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O GLOBO / RJ - OPINIÃO - pág.: CAB15.

Ter, 13 de Maio de 2014


COLUNAS/OPINIÕES

A música e o Direito
EROS ROBERTO GRAU a norma que resulta da interpretação.

A música é arte; o Direito, uma prudência. O intérprete "produz a norma" a ser aplicada a certos
fatos sem exceder o texto. A interpretação do Direito é
Aristóteles ensinou-nos que o princípio de existência mediação entre o caráter geral do texto normativo e
da arte está no artista, não na coisa produzida. A arte sua aplicação particular, em cada caso.
não se ocupa com as coisas que são ou se geram por
necessidade. Nem com os seres naturais, que Permito-me ainda referir outra distinção, entre o
encontram em si mesmos seu princípio. poiético e a estesia. A poiesis (de onde poiético) é
criação, produção, conversão do que não existia em
O Direito, ao contrário, é uma prudência. Não é ciência existente. Alguém já disse que a poiesis é como o
nem arte. É capacidade, acompanhada de razão, de despertar de uma mariposa ao romper seu casulo. A
agir na esfera do que é bom ou mau para o ser estesia, por outro lado, é aptidão humana a fruirmos
humano. Razão intuitiva que não discerne o exato, do belo.
porém, o correto. Por isso, há sempre, no texto da
Constituição e das leis, mais de uma solução correta a Pois é exatamente aí que música e Direito se apartam.
ser aplicada a cada caso, nenhuma exata. Os músicos interpretam partituras visando à fruição
estética. Os juízes interpretam textos normativos
Entre a música e o Direito há, contudo, certa vinculados pelo dever de aplicá-los, de sorte a
semelhança. Ambos são alográficos, isto é, reclamam proverem a realização de ordem, de segurança e de
um intérprete: o intérprete da partitura musical, de um paz.
lado; o intérprete do texto constitucional ou da lei, de
outro. O intérprete musical interpõe-se entre o compositor e a
plateia. Para os juízes, no entanto, não deve existir
Das artes há dois tipos: as alográficas e as plateia. O Direito não é para produzir efeito estésico. A
autográficas. sensibilidade ao belo é estranha à atuação do juiz no
desempenho do ofício de interpretar e aplicar textos da
alográficas Constituição e das leis. A aptidão humana de fruição
concurso do Nas primeiras (música e teatro), a obra apenas se
autor e de completa com o concurso do autor e de um intérprete; do belo nada tem a ver com os juízes. Nem mesmo
intérprete
nas artes autográficas (pintura e romance), o autor conosco, meros cidadãos, quando suportamos normas
autográficas contribui sozinho à realização da obra. Em ambas há de decisão por eles produzidas.
prescinde de
intérprete interpretação, mas são distintas uma e outra.
Para os juízes não há - não deveria haver - plateia
A interpretação da pintura e do romance envolve alguma. Ainda que, em determinados tribunais, certos
unicamente compreensão de quem olha ou lê. A obra juízes se excedam em figuras literárias,
é completada, no seu todo, pelo autor. Sua fruição demoradamente, ao votar. Dirigindose à plateia, em
estética independe de qualquer mediação. êxtase de si mesmos...
Diversamente, a música e o teatro demandam
compreensão mais reprodução: a obra reclama, para Não estou a dizer que todos os juízes afastamse da
que possa ser esteticamente fruída, além do autor um prudência para a qual foram talhados.
intérprete que compreenda e reproduza a partitura
musical ou o texto da peça teatral. A fruição estética Aqui e ali, no entanto, é uma prudência alvoroçada
que a obra enseja é alcançada mediante a que exercem, fazendo bonito para a plateia.
compreensão/ reprodução do intérprete.
Isso não dará certo, mesmo porque a plateia está farta
O Direito é alográfico. O texto normativo não se de espetáculos de qualidade bem ruim, legislativos e
suporte fático completa no quanto tenha escrito o legislador. executivos. Por conta disso, aliás, vem à minha
não gera efeitos
memória um poema de Álvaro de Campos a propósito
Sua "completude" somente é alcançada quando o de o dia estar dando em chuvoso...
sentido por ele expressado for produzido, como nova
forma de expressão, pelo intérprete. Para os juízes não há -não deveria haver -plateia
alguma. Ainda que, em determinados tribunais, certos
O sentido expressado pelo texto é distinto do texto. É juízes se excedam em figuras literárias,
O GLOBO / RJ - OPINIÃO - pág.: CAB15. Ter, 13 de Maio de 2014
COLUNAS/OPINIÕES

demoradamente, ao votar

Eros Roberto Grau é professor aposentado da USP

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