idade, escolaridade e/ ou comparação de comunidades
diferentes, essa etapa irá depender da pergunta norteadora do
estudo.

140 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


Figura 1. Ilustração da realidade ambiental relacionada a flora local, feita
por uma criança de comunidade rural no entorno do Parque Nacional da
Chapada Diamantina, Bahia, Brasil. Fonte: Oliveira et al. (2013).

Incidência e gravidade do risco percebido

Uma forma de avaliar quantitativamente os riscos é por


meio de algumas técnicas proposta na literatura. Nesse tópico, dis-
cutiremos o Mapeamento de Risco Participativo (PRM, do inglês
Participatory Risk Mapping), método desenvolvido originalmente
por Smith et al. (2000) e depois adaptado por Baird et al. (2009),
utilizado para acessar a percepção de riscos ambientais. Em rela-
ção a outros métodos usados com essa mesma finalidade, o PRM
tem a vantagem de ser um método muito preciso na sua aplicação,
o que facilita a identificação e classificação dos fatores que causam
os riscos percebidos pelas pessoas (Silva et al. 2014). O PRM permi-
te, também, que o pesquisador avalie o potencial que determinado

COLETA E ANÁLISE DE DADOS EM PERCEPÇÃO DE RISCO AMBIENTAL 141


risco possui de impactar o modo de vida das pessoas (Quinn et al.
2003).
Em primeiro lugar, o pesquisador deverá pedir, por meio de
entrevistas, que as pessoas citem os riscos que elas percebem. Logo
depois, as pessoas são convidadas a ordenar e classificar os riscos
que elas citaram de acordo com o nível de impacto que eles causam
em suas vidas, o que Smith et al. (2000; 2001) chama de gravidade.
Uma grande vantagem do PRM é que ele permite que as próprias
pessoas decidam quais os riscos mais comprometem a sua qualidade
de vida (Baird et al. 2019; Smith et al. 2000; 2001), ou seja, o pesqui-
sador não influencia nas respostas dos informantes.
Como pesquisadores, devemos prestar atenção em duas situa-
ções que podem acontecer no momento em que as pessoas classifi-
carem o risco: diferentes pessoas podem usar termos distintos para
o mesmo risco (Smith et al. 2000; 2001); e a mesma pessoa pode citar
mais de um fator causador de determinado risco (Silva et al. 2014;
Silva et al. 2016b). Nesse caso, algumas perguntas, como “Em que
situação pode ocorrer esse risco?” e “Como esse risco pode ser evi-
tado?”, podem nos ajudar a obter respostas mais precisas, o que vai
facilitar no processo de posterior classificação dos riscos.
Posteriormente, o pesquisador deve medir a frequência com
que o risco é percebido e identificado, e os riscos percebidos como
mais graves, respectivamente: a Incidência do Risco (I) e o Índice
de Gravidade (S). Caso resolva adotar o modelo de Smith et al.
(2000) em seu estudo, o pesquisador deverá classificar os riscos de
acordo com a gravidade atribuída pelo informante, representando-
-os por números em uma escala decrescente (o número 1 represen-
tará o risco mais grave; o número 2, o segundo risco mais grave; e
assim por diante). Logo a seguir, as pessoas devem ser estimuladas

142 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


a apresentar maneiras de como resolver ou amenizar cada um dos
riscos citados e classificados (estratégias adaptativas). A proporção
de pessoas que identificaram uma fonte de risco corresponderá ao
Índice de Incidência (Ij), que será calculado pela equação Ij = nr / nj,
no qual nr representa o número de vezes que o risco foi citado, e nj
representa o número total de informantes. Os valores de I repre-
sentam a dimensão do risco no contexto da população em estudo, e
podem variar de 0 (menor frequência de citações) a 1 (todos os en-
trevistados citaram).
O Índice de Gravidade (S) representa o número e a classifi-
cação dos fatores de risco citados por cada pessoa, e seu valor pode
variar de 1 (mais grave) à 2 (menos grave). Sj é calculado pela equa-
ção Sj = 1 + (r – 1) / (n – 1), na qual r representa a classificação do
risco com base na ordem indicada pelo informante, e n representa
a quantidade de fatores de riscos citados pelas pessoas. Após con-
cluir o cálculo, teremos: o risco mais grave (r = 1) para Sj = 1; o risco
menos grave (r = n > 1) para Sj = 2; e os riscos remanescentes para
valores intermediários distribuídos igualmente. No quadro 3, apre-
sentamos um exemplo hipotético de cálculo de Índice de Severidade
(S) e Incidência do Risco (I).

COLETA E ANÁLISE DE DADOS EM PERCEPÇÃO DE RISCO AMBIENTAL 143


Quadro 3. Exemplo hipotético de cálculo de Índice de Severidade (S) e de Incidência
do Risco (I), conforme Smith et al. (2000).

Classificação Número de
Informantes Fatores de risco Sj
(r) fatores (n)
I 1 Escassez de 4 1
2 alimento 1,33
3 Falta de água 1,66
4 Pragas agrícolas 2
Falta de
saneamento
II 1 Falta de 2 1
2 saneamento 2
Falta de água
III 1 Escassez de 3 1
2 alimento 1,5
3 Falta de água 2
Falta de
saneamento
Índice de
Fatores de risco Incidência do Risco (I)
Severidade (S)
Escassez de alimento 1 0,66
Falta de água 1,61 1
Falta de saneamento 1,66 1
Pragas agrícolas 1,66 0,33

Após o cálculo das duas medidas, elas podem ser combina-


das para compor um terceiro índice: o Risco Total (R), representado
pela equação Rαβ = αI / βS, na qual α representa o valor do Índice de
Incidência, e β corresponde ao valor do Índice de Gravidade. É inte-
ressante notar que, caso α = 1 e β = 1, teremos a medida representada
pela fórmula R11 = I / S, que representa uma variância de 0 (incidên-
cia nula) à 1 (risco mais grave).

144 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


Caso opte pelo modelo de PRM modificado por Baird et al.
(2009), o cálculo do Índice de Incidência (Ii) seguirá os mesmos
passos do modelo original proposto por Smith et al. (2000), con-
forme vimos anteriormente. A diferença está no cálculo do Índice
de Gravidade (Sj), que deverá ser calculado em duas etapas.
Primeiramente, o pesquisador terá que obter o valor individual do
índice de severidade do risco (R ij), cuja fórmula é R ij = 1 – rij - 1 /
ni, na qual nj representa o número total de riscos (nj) mencionado
por cada informante (i) e r representa a classificação de cada risco
individualmente. Depois, todos os resultados encontrados indivi-
dualmente para R ij deverão ser somados e divididos pelo número
de vezes que o risco foi citado como o mais grave (Nj). Assim, ob-
temos o Índice de Gravidade, pela equação Sj = ∑ i - 1Nj = 1 - R ij / Nj.
Nesse modelo, Sj tem valores entre 0 (riscos que não são considera-
dos graves) e 1 (riscos graves).
Os resultados encontrados podem ser representados por
meio de um mapa de risco que é um gráfico que permite ao pes-
quisador determinar o espaço e a distribuição da incidência e da
severidade do risco. Para essa finalidade, o PRM conforme Baird
et al. (2009) é mais recomendado, uma vez que o tipo de classifica-
ção do Índice de Gravidade (Sj) utilizado nesse modelo, conforme
vimos no parágrafo anterior, facilita tanto o processo de elabora-
ção como de interpretação dos mapas de risco (Baird et al. 2009).
Como exemplo prático, apresentamos abaixo (Fig. 2) um modelo de
mapa de risco ambiental desenvolvido com dados obtidos em um
estudo realizado em uma comunidade rural do nordeste brasileiro
(Oliveira et al. 2017).

COLETA E ANÁLISE DE DADOS EM PERCEPÇÃO DE RISCO AMBIENTAL 145


Figura 2. Modelo de mapa de risco ambiental percebido (Siglas: RL – Religiosidade,
UE – Desemprego, DROUGHT – Seca/ inverno descontrolado/ falta de chuva/ pouca
chuva, IVC – insegurança/ violência/ crime, YPW – Jovens não querem trabalhar, WR
– Redução da fauna silvestre, WC – Clima quente, NFR – Redução da flora nativa, PLG
e pragas, e PNS – solo pobre em nutrientes). Fonte: Oliveira et al. 2017).

Na figura 2, observamos o seguinte: dois riscos considerados


pela população como graves, mas não como incidentes (falta de reli-
giosidade, desemprego); um risco percebido localmente como grave
e incidente (seca); riscos que não são considerados graves nem inci-
dentes (violência, redução da flora nativa, redução da vida selvagem,
pragas agrícolas); e, por fim, um risco percebido como incidente,
mas não como grave (pobreza de nutrientes do solo).
Em estudos etnobiológicos, a elaboração de mapas de riscos
pode ser muito útil, por exemplo, para avaliar os fatores de risco que
podem impactar o modo de vida de pessoas residentes em áreas de
conflitos socioambientais. Além disso, eles podem também auxiliar

146 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


na identificação de grupos ou estratos sociais que percebem deter-
minados riscos ambientais como mais severos (Silva et al. 2014).

Riqueza e compartilhamento de riscos percebidos

Originalmente, o Índice de Riqueza do Conhecimento (KWI,


do inglês Knowledge Wealth Index) e o Índice de Compartilhamento
de Conhecimento (KSI, do inglês Knowledge Sharing Index) sur-
giram como uma proposta de nova medida quantitativa simples,
focada nas pessoas e nos conhecimentos que elas possuem, e no com-
partilhamento e na singularidade das informações obtidas (Araújo
et al. 2012). Dessa forma, essas medidas permitem que o pesquisa-
dor: tome decisões e teste hipóteses sobre a distribuição do conhe-
cimento em uma comunidade, bem como estime a riqueza e o com-
partilhamento de informações entre as pessoas (Araújo et al. 2012),
considerando a semelhança entre pessoas dentro de um mesmo
grupo social (Oliveira et al. 2017). Abordaremos, nesse tópico, o uso
dos índices de riqueza e de compartilhamento de riscos percebidos,
adaptados por Oliveira et al. (2017) a partir do modelo proposto por
Araújo et al. (2014).
O KWI representa uma medida de distância, cujos valores
variam entre 0 e infinito. Quanto menor for o valor de KWI, maior
será a quantidade de riscos percebidos e de estratégias adaptativas
correspondentes citadas pelos informantes (Oliveira et al. 2017). Essa
relação é determinada pela equação KWIi = 1 / ∑Ji2, na qual Ji = Pi /
Ci. Pi: Pi representa a quantidade de riscos e estratégias adaptativas
citadas por cada participante; e Ci representa os riscos e estratégias
adaptativas totais citadas pela comunidade local. Para simplificar

COLETA E ANÁLISE DE DADOS EM PERCEPÇÃO DE RISCO AMBIENTAL 147


esses cálculos, recomendamos, conforme Araújo et al. (2014), que
mais de um informante seja entrevistado por cada casa, levando em
consideração que a família é a unidade amostral da pesquisa.
O KSI também é uma medida de distância, e os seus valores
podem variar entre 0 e 1. O índice é expresso pela equação KSI =
KWIi / KWImax, na qual KWIi representa o grau de compartilha-
mento de informações entre cada participante, e KWImax representa
o grau de compartilhamento de informações entre componentes da
comunidade local em questão (Araújo et al. 2012). O menor grau de
compartilhamento é representado pelo valor 1.
Para facilitar a análise dos dados obtidos, recomendamos que
eles sejam organizados em categorias. Como exemplo, apresenta-
mos o estudo de Oliveira et al. (2017), que optaram por organizar
seus dados em duas categorias: percepção de risco ambiental, que
incluiu os riscos percebidos relacionados às mudanças ambientais; e
percepção de risco sociocultural, que englobou os riscos percebidos
relacionados aos impactos das mudanças ambientais no modo de
vida das pessoas (Quadro 4).

148 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


Quadro 4. Formas de categorização de riscos percebidos. Fonte: Oliveira et al. (2017)

Riscos percebidos Número de


Categorias Subcategorias citações
Percepção de risco Fenômenos climáticos 54
ambiental Seca/ falta de chuva/ inverno 27
(n = 7) descontrolado/ longo verão 30
Clima mais quente 2
Abundância populacional (fauna/
flora)
Redução da flora nativa
Crescimento da flora nativa
Redução da vida selvagem
Qualidade do solo
Solo pobre em nutrientes
Agricultura
Pragas
Percepção de risco Sociocultural 9
sociocultural Insegurança/ violência/ crime
(n = 5) Jovens desmotivados para
trabalhar no campo
Saúde debilitada
Desemprego
Religiosidade (falta de fé, falta de
compromisso com a igreja)

No estudo exemplificado acima, Oliveira et al. (2017) busca-


ram avaliar a relação entre o grau de religiosidade/ espiritualida-
de de uma população rural do Nordeste Brasileiro e a riqueza e o
compartilhamento de riscos percebidos localmente, e as estratégias
adaptativas desenvolvidas. Para testar essa relação, os autores utili-
zaram modelos lineares generalizados (GLM, do inglês Generalized

COLETA E ANÁLISE DE DADOS EM PERCEPÇÃO DE RISCO AMBIENTAL 149


Linear Models) com distribuição gaussiana, onde os valores obtidos
referentes aos graus de religiosidade/ espiritualidade foram utiliza-
dos como variáveis explicativas e as medidas do índice de rique-
za e do índice de compartilhamento de risco percebido – e das es-
tratégias adaptativas – foram utilizados como variáveis respostas.
Como resultado, os autores não encontraram uma relação signifi-
cativa entre o grau de religiosidade/ espiritualidade e a riqueza e o
compartilhamento de risco, e com estratégias adaptativas (Oliveira
et al. 2017).
A mesma metodologia utilizada por Oliveira et al. (2017) pode
ser aplicada em qualquer estudo etnobiológico no qual se busque
avaliar a relação entre uma variável explicativa qualquer (grau de es-
colaridade, por exemplo) e a riqueza e o compartilhamento de riscos
percebidos localmente. Dessa forma, o uso do KWI e do KSI em
estudos etnobiológicos pode ser uma ferramenta bastante útil para
se obter informações sobre como a riqueza e o compartilhamento
de informações – no nosso caso, percepção de risco – surgem entre
famílias, comunidades e/ ou grupos sociais diversos (Araújo et al.
2012).

Agradecimentos

Agradecemos a Springer pela permissão concedida para re-


produção deste texto, publicado no livro Methods and Techniques
in Ethnobiology and Ethnoecology (2019), (Número da Licença:
5032020472397).

150 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


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152 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


MÉTODO DE AVALIAÇÃO
ETNONUTRICIONAL RÁPIDA PARA
AVALIAR A BIODIVERSIDADE
DE PLANTAS ALIMENTÍCIAS EM
INQUÉRITOS ALIMENTARES

Michelle Cristine Medeiros Jacob, Ivanilda Soares Feitosa


(in memoriam), Joana Yasmin Melo de Araújo,
Natalia Araújo do Nascimento Batista, Temóteo Luiz Lima da Silva,
Virgínia Williane de Lima Motta, Dirce Maria Lobo Marchioni
e Ulysses Paulino de Albuquerque

A té então, as avaliações do consumo alimentar abordam a cul-


tura local e a biodiversidade de modo limitado, com impli-
cações negativas para avaliações dietéticas (Fao 2017; Fao 2018). A
imprecisão no mapeamento da biodiversidade alimentar durante le-
vantamentos dietéticos, por exemplo, pode subestimar a adequação
de micronutrientes na dieta de determinada população. No caso de
plantas alimentícias não convencionais, que frequentemente são ig-
noradas em inquéritos dietéticos, Powell et al. (2013a) argumentam
que, embora essas plantas contribuam pouco para a energia total
da dieta, elas são fontes de vários grupos alimentícios, contendo

MÉTODO DE AVALIAÇÃO ETNONUTRICIONAL RÁPIDA PARA AVALIAR A BIODIVERSIDADE


DE PLANTAS ALIMENTÍCIAS EM INQUÉRITOS ALIMENTARES 153
micronutrientes de interesse nutricional global, incluindo ferro,
zinco, vitamina A e folato; veja também Powell et al. (2013b). De
forma similar, as técnicas de processamento local podem afetar a
composição nutricional da dieta, visto que alteram a biodisponibi-
lidade de certos nutrientes. O processamento alcalino tradicional
do milho (Zea mays L.), por exemplo, melhora a qualidade nutri-
cional desse alimento, aumentando as quantidades de aminoáci-
dos essenciais disponíveis e os precursores da niacina e da própria
niacina (Katz et al. 1974; Dezendorf 2013). Esse processo culinário
pode explicar a história da baixa incidência de pelagra entre popu-
lações nativas das Américas, conforme argumentado por Katz et al.
(1974). Esses casos ilustram como contextos culturais e ambientais
se refletem nas dietas, com implicações nutricionais concretas. Tais
contextos, portanto, não devem ser desconsiderados em avaliações
dietéticas.
Visto que a etnografia nos ajuda a desenvolver uma com-
preensão contextual das pessoas e de sua cultura, ela também pode
nos ajudar a levantar dados dietéticos mais robustos na pesquisa em
alimentação e nutrição. Neste trabalho, nos referimos ao diagnósti-
co etnográfico com foco na alimentação e nutrição como Avaliação
Etnonutricional Rápida (AER). A etnonutrição se refere ao estudo
das dietas no contexto dos sistemas alimentares de diferentes povos
e culturas; veja também Messer (1984), Contreras (2012) e Kuhnlein
(2014). Esse campo de estudo abarca categorias nativas ou locais
utilizadas para classificar alimentos (Shell-Duncan & McDade
2005), e também considera a disponibilidade de alimentos biodi-
versos (Kuhnlein 1991), técnicas culinárias locais (Luo et al. 2019),
sazonalidade (Andrea et al. 2005) e percepções culturais (Douglas
1972) relacionadas à dieta que resultem em desfechos nutricionais.

154 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


A aplicação desse método, requer a colaboração de várias ciências,
incluindo a nutrição, etnobiologia e antropologia (Nabhan 2014;
Powell et al. 2015). Alguns manuais de avaliações dietéticas já des-
tacam os limites transculturais dos métodos atuais disponíveis (Fao
2018), sobretudo para avaliação de alimentos biodiversos, dentre eles
as plantas alimentícias biodiversas (PAB) (Fao 2017). Definimos tais
plantas como a diversidade das espécies de uso extensivo (por exem-
plo, feijão, arroz e milho), bem como espécies não convencionais,
geralmente nativas, muitas vezes negligenciadas e de uso cultural
limitado. Ainda, consideramos as variedades nativas e crioulas de
plantas convencionais cultivadas localmente como plantas alimen-
tícias não convencionais. É crucial destacar que a biodiversidade en-
globa a diversidade cultural, pois a percepção, o reconhecimento e o
uso dos recursos naturais variam com a cultura (Lévi-Strauss 2011).
Portanto, há um nexo entre recursos biológicos e cultura que nossa
ferramenta pretende identificar.
A proposta de AER que apresentamos aqui é uma aplicação
prática, de curto prazo, passo a passo, para abordar variáveis
culturais e ambientais em avaliações dietéticas. A AER é inspirada
na ideia de Avaliação Etnográfica Rápida de Bentley et al. (1988),
um método proposto para reconhecer práticas culturais e variáveis
ambientais previamente à implementação de programas de atenção
primária à saúde nos países em desenvolvimento. O conceito de et-
nografia rápida também aparece na literatura sob o rótulo de etno-
grafia focada, uma abordagem de curto prazo com foco em questões
locais específicas; veja Knoblauch (2005).1 Utilizando a etnogra-

1 Caso o objetivo da pesquisa seja desenvolver uma análise minuciosa dos sistemas
socioculturais locais, uma etnografia convencional de vários meses ou anos pode

MÉTODO DE AVALIAÇÃO ETNONUTRICIONAL RÁPIDA PARA AVALIAR A BIODIVERSIDADE


DE PLANTAS ALIMENTÍCIAS EM INQUÉRITOS ALIMENTARES 155
fia focada, o curto período no campo é compensado pela intensa
coleta de dados pré-campo. Neste artigo, descrevemos o método de
AER, que aplica fatores etnonutricionais em avaliações dietéticas,
considerando o bioma da Caatinga brasileira e sua biodiversidade
alimentar.

Como testamos nosso método em campo?

Dividimos a AER em duas etapas principais: planejamento


pré-campo e o trabalho de campo.
Na primeira etapa, projetamos o protótipo da avaliação do
consumo alimentar. Após revisão da literatura específica sobre in-
quéritos alimentares, escolhemos o método Recordatório 24 horas
(R24h) para desenvolver nosso estudo porque ele tem o maior po-
tencial de adaptabilidade na captura de dados sobre alimentos bio-
diversos em contextos transculturais (Fao 2017). O R24h é um
método de avaliação direta (ou seja, avaliação feita diretamente com
o indivíduo) e retrospectiva (i.e., pretende avaliar o consumo que
já aconteceu), onde os entrevistados são solicitados por um avalia-
dor para lembrar e relatar todos os alimentos e bebidas consumi-
das nas 24 horas anteriores à entrevista (Fao 2018). Para reduzir o
viés de memória, realizamos as entrevistas com auxílio do método
Multiple-Pass (Moshfegh et al. 2008), conforme recomendado pelos
protocolos internacionais (Fao 2018). Para melhor registrar as PAB
locais, adaptamos o R24h ao adicionar duas novas colunas: uma
para identificar com precisão o alimento biodiverso mencionado

ser necessária para a coleta dos dados necessários.

156 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


pela entrevistada e outra para associar a planta com seu código no
guia fotográfico2 com imagens das plantas locais. Para garantir a
documentação de padrões alimentares (ex.:, consideração da sazo-
nalidade), combinamos a aplicação do R24h com o Questionário
de Propensão Alimentar (QPA). O QPA é um questionário de fre-
quência, bem como um método direto retrospectivo, que serve
para avaliar a frequência com que os alimentos são consumidos du-
rante determinado período (Fao 2018). O questionário inclui uma
lista fechada de alimentos e uma seção de categorias de frequência.
Elaboramos ainda um guia básico para grupo focal considerando
cinco fatores de etnonutrição3: disponibilidade de alimentos biodi-
versos, usos culinários, classificação de alimentos, percepção sobre
os alimentos e sazonalidade.
Treinamos nossa equipe para usar esses questionários e o
guia fotográfico. Fizemos nossa seleção de informantes com apoio
prévio do líder comunitário local. Nosso critério para seleção de in-
formantes foi que essas pessoas deveriam ser (1) mulheres; (2) reco-
nhecidas na comunidade por sua experiência com plantas alimenta-
res biodiversas. Trabalhamos com mulheres conscientes do fato de
que, nesta comunidade, elas são responsáveis pela coleta ou cultivo
da maioria das plantas alimentícias consumidas por suas famílias,

2 Elaboramos o guia considerando o documento da FAO Guidelines on Assessing


Biodiverse Foods in Dietary Intake Survey. Numa publicação futura, pretendemos
detalhar o processo de desenvolvimento do guia, incluindo a elaboração da lista de
plantas alimentícias biodiversas. A versão final do nosso material está disponível
aqui: https://bit.ly/34D9n10
3 Para identificar tais fatores, realizamos uma ampla revisão de literatura em bases
de dados de pesquisa acadêmica (Web of Science, Scopus e Google Scholar). Você
pode verificar os artigos que revisamos no arquivo suplementar 1 de Jacob et al.
(2020b).

MÉTODO DE AVALIAÇÃO ETNONUTRICIONAL RÁPIDA PARA AVALIAR A BIODIVERSIDADE


DE PLANTAS ALIMENTÍCIAS EM INQUÉRITOS ALIMENTARES 157
além de terem um papel predominante nas tarefas de armazena-
mento e processamento das espécies no domicílio.
Na segunda etapa, nosso objetivo foi testar todo o nosso pro-
tótipo de avaliação dietética no campo, calibrando os instrumentos
e nossos pressupostos. Testamos nosso AER na comunidade rural
Sítio Carão (Fig. 1).

Figura 1. Localização da área da pesquisa em campo, Estado de Pernambuco, nor-


deste do Brasil.

O Carão está localizado no município de Altinho, na região


Agreste Central do estado de Pernambuco, parte do semiárido da
Caatinga no nordeste do Brasil. Essa comunidade está localiza-
da no planalto da Borborema brasileira, com altitudes que variam
de 650 a 1000 metros. Vários estudos etnobotânicos mencionam a

158 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


comunidade Sítio Carão por seu amplo conhecimento da biodiver-
sidade na Caatinga (ex.: Santos et al. 2009; Nascimento et al. 2011;
Nascimento et al. 2012; Cruz et al. 2013). Agricultura de subsistên-
cia, pecuária e extração de recursos vegetais são as principais ativi-
dades econômicas da região (Nascimento et al. 2013). A vegetação
da Caatinga (floresta sazonal seca) é dominante na área. O clima é
classificado como semiárido quente. A região apresenta um inverno
curto entre fevereiro e abril, caracterizado por chuvas e uma longa
estação seca entre maio e janeiro (Lins Neto et al. 2013). Segundo
dados da Unidade Básica de Saúde da comunidade, a população es-
timada do Carão, em fevereiro de 2020, era de 140 pessoas, sendo
105 adultos, distribuídos entre 55 domicílios.
Durante a seleção de informantes, na etapa anterior, o líder
comunitário nos forneceu os nomes de seis mulheres, com idades
entre 57 e 82 anos. Com a ajuda delas, nosso objetivo era de pré-a-
valiar nossas ferramentas de pesquisa, sendo a recomendação para
o pré-teste a de usar 10% da amostra (Silva et al. 2019). Com um
universo de pesquisa de 46 mulheres, ao entrevistar seis consegui-
mos abranger 13% do total. Obtivemos consentimento informado
dos participantes com base em diretrizes éticas para pesquisas en-
volvendo seres humanos. Obtivemos aprovação para realizar a pes-
quisa junto ao do Comitê de Ética em Pesquisa e, ainda, registramos
o estudo no Sistema Nacional de Gestão do Patrimônio Genético e
do Conhecimento Tradicional Associado.
Formamos uma equipe de trabalho de campo com um et-
nobiólogo com relacionamento prévio com a comunidade (TLLS,
masculino), uma estudante de Nutrição (JYAM, feminino), uma
nutricionista com mestrado em ciências sociais (NANB, feminino)
e outra nutricionista com doutorado em ciências sociais (MCMJ,

MÉTODO DE AVALIAÇÃO ETNONUTRICIONAL RÁPIDA PARA AVALIAR A BIODIVERSIDADE


DE PLANTAS ALIMENTÍCIAS EM INQUÉRITOS ALIMENTARES 159
feminino). Realizamos a etapa de trabalho de campo em fevereiro
de 2020. Aplicamos uma combinação de técnicas de coleta de dados
para enriquecer as informações obtidas: observação direta, grupo
focal e avaliações do consumo alimentar individuais. Ficamos alo-
jados na casa de uma família na comunidade para melhor entender
as dinâmicas locais, prática que é um aspecto importante da obser-
vação etnográfica (Campos et al. 2019). Para executar o grupo focal,
utilizamos um guia que desenvolvemos considerando fatores etno-
nutricionais que surgiram na revisão da literatura e, ainda, por con-
siderar as dimensões do “espaço social alimentar” delineadas por
Poulain & Proença (2003). Quatro pessoas conduziram esse grupo
focal. MCMJ codificou manualmente os dados da observação direta
e do grupo focal utilizando a análise de conteúdo (Ritchie & Spencer
2002), considerando as principais categorias a priori: disponibilida-
de do alimento biodiverso, usos culinários, classificação (ex.: ali-
mento, medicamento, ornamental), percepção alimentar e sazonali-
dade. Aplicamos os Critérios Consolidados para Relatos de Pesquisa
Qualitativa (COREQ, em inglês) (Tong et al. 2007) para compor um
relato de pesquisa abrangente.
Ao final do grupo focal, agendamos uma entrevista indivi-
dual com cada mulher da comunidade. Durante a entrevista nos
domicílios, aplicamos o Recordatório 24h e o Questionário de
Propensão Alimentar (QPA) (Subar et al. 2006). Cada entrevista
durou em média 30 minutos. Tínhamos alguns objetivos durante
essas sessões: testar a adaptação do R24h; avaliar o uso do QPA;
testar a qualidade do nosso guia fotográfico, considerando o reco-
nhecimento das imagens, o uso dos nomes vernaculares e a identifi-
cação de espécies ausentes. Quando necessário, fizemos novas fotos
para incluir no guia.

160 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


Ao final do estudo de campo, realizamos uma reunião com
nossa equipe para analisar os principais ajustes necessários no pro-
tótipo. Para informações mais detalhadas sobre os estágios do AER
ver Jacob et al. (2020b).

Síntese do método de avaliação etnonutricional rápida

A Figura 2 resume as atividades das duas principais etapas


da AER.

Figura 2. Delineamento da Avaliação Etnonutricional Rápida (AER). Devido ao cur-


to período em campo (etapa 2), esse método é adequado em contextos em que as
restrições de tempo e orçamento exigem abordagem metodológica rápida. Fonte:
autoria própria.

Na Tab. 1, dispomos uma proposta de roteiro para grupo focal


que abrange aspectos etnonutricionais. Como tivemos acesso a uma
quantidade substancial de informações publicadas sobre a comu-
nidade do Carão antes da fase de campo, incluímos em nosso guia

MÉTODO DE AVALIAÇÃO ETNONUTRICIONAL RÁPIDA PARA AVALIAR A BIODIVERSIDADE


DE PLANTAS ALIMENTÍCIAS EM INQUÉRITOS ALIMENTARES 161
questões específicas sobre leguminosas (família botânica Fabaceae)
porque percebemos que tais espécies alimentícias eram centrais nas
dietas desta região (por exemplo, alimentos emergenciais). Por isso,
dentre as perguntas fundamentais, incluímos questões específicas
sobre essas espécies.

Tabela 1. Proposta de roteiro para grupos focais. Em nosso estudo, as plantas ali-
mentícias biodiversas foram o foco, conforme apresentado na questão número dois,
a seguir. Este guia pode ser adaptado ao propósito específico de cada pesquisa (por
exemplo, sobre animais silvestres, fungos comestíveis etc.). As informações entre
colchetes são fornecidas para orientar quem está entrevistando.

Tipo de pergunta Questões


1. Apresente-se dizendo seu nome e qualquer
Abertura
informação sobre você que considere importante.
2. Vocês conhecem alguma dessas plantas?
[Entrevistador cita nomes vernaculares ou ilustra,
com auxílio de imagens, plantas alimentícias locais
mencionadas na revisão de literatura ou pela
comunidade na observação direta.]
Introdução
O motivo que nos leva a fazer este estudo é o fato de
acreditarmos que essas plantas podem contribuir
muito para a qualidade da sua alimentação. Para isso,
queremos saber melhor como vocês se alimentam
nesta região. Esperamos contar com o apoio de vocês!

162 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


Tipo de pergunta Questões
3. Gostaria de começar conhecendo a alimentação de
um dia completo aqui na comunidade. Por exemplo,
qual é a primeira refeição do dia? [Perguntar qual
o nome, horário, local e os principais alimentos
consumidos. Prosseguir com o questionamento até
que cada refeição do dia tenha sido descrita.]
4. Quem é responsável pela preparação da comida da
família?
5. Na opinião de vocês, quais são as plantas
comestíveis mais importantes da comunidade?
Chave
6. De onde vêm essas plantas? Elas são cultivadas por
você, coletadas ou compradas?
7. Há algum prato típico aqui na comunidade? Caso
haja, qual?
8. Há algum prato que só é produzido em uma época
ou festival específico? Caso haja, qual?
9. Comparando as diferentes estações [seca e
chuvosa, no caso desta comunidade], qual é a
principal mudança na sua alimentação de uma
estação para outra?
10. Estamos apenas começando esta pesquisa
Final em sua comunidade. Você tem algum conselho ou
sugestão para nos oferecer?

Detalhamos os ajustes que fizemos em nosso protótipo e seus


prováveis impactos na Fig. 3.

MÉTODO DE AVALIAÇÃO ETNONUTRICIONAL RÁPIDA PARA AVALIAR A BIODIVERSIDADE


DE PLANTAS ALIMENTÍCIAS EM INQUÉRITOS ALIMENTARES 163
Figura 3. Cinco fatores etnonutricionais para serem analisados na AER. A figura tam-
bém justifica porque esses fatores podem melhorar a AER, os prováveis impactos
de desconsiderá-los na avaliação dietética. A análise de tais fatores pode revelar
pressupostos dietéticos, arraigados em nossas experiências pessoais ou culturais,
que podem conduzir a conclusões erradas em inquéritos alimentares, como mostra
a terceira seção da figura. Fonte: autoria própria.

A análise dos fatores bioculturais relacionados à dieta nos


permite produzir uma avaliação dietética mais precisa. Assim, o
primeiro fator que analisamos foi a disponibilidade de alimentos
biodiversos. Ao mapear os alimentos biodiversos disponíveis em
nosso cenário de estudo, partimos de uma lista de 135 plantas no
Carão e finalizamos com uma nova lista de 156 plantas. As novas
plantas adicionadas foram principalmente variedades agrícolas

164 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


locais de plantas convencionais (por exemplo, feijão, mandioca, la-
ranja, manga e milho). Novas espécies de plantas não convencio-
nais não foram mencionadas em campo.4 Ademais, com base no re-
torno recebido durante a pesquisa em campo, alteramos algumas
fotos para destacar as partes utilizadas pelas informantes para iden-
tificação, como flores e frutas. Atualizamos os nomes vernacula-
res para nomes utilizados na comunidade. Por exemplo, quando
perguntamos se as pessoas consumiam cumaru (Amburana cea-
rensis (Allemão) A.C.Sm.), as mulheres nos disseram que não, pois
reconheceram localmente esta espécie como amburana-açu. Esses
ajustes nas nomenclaturas vernaculares foram mais significativos
em variedades agrícolas do que em espécies de plantas. Por exem-
plo, a banana-da-terra (Musa acuminata Colla x Musa balbisiana
Colla “terra” (AAB)), uma espécie de banana relatada na Pesquisa
de Orçamentos Familiares (POF), é conhecida localmente não como
banana-da-terra, mas como banana-comprida. Após a AER, o guia
fotográfico ficou mais preciso (i.e., qualidade das fotos, variedades
de alimentos e etnotaxonomia adequada) para proceder à avaliação
dietética. Assim, concluímos que a ausência de identificação e aná-
lise adequada da biodiversidade local pode conduzir à imprecisão
das espécies e, consequentemente, pode levar a avaliações dietéticas
errôneas.
O segundo fator que analisamos foram os usos culinários,
que nos permitem reconhecer as técnicas de processamento locais
aplicadas aos alimentos. Percebemos em campo que a comunidade

4 Na verdade, com base em experiências prévias de campo, tivemos a impressão que


a comunidade pode estar diminuindo o consumo de plantas silvestres e aumentan-
do o consumo de alimentos processados industrialmente.

MÉTODO DE AVALIAÇÃO ETNONUTRICIONAL RÁPIDA PARA AVALIAR A BIODIVERSIDADE


DE PLANTAS ALIMENTÍCIAS EM INQUÉRITOS ALIMENTARES 165
consome uma planta considerada tóxica em estudos de composição
química, a mucunã (Dioclea grandiflora Mart. Ex Benth). As semen-
tes de mucunã contêm componentes de baixo peso molecular que
potencialmente causam sua toxicidade e que podem ser eliminados
pelo procedimento de diálise exaustiva (Grant et al. 1986; Jacob et
al. 2020a). Assim, no Carão, após realizar o processo culinário espe-
cífico, lavando várias vezes a farinha obtida das sementes da planta
(os moradores usam a expressão lavar em várias águas), prepara-
-se uma espécie de cuscuz. É pertinente observar ainda que plantas
que aparentemente poderiam fornecer uma contribuição nutricio-
nal limitada, como algumas espécies de cactos, após processamen-
to viram iguarias locais. Por exemplo, com o facheiro (Pilosocereus
pachycladus sub. pernambucoensis (Ritter) Zappi), açúcar bruto e
uma variedade de especiarias, prepara-se no Carão um doce muito
apreciado, o doce de facheiro. Neste caso, temos uma planta que ini-
cialmente é vista como um alimento emergencial, mas que se trans-
forma em um alimento festivo, feito em ocasiões especiais, com so-
fisticadas técnicas de colheita e cozimento (o tempo de cozimento
chega até 48 horas). Portanto, concluímos que ignorar técnicas culi-
nárias locais devido ao foco limitado no alimento, pode nos levar
a desconsiderar fatores que podem modificar a matriz alimentar,
a biodisponibilidade de certos nutrientes e toxinas e até mesmo a
apreciação de um alimento local. Nesse sentido, é fundamental que
o levantamento dietético observe as partes consumidas e as receitas
vinculadas aos alimentos. No nosso caso, adicionamos um campo
específico ao nosso R24h para coletar receitas de pratos locais (con-
sideramos como receitas aquelas preparações com três ou mais in-
gredientes). Nessa seção do R24h, reunimos os ingredientes utili-
zados (com a parte específica consumida), a quantidade utilizada e

166 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


as técnicas de processamento aplicadas na receita (aquecer, torrar,
moer etc.).
O terceiro fator que analisamos foi a classificação das espécies,
ou seja, a maneira como as pessoas selecionam as plantas utilizá-
veis (por exemplo, para fins alimentícios, medicinais, ornamentais).
Para as pessoas do Carão, plantas como capim-santo (Cymbopogon
citratus (DC.) Stapf), jatobá (Hymenaea courbaril L.) e quixaba
(Sideroxylon obtusifolium (Roem. & Schult.) T.D.Penn.) funcionam
simultaneamente como alimento e medicamento. Podemos dizer
que existe um continuum alimento-medicamento. As pessoas da
comunidade consomem o chá dessas plantas no café da manhã e
no jantar, mesmo que não estejam doentes. Esse sistema de classi-
ficação, que não funciona com base em vieses cognitivos binários,
não é exclusivo da comunidade Carão; veja, por exemplo, o trabalho
de Ferreira-Júnior et al. (2018). Em campo, nosso primeiro instin-
to foi excluir essas espécies da lista de plantas alimentícias devido
ao nosso background cultural. Todavia, confrontando esse sistema
êmico cognitivo não binário, reconhecemos nossas premissas como
equivocadas e decidimos adaptar o QPA para abordar o continuum.
Mantivemos as plantas e adicionamos uma nova coluna para regis-
trar todas as plantas com essa particularidade (uso medicinal, sim
ou não). Esse parâmetro nos permitirá identificar plantas que atuam
simultaneamente como alimento e medicamento. Além disso, evi-
tará interpretações dietéticas indesejáveis que resultam da exclusão
de plantas que podem ter um impacto nutricional significativo na
dieta.
O quarto aspecto que analisamos foi a percepção alimen-
tar, que pode nos ajudar a entender os fatores culturais que têm
potencial de modificar os alimentos relatados durante inquéritos

MÉTODO DE AVALIAÇÃO ETNONUTRICIONAL RÁPIDA PARA AVALIAR A BIODIVERSIDADE


DE PLANTAS ALIMENTÍCIAS EM INQUÉRITOS ALIMENTARES 167
dietéticos. Em nosso trabalho de campo, vimos que perguntas de
sondagem sobre plantas alimentícias não convencionais eram ne-
cessárias para que o tópico surgisse. As pessoas tendiam a não men-
cionar essas plantas caso não fossem provocadas. Quando o assunto
vinha à tona, a tendência era a de minimizar o papel dessas espé-
cies nas dietas, dizendo que elas são “comida de criança”, “comida
do passado” e “comida de quando éramos pobres”. É significativo
mencionar que essas plantas e os alimentos industrializados tinham
conotações opostas. Os últimos eram descritos como sinal de mo-
dernidade e praticidade. Uma das entrevistadas, por exemplo, disse:
“Sempre gosto de ter [em casa], porque tem hora que chega uma
pessoa e [...] o refrigerante fica mais bonito”. Em quase todas as re-
sidências que visitamos, recebíamos um copo de refrigerante como
sinal de hospitalidade, mesmo que houvesse comidas locais (como
frutas frescas). Concluímos que tais qualidades simbólicas atribuí-
das aos alimentos podem levar, consciente ou inconscientemente, à
omissão ou a um relato insuficiente ou excessivo de alguns alimen-
tos consumidos em avaliações dietéticas. Reconhecer essas percep-
ções locais sobre os alimentos pode nos ajudar a elaborar questões
de sondagem mais específicas para calibrar nossas pesquisas.
O quinto aspecto é a sazonalidade. A análise desse fator nos
permite reconhecer os elementos ambientais que podem levar a va-
riações na dieta. Na pesquisa em campo, por exemplo, encontramos
uma variação considerável entre os recursos alimentares consumi-
dos nas estações seca e chuvosa. A comunidade consome quiabo,
alface, abóbora e milho apenas na estação chuvosa. Nesse período,
essas espécies aparecem quase que diariamente nos cardápios. Além
disso, como em muitas sociedades agrícolas, os ciclos sazonais são
marcados por festividades culturais. É o caso das festas de São João

168 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


e São Pedro no Brasil, que marcam a época da colheita do milho.
Na época dessas festividades, o milho e seus ingredientes deriva-
dos são consumidos em bolos, mingaus e cozidos. Uma investigação
dietética desenvolvida em determinado período do ano e sem ferra-
mentas adequadas que ampliem a visão do pesquisador, fornecerá
uma perspectiva reduzida dos padrões alimentares locais. Durante
a AER, utilizamos o QPA para capturar essa variação. Decidimos
adicionar outra coluna extra no QPA (uso sazonal, sim ou não), para
rapidamente identificar o consumo sazonal durante as entrevistas e
calcular o consumo proporcional com precisão durante a avaliação
dietética a posteriori.
Assim, a AER pode revelar pressuposições dietéticas que se
enraízam em nossa experiência pessoal e cultural e que podem levar
em síntese a dois grandes erros em inquéritos alimentares: primeiro,
super ou subestimar o consumo energético, macro e micronutrien-
tes, compostos bioativos e fatores antinutricionais; segundo, ignorar
sub ou super-relato de alguns alimentos. A capacidade de identificar
pontos cegos relacionados à cultura local nesses inquéritos é a prin-
cipal característica do AER. A vantagem primordial desse método
é o desenvolvimento de um diagnóstico etnonutricional em curto
prazo e com baixo orçamento. Já sua principal desvantagem é o de-
safio de reunir todas as informações necessárias em um curto pe-
ríodo em campo. Descobrimos que combinar técnicas de coleta de
dados (i.e., triangulação de dados) nos permitiu enriquecer a pro-
fundidade e a qualidade das informações obtidas em campo. Além
disso, foi fundamental formar uma equipe multidisciplinar para
projetar e desenvolver um AER coerente.

MÉTODO DE AVALIAÇÃO ETNONUTRICIONAL RÁPIDA PARA AVALIAR A BIODIVERSIDADE


DE PLANTAS ALIMENTÍCIAS EM INQUÉRITOS ALIMENTARES 169
Outras considerações sobre o método rápido

Até onde sabemos, este é o primeiro estudo a propor um


método para reunir dados úteis sobre etnonutrição, considerando
as limitações de tempo e orçamento. A AER é uma técnica de proto-
tipagem valiosa para calibrar intervenções nutricionais e pesquisas
de consumo alimentar a partir de uma perspectiva biocultural.
Na maioria dos casos, a pesquisa completa de avaliação rápida
leva entre dois e seis meses (Bentley et al. 1988). Como referimos,
trabalhamos por seis meses na AER. Nesse intervalo, a pesquisa em
campo abrangeu somente uma semana. O tempo gasto exato irá
variar conforme as respostas às seguintes questões: Quão distantes
estamos culturalmente do grupo que estamos estudando (Creswell
1998)? Existe uma relação anterior construída com a comunidade
(Flick 2007)? Que dados temos disponíveis sobre essa comunidade
no estágio de pré-campo (Bentley et al. 1988)? Em nosso caso, pas-
samos pouco tempo no estágio de campo por três motivos princi-
pais. Primeiro, a comunidade que estudamos é uma comunidade
rural pertencente à mesma região brasileira onde vivemos. Segundo,
nossa equipe de pesquisa tinha um relacionamento prévio com ela.
Terceiro, tínhamos uma boa fonte de informações sobre a comuni-
dade antes de ir a campo: seis estudos de etnobiologia com foco em
plantas alimentícias foram realizados anteriormente. Os estudos de
etnobiologia podem ser uma fonte de dados valiosa sobre diversos
recursos alimentares em culturas locais e ambientes ecológicos es-
pecíficos (Nabhan 2014). No nosso caso, em termos de custo, a uti-
lização deste método teve um impacto positivo e significativo no
nosso orçamento. Considerando que manter uma equipe de quatro
pessoas em campo nos custaria cerca de 2 USD por pessoa/hora

170 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


(fevereiro de 2020), a pesquisa teria sido impraticável se precisásse-
mos passar muito tempo em campo. Outro fator é o tempo: manter
uma equipe com o perfil multidisciplinar específico desejável por
um longo período em campo é um verdadeiro desafio.
Os produtos de uma AER incluem novos pressupostos sobre
as dietas locais e a calibração de ferramentas de inquérito alimentar
com base na cultura local. Nos resultados, mostramos como esses
produtos podem prevenir erros durante a avaliação dietética quan-
titativa. Aqui, ressaltamos e discutimos as duas classes principais de
erros.
Primeiro tipo de erro: a avaliação incorreta de nutrientes ou
fatores antinutricionais consumidos ao desconsiderar alimentos
locais e seus usos culinários. Para incluir tais alimentos em nossa
avaliação dietética, foi necessário realizar uma identificação ali-
mentar precisa e confiável das espécies e variedades disponíveis
localmente. A zona agroecológica, a sazonalidade e a diversidade
genética produzem diferenças significativas na composição dos ali-
mentos, um fato frequentemente ignorado nos inquéritos dietéticos
(Hunter et al. 2019). Para realizar uma análise nutricional confiável,
os pesquisadores têm a responsabilidade de identificar e nomear as
plantas de acordo com os padrões botânicos definidos - veja Nesbitt
et al. (2010) que resumem boas práticas de identificação de plantas.
Além disso, desconsiderar as técnicas de processamento de alimen-
tos também pode ter um efeito semelhante, por exemplo, levando
a superestimação de fatores antinutricionais ou compostos tóxicos.
Luo et al. (2019), estudando dietas tradicionais do povo Hakka na
região de Fujian, China, relataram que informantes Hakka consu-
miram algumas plantas consideradas venenosas na análise de com-
posição, como a Hemerocallis citrina Baroni. A flor fresca dessa

MÉTODO DE AVALIAÇÃO ETNONUTRICIONAL RÁPIDA PARA AVALIAR A BIODIVERSIDADE


DE PLANTAS ALIMENTÍCIAS EM INQUÉRITOS ALIMENTARES 171
planta contém colchicina, um composto venenoso. Durante a ava-
liação etnográfica, os pesquisadores descobriram que o povo Hakka
usa uma técnica culinária específica que torna a planta comestível.
Tal exemplo serve para nos lembrar de que as técnicas de processa-
mento têm efeitos biofísicos e bioquímicos nos alimentos. Esses fa-
tores não podem ser ignorados em pesquisas de avaliação dietética.
Assim, não podemos avaliar os recursos alimentares se não sabe-
mos como as pessoas os consomem em contextos locais - um bom
exemplo que considera como o processamento térmico de alimentos
afeta a composição energética é relatado por Carmody et al. (2011).
Outra forma de superestimar ou subestimar o consumo é desconsi-
derar que os pratos e utensílios também influenciam a quantidade
de comida ingerida. Por exemplo, em algumas sociedades tradicio-
nais, os pratos individuais são raros. As pessoas geralmente comem
de um prato comum, e gênero, idade e prestígio ditam a ordem e a
quantidade de comida ingerida por cada comensal (Garine 1972).
Segundo tipo de erro: a avaliação equivocada dos alimentos
reportados no inquérito, por desconsiderar principalmente as per-
cepções culturais sobre os alimentos e a sazonalidade. Os protoco-
los devem levar em conta que comunidades diferentes percebem os
recursos alimentares de forma distinta. As plantas alimentícias não
convencionais, por exemplo, são às vezes desvalorizadas cultural-
mente, estigmatizadas como símbolos de pobreza e “tribalidade” ou
“atraso”, utilizando expressões de Garcia (2006). Por exemplo, Cruz
et al. (2014) identificaram uma perda de conhecimento sobre plantas
silvestres nas gerações mais jovens da comunidade do Carão. Eles
sugeriram a estigmatização dos recursos tradicionais como uma das
causas da erosão desses saberes. Portanto, mesmo quando as pessoas
comem plantas alimentícias não convencionais, a subnotificação

172 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


por motivos de constrangimento é um cenário provável. Além disso,
em nosso estudo identificamos outro efeito relacionado à percepção
alimentar. Alimentos industrializados gozam de prestígio entre os
informantes. Arnaiz defende que a narrativa da modernidade como
símbolo de sucesso e prestígio é um dos discursos utilizados na pu-
blicidade de alimentos pela indústria (Gracia-Arnáiz 1996). O apelo
“ser moderno” influenciam as percepções sobre alimentos, como
mostram Chopra et al. (2002), ao relatar que os residentes das áreas
urbanas de Johanesburgo em sua pesquisa consideravam o consumo
de alimentos fritos industrializados como um sinal de vida moderna
e riqueza. Portanto, esse valor simbólico dos alimentos em estudos
do consumo pode levar a super-notificação. O segundo ponto que
os protocolos devem considerar é que as dietas precisam ser avalia-
das dentro de uma estrutura ecológica, uma vez que a sazonalidade
e, consequentemente, os festivais de colheita afetam a disponibilida-
de de alimentos (Messer 1984; Powell et al. 2015). Por isso, estudos
baseados em uma aplicação isolada do R24h podem induzir ao não
registro do consumo de vegetais e refeições tradicionais disponíveis
fora do período do recordatório, resultando em conclusões errôneas
(Lachat et al. 2017; Dop et al. 2020). Assim, a percepção cultural
quanto aos alimentos e à disponibilidade sazonal molda a decisão
sobre os usos alimentícios. A AER nos dá uma perspectiva clara de
como adaptar nossas ferramentas e metodologias, aumentando a
acurácia de nossas pesquisas nutricionais.
Assim, ao utilizar a AER, podemos revelar pressupostos sobre
dietas, enraizados em nossa experiência pessoal e cultural. As pres-
suposições são elementos essenciais do método científico. Eles cons-
tituem a base de uma hipótese e de questões de pesquisa que preci-
sam ser válidas para serem respondidas (Gauch 2015). Na pesquisa

MÉTODO DE AVALIAÇÃO ETNONUTRICIONAL RÁPIDA PARA AVALIAR A BIODIVERSIDADE


DE PLANTAS ALIMENTÍCIAS EM INQUÉRITOS ALIMENTARES 173
em nutrição, verificar se algum pressuposto pode ser considerado
válido e torná-lo explícito é um passo crítico. Em pesquisas sobre
inquéritos alimentares, precisamos ter certeza da precisão das in-
formações sobre os recursos alimentares disponíveis, a qualidade
dos relatórios dietéticos, as classificações locais dos alimentos etc.
Devemos compreender a cultura e o ambiente como potenciais mo-
dificadores das pressuposições da investigação. A AER é uma ferra-
menta útil para essa tarefa.

Conclusões

A ciência da nutrição tem suas raízes na Europa e sua práti-


ca continua sendo uma expressão cultural eurocêntrica. Esses fatos
podem produzir leituras reducionistas sobre a dieta e a cultura ali-
mentar. As análises de etnonutrição são valiosas porque revelam
pressupostos sobre as dietas, enraizados em nossa experiência
profissional, pessoal e cultural. A AER é uma ferramenta que
oferece à pesquisa em alimentação e nutrição uma visão biocultu-
ral ampla das dietas, por meio do aprimoramento da prototipagem
de pesquisas de consumo alimentar, considerando o nível do sis-
tema alimentar e com alta eficiência. Este método pode nos auxi-
liar na prevenção de interpretações errôneas que induzem a conclu-
sões equivocadas nas avaliações nutricionais. Este estudo lança luz
sobre como futuras avaliações dietéticas nacionais podem conside-
rar apropriadamente os recursos alimentares biodiversos e os fato-
res culturais e ambientais associados a eles.

174 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


Agradecimentos

Agradecemos a Aníbal Silva Cantalice, que nos ajudou com a


figura 1. Também somos muito agradecidos a todos os membros da
comunidade do Carão pela calorosa recepção, pelo conhecimento
compartilhado e pelo tempo que passaram conosco. Agradecemos
ainda à Taylor & Francis pela permissão concedida para reprodução
deste texto, originalmente publicado na revista “Ecology of Food
and Nutrition”, 2020, DOI: 10.1080/03670244.2020.1852227.

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178 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


EDITORES

Luiz Vital Fernandes Cruz da Cunha


Biólogo, Mestre em Biologia Vegetal (UFPE) e Doutor em Ciências
Florestais (UFRPE). Atualmente é professor da Universidade Católica
de Pernambuco. Tem como linha de pesquisa a Etnobotânica.

Rômulo Romeu da Nóbrega Alves


Biólogo, Doutor em Ciências Biológicas (Zoologia) pela Universidade
Federal da Paraíba em 2006. Atualmente é professor da Universidade
Estadual da Paraíba, atuando no ensino de graduação e pós-gradua-
ção. Tem como linha de pesquisa principal a Etnozoologia e suas
publicações abordam temas como uso, comércio e conservação de
animais.

Reinaldo Farias Paiva de Lucena


Bacharel e Licenciado em Ciências Biológicas (UEPB). Mestre
e Doutor em Botânica (UFRPE). Pós-Doutorado em Manejo e
Domesticação de Cactáceas (UNAM - México). Entre 2009 e 2020 foi
professor da Universidade Federal da Paraíba, e atualmente é profes-
sor na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Atua no ensino e
pesquisa na graduação e pós-graduação. Linhas de pesquisas princi-
pais: manejo e domesticação de recursos genéticos; mudanças climá-
ticas e sua relação com a etnobiologia; uso e conservação da biodiver-
sidade; métodos e técnicas na etnobiologia e etnoecologia.

EDITORES 179
Ulysses Paulino de Albuquerque
Bacharel e Licenciado em Ciências Biológicas. Mestre e Doutor em
Biologia Vegetal. Atualmente é professor titular do Departamento
de Botânica da Universidade Federal de Pernambuco.

180 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


AUTORES

André dos Santos Souza – Doutor em Botânica, Universidade


Federal Rural de Pernambuco.

Daniel Carvalho Pires de Sousa – Doutorando pelo Programa


de Pós-Graduação em Etnobiologia e Conservação da Natureza,
Universidade Federal Rural de Pernambuco.

Diógenes de Queiroz Dias – Professor da Faculdade de Tecnologia


do Nordeste.

Dirce Maria Lobo Marchioni – Professora associada da Faculdade


de Saúde Pública, Universidade de São Paulo.

Edwine Soares de Oliveira – Doutoranda pelo Programa de


Pós-Graduação em Etnobiologia e Conservação da Natureza,
Universidade Federal Rural de Pernambuco.

Graziela Dias Blanco – Doutoranda pelo Programa de Pós-


graduação em Ecologia, Universidade Federal de Santa Catarina.

George Pimentel Fernandes – Professor Adjunto do Departamento


de Educação, Universidade Regional do Cariri.

Gyllyandeson de Araújo Delmondes – Doutorando pelo Programa


de Química Biológica, Universidade Regional do Cariri.

AUTORES 181
Irwin Rose Alencar de Menezes – Professor Adjunto do
Departamento de Química Biológica, Universidade Regional do
Cariri.

Ivanilda Soares Feitosa – Pós-Doutoranda pelo Instituto Nacional


de Ciência e Tecnologia em Etnobiologia, Bioprospecção e
Conservação da Natureza, Universidade Federal de Pernambuco (in
memoriam).

Izabel Cristina Santiago Lemos de Beltrão – Professora Assistente


do Departamento de Enfermagem, Universidade Regional do Cariri.

Joana Yasmin Melo de Araujo – Graduanda em Nutrição,


Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Joelson Moreno Brito de Moura – Doutorando pelo Programa


de Pós-Graduação em Etnobiologia e Conservação da Natureza,
Universidade Federal Rural de Pernambuco.

Juliana Loureiro de Almeida Campos – Doutora em Botânica,


Laboratório de Ecologia e Evolução de Sistemas Socioecológicos,
Universidade Federal de Pernambuco.

Juliane Souza Luiz Hora – Doutoranda pelo Programa de


Pós-Graduação em Etnobiologia e Conservação da Natureza,
Universidade Federal Rural de Pernambuco.

Henrique Fernandes Magalhães – Doutorando pelo Programa


de Pós-Graduação em Etnobiologia e Conservação da Natureza,
Universidade Federal Rural de Pernambuco.

182 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


Marta Regina Kerntopf – Professora Adjunta do Departamento de
Química Biológica, Universidade Regional do Cariri.

Michelle Cristine Medeiros Jacob – Professora adjunta do


Departamento de Nutrição, Universidade Federal do Rio Grande do
Norte.

Natalia Araújo do Nascimento Batista – Mestre pelo Programa de


Pós-graduação em Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio
Grande do Norte.

Natalia Hanazaki – Professora titular do Departamento de Ecologia


e Zoologia da Universidade Federal de Santa Catarina.

Nylber Augusto da Silva – Doutor em Etnobiologia e Conservação


da Natureza, Universidade Federal Rural de Pernambuco.

Rafaela Helena Ludwinsky – Doutoranda pelo Programa de Pós-


graduação em Ecologia, Universidade Federal de Santa Catarina.

Regina Célia da Silva Oliveira – Professora substituta do Instituto


Federal do Piauí, Campus Paulistana.

Risoneide Henriques da Silva – Doutoranda pelo Programa de


Pós-Graduação em Etnobiologia e Conservação da Natureza,
Universidade Federal Rural de Pernambuco.

Sofia Zank – Doutora em Ecologia, Professora da Faculdade


Municipal de Palhoça.

AUTORES 183
Taline Cristina da Silva – Professora da Universidade Estadual de
Alagoas.

Temóteo Luiz Lima da Silva – Doutor em Etnobiologia e Conservação


da Natureza, Universidade Federal Rural do Pernambuco.

Ulysses Paulino de Albuquerque – Professor titular do


Departamento de Botânica da Universidade Federal de Pernambuco.

Virgínia Williane de Lima Motta – Mestre pelo Programa de Pós-


graduação em Nutrição, Universidade Federal do Rio Grande do
Norte.

184 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA


OUTRAS OBRAS DE INTERESSE

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978-0-12-809913-1

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Métodos-Técnicas-Pesquisa- Introdução-à-Etnobiologia- ETNOBIOLOGIA-Bases-ecológicas-
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Sobre o livro
Formato 15 x 21 cm
Tipologia Minion Pro (texto)
Conduit (títulos)
Papel Pólen 80g/m2 (miolo)
Supremo 250g/m2 (capa)
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