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Universidade Católica Portuguesa

Escola de Direito do Porto

QUESTÕES, CASOS E
MATERIAIS DE DIREITO
INTERNACIONAL PÚBLICO
(2022-23)

José Alberto Azeredo Lopes


Maria Isabel Tavares
Nuno Pinheiro Torres
Benedita Menezes Queirós
1 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

PARTE I – DIREITO INTERNACIONAL. INTRODUÇÃO.

I. Jurisprudência internacional

1) Caso Osaka Shosen Kaisha c. Proprietários do S.S. Prometheus em Hong Kong


Law Review, 207, 225 (1904), rep. in L. HENKIN, R. G. PUGH, O. SCHACHTER,
H. SMIT, International Law, Cases and Materials, 2.ª ed., West Publ., St. Paul,
Minn., 1987, p. 6, n. 2

“Foi alegado, em nome dos proprietários do Prometheus, que o termo “direito”, tal
como aplicado a este sistema reconhecido de princípios e regras designado como direito
internacional, é uma expressão inexata, uma vez que não há, por outras palavras, uma tal
coisa como direito internacional; não pode existir tal direito vinculando todas as nações
na medida em que não há sanção para ele, o mesmo é dizer que que não existem meios
através dos quais a obediência a tal direito possa ser imposta a qualquer nação que lhe
recuse obedecer. Não acompanho esse argumento. Na minha opinião, uma regra pode ser
criada e tornar-se internacional, o que significa aplicar-se a todas as nações, pelo acordo
de todas as nações que a ela se vinculem, apesar de ser impossível impor a sua obediência
a qualquer uma das partes no acordo. A oposição de uma das nações a uma regra que
aceitou previamente não afasta a autoridade da regra, ainda que essa oposição não possa,
eventualmente, ser ultrapassada. Tal oposição apenas transforma em infratora a nação que
se opõe à regra à qual deu o seu consentimento; contudo, a regra, para a criação da qual
a nação que agora se opõe contribuiu, continua a existir. Poderia ser invocado que, se uma
certa pessoa ou conjunto de pessoas tivessem, num dado momento, o poder de resistir a
uma regra nacional, tal regra não existiria? A resposta a tal alegação seria a de que a regra
continua a existir, apesar de, naquele momento, não ser possível impor o seu
cumprimento”.

Questões:

a) Refira, em síntese, os argumentos apresentados pelos proprietários do navio “S.S.


Prometheus” para recusarem juridicidade ao direito internacional e, daí, a sua própria
existência.
b) No excerto, em que argumentos assenta a refutação desta tese?
c) A norma de direito internacional pressupõe, sempre, e como afirmado no excerto
acima, o “acordo de todas as nações que a ela se vinculem”?
d) Apresente um exemplo contemporâneo que, no seu entender, corresponda à imposição
do cumprimento de uma norma internacional ao Estado infrator.

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2) TPJI, caso do navio a vapor “Wimbledon”, Reino Unido, França, Itália, Japão
(Polónia interveniente) c. Alemanha, TPJI, Acórdão de 17 de agosto de 1923,
Col., 1923

in https://www.icj-cij.org/files/permanent-court-of-international-justice/serie_A/A_01/03_Wimbledon_Arret_08_1923.pdf

Nota: Nos termos de uma cláusula (art. 380) do Tratado de Paz de Versalhes, de 1919, “o Canal de Kiel
e os seus acessos serão sempre livres e abertos, em condições de perfeita igualdade, aos navios de guerra e
de comércio de todas as nações em paz com a Alemanha”.
O diferendo entre o RU, França, Itália e Japão, por um lado, e a Alemanha, por outro, resultou de a
Alemanha ter recusado a passagem naquele canal do navio a vapor “Wimbledon”. Por conseguinte, como
o Tribunal Permanente de Justiça Internacional declarou, “[a] questão que domina todo o litígio é a de saber
se as autoridades alemãs tinham o direito de recusar ao navio a vapor Wimbledon, nas condições e
circunstâncias em que o fizeram, o acesso e a passagem do canal de Kiel, a 21 de março de 1921” (Ac., p.
21).
O Tribunal explana, nos excertos seguintes, uma determinada conceção do direito internacional e das
obrigações internacionais.

“O Tribunal considera que o artigo 380 é categórico e não se presta a nenhum


equívoco. Dele resulta que o canal deixou de ser uma via navegável interior, nacional,
cuja utilização pelos navios das Potências que não o Estado ribeirinho é deixada à
discrição deste Estado, e que passou a ser uma via internacional, destinada a tornar mais
fácil, em virtude da garantia de um tratado, o acesso ao Báltico, no interesse de todas as
nações do mundo (Ac., p. 22)
(…)
A vontade dos autores do Tratado de Versalhes de facilitarem, por uma determinação
de natureza internacional, o acesso ao Báltico, e, nessa sequência, de deixar o canal
aberto, a todo o tempo, aos navios e barcos estrangeiros de qualquer categoria, surge ainda
reforçada se se ligar o texto do artigo 380 com as outras disposições da Parte XII [do
Tratado de Versalhes]. Ainda que, tendo sido construído pela Alemanha em território
alemão, o Canal de Kiel tenha constituído, até 1919, uma via interior do Estado que detém
as duas margens, o Tratado fez questão de não o confundir com as outras vias navegáveis
interiores do Império alemão (Ac., p. 23).
(…)
Quer seja por efeito de uma servidão ou de uma obrigação contratual que o Governo
alemão assumiu relativamente às Potências beneficiárias do Tratado de Versalhes, de
deixar o acesso ao Canal de Kiel livre e aberto aos navios de todas as nações, em tempo
de guerra como em tempo de paz, daqui resulta sempre, para o Estado alemão, uma
limitação importante do direito de soberania, soberania que ninguém contesta, sobre o
Canal de Kiel; e isso é suficiente para que a cláusula que consagra uma tal limitação deva,
em caso de dúvida, ser interpretada restritivamente. No entanto, não poderia, a pretexto
de uma interpretação restritiva, ir ao ponto de recusar ao artigo 380 o sentido que resulta
dos seus próprios termos. Seria uma interpretação peculiar a de fazer dizer a um tratado
exatamente o contrário daquilo que ele afirma (Ac., p. 24).
(…)
O Tribunal recusa ver na conclusão de um qualquer tratado, pelo qual um Estado se
compromete a fazer ou não fazer algo, um abandono da sua soberania. Sem dúvida,
qualquer convenção que crie uma obrigação deste género resulta numa restrição ao
exercício dos direitos soberanos do Estado, no sentido de que imprime a esse exercício

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uma direção determinada. Mas a faculdade de assumir obrigações internacionais é,


precisamente, um atributo da soberania do Estado”. (Ac., p. 25)

Questões:

a) Neste caso, e de acordo com o TPJI, qual a relação entre soberania e direito
internacional?
b) Segundo esta construção, o direito internacional é uma limitação à soberania dos
Estados? Justifique.
c) A capacidade convencional, isto é, o facto de os Estados soberanos, nomeadamente
através de tratados, criarem obrigações jurídico-internacionais, tem alguma relação com
a soberania?

3) TPJI, caso do Lotus, França/Turquia, Série A, n.º 10, 7 de setembro de 1927,


Col., 4 ss.
In https://www.icj-cij.org/files/permanent-court-of-international-justice/serie_A/A_10/30_Lotus_Arret.pdf

Nota: Por acordo especial de 12 de outubro de 1926, os Governos de França e da Turquia submeteram
ao TPJI a apreciação de um diferendo sobre o exercício da jurisdição criminal, num caso que ocorreu após
a colisão em alto mar entre o navio a vapor de pavilhão francês “Lotus” e o navio a vapor de pavilhão turco
“Boz-Kourt”. Dessa colisão resultou a morte de oito cidadãos turcos. Ao chegar ao porto de Constantinopla
[hoje Istambul] as autoridades turcas detiveram e prenderam o capitão do navio francês, tendo sido
posteriormente acusado, julgado e condenado por tribunais turcos.
A França invocou que, à luz do artigo 15.º da Convenção de Lausanne de 24 de julho de 1923, seriam
os tribunais franceses a ter jurisdição exclusiva para instaurar um eventual procedimento criminal, relativo
à colisão dos navios em alto mar, contra um oficial de um navio francês. Nestes termos, a Turquia violou
as suas obrigações resultantes dos princípios e das normas internacionais aplicáveis.
Na sua decisão o Tribunal considerou que a Turquia não atuou em violação do direito internacional, e
que a referida disposição da Convenção de Lausanne não precludia a Turquia de exercer jurisdição neste
caso. Consequentemente, nenhuma indemnização foi atribuída à França.

“Nestas condições, não é possível – exceto no caso de um texto preciso – interpretar o


termo “princípios de direito internacional” de outra forma que não seja significando os
princípios em vigor entre todas as nações independentes e que, por conseguinte, se
aplicam nos mesmos termos a todas as Partes contratantes” (p. 17).
(…)
“O Tribunal, chamado a pronunciar-se sobre se há regras de direito internacional que
foram violadas pelo exercício de ações penais, em virtude da legislação turca, contra o
tenente Damons, vê-se, em primeiro lugar, perante uma questão de princípio, questão que,
com efeito, se mostrou fundamental nas Memórias, contra-Memórias e alegações das
duas Partes. O Governo francês defende a tese segundo a qual os tribunais turcos, para
serem competentes, deveriam poder fundar-se num título de competência que o direito
internacional reconhecesse em favor da Turquia. Ao contrário, o Governo turco defende
o ponto de vista segundo o qual o artigo 15 admitiria a competência judiciária da Turquia
em todos os casos em que não afrontasse um princípio do direito internacional.
Esta última posição parece em conformidade com o próprio acordo especial
[instrumento pelo qual a França e a Turquia definiram os termos em que solicitavam ao
Tribunal que se pronunciasse sobre o seu diferendo], cujo número I pede ao Tribunal que
declare se a Turquia violou princípios de direito internacional, e quais seriam – caso a

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resposta fosse afirmativa – esses princípios. Não se trata, portanto, nos termos do acordo
especial, de especificar os princípios que autorizariam a Turquia a iniciar ações penais,
mas de formular os princípios que, eventualmente, pudessem ter sido violados por essas
ações.
Esta maneira de colocar a questão é também determinada pela própria natureza e
condições atuais do direito internacional.
O direito internacional regula as relações entre Estados independentes. As regras de
direito que vinculam os Estados, por conseguinte, procedem da vontade destes, vontade
manifestada através de convenções ou de usos aceites como consagrando princípios de
direito e estabelecidos tendo em vista regular a coexistência dessas comunidades
independentes, ou tendo em vista a prossecução de fins comuns. Por isso, as limitações à
independência dos Estados não se presumem.
Ora, a limitação primordial que o direito internacional impõe ao Estado é a de excluir
– exceto no caso de uma regra permissiva contrária – qualquer exercício do seu poder no
território de outro Estado. Nesse sentido, a jurisdição é, certamente, territorial; não poderá
ser exercida fora do território a não ser em virtude de uma regra permissiva que decorra
do direito internacional consuetudinário ou de uma convenção.
Mas daqui não decorre que o direito internacional proíba um Estado de exercer, no seu
próprio território, jurisdição em qualquer caso em que se trate de factos ocorridos no
estrangeiro e em que não se possa apoiar numa regra permissiva de direito internacional.
Esta tese só poderia ser sustentada se o direito internacional proibisse os Estados, de modo
geral, de atingirem através das suas leis, e de submeterem a jurisdição dos seus tribunais
pessoas, bens e atos fora do território e se, por derrogação a esta regra geral proibitiva,
autorizasse os Estados fazê-lo em casos especialmente determinados. Ora, tal não é,
certamente, o estado atual do direito internacional. Longe de proibir de um modo geral os
Estados de alargarem as suas leis e a sua jurisdição a pessoas, bens e atos fora do território,
deixa-lhes, a este respeito, uma ampla liberdade, que apenas é limitada, em alguns casos,
por regras proibitivas; para os outros casos, cada Estado conserva a liberdade de adotar
os princípios que considere melhores e mais convenientes.
É esta liberdade que o direito internacional deixa aos Estados, que explica a variedade
das regras que puderam adotar sem oposição ou protesto da parte dos outros Estados”
(Ac., pp. 18-20)

Questões:

a) A determinada altura, numa única frase, o TPJI define o direito internacional. Como?
Pensando nos critérios utilizados pela doutrina para definir o DI, e que estudamos, qual
desses critérios é usado pelo tribunal?
b) De acordo com TPJI, de onde procedem as regras de direito internacional?
c) Neste caso tem origem aquela que é muito frequentemente designada como a
“presunção Lotus”, de acordo com a qual se diria, de modo simplificado, “tudo que não
é proibido [aos Estados] é permitido”. Em que parte do excerto acima transcrito encontra
esta ideia? Nessas palavras do Tribunal, verifica-se, ainda assim, alguma limitação aos
Estados soberanos?
d) Parece-lhe que a “presunção Lotus” ainda hoje descreve, no essencial, o direito
internacional?

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4) TIJ, caso do Canal de Corfu, 1949, Declaração de voto do Juiz Alejandro


Alvarez, Col., 1949, pp. 41 ss.

In https://www.icj-cij.org/files/case-related/1/001-19490409-JUD-01-01-BI.pdf

Nota: O diferendo que opôs o Reino Unido à Albânia teve origem na explosão de minas, em 1946, no
Canal de Corfu, que provocaram danos em navios da marinha Britânica que aí se encontravam de passagem.
O Reino Unido acusou a Albânia de ter colocado as minas nas suas águas territoriais, após o Canal ter sido
limpo por draga-minas, não tendo informado os navios que aí navegavam da sua existência. Estando em
causa o exercício do direito de passagem inofensiva, aplicável mesmo em relação a navios de guerra, o
Reino Unido invocou a responsabilidade internacional da Albânia, reclamando a reparação dos danos
sofridos.
O Tribunal concluiu que apesar de não ter ficado provado que as minas foram colocadas pela Albânia,
esta não poderia deixar de saber da sua existência nas suas águas territoriais e tinha violado o dever avisar
os navios que navegavam no Canal de Corfu. Em consequência, decidiu pela responsabilidade da Albânia,
impondo o pagamento de uma indemnização ao Reino Unido a título de reparação pelos danos sofridos. A
seguir, podem ler-se excertos da declaração de voto do Juiz Alvarez, importante pelas considerações mais
gerais que tece a propósito do direito internacional.

(Col., 1949, p. 41) “O direito de interdependência social não opõe, como até agora se
fez, o direito à política; ao contrário, admite que existem relações estreitas entre ambos.
Os juristas imbuídos do direito tradicional consideraram o direito internacional como
tendo um caráter estritamente jurídico; apenas tomavam em consideração o direito puro,
excluindo totalmente a politica como alheia ao direito. Ora, o direito puro não existe: o
direito resulta da vida social e evolui com esta, quer dizer, é, em grande medida, o efeito
da prática, da política, sobretudo coletiva, dos Estados. Por conseguinte, não se deve (Col.
1949, p. 42) estabelecer um antagonismo entre o direito e a política: os dois elementos
devem interligar-se.
A política e a opinião pública exercem uma grande influência sobre o exercício dos
direitos dos Estados. Vários casos podem acontecer, alguns dos quais surgem no atual
litígio [entre a Albânia e o Reino Unido]:

A. Um Estado é titular de um direito indiscutível relativamente a um outro Estado,


mas não o quer exercer por diversas considerações políticas, nomeadamente, para
manter boas relações com o referido Estado.
B. Um Estado tem um direito relativamente a outro Estado, mas este contesta-o. Pode
apoiar o seu direito com a força? E o outro Estado pode, por seu turno, resistir
recorrendo, também, à força?
C. Um Estado terá um direito a exercer no território de outro Estado, por exemplo, o
direito de passagem. Pode apoiar esse direito pela força, se for contestado? E, por
seu turno, o outro Estado poderá também resistir igualmente pela força?
D. Os direitos de dois Estados confrontam-se, o que é o resultado do regime
individualista que quase não admite limitações aos direitos que consagra. Como
resolver estes conflitos?
E. Um Estado não tem o direito de realizar certos atos no território de outro Estado,
mas os seus interesses vitais ou o interesse geral levam-no a agir desta forma,
violando, por isso, a soberania de outro Estado e o direito internacional.
F. Um Estado receia ser vítima de uma agressão por parte de outro Estado, ou tem
receio legítimo de que este queira impedi-lo de exercer um dos seus direitos.
Poderá recorrer à ameaça da força, ou mesmo à força, para impedir a agressão ou
a violação do seu direito?

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G. Um Estado está numa situação de legitima defesa.

Em todas estas situações, as considerações políticas terão um papel muito importante


na atitude dos Estados interessados; estes tomarão em especial consideração a opinião
pública.
A Carta das Nações Unidas (art. 2, n.º 4) proíbe o uso da força, exceto no caso da
legítima defesa (art. 51). De seguida, o Estado que se encontra nas situações precedentes,
com exceção das que estão indicadas em A e E, deve recorrer, não à força, mas ao
Conselho de Segurança ou ao Tribunal Internacional de Justiça.
Percebe-se, claramente, a diferença entre o velho e o novo direito internacional.
Convirá referir, a título de nota, que apesar da proibição pela Carta das Nações Unidas
do uso da força, esta poderá ainda, em certos casos, produzir efeitos jurídicos; por
exemplo, as aquisições feitas pelo vencedor na sequência de uma (Col., 1949, p. 47)
guerra, a independência das colónias, a secessão de Estados, sendo estas, depois,
reconhecidas pelas metrópoles ou pelas Nações Unidas. (…) Convém considerar, em
especial, aquilo que se refere à soberania dos Estados, uma vez que as grandes questões
que dominam o litígio atual têm todas a sua origem nesta noção ou afetam-na.
Por soberania, deve entender-se o conjunto dos direitos e atribuições que o Estado tem
sobre o seu território, com exclusão de todos os outros Estados, assim como nas suas
relações com estes.
A soberania confere direitos aos Estados e impõe-lhes obrigações. Esses direitos não
são os mesmos e não se exercem da mesma maneira em todos os domínios do direito
internacional: os quatro tradicionais – terrestre, marítimo, fluvial e lacustre – a que devem
acrescentar-se os três novos – aéreo, polar e flutuante (ilhas flutuantes); por outro lado, a
violação destes direitos não tem a mesma gravidade em todos estes domínios.
Alguns juristas propuseram abolir a noção de soberania dos Estados, considerando-a
caduca. É um erro: esta noção tem o seu fundamento no sentimento nacional e na
psicologia dos povos, ou seja, tem raízes profundas. O pacto constitutivo da Organização
Internacional reconheceu expressamente a soberania dos Estados, e procurou harmonizá-
la com os objetivos desta Organização (art. 2, n.º 1).
Esta noção evoluiu e, atualmente, deve-se concebe-la de maneira a adequá-la às novas
condições da vida social. Já não se deve considerar a soberania como um direito absoluto
e individual de cada Estado, como se fazia no direito antigo, baseado no regime
individualista, segundo o qual os Estado só estavam vinculados pelos preceitos que
tivessem aceite. Hoje, em razão da interdependência social, assim como da prevalência
do interesse geral, os Estados estão ligados por muitos preceitos, sem que a sua vontade
intervenha.
A soberania dos Estados tornou-se, atualmente, uma instituição, uma função social
internacional de caráter psicológico, tendo que se exercer em conformidade com o direito
internacional novo.
(…)
Tal como a soberania, a responsabilidade dos Estados é em matéria antiga e que ocupa
um lugar muito importante no (Col., 1949, p. 44) direito internacional. É delicada e está
sujeita a controvérsias, na medida em que não há preceitos bem assentes que a
regulamentem. Isto verificou-se, de maneira clara, na Conferência de Codificação da
Haia, de 1930.
Por conseguinte, é necessário que esta matéria seja clarificada nas suas partes
essenciais e mesmo renovada.

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Para esta renovação, relativamente às matérias que dizem respeito ao litígio atual, o
Tribunal poderá inspirar-se nos dados seguintes, baseados no direito de interdependência
social:
1.º O Estado deve garantir, no seu território, a ordem indispensável para o
cumprimento das suas obrigações internacionais: de outro modo, incorre em
responsabilidade.
2.º O Estado deve exercer uma vigilância diligente sobre o seu território. Esta
vigilância não abrange as regiões desérticas; não é a mesma para as parcelas terrestres e
as parcelas marítima, aérea, etc..
Esta obrigação de vigilância varia consoante as condições geográficas e outras do país:
um Estado vigia algumas regiões mais do que outras, de acordo com os seus interesses.
Por outro lado, esta vigilância depende dos meios de que dispõe cada Estado. Na América,
esta questão é muito importante: os Estados Unidos e muitos países latinos não podem
vigiar de maneira eficaz a enorme extensão das suas costas. Como dispôs muito
justamente o art. 25 da Convenção XIII da Haia, de 1907, uma Potência não está obrigada
a exercer uma vigilância que vá para lá dos meios de que dispõe. O Estado que não exerce
esta vigilância, ou que é negligente no seu exercício, incorre em responsabilidade caso
sejam causados danos no seu território a outros Estados ou aos seus nacionais.
3.º Em consequência do anteriormente dito, considera-se que o Estado conheceu, ou
devia ter tido conhecimento, dos atos danosos cometidos nas regiões do seu território em
que existam autoridades locais; não é uma presunção, não é uma hipótese: é a
consequência da sua soberania. Se o referido Estado alegar que não teve conhecimento
desses atos, nomeadamente, devido a circunstâncias que a sua vigilância não podia
detetar, por exemplo, a ação de submarinos, etc., deve prová-lo: de outra forma, incorre
em responsabilidade.
4.º O Estado deve adotar medidas preventivas, tendo em vista impedir, no seu
território, a execução de atos danosos para outros Estados ou para os seus nacionais, e, se
tais atos foram cometidos, tem o dever de os reprimir e punir.
5.º O Estado deve esclarecer, imediatamente, as circunstâncias em que foi cometido,
no seu território, um ato ilícito ou danoso, nomeadamente, promovendo a realização de
uma investigação.
6.º Deve informar imediatamente os países interessados sobre a existência, no seu
território, de perigos de que tenha conhecimento, que pudessem causar-lhes danos e que
sejam obra de outros países; de outra forma, tornar-se-á cúmplice”.

Questões:

a) Na sua declaração de voto, o Juiz Alvarez trata, com algum desenvolvimento, as


relações entre direito e política e refere-se, a dado passo, ao “direito puro”. Diga, em
síntese, qual a sua tese e se esta lhe parece defensável.
b) Nos exemplos que a seguir expõe (de A a G), qual lhe parece refletir de forma mais
convincente a interligação de direito e política? Justifique.
c) Por que razão a existência de um direito de responsabilidade internacional contribui
para a temática (já antiga) da “efetividade do direito internacional”? Enuncie, no texto
acima, de que maneira pode fundamentar esta opinião.

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II. Estudo de caso: a decisão de o Reino Unido adotar um ato legislativo que
viola o Acordo do Brexit

1. A situação:

A 23 de junho de 2016, os cidadãos do Reino Unido votaram, em referendo, a favor


da saída da União Europeia e, no dia 29 de março de 2017, o RU acionou formalmente
o art.º 50 para deixar a UE. Depois de um longo e complexo processo de negociações, a
24 de janeiro de 2020, em Bruxelas, Charles Michel e Ursula von der Leyen assinaram o
Acordo de Saída (em nome da UE). Mais tarde, no mesmo dia, o documento foi assinado
pelo primeiro-ministro Boris Johnson, em Londres. No dia 29 de janeiro de 2020, uma
vez concluídos os procedimentos internos necessários, o Reino Unido confirmou a
ratificação do Acordo de Saída. No mesmo dia, o plenário do Parlamento Europeu
aprovou o Acordo de Saída. No dia 30 de janeiro de 2020, o Conselho adotou, por
procedimento escrito, a decisão relativa à celebração do Acordo de Saída em nome da
UE.
A 31 de janeiro de 2020, o Reino Unido deixou de ser membro da União Europeia.
O Acordo de Saída inclui um Protocolo relativo à Irlanda/Irlanda do Norte.
Com efeito, a União Europeia e o Reino Unido reconheceram, desde o início das
negociações do Brexit, a singularidade da situação da República da Irlanda e da Irlanda
do Norte. Concordaram que se impunha uma solução específica, capaz de conciliar os
diferentes interesses em jogo, nomeadamente, (i) evitar uma fronteira física entre a
Irlanda e a Irlanda do Norte e, assim, proteger a economia de toda a ilha e salvaguardar o
Acordo de Sexta-Feira Santa (Acordo de Belfast) em todas as suas dimensões; (ii)
preservar a integridade do mercado único da União Europeia, a par de todas as garantias
que oferece no domínio da defesa dos consumidores, da saúde pública e animal ou do
combate à fraude e ao tráfico de seres humanos e de substâncias ilegais; (iii) manter a
Irlanda do Norte no território aduaneiro do Reino Unido, permitindo-lhe beneficiar dos
futuros acordos de comércio livre (ACL) que este país venha a celebrar com países
terceiros.
O Acordo de Saída previa, ainda assim, negociações posteriores quanto a alguns
aspetos de mais pormenor.
Em setembro de 2020, o governo do Reino Unido apresentou uma proposta de “Lei do
mercado interno do Reino Unido” em que alterou parte do Acordo de Saída UE-RU.
Esta proposta, que o próprio Governo britânico admitiu violar, ou poder violar, o
direito internacional, provocou várias reações (ver, por exemplo, “Brexit: Governo
britânico admite que nova legislação viola direito internacional”, Notícia Visão, 8 de
setembro de 2020 às 14h58, https://visao.sapo.pt/atualidade/politica/2020-09-08-brexit-
governo-britanico-admite-que-nova-legislacao-viola-direito-internacional/ )
A proposta de lei foi aprovada a 15 de setembro de 2020, com 340 votos a favor e 263
contra. Foram rejeitadas várias propostas de alteração (incluindo as que procuravam
“evitar” a violação do direito internacional identificada pelo próprio Governo). Aquela
proposta será, agora, debatida na especialidade e terá de ser aprovada pela Câmara dos
Lordes, antes de ser promulgada.
O Acordo de Sexta-feira Santa, assinado em Belfast a 10 de abril de 1998, pelos
governos britânico e irlandês, pôs fim aos conflitos entre nacionalistas e unionistas sobre
a questão da união da Irlanda do Norte e a República da Irlanda, ou sua continuação como
parte do Reino Unido.

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2. Documentos

1) Parlamento britânico, Câmara dos Comuns, Protocolo da Irlanda do Norte:


obrigações do Reino Unido, audição de Brandon Lewis (Ministro para a Irlanda do
Norte), 8 de setembro de 2020
In https://hansard.parliament.uk/commons/2020-09-08/debates/2F32EBC3-6692-402C-93E6-
76B4CF1BC6E3/NorthernIrelandProtocolUKLegalObligations

Theresa May: O Governo do Reino Unido assinou o Acordo de Saída do qual é parte
integrante o Protocolo da Irlanda do Norte. Este Parlamento votou esse Acordo de Saída
para ser convertido em legislação do Reino Unido. O Governo está agora a alterar a
implementação daquele acordo. Tendo isto em conta, como pode o Governo garantir a
futuros parceiros internacionais que podem confiar no Reino Unido quanto ao
cumprimento das obrigações jurídicas consagradas em acordos que assina?
Brandon Lewis: Temos trabalhado com a UE num espírito de boa fé e as duas partes
continuam a trabalhar com esse espírito para implementar as medidas que garantam os
princípios fundamentais que estavam subjacentes ao Protocolo.
Claro que a nossa primeira prioridade continua a ser assegurar um acordo quanto ao
Protocolo a ser negociado pelo Comité Conjunto e no acordo mais amplo de comércio
livre, mas o Acordo de Saída e o Protocolo não são como qualquer outro tratado. Foram
escritos na assunção de que poderiam ser alcançados acordos posteriores entre nós e a UE
quanto aos detalhes (…) e continuamos a acreditar que isso é possível, mas, como
Governo responsável, não podemos permitir que os nossos empresários não tenham
quaisquer certezas a partir de janeiro. A realidade é que o projeto de lei do mercado
interno do RU e o projeto de lei financeira são as últimas oportunidades legislativas que
temos para dar às pessoas e aos negócios da Irlanda do Norte a confiança e a certeza de
que lhes iremos dar aquilo que acordámos no protocolo, que desenhámos no nosso
manifesto e que estabelecemos no Command Paper.
(…)
Simon Hoare: Neste momento, parece não haver certezas para os negócios na Irlanda
do Norte e não haver certeza quanto ao futuro, a longo prazo, do Acordo de Sexta-feira
Santa, uma vez que qualquer transporte de bens entre o norte e o sul terá de ter, em algum
momento e de alguma forma, um qualquer controlo. Além disso, (…) parece que não há
qualquer certeza quanto à continuidade do nosso país como país que mantém a sua palavra
e que se rege de acordo com o estado de direito e as suas obrigações internacionais. Que
garantias me pode dar (…) que o Governo compreende a gravidade destas questões?
Brandon Lewis: Nós, como país, defendemos o direito internacional e o sistema da
ordem internacional, e sempre o iremos fazer. Eu penso que os países em todo o mundo
o sabem. Estão também conscientes de que nós estamos nestas negociações com a UE. O
nosso foco é concluí-las de forma satisfatória e adequada de modo a alcançar um bom
resultado quanto a um acordo de comércio livre e bons resultados do Comité
especializado que está a trabalhar quanto à Irlanda do Norte. Devemos recordar que
respeitar o Acordo de Sexta-Feira Santa não é apenas sobre norte-sul; é também sobre
este-oeste e sobre a garantia de que não existem quaisquer fronteiras, norte-sul, este-oeste.
É por isso que assumimos o compromisso de acesso sem restrições e é isso que será
garantido através da lei do mercado interno do RU.

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10 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

Gary Sambrook: Este Governo foi eleito com base num manifesto que garantia que
a Irlanda do Norte iria, verdadeiramente, permanecer no território aduaneiro do RU e em
que era prometido que o direito da UE não seria obstáculo a outros elementos essenciais
para o Governo. (…) [C]oncorda que estas alterações simplesmente concretizam (…) esse
compromisso?
Brandon Lewis: (…) esse é um bom ponto. Delineámos muito claramente – não penso
que alguém tenha compreendido mal esse ponto – a nossa posição nas eleições gerais:
que iríamos garantir acesso sem restrições, que asseguraríamos às populações da Irlanda
do Norte e que continuaríamos a assegurar o acordo de Sexta-feira Santa. Isto é
exatamente aquilo que estamos focados em fazer. Estamos a fazê-lo através das
negociações, mas também queremos assegurar que estamos a adotar os passos razoáveis
para preparar janeiro no caso de ser necessário. Faremos isso na lei do mercado interno
do RU, responderemos aos compromissos assumidos no manifesto eleitoral.
(…)
Stephen Farry: Qualquer alteração unilateral ao tão necessário Protocolo
[Irlanda/Irlanda do Norte que faz parte do Acordo de Saída UE e RU] arrisca-se a pôr em
causa o Acordo de Sexta-feira Santa, arrisca-se a fazer regressar as fronteiras fechadas à
ilha da Irlanda e coloca os negócios da Irlanda do Norte numa posição jurídica muito
incerta. O Governo reconhece que, no caso de fazer aquelas alterações unilaterais e, em
especial, colocar em causa o Acordo, isso reduzirá as perspetivas de uma futura relação
com a UE? E, em particular, que haverá zero possibilidade de negociar um acordo de
comércio com os Estados Unidos sob uma administração Biden e com um Congresso
controlado pelos Democratas?
Brandon Lewis: Quanto à primeira parte da questão (…) é realmente o oposto –
estamos focados em alcançar um acordo através das negociações e do Comité Conjunto
especializado, de forma a garantir que somos capazes de acordar com detalhe questões
que sempre ali estiveram, como estabelecidas no protocolo, de modo a ser trabalhado pelo
Comité Conjunto. Aquilo que faremos com a lei do mercado interno do RU é dar clareza
aos negócios e pessoas da Irlanda do Norte quanto ao que acontece a 1 de janeiro se
aquelas negociações não forem concluídas de modo satisfatório. Digo-lhe, delicadamente,
que essa é a melhor maneira de dar segurança às pessoas da Irlanda do Norte.
(…)
Alistair Carmichael: Que autoridade temos para criticar a China por não assegurar a
sua parte do acordo ao abrigo da declaração conjunta de Hong Kong se somos
confrontados desta forma com a nossa abordagem às nossas próprias obrigações
convencionais relativamente à União Europeia?
Brandon Lewis: Como referi anteriormente, as questões específicas no Protocolo
foram sempre desenhadas para serem trabalhadas no Comité Conjunto. É certo que o
Governo está a adotar ações razoáveis, sensíveis e limitadas para que, caso o Comité
Conjunto e as negociações do acordo de saída para um acordo de comércio livre não
chegarem a um resultado satisfatório, as pessoas tenham certezas em janeiro.
(…)
Robert Neill: o Ministro afirmou que ele e o Governo estão comprometidos com o
estado de direito. Reconhece que a vinculação ao estado de direito não é negociável?
Tendo isso presente, poderá assegurar-nos que nada do que é proposto nesta legislação
viola, ou poderá potencialmente violar, obrigações de direito internacional ou acordo de
direito internacional com os quais nos comprometemos? (…)

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11 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

Brandon Lewis: Eu diria (…) que sim, viola o direito internacional de uma forma
muito específica e limitada. Estamos a conferir-nos o poder de não aplicar o conceito
jurídico comunitário do efeito direto, reconhecido pelo artigo 4, em determinadas
circunstâncias definidas de forma restritiva. Há precedentes claros a este propósito
relativamente ao Reino Unido e, na verdade, a outros países que necessitaram de
reconsiderar as suas obrigações internacionais devido à mudança de circunstâncias. (…)
Fleur Anderson: Com o Reino Unido no início de uma nova era e uma série de
negociações comerciais à nossa frente que afetarão a vida das pessoas (…) em todo o
país, que mensagem pensa o Secretário de Estado que dá sobre a nossa palavra o facto de
o Reino Unido estar disposto a violar o direito internacional, por vezes, a anular tratados
e a reescrever compromissos que subscrevemos há poucos meses?
Brandon Lewis: Tenho a certeza que (…) valorizará o facto de, como já disse,
existirem alguns precedentes em circunstâncias técnicas muito específicas. Países de todo
o mundo, incluindo alguns daqueles com os quais estamos a trabalhar para assegurar
acordos comerciais, alteram a sua posição em matéria de direito internacional, como referi
que vamos fazer nesta situação. À medida que as nossas negociações comerciais
começam e estão em curso, os países de todo o mundo vão olhar para o Reino Unido
como um país que é virado para o exterior e global, que acredita no comércio livre e que
quer fazê-lo em benefício das economias em todo o mundo e no Reino Unido. Quero
assegurar-me de que a Irlanda do Norte beneficia disso. As cláusulas que apresentarmos
amanhã no projeto de lei assegurarão que, independentemente de tudo o resto, a Irlanda
do Norte beneficiará desse tipo de acordos comerciais.

3. Ursula von der Leyen, Presidente da Comissão Europeia


Tweet de 9 de setembro de 2020, 13h01m

“Muito preocupada com os anúncios do governo britânico sobre as suas intenções de


infringir o Acordo de Saída. Isso representa uma violação do direito internacional e mina
a confiança. Pacta sunt servanda = fundamento de relações futuras prósperas”.

4. Declaração da Comissão Europeia na sequência da reunião extraordinária do


Comité Conjunto UE-RU, 10 de setembro de 2020
in https://ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/en/statement_20_1607

Depois da publicação pelo Governo do Reino Unido do projeto “Lei do mercado


interno do Reino Unido” a 9 de setembro de 2020, o Vice-Presidente Maroš Šefčovič
convocou uma reunião extraordinária do Comité Conjunto UE-RU para solicitar ao
governo do Reino Unido que explique as suas intenções e responder às preocupações
sérias da UE. Hoje, em Londres, decorreu uma reunião entre o Vice-Presidente Maroš
Šefčovič e Michael Govee, Chancellor of the Duchy of Lancaster.
O Vice-Presidente declarou, em termos inequívocos, que a implementação oportuna e
integral do Acordo de Saída, incluindo o Protocolo sobre a Irlanda/Irlanda do Norte – que
o Primeiro Ministro Boris Johnson e o seu governo acordaram e que as duas Câmaras do
Parlamento do RU ratificaram, menos de um ano antes –, é uma obrigação jurídica. A
União Europeia espera que a letra e o espírito deste Acordo sejam totalmente respeitados.
Não respeitar os termos do Acordo de Saída viola o direito internacional, mina a confiança
e põe em risco o futuro das negociações em curso sobre as relações mútuas.

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12 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

O Acordo de Saída entrou em vigor a 1 de fevereiro de 2020 e produz efeitos jurídicos


de acordo com o direito internacional. A partir daquele momento, nem a UE nem o RU
podem, de modo unilateral, alterar, clarificar, emendar, interpretar, desconsiderar ou
desaplicar o acordo. O Protocolo sobre a Irlanda/Irlanda do Norte é uma parte essencial
do Acordo de Saída. O seu objetivo é proteger a paz e a estabilidade na ilha da Irlanda e
foi resultado de negociações longas, pormenorizadas e difíceis entre a UE e o RU.
O Vice-Presidente Maroš Šefčovič declarou que, se aquele projeto for adotado,
constituirá uma violação extremamente grave do Acordo de Saída e do direito
internacional.
Se adotado como proposto, o projeto de lei consistirá numa clara violação de provisões
substantivas do Protocolo: Artigo 5 (3) e (4) e artigo 10, sobre legislação alfandegária e
auxílios de Estado, incluindo, entre outras coisas, o efeito direto do Acordo de Saída
(artigo 4). Além disso, o governo do RU violaria a obrigação de boa fé ao abrigo do
Acordo de Saída (Artigo 5) uma vez que a proposta compromete a realização dos
objetivos do Acordo.
A UE não aceita o argumento de que o objetivo do projeto da “Lei” é proteger o Acordo
de Sexta-feira Santa (Belfast). Com efeito, considera que faz exatamente o contrário.
O Vice-Presidente Maroš Šefčovič pediu ao governo do Reino Unido que retirasse
aquelas medidas da proposta de “Lei” nos mais breves prazos e, em qualquer caso, até ao
final do mês. Declarou que ao apresentar este projeto de lei, o Reino Unido prejudicou
gravemente a confiança entre a UE e o Reino Unido. É agora responsabilidade do governo
RU restabelecer aquela confiança.
Recordou ao governo do RU que o Acordo de Saída contém uma série de mecanismos
e recursos jurídicos adequados no caso de violação das obrigações jurídicas contidas no
texto, que a União Europeia não hesitará em usar.

5. Carta de 4 membros do Congresso dos Estados Unidos ao Primeiro Ministro


do Reino Unido, Boris Johnson, Washington, 15 de setembro de 2020

In https://foreignaffairs.house.gov/_cache/files/e/5/e5331ef0-a823-45a1-ac1e-
ffbb61393fa6/A962A17A5293F062593E3B8DA20FC854.9-15-2020-ele-letter-to-pm-johnson-on-brexit-v.4.pdf

Caro Senhor Primeiro Ministro Johnson:

Escrevemos-lhe como apoiantes convictos da importância da aliança de longa data


entre os Estados Unidos e o Reino Unido, e como americanos que continuam gratos pela
amizade do povo Britânico. Porém, escrevemos com preocupação grave a propósito das
recentes notícias de que estará a trabalhar numa legislação ou noutros esforços que, com
forte probabilidade, invalidariam o Protocolo da Irlanda do Norte no quadro do Acordo
de Saída assinado, o ano passado, pela União Europeia e o Reino Unido.
Como membros da Câmara dos Representantes dos EUA, estamos profundamente
comprometidos nas relações dos Estados Unidos com países em todo o mundo e
consideramos que o Reino Unido está entre os mais próximos aliados e amigos dos
Estados Unidos. A relação especial entre as nossas democracias serviu como um pilar de
estabilidade no Ocidente. Com essa finalidade, estamos gratos por o Reino Unido e os
Estados Unidos enfrentarem tão regularmente desafios globais como aliados próximos –
entre os quais, o Acordo de Sexta-feira Santa de 1998. Como sabe, estamos ao lado de
milhões de americanos que apoiam o resultado do Acordo de Sexta-feira Santa e sentimo-
nos pessoalmente comprometidos em assegurar a paz na Irlanda do Norte.

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13 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

É por estas razões que ficamos tão perturbados com as notícias sobre as iniciativas do
seu governo em pôr em causa o Protocolo da Irlanda do Norte do Acordo de Saída que, a
serem verdade, teriam consequências desastrosas para o Acordo de Sexta-feira Santa e o
processo de fronteira para manter a paz na ilha da Irlanda. Temos consciência dos desafios
que o seu país enfrenta com a aproximação do prazo do dia 15 de outubro para um acordo
negociado – mas a Irlanda dividida por uma fronteira fechada arrisca reacender velhas
tensões que ainda hoje permanecem e pôr em causa décadas de progresso que os Estados
Unidos, a República da Irlanda e o Reino Unido alcançaram juntos.
Finalmente, é necessário que enfatizemos como este assunto poderá afetar diretamente
as relações bilaterais EUA-RU mesmo para além do amplo apoio bipartidário ao povo da
Irlanda do Norte. Muitos, nos Estados Unidos e no Congresso, consideram que os temas
do Acordo de Sexta-feira Santa e um potencial de comércio livre entre EUA-RU estão
intrinsecamente ligados. Nesse sentido, apoiamos a posição claramente expressa pela
Presidente da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos, Nancy Pelosi, que este
mês reiterou que o Congresso dos Estados Unidos não apoiará qualquer acordo de
comércio livre entre os Estados Unidos e o Reino Unido se o Reino Unido falhar em
preservar aquilo que foi alcançado no Acordo de Sexta-feira Santa e no processo de paz
em sentido mais amplo. Se os planos noticiados forem adiante, será difícil considerar que
aquelas condições estão verificadas.
Com as questões suscitadas na presente carta, encorajamo-lo a abandonar todas e
quaisquer iniciativas juridicamente questionáveis e injustas que desprezem o Protocolo
da Irlanda do Norte do Acordo de Saída e a focar-se em garantir que as negociações do
Brexit não comprometem as décadas de progresso em trazer a paz para a Irlanda do Norte
e opções futuras para as relações bilaterais entre os nossos dois países. Muito obrigado
pela sua atenção quanto a este assunto e desejamos continuar a trabalhar consigo de modo
a cumprir as promessas do Acordo de Sexta-feira Santa.

Eliot L. Engel
Richard E. Neal
Willliam R. Keating
Peter T. King

6. Joe Biden, Candidato Presidencial Democrata nos Estados Unidos da


América, Tweet de 16 de setembro de 2020, às 21:48

“Não podemos permitir que o Acordo de Sexta Feira Santa, que trouxe paz à Irlanda
do Norte, se torne uma vítima do Brexit. Qualquer acordo comercial entre os EUA e o
RU deve estar dependente do respeito pelo Acordo e impedir o regresso de uma fronteira
fechada. Ponto.”

Questões:

a) No debate no Parlamento Britânico, vários deputados apontam razões pelas quais


consideram preocupante aquela proposta de lei significar a violação do direito
internacional. Identifique e explique essas razões.
b) Brandon Lewis (Ministro para a Irlanda do Norte) procura justificar a decisão do
Governo em fazer aquela proposta, apesar de “violar o direito internacional”. Parece
possível dividir aqueles argumentos em dois grupos: os que têm a ver “apenas” com o
Reino Unido (de um ponto de vista interno) e aqueles que têm a ver com as suas relações

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14 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

internacionais, nomeadamente com a EU, mas não só. Explique e identifique esses
argumentos.
c) Considere, agora, as declarações dos responsáveis da UE, nomeadamente a Presidente
da Comissão e o Vice-Presidente Maroš Šefčovič. Como justificaria as reações destes
representantes? Como se referiu, o projeto de lei foi, para já, aprovado na generalidade.
Suponha que aquela legislação é, depois de cumpridos todos os procedimentos internos,
finalmente promulgada. Qual crê vai ser a reação expectável da UE?
d) Tome em consideração que, como é frequentemente referido quer da parte do RU, quer
da UE, as negociações quanto aos termos definitivos das relações entre RU e UE ainda
estão a decorrer. Pensa que esta iniciativa legislativa e as reações da UE poderão ter
alguma influência naquelas negociações? O que nos diz isso sobre as relações entre direito
e poder?
e) Considerando a Carta escrita pelos quatro membros da Câmara dos Representantes ao
Primeiro Ministro Boris Johnson, e os argumentos invocados por Brandon Lewis no
Parlamento, nomeadamente aqueles que têm uma natureza “interna”, pode afirmar-se
que, para um Estado, as razões internas e as razões externas são dois planos
completamente distintos? O que é que isso nos diz sobre a sociedade internacional atual?
f) Olhando ao processo negocial, e à posição daqueles quatro membros do Congresso,
considera que aquela Carta tem como objetivo reforçar a posição da UE ou do RU?

III. Um combate jurídico importante: o Tribunal Penal Internacional e os


Estados Unidos

Nota: A 5 de março de 2020, o Juízo de Recurso do Tribunal Penal Internacional (TPI) autorizou a
Procuradora Fatou Bensouda a abrir um inquérito para investigar eventuais crimes internacionais (crimes
contra a humanidade e crimes de guerra) cometidos no Afeganistão. Esta decisão veio reverter uma primeira
decisão do Juízo de Instrução II, tomada no ano anterior (12 de abril de 2019), que recusou a autorização
para a abertura desse mesmo inquérito.
A investigação a ser conduzida pela Procuradora incidirá sobre eventuais crimes internacionais
praticados durante o conflito armado por todas as partes envolvidas, o que implicará investigar não apenas
as condutas dos Talibã ou do Estado Islâmico, mas também as levadas a cabo pelo Exército Nacional
Afegão ou pelos militares das forças armadas ao serviço das missões da NATO, onde se inclui um grande
número de militares e civis norte-americanos.
Esta decisão de abertura do inquérito foi duramente criticada pelos Estados Unidos, que não ratificaram
o Estatuto de Roma que criou o TPI e, portanto, não são um Estado Parte do Tribunal, não reconhecendo a
sua legitimidade para julgar nacionais (militares ou civis) norte-americanos. Como reação a essa decisão,
numa resposta muito pouco habitual e já extremada, adotaram sanções contra a Procuradora Fatou
Bensouda e um outro dirigente do Tribunal.

1. Medidas para Proteger o Pessoal dos EUA das Investigações Ilegítimas do


Tribunal Penal Internacional. Declaração à Imprensa, Secretário de Estado
Michael R. Pompeo, 2 de setembro de 2020
In https://www.state.gov/actions-to-protect-u-s-personnel-from-illegitimate-investigation-by-the-international-criminal-court/

Hoje, os Estados Unidos adotaram medidas para proteger os Americanos de


investigações injustas e ilegítimas do Tribunal Penal Internacional (TPI), que ameaça a
nossa soberania e constitui um perigo para os Estados Unidos e para os nossos aliados.

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Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

Os Estados Unidos são um firme defensor da justiça em todo o mundo, mas não são parte
no Estatuto de Roma que criou o TPI, nem alguma vez aceitamos a sua jurisdição sobre
o nosso pessoal. A imprudência do TPI levou-nos a este ponto, e o TPI não pode ser
autorizado a prosseguir com a sua perseguição politicamente motivada ao pessoal dos
EUA. As sanções e as restrições de vistos anunciadas hoje aplicam-se a indivíduos que
estiveram diretamente envolvidos nos esforços do TPI para investigar pessoal norte-
americanos sem o consentimento dos Estados Unidos ou apoiarem materialmente os
indivíduos que foram designados para tais ações.
Para esse fim e nos termos da Ordem Executiva (O.E.) 13828, os Estados Unidos
identificaram a Procuradora do TPI Fatou Bensouda, por estar diretamente envolvida no
esforço de investigação do pessoal dos EUA, e o Chefe da Divisão de Jurisdição,
Complementaridade e Cooperação, Phakiso Mochochoko, por ter materialmente apoiado
a Procuradora Bensouda. Quer Fatou Bensouda, quer Phakiso Mochochoko foram
adicionados à Lista dos Nacionais Especialmente Designados e Pessoas Bloqueadas, pelo
Gabinete de Controlo dos Bens Estrangeiros do Departamento do Tesouro dos EUA.
Indivíduos e entidades que continuem a apoiar materialmente a Procuradora Bensouda e
o Sr. Mochochoko arriscam-se a ser objeto de sanções. Adicionalmente, de acordo com
o número 4 da O.E. 13928, os indivíduos identificados pela O.E. estão sujeitos a restrições
de visto e podem posteriormente ser considerados inelegíveis para um visto dos EUA. Na
prática, para os indivíduos sujeitos a estas “disposições”, a sua deslocação aos Estados
Unidos é restringida.
O anúncio de hoje reflete o compromisso Americano com a verdadeira justiça e
responsabilização. Dos julgamentos de Nuremberga e Tóquio após a Segunda Guerra
Mundial até aos mais recentes tribunais para a Jugoslávia, o Líbano e o Ruanda, os
Estados Unidos têm consistentemente defendido o bem e punido o mal, de acordo com o
direito internacional. Vamos continuar a fazê-lo. Não temos a intenção de permitir que as
atividades ilegais do TPI se tornem num obstáculo a esse objetivo.

2. Declaração do Alto Representante/Vice-Presidente Josep Borrell sobre as


sanções norte-americanas, Bruxelas, 3 de setembro de 2020
in https://eeas.europa.eu/headquarters/headquarters-homepage/84721/international-criminal-court-statement-high-
representativevice-president-josep-borrell-us_en

O Tribunal Penal Internacional (TPI) desempenha um papel primordial ao levar a


justiça às vítimas de alguns dos crimes mais horrendos do mundo. A independência e
imparcialidade são características fundamentais da atividade do Tribunal, sendo
essenciais para a legitimidade das suas decisões.
As sanções anunciadas a 2 de setembro pela administração dos Estados Unidos contra
dois dos elementos do Tribunal são medidas inaceitáveis e sem precedentes que procuram
obstruir as investigações e procedimentos judiciais do Tribunal.
O TPI deve ser capaz de trabalhar de modo independente e imparcial, livre de
interferências externas. Os Estados Unidos devem reconsiderar a sua posição e reverter
as medidas que adotaram. A impunidade não pode nunca ser uma opção.
A União Europeia continua a apoiar de forma incondicional a universalidade do
Estatuto de Roma e o TPI. Iremos defendê-lo resolutamente contra qualquer tentativa de
obstrução ao curso da justiça e de enfraquecer o sistema internacional de justiça criminal.

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Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

3. O fim das sanções e de restrições quanto aos vistos relativamente a agentes do


Tribunal Penal Internacional, Comunicado à imprensa, Antony J. Blinken,
Secretary of State, 2 de abril de 2021

O Presidente Biden revogou hoje o Despacho executivo n.º 13928 sobre o “Bloqueio da
Propriedade de Certas Pessoas Associadas ao Tribunal Penal Internacional (TPI)”, pondo
termo à ameaça e imposição de sanções económicas e de restrições quanto aos vistos
relacionadas com o Tribunal. Em consequência, foram levantadas as sanções impostas
pela anterior Administração à Procuradora do TPI, Fatou Bensouda (…). O Departamento
de Estado também extinguiu a política autónoma de 2019 sobre restrições quanto aos
vistos relativamente a certos agentes do Tribunal.
Continuamos a discordar profundamente das ações do TPI relacionadas com as situações
do Afeganistão e da Palestina. Continuamos a manter a nossa objeção de longa data aos
esforços do Tribunal em afirmar a sua jurisdição sobre pessoas de Estados não-Partes,
como os Estados Unidos e Israel. Acreditamos, no entanto, que as nossas preocupações
relativamente a estes casos podem ser melhor tratadas através de um compromisso com
todas as artes interessadas no processo do TPI do que através da imposição de sanções.
(…)
Parece-nos positivo que Estados Partes no Estatuto de Roma estejam a ponderar um
conjunto amplo reformas para ajudar o Tribunal para priorizar os seus recursos e realizar
a missão central de servir como tribunal de último recurso na punição de, e prevenção, de
crimes atrozes. Consideramos que esta reforma é um esforço que vale a pena.

COMUNIDADE INTERNACIONAL. AS REFERÊNCIAS A VALORES “COMUNITÁRIOS”

A) Tratados e outros documentos

1. Carta das Nações Unidas, Preâmbulo

NÓS, OS POVOS DAS NAÇÕES UNIDAS, DECIDIDOS:

A preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra que por duas vezes, no espaço de
uma vida humana, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade;
A reafirmar a nossa fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da
pessoa humana, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, assim como das
nações, grandes e pequenas;
A estabelecer as condições necessárias à manutenção da justiça e do respeito das
obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes do direito internacional;
A promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de um conceito mais
amplo de liberdade,

E PARA TAIS FINS:


A praticar a tolerância e viver em paz, uns com os outros, como bons vizinhos;
A unir as nossas forças para manter a paz e a segurança internacionais;
A garantir, pela aceitação de princípios e a instituição de métodos, que a força armada
não será usada, a não ser no interesse comum;

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Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

A empregar mecanismos internacionais para promover o progresso económico e social


de todos os povos.

RESOLVEMOS CONJUGAR OS NOSSOS ESFORÇOS PARA A CONSECUÇÃO


DESES OBJETVOS.
Em vista disso, os nossos respetivos governos, por intermédio dos seus representantes
reunidos na cidade de São Francisco, despois de exibirem os seus plenos poderes, que
foram achados em boa e devida forma, adotaram a presenta Carta das Nações Unidas e
estabelecem, por meio dela, uma organização internacional que será conhecida pelo nome
de Nações Unidas.

Questões:

a) A Carta das Nações Unidas é adotada na sequência da Segunda Guerra Mundial (1939-
1945), considerando muitos que o respetivo Preâmbulo acentua, fortemente, a
internacionalização jurídica. Olhando para o texto acima, concorda?
b) No texto, que referências são feitas a entidades individuais e coletivas? Porquê, em seu
entender?

2. Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, 23 de maio de 1969, arts. 53


e 64

Artigo 53
Tratados incompatíveis com uma norma imperativa
de direito internacional geral (jus cogens)
É nulo todo o tratado que, no momento da sua conclusão, seja incompatível com uma
norma imperativa de direito internacional geral. Para os efeitos da presente Convenção,
uma norma imperativa de direito internacional geral é uma norma aceite e reconhecida
pela comunidade internacional dos Estados no seu todo como norma cuja derrogação não
é permitida e que só pode ser modificada por uma nova norma de direito internacional
geral com a mesma natureza.

Artigo 64
Superveniência de uma norma imperativa de direito internacional geral (jus cogens)
Se sobrevier uma nova norma imperativa de direito internacional, geral, qualquer tratado
existente que seja incompatível com essa norma torna-se nulo e cessa a sua vigência.

3. Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, 1998, Preâmbulo e art. 5,


n.º 1

Afirmando que os crimes de maior gravidade que afetam a comunidade internacional no


seu conjunto não devem ficar impunes e que a sua repressão deve ser efetivamente
assegurada através da adoção de medidas a nível nacional e do reforço da cooperação
internacional;
(…)

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18 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

Determinados em prosseguir este objetivo e, no interesse das gerações presentes e


vindouras, a criar um tribunal penal internacional com carácter permanente e
independente no âmbito do sistema das Nações Unidas, e com jurisdição sobre os crimes
de maior gravidade que afetem a comunidade internacional no seu conjunto;
(…)
Artigo 5.º
Crimes da competência do Tribunal
1. A competência do Tribunal restringir-se-á aos crimes mais graves que afetam a
comunidade internacional no seu conjunto. Nos termos do presente Estatuto, o Tribunal
terá competência para julgar os seguintes crimes:
a) O crime de genocídio;
b) Os crimes contra a Humanidade;
c) Os crimes de guerra;
d) O crime de agressão.

4. Comissão do Direito Internacional, Projeto de Artigos sobre a Responsabilidade


Internacional dos Estados por Factos Internacionalmente Ilícitos (2001), arts.
40, 41 e 48, n.º 1

Capítulo III
Violações graves de normas imperativas de direito internacional geral

Artigo 40
Aplicação do presente Capítulo
1. O presente Capítulo é aplicável à responsabilidade internacional que resulta de
uma violação grave pelo Estado de uma obrigação decorrente de uma norma
imperativa de direito internacional geral.
2. A violação de uma tal obrigação é grave se implicar um incumprimento flagrante
ou sistemático da obrigação pelo Estado responsável.

Artigo 41
Consequências específicas de uma violação grave
de uma obrigação nos termos do presente Capítulo
1. Os Estados devem cooperar para pôr termo, por meios lícitos, a qualquer violação
grave no sentido do artigo 40.
2. Nenhum Estado deve reconhecer como lícita uma situação criada por uma
violação grave no sentido do artigo 40, nem prestar ajuda ou assistência na
manutenção dessa situação.
3. Este artigo não prejudica as demais consequências referidas na presente Parte, ou
outras consequências que possa implicar, segundo o direito internacional, uma
violação à qual se aplique o presente Capítulo.

(…)
Artigo 48
Invocação da responsabilidade por um outro Estado que não o Estado lesado
1. Qualquer outro Estado que não o Estado lesado tem o direito de invocar a
responsabilidade de outro Estado de acordo com o disposto no n.º 2, se

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19 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

a) A obrigação violada existe em relação a um grupo de estados, incluindo esse


Estado, e foi estabelecida para a proteção de um interesse coletivo do grupo; ou
b) A obrigação violada existe em relação à comunidade internacional no seu
conjunto.

5. Convenção da Haia para a Proteção dos bens culturais em situação de conflito


armado, 1954, Preâmbulo

As Altas Partes Contratantes:


Considerando que os bens culturais sofreram graves danos durante os últimos conflitos e
que eles se encontram cada vez mais ameaçados de destruição devido ao desenvolvimento
de tecnologia de guerra;
Convencidos de que os atentados perpetrados contra os bens culturais, qualquer que seja
o povo a quem eles pertençam, constituem atentados contra o património cultural de toda
a humanidade, sendo certo que cada povo dá a sua contribuição para a cultura mundial;
Considerando que a convenção do património cultural apresenta uma grande importância
para todos os povos do mundo e que importa assegurar a este património uma proteção
internacional;
Guiados pelos princípios respeitantes à proteção dos bens culturais em caso de conflito
armado estabelecidos nas Convenções da Haia de 1899 e de 1907 e no Pacto de
Washington de 15 de abril de 1935;
Considerando que, para ser eficaz, a proteção destes bens deve ser organizada em tempo
de paz através de medidas quer nacionais quer internacionais;
Determinados a adotar todas as disposições possíveis para proteger os bens culturais;

Questões:

a) Nos textos acima, faz-se referência, nem sempre idêntica, a conceitos que reforçam a
ideia de comunidade jurídica internacional. Em cada um dos excertos, identifique esses
conceitos, justificando a sua escolha.
b) Será defensável dizer-se que, nos exemplos acima, resulta razoavelmente clara a
existência de valores jurídicos comunitários e, em alguns casos, que não estão ao dispor
da “vontade” dos sujeitos internacionais? Apresente exemplos, justificando.

6. O património comum da humanidade e o direito do mar

a) Arvid Pardo, Embaixador de Malta junto das Nações Unidas, AG, Primeiro
Comité, 1516.ª reunião, A/C.1/PV.1516, 1 de novembro de 1967 (excertos)

3. Por aquilo que disse esta manhã, penso ser claro não haver dúvidas de que a única
alternativa para podermos evitar a escalada de tensões se continuar a atual situação é a de
um regime internacional efetivo sobre o leito do mar e os fundos marinhos e oceânicos
para lá de uma jurisdição nacional claramente definida. (…) É, finalmente, a única
alternativa que dá garantias de que os recursos imensos no ou sob o leito do mar serão
explorados sem lesar ninguém e em benefício de todos.
4. Finalmente, um regime internacional devidamente estabelecido contém todos os
elementos necessários que deveriam torna-lo aceitável para todos nós: países ricos e
pobres, fortes e fracos, costeiros e sem litoral. Através de um regime internacional, todos

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Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

terão a garantia de que pelo menos os fundos marinhos serão usados exclusivamente para
fins pacíficos e que haverá uma exploração ordenada dos seus recursos. (…)
10. (…) Defendemos de forma convicta que os seguintes princípios, entre outros, deverão
ser incorporados no tratado proposto:
a) O leito do mar e os fundos marinhos sob os oceanos para lá dos limites da jurisdição
nacional, tal como definidos nos tratados, não estão sujeitos a apropriação nacional por
qualquer forma.
b) O leito do mar e os fundos marinhos para lá dos limites da jurisdição nacional serão
usados, exclusivamente, para fins pacíficos.
c) A investigação científica no leito do mar e fundos marinhos, não diretamente
relacionada com a defesa, deverá ser permitida livremente e os seus resultados colocados
à disposição de todos.
d) Os recursos do leito do mar e fundos marinhos, para lá da jurisdição nacional, serão
explorados, primariamente, no interesse da Humanidade, tomando especialmente em
consideração as necessidades dos países pobres.
e) A exploração do leito do mar e dos fundos marinhos para lá dos limites da jurisdição
nacional será levada a cabo de uma maneira conforme com os princípios e objetivos da
Carta das Nações Unidas e de um modo que não cause obstáculo no alto mar ou ao
ambiente marinho.
(…)
12. Estes são os nossos objetivos a longo prazo. Compreendemos que não serão realizados
nem depressa nem de uma forma fácil. Esperamos, no entanto, que a Assembleia Geral
adote na sua presente sessão uma resolução que integre os conceitos seguintes:
13. Em primeiro lugar, o leito do mar e os fundos marinhos são património comum da
Humanidade e deverão ser usados e explorados com fins pacíficos e para benefício
exclusivo da Humanidade no seu conjunto. As necessidades dos países pobres, que
representam aquela parte da Humanidade que necessita de mais assistência, seriam
tomados em consideração de forma preferencial relativamente aos benefícios financeiros
que resultem da exploração comercial do leito do mar e dos fundos marinhos. (…)

b) Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, 1982 (excertos)

Artigo 82º
Pagamentos e contribuições relativos ao aproveitamento da plataforma continental
além de 200 milhas marítimas
1. O Estado costeiro deve efetuar pagamentos ou contribuições em espécie relativos ao
aproveitamento dos recursos não vivos da plataforma continental além de 200 milhas
marítimas das linhas de base, a partir das quais se mede a largura do mar territorial.
2. Os pagamentos e contribuições devem ser efetuados anualmente em relação a toda a
produção de um sítio após os primeiros cinco anos de produção nesse sítio. No sexto ano,
a taxa de pagamento ou contribuição será de 1% do valor ou volume da produção no sítio.
A taxa deve aumentar em 1% em cada ano seguinte até ao décimo segundo ano, e daí por
diante deve ser mantida em 7%. A produção não deve incluir os recursos utilizados em
relação com o aproveitamento.
3. Um Estado em desenvolvimento que seja importador substancial de um recurso mineral
extraído da sua plataforma continental fica isento desses pagamentos ou contribuições em
relação a esse recurso mineral.

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21 Direito Internacional Público
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2022/2023
1º semestre

4. Os pagamentos ou contribuições devem ser efetuados por intermédio da Autoridade,


que os distribuirá entre os Estados Partes na presente Convenção na base de critérios de
repartição equitativa tendo em conta os interesses e necessidades dos Estados em
desenvolvimento, particularmente entre eles, os menos desenvolvidos e os sem litoral.

Artigo 125.º
Direito de acesso ao mar e a partir do mar e liberdade
de trânsito
1. Os Estados sem litoral têm o direito de acesso ao mar e a partir do mar para exercerem
os direitos conferidos na presente convenção, incluindo os relativos à liberdade do alto
mar e ao património comum da Humanidade. Para tal fim, os Estados sem litoral gozam
de liberdade de trânsito através do território dos Estados de trânsito por todos os meios
de transporte.

Artigo 136.º
Património comum da Humanidade
A área e seus recursos são património comum da Humanidade.

Artigo 155.º
Conferência de revisão
(…)
2. A conferência de revisão deve igualmente assegurar a manutenção do princípio do
património comum da humanidade, do regime internacional para o aproveitamento
equitativo dos recursos da área em benefício de todos os países, especialmente dos
Estados em desenvolvimento, e da existência de uma Autoridade que organize, realize e
controle as atividades na área. (…)

Artigo 311.º
Relação com outras convenções e acordos internacionais
(…)
6. Os Estados partes convêm em que não podem ser feitas emendas ao princípio
fundamental relativo ao património comum da Humanidade estabelecido no artigo 136.º
e em que não serão partes em nenhum acordo que derrogue esse princípio.

Questões:

a) Considerando o discurso de Arvid Pardo, descreva por palavras suas o que será o
“património comum da humanidade”.
b) Identifique, nas normas selecionadas da Convenção das Nações Unidas sobre o direito
do Mar, concretizações da ideia de comunidade jurídica internacional, mas também de
recursos comunitários e, por isso, partilha desses mesmos recursos.

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B) Jurisprudência

1. TIJ, caso Barcelona Traction, Light and Power Company, Bélgica c. Espanha,
5 de fevereiro de 1970, Col. 1970, p. 32, par. 33

33. Quando um Estado admite no seu território investimentos estrangeiros ou cidadãos


estrangeiros, pessoas singulares ou coletivas, obriga-se a conceder-lhes a proteção do
direito e assume certas obrigações relativamente ao seu tratamento. No entanto, estas
obrigações não são nem absolutas nem incondicionais. Em especial, deve estabelecer-se
uma distinção essencial entre as obrigações dos Estados perante a comunidade
internacional no seu conjunto e aquelas que surgem relativamente a um outro Estado no
quadro da proteção diplomática. Pela sua própria natureza, as primeiras dizem respeito a
todos os Estados. Tomando em consideração a importância dos direitos em causa, pode
considerar-se que todos os Estados têm um interesse jurídico em que esses direitos sejam
protegidos; as obrigações em causa são obrigações erga omnes.

2. TIJ, Caso Timor-Leste, Portugal c. Austrália, 30 de junho de 1995, Col., 1995,


p. 102, par. 29

29. No entanto, Portugal adianta um argumento adicional para mostrar que o princípio
formulado pelo Tribunal no caso relativo ao Ouro Monetário retirado de Roma em 1943
não é aplicável no caso presente. Defende, com efeito, que os direitos que a Austrália
alegadamente violou eram direitos erga omnes e que, por conseguinte, Portugal podia
exigir-lhe, individualmente, que os respeitasse, independentemente de outro Estado ter,
ou não, agido de modo igualmente ilícito.
No entender do Tribunal, é indiscutível a asserção de Portugal de que o direito dos povos
à autodeterminação, tal como evoluiu a partir da Carta e da prática das Nações Unidas,
tem natureza erga omnes. O princípio de autodeterminação dos povos foi reconhecido
pela Carta das Nações Unidas e na jurisprudência do Tribunal (…); é um dos princípios
essenciais do direito internacional contemporâneo. No entanto, o Tribunal considera que
o caráter erga omnes de uma norma e a regra do consentimento à jurisdição são coisas
diferentes. Qualquer que seja a natureza das obrigações invocadas, o Tribunal não pode
pronunciar-se sobre a licitude do comportamento de um Estado quando a decisão a tomar
implica uma avaliação da licitude do comportamento de outro Estado que não é parte no
caso. Quando assim é, o Tribunal não pode agir, mesmo se o direito em questão é um
direito erga omnes.

3. TIJ, Efeitos jurídicos da separação do arquipélago dos Chagos da Maurícia em


1965, Parecer Consultivo, 25 de fevereiro de 2019, Col., 2019, p. 139, par. 180

180. Sendo o respeito pelo direito à autodeterminação uma obrigação erga omnes, todos
os Estados têm um interesse jurídico em que esse direito seja protegido (…). No entender
do Tribunal, enquanto cabe à Assembleia Geral pronunciar-se sobre as modalidades
necessárias à conclusão da descolonização da Maurícia, todos os Estados devem cooperar
com a Organização das Nações Unidas para a execução dessas modalidades.”

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2022/2023
1º semestre

4. Idem, loc. cit., pp.156 ss., Declaração de voto do Juíz Cançado Trindade

38. Uma atenção e cuidado crescentes foram dedicados ao direito dos povos e, em
particular, ao direito de autodeterminação como um direito inerente a todos os povos,
como um direito humano fundamental (...).
231. (...) [R]esoluções sucessivas da Assembleia Geral das NU têm dado uma notável
contribuição para o reconhecimento universal e para a consolidação do direito dos povos
à autodeterminação (...).
232. Numa perspetiva histórica, tal contribuição tem sido vista como das mais
significativas na história das Nações Unidas, levando a justiça aos povos à luz de
princípios e na prossecução do universalismo. As duas declarações contidas
respetivamente nas resoluções da Assembleia Geral 1514 (XV) de 1960, e 2625 (XXV)
de 1970, são da maior relevância, pela sua contribuição para o progressivo
desenvolvimento do direito internacional.
(…)
287. Isto leva-me à minha última linha de raciocínio. Os princípios fundamentais são,
com efeito, os alicerces da realização da própria justiça, e o pensamento jusnaturalista
sempre sublinhou a sua importância. O jus necessarium é então constituído por regras
que são justas, emanadas da recta ratio. Os princípios gerais do direito, compreendidos
pela consciência humana ao longo dos séculos, são então da maior relevância para a
interpretação, aplicação, e progressivo desenvolvimento do direito internacional.
288. O reconhecimento dos “princípios gerais do direito”, e a sua inclusão no elenco das
fontes “formais” de direito internacional previstas no Artigo 38 do Estatuto do Tribunal
da Haia (TIJ), são da maior importância, e requerem uma maior atenção por parte do
pensamento jurídico contemporâneo. Os acima referidos princípios gerais do direito
sempre estiveram presentes na busca da realização da justiça, na qual considerações
básicas de humanidade desempenham um papel de suma importância.
289. A postura básica de um tribunal internacional só pode ser principiste [assente em
princípios], sem fazer concessões indevidas ao voluntarismo do Estado. O positivismo
jurídico sempre tentou, em vão, minimizar o papel dos princípios gerais do direito, mas a
verdade é que, sem esses princípios, não existe de todo um sistema jurídico. Tais
princípios dão expressão à ideia de uma justiça objetiva, abrindo o caminho à aplicação
do direito internacional universal, o novo jus gentium do nosso tempo.
290. Tais princípios assumem uma grande importância, perante a crescente tragédia
contemporânea das pessoas deslocadas à força, ou migrantes indocumentados, em
situações de extrema vulnerabilidade, em diferentes partes do mundo. Tal contínua e
crescente tragédia humana mostra que as lições do passado parecem continuar largamente
esquecidas. Isto vem reforçar a relevância dos princípios e valores fundamentais, que já
norteiam a ação das Nações Unidas – em particular da sua Assembleia Geral, como já
demonstrado na presente declaração de voto – bem como da jurisprudência internacional
(sobretudo do TIDH [Tribunal Interamericano dos Direitos Humanos]) sobre a matéria.

5. TIJ, Conformidade com o direito internacional da declaração unilateral de


independência do Kosovo, parecer Consultivo, 22 de julho de 2010, Col., 2010,
p. 437, par. 81

81. Vários dos participantes invocaram resoluções do Conselho de Segurança que


condenaram declarações de independência concretas: ver, inter alia, as resoluções do

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Conselho de Segurança 216 (1965) e 217 (1965), relativas à Rodésia do Sul; resolução
541 (1983), elativa a Chipre do Norte; e resolução 787 (1992), relativa à Republica
Srpska.
O Tribunal nota, no entanto, que em cada um destes casos o Conselho de Segurança estava
a decidir quanto à situação concreta, existente no momento em que essas declarações de
independência foram feitas; a ilegalidade associada às declarações de independência, por
conseguinte, não resultou da natureza unilateral dessas declarações, enquanto tal, mas do
facto de que eram, ou podiam ter sido, relacionadas com o recurso ilícito à força ou outras
violações graves de normas de direito internacional geral, em especial as de natureza
imperativa ( jus cogens).

6. TIJ, Consequências jurídicas da construção de um muro no território


palestiniano ocupado, Parecer Consultivo, 9 de julho de 2004, Col., 2004, p. 199,
par. 155

155. A este respeito, o Tribunal observa que, entre as obrigações internacionais violadas
por Israel se incluem algumas obrigações erga omnes. (…) As obrigações erga omnes
violadas por Israel são a obrigação de respeitar o direito do povo palestiniano à
autodeterminação, assim como certas obrigações que lhe incumbem em virtude do direito
internacional humanitário.”

7. TIJ, Despacho de medidas provisórias, Aplicação da Convenção para a


Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio (Gâmbia c. Myanmar), 20 de
janeiro de 2020
In https://www.icj-cij.org/files/case-related/178/178-20200123-ORD-01-00-EN.pdf, par. 41 e 42.

Nota: A 11 de novembro de 2019, a Gâmbia apresentou no TIJ uma Queixa contra Myanmar a propósito
da Aplicação da Convenção para a Prevenção e repressão do Crime de Genocídio.
Além da questão de fundo, a Gâmbia pediu também ao Tribunal que adotasse medidas provisórias urgentes
para a proteção dos Rohingya.
O excerto apresentado é do despacho relativo às medidas provisórias. O questão de fundo continua a ser
julgada no TIJ.
Um dos elementos apresentados como “prova” para sustentar os factos alegados pela Gâmbia é o seguinte:
Report of the independent international fact-finding mission on Myanmar, de setembro de 2018,
https://www.ohchr.org/Documents/HRBodies/HRCouncil/FFM-Myanmar/A_HRC_39_64.pdf.

“41. O Tribunal recorda que, no Parecer Consultivo sobre as Reservas à Convenção para
a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio, observou que:

“[n]uma convenção como aquela, as Partes contratantes não têm interesses próprios; apenas têm, cada uma
e todas, um interesse comum, nomeadamente, alcançar os grandes propósitos que são a razão de ser da
convenção. Consequentemente, numa convenção deste tipo não se pode falar em vantagens ou
desvantagens individuais dos Estados, ou da manutenção de um equilíbrio contratual perfeito entre direitos
e deveres. Os grandes ideais que inspiram a Convenção implicam, fruto da vontade comum das Partes, o
fundamento e a medida de todas as suas normas” (TIJ,
Col., 1951, p. 23).

Considerando os valores que partilham, todos os Estados partes na Convenção do


Genocídio têm um interesse comum em assegurar que atos de genocídio são evitados e

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25 Direito Internacional Público
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2022/2023
1º semestre

que, se ocorrerem, os seus autores não gozem de impunidade. Esse interesse comum
implica que as obrigações em questão são devidas por qualquer Estado parte a todos os
demais Estados parte na Convenção. No seu Acórdão sobre as questões relacionadas com
a Obrigação de Perseguir e Extraditar (Bélgica c. Senegal), o Tribunal observou que as
normas relevantes da Convenção contra a Tortura eram “semelhantes” às da Convenção
do Genocídio. O Tribunal afirmou que aquelas normas criam “obrigações [que] podem
ser definidas como ‘obrigações erga omnes partes’ no sentido em que cada Estado parte
tem um interesse no seu cumprimento em qualquer caso concreto” (Acórdão, TIJ, Col.,
2012 (II), p. 449, par. 68). Consequentemente, qualquer Estado parte na Convenção do
Genocídio, e não apenas o Estado especialmente afetado, pode invocar a responsabilidade
de outro Estado parte tendo em vista apurar o alegado incumprimento das suas obrigações
erga omnes partes, e pôr fim a essas violações.
42. O Tribunal conclui que a Gâmbia tem legitimidade prima facie para lhe submeter a
questão contra Myanmar tendo por base as alegadas violações ao abrigo da Convenção
do Genocídio.”

Questões:

a) Em vários dos excertos apresentados, o Tribunal fala em obrigações erga omnes. Como
as definiria?
b) Quais as normas substantivas que, em cada caso, o Tribunal refere?
c) Recorde agora o artigo 53 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (que
define normas ius cogens). Normas ius cogens e normas erga omnes são uma e a mesma
coisa?
d) Nos parágrafos 231 e 232 do excerto da declaração de voto do Juiz Cançado Trindade
é feita referência ao papel da AG das Nações Unidas no desenvolvimento, afirmação e
consolidação do princípio da autodeterminação dos povos. Recorde aquilo que estudou a
propósito da evolução histórica sobre este assunto em especial o papel da AG das Nações
Unidas (com mais Estados e mais diversos, consequência da descolonização) no processo
de universalização da sociedade e do direito internacional (em especial, págs. 66 a 74)
e) De acordo com o Juiz Cançado Trindade, qual o papel dos princípios gerais de direito
internacional? E qual a sua importância? A determinada a altura, fala do Positivismo e do
Iusnaturalismo. De que escola de pensamento se parece aproximar?
f) No despacho sobre as medidas provisórias decidido pelo TIJ a propósito da aplicação
da Convenção do Genocídio, desenvolve-se a natureza das normas e a razão de ser da
Convenção. Explicite, identificando excertos concretos daquela decisão e explicando-os,
em que é que a natureza erga omnes partes das normas é reveladora da existência de uma
verdadeira comunidade internacional. Será aquela norma, também, ius cogens?
g) De acordo com a decisão do Tribunal, qual a consequência concreta que resulta do
facto de aquelas normas terem natureza erga omnes partes do ponto de vista da
legitimidade dos Estados, e da Gâmbia em concreto, junto do TIJ?

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26 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

O DIREITO INTERNACIONAL CONTEMPORÂNEO: UNIVERSAL E TENDENCIALMENTE


ILIMITADO

1. Leituras contemporâneas: intervenções de chefes de Estado e de Governo perante a


Assembleia Geral das Nações Unidas, setembro de 2020

a) França, Emmanuel Macron, discurso na AG das Nações Unidas, Debate Geral da


75.ª sessão plenária, 22 de setembro de 2020,
https://www.diplomatie.gouv.fr/IMG/pdf/elysee-module-16058-fr_cle04cfbd.pdf

Senhor Presidente da Assembleia Geral, Senhor Secretário Geral das Nações Unidas,
Senhoras e Senhores Chefes de Estado e de Governo,

O ano passado, estávamos reunidos em Nova Iorque para a nossa Assembleia Geral e
apelei então a cada um de vós para que tivesse a coragem de construir a paz e para
assumirmos as nossas responsabilidades. Essa coragem, devo dizê-lo, foi mais do que
duramente testada por um choque sanitário, económico, social, securitário, de uma
amplitude sem precedentes, de uma globalidade imediata desde a criação da nossa
Organização, há 75 anos. (…) [E]sta crise, mais do que qualquer outra, impõe a
cooperação, obriga-nos a inventarmos novas soluções internacionais. (…)
Anos de progressos na luta contra as outras doenças infeciosas HIV, o paludismo, a
tuberculose, que pensávamos poder estar a vencer, sofreram atraso, por vezes mais do
que isso. Mais de 37 milhões de pessoas estão, ou voltaram a cair, numa situação de
pobreza extrema. (…)
Perante esta e tantas outras consequências ligadas à pandemia que atingiu o nosso planeta
e que continua a atingir todos os continentes, a fracturação dos nossos meios de ação
coletiva acentuou-se. Numa altura em que única solução só virá da nossa cooperação, as
organizações internacionais de que precisamos tanto, como a Organização Mundial de
Saúde, foram acusadas por uns de complacência e instrumentalizadas por outros. (…)
Mesmo a nossa organização correu o risco da impotência. O Conselho de Segurança das
Nações Unidas, garante da paz e da estabilidade, só muito dificilmente conseguiu chegar
a acordo relativamente a uma trégua humanitária que apoiámos com todas as nossas
forças. Imaginem. Ser tão difícil chegarmos a acordo sobre tão pouco. Mas, como
teríamos desejado, os seus membros permanentes não puderam, em circunstâncias tão
excecionais, reunir, porque dois deles preferiram exibir a sua rivalidade em vez de
preferirem a eficácia coletiva. Todas as fraturas que existiam antes da pandemia, o choque
hegemónico das potências, o questionar do multilateralismo ou a sua instrumentalização,
o espezinhamento do direito internacional, aceleraram e ficaram mais graves em favor da
desestabilização global criada pela pandemia. (…)
É por isso que faço questão em dizer perante esta assembleia as cinco prioridades sobre
as quais a França deseja construir, em primeira linha com os seus parceiros europeus, mas
também com todas as potências de boa vontade, quer dizer, com todos aqueles que
estejam dispostos a comprometer-se com aquelas, as fundações de um novo consenso
contemporâneo que permitirá agir em concreto no mundo, tal como é.
O primeiro princípio, ou o primeiro objetivo, é a luta contra a proliferação das armas
de destruição massiva e contra o terrorismo, que ameaçam mais gravemente a nossa
segurança coletiva. (…)

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27 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
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1º semestre

Em meu entender, a segunda prioridade dos próximos meses será a construção exigente
da paz e da estabilidade, com respeito pela igualdade soberana dos povos.
A gramática da paz e da estabilidade tem de ser redefinida, porque as linhas alteraram-se
profundamente devido à crise, mas, no fundo, bem antes dela. A retirada dos americanos,
que funcionavam como garantia, em última instância, de um sistema internacional hoje
ultrapassado, a afirmação hegemónica de outras potências devido a esta retirada, a
projeção da China para lá das suas fronteiras, o reforço da soberania europeia – todas
estas tendências de fundo podem levar-nos a repensar as modalidades da nossa ação
coletiva para garantir a paz e a segurança. Os nossos princípios de ação nesta matéria
devem ser claros, e a nossa mão não deve tremer na sua aplicação: o respeito pelos direitos
soberanos dos povos, a consolidação do Estado de Direito e dos seus meios de ação, a
exigência e a responsabilidade para garantir a execução efetiva das decisões tomadas sob
a égide das Nações Unidas. (…)
Em terceiro lugar, temos de proteger os bens que nos são comuns. É uma
responsabilidade de todos, vai além dos nossos interesses nacionais, dos nossos
equilíbrios regionais. Proteger os nossos bens comuns não é contraditório com o exercício
da nossa soberania. Ao contrário, é a única maneira de a preservar realmente, mantendo
o controlo dos nossos destinos. É exatamente o que a crise que atravessamos demonstra,
mais uma vez de modo incontestável.
(…)
O clima e a biodiversidade devem estar, mais do que nunca, no centro da nossa agenda
coletiva. Não nas palavras, mas nos atos. Em dezembro, o acordo de Paris celebra 5 anos,
e já sabemos que os objetivos que nos estabelecemos coletivamente não serão alcançados.
(…)
A Europa irá alcançar nas próximas semanas, e estou nisso empenhado, um acordo para
aumentar o nível da sua ambição para alcançar a neutralidade carbónica em 2050. A
Presidente da Comissão Europeia fixou o objetivo da redução das emissões de gás de
estufa em pelo menos 55% até 2030.
(…)
A quarta prioridade é a construção de uma nova era da globalização. A primeira era da
globalização foi iniciada com as viagens de Cristóvão Colombo e de Magalhães; a [era]
da descoberta. (…) A segunda foi a dos impérios coloniais e da revolução industrial do
século XIX. (…) A terceira, começou em 1989, com a queda do Muro de Berlim, a
abertura das fronteiras, a crença na possibilidade de que a circulação de bens e de pessoas,
e depois a generalização da Internet conduziriam a convergências de interesses, de valores
e de ideias. (…)
Finalmente, o quinto objetivo que aqui quero tentar propor ao nosso coletivo é o respeito
do direito internacional humanitário e dos direitos fundamentais de todos. Para mim,
este objetivo é essencial para a própria sobrevivência da nossa organização. (…)
Assumirmos as nossas responsabilidades no domínio humanitário é, também, mostrar
solidariedade e humanidade no domínio migratório. (…)
Por último, os direitos fundamentais não são uma ideia ocidental a que pudesse objetar-
se como ingerência a todos aqueles que se lhes refere. São princípios da nossa
organização, inscritos em textos que os Estados membros das Nações Unidas consentiram
livremente em assinar e respeitar. (…)
Tudo isto necessita, como método, do estabelecimento de uma cooperação internacional
funcional, assente em regras claras, definidas e respeitadas por todos. O multilateralismo

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2022/2023
1º semestre

não é apenas um ato de fé, é uma necessidade operacional. Nenhum país conseguirá sair
sozinho destas dificuldades.
A cooperação internacional pode ser difícil, mas é, objetivamente, imperativa.
Por tudo isto, não podemos contentar-nos com um multilateralismo das palavras que só
permite alcançar, no fundo, o maior denominador comum, forma de esconder
divergências profundas atrás de um consenso de fachada. (…) O multilateralismo
contemporâneo deve, também, associar as organizações internacionais, os atores
privados, as empresas, as ONG, os investigadores, os cidadãos, para que cada um
participe nas ações levadas a cabo. Construir-se-á com base em acordos sólidos,
respeitados, verificados entre parceiros de boa fé, em torno de objetivos e de regras claras,
com uma verdadeira responsabilidade e mecanismos de prestação de contas.

b) Rússia, Vladimir Putin, Discurso no debate geral da 75.ª sessão da Assembleia Geral
das Nações Unidas, 22 de setembro de 2020,
http://en.kremlin.ru/events/president/news/64074

Este ano, a comunidade internacional celebra, sem exagero, dois aniversários históricos:
o 75.º aniversário do fim da Segunda Guerra Mundial e o estabelecimento das Nações
Unidas.
Nunca será demais insistir na importância destes dois acontecimentos, interligados para
sempre. Em 1945, o nazismo foi derrotado, a ideologia da agressão e do ódio foi
esmagada, e a experiência e espírito de aliança, assim como a consciência do preço
enorme que foi pago para a paz e a nossa vitória comum, ajudaram a construir a ordem
do pós-guerra. Foi construída com a fundação da Carta das Nações Unidas, que continua
a ser, até hoje, a principal fonte de direito internacional.
Estou convencido de que este aniversário nos impõe a todos recordar os princípios
permanentes da comunicação interestadual, consagrados na Carta das Nações Unidas e
formulados pelos fundadores da nossa Organização universal nos termos mais claros e
sem ambiguidade. Esses princípios incluem a igualdade dos Estados soberanos, a
proibição da interferência nos seus assuntos internos, o direito dos povos a determinarem
o seu próprio futuro, o não recurso à força ou à ameaça da força e a resolução política dos
diferendos. (…)
As alterações contemporâneas produzem efeitos no principal órgão das NU, o Conselho
de Segurança, assim como no debate relativo às abordagens sobre a sua reforma. A nossa
lógica é a de que o Conselho de Segurança deverá integrar mais os interesses de todos os
países, assim como a diversidade das suas posições, basear o seu trabalho no princípio do
consenso o mais amplo possível entre Estados e, ao mesmo tempo, continuar a servir
como pilar da governação global, que só pode ser realizada se os membros permanentes
do Conselho de Segurança conservarem o seu poder de veto.
Este direito das cinco potências nucleares, os vencedores da Segunda Guerra Mundial,
continua até hoje a ser indicativo dos equilíbrios atuais no plano militar e político. Ainda
mais importante, é um instrumento essencial e único que ajuda a evitar ações unilaterais
que podem resultar em confronto militar entre os maiores Estados, e dá a oportunidade
de procurar o compromisso ou, pelo menos, de evitar soluções que seriam completamente
inaceitáveis para outros e de agir no quadro do direito internacional, mais do que no de
uma zona de arbítrio e ilegitimidade, vaga e cinzenta.
Como a prática diplomática mostra, este instrumento funciona realmente, ao contrário da
famigerada Sociedade das Nações de antes da guerra, com as suas discussões infindáveis,

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29 Direito Internacional Público
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2022/2023
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declarações sem mecanismos para uma ação real e com os Estados e povos necessitados
sem terem o direito a assistência e proteção.

c) República Popular da China, Xi Jinping, Discurso no debate geral da 75.ª sessão da


Assembleia Geral das Nações Unidas, 23 de setembro de 2020,
https://news.cgtn.com/news/2020-09-23/Full-text-Xi-Jinping-s-speech-at-General-
Debate-of-UNGA-U07X2dn8Ag/index.html

(…)
A China é o maior país em desenvolvimento do Mundo, um País que está comprometido
com um desenvolvimento pacífico, aberto, cooperativo e comum. Nunca procuraremos a
hegemonia, expansão ou esferas de influência. Não temos a intenção de ter ou uma Guerra
Fria ou uma guerra quente com qualquer país. Iremos continuar a estreitar as divergências
e a resolver os diferendos com outros através do diálogo e da negociação. Não temos
como objetivo que o desenvolvimento seja apenas nosso ou envolvermo-nos num jogo de
soma zero. Não procuraremos o desenvolvimento atrás de portas fechadas. Antes,
queremos reforçar, com o tempo, um novo paradigma de desenvolvimento, com a
circulação interna como esteio e com a circulação interna e internacional a reforçarem-se
mutuamente. Isto criará mais espaço para o desenvolvimento económico da China e
aumentar o ritmo da recuperação e crescimento económicos globais.
(…)

d) EUA, Donald Trump, Discurso no debate geral da 75ª Sessão da Assembleia Geral
das Nações Unidas, 22 de setembro de 2020, https://www.whitehouse.gov/briefings-
statements/remarks-president-trump-75th-session-united-nations-general-assembly/

É uma grande honra dirigir-me à Assembleia Geral das Nações Unidas.


Setenta e cinco anos depois do fim da II Guerra Mundial e da fundação das Nações
Unidas, estamos uma vez mais envolvidos numa grande luta global. Travámos uma
batalha feroz contra o inimigo invisível – o vírus da China – que ceifou inúmeras vidas
em 188 países.
Nos Estados Unidos, empreendemos a mobilização mais agressiva desde a Segunda
Guerra Mundial. Rapidamente produzimos um número recorde de ventiladores, criando
um excedente que nos permitiu partilhá-los com os nossos amigos e parceiros por todo o
globo. Fomos pioneiros em tratamentos que salvam vidas, reduzindo a nossa percentagem
de mortos em 85 por cento desde abril.
Graças aos nossos esforços, três vacinas estão na fase final dos ensaios clínicos. (…)
Iremos distribuir a vacina, iremos derrotar o vírus, iremos pôr termo à pandemia, e
entraremos numa era de prosperidade, cooperação e paz sem precedentes.
Enquanto caminhamos no sentido de um futuro brilhante, temos de responsabilizar a
nação que desencadeou esta praga no mundo: a China.
Nos primeiros dias do vírus, a China suspendeu as viagens internas, permitindo que voos
saíssem da China e infetassem o mundo. A China condenou a minha proibição de viajar
para aquele país, mesmo quando eles cancelaram voos domésticos e fecharam os seus
cidadãos nas suas casas.
O governo Chinês e a Organização Mundial de Saúde – que é virtualmente controlada
pela China – declararam falsamente que não existia prova da transmissão humano-a-

29
30 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

humano. Mais tarde, afirmaram falsamente que pessoas sem sintomas não espalhariam a
doença.
As Nações Unidas têm de responsabilizar a China pelas suas ações.
(…)

e) Comunicado conjunto dos Ministros dos Negócios Estrangeiros do G4, 23 de setembro


de 2020, https://www.mofa.go.jp/files/100095828.pdf

1. A 23 de setembro de 2020, os Ministros dos Negócios Estrangeiros dos países do G4


[Brasil, Índia, Japão e Alemanha] (…) encontraram-se virtualmente à margem da 75ª
sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas.
2. “O mundo de hoje é muito diferente do mundo que existia quando as Nações Unidas
foram criadas há 75 anos. Há mais países, mais pessoas, mais desafios, mas também mais
soluções. Os nossos métodos de trabalho têm de se manter atuais e adaptados. (…)
Reiteramos o nosso pedido de reformas de três dos principais órgãos das Nações Unidas.
Comprometemo-nos a reanimar as discussões quanto à reforma do Conselho de
Segurança.”
Estas palavras, incluídas na declaração agora mesmo adotada por todos os Chefes de
Estado e de Governo, reafirmam a nossa resolução comum de finalmente dar passos
decisivos no sentido da reforma inicial e abrangente do Conselho de Segurança, tal como
foi como pensada pelos Chefes de Estado e de Governo na Cimeira de 2005.
3. De acordo com este apelo, os Ministros dos G4 sublinharam a urgência de reformar as
Nações Unidas e atualizar os seus principais órgãos de decisão, de modo a refletir melhor
as realidades contemporâneas. Os Ministros do G4 expressaram desilusão pelas tentativas
de travar este processo e comprometeram-se a suscitar esta questão de modo significativo
e com crescente urgência neste 75º aniversário das NU.
4. Como parte da reforma do Conselho de Segurança é indispensável uma expansão dos
membros do Conselho de Segurança em ambas as categorias [membros permanentes e
não permanentes] para tornar este órgão mais representativo, legítimo e efetivo,
reforçando, assim, a sua capacidade para lidar com desafios complexos que o mundo
enfrenta hoje no domínio da paz e segurança internacionais.
Só se formos capazes de reformar o Conselho de Segurança é que impediremos que se
torne obsoleto. O alargamento dos membros do Conselho de Segurança, com uma maior
e mais efetiva representação de países com a capacidade e vontade de contribuir para a
manutenção da paz e segurança internacionais, incluindo de África, permitir-lhe-á
preservar a sua credibilidade e criar o apoio político necessário para a resolução pacífica
das crises internacionais dos nossos dias.
(…)
7. Os Ministros dos G4 estão convencidos que chegou o momento de deixar para trás
debates apenas baseados em declarações genéricas, sem que de facto ocorram
negociações substantivas dos textos [de alteração do tratado] a um nível
intergovernamental. Uma esmagadora maioria dos Estados Membros das Nações Unidas
apoiam firmemente uma reforma abrangente do Conselho de Segurança (…).
8. Os Ministros dos G4 reiteraram o apoio mútuo às suas candidaturas como aspirantes a
novos membros permanentes num Conselho de Segurança reformado, considerada a sua
capacidade e vontade para assumir grandes responsabilidades no que diz respeito à
manutenção da paz e da segurança internacionais. É claramente necessário que o papel
de países em desenvolvimento e de outros contribuintes principais das Nações Unidas

30
31 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

seja reforçado para tornar o Conselho mais legítimo, efetivo e representativo. África tem
de estar representada nas categorias de membro, permanentes e não permanente, de um
Conselho de Segurança reformado e alargado, para corrigir a injustiça histórica para com
este continente relativamente à sua sub-representação no Conselho de Segurança. O que
é necessário é um Conselho de Segurança das NU representativo, para nos ajudar a
restaurar a confiança na cooperação internacional e na governança global – mais do que
nunca urgente nestes tempos desafiantes.
9. O G4 continuará a trabalhar com outros países e grupos a favor da reforma e procurará
iniciar sem demoras um texto que possa servir de base para negociações. Os Ministros
exprimiram a sua determinação em alcançar resultados concretos durante a 75ª Sessão da
Assembleia Geral (…).

Questões:

a) Em vários dos documentos apresentados são feitas referências históricas, não apenas
relacionadas com o surgimento das Nações Unidas, mas também antes e depois do seu
surgimento. Identifique essas referências, contextualize à luz do estudado sobre a
evolução histórica da sociedade e do direito internacional. Procure explicar o porquê
dessas referências, hoje.
b) O Presidente de França, ao longo do seu discurso, e de modos diferentes, defende uma
certa visão de multilateralismo (e nem sempre necessariamente universal), afirmando
mesmo a determinada altura que “o multilateralismo não é um ato de fé”. Procure
identificar algumas das características do multilateralismo defendido por Macron.
c) O Presidente da Rússia defende, expressamente, o direito de veto (da Rússia) no
Conselho e critica a Sociedade das Nações. Relacione estas questões à luz do estudado
sobre a evolução histórica.
d) O Presidente dos EUA diz no seu discurso que as Nações Unidas devem
responsabilizar a China. De um ponto de vista jurídico, esta afirmação equivale a
qualificar o comportamento da China de que forma?
e) Os Ministros do G4 declaram ir promover negociações que resultem já em alteração
“do texto”. De que texto?

2. O caso do Voo MH17

Nota: A 17 de julho de 2014, o voo MH17 (linhas aéreas da Malásia) que fazia a ligação Amesterdão-Kuala
Lumpur despenhou-se no território oriental da Ucrânia, na altura envolvido num conflito armado. Morreram
298 pessoas de várias nacionalidades.
Desde então, foram desencadeadas várias investigações (por parte da Holanda, de painéis independentes de
especialistas de aviação, ou por parte de uma equipa criminal internacional da Austrália, Bélgica, Malásia,
Holanda e Ucrânia) que, em geral, foram concluindo o seguinte: o avião despenhou-se depois de ter sido
atingido por um míssil de produção russa, o míssil tinha sido transportado para aquele território ucraniano
a partir da Rússia, pertencia a uma brigada russa e foi disparado por separatistas russos. Na verdade, em
resultado daquela investigação criminal conjunta, foram emitidos mandados de captura internacional e, na
Holanda, em março deste ano, iniciou-se o julgamento de 4 indivíduos in absentia.
A Rússia tem, de modo sistemático, negado qualquer envolvimento naquele incidente. Aliás, em julho de
2015, a Rússia vetou no Conselho de Segurança uma resolução que instituía um tribunal internacional para
determinar a responsabilidade por aquele incidente (Angola, China e Venezuela abstiveram-se).
Vários familiares das vítimas já apresentaram queixas individuais junto do TEDH contra a Rússia.
Por outro lado, calcula-se que existam pendentes no TEDH cerca de 7.000 queixas individuais relacionadas
com o conflito territorial Ucrânia–Rússia. Assinale-se, finalmente, que há várias queixas interestaduais (5)

31
32 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

em análise a propósito daquele conflito. Recorde-se que o artigo 33 da Convenção Europeia dos Direitos
Humanos (CEDH), sob a epígrafe Assuntos interestaduais, estabelece: “Qualquer Alta Parte Contratante
pode submeter ao Tribunal qualquer violação das disposições da Convenção e dos seus protocolos que creia
poder ser imputada a outra Alta Parte Contratante.”

a) Comunicado, Holanda, Ministério dos Negócios Estrangeiros, A Holanda apresenta


uma queixa contra a Rússia perante o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos a
propósito do caso do avião MH17, 10 de julho de 2020
in https://www.government.nl/latest/news/2020/07/10/the-netherlands-brings-mh17-case-against-russia-before-european-court-of-
human-rights

“Hoje, o Governo holandês decidiu apresentar uma queixa contra a Rússia no Tribunal
Europeu dos Direitos Humanos pelo seu papel na queda do Voo MH17. Ao submeter uma
queixa interestadual, o governo partilha com o TEDH toda a informação disponível e
relevante sobre a queda do Voo MH17. O conteúdo da queixa interestadual será também
incorporado na intervenção da Holanda nas queixas individuais submetidas pelos
familiares das vítimas contra a Rússia junto do TEDH. Ao tomar esta decisão, a Holanda
está a apoiar de modo total estas queixas individuais.
Além disso, ao submeter esta queixa interestadual, a Holanda atua em nome de todas as
298 vítimas do MH17, de 17 nacionalidades diferentes, e dos seus familiares.
‘Alcançar justiça para as 298 vítimas do abate do Voo MH17 é, e continuará a ser, a
principal prioridade do governo’, disse o Ministro dos Negócios Estrangeiros Stef Blok.
‘Ao darmos este passo hoje – submeter o caso ao TEDH e, desse modo, apoiar o máximo
que nos é possível as queixas dos familiares – estamos a aproximar-nos desse objetivo’.
O Conselho de Segurança também será notificado desta decisão.
O Governo considera importante a continuação dos encontros com a Rússia a propósito
da responsabilidade do Estado. O objetivo destes encontros é encontrar uma solução que
faça justiça considerando o imenso sofrimento e danos causados pela queda do Voo
MH17.
Quase seis anos desde a queda do Voo MH17, no qual morreram todas as 298 pessoas a
bordo, a procura da verdade, da justiça e da responsabilização continua a ser a principal
prioridade do Governo Holandês. O Governo sempre afirmou não descartar qualquer
meio jurídico para atingir este objetivo. Esta última decisão é um passo que nos aproxima
deste objetivo.

Questões:

a) O que pretende a Holanda com a apresentação desta queixa contra a Rússia junto do
TEDH?
b) No comunicado do governo holandês é sublinhado em vários momentos que aquela
decisão tem também como objetivo reforçar a posição dos familiares das vítimas. Onde
encontra essas referências no texto? Enquadre essas mesmas referências à luz do estudado
a propósito das atuais tendências de evolução do DI.
c) Identifique, para além da decisão de submeter a referida queixa contra a Rússia, que
outras tentativas de “responsabilização” foram ou estão a ser desenvolvidas? Com o
envolvimento de que atores? Trata-se de tentativas unilaterais, bilaterais ou multilaterais?
O que nos revela a diferente “natureza” daquelas medidas sobre a sociedade internacional
contemporânea?

32
33 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

d) Como resulta dos dados apresentados, a queda daquele avião ocorre em território
ucraniano e, de acordo com o alegado pela Holanda, o míssil também terá sido lançado a
partir daquele território. No entanto, a queixa é apresentada contra a Rússia. Esta decisão
parece coerente com a posição da Holanda a propósito do conflito que ocorre na zona
oriental da Ucrânia entre o governo central e alguns grupos armados separatistas russos.
De um ponto de vista jurídico, a própria questão da jurisdição do Tribunal é complexa
(jurisdição extraterritorial). Mas não apenas a questão jurídica; a questão factual é
especialmente sensível: o Tribunal terá de avaliar se a Rússia terá agido (direta ou
indiretamente) a partir de um território que não era seu, isto é, se a Rússia, de alguma
forma, atua naquela zona de conflito. Procure compreender como esta questão é, assim,
reveladora da garantia do DI num contexto social e político concreto, das relações do DI
com a política internacional e a complexidade contemporânea da sociedade e do direito
internacional atendendo ao desenvolvimento de múltiplos regimes jurídicos e
mecanismos (não apenas jurisdicionais) de garantia e implementação do direito.

b) Tribunal Europeu de Direitos Humanos, Comunicado de Imprensa, Queixa


interestadual apresentada pela Rússia contra a Ucrânia, 23 de julho de 2021

O Governo da Rússia apresentou uma queixa junto do Tribunal Europeu dos Direitos
humanos contra a Ucrânia.
De acordo com o que é alegado pelo Governo Russo, o caso contende com uma prática
administrativa da Ucrânia de, entre outras coisas, assassinos, raptos, deslocações
forçadas, interferências com o direito de voto, restrições quanto à utilização da língua
Russa e ataques às Embaixadas e consulados Russos.
A queixa também abrange o alegado corte de fornecimento de água no canal do Norte da
Crimea e alega que a Ucrânia foi responsável pelas mortes daqueles a bordo do Voo da
Companhia Aérea a Malásia MH17 por não ter fechado o seu espaço aéreo.

Atualmente, estão pendentes no Tribunal outras 10 queixas interestaduais, 4 das quais


foram apresentadas pela Ucrânia contra a Rússia.(…)

No dia 22 de julho de 2021 o Governo da Rússia apresentou uma queixa interestadual


contra a Ucrânia ao abrigo do Artigo 33 (queixa interestadual). Foi registada com número
36958/21.
O Governo Russo alega a existência de violações dos artigos 2 (direito à vida), 3
(proibição de tratamento desumano ou degradante), 5 (direito à liberdade e segurança), 8
(direito à vida privada e familiar), 10 (liberdade de expressão), 13 (direito a um recurso
efectivo), 14 (proibição d discriminação), 18 (limitação da aplicação de restrições aos
direitos) e artigo 1 do Protocolo n.º 1 (proteção da propriedade), artigo 2 do Protocolo n.º
1 (direito à educação), artigo 3 do Protocolo n.º 1 (direito a eleições livres) e artigo 1 do
Protocolo n.º 12 (proibição geral de discriminação).
(…)

33
34 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

3. A lei 2010 – 1192 da República Francesa, que proíbe a ocultação do rosto no espaço
público, de 11 de outubro de 2010

a) TEDH, Caso S.A.S. c. França, queixa n.º 43835/11, Acórdão, Tribunal Pleno, 1
de julho de 2014

In http://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-145466

155. (…) [A] França goza de uma ampla margem de apreciação no caso em análise.
156. Isto é particularmente verdade uma vez que não há um entendimento comum entre
os Estados membros do Conselho da Europa (…) relativamente à questão da utilização
em público de um véu que oculte completamente o rosto. Assim, o Tribunal observa que,
ao contrário do alegado por uma terceira parte interveniente (…) não existe um qualquer
consenso europeu relativo a uma proibição. Reconhecidamente, de um ponto de vista
estritamente normativo, a posição da França é claramente minoritária na Europa; à
exceção da Bélgica, nenhum outro Estado membro do Conselho da Europa optou, à data,
por aquela medida. Todavia, deve observar-se que a questão da utilização em público de
um véu que oculte na totalidade a face é ou foi objeto de debate em vários Estados
europeus. Nalguns foi decidido não optar por uma proibição total. Noutros, aquela
proibição está ainda em análise (…). Deve acrescentar-se que, com toda a probabilidade,
a questão da utilização em público de um véu que oculte na totalidade a face não é
simplesmente um assunto num certo número de Estados em que essa prática é pouco
comum. Pode, portanto, dizer-se que na Europa não existe um consenso quanto à
proibição total, ou não, da utilização em espaços públicos de um véu que oculte a face na
totalidade.
157. Consequentemente, considerando em especial a ampla margem de apreciação detida
pelo Estado respondente no caso em análise, o Tribunal considera que a proibição imposta
pela Lei de 11 de outubro de 2010 pode ser considerada proporcional ao objetivo
prosseguido, nomeadamente a preservação das condições da “convivência” como
elemento de “proteção dos direitos e liberdades dos outros”.
158. A limitação impugnada pode assim ser considerada como “necessária numa
sociedade democrática”. Esta conclusão é verdadeira em relação ao respeito quer pelo
artigo 8, quer pelo artigo 9 da Convenção.
159. Nestes termos, não existiu qualquer violação quer do Artigo 8, quer do artigo 9 da
Convenção.

b) Comité dos Direitos Humanos das Nações Unidas, Sonia Yaker c. França,
comunicação n.º 2747/2016, Decisão adotada ao abrigo do artigo 5 (4) do
Protocolo Facultativo, 17 de julho de 2018

“Consideração da questão de fundo


(…)
8.2. O Comité toma em consideração a alegação da queixosa de que a proibição criminal
contra a ocultação do rosto em espaços públicos, introduzida ao abrigo da Lei n.º 2010 –
1192, e a sua condenação por utilizar um niqab violam os seus direitos ao abrigo do artigo
18 do Pacto. O Comité toma em consideração a argumentação do Estado parte de que a
Lei impõe uma proibição genérica relativamente a qualquer artigo ou peça de vestuário
com a finalidade de ocultar o rosto em espaços públicos, independentemente da sua forma
34
35 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

ou da razão pela qual esteja a ser utilizada e que a Lei não trata, de modo específico,
vestuário religioso. (…)
8.3. O Comité recorda o seu Comentário Geral n.º 22, em que afirma que a liberdade de
manifestar a religião ou convicção pode ser exercida, quer individualmente, quer na
comunidade com outros, e em público ou em privado. A observância e prática da religião
ou convicção pode incluir não apenas atos cerimoniais, mas também costumes, como a
utilização de vestuário distintivo ou véus na cabeça. A alegação da queixosa de que a
utilização de um véu completo é costume para uma parte dos crentes Muçulmanos e que
equivale à concretização de um rito e prática religiosa não está aqui em causa. Não está
também em causa que a Lei n.º 2010-1192, que proíbe peças de vestuário que ocultem a
face em público, é aplicável ao niqab utilizado pela queixosa (…). Nesses termos, o
Comité considera que a proibição introduzida por aquela lei constitui uma restrição ou
limitação do direito da queixosa de manifestar a sua convicção ou religião – ao usar o
niqab – no sentido do artigo 18 (1) da Convenção.
8.4. Assim sendo, o Comité tem de determinar se a restrição é autorizada pelo artigo 18,
n.º 3, do Pacto [Internacional dos Direitos Civis e Políticos, de 1966]. O Comité recorda
que o artigo 18, n.º 3, apenas permite restrições a liberdade de manifestar uma religião ou
uma convicção se as limitações estiverem previstas na lei e se forem necessárias à
proteção de segurança, da ordem e da saúde públicas ou da moral e das liberdades e
direitos fundamentais de outrem. O Comité recorda também que o n.º 3 do artigo 18 deve
ser interpretado de modo restritivo: não são permitidas restrições por razões que não
sejam aquelas que são especificadas, mesmo que permitam restrições a outros direitos
protegidos na Convenção, como a segurança nacional. (…)
8.5. (…) Assim, o Comité tem de avaliar se a restrição, que é prescrita por lei, prossegue
um objetivo legitimo, se é necessária para alcançar aquele objetivo e se é proporcional e
não discriminatória.
8.6. O Comité toma nota de que o Estado parte indicou que a Lei pretende prosseguir dois
objetivos, nomeadamente a proteção da ordem e segurança públicas, e a proteção dos
direitos e liberdades de outrem.
8.7. Relativamente à proteção da ordem e segurança públicas, o Estado parte alega que
deve ser possível identificar todos os indivíduos, quando necessário, para evitar ameaças
à segurança de pessoas ou bens e para combater a fraude de identidade. (…)
8.8. Mesmo que o Estado parte pudesse demonstrar a existência de uma ameaça específica
e significativa à segurança e ordem, falhou em demonstrar que a proibição contida na Lei
n.º 2010-1192 é proporcional ao objetivo, à luz do impacto considerável na queixosa
como mulher que utiliza um véu que oculta completamente o rosto. Nem procurou
demonstrar que a proibição era a forma menos restritiva necessária para garantir a
proteção da liberdade de religião ou de consciência. (…)
8.9. Relativamente ao segundo objetivo apresentado pelo Estado parte, entendido como a
proteção de direitos e liberdades fundamentais de outrem no sentido do artigo 18, n.º 3, o
Comité regista o argumento apresentado pelo Estado parte baseado no conceito de
‘convivência’ ou respeito por um mínimo de requisitos da vida em sociedade, sendo os
espaços públicos o local principal onde a vida social acontece e as pessoas estão em
contacto entre si. De acordo com o Estado parte, mostrar o rosto é sinal da predisposição
da pessoa em ser identificada como um indivíduo pela outra parte e não uma ocultação
‘desigual’, sendo isto ‘o grau mínimo de confiança que é essencial para a convivência
numa sociedade igualitária e aberta’. (…)

35
36 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

8.10. Contudo, o Comité observa que a proteção dos direitos e liberdades fundamentais
de outrem exige a identificação dos direitos fundamentais específicos que são afetados e
as pessoas que são afetadas. As exceções do artigo 18, n.º 3, devem ser interpretadas
restritivamente e não aplicadas em abstrato. No caso em análise, o Comité observa que o
conceito de ‘convivência’ é muito vago e abstrato. (…)
8.11. Mesmo assumindo que o conceito de convivência pudesse ser considerado como
um “objetivo legítimo” no sentido do artigo 18, n.º 3, o Comité observa que o Estado
parte não demonstrou que a proibição criminal de certos meios de ocultar a face em
público, que constituem uma restrição significativa dos direitos e liberdades da queixosa
como mulher muçulmana que usa o véu que oculta completamente a face, é proporcional
a esse objetivo ou que é o meio menos restritivo no que diz respeito à proteção da religião
ou crença.
8.12. À luz do anteriormente analisado, o Tribunal considera que o Estado parte não
demonstrou que a limitação à liberdade de religião ou convicção da queixosa, expressa
na utilização do niqab, era necessária e proporcional no sentido do artigo 18, nº 3, do
Pacto. Assim, o Comité conclui que a proibição introduzida pela Lei n.º 2010-1192 e a
condenação da queixosa pela utilização do niqab violaram os direitos da queixosa ao
abrigo do artigo 18 do Pacto.

Questões:

a) Os excertos apresentados pertencem a dois sistemas distintos de proteção internacional


de Direitos Humanos. Quais são? O TEDH e o Comité de Direitos Humanos (CDH)
avaliam a implementação e garantia de que tratados?
b) Qual a questão analisada em ambos os casos?
c) Centremo-nos na proteção da liberdade de religião e consciência como protegida, pela
CEDH (art.º 9) e pelo PIDCP (art.º 18). Com efeito, a conclusão a que chega o CDH
diverge da posição sustentada pelo TEDH. Em que termos? Explique.
d) O que revela esta situação sobre a diversidade e heterogeneidade da comunidade
internacional e, também, sobre a convivência de sistemas regionais e universais no DI?
e) Discuta se poderá haver domínios (nomeadamente de DIDH, mas não só) em que uma
solução “regional” pode ser mais eficaz, e porquê. Considere esta questão à luz do que
estudou relativamente à alegada existência de várias “comunidades jurídicas
internacionais”.

4. Ambiente e a proteção internacional dos Direitos Humanos: a expansibilidade


confirmada

a) Comité dos Direitos Humanos, Portillo Cáceres c. Paraguai, 20 setembro 2019


In:http://docstore.ohchr.org/SelfServices/FilesHandler.ashx?enc=6QkG1d%2fPPRiCAqhKb7yhsjvfIjqiI84ZFd1DNP1S9EJbt9fNOF
AeKim6Xa3i%2frdihcAq5mehv%2fTQWGvWXGl9qxCMDHlPL%2f255BdzTObanB0KePC5lUhW9PcaGTS236CEGC%2fxZYk
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Nota: Em 2016, foi apresentada uma queixa ao Comité dos Direitos Humanos contra o Paraguai por duas
famílias de agricultores que foram vítimas de envenenamento por elevadas quantidades de pesticidas e
inseticidas utilizados por explorações industriais vizinhas. Embora existisse legislação ao nível interno que
proibia esta conduta, nenhuma medida foi tomada pelo Estado para a fazer cumprir. Um membro da família
Portillo Cáceres morreu, em consequência do dito envenenamento, e outros familiares foram
hospitalizados. Além disso, as famílias sofreram perdas de árvores de fruto, a morte de vários animais da

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Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

quinta e graves danos nas suas culturas e propriedade. Os autores alegaram que o Estado não cumpriu o seu
dever de proporcionar proteção, na medida em que não exerceu a devida diligência as obrigações a que
estava vinculado.

“7.2 O Comité toma nota da alegação feita pelos autores de que os acontecimentos neste
caso constituem uma violação por omissão do artigo 6 do Pacto [direito à vida], tanto em
relação ao Sr. Portillo Cáceres, que morreu enquanto apresentava sintomas de
envenenamento por pesticidas, como em relação aos próprios autores, devido à violação
do Estado parte do seu dever de proteção. (...)
7.3 (...) Os Estados parte devem tomar todas as medidas apropriadas para enfrentar as
condições gerais da sociedade que possam dar origem a ameaças ao direito à vida ou
impedir os indivíduos de gozar o seu direito à vida com dignidade e estas condições
incluem a poluição ambiental. (...)
7.4 O Comité assinala a evolução de outros tribunais internacionais que reconheceram a
existência de uma ligação inegável entre a proteção do ambiente e a realização dos
direitos humanos e que estabeleceram que a degradação ambiental pode afetar
negativamente o gozo efetivo do direito à vida. Por conseguinte, a degradação ambiental
grave já deu origem ao reconhecimento da violação do direito à vida. (...)
7.8 (...) Quando a poluição tem repercussões diretas no direito à vida privada e familiar e
ao lar, e as consequências adversas dessa poluição são graves devido à sua intensidade ou
duração e aos danos físicos ou mentais que provoca, então a degradação do ambiente pode
afetar negativamente o bem-estar dos indivíduos e constituir violações da vida privada e
familiar e do lar. Consequentemente, à luz das informações que tem perante si, o Comité
conclui que os acontecimentos em causa no presente caso revelam uma violação do artigo
17 do Pacto [proteção da vida privada e familiar]. (...)
8. O Comité dos Direitos Humanos, atuando ao abrigo do artigo 5, n.º 4, do Protocolo
Facultativo, é de opinião que a informação que tem perante si revela uma violação pelo
Estado parte dos artigos 6 e 17 do Pacto, lidos isoladamente e em conjunto com o artigo
2, n.º 3.
9. Em conformidade com o artigo 2, n.º 3, al. a), do Pacto, o Estado parte tem a obrigação
de proporcionar aos autores um recurso efetivo, o que implica a reparação integral às
pessoas cujos direitos tenham sido violados. O Estado parte deve, por conseguinte: (a)
proceder a uma investigação eficaz e completa dos acontecimentos em questão; (b) impor
sanções penais e administrativas a todas as partes responsáveis pelos acontecimentos no
presente caso; (c) reparar integralmente, incluindo uma indemnização adequada, os
autores pelos danos sofridos. O Estado parte tem igualmente a obrigação de tomar
medidas para evitar violações semelhantes no futuro.
10. Tendo em conta que, ao tornar-se parte do Protocolo Facultativo, o Estado parte
reconheceu a competência do Comité para determinar se houve ou não violação do Pacto
e que, nos termos do artigo 2 do Pacto, o Estado parte se comprometeu a assegurar a todos
os indivíduos dentro do seu território ou sujeitos à sua jurisdição os direitos reconhecidos
no Pacto e a proporcionar uma solução eficaz e juridicamente executória quando uma
violação tiver sido estabelecida, o Comité deseja receber informações do Estado parte no
prazo de 180 dias sobre as medidas tomadas para dar efeito ao parecer do Comité. (...)”

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38 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

b) Tribunal Interamericano dos Direitos Humanos, Parecer Consultivo OC-23/17,


solicitado pela República da Colômbia- Ambiente e Direitos Humanos de 15 de
novembro de 2017
In: https://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_23_esp.pdf

“63. Assim, o direito a um ambiente saudável como um direito autónomo é distinto do


conteúdo ambiental que resulta da proteção de outros direitos, tais como o direito à vida
ou o direito à integridade pessoal.
64. No entanto, para além do direito a um ambiente saudável, como mencionado acima,
os danos ambientais podem afetar todos os direitos humanos, no sentido de que o pleno
gozo de todos os direitos humanos depende de um ambiente propício. Contudo, alguns
direitos humanos são mais suscetíveis do que outros a certos tipos de danos ambientais
(...). Os direitos especificamente relacionados com o ambiente foram classificados em
dois grupos: (i) direitos cujo gozo é particularmente vulnerável à degradação ambiental,
também identificados como direitos substantivos (tais como os direitos à vida, integridade
pessoal, saúde ou propriedade), e (ii) direitos cujo exercício apoia uma melhor formulação
de políticas ambientais, também identificados como direitos processuais (tais como os
direitos à liberdade de expressão e associação, à informação, à participação na tomada de
decisões e à reparação eficaz).”

Questões:

a) Relacione a evolução da proteção internacional do ambiente com a proteção


internacional dos direitos humanos. Justifique apontando, nos excertos da decisão,
exemplos dessa relação.
b) Explique a ligação entre o princípio da expansibilidade do direito internacional e a
emergência da proteção internacional do ambiente.
c) Identifique as consequências da decisão do Comité dos Direitos Humanos para o
Paraguai. Qual a sua relevância no que diz respeito à resposta do direito internacional aos
novos desafios que enfrenta?
d) Compare as posições do Comité dos Direitos Humanos e do Tribunal Interamericano
relativamente ao reconhecimento da proteção do ambiente como um direito humano. Qual
destes sistemas defende o seu reconhecimento autónomo?
e) Na sua opinião, que impacto tem esta discussão para o gradual reconhecimento do
protagonismo do indivíduo no direito internacional e nas relações internacionais?

5. Os standards de proteção internacional: quando os Direitos Humanos não chegam

a) TEDH, Ilias e Ahmed c. Hungria, queixa n.º 47287/15, 21 de novembro de 2019

In: https://hudoc.echr.coe.int/rus#{"itemid":["001-198760"]}

Nota: Dois nacionais do Bangladesh atravessaram a Grécia, a antiga República Jugoslava da Macedónia e
a Sérvia até chegarem à Hungria. Requereram asilo junto das autoridades competentes húngaras e foram
detidos por 23 dias. Os queixosos reagiram contra as condições de detenção a que tinham sido expostos na
zona de trânsito de Röszke alegando, a esse respeito, a violação dos artigos 3 (proibição da tortura,
tratamento cruel, desumano ou degradante), 5 n.ºs 1 e 4 (direito à liberdade e segurança) e 13 (direito a um
recurso efetivo) da Convenção Europeia dos Direitos Humanos por parte do Estado húngaro. Em 2017, o

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39 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

TEDH apreciou caso pela primeira vez e decidiu que as autoridades húngaras violaram os direitos dos
queixosos ao decidirem privá-los da sua liberdade na zona de trânsito. De acordo com esta decisão, a
possibilidade dos requerentes de asilo de retornarem à Sérvia, voluntariamente, não significava que
beneficiassem aí de proteção comparável à do país onde requereram asilo e, por isso, a violação do princípio
do non-refoulement não se podia excluir. Dois anos mais tarde, em 2019, no caso de Ilias e Ahmed a questão
voltou a ser analisada pelo tribunal.
Desta vez, o tribunal, em sentido diverso da posição adotada em 2017 e com base numa abordagem “prática
e realista” considerou que as autoridades húngaras não violaram o artigo 5 (proteção contra a detenção
arbitrária) e recusou ligação deste artigo com o artigo 3º (proibição da tortura e dos tratamentos desumanos)
da CEDH.

“212. A fim de determinar se alguém foi "privado da sua liberdade" na aceção do artigo
5º, o ponto de partida deve ser a sua situação real específica e deve ser tido em conta todo
um conjunto de fatores, tais como o tipo, duração, efeitos e forma de implementação da
medida em questão. A diferença entre privação e restrição de liberdade é de grau ou
intensidade, e não de natureza ou substância. (...)
213. O Tribunal considera que ao estabelecer a distinção entre restrição à liberdade de
circulação e privação de liberdade no contexto da situação dos requerentes de asilo, a sua
abordagem deve ser prática e realista, tendo em conta as condições e desafios atuais. É
importante, em particular, reconhecer o direito dos Estados, sujeitos às suas obrigações
internacionais, de controlar as suas fronteiras e de tomar medidas contra os estrangeiros
que contornem as restrições à imigração. (...)
233. O Tribunal tem em conta, por outro lado, que enquanto aguardavam as medidas
processuais tornadas necessárias pelo seu pedido de asilo, os requerentes viviam em
condições que, embora implicando uma restrição significativa à sua liberdade de
circulação, não limitavam a sua liberdade desnecessariamente ou numa medida ou de uma
forma não relacionada com o exame dos seus pedidos de asilo. O Tribunal recorda
igualmente que indeferiu a queixa dos requerentes de que estas condições eram
desumanas e degradantes (...). Finalmente, os requerentes passaram apenas vinte e três
dias na zona, um período que - como o Tribunal considerou - não excedeu o estritamente
necessário para verificar se o desejo dos requerentes de entrar na Hungria para aí procurar
asilo podia ser concedido.
234. A questão que resta é a de saber se os requerentes podiam deixar a zona de trânsito
numa direção que não o território da Hungria.” (...)
“41. No presente caso (...), era praticamente possível aos candidatos caminharem até à
fronteira e atravessarem para a Sérvia, um país vinculado pela Convenção de Genebra
relativa ao Estatuto dos Refugiados (...).”

Questões:

a) A interpretação do TEDH do artigo 5 da CEDH em 2019 contribuiu para o


fortalecimento ou restringiu a proteção dos direitos humanos de Ilias e Ahmed?
Justifique.

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40 Direito Internacional Público
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1º semestre

O INTERNACIONAL E O INTERNO: AS RELAÇÕES ENTRE ORDENS JURÍDICAS

1. Jurisdições Internacionais

1.1.TPJI, Caso Relativo ao Pagamento em Ouro dos Empréstimos Federais Brasileiros


Emitidos em França, França c. Estados Unidos do Brasil, Acórdão n.º 15, de 12 de
julho de 1929, p. 124
https://www.icj-cij.org/public/files/permanent-court-of-international-
justice/serie_A/A_20/64_Emprunts_Bresiliens_Arret.pdf

Tendo de aplicar o direito interno assim que as circunstâncias o exijam, o Tribunal, que
é uma jurisdição de direito internacional, e que, nessa qualidade, é pressuposto conhecer
esse direito, não está obrigada a conhecer igualmente as leis nacionais dos diferentes
países. Tudo o que se pode admitir a este respeito, é que poderá estar eventualmente
obrigado a procurar conhecer o direito interno que tem de ser aplicado. E isto deve fazê-
lo, quer através das provas apresentadas pelas Partes, quer através das pesquisas que o
Tribunal entenda conveniente fazer ou mandar fazer.
Uma vez que o Tribunal tenha chegado à conclusão de que é necessário aplicar o direito
interno de um determinado país, não parecem haver dúvidas de que deve procurar aplicá-
lo como seria aplicado nesse país. Não estaria a aplicar o direito interno de um país se o
fosse aplicar de uma maneira diferente daquela que é aplicada no país no qual está em
vigor.
Daqui decorre que o Tribunal deve prestar uma grande atenção às decisões dos tribunais
internos de um país, pois é com a ajuda da sua jurisprudência que será capaz de decidir
quais são as regras que, efetivamente, são aplicadas no país cujo direito é reconhecido
como aplicável num determinado caso. Se o Tribunal fosse obrigado a não considerar as
decisões de tribunais internos, o resultado seria o de que poderia em certas circunstâncias
aplicar regras que não as efetivamente aplicáveis; isto pareceria contrário à própria ideia
em que se funda a aplicação do direito interno.

1.2. TIJ, Caso Barcelona Traction, Light and Power Company, Bélgica c. Espanha, 5
de fevereiro de 1970, Col. 1970
https://www.icj-cij.org/public/files/case-related/50/050-19700205-JUD-01-00-BI.pdf

37. Ao procurar determinar o direito aplicável a este caso, o Tribunal tem de ter em conta
a evolução contínua do direito internacional. A proteção diplomática lida com uma área
particularmente sensível das relações internacionais, uma vez que o interesse de um
Estado estrangeiro na proteção dos seus nacionais colide com os direitos do soberano
territorial, um facto que o regime aplicável a essa questão deve tomar em consideração
para evitar abusos e atritos. Estreitamente ligada desde a sua génese ao comércio
internacional, a proteção diplomática foi particularmente afetada pelo crescimento das
relações económicas internacionais, e ao mesmo tempo pela profunda transformação que

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41 Direito Internacional Público
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2022/2023
1º semestre

ocorreu na vida económica das nações. Estas últimas mudanças deram origem a
instituições internas, que transcenderam fronteiras e começaram a exercer uma influência
considerável nas relações internacionais. Um desses fenómenos, especialmente relevante
no presente caso, é o das sociedades anónimas.
38. Neste domínio o direito internacional é chamado a reconhecer as instituições de
direito interno que desempenham um papel importante e abrangente no plano
internacional. Isto não implica necessariamente traçar qualquer analogia entre as suas
instituições e aqueloutras de direito interno, nem equivale a tornar as regras de direito
internacional dependentes de categorias de direito interno. O que significa é que o direito
internacional teve de reconhecer a sociedade anónima como uma instituição criada por
Estados num domínio que está essencialmente dentro da sua jurisdição interna. Isto por
seu turno exige que, sempre que se levantem questões jurídicas respeitantes aos direitos
dos Estados relativos ao tratamento de sociedades e acionistas, direitos em relação aos
quais o direito internacional não tem regras próprias, tem de remeter para as regras
pertinentes de direito interno. Consequentemente, tendo em vista a relevância para o
presente caso dos direitos da sociedade anónima e dos seus acionistas de acordo com o
direito interno, o Tribunal deve examinar a sua natureza e a sua inter-relação.
[…]
50. Regressando agora aos aspetos internacionais do caso, o Tribunal deve, como já foi
referido, começar pelo facto de que o presente caso envolve essencialmente fatores que
decorrem do direito interno – o que distingue e o que há de comum entre a sociedade e o
acionista – que cada uma das Partes, por muito que a sua interpretação possa ser diferente,
adotam como ponto de partida da sua argumentação. Se o Tribunal fosse decidir o caso
sem atender às instituições aplicáveis de direito interno iria, sem justificação, enfrentar
graves problemas jurídicos. Perderia contato com a realidade, uma vez que não há
instituições correspondentes de direito internacional às quais o Tribunal possa recorrer.
Assim, o Tribunal tem que, como referido, não apenas tomar em consideração o direito
interno, mas ainda de referir-se a ele. […]

1.3. TIJ, Aplicabilidade da obrigação de arbitragem nos termos do artigo 21 do Acordo


de 26 de junho de 1947 relativo à Sede das Organização das Nações Unidas, Parecer
Consultivo de 26 de abril de 1988, pp. 34-35
https://www.icj-cij.org/public/files/case-related/77/077-19880309-ORD-01-00-BI.pdf

57. O Tribunal deve, então, concluir que os Estados Unidos estão vinculados a respeitar
a obrigação de haver recurso a arbitragem nos termos do artigo 21 do Acordo de Sede. A
questão que permanece, contudo, como o Tribunal já referiu, é que os Estados Unidos
declararam (carta do Representante Permanente, de 11 de março de 1988) que as suas
medidas contra a Missão de Observador da OLP foram adotadas “independentemente de
quaisquer obrigações que os Estados Unidos podem ter segundo o Acordo [de Sede]”. Se
fosse necessário interpretar essa declaração como pretendendo referir-se não apenas às
obrigações substantivas previstas, por exemplo, nos artigos 11, 12 e 13, mas também à
obrigação de arbitragem referida no artigo 21, esta conclusão continuaria intacta. Seria

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suficiente relembrar o princípio fundamental de direito internacional da prevalência do


direito internacional sobre o direito interno. Esta prevalência ficou consagrada na
jurisprudência desde a sentença arbitral proferida a 14 de setembro de 1872 no caso
Alabama, entre a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, e tem sido frequentemente recordada
desde então, por exemplo no caso relativo às “Comunidades” Greco-Búlgaras, no qual
o Tribunal Permanente de Justiça Internacional declarou que
“é um princípio geralmente reconhecido de direito internacional que nas relações entre
Potências que são Partes contratantes num tratado, as disposições de direito interno
não podem prevalecer sobre as do tratado” (TPJI, Série B, N.º 17, p. 32).

Questões:
a) Qual a ideia em que se funda a aplicação do direito interno tal como explanada no
primeiro excerto pelo Tribunal Internacional de Justiça?
b) De acordo com o segundo excerto a aplicação de regras de direito interno implica uma
subordinação do direito internacional àquele?
c) No último excerto, o Tribunal Internacional de Justiça refere-se à prevalência de que
tipo de normas internacionais sobre o direito interno (neste caso) dos Estados Unidos?

2. O Direito da União Europeia

2.1. Yassin Abdullah Kadi and Al Barakaat International Foundation c. Conselho


da União Europeia e Comissão das Comunidades Europeias, Acórdão do Tribunal
de Justiça, Grande Secção, de 3 de setembro de 2008
https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/HTML/?uri=CELEX:62005CJ0402&from=EN

[…]
278. A título preliminar, há que julgar improcedente a questão prévia de inadmissibilidade
suscitada pelo Reino Unido quanto à argumentação invocada por Y. A. Kadi na réplica,
segundo a qual a legalidade de toda e qualquer regulamentação adotada pelas instituições
comunitárias, incluindo a destinada a implementar uma resolução do Conselho de
Segurança, está integralmente sujeita, por força do direito comunitário, à fiscalização do
Tribunal de Justiça, independentemente da sua origem.
279. Com efeito, como alega Y. A. Kadi, trata-se de um argumento suplementar que
constitui a ampliação do fundamento, anteriormente enunciado, pelo menos de forma
implícita, no âmbito do presente recurso, e que tem uma relação estreita com esse
fundamento, segundo o qual a Comunidade era obrigada, ao implementar uma resolução
do Conselho de Segurança, a garantir, enquanto requisito da legalidade da legislação que
pretendia desse modo instaurar, que esta respeitasse os critérios mínimos em matéria de
Direitos do Homem (v., neste sentido, nomeadamente, despacho de 13 de Novembro de
2001, Dürbeck/Comissão, C-430/00 P, Colect., p. I-8547, n.º 17).

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280. Há que examinar as críticas através das quais os recorrentes acusam o Tribunal de
Primeira Instância de ter declarado, em substância, que decorre dos princípios que
regulam a articulação das relações entre o ordenamento jurídico internacional emanado
das Nações Unidas e o ordenamento jurídico comunitário que o regulamento
controvertido, uma vez que se destina a implementar uma resolução, adotada pelo
Conselho de Segurança ao abrigo do capítulo VII da Carta das Nações Unidas, que não
deixa margem alguma para o efeito, não pode ser objeto de fiscalização jurisdicional
quanto à sua legalidade interna, salvo no que diz respeito à sua compatibilidade com as
normas do jus cogens, e beneficia, portanto, nessa medida, de imunidade de jurisdição.
281. A este respeito, há que recordar que a Comunidade é uma comunidade de direito, no
sentido de que nem os seus Estados-Membros nem as suas instituições escapam ao
controlo da conformidade dos seus atos com a carta constitucional de base que é o Tratado
CE, e que este estabelece um sistema completo de vias de recurso e de procedimentos
destinado a confiar ao Tribunal de Justiça a fiscalização da legalidade dos atos das
instituições (acórdão de 23 de Abril de 1986, Os Verdes/Parlamento, 294/83, Colect., p.
1339, n.º 23).
282. Recorde-se igualmente que um acordo internacional não pode pôr em causa a ordem
das competências estabelecida pelos Tratados e, portanto, a autonomia do sistema jurídico
comunitário, cuja observância é assegurada pelo Tribunal de Justiça no exercício da
competência exclusiva que lhe é conferida pelo artigo 220.º CE, competência esta que o
Tribunal de Justiça já considerou, aliás, como um dos fundamentos da própria
Comunidade (v., neste sentido, parecer 1/91, de 14 de Dezembro de 1991, Colect., p. I-
6079, n.ºs 35 e 71, e acórdão de 30 de Maio de 2006, Comissão/Irlanda, C-459/03,
Colect., p. I-4635, n.º 123 e jurisprudência aí citada).
283. Além disso, segundo jurisprudência constante, os direitos fundamentais fazem parte
integrante dos princípios gerais de direito cujo respeito é assegurado pelo Tribunal de
Justiça. Para este efeito, o Tribunal inspira-se nas tradições constitucionais comuns aos
Estados-Membros e nas indicações fornecidas pelos instrumentos internacionais relativos
à proteção dos Direitos do Homem, em que os Estados-Membros colaboraram ou a que
aderiram. A CEDH reveste, neste contexto, um significado particular (v., nomeadamente,
acórdão de 26 de junho de 2007, Ordre des barreaux francophones et germanophone e
o., C-305/05, Colect., p. I-5305, n.º 29 e jurisprudência aí citada).
284. Resulta igualmente da jurisprudência do Tribunal de Justiça que o respeito dos
Direitos do Homem é um requisito da legalidade dos atos comunitários (parecer 2/94, já
referido, n.º 34) e que na Comunidade não se podem admitir medidas incompatíveis com
o respeito desses direitos (acórdão de 12 de junho de 2003, Schmidberger, C-112/00,
Colect., p. I-5659, n.º 73 e jurisprudência aí citada).
285. Decorre de todos estes elementos que as obrigações impostas por um acordo
internacional não podem ter por efeito a violação dos princípios constitucionais do
Tratado CE, entre os quais figura o princípio segundo o qual todos os atos comunitários
devem respeitar os direitos fundamentais, constituindo este respeito um requisito da sua
legalidade que compete ao Tribunal de Justiça fiscalizar no âmbito do sistema completo
de vias de recurso estabelecido pelo mesmo Tratado.

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44 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
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286. A este respeito, importa salientar que, num contexto como o do caso vertente, a
fiscalização da legalidade que deve, assim, ser assegurada pelo juiz comunitário tem por
objeto o ato comunitário destinado a implementar o acordo internacional em causa, e não
este último enquanto tal.
287. Tratando-se, mais especificamente, de um ato comunitário que, como o regulamento
controvertido, se destina a implementar uma resolução do Conselho de Segurança adotada
ao abrigo do capítulo VII da Carta das Nações Unidas, não compete portanto ao juiz
comunitário, no âmbito da competência exclusiva prevista no artigo 220.º CE, fiscalizar
a legalidade de tal resolução adotada por esse órgão internacional, ainda que essa
fiscalização se limitasse ao exame da compatibilidade dessa resolução com o jus cogens.
288. Por outro lado, um eventual acórdão de uma jurisdição comunitária no qual fosse
decidido que um ato comunitário destinado a implementar tal resolução é contrário a uma
norma hierarquicamente superior do ordenamento jurídico comunitário não implicaria
pôr em causa a prevalência dessa resolução no plano do direito internacional.
289. Assim, o Tribunal de Justiça já anulou uma decisão do Conselho que aprovou um
acordo internacional, depois de ter examinado a sua legalidade interna à luz do acordo
em causa e de ter concluído pela violação de um princípio geral de direito comunitário,
no caso concreto, o princípio geral da não discriminação (acórdão de 10 de março de
1998, Alemanha/Conselho, C-122/95, Colect., p. I-973).
290. Por conseguinte, há que examinar se, como decidiu o Tribunal de Primeira Instância,
os princípios que regulam a articulação das relações entre o ordenamento jurídico
internacional emanado das Nações Unidas e o ordenamento jurídico comunitário
implicam que a fiscalização jurisdicional da legalidade interna do regulamento
controvertido à luz dos direitos fundamentais esteja, em princípio, excluída, não obstante
o fato de, como resulta da jurisprudência recordada nos n.ºs 281 a 284 do presente
acórdão, essa fiscalização constituir uma garantia constitucional de base da Comunidade.
291. A este respeito, há que começar por recordar que as competências da Comunidade
devem ser exercidas com observância do direito internacional (acórdãos, já referidos,
Poulsen e Diva Navigation, n.º 9, e Racke, n.º 45), tendo o Tribunal de Justiça salientado,
além disso, no mesmo número do primeiro desses acórdãos, que um ato adotado ao abrigo
dessas competências deve ser interpretado, e o respetivo âmbito de aplicação circunscrito,
à luz das regras pertinentes do direito internacional.
292. Acresce que o Tribunal de Justiça considerou que as competências da Comunidade
previstas nos artigos 177.º CE a 181.º CE em matéria de cooperação e de desenvolvimento
devem ser exercidas com observância dos compromissos assumidos no âmbito das
Nações Unidas e das outras organizações internacionais (acórdão de 20 de maio de 2008,
Comissão/Conselho, C-91/05, Colect., p. I-3651, n.º 65 e jurisprudência aí citada).
293. A observância dos compromissos assumidos no âmbito das Nações Unidas impõe-
se igualmente no domínio da manutenção da paz e da segurança internacionais, quando a
Comunidade implementa, através da adoção de atos comunitários com base nos artigos
60.º CE e 301.º CE, resoluções adotadas pelo Conselho de Segurança ao abrigo do
capítulo VII da Carta das Nações Unidas.

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45 Direito Internacional Público
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294. No exercício desta última competência, a Comunidade deve, com efeito, atribuir
uma importância especial ao facto de, em conformidade com o artigo 24.º da Carta das
Nações Unidas, a adoção, pelo Conselho de Segurança, de resoluções ao abrigo do
capítulo VII desse diploma constituir o exercício da responsabilidade principal de que
esse órgão internacional está investido para manter a paz e a segurança, à escala mundial,
responsabilidade que, no âmbito do referido capítulo VII, inclui o poder de determinar o
que constitui uma ameaça à paz e à segurança internacionais, bem como de tomar as
medidas necessárias para as manter ou restabelecer.
295. Em seguida, há que referir que as competências previstas nos artigos 60.º CE e 301.º
CE só podem ser exercidas na sequência da adoção de uma posição comum, ou de uma
ação comum nos termos das disposições do Tratado UE relativas à PESC que preveja
uma ação da Comunidade.
296. Ora, se, devido à adoção de um ato dessa natureza, a Comunidade estiver obrigada
a tomar, no âmbito do Tratado CE, as medidas que esse ato impõe, essa obrigação implica,
quando está em causa a implementação de uma resolução do Conselho de Segurança
adotada ao abrigo do capítulo VII da Carta das Nações Unidas, que, na elaboração dessas
medidas, a Comunidade tenha em devida conta os termos e os objetivos da resolução em
causa assim como as obrigações pertinentes decorrentes da Carta das Nações Unidas
relativas a essa implementação.
297. Por outro lado, o Tribunal de Justiça já declarou que, para efeitos da interpretação
do regulamento controvertido, há que ter igualmente em conta o texto e o objeto da
Resolução 1390 (2002), à qual esse regulamento, nos termos do seu quarto considerando,
se destina a dar execução (acórdão Möllendorf e Möllendorf-Niehuus, já referido, n.º 54
e jurisprudência aí citada).
298. Todavia, importa salientar que a Carta das Nações Unidas não impõe a escolha de
um modelo determinado para a implementação das resoluções adotadas pelo Conselho de
Segurança ao abrigo do capítulo VII desse diploma, devendo esta implementação ser
levada a cabo de acordo com as modalidades aplicáveis nesta matéria no ordenamento
jurídico interno de cada membro da ONU. Com efeito, a Carta das Nações Unidas deixa,
em princípio, aos membros da ONU a liberdade de escolher entre vários modelos
possíveis de receção dessas resoluções nos respetivos ordenamentos jurídicos internos.
299. Decorre do conjunto das considerações precedentes que os princípios que regem o
ordenamento jurídico internacional emanado das Nações Unidas não implicam que esteja
excluída uma fiscalização jurisdicional da legalidade interna do regulamento
controvertido à luz dos direitos fundamentais, pelo facto de esse ato se destinar a
implementar uma resolução do Conselho de Segurança adotada ao abrigo do capítulo VII
da Carta das Nações Unidas.
300. Tal imunidade de jurisdição de um ato comunitário, como o regulamento
controvertido, enquanto corolário do princípio da prevalência, no plano do direito
internacional, das obrigações emanadas da Carta das Nações Unidas, em particular, das
relativas à implementação das resoluções do Conselho de Segurança adotadas ao abrigo

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do capítulo VII desse diploma, não encontra, por outro lado, fundamento em nenhuma
outra disposição do Tratado CE.

2.2. Hungria c. República Eslovaca, Acórdão do Tribunal de Justiça, Grande


Secção, de 16 de outubro de 2012
https://eur-lex.europa.eu/legal-
content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:62010CJ0364&from=en

44. Por outro lado, importa recordar que o direito da União deve ser interpretado à luz
das regras pertinentes do direito internacional, o qual faz parte da ordem jurídica da União
e vincula as suas instituições (v., neste sentido, acórdãos Racke, já referido, n. ºs 45 e 46,
e de 3 de setembro de 2008, Kadi e Al Barakaat International Foundation/Conselho e
Comissão, C-402/05 P e C-415/05 P, Colet., p. I-6351, n.º 291).

2.1. Centro Internacional para a Resolução de Diferendos relativos a Investimentos


(CIRDI), Electrabel S.A. v. Hungria, Caso n.º ARB/07/19, Decisão, 25 de novembro
2015
http://icsidfiles.worldbank.org/icsid/icsidblobs/OnlineAwards/C111/DC7353_en.pdf

4.122. (iii) O Conjunto do Direito da UE [União Europeia] como Ordem Jurídica


Internacional: Adicionalmente, o Tribunal considera que o direito da UE como um todo
é parte da ordem jurídica internacional; e não faz uma distinção material, como proposto
pelo Requerente, entre os Tratados da UE (que o Requerente reconhece como direito
internacional) e o “droit dérivé” [direito derivado] (que o Requerente não reconhece como
direito internacional). Na opinião do Tribunal, todas as regras jurídicas da UE são parte
de um sistema regional de direito internacional e, portanto, têm uma natureza jurídica
internacional. Tal foi afirmado claramente pelo TJUE há muitos anos, no célebre caso
Van Gend em Loos:
“A Comunidade constitui uma nova ordem de direito internacional em proveio do qual
os Estados limitaram os seus direitos soberanos ...”

Questões:
a) O Tribunal de Justiça da União Europeia pode fiscalizar a legalidade de uma resolução
do Conselho de Segurança das Nações Unidas? E a sua conformidade com o jus cogens?
Que ato jurídico pode, então, o TJUE fiscalizar?
b) Da afirmação no §291 pode retirar-se uma hierarquia entre o direito da união europeia
e o direito internacional geral?
c) Está a União Europeia subordinada às resoluções do Conselho de Segurança em
matéria de paz e segurança internacionais?

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d) A fiscalização de um ato comunitário de implementação de uma obrigação decorrente


de uma resolução do Conselho de Segurança põe em causa a sua prevalência sobre o
direito comunitário? Ou o ato comunitário goza de “imunidade de jurisdição”?
e) No segundo excerto (2.2.) qual a posição assumida pelo Tribunal de Justiça da União
Europeia em relação ao direito internacional?
f) Segundo o Centro Internacional para a Resolução de Diferendos relativos a
Investimentos (último excerto) qual a natureza jurídica do direito da União Europeia?

3. O caso de Portugal

3.1. Constituição da República Portuguesa

Artigo 7.º
Relações internacionais
1. Portugal rege-se nas relações internacionais pelos princípios da independência
nacional, do respeito dos direitos do homem, dos direitos dos povos, da igualdade entre
os Estados, da solução pacífica dos conflitos internacionais, da não ingerência nos
assuntos internos dos outros Estados e da cooperação com todos os outros povos para a
emancipação e o progresso da humanidade.
2. Portugal preconiza a abolição do imperialismo, do colonialismo e de quaisquer outras
formas de agressão, domínio e exploração nas relações entre os povos, bem como o
desarmamento geral, simultâneo e controlado, a dissolução dos blocos político-militares
e o estabelecimento de um sistema de segurança coletiva, com vista à criação de uma
ordem internacional capaz de assegurar a paz e a justiça nas relações entre os povos.
3. Portugal reconhece o direito dos povos à autodeterminação e independência e ao
desenvolvimento, bem como o direito à insurreição contra todas as formas de opressão.
4. Portugal mantém laços privilegiados de amizade e cooperação com os países de língua
portuguesa.
5. Portugal empenha-se no reforço da identidade europeia e no fortalecimento da ação
dos Estados europeus a favor da democracia, da paz, do progresso económico e da justiça
nas relações entre os povos.
6. Portugal pode, em condições de reciprocidade, com respeito pelos princípios
fundamentais do Estado de direito democrático e pelo princípio da subsidiariedade e
tendo em vista a realização da coesão económica, social e territorial, de um espaço de
liberdade, segurança e justiça e a definição e execução de uma política externa, de
segurança e de defesa comuns, convencionar o exercício, em comum, em cooperação ou
pelas instituições da União, dos poderes necessários à construção e aprofundamento da
união europeia.
7. Portugal pode, tendo em vista a realização de uma justiça internacional que promova o
respeito pelos direitos da pessoa humana e dos povos, aceitar a jurisdição do Tribunal

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48 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

Penal Internacional, nas condições de complementaridade e demais termos estabelecidos


no Estatuto de Roma.

Artigo 8
Direito internacional
1. As normas e os princípios de direito internacional geral ou comum fazem parte
integrante do direito português.
2. As normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou
aprovadas vigoram na ordem interna após a sua publicação oficial e enquanto vincularem
internacionalmente o Estado Português.
3. As normas emanadas dos órgãos competentes das organizações internacionais de que
Portugal seja parte vigoram diretamente na ordem interna, desde que tal se encontre
estabelecido nos respetivos tratados constitutivos.
4. As disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das
suas instituições, no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem
interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios
fundamentais do Estado de direito democrático.

Questões:
a) A nossa Constituição adota que posição na relação entre a ordem jurídica internacional
e a ordem jurídica interna?
b) A posição das normas internacionais é diferente consoante se tratem de normas
consuetudinárias ou de normas convencionais?
c) E que decisões de organizações internacionais vigoram na nossa ordem interna?

3.2. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 290/02, de 2 de julho de 2002 (Proc. n.º
477/02)

Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional


1. A veio recorrer para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea i) do nº
1 do artigo 70º da LTC, do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que lhe negou
provimento ao recurso por ele interposto de anterior acórdão do Tribunal da Relação de
Évora, que decretara a «ampliação de extradição» do ora recorrente «para cumprimento
da pena de seis anos e seis meses de prisão em que foi condenado, pela prática de crimes
de detenção e porte ilegal de explosivos em local público, de armas de guerra e de
munições, todos previstos nos artigos 1º e 2º, da Lei nº 895, de 2 de Outubro de 1974, da
legislação penal italiana»
[…]

48
49 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

2. Entendendo que se não podia tomar reconhecimento do recurso, o relator lavrou


decisão sumária, ao abrigo do preceituado no nº 1 do art.º 78º-A da LTC.
Afirmou-se nessa decisão sumária:
Nos termos do referido requerimento de interposição do recurso, pretende, pois, o
recorrente que o Tribunal Constitucional vá apreciar a compatibilidade intrínseca entre o
artigo 14º da Convenção Europeia de Extradição, tal como interpretado e apreciado pelo
tribunal a quo, e as normas constitucionais ou constantes de instrumentos internacionais
sobre direitos do Homem que identifica.
Tal pretensão não se enquadra, porém, no objeto do recurso previsto na alínea i) do nº 1
do artigo 70º e delimitado no nº 2 do artigo 71º da LTC.
[…]
São questões jurídico-constitucionais as que se localizam em sede de direito
constitucional (cfr. art. 8º), devendo ser analisadas e resolvidas segundo as normas e
princípios constitucionais consagrados e de acordo com os instrumentos hermenêuticos
de interpretação e concretização específicos deste ramo de direito. Estão neste caso, por
ex., as questões referentes ao sistema de «incorporação» das normas internacionais no
direito interno (recepção plena, recepção condicionada), os problemas referentes à
posição hierárquica das normas de direito internacional (valor supraconstitucional, valor
constitucional, valor infraconstitucional mas supralegal, valor de lei) e os problemas
relacionados com a qualificação de normas reguladoras de atos ou relações internacionais
(ex.: exclusão do carácter jurídico-constitucional do direito diplomático).
Serão questões jurídico-internacionais as que se localizam no plano do direito
internacional, geral, convencional e consuetudinário, cabendo discuti-las e analisá-las à
face dos princípios e normas deste direito e segundo as suas regras de interpretação e
concretização específicas. Estarão, porventura, neste caso, as questões relativas às
relações entre o direito internacional e o direito interno (monismo, dualismo), ao campo
de aplicação das normas internacionais (relação entre os estados, criação de direitos e
deveres também para particulares), ao problema da vigência do direito internacional e aos
conflitos entre as normas internacionais e as leis internas do estado (cumprimento de
obrigações, responsabilidade internacional dos Estados).
[...]
Diferentemente, porém, dos processos de fiscalização concreta de inconstitucionalidade
ou de ilegalidade, não se trata de um verdadeiro processo de controlo de normas mas de
um processo de verificação das questões jurídico-constitucionais ou jurídico-
internacionais implicadas na decisão. Assim, por exemplo, num recurso motivado pela
recusa de aplicação de uma norma legal contrária ao direito internacional convencional,
o Tribunal Constitucional verifica se se trata de um tratado solene, caso em que admitirá
porventura a superioridade hierárquica em relação a atos legislativos internos em
contradição com ele, ou de um acordo em forma simplificada, hipótese em que poderá
porventura julgar constitucionalmente mais correto a decisão da questão partindo do
princípio da igualdade hierárquica entre lei e acordo internacional ou até do princípio de

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50 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

supremacia do direito interno quando estejam em causa leis com valor reforçado. Da
mesma forma, o recurso para o Tribunal Constitucional permitirá a verificação e
qualificação das regras de direito internacional. Assim, por exemplo, o Tribunal
averiguará se a questão de natureza jurídico-constitucional e jurídico-internacional
relativa ao valor normativo de tratado-contrato deve, no caso concreto, ser decidida no
sentido de o tratado-contrato ser um ato normativo, com possibilidade de fiscalização da
constitucionalidade, ou se ele não reúne as características de uma norma, caso em que
será arredado o «controlo de normas» (cfr., Ac 494/99 – Caso do Acordo de Segurança
Social com o Chile).
O recurso para o Tribunal Constitucional permitirá ainda a este verificar, por exemplo, a
vigência ou não de uma norma convencional ou se esta deixou de vincular o Estado
português pela ocorrência da cláusula rebus sic stantibus (questão de natureza jurídico-
internacional).
A LTC eleva, deste modo, o Tribunal Constitucional a intérprete qualificado (cfr. LTC,
art. 70º/1/i, 2ª parte, e 72º/4) das questões jurídico-constitucionais (cfr. CRP, art. 221º) e
jurídico-internacionais implicadas num processo concreto (cfr., sobretudo, LTC, art.
70º/1/i, 2ª parte) e a «guardião do valor paramétrico do direito internacional
convencional» nos casos onde a parametricidade deste direito em relação ao direito
interno se revelou justificada através da interpretação/concretização de normas
constitucionais e normas internacionais. O processo de verificação consagrado nos art.
70º/1/i e 71º/2 da LTC converte-se, assim, no instrumento processual de concretização
das normas constitucionais, em especial do art. 8º da CRP. Ao mesmo tempo, o processo
de verificação de contrariedade de normas do direito interno com normas de direito
internacional ou da desconformidade de decisões dos tribunais incidentes sobre o mesmo
problema em relação a anteriores decisões do Tribunal Constitucional, abre o caminho
para uma espécie de processo de qualificação de normas. Com efeito, se por qualificação
de normas se entender a determinação da hierarquia de normas de direito internacional,
então o TC tem um meio processual de, caso a caso, proceder a essa qualificação. Em
conclusão: o TC verifica se uma norma convencional internacional faz parte do direito
interno, se ela cria direitos e deveres para os particulares e qualifica essa norma para
efeitos de inserção no plano da hierarquia das fontes de direito (cfr. CRP, art. 119º/1/b).
Ora, no caso vertente, como vimos, não é esta verificação e qualificação que se pretende
que o Tribunal Constitucional efetue. É antes um juízo de conformidade material entre
uma norma de direito convencional e a Constituição, por um lado, e certos instrumentos
de direito internacional no domínio dos Direitos do Homem, por outro lado, que se requer.
Só que um tal juízo não cabe no âmbito do recurso previsto na alínea i) do nº 1 do artigo
70º da LTC, pelo que, in casu, o recurso não é admissível.

Questões:
a) Como é feita, pelo Tribunal Constitucional, a distinção entre questões jurídico-
constitucionais de questões jurídico-internacionais?

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51 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

b) A questão das relações entre a ordem jurídica internacional e a ordem jurídica interna,
é de natureza internacional ou constitucional?
c) Da leitura do acórdão que conclui sobre a posição hierárquica (para o Tribunal
Constitucional) do direito internacional convencional na nossa ordem jurídica.

3.3. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 384/2005, de 13 de julho de 2005


https://dre.pt/dre/detalhe/acordao/384-2005-1309951

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:


I - Relatório. - 1 - A União Indiana solicitou à República Portuguesa, ao abrigo da
Convenção Internacional para a Repressão de Atentados Terroristas à Bomba, aberta para
assinatura, em Nova Iorque, em 12 de Janeiro de 1998, aprovada, para ratificação, pela
Resolução da Assembleia da República n.º 40/2001, de 5 de Abril, e ratificada pelo
Decreto do Presidente da República n.º 31/2001, de 25 de Junho (doravante designada
por Convenção de Nova Iorque), a extradição do seu nacional Abu Salem Abdul Qayoom
Ansari a fim de ser julgado pelos crimes nesse pedido elencados, alguns dos quais
abstratamente puníveis com pena de morte e pena de prisão perpétua.
[…]
O condicionamento da extradição por crime punível com prisão perpétua à existência de
condições de reciprocidade estabelecidas em convenção internacional que ligue Portugal
ao Estado requerente é suficiente para satisfazer as preocupações relacionadas com a base
de confiança e com a credibilidade que este Estado deve merecer. Por outro lado, quanto
à suficiência de garantias, o que é exigível - como, aliás, o próprio Acórdão n.º 1/2001
assinalou - é que elas sejam vinculativas para o Estado requerente face ao direito
internacional público. Ora a vinculação internacional dos Estados não se opera apenas
através da celebração de convenções bilaterais ou multilaterais, podendo também resultar
de atos unilaterais.
A doutrina e a jurisprudência internacional-publicistas de há muito reconhecem aos atos
jurídicos unilaterais dos Estados natureza jurídica vinculativa, independentemente de os
caracterizar, ou não, também como fonte de direito internacional, e entre esses atos inclui-
se a promessa, entendida como a declaração unilateral de vontade pela qual certo sujeito
se compromete a agir ou não agir de certo modo ou como o compromisso assumido por
um Estado de tomar no futuro determinada atitude (cf. André Gonçalves Pereira e Fausto
de Quadros, Manual de Direito Internacional Público, 3.ª ed., Coimbra, 1993, pp. 265-
268, Jorge Miranda, Curso de Direito Internacional Público, 2.ª ed., Lisboa, 2004, pp.
50-53, e Albino de Azevedo Soares, Lições de Direito Internacional Público, 4.ª ed.,
Coimbra, 1988, pp. 191-193).
Cingindo-nos aos atos jurídicos unilaterais autónomos, isto é, cuja eficácia não depende
da aceitação de outrem, entre os quais as promessas (ou garantias), a sua vinculatividade,
em termos de direito internacional público, assenta essencialmente no princípio da boa
fé. Como refere Eric Suy (Les Actes Juridiques Unilatéraux en Droit International

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52 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

Public, Paris, 1962, p. 151): "O interesse superior da segurança das relações
internacionais exige que a promessa seja obrigatória desde que se torne conhecida pelos
sujeitos interessados, e esse interesse traduz-se no princípio da boa fé que deve reger todas
as relações internacionais. Alargando a noção do pactum, queremos dizer que a norma
fundamental, a fonte da promessa, é a norma consuetudinária que prescreve que os
compromissos internacionais devem ser respeitados.". Desde que subjacente à promessa
esteja a vontade do órgão do Estado de assumir um compromisso e desde que ela seja
levada ao conhecimento dos interessados (o que é diferente de ficar dependente da sua
aceitação), o princípio da boa fé, internacionalmente reconhecido, constitui o fundamento
da vinculatividade jurídico-internacional do compromisso assumido (cf. Paul Reuter,
Droit International Public, Paris, 1983, pp. 142-144, e Nguyen Quoc Dinh, Patrick
Daillier e Alain Pellet, Droit International Public, 6.ª ed., Paris, 1999, p. 359), sendo
comummente assinalado que a ausência de formalismo é a regra nos atos unilaterais
(Jean-Paul Jacqué, "Acte et norme en droit international public", in Académie de Droit
International, Recueil des Cours, 1991, II, pp. 357-417, em especial a p. 379). As
específicas categorias de promessas que se traduzem na renúncia ao exercício de um
direito são não só admitidas pela prática dos Estados como a doutrina lhes atribui carácter
obrigatório, com base na confiança que deve presidir às relações internacionais e a própria
natureza dos sujeitos internacionais em causa - os Estados - justifica que à promessa seja
atribuída uma eficácia jurídica mais vasta do que a normalmente reconhecida pelos
direitos internos a promessas de sujeitos privados (cf. G. Venturini, "La portée et les effets
juridiques des attitudes et des actes unilatéaux des États", in Académie de Droit
International, Recueil des Cours, 1964, II, pp. 363-461, em especial de p. 394 a p. 405).
Neste contexto, nenhuma razão válida existe para exigir que a prestação de garantia de
não execução de pena de prisão perpétua conste de convenção internacional, sendo
igualmente vinculativos, à luz do direito internacional público, os compromissos
assumidos pelas entidades constitucionalmente competentes para obrigar o Estado
requerente através da emanação de atos unilaterais, como as promessas, observados os
requisitos atrás enunciados.
Conclui-se, assim, não ser constitucionalmente exigível que a prestação de garantias
esteja estabelecida em convenção internacional. Desta apenas tem de constar a
consagração do princípio da reciprocidade quanto ao dever de extraditar: do ut des.

Questões:
a) Que valor têm, para o Tribunal Constitucional, os atos jurídicos unilaterais de um
Estado?
b) Qual o ato jurídico unilateral em causa?
c) Considerando o disposto no artigo 8.º CRP, a aceitação por parte do Tribunal
Constitucional da vinculatividade de um ato jurídico unilateral internacional, com efeitos
na ordem jurídica interna, pode constituir uma extensão “da receção” (por via de costume
praeter constitutionem?) do direito internacional no nosso ordenamento?

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53 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

PARTE II – SUBJETIVIDADE E PERSONALIDADE JURÍDICA INTERNACIONAL

1. TIJ, Reparação dos danos sofridos ao serviço das Nações Unidas, Parecer
Consultivo, 11 de abril de 1949, Col., 1949, pp. 174 ss., pp. 177 ss. e 185

Nota: O conde Folke Bernadotte, que chefiava uma missão de mediação das Nações Unidas, foi assassinado na
Palestina em setembro de 1948, assim como vários membros da missão, A questão colocada ao Tribunal Internacional
de Justiça pela Assembleia Geral era, por conseguinte, se a ONU tinha capacidade para iniciar uma ação internacional
contra o Estado responsável (no caso, Israel), exigindo reparação pelo dano causado, tanto à organização internacional
como às vítimas. Tratava-se, por outro lado, de saber como conciliar esta possibilidade (caso a resposta fosse positiva)
com o direito de proteção diplomática dos Estados da nacionalidade das vítimas.

“As questões colocadas ao Tribunal referem-se à “qualidade para apresentar…uma


reclamação internacional”; por conseguinte, é necessário precisar, em primeiro lugar, o
que se entende por esta qualidade e tomar em consideração as características da
organização tendo em vista determinar se, de um modo geral, estas características
integram ou excluem a sua faculdade de apresentar uma reclamação internacional.

A competência para apresentar uma reclamação internacional é, para quem a possui, a


capacidade de recorrer aos métodos habituais reconhecidos pelo direito internacional para
o estabelecimento, apresentação e resolução de reclamações. Entre esses métodos, podem
referir-se o protesto, o pedido de inquérito, a negociação e a exigência de submeter o caso
a um tribunal arbitral ou ao Tribunal, na medida em que o seu Estatuto o permita. Esta
competência, seguramente, é detida pelo Estado; um Estado pode apresentar a outro uma
reclamação internacional. Uma tal reclamação surge como reclamação entre dois entes
políticos, iguais perante o Direito, com uma estrutura semelhante e ambos sujeitos diretos
do direito internacional. É tratada através de negociações e, no estado atual do direito
relativo à jurisdição internacional, só pode ser submetida a um tribunal internacional com
o consentimento dos Estados em causa.
Se a organização dirige a um dos seus Membros uma reclamação, esta será apresentada
da mesma maneira e será tratada com recurso aos mesmos procedimentos. Poderá, se
necessário, apoiar-se nos meios políticos ao dispor da Organização.

Desta forma, a Organização terá aí o meio de garantir o respeito dos seus direitos pelo
Estado Membro contra o qual apresenta uma reclamação.
Mas, na ordem internacional terá a organização uma natureza que integre a capacidade
de apresentar uma reclamação internacional? Para responder a esta questão, é em primeiro
lugar necessário determinar se a Carta deu à organização uma condição tal que tenha,
relativamente aos seus Membros, direitos de que tenha a capacidade para exigir o respeito.
Dito de outra forma, a Organização tem personalidade internacional. Esta última
expressão, sem dúvida, é uma expressão doutrinal que, por vezes, foi contestada. Porém,
será aqui utilizada para exprimir que a Organização, se se reconhecer que possui essa
personalidade, é uma entidade capaz de ser beneficiária de obrigações que incumbem aos
seus Membros.
Para responder a esta questão, que não é decidida pelos termos atuais da Carta, é
necessário atender às características que esta entendeu conferir à Organização.
Os sujeitos de direito, num sistema jurídico, não são, necessariamente, idênticos
quanto à sua natureza ou ao alcance dos seus direitos; e a sua natureza depende das

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54 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

necessidades da comunidade. Ao longo da sua história, o desenvolvimento do direito


internacional foi influenciado pelas exigências da vida internacional, e o crescimento
progressivo das atividades coletivas dos Estados já fez surgir exemplos de ação exercida
no plano internacional por certas entidades que não são Estados. Este desenvolvimento
resultou, em junho de 1945, na criação de uma organização internacional cujos objetivos
e princípios são enunciados pela Carta das Nações Unidas. Para alcançar estes objetivos,
é indispensável que a Organização tenha personalidade internacional.

A Carta não se limitou a fazer simplesmente da Organização por si criada um centro


em que se harmonizassem os esforços das nações tendo em vista os fins comuns definidos
por ela (artigo 1, n.º 4). Deu-lhe órgãos; atribuiu-lhe uma missão própria. Definiu a
posição dos Membros relativamente à Organização, cometendo-lhes darem-lhe
assistência plena em qualquer ação por ela empreendida (artigo 2, n.º 5), aceitarem e
aplicarem as decisões do Conselho de Segurança, autorizando a Assembleia Geral a
dirigir-lhes recomendações, dando à Organização capacidade jurídica, privilégios e
imunidades no território de cada um dos seus Membros, prevendo acordos a concluir entre
a Organização e os seus Membros. A prática, nomeadamente, pela conclusão de
convenções nas quais a Organização é parte, confirmou esta característica de uma
organização colocada, em certos aspetos, perante os seus Membros e que, sendo caso
disso, tem o dever de lhes recordar certas obrigações. A isso junta-se o facto de as Nações
Unidas serem uma Organização política, incumbida de uma missão política de natureza
muito importante e muito ampla: manter a paz e segurança internacionais, desenvolver as
relações de amizade entre as nações, realizar a cooperação internacional na ordem
económica, social, internacional ou humanitária (artigo 1), e que age através de meios
políticos relativamente aos seus Membros. A “Convenção sobre os Privilégios e
Imunidades das Nações Unidas”, de 1946, cria direitos e deveres entre cada um dos
signatários e a Organização (ver, nomeadamente, secção 35). Ora, seria difícil de
conceber como é que uma tal convenção poderia exprimir os seus efeitos a não ser no
plano internacional e entre partes com personalidade internacional.

No entender do Tribunal, a Organização estava destinada a exercer funções e a gozar


direitos – e ela assim fez – que só podem explicar-se se a Organização possuir uma ampla
medida de personalidade e a capacidade para agir no plano internacional. Atualmente, é
o tipo mais elevado de organização internacional, e não poderia responder às intenções
dos seus fundadores se estivesse privada de personalidade internacional. Há que admitir
que os seus Membros, ao atribuírem-lhe certas funções, com os deveres e as
responsabilidades correspondentes, lhe deram a competência necessária que lhe permite
realizar, efetivamente, as suas funções. Em consequência, o Tribunal conclui que a
Organização é uma pessoa internacional. Isso não quer dizer que a organização seja um
Estado, que certamente não é, ou que a sua personalidade jurídica, os seus direitos e
deveres, sejam os mesmos de um Estado. Ainda menos isso quer dizer que a organização
seja um “super-Estado”, qualquer que seja o sentido desta expressão. Isso não implica,
sequer, que todos os direitos e deveres da organização tenham que resultar do direito
internacional, nem tão pouco que todos os direitos e deveres dos Estados aí se devam
encontrar. Isso significa que a organização é um sujeito de direito internacional, que tem
a capacidade de ser titular de direitos e deveres internacionais e que tem capacidade para
fazer valer os seus direitos através de uma reclamação internacional.”

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55 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

A questão a analisar a seguir é a de saber se a soma dos direitos internacionais da


Organização inclui o direito de apresentar reclamações internacionais como aquelas que
são objeto do presente pedido de parecer.
(…)
Por conseguinte, a questão que se coloca é a de saber se a Organização tem
competência para apresentar uma reclamação internacional contra o Estado defendente,
tendo em vista obter reparação devido a esse dano, ou se, ao contrário, esse Estado, se
não for membro da Organização, tem fundamento para objetar à competência da
Organização para apresentar uma reclamação internacional. A este respeito, o Tribunal
considera que cinquenta Estados, que representam uma muito ampla maioria dos
membros da comunidade internacional, tinham o poder, de acordo como direito
internacional, de criar uma entidade dotada de personalidade jurídica objetiva – e não,
simplesmente, uma personalidade apenas reconhecida por eles – assim como a
competência para apresentar reclamações internacionais.

Questões

a) Identifique na passagem do Parecer Consultivo sobre a reparação dos danos sofridos


ao serviço das Nações Unidas, quais são, na opinião do TIJ, os elementos da
personalidade jurídica internacional.
b) Qual a consequência de o TIJ reconhecer a personalidade jurídica internacional das
Nações Unidas?
c) O TIJ afirma no Parecer que os sujeitos de um determinado sistema jurídico, “não são
(...) idênticos quanto à sua natureza ou ao alcance dos seus direitos; e a sua natureza
depende das necessidades da comunidade.” Tendo em conta o que aprendeu sobre a
subjetividade internacional, relacione essa afirmação (e outras que considere relevantes)
com o âmbito da personalidade jurídica dos Estados.
d) Como é que o TIJ relaciona a personalidade jurídica das Nações Unidas com a dos
Estados?
e) Como é que o Tribunal distingue personalidade “subjetiva” de personalidade
“objetiva”? Que avaliação faz da tomada de posição do Tribunal a este respeito? Será esta
tomada de posição generalizável relativamente às restantes organizações internacionais?
Justifique.

O ESTADO

A) Tratados

1. Convenção de Montevideu sobre os Direitos e Deveres dos Estados, 26 de


dezembro de 1933
In http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930-1949/d1570.htm

Nota: o texto que se publica da Convenção de Montevideo de 1933 constitui a versão original, e que faz
fé, em português do Brasil. Esta convenção foi negociada entre os países do continente americano, com a
participação do Brasil como signatário e posteriormente Estado contratante (em 1937).

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56 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

Artigo 1
O Estado como pessoa de Direito Internacional deve reunir os seguintes requisitos.
I. População permanente.
II. Território determinado.
III. Govêrno.
IV. Capacidade de entrar em relações com os demais Estados.

Artigo 2
O Estado federal constitue uma só pessoa ante o Direito Internacional.

Artigo 3
A existência política do Estado é independente do seu reconhecimento pelos demais
Estados. Ainda antes de reconhecido, tem o Estado o direito de defender sua integridade
e independência, prover a sua conservação e prosperidade, e conseguintemente,
organizar-se como achar conveniente, legislar sôbre seus interesses, administrar seus
serviços e determinar a jurisdição e competência dos seus tribunais.
O exercício dêstes direitos não tem outros limites além do exercício dos direitos de
outros Estados de acôrdo com o Direito Internacional.

Artigo 4
Os Estados são juridicamente iguais, desfrutam iguais direitos e possuem capacidade
igual para exercê-los. Os direitos de cada um não dependem do poder de que disponha
para assegurar seu exercício, mas do simples fato de sua existência como pessoa de
Direito Internacional.

Artigo 5
Os direitos fundamentais dos Estados não são suscetíveis de ser atingidos sob qualquer
forma.

Artigo 6
O reconhecimento de um Estado apenas significa que aquele que o reconhece aceita a
personalidade do outro com todos os direitos e deveres determinados pelo Direito
Internacional. O reconhecimento é incondicional e irrevogável.

Artigo 7
O reconhecimento do Estado poderá ser expresso ou tácito. Êste último resulta de todo
ato que implique a intenção de reconhecer o novo Estado.

Artigo 8
Nenhum Estado possue o direito de intervir em assuntos internos ou externos de outro.

Artigo 9
A jurisdição dos Estados, dentro dos limites do território nacional, aplica-se a todos os
habitantes. Os nacionais e estrangeiros encontram-se sob a mesma proteção da legislação
e das autoridades nacionais e os estrangeiros não poderão pretender direitos diferentes,
nem mais extensos que os dos nacionais.

Artigo 10

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57 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

É interesse primordial dos Estados a conservação da paz.


As divergências de qualquer espécie que entre eles se levantem deverão resolver-se
pelos meios pacíficos reconhecidos.

Artigo 11
Os Estados contratantes consagram, em definitivo, como norma de conduta, a
obrigação precisa de não reconhecer aquisições territoriais ou de vantagens especiais
realizadas pela fôrça, consista esta no emprego de armas, em representações diplomáticas
cominatórias ou em qualquer outro meio de coação effectiva. O território dos Estados é
inviolável e não pode ser objeto de occupações militares, nem de outras medidas de força
impostas por outro Estado, direta ou indiretamente, por motivo algum, nem sequer de
maneira temporária.

Questões:

a) Qual a abordagem adotada na Convenção em relação à “definição” ou “descrição” do


Estado? Justifique.
b) Tendo em conta a atual prática internacional, considera suficiente o preenchimento dos
requisitos do Artigo 1 para que uma entidade possa ser considerada um Estado?
c) Relativamente ao reconhecimento de Estado, que regra parece extrair-se do texto da
Convenção?
d) Quais serão em seu entender, os “direitos fundamentais dos Estados”? Poderá dizer-se
que esta expressão “personifica” o Estado em termos similares ao dos das pessoas
singulares no direito interno (antropomorfização do Estado)?
e) Identifique as disposições onde se verifica, claramente, uma intenção de proteção da
soberania do Estado, referindo aquelas onde considera que já se terá verificado uma
evolução do direito internacional.

2. Conselho da Sociedade das Nações, Resolução, Condições gerais que devem


estar preenchidas antes de ser pôr termo ao regime do Mandato relativamente a um
território colocado sob esse regime, 4 de setembro de 1931

A tarefa atribuída à Comissão Permanente de Mandatos foi definida pela resolução do


Conselho de 13 de janeiro de 1930, nos seguintes termos:

“Desejosos em determinar quais as condições gerais que devem estar preenchidas para
se pôr termo ao regime de mandato relativamente a um território colocado sob esse
regime, e tendo em vista essas decisões, quando for chamado a pronunciar-se sobre esse
assunto, o Conselho, independentemente de outras consultas que possa entender como
necessárias, solicita à Comissão de Mandatos que lhe submeta quaisquer sugestões que
possam auxiliar o Conselho a chegar a uma decisão”

Em resposta a um pedido de interpretação da Comissão Permanente de Mandatos, o


Conselho, a 22 de janeiro de 1931, confirmou a sua anterior resolução, insistindo no facto
de que se referia a uma análise do problema, em geral, e não de um caso particular em
que a questão se suscitasse, e “convidou a Comissão a prosseguir o seu estudo sobre os
aspetos gerais deste problema.

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58 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

Para além disso, resulta claro das declarações feitas pelo seu Relator que o Conselho
não espera que a Comissão de Mandatos apresente sugestões relativamente às condições
que possam ser impostas para a admissão à Sociedade [das Nações] de um Estado antes
sob mandato.
Com esta delimitação, a Comissão analisou a questão, à qual dedicou várias reuniões
nas suas 19.ª e 20.ª sessões. As considerações que levaram os membros da Comissão a
alcançarem acordo quanto às sugestões abaixo formuladas estão registadas nas Minutas
dessas duas sessões e nos relatórios e notas anexas respetivos.
A Comissão de Mandatos considera que a emancipação de um território sob o regime
de mandato depende de dois tipos de condições prévias:
(1) A existência no território respetivo de condições de facto que justifiquem a
presunção de que o país atingiu o estádio de desenvolvimento em que um povo se
tornou capaz, nos termos do artigo 22 do Pacto, “capazes de se dirigirem por si
próprios nas condições particularmente difíceis do mundo moderno”;
(2) Há certas garantias que devem ser dadas pelo território que deseja a emancipação,
para satisfação da Sociedade das Nações, em cujo nome foi conferido mandato e
foi este exercido pelo Mandatário.

I.
Se um povo que até agora tem estado sob tutela se tornou capaz de ficar por si, sem o
conselho e assistência de um mandatário, é uma questão de facto e não de princípio. Só
pode dar-se tal por verificado depois de uma análise cuidadosa do desenvolvimento
político, social e económico de cada território. Esta observação deve ser feita ao longo de
um período suficiente de tempo para que se possa chegar à conclusão de que o espírito de
responsabilidade cívica e condições sociais progrediram de uma forma que torna viável
o funcionamento do aparelho do Estado e garante a liberdade política.
Há, no entanto, algumas condições cuja verificação, em qualquer caso, indica a
capacidade de uma comunidade política ser autónoma e manter a sua própria existência
como Estado independente.
Com base nestas considerações gerais, a Comissão propõe que as condições seguintes
estejam preenchidas antes de um território sob mandato poder ser dispensado do regime
mandatário – condições que devem aplicar-se ao conjunto do território e da sua
população.
(a) Deve ter um Governo estabelecido e uma administração capaz de manter o
funcionamento regular dos serviços públicos essenciais;
(b) Deve ser capaz de manter a sua integridade territorial e independência política;
(c) Deve ser capaz de manter a ordem pública em todo o território;
(d) Deve dispor dos recursos financeiros adequados para poder responder,
regularmente, às necessidades normais de Governo;
(e) Deve ter leis e uma organização judicial que garanta a todos uma justiça igual e
regular.

II.
A Comissão sugere que as garantias a prestar pelo novo Estado antes de ser posto
termo ao mandato assumam a forma de uma declaração vinculativa para o novo Estado
perante a Sociedade das Nações, ou de um tratado ou convenção, ou de um outro qualquer
instrumento formalmente aceite pelo Conselho da Sociedade como equivalente a esse
compromisso.

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59 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

A Comissão propõe que, sem prejuízo de quaisquer garantias suplementares que


possam justificar-se devido às circunstâncias particulares de certos territórios ou à sua
história recente, os compromissos do novo Estado devem assegurar e garantir:
(a) A proteção efetiva das minorias raciais, linguísticas e religiosas;
(b) Os privilégios e imunidades dos estrangeiros (nos territórios do próximo oriente),
incluindo a jurisdição consular e a proteção, tal como eram antes praticados no
Império Otomano, em virtude das capitulações e dos usos, a menos que, quanto a
este aspeto, tenha sido previamente aprovado um outro acordo pelo Conselho da
Sociedade das Nações, de forma concertada com as Potências interessadas;
(c) Os interesses dos estrangeiros em matéria judiciária, civil e penal, na medida em
que esses interesses não sejam garantidos pelas capitulações;
(d) A liberdade de consciência, o livre exercício dos cultos e das atividades religiosas,
educacionais e em matéria de assistência médica das missões religiosas de todas
as confissões, sob reserva das medidas indispensáveis para a manutenção da ordem
pública, dos bons costumes e de uma boa administração;
(e) As obrigações financeiras assumidas regularmente pela antiga Potência
mandatária;
(f) Os direitos de qualquer outra natureza adquiridos legalmente no decurso do regime
de mandato;
(g) A manutenção em vigor das convenções internacionais, gerais e particulares, às
quais a Potência mandatária tenha aderido em nome do território no decurso do
mandato, pelo período da sua duração e sob reserva da faculdade de denúncia que
coubesse às partes.

Para além das cláusulas essenciais acima referidas, a Comissão Permanente de


Mandatos considera desejável que o novo Estado, se até então tiver estado sujeito à
cláusula de igualdade económica, e sob condição de reciprocidade, aceite conceder,
como medida transitória, o tratamento de nação mais favorecida aos membros da
Sociedade.

Questões:
a) Esta resolução do Conselho da SDN foi adotada para definir os critérios que os
territórios sob mandato (um regime internacional que os colocava sob a autoridade da
“potência mandatária” até estarem em situação que lhe permitisse aceder à condição de
Estado) tinham que preencher para poderem chegar à estadualidade. Em geral, como
compara este texto com aquilo que vem enunciado na Convenção de Montevideu?
b) Tomando em consideração o que sabe sobre o Estado, que “exigências” parecem
desproporcionais e terão sido afastadas, de vez, do direito internacional?
c) Que tipo de exigências poderiam considerar-se formas de ingerência e de
condicionamento da independência dos novos Estados, territórios que até aí tivessem
estado sujeitos ao regime de mandato?

3. Conferência para a Paz na Jugoslávia, Comissão Arbitral, Parecer n.º 1, 29 de


novembro de 1991

O Presidente da Comissão de Arbitragem recebeu, a 20 de novembro de 1991, a


seguinte carta de Lorde Carrington, Presidente da Conferência para a Paz na Jugoslávia:

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60 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

“Estamos confrontados com uma importante questão de Direito.


A Sérvia considera que o facto de as Repúblicas se terem declarado independentes ou
soberanas, ou quererem fazê-lo, terem secessionado, ou virem a fazê-lo, da República
Socialista Federativa da Jugoslávia (R.F.S.J.) não afeta a existência desta, que aliás
continuará a existir.
Outras Repúblicas, ao contrário, consideram que não se trata de secessão, mas que se
assiste à desintegração ou explosão da R.F.S.J., por efeito da vontade convergente de um
certo número de Repúblicas. Consideram que as seis Repúblicas devem ser olhadas como
sucessoras, em pé de igualdade, à R.S.F.J., sem que nenhuma delas ou um qualquer grupo
de entre elas, possam pretender ser o seu continuador.
Gostaria que a Comissão de Arbitragem tratasse esta questão, a fim de formular
qualquer parecer ou recomendação que possa entender como útil.”
A Comissão de Arbitragem tomou conhecimento das memórias e documentos
comunicados, respetivamente, pelas Repúblicas da Bósnia-Herzegovina, da Croácia, da
Macedónia, do Montenegro, da Eslovénia e da Sérvia e pelo Presidente da Presidência
Colegial da R.S.F.J.

1) A Comissão considera:

a. Que a resposta à questão colocada deve ser dada em função dos princípios do direito
internacional público que permitem definir em que condições uma entidade constitui um
Estado; que, a este respeito, a existência ou o desaparecimento do Estado é uma questão
de facto; que o reconhecimento pelos outros Estados tem efeitos puramente declarativos;
b. Que o Estado é habitualmente definido como uma coletividade que se compõe de um
território e de uma população, submetida a um poder político organizado; que se
carateriza pela soberania;
c. Que, para a aplicação destes critérios, a forma da organização política interna e as
disposições constitucionais constituem simples factos, tomados em consideração, no
entanto, por serem úteis para determinarem a jurisdição que o Governo exerce sobre a
população e sobre o território;
d. Que, no caso de um Estado de tipo federal, que reúne coletividades dotadas de uma certa
autonomia, e que estão, além disso, associadas ao exercício do poder político no quadro
de instituições comuns à Federação, a existência do Estado pressupõe que os órgãos
federais representam as componentes da Federação e dispõem de um poder efetivo;
e. Que, nos termos da definição admitida em direito internacional, a expressão “sucessão de
Estados” significa a substituição de um Estado por outro na responsabilidade pelas
relações internacionais de um território. Um tal fenómeno é regulado pelos princípios de
direito internacional em que se inspiram as Convenções de Viena de 23 de agosto de 1978
e de 8 de abril de 1983. Em conformidade com estes princípios, a sucessão deve conduzir
a um resultado equitativo, tendo os Estados interessados a liberdade de fixarem, através
de acordo, as suas modalidades. Por outro lado, todas as partes envolvidas na sucessão
estão vinculadas pelas normas imperativas do direito internacional geral e, em especial,
pelo respeito pelos direitos fundamentais da pessoa e pelos direitos dos povos e das
minorias. (…)

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61 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

Questões:
a) Como é que, no excerto acima, são apresentados os critérios da estadualidade?
b) O que significa, em seu entender, a afirmação de que “a existência ou o
desaparecimento do Estado é uma questão de facto”?
c) Explique o sentido e razão de ser do afirmado nas alíneas c) e d), acima.

4. A Declaração Balfour, 2 de novembro de 1917

Caro Lorde Rothschild,

Tenho muito gosto em dar-lhe a conhecer, em nome do Governo de Sua Majestade, a


seguinte declaração de simpatia pelas aspirações judaicas sionistas, que foi submetida ao
Governo e aprovada por este.

“O Governo de sua Majestade encara de forma favorável o estabelecimento na Palestina


de um lar nacional para o povo Judeu, e envidará os seus melhores esforços para facilitar
a realização deste objetivo, estando claramente assente que nada será feito com prejuízo
dos direitos civis e religiosos das comunidades não judaicas existentes na Palestina, ou os
direitos e estatuto político gozados pelos Judeus em qualquer outro país.”

Agradeço-lhe que faça chegar esta declaração ao conhecimento da Federação Sionista.


Com os melhores cumprimentos,
Arthur James Balfour

Questões:

a) Identifique, no tempo e no espaço, a questão suscitada no texto acima.


b) Porque pode afirmar-se que esta declaração é muito ambígua, e não correspondia,
necessariamente, a uma promessa de realização futura de um Estado Judeu (aquele que é,
hoje, o Estado de Israel)? Justifique.

B) Jurisprudência

1. TIJ, Sara Ocidental, Parecer Consultivo, 16 de outubro de 1975, Col. 1975, pp. 12 e
ss., 64-65
In https://www.icj-cij.org/files/case-related/61/061-19751016-ADV-01-00-EN.pdf

“152. A informação perante o Tribunal deixa claro que o nomadismo da grande maioria
dos povos do Sahara Ocidental na altura da sua colonização deu origem a certos laços de
carácter jurídico entre as tribos do território e as das regiões vizinhas do Bilad Shinguitti.
O Tribunal foi informado que as rotas migratórias de quase todas as tribos nómadas do
Sahara Ocidental atravessavam as fronteiras coloniais, entre outras, áreas substanciais do
que é hoje o território da República Islâmica da Mauritânia. As tribos, nas suas migrações,
tinham pastos, terras cultivadas e poços ou furos de água, e os seus cemitérios em um ou
outro território. Estes elementos básicos do modo de vida dos nómadas, tal como referido
anteriormente no presente parecer, eram, em certa medida, objeto de direitos tribais, e a

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62 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

sua utilização era, em geral, regulada pelos costumes. Além disso, as relações entre todas
as tribos da região em matérias como os confrontos inter-tribais e a resolução de conflitos
eram também regidas por um corpo de costumes inter-tribais. Antes do tempo da
colonização do Sahara Ocidental pela Espanha, esses vínculos legais não tinham nem
podiam ter outra fonte que não fosse a utilização dos usos das próprias tribos ou a lei
corânica. Assim, embora não tenha sido demonstrado que o Bilad Shinguitti tenha
existido como entidade legal, os povos nómadas do país Shinguitti deveriam, na opinião
do Tribunal, ser considerados como tendo no período relevante direitos, incluindo alguns
direitos relacionados com as terras através das quais migraram. Estes direitos, conclui o
Tribunal, constituíram laços jurídicos entre o território do Sahara Ocidental e a "entidade
mauritana", sendo esta expressão tomada para designar as várias tribos que vivem nos
territórios do Bilad Shinguitti e que se encontram atualmente no interior da República
Islâmica da Mauritânia. Eram laços que não conheciam fronteiras entre os territórios e
eram vitais para a própria manutenção da vida na região.

2. TIJ, caso Nottebohm (segunda fase), 6 de abril de 1955, Col. 1955, p. 4, pp. 21 – 23.
In: https://www.icj-cij.org/files/case-related/18/018-19550406-JUD-01-00-EN.pdf

“(…) A naturalização de Nottebohm foi um ato realizado pelo Liechtenstein no exercício


da sua jurisdição interna. A questão a ser decidida é a de se esse ato tem o efeito
internacional aqui em consideração. (...)
No presente caso, é necessário determinar se a naturalização conferida a Nottebohm pode
ser invocada com sucesso contra a Guatemala, se, como já foi dito, pode ser invocada
contra esse Estado, para que o Liechtenstein possa assim exercer a sua proteção a favor
de Nottebohm contra a Guatemala. (…)
[A] nacionalidade é um vínculo jurídico que tem como base uma factualidade social, uma
ligação genuína de existência, interesses e sentimentos, juntamente com a existência de
direitos e deveres recíprocos. Pode dizer-se que constitui a expressão jurídica do facto de
o indivíduo a quem é conferida, quer diretamente pela lei, quer como resultado de um ato
das autoridades, estar de facto mais ligado à população do Estado que confere a
nacionalidade do que à de qualquer outro Estado. Conferido por um Estado, só confere a
esse Estado o direito de exercer a proteção face a outro Estado, se constituir uma tradução
em termos jurídicos da ligação do indivíduo com o Estado que o tornou nacional.”

Questões

a) A lista dos elementos de manifestação da estadualidade prevista no artigo 1º da


Convenção de Montevideu é exaustiva?
b) À luz do que leu na passagem do Parecer Consultivo sobre o Sara Ocidental, diria que
um Estado composto apenas por uma população nómada tem uma população permanente
nos termos da Convenção de Montevideu?
c) A dimensão da população é determinante para se considerar uma população
permanente? Justifique com exemplos.
d) O caso Nottebohm analisa o vínculo da nacionalidade da perspetiva internacional.
Tendo em conta os excertos acima e o que aprendeu em aula diria que a nacionalidade
depende do Estado ou vice-versa?

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63 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

3. TIJ, caso Plataforma Continental do Mar do Norte, 20 de fevereiro de 1969, Col.


1969, pp. 33 e ss.

In: https://www.icj-cij.org/files/case-related/52/052-19690220-JUD-01-00-EN.pdf

Nota: O TIJ pronunciou-se neste caso sobre a delimitação das áreas da plataforma continental no Mar do
Norte entre a Alemanha e a Dinamarca e a Alemanha e a Holanda para além das fronteiras parciais
previamente acordadas por estes Estados. As partes solicitaram ao Tribunal que decidisse sobre os
princípios e regras de direito internacional aplicáveis à delimitação acima referida porque as partes
discordaram sobre os princípios ou regras de delimitação aplicáveis.

“43. Mais fundamental do que a noção de proximidade parece ser o princípio -


constantemente invocado pelas Partes - do prolongamento natural ou continuação do
território terrestre ou domínio, ou da soberania terrestre do Estado costeiro, para e sob o
alto mar, através do leito do seu mar territorial que se encontra sob a plena soberania
desse Estado. Existem várias formas de formular este princípio, mas a ideia subjacente,
nomeadamente a da extensão de algo já possuído, é a mesma, e é esta ideia de extensão é
que é, na opinião do Tribunal, determinante. As áreas submarinas não pertencem
realmente ao Estado costeiro porque - ou não só porque - estão perto dele. Estão perto
dele, claro; mas isto não seria suficiente para conferir título, tal como, de acordo com um
princípio de direito bem estabelecido e reconhecido por ambas as partes no caso presente,
a mera proximidade confere per se título ao território terrestre. O que confere o título ipso
jure que o direito internacional atribui ao Estado costeiro em relação à sua plataforma
continental, é o facto de as zonas submarinas em questão poderem ser consideradas como
fazendo parte do território sobre o qual o Estado costeiro já tem domínio,- no sentido de
que, embora cobertas de água, são um prolongamento ou continuação desse território,
uma extensão do mesmo sob o mar. Daqui decorre que sempre que uma determinada zona
submarina não constitua uma extensão natural ou a extensão mais natural do território
terrestre de um Estado costeiro, mesmo que essa zona possa estar mais próxima dela do
que do território de qualquer outro Estado, não pode ser considerada como pertencente a
esse Estado;- ou pelo menos não pode ser considerada como tal face a uma reivindicação
concorrente de um Estado de cujo território terrestre a zona submarina em questão deve
ser considerada como uma extensão natural, mesmo que esteja menos próxima dela.
44. No presente caso, embora ambas as partes se tenham baseado no princípio do
prolongamento e o tenham considerado fundamental, interpretaram-no de forma bastante
diferente. Ambas as interpretações parecem ser incorretas para o Tribunal. A Dinamarca
e os Países Baixos identificaram o prolongamento natural com maior proximidade e, a
partir daí, argumentaram que exigiam uma linha de equidistância: a República Federal
parecia pensar que implicava a noção de partilha justa e equitativa, embora a ligação fosse
distante. (A República Federal invocou, contudo, outra ideia, nomeadamente a da
proporcionalidade da área da plataforma continental de um Estado em relação ao
comprimento da sua linha costeira, que obviamente tem uma ligação íntima com o
princípio do prolongamento, e será considerada no seu lugar). No que diz respeito à
equidistância, não pode claramente ser identificada com a noção de prolongamento ou
extensão natural, uma vez que, como já foi dito (parágrafo 8), a utilização do método da
equidistância faria frequentemente com que áreas que são o prolongamento ou extensão

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64 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

natural do território de um Estado fossem atribuídas a outro, quando a configuração da


costa deste último faz a linha da equidistância oscilar lateralmente através da frente
costeira do primeiro, cortando-a de áreas situadas diretamente antes dessa frente. (…)
46. (...) O surgimento de uma determinada área, considerada como uma entidade, não
determina de forma alguma a delimitação precisa dos seus limites, do mesmo modo que
a incerteza quanto aos limites pode não afeta os direitos territoriais. Não existe, por
exemplo, nenhuma regra segundo a qual as fronteiras terrestres de um Estado devem ser
totalmente delimitadas e definidas, e frequentemente em vários lugares e por longos
períodos não o são, como o demonstra o caso da entrada da Albânia na Sociedade das
Nações. (...).”

4. TIJ, Sara Ocidental, Parecer Consultivo, 16 de outubro de 1975, Col. 1975, pp.
12 e ss., 38-41 e 43-44

“76. O pedido [de Parecer Consultivo] situa, expressamente, a questão 1 no momento da


colonização do Sara Ocidental (Rio de Oro e Sakiet El Hamra) pela Espanha. Do mesmo
modo, como subordina a segunda questão à resposta dada à primeira e a formula no
passado, o pedido também a liga, indiscutivelmente, ao mesmo período. Por conseguinte,
antes de passar à análise das questões, o Tribunal tem de determinar, para efeito do
presente Parecer Consultivo, o que deve entender-se por “momento da colonização por
Espanha”. Sublinha, a este respeito, que a sua preocupação não é a de fixar uma data
crítica, no sentido que se dá a esta expressão nos diferendos territoriais; com efeito, não
é pedido ao Tribunal que escolha entre títulos jurídicos opostos relativamente ao Sara
Ocidental. Apenas se trata de identificar o momento histórico em que o pedido situa as
questões colocadas ao Tribunal e as respostas a dar-lhes.
77. No entender do Tribunal, para efeitos do presente Parecer Consultivo, o “momento
da colonização por Espanha” pode considerar-se como designando o período que tem
início em 1884, ano em que Espanha proclamou o seu protetorado sobre o Rio de Oro. É
verdade que a Espanha apresenta alguns atos anteriores, pelos quais teria manifestado a
sua soberania nos séculos XV e XVI. Fê-lo, no entanto, precisando que apenas o tinha
feito para esclarecer o Tribunal sobre os antecedentes longínquos da presença espanhola
na costa da África Ocidental, e não para demonstrar uma qualquer continuidade entre
esses atos e o momento da colonização por parte de Espanha que, como reconheceu,
deveria considerar-se como tendo tido início em 1884. De todo o modo, à luz dos
elementos de que dispõe, o Tribunal formou a sua convicção de que o período que tem
início em 1884 representa o “momento da colonização por Espanha” do Sara Ocidental,
no sentido do pedido, e constitui o contexto temporal em que as duas questões se situam
nos termos do pedido.
78. Por conseguinte, só se pede ao Tribunal que profira parecer sobre o estatuto jurídico
e os vínculos jurídicos do Sara Ocidental tal como existiam no período que tem início em
1884, mas daqui não resulta que os dados relativos a esse estatuto ou esses vínculos em
outros momentos não tenham qualquer pertinência para efeito do Parecer Consultivo. Isto
significa, no entanto, que estes dados só têm interesse se contribuírem para precisar qual
eram o estatuto jurídico e os vínculos jurídicos do Sara Ocidental durante esse período.
79. No que respeita à questão 1, o Tribunal assinala que o pedido situa, de modo expresso,
a questão no “momento da colonização por Espanha”; parece claro, por conseguinte, que
os termos “o Sara Ocidental…era…um território sem dono (terra nullius)?” devem ser

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Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

interpretados tomando em consideração o direito em vigor na altura. A expressão terra


nullius era um termo de técnica jurídica utilizado a propósito da ocupação, enquanto um
dos modos jurídicos de aquisição de soberania sobre um território. Juridicamente, sendo
a ocupação um modo originário de adquirir, pacificamente, a soberania sobre um
território, que não seja por via de cessão ou sucessão, uma das condições essenciais para
uma ocupação válida era a de que o território fosse considerado uma terra nullius – um
território sem dono – no momento do ato destinado a constituir a ocupação (…).
80. Quaisquer que tenham podido ser as divergências entre os juristas, resulta da prática
estadual do período em questão que os territórios habitados por tribos ou povos com uma
organização social e política não eram considerados como terra nullius. Considerava-se
antes, em geral, que a soberania relativamente a eles não podia adquirir-se,
unilateralmente, pela ocupação da terra nullius enquanto título originário, mas, antes,
através de acordos concluídos com os chefes locais. É verdade que o termo ocupação era
por vezes usado num sentido não técnico, designando, tão simplesmente, a aquisição da
soberania; não significava, no entanto, que a aquisição da soberania através de acordos
concluídos com as autoridades do país era considerada como ocupação de uma terra
nullius no sentido próprio destes termos. Pelo contrário, via-se nesses acordos com os
chefes locais, interpretados ou não como realizando uma cessão efetiva do território, um
mode de aquisição derivado e não títulos originários adquiridos pela ocupação de uma
terra nullius.
81. No caso concreto, resulta dos elementos fornecidos ao Tribunal que, no momento da
colonização, o Sara Ocidental era habitado por populações que, ainda que nómadas,
estavam organizadas social e politicamente como tribos e colocadas sob a autoridade de
chefes com competência para as representar. Também resulta que, colonizando o Sara
Ocidental, a Espanha não agiu como Estado que estabelecesse a sua soberania sobre uma
terra nullius. No decreto real de 26 de dezembro de 1884, longe de considerar que
ocupava uma terra nullius, a Espanha proclamou que tomava o Rio de Oro “sob a sua
proteção”, com base em acordos concluídos com os chefes das tribos locais; o decreto
referia-se, expressamente, aos “documentos que as tribos independentes desta parte da
costa” tinham “assinado perante o representante da Sociedade Espanhola dos
Africanistas” e anunciava que o Rei tinha confirmado “os atos de adesão” a Espanha. (…)
82. Foram apresentados ao Tribunal pontos de vista divergentes a propósito da natureza
e do valor jurídico dos acordos concluídos entre um Estado e chefes locais. Mas ao
Tribunal não foi pedido, na questão 1, que se pronunciasse sobre o caráter jurídico ou a
legalidade dos títulos pelos quais a Espanha passou a ser Potência Administrante no Sara
Ocidental. (…)
92. O método que Marrocos utiliza para reivindicar vínculos de soberania com o Sara
Ocidental suscita dificuldades. Como o Tribunal Permanente declarou no caso do Estatuto
jurídico da Gronelândia oriental, uma pretensão de soberania fundada num exercício
contínuo de autoridade pressupõe “dois elementos cuja existência para cada um, deve ser
demonstrada: a intenção e a vontade de agir na qualidade de soberano, e alguma
manifestação ou exercício efetivo desta autoridade” (ibid., p. 45 e 46). É certo que o
Tribunal Permanente reconheceu que, no caso de reivindicações de soberania sobre
territórios pouco povoados ou não habitados, não era sempre necessário exigir
“numerosas manifestações de um exercício de direitos soberanos” (ibid., p. 46), na
ausência de qualquer pretensão concorrente. Mas, no caso concreto, o Sara Ocidental,
ainda que bastante pouco povoado, era um território através do qual tribos organizadas
no plano social e político se deslocavam permanentemente, e onde confrontos armados

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66 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

entre elas eram frequentes. (…) Considerando a escassez de provas quanto a um exercício
efetivo de autoridade dizendo inequivocamente respeito ao Sara Ocidental, é difícil
estabelecer um paralelo entre a pretensão de Marrocos e a que a Dinamarca formulou no
caso do Estatuto jurídico da Gronelândia oriental. (…)
94. (…) No entender o Tribunal, nenhuma regra de direito internacional exige que o
Estado tenha uma estrutura determinada, como o prova a diversidade de estruturas
estaduais que existe atualmente no Mundo.”

Questões:

a) O "território determinado" de um Estado é, apenas e necessariamente, terrestre?


Justifique.
b) O "território determinado" tem de ser sempre necessariamente contínuo? justifique.
c) A inexistência de uma delimitação precisa dos limites do território permanente
inviabiliza o surgimento do Estado? Explique e justifique.
d) Considere o excerto aqui apresentado do Parecer do Sara Ocidental. Durante o
momento em questão para a análise do Tribunal, o que significava a expressão terra
nullius? Em que medida é que a evolução da sociedade e do direito internacional altera
aquele conceito? Quais as consequências do ponto de vista da acessão à estadualidade?
e) A intensidade da manifestação da soberania territorial pode ser variável,
nomeadamente por relação com a população. Identifique em que parágrafo o TIJ o afirma
e explique, destacando, a ligação entre população e território enquanto elementos de
estadualidade.

5. Relatório do Comissão Internacional de Juristas encarregado pelo Conselho da


Sociedade das Nações de dar um parecer consultivo sobre os aspetos jurídicos das
questões das Ilhas Aaland", Jornal Oficial da Sociedade das Nações, Suplemento
Especial n.º 3, out. 1920

Nota: Em 1809, as Ilhas Aaland e a Finlândia tinham sido cedidas à Rússia pela Suécia. Até ao final da
Primeira Guerra Mundial, ambas permaneceram russas. Após a revolução bolchevique, a Finlândia
declarou a sua independência, com fundamento no princípio da autodeterminação dos povos. Os habitantes
das Ilhas Aaland - cujo território tinha sido tratado até essa altura como parte da Finlândia - aproveitaram
a oportunidade para reivindicar para si próprios o mesmo direito e para exigir a adesão à Suécia. A Suécia
apoiou o movimento separatista, mas a Finlândia insistiu na sua soberania sobre o arquipélago. As tropas
foram enviadas para as ilhas pela Finlândia, e os líderes separatistas foram presos. Em 1920, o caso foi
submetido à Sociedade das Nações. O Conselho da Sociedade solicitou a uma Comissão de três juristas, a
Comissão de Juristas de Aaland, um parecer consultivo.

"Será nomeada uma Comissão Internacional de três juristas com o objetivo de submeter
ao Conselho, com o menor atraso possível, o seu parecer sobre os pontos seguintes:

(I) Se, na aceção do nº 8 do artigo 15º do Pacto, o caso apresentado pela Suécia ao
Conselho com referência às Ilhas Aaland trata de uma questão que, segundo o Direito
Internacional, deve ser inteiramente deixada à jurisdição nacional da Finlândia. (…)

REIVINDICAÇÃO DA SUÉCIA.

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67 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

2. A questão toma realmente esta forma: poderão os habitantes das Ilhas Aaland, como
atualmente se encontram, e tomando como base o princípio de que os povos devem ter o
direito à autodeterminação, pedir para se unirem à Suécia? Pode a Suécia, pelo seu lado,
reivindicar a realização de um plebiscito para dar aos habitantes das ilhas a oportunidade
de registar o seu desejo no que diz respeito à sua união com a Suécia ou à continuação da
sua união sob o domínio finlandês? (…)

SITUAÇÃO INTERNA DA FINLÂNDIA.

Para além destes factos que afetam as relações externas da Finlândia, o carácter muito
anormal da sua situação interna deve ser evidenciado. Esta situação foi tal que, durante
um tempo considerável, as condições necessárias para a formação de um Estado soberano
não existiam.

Em plena revolução e anarquia, certos elementos essenciais à existência de um Estado,


mesmo alguns elementos de facto, estiveram em falta durante um período bastante
considerável. A vida política e social estava desorganizada; as autoridades não eram
suficientemente fortes para se afirmarem; a guerra civil estava em curso, (...) e o Governo
tinha sido expulso da capital e impedido à força de cumprir as suas funções; os
aquartelamentos militares e a polícia foram divididos em duas forças opostas, e as tropas
russas, e após algum tempo também os alemães, participaram na guerra civil entre os
habitantes e entre as tropas finlandesas vermelhas e brancas.

É, portanto, difícil dizer em que data exata a República Finlandesa, no sentido jurídico do
termo, se tornou de facto um Estado soberano definitivamente constituído.

Isto certamente não aconteceu até que uma organização política estável tivesse sido
criada, e até que as autoridades públicas se tivessem tornado suficientemente fortes para
se afirmarem em todo o território do Estado sem a ajuda de tropas estrangeiras. Parece
que foi em Maio de 1918 que a guerra civil terminou e que as tropas estrangeiras
começaram a abandonar o país, de modo que a partir desse momento foi possível
restabelecer a ordem e a vida política e social normal, pouco a pouco.

De todos estes factos resulta que a formação de um Estado independente da Finlândia em


1917 e 1918, qualquer que tenha sido o estatuto legal da Finlândia anteriormente sob o
Império Russo, deve ser considerada, em todo o caso em vários aspectos, como um novo
fenómeno político e não como uma mera continuação de uma entidade política
anteriormente existente. (...)

CONCLUSÕES.

Consequentemente, embora de um ponto de vista internacional a transferência de


soberania sobre as Ilhas Aaland para o Imperador da Rússia tenha tido lugar ao mesmo
tempo que a da soberania da Finlândia, internamente e de um ponto de vista
constitucional, a Finlândia já fazia parte do Império Russo antes de as Ilhas Aaland lhe
terem sido anexadas.

67
68 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

(1) A disputa entre a Suécia e a Finlândia não se refere a uma situação política
definitivamente estabelecida, dependendo exclusivamente da soberania territorial de um
Estado.

(2) Pelo contrário, a disputa surgiu de uma situação de facto causada pela transformação
política das Ilhas Aaland, cuja transformação foi causada e teve origem no movimento
separatista entre os habitantes, que citaram o princípio da autodeterminação nacional, e
certos acontecimentos militares que acompanharam e se seguiram à separação da
Finlândia do Império russo, numa altura em que a Finlândia ainda não tinha adquirido o
carácter de um Estado definitivamente constituído.

(3) Decorre do acima exposto que a disputa não se refere a uma questão deixada pelo
Direito Internacional à jurisdição nacional da Finlândia.” (...)

Questões

a) Porque é que, a determinada altura, a Comissão Internacional de Juristas refere que "é
(...) difícil dizer em que data exata a República Finlandesa, no sentido jurídico do termo,
se tornou de facto um Estado soberano definitivamente constituído"?
b) Qual o elemento que é considerado fundamental, a contrario, para a Finlândia poder
ser considerada um Estado?
c) Pode afirmar-se que a Comissão escolhe uma abordagem não apenas formal, mas
também substantiva, para avaliar a "independência" da Finlândia? Porquê?
d) Se apenas tivesse ao seu dispor este excerto, que aspetos destacaria para descrever a
"independência" do Estado?
e) Qual a relevância do caso das ilhas de Aaland para a teoria do Estado enquanto sujeito
de direito internacional?
f) A leitura do conceito de um “governo efetivo” é feita nos mesmos moldes e com os
mesmos standards que em 1920? Relacione a sua resposta com o desenvolvimento de
outros elementos da estadualidade.

6. Caso da Ilha de Palmas ou Miangas, Países Baixos c. Estados Unidos da América,


4 de abril de 1928 (Árbitro: Max Huber)
In Reports of International Arbitral Awards, vol. II, pp. 829 ss., pp. 838 ss.

“Em primeiro lugar, o Árbitro considera necessário tecer algumas considerações gerais
sobre a soberania relacionada com o território.
Tanto quanto possível, o Árbitro utilizará a terminologia empregue no Acordo Especial
[de arbitragem]. O preâmbulo refere-se à ‘soberania sobre a Ilha de Palmas (ou Miangas)’
e, de acordo com o Artigo 1, n.º 2, a tarefa do Árbitro consiste em ‘determinar se a Ilha
de Palmas (ou Miangas) na sua totalidade é parte do território dos Países Baixos ou do
território pertencente aos Estados Unidos da América’. Daqui parece decorrer que a
soberania em relação a uma porção da superfície do globo é a condição jurídica necessária
para a inclusão dessa porção no território de um qualquer Estado. A soberania em relação
ao território é designada na presente sentença como “soberania territorial”.
Nas relações entre Estados, a soberania significa independência. Em relação a uma
porção do globo, a independência é o direito de aí exercer, com exclusão de qualquer
outro Estado, as funções de um Estado. O desenvolvimento da organização nacional dos
68
69 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

Estados durante os últimos séculos e, como corolário, o desenvolvimento do direito


internacional, estabeleceram este princípio da competência exclusiva do Estado
relativamente ao seu próprio território de uma forma tal que o transformaram no ponto de
partida para a resolução da maioria das questões relativas às relações internacionais. Os
casos especiais do Estado composto, da soberania coletiva, etc., não serão aqui tomados
em consideração e, para este efeito, não põem em dúvida o princípio que se acaba de
enunciar. Sob esta reserva, pode afirmar-se que a soberania territorial pertence sempre a
um, ou em circunstâncias excecionais a vários Estados, com exclusão de todos os outros.
Por outro lado, o facto de as funções de um Estado poderem ser realizadas por qualquer
Estado num dado espaço é, precisamente, o aspeto característico da situação jurídica
daquelas partes do globo que, como o alto mar ou as terras sem dono, não podem formar,
ou ainda não podem formar, o território de um Estado.
Em geral, a soberania territorial é uma situação reconhecida e delimitada no espaço,
que pelas ditas fronteiras naturais ou por sinais exteriores de delimitação que são
indiscutidas, ou então por acordos jurídicos celebrados entre dois vizinhos interessados,
como os tratados de fronteiras, ou por atos de reconhecimento de Estados no interior de
fronteiras fixadas. Se surgir um diferendo quanto à soberania sobre uma porção de
território, é costume examinar-se qual dos Estados que reclamam soberania é que possui
um título – cessão, conquista, ocupação, etc. – superior àquele que o outro Estado possa
apresentar contra si. No entanto, se a contestação se basear no facto de a outra Parte ter
efetivamente exercido soberania, não é suficiente estabelecer o título pelo qual foi
adquirida num certo momento a soberania territorial; também deverá ser mostrado que a
soberania territorial continuou a existir e existia no momento que deva ser considerado
crítico para a decisão sobre o diferendo. Esta demonstração consiste no exercício atual
das atividades do Estado, tal como apenas cabe à soberania estadual.
Os títulos de aquisição de soberania territorial no direito internacional contemporâneo
baseiam-se, ou num ato de apreensão, como a ocupação ou a conquista, ou, como na
cessão pressupõem que a Potência cedente e a Potência cessionária, ou pelo menos uma
delas, têm a faculdade de dispor efetivamente do território cedido. Do mesmo modo, a
acreção natural só pode ser concebida como uma acreção relativamente a uma porção de
território quando existe uma soberania atual capaz da extensão a uma parcela de território
que passa a estar incluída na sua esfera de atividade. Por conseguinte, parece natural que
um elemento que é essencial para a constituição de soberania não esteja ausente em
termos de continuidade (na sua continuação). Tão certo é isto que a prática, assim como
a doutrina, reconhecem – ainda que com diferentes fórmulas jurídicas e com certas
diferenças quanto às condições exigidas – que o exercício contínuo e pacífico da
soberania territorial (pacífico relativamente a outros Estados) vale como título. A
insistência crescente com que o direito internacional, mesmo já a partir de meados do séc.
XVIII, exigiu que a ocupação seja efetiva seria inconcebível se a efetividade apenas fosse
requerida para o ato de aquisição e não, do mesmo modo, para a conservação do direito.
Se acima se insistiu na efetividade sobretudo relativamente à ocupação, isso deve-se ao
facto de a questão raramente surgir relativamente a territórios nos quais já existe e está
estabelecida uma dada ordem das coisas. Assim como antes do desenvolvimento do
direito internacional os limites territoriais eram necessariamente determinados pelo facto
de o poder de um Estado ser exercido no seu interior, assim também, de acordo com o
direito internacional, o facto do exercício pacífico e contínuo continua a ser uma das
considerações mais importantes no estabelecimento de limites entre Estados.

69
70 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

A soberania territorial, como já se disse, envolve o direito exclusivo de exercer as


funções de um Estado. Este direito tem, como corolário, um dever: a obrigação de, no
território, proteger os direitos de outros Estados, em particular o seu direito à integridade
e inviolabilidade tanto em tempo de paz como de guerra, assim como os direitos que cada
Estado possa invocar em benefício dos seus nacionais em território estrangeiro. Sem
manifestar a sua soberania territorial de uma forma que corresponda às circunstâncias, o
Estado não pode cumprir este dever. A soberania territorial não pode limitar-se ao seu
lado negativo, isto é, à exclusão das atividades de outros Estados; com efeito, serve para
dividir entre as nações o espaço onde se exercem atividades humanas, de forma a
assegurar-lhes, em todos os aspetos, a proteção mínima relativamente à qual direito
internacional é o guardião.
Ainda que o direito interno, graças ao seu sistema judicial completo, tenha capacidade
para reconhecer a existência de direitos abstratos de propriedade para lá de qualquer
exercício concreto destes direitos, limitou não obstante o seu efeito pelos princípios da
prescrição e da proteção da posse. Não se pode presumir que o direito internacional, cuja
estrutura não se baseia numa qualquer organização supraestadual, reduza um direito como
a soberania territorial (com o qual estão relacionadas quase todas as relações
internacionais) à categoria de um direito abstrato, sem manifestações concretas.
O princípio segundo o qual o exercício contínuo e pacífico das funções do Estado numa
dada região é um elemento constitutivo da soberania territorial não se baseia apenas nas
condições para a formação de Estados independentes e dos seus limites (como o mostra
a experiência da História política) ou numa jurisprudência internacional e doutrina
amplamente aceites; este princípio foi, para além disso, reconhecido em vários Estados
federais onde existe uma jurisdição com competência para aplicar, se necessário, regras
de direito internacional às relações interestaduais dos Estados membros. Este aspeto é dos
mais significativos, uma vez que se podia conceber que, num Estado federal que possui
um sistema judicial completo para assuntos interestaduais – muito mais do que no
domínio das relações internacionais propriamente ditas – se deveria aplicar às questões
de índole territorial o princípio de que, na ausência de qualquer disposição legal em
contrário, uma vez adquirido licitamente um jus in re este deve prevalecer sobre a posse
de facto, ainda que bem estabelecida.
Será suficiente referir, entre várias decisões concordantes do Supremo Tribunal dos
Estados Unidos, o caso State of Indiana v. State of Kentucky (136 U.S. 479), de 1890,
onde o precedente do caso Rhode Island v. Massachusetts (4 How. 591, 639) é apoiado
em citações de Vattel e Wheaton em que ambos admitem como válida e título
incontestável a prescrição fundada no decurso do tempo.
É verdade que as manifestações de soberania territorial assumem formas diferentes, de
acordo com condições de tempo e lugar. Ainda que por princípio contínua, a soberania
não pode ser exercida de facto em cada momento em cada ponto do território. A
intermitência e descontinuidade compatíveis com a conservação do direito diferem,
necessariamente, consoante estejam em causa regiões habitadas ou não habitadas, ou
regiões integradas em territórios em que a soberania é exercida de forma indiscutível ou,
ainda, regiões acessíveis, por exemplo, a partir do alto mar. É certo que Estados vizinhos
podem, por convenção, fixar limites à sua soberania, mesmo em regiões como o interior
de continentes escassamente explorados em que essa soberania se manifesta de forma
ténue, e, desse modo, cada um pode prevenir que o outro penetre no seu território. A
delimitação do Hinterland também pode mencionar-se neste contexto.

70
71 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

No entanto, se não existir qualquer linha convencional ou especificações topográficas


suficientes, ou se houver hiatos nas fronteiras estabelecidas de outra forma, ou se uma
linha convencional for duvidosa, ou se, como p. e. no caso de uma ilha situada em alto
mar, se colocar a questão de saber se um título é válido erga omnes, o exercício atual,
contínuo e pacífico das funções do Estado é, na hipótese de um diferendo, o critério mais
sólido e natural de soberania territorial.

Questões

a) Neste excerto, como é definida a soberania territorial e qual a sua relação com a
independência (em especial, parágrafos 3 e 4)?
b) Poderá afirmar-se, lendo o texto, que o território era determinante para a definição da
soberania, absorvendo as suas principais características?
c) Considera que esta abordagem "territorial" ainda hoje é tão dominante? Procure
justificar.
d) Enumere os títulos de aquisição territorial que são identificados pelo Árbitro Max
Huber (no parágrafo 5). No seu entender, estes títulos de aquisição territorial ainda serão
todos "válidos" de acordo com o direito internacional contemporâneo?
e) Nos termos da posição defendida neste excerto, a soberania territorial tinha de ter sido
sempre contínua?
f) No texto, ressalta que a relação com o território não é só constitutiva de direitos.
Justifique, se possível com exemplos, e procure transpor para o presente.

O PRINCÍPIO DA AUTODETERMINAÇÃO E OS ELEMENTOS DA ESTADUALIDADE

A. O caso da Rodésia do Sul

1. Nações Unidas, Assembleia Geral, resolução 2024 (XX), Questão da Rodésia do


Sul, 11 de novembro de 1965
In https://undocs.org/en/A/RES/2024(XX)

A Assembleia Geral,
Considerando a situação explosiva criada na Rodésia do Sul depois da declaração
unilateral de independência,
Tomando nota das medidas adotadas pelo Governo do Reino Unido da Grã-Bretanha
e Irlanda do Norte,
1. Condena a declaração unilateral da independência feita por uma minoria racista na
Rodésia do Sul;
2. Recomenda ao Conselho de Segurança que considere esta situação como uma
questão urgente.

2. Nações Unidas, Conselho de Segurança, Resolução 216 (1965), de 12 de


novembro de 1965
In https://undocs.org/S/RES/216(1965)

71
72 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

O Conselho de Segurança,

1. Decide condenar a declaração unilateral de independência feita por uma minoria


racista na Rodésia do Sul;
2. Decide instar todos os Estados a não reconhecer este regime racista minoritário
ilegal na Rodésia do Sul e a abster-se de prestar qualquer ajuda a este regime ilegal.

3. Nações Unidas, Conselho de Segurança, Resolução 217 (1965), de 20 de


novembro de 1965

In https://undocs.org/S/RES/217(1965)

O Conselho de Segurança,

Profundamente preocupado com a situação na Rodésia do Sul,


Considerando que as autoridades ilegais na Rodésia do Sul proclamaram a
independência e o que o Governo do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte,
como Potência administrante, considera aquele como um ato de rebelião,
Notando que o Governo do Reino Unido adotou certas medidas para lidar com a
situação e que para serem efetivas essas medidas devem corresponder à gravidade da
situação,

1. Determina que a situação resultante da proclamação da independência pelas


autoridades ilegais da Rodésia do Sul é extremamente grave, que o Governo do Reino
Unida da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte deve fazê-las cessar e que a sua continuação
no tempo constitui uma ameaça à paz e segurança internacionais;
2. Reafirma a sua resolução 216 (1965) de 12 de novembro de 1965 e a resolução 1514
(XV) da Assembleia Geral de 14 de dezembro de 1960:
3. Condena a usurpação de poder por uma minoria colonizadora racista na Rodésia do
Sul e considera que a sua declaração unilateral de independência não tem validade
jurídica;
4. Insta o Governo do Reino Unido a dominar esta rebelião de uma minoria racista;
5. Insta ainda o Governo do Reino Unido a adotar todas as medidas adequadas que
provem ser efetivas na eliminação da autoridade dos usurpadores e em fazer cessar
imediatamente o regime minoritário na Rodésia do Sul;
6. Insta todos os Estados a não reconhecer esta autoridade ilegal e não encetar com ela
quaisquer relações diplomáticas ou de outra natureza;
(…)
7. Insta todos os Estados a abster-se de qualquer ação que ajude ou encoraje o regime
ilegal e, em particular, deixar de lhes fornecer armas, equipamento e material militar e
fazer tudo o que seja possível tendo em vista romper todas as relações económicas com a
Rodésia do Sul, incluindo um embargo de petróleo e produtos dele derivados;
(…)
10. Insta a Organização da Unidade Africana a fazer tudo o que lhe seja possível para
auxiliar na implementação da presente resolução, em conformidade com o Capítulo VII
da Carta das Nações Unidas. (…)

72
73 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

Questões:

a) Imediatamente depois da declaração unilateral de independência da Rodésia do Sul, a


Assembleia Geral e o Conselho de Segurança, qualificam a “autoridade” que fez aquela
declaração? Como?
b) Nas resoluções adotadas pelo Conselho de Segurança, este órgão das Nações Unidas
determina algumas obrigações a todos os Estados. Identifique-as.
c) Essas determinações do CS estão intrinsecamente ligadas a um dos elementos
elencados no artigo 1 da Convenção de Montevideo. Qual? Como? Explique.

B. O caso da Guiné Bissau

1. Nações Unidas, Assembleia Geral, A/AC.109/L.804, 3 de julho de 1972, Comité


Especial sobre a situação relativa à implementação da declaração que garante a
independência aos povos e países coloniais, Relatório da Missão especial estabelecida
pelo Comité Especial na sua 840ª reunião, a 14 de março de 1972

In https://digitallibrary.un.org/record/760369

(…)
3. Conclusões e recomendações
71. Na sua resolução 1542 (XV) de 15 de dezembro de 1960. A Assembleia Geral
determinou que os Territórios sob administração Portuguesa, incluindo a Guiné, chamada
Guiné Portuguesa e Cabo Verde, eram territórios não autónomos no sentido do Capítulo
XI da Carta das Nações Unidas. Assim, nos termos do artigo 73 da Carta, Portugal, como
potência administrante tem a obrigação de promover no mais alto grau o bem estar dos
habitantes desses territórios e, com esse fim, entre outras coisas, de desenvolver o seu
governo próprio, ter na devida conta as aspirações políticas dos povos, e auxiliá-los no
desenvolvimento progressivo das suas instituições políticas livres de acordo com as
circunstâncias peculiares de cada Território e dos seus habitantes e os diferentes graus do
seu adiantamento.
72. Todavia, desde a adoção da resolução 1542 (XV), o Governo de Portugal tem
continuado a manter a ficção de que estes Territórios são províncias ultramarinas de
Portugal e tem recusado, de modo persistente, reconhecer o direito inalienável dos povos
dos Territórios à autodeterminação e independência de acordo com a Declaração sobre a
Concessão da Independência aos países e aos povos coloniais e outras resoluções
relevantes das Nações Unidas. Além disso, numa tentativa fútil de suprimir os
movimentos de libertação nacional nos Territórios Africanos e de reprimir as aspirações
legitimas dos seus povos de ser libertarem da dominação colonial, o Governo de Portugal
tem recorrido ao uso extensivo de força armada, envolvendo técnicas modernas de
condução das hostilidades contra os povos indefesos daqueles territórios.
73. Durante a sua recente visita às áreas libertadas da Guiné (Bissau), a Missão
Especial teve a ampla oportunidade de testemunhar a devastação e miséria causada pelas
ações de Portugal (…) Ao mesmo tempo, a Missão ficou profundamente impressionada
pela vontade manifestada pelo povo de continuar a sua luta até que a liberdade e
independência sejam conquistadas sob a liderança capaz do movimento de libertação
nacional, PAIGC, apesar dos danos e sofrimentos incalculáveis. (…)

73
74 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

74. São factos irrefutáveis que a luta pela libertação do território continua a progredir
e que Portugal já não exerce um controlo administrativo efetivo em amplas áreas da Guine
(Bissau). De acordo com o PAIGC, as áreas libertadas correspondem a mais de dois terços
ou entre dois terços e três quartos do Território. Isto tem sido verificado por muitos
observadores estrangeiros e jornalistas. É também evidente que a população das áreas
libertadas apoia sem reservas as políticas e atividades do PAIGC que depois de 9 anos de
luta militar exerce controlo administrativo livre de facto naquelas áreas e está
efetivamente a proteger os interesses dos habitantes apesar das atividades portuguesas.
75. A Missão Especial ficou impressionada com a cooperação entusiasta e sincera que
o PAIGC recebe das populações das áreas libertadas e a medida em que aquelas estão a
participar no sistema administrativo estabelecido pelo PAIGC e nos vários programas de
reconstrução. Consequentemente, a Missão acredita que o reconhecimento do PAICG
como sendo o representante de facto, único e autêntico das aspirações do povo no
Território por parte do Comité Especial, devia ser tido em consideração em toda a sua
abrangência pelos Estados, as agências especializadas e outras organizações no sistema
das Nações Unidas quando a tratar de assuntos relativos à Guiné (Bissau) e Cabo Verde.

2. Nações Unidas, Assembleia Geral, Resolução 3061 (XXVIII), Ocupação ilegal


por parte das forças militares Portuguesas de certos setores da República da Guiné-
Bissau e atos de agressão cometidos contra o povo da República, de 2 de novembro
de 1973
In https://undocs.org/en/A/RES/3061(XXVIII)&Lang=E&Area=RESOLUTION

A Assembleia Geral.
Reconhecendo o direito inalienável de todos os povos à autodeterminação e à
independência de acordo com os princípios da Carta das Nações Unidas e a Declaração
sobre a Concessão da Independência aos países e aos povos coloniais,
Profundamente preocupada com a situação explosiva que resulta da continuada
ocupação ilegal por parte das forças militares de Portugal de certos setores da República
da Guiné-Bissau e os intensificados atos de agressão cometidos por aquelas contra o povo
da Guiné-Bissau,
Consciente de que todos os Estados devem, em conformidade com o Artigo 2, n.º 4 da
Carta, abster-se de ameaçar ou usar a força nas suas relações internacionais contra a
integridade territorial ou a independência nacional de qualquer Estado ou de adotar
qualquer ação incompatível com os objetivos e princípios da Carta,
Notando com satisfação que o Estado da Guiné-Bissau assume o dever sagrado de
expulsar as forças de agressão do colonialismo Português de qualquer parte do território
da Guiné-Bissau que ainda ocupam e de intensificar a luta nas ilhas de Cabo Verde que
formam uma parte integrante e inalienável do território do povo da Guiné-Bissau e Cabo
Verde,
Ciente da necessidade urgente do povo do recentemente estabelecido Estado da Guiné-
Bissau de toda a ajuda internacional possível para os seus programas de reconstrução
nacional,
1. Congratula a recente acessão à independência do povo da Guiné-Bissau, criando
consequentemente o Estado soberano da República da Guiné-Bissau;

74
75 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

2. Condena fortemente as políticas do Governo de Portugal na perpetuação da sua


ocupação ilegal de certos setores da República da Guiné-Bissau e os repetidos atos de
agressão cometidos pelas suas forças contra o poo da Guiné-Bissau e Cabo Verde,
3. Exige que o Governo de Portugal desista imediatamente de qualquer violação da
soberania e integridade territorial da República da Guiné-Bissau e de todos os atos de
agressão contra o povo da Guiné Bissau promovendo de modo imediato a retirada das
suas forças armadas daqueles territórios;
4. Chama a atenção ao Conselho de Segurança, em conformidade com o artigo 11, n.º
3 da Carta das Nações Unidas, da situação crítica que resulta da presença ilegal de
Portugal na Guiné-Bissau e da necessidade urgente de adoção, como assunto prioritário,
de todos os passos efetivos para restaurar a integridade territorial da República;
5. Convida todos os Estados membros, as agências especializadas e outras
organizações no sistema das Nações Unidas a prestar todos a ajuda necessário ao Governo
da Guiné-Bissau nos seus programas de reconstrução nacional e desenvolvimento;
6. Decide manter a situação em análise.

Questões:

a) No excerto do Relatório da Missão Especial que visitou a Guiné-Bissau em 1972, há


um elemento de manifestação da estadualidade que é particularmente enfatizado. Qual é?
Onde encontra as referências no relatório?
b) O PAIGC declarou unilateralmente a independência da República da Guiné-Bissau a
24 de setembro de 1973. Poucos dias depois, a Assembleia Geral adota a Resolução 3061
(XXVIII). Nesta resolução está em causa a estadualidade da Guiné? Explicite com
excertos da resolução.

ADMISSÃO ÀS NAÇÕES UNIDAS E CONDIÇÃO ESTADUAL

A. Tratado e jurisprudência

1. Carta das Nações Unidas

Capítulo II
Membros

Artigo 3
Os membros originários das Nações Unidas serão os Estados que, tendo participado
na Conferência das Nações Unidas sobre a Organização Internacional, realizada em São
Francisco, ou, tendo assinado previamente a Declaração das Nações Unidas, de 1 de
janeiro de 1942, assinaram a presente Carta e a ratificaram, de acordo com o artigo 110.

Artigo 4
1 - A admissão como membro das Nações Unidas fica aberta a todos os outros Estados
amantes da paz que aceitarem as obrigações contidas na presente carta e que, a juízo da
Organização, estiverem aptos e dispostos a cumprir tais obrigações.

75
76 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

2 - A admissão de qualquer desses Estados como membros das Nações Unidas será́
efetuada por decisão da Assembleia Geral, mediante recomendação do Conselho de
Segurança.

2. TIJ, Condições de Admissão de um Estado como Membro das Nações Unidas (Artigo
4 da Carta), Parecer Consultivo, 28 de maio de 1948, Col. 1948, pp. 57 e ss., 58, 60-65

(...)
A 17 de novembro de 1947, a Assembleia Geral das Nações Unidas adotou a seguinte
Resolução:
“A Assembleia Geral,
Considerando o Artigo 4.º da Carta das Nações Unidas,
(...)
Solicita ao Tribunal Internacional de Justiça um parecer consultivo sobre a seguinte
questão:
Está um Membro das Nações Unidas que é chamado, em virtude do Artigo 4.º da Carta,
a pronunciar-se através do seu voto, seja no Conselho de Segurança, seja na Assembleia
Geral, sobre a admissão de um Estado como Membro das Nações Unidas, juridicamente
habilitado a fazer depender o seu consentimento a essa admissão de condições não
expressamente previstas no n.º 1 do referido artigo? Em particular, pode, enquanto que as
condições previstas nessa disposição estão cumpridas pelo Estado em questão, subordinar
o seu voto favorável à condição de que, ao mesmo tempo que o Estado em causa, outros
Estados sejam igualmente admitidos como Membros das Nações Unidas?
Encarrega o Secretário Geral de colocar à disposição do Tribunal as atas acima
mencionadas do Conselho de Segurança.”
(…)
Antes de iniciar a análise do pedido de parecer, o Tribunal entende necessário fazer as
observações preliminares seguintes:
A questão colocada ao Tribunal desdobra-se em duas partes, em que a segunda é
introduzida pelas palavras “Em particular”, e apresentada como concretização de uma
ideia mais geral implícita na primeira.
O pedido de parecer não se refere ao voto em si. Apesar de os Membros terem o dever
de se conformar com as prescrições do Artigo 4.º nos votos que emitem, não se pode
imputar à Assembleia Geral a intenção de solicitar um parecer ao Tribunal sobre as razões
que, no espírito de um Membro, decidem o seu voto. Tais razões, que relevam do foro
interno, escapam manifestamente a qualquer controlo. Nem o pedido diz respeito à
liberdade de um Membro de exprimir a sua opinião. Tratando-se de uma condição ou de
condições de que um Membro «faz depender o seu consentimento», a questão colocada
só pode referir-se às declarações feitas por um Membro, relativamente ao voto que se
propõe emitir.
Resulta claramente da Resolução da Assembleia Geral de 17 de novembro de 1947
que o Tribunal não é chamado nem a definir o sentido e o alcance das condições às quais
a admissão está subordinada, nem a indicar os elementos que servir para verificar, num
caso concreto, a existência das condições requeridas.
O considerando da Resolução da Assembleia Geral, que invoca “a troca de pontos de
vista que ocorreu...”, não pode ser considerada como um convite ao Tribunal para se

76
77 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

pronunciar sobre o bem ou mal fundado dos pontos de vista aí referidos. A forma abstrata
como a questão está formulada exclui uma tal interpretação.
A questão colocada limita-se, com efeito, ao único ponto seguinte: as condições
enunciadas no Artigo 4.º, n.º 1, têm uma natureza taxativa no sentido que uma resposta
afirmativa conduzirá a admitir que um Membro não está juridicamente habilitado a fazer
depender a admissão de condições não expressamente previstas no referido Artigo, ao
passo que uma resposta negativa autorizaria, ao contrário, a fazer depender a admissão
igualmente de outras condições.
Assim compreendida, a questão nas suas duas partes não é, e não poderia ser, senão
uma questão jurídica. Determinar o sentido de uma disposição convencional, no caso,
determinar o caráter (taxativo ou não taxativo) das condições de admissão que se
encontram enunciadas, é uma questão de interpretação e, portanto, uma questão jurídica.
Foi, no entanto, invocado que a questão colocada deve ser considerada como política
e que escaparia, a esse título, à competência do Tribunal. O Tribunal não pode atribuir
uma natureza política a uma solicitação, formulada em termos abstratos, que, ao deferir-
lhe a interpretação de um texto convencional, o convida a executar uma função puramente
judicial. (…)
Foi igualmente invocado que o Tribunal não pode apreciar uma questão colocada em
termos abstratos. É uma afirmação destituída de qualquer justificação. Nos termos do
Artigo 96.º da Carta e do Artigo 65 do Estatuto, o Tribunal pode dar um parecer consultivo
sobre qualquer questão jurídica, abstrata ou não.
(…)
Em consequência, o Tribunal considera-se como competente com base nos Artigos
96.º da Carta e 65.º do seu Estatuto, e entende que não há qualquer razão que o leve a
abster-se de responder à questão que lhe é colocada.
Para formular essa resposta, é necessário, desde logo, lembrar as “condições”
requeridas pelo Artigo 4.º, n.º 1, de um candidato à admissão. Essa disposição está assim
redigida:
“A admissão como membro das Nações Unidas fica aberta a todos os outros Estados
amantes da paz que aceitarem as obrigações contidas na presente carta e que, a juízo da
Organização, estiverem aptos e dispostos a cumprir tais obrigações.”
As condições previstas são, então, em número de cinco: é necessário 1) ser um Estado;
2) ser pacífico; 3) aceitar as obrigações da Carta; 4) ser capaz de cumprir as referidas
obrigações; 5) estar disposto a fazê-lo.
Todas estas condições estão sujeitas ao juízo da Organização. O juízo da Organização
significa o juízo dos dois órgãos referidos no n.º 2 do Artigo 4.º, e, em última análise, o
dos seus Membros. A questão colocada diz respeito à atitude individual de cada Estado
Membro chamado a pronunciar-se sobre a admissão. (…)

Os termos: “Membership in the United Nations is open to all other peace-loving states
which…” e “Peuvent devenir Membres des Nations Unies tous autres États pacifiques”,
indicam que os Estados que reúnam as condições enumeradas têm as qualificações
requeridas para serem admitidos. O sentido natural dos termos empregues leva a
considerar a enumeração dessas condições como taxativas e não apenas como
enunciativas ou exemplificativas. A disposição perderia o seu significado e valor se outras
condições, sem relação com as que estão previstas, pudessem ser exigidas. As condições
enunciadas no Artigo 4.º, n.º 1, devem ser, então, consideradas não apenas como
condições necessárias, mas também como condições suficientes.

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78 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

Do mesmo modo, não pode ser alegado que as condições enumeradas não representam
senão um mínimo indispensável, no sentido em que considerações políticas poderiam se
sobrepor e impedir a admissão de um candidato que as cumprisse. Uma tal interpretação
seria inconciliável com os termos do n.º 2 do Artigo 4.º, que prevê a admissão de
“qualquer desses Estados que cumpra essas condições” (em inglês, “any such State”).
Implicaria reconhecer aos Membros um poder discricionário indefinido e praticamente
sem limites na exigência de condições novas. Um tal poder seria incompatível com a
própria essência de uma regulamentação que, pelo vínculo estreito que estabelece entre a
qualidade de Membro e a observação dos princípios e das obrigações da Carta, constitui
claramente uma regulamentação jurídica relativa à admissão de Estados. Para admitir uma
outra interpretação para além da que resulta do sentido natural dos seus termos, seria
necessária uma razão ponderosa que não foi verificada.
Por outro lado, o espírito da disposição, assim como o seu texto excluem a ideia de
que considerações estranhas a esses princípios e obrigações possam constituir um
obstáculo à admissão de um Estado que os observa. Se os autores da Carta tivessem
entendido reconhecer aos Membros a faculdade de introduzir ao aplicar tal disposição
considerações estranhas às condições que aí estão previstas, não teriam deixado de adotar
uma redação diferente.
O Tribunal considera o texto como sendo suficientemente claro; portanto, entende que
não deve afastar-se da jurisprudência constante do Tribunal Permanente de Justiça
Internacional, segundo a qual não se justifica recorrer aos trabalhos preparatórios se o
texto de uma convenção é em si mesmo suficientemente claro.
(...)
Não resulta, no entanto, da natureza taxativa do n.º 1 do Artigo 4.º que fique excluída
uma apreciação discricionária das circunstâncias de facto de modo a permitir a verificação
da existência das condições requeridas.
O Artigo 4.º não proíbe tomar em consideração qualquer elemento de facto que,
razoavelmente e em boa fé, possa estar ligado às condições desse artigo. Essa tomada em
consideração está implícita na natureza simultaneamente muito aberta e muito flexível
das condições enunciadas; não exclui qualquer fator político relevante, isto é, relacionado
com as condições de admissão.
(...)
A segunda parte da questão é relativa à exigência pela qual um Estado Membro faz
depender o seu consentimento à admissão de um candidato da admissão de outros
candidatos.
Avaliada com base na regra que o Tribunal adotou na sua interpretação do Artigo 4.º,
essa exigência representa evidentemente uma condição nova, uma vez que não tem
qualquer relação com as que estão enunciadas no Artigo 4. Apresenta-se mesmo num
plano totalmente diferente, pois faz depender a admissão não das condições exigidas aos
candidatos, condições que é suposto serem cumpridas, antes de uma consideração
extrínseca que se refere a outros Estados para além do Estado candidato.
Por outro lado, as disposições do Artigo 4.º implicam necessariamente que qualquer
pedido de admissão seja objeto de um exame e de um voto individual segundo o seu
próprio mérito; de outro modo, não será possível estabelecer se um determinado Estado
reúne as condições requeridas. Subordinar o voto favorável para a admissão de um Estado
candidato à condição de que outros sejam igualmente admitidos, impediria que os Estados
Membros formulassem o seu juízo em cada caso com inteira liberdade, no quadro das

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79 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

condições prescritas. Uma tal exigência será incompatível com a letra e o espírito do
Artigo 4.º da Carta.
(…)
Por nove votos contra seis,
É de opinião que um Membro da Organização das Nações Unidas, chamado, em
virtude do Artigo 4.º da Carta, a pronunciar-se através do seu voto, seja no Conselho de
Segurança, seja na Assembleia Geral, sobre a admissão de Estado como Membro das
Nações Unidas, não está juridicamente habilitado a fazer depender o seu consentimento
a essa admissão de condições não expressamente previstas no n.º 1 do referido artigo;
Que, em particular, um Membro da Organização não pode, uma vez que reconheça
que as condições previstas nessa disposição estão reunidas pelo Estado em questão,
subordinar o seu voto favorável à condição que, ao mesmo tempo que o Estado em causa,
outros Estados sejam igualmente admitidos como Membros das Nações Unidas.

3. TIJ, Competência da Assembleia relativamente à admissão às Nações Unidas,


Parecer Consultivo, 3 de março de 1950, Col. 1950, pp. 7-8

O Tribunal é, portanto, chamado a determinar apenas se a Assembleia Geral pode tomar


a decisão de admitir um Estado quando o Conselho de Segurança não lhe tiver transmitido
nenhuma recomendação. (…)
O Tribunal não tem dúvidas quanto ao significado deste texto. Exige duas coisas para
efetuar a admissão: uma "recomendação" do Conselho de Segurança e uma "decisão" da
Assembleia Geral. É da natureza das coisas que a recomendação deve vir antes da decisão.
A palavra "recomendação", e a palavra "mediante" que a precede, implicam a ideia de
que a recomendação é o fundamento da decisão de admissão, e que esta última repousa
sobre a recomendação. Estes dois atos são indispensáveis para formar o juízo da
Organização a que se refere o parágrafo anterior do artigo 4º. O texto em consideração
significa que a Assembleia Geral só pode decidir admitir mediante recomendação do
Conselho de Segurança; determina os papéis respetivos dos dois órgãos cuja ação
combinada é necessária para que a admissão possa ser efetuada: por outras palavras, a
recomendação do Conselho de Segurança é a condição prévia à decisão da Assembleia
pela qual a admissão é efetuada".

Questões:

a) Diga, justificando com passagens do Parecer sobre Condições de Admissão de um


Estado como Membro das Nações Unidas, se as condições do artigo 4 são exaustivas.
b) Na opinião do TIJ, o processo de admissão às Nações Unidas exige necessariamente
dois passos. Identifique-os. Que implicações práticas pode ter esta abordagem?

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80 Direito Internacional Público
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1º semestre

ESTUDO DE CASO: A ADMISSÃO DA PALESTINA COMO ESTADO OBSERVADOR DAS


NAÇÕES UNIDAS

1. Nações Unidas, Assembleia Geral, Conselho de Segurança, A/66/371,


S/2011/592, 23 de setembro de 2011

In https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N11/512/58/PDF/N1151258.pdf

Pedido de admissão da Palestina como membro das Nações Unidas

Nota do Secretário-geral
De acordo com a regra 135 das regras de procedimento da Assembleia Geral e com a
regra 59 das regras provisórias de procedimento do Conselho de Segurança, o Secretário-
Geral tem a honra de fazer circular desta forma, em anexo, o pedido de admissão como
membro das Nações Unidas da Palestina, contido numa carta recebida a 23 de setembro
de 2011 pelo Presidente (ver Anexo I). (…)

Anexo I

Carta recebida do Presidente da Palestina para o Secretário-Geral recebida a 23 de


setembro de 2011

Pedido de admissão como membro das Nações Unidas do Estado da Palestina

Tenho a enorme honra de, em nome do povo Palestiniano, apresentar este pedido de
admissão do Estado da Palestina como membro das Nações Unidas.
Este pedido de admissão é submetido tendo por base os direitos naturais, legais e
históricos do povo Palestiniano e a resolução 181 (II) da Assembleia Geral das Nações
Unidas, de 29 de novembro de 1947, assim como a Declaração de Independência do
Estado da Palestina, de 15 de novembro de 1988, e a tomada de conhecimento desta
declaração por parte da Assembleia Geral expresso na resolução 43/177 de 15 de
dezembro de 1988.
A este propósito, o Estado da Palestina afirma o seu compromisso em alcançar uma
resolução justa, duradoura e abrangente do conflito Israelo-palestiniano baseada na visão
de dois Estados, existindo lado a lado em paz e segurança, como sancionado pelo
Conselho de Segurança das Nações Unidas e a Assembleia Geral e a comunidade
internacional como um todo e baseado no direito internacional e em todas as resoluções
relevantes das Nações Unidas.
Para efeitos deste pedido de admissão, foi efetuada uma declaração nos termos da regra
58 das regras provisórias de procedimento do Conselho de Segurança e a regra 134 das
regras de procedimento da Assembleia Geral, que se junta à presente carta.
Agradeço que, assim que possível, transmita esta carta com o pedido de admissão e a
declaração aos Presidentes do Conselho de Segurança e da Assembleia Geral.

(assinado) Mahmoud Abbas


Presidente do Estado da Palestina
Presidente da Comissão Executiva da
Organização para a Libertação da Palestina

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Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

Declaração
Relativamente ao pedido de admissão do Estado da Palestina como membro das
Nações Unidas, tenho a honra de, na minha capacidade de Presidente do Estado da
Palestina e de Presidente da Comissão Executiva da Organização para a Libertação da
Palestina, o único representante legítimo do povo palestiniano, declarar solenemente que
o Estado da Palestina é uma nação amante da paz e que aceita as obrigações contidas na
Carta das Nações Unidas e se compromete solenemente a cumpri-las.

(assinado) Mahmoud Abbas


Presidente do Estado da Palestina
Presidente da Comissão Executiva da
Organização para a Libertação da Palestina

Questões:

a) Que pedido é apresentado nesta carta dirigida ao Secretário-Geral das Nações Unidas?
Qual o artigo da Carta das Nações Unidas que trata desta questão?
b) Quais os requisitos necessários para que uma entidade possa ser admitida como
membro das Nações Unidas? Existe algum requisito prioritário ou que se possa considerar
sine qua non?
c) A declaração apresentada juntamente com esta Carta refere-se, expressamente, a que
requisitos?

2. Nações Unidas, Conselho de Segurança, S/2011/705, 11 de novembro de 2011


in https://www.securitycouncilreport.org/atf/cf/%7B65BFCF9B-6D27-4E9C-8CD3-
CF6E4FF96FF9%7D/IP%20s%202011%20705.pdf

Relatório do Comité sobre a Admissão de novos membros relativo a pedido de


admissão da Palestina como membro das Nações Unidas

1. (…) [A] 28 de setembro de 2011, o Conselho de Segurança tinha perante si um


pedido de admissão como membro das Nações Unidas da Palestina (S/2011/592). Nos
termos da regra 59 das regras provisórias de procedimento e na ausência de uma proposta
em sentido contrário, o Presidente do Conselho (Líbano) remeteu o pedido ao Comité
sobre a Admissão de novos membros para análise e relatório.
2. Nas suas 109.ª e 110.ª reuniões, ocorridas a 30 de setembro e a 3 de novembro de
2011, respetivamente, o Comité apreciou o pedido.
3. Depois da 109.ª reunião do Comité, a Presidência do Conselho de Segurança para o
mês de outubro (Nigéria) convocou cinco encontros informais do Comité, quatro dos
quais reuniram a um nível especializado, tendo em vista analisar, cuidadosamente, se a
Palestina preenchia os critérios específicos para ser membro como previsto no artigo 4 da
Carta das Nações Unidas. Os especialistas consideraram que a Palestina preenchia os
critérios de estadualidade, era um Estado amante da paz e estava disposto a, e era capaz
de, cumprir as obrigações contidas na Carta.
4. No decurso das reuniões do Comité foram expressas posições diferentes. Foi
expressa a posição de que o requerente cumpria todos os requisitos estabelecidos na Carta.
Foram suscitadas questões quanto a saber se o requerente cumpre todos os requisitos da

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82 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

Carta para ser membro. Foi também expressa a posição de que quaisquer deliberações
devem ter em conta o contexto político abrangente do assunto entre mãos.
5. Foi declarado que os critérios estabelecidos no artigo 4 da Carta são os únicos fatores
que podem ser tidos em consideração nas deliberações do Comité. Em apoio a esta
posição, foi feita referência ao Parecer Consultivo de 28 de maio de 1948 do Tribunal
Internacional de Justiça sobre as Condições de Admissão de um Estado como membro
das Nações Unidas (artigo 4 da Carta).
6. Foi também afirmado que o trabalho do Comité, qualquer que fosse o seu resultado,
deveria atender ao contexto político mais amplo. Foi expressa a opinião de que uma
solução de dois-Estados negociada por acordo continua a ser a única opção para uma paz
sustentável a longo prazo e que matérias relativas a estatuto final teriam de ser resolvidas
através de negociações. Foi expresso apoio a uma solução de dois Estados baseada nas
fronteiras pré-1967, resultantes de negociações políticas, conducentes a um Estado
independente da Palestina com Jerusalém Oriental como sua capital. Foi sublinhado que
o direito de autodeterminação da Palestina e o seu reconhecimento não são contrários ao
direito de Israel de existir.
7. Foi afirmado que o trabalho do Comité não devia prejudicar as perspetivas de retoma
das negociações de paz, em particular à luz da declaração do Quarteto de 23 de setembro
de 2011 que estabeleceu um calendário claro para a retoma das negociações. De modo
semelhante, foi declarado que a perspetiva da retoma das negociações não deveria atrasar
a consideração do pedido da Palestina por parte do Conselho de Segurança. Foi afirmado
que o pedido de admissão da Palestina não era nem prejudicial ao processo político nem
uma alternativa às negociações. Foi também declarado que o pedido de admissão da
Palestina não aproximaria as partes da paz. Foi ainda acrescentado que a questão do
reconhecimento da estadualidade da Palestina não podia e não devia estar dependente do
resultado das negociações entre Palestinianos e Israelitas, caso contrário, a estadualidade
da Palestina ficaria dependente da aprovação de Israel, o que garantiria à Potência
ocupante um direito de veto quanto ao direito de autodeterminação do povo palestiniano,
que foi reconhecido como um direito inalienável desde 1974 pela Assembleia Geral.
Foram suscitadas preocupações em relação às atividades contínuas de Israel quanto aos
colonatos. Foi declarado que aquelas atividades eram consideradas ilegais ao abrigo do
direito internacional e um obstáculo a uma paz alargada.
8. Relativamente ao pedido de admissão da Palestina (S/2011/592), foi dada especial
atenção à carta do Presidente da Palestina recebida pelo Secretário-Geral a 23 de setembro
de 2011, que continha a declaração – num instrumento formal – de que o Estado da
Palestina era uma nação amante da paz; que aceitava as obrigações contidas na Carta das
Nações Unidas; e que se comprometia solenemente a cumpri-las.
9. Quanto ao critério da estadualidade, foi feita referência à Convenção de Montevideu
de 1933 sobre os Direitos e Deveres dos Estados, que declara que um Estado, como pessoa
de direito internacional deve possuir uma população permanente, um território definido,
um governo e capacidade para se relacionar com outros Estados.
10. Relativamente aos requisitos de uma população permanente e um território
definido, foi expressa a posição de que a Palestina cumpria esses critérios. Foi sublinhado
que a ausência de fronteiras estabelecidas com precisão não era um obstáculo à
estadualidade.
11. Contudo, foram suscitadas questões quanto ao controlo sobre o seu território por
parte da Palestina considerando o facto de que o Hamas era a autoridade de facto na Faixa
de Gaza. Foi afirmado que a ocupação israelita era um fator que impedia o governo

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Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

Palestiniano de exercer o controlo total sobre o seu território. Todavia, foi também
considerado que a ocupação por uma potência estrangeira não implicava que a soberania
de um território ocupado fosse transferida para a Potência ocupante.
12. No que diz respeito ao requisito de ter um Governo, foi afirmado que a Palestina
cumpria aquele requisito. Porém, foi declarado que o Hamas controlava 40% da
população da Palestina; consequentemente, a Autoridade Palestiniana não podia ser
considerada como sendo o governo efetivo sobre o alegado território. Foi sublinhado que
a Organização para a Libertação da Palestina, e não o Hamas, era o representante legítimo
do povo Palestiniano.
13. Foram referenciados os relatórios do Banco Mundial, do Fundo Monetário
Internacional e do Comité de Ligação Ad Hoc para a Coordenação da Assistência
Internacional aos Palestinianos, que concluíram que as funções governativas da Palestina
eram agora suficientes para um Estado funcional.
14. Quanto ao requisito de um Estado ter a capacidade para entrar em relações com
outros Estados, foi expressa a opinião e que a Palestina cumpria este critério. Foi
recordado que a Palestina tinha sido aceite como membro do Movimento dos Não-
Alinhados, da Organização da Cooperação Islâmica, da Comissão Económica e Social
para a Ásia Ocidental, do Grupo dos 77 e da Organização das Nações Unidas para a
Educação, Ciência e Cultura [UNESCO]. Além disso, mais de 130 Estados já
reconheceram a Palestina como um Estado soberano independente. Ainda assim, foram
suscitadas questões quanto à possibilidade de a Autoridade Palestiniana entrar em
relações com outros Estados, uma vez que ao abrigo dos Acordos de Oslo a Autoridade
Palestiniana não pode envolver-se em relações internacionais.
15. A respeito do requisito de o requerente ser “amante da paz”, foi expressa a posição
de que a Palestina cumpria totalmente este critério considerando o seu compromisso em
alcançar uma resolução para o conflito Israelo-palestiniano justa, duradoura e abrangente.
Foi ainda acrescentado que o cumprimento deste requisito por parte da Palestina resultava
também evidente do seu compromisso de retomar negociações quanto às questões sobre
o estatuto final baseando-se nos termos de referência sancionados internacionalmente, as
resoluções relevantes das Nações Unidas, os princípios de Madrid, a Iniciativa de Paz
árabe, e o Road Map do Quarteto.
16. Foram suscitadas questões quanto a saber se a Palestina era de facto um Estado
amante da paz, uma vez que o Hamas não recusava o terrorismo e a violência e que tinha
como objetivo proclamado destruir o Estado de Israel. Foi feita referência, por outro lado,
ao Parecer Consultivo do Tribunal Internacional de Justiça sobre a Namíbia, de 1971, que
declarou que os únicos atos que podem ser atribuídos a um Estado são aqueles que são
praticados pela autoridade reconhecida do Estado.
17. Quanto ao requisito de que o requerente aceitar as obrigações contidas na Carta e
que é capaz de e tem vontade de cumprir com essas obrigações, foi expresso que a
Palestina cumpria aqueles critérios como era evidente, inter alia, da declaração solene
para este efeito junta com o pedido de admissão. Foi recordado que em 1948, quando foi
analisado o pedido de admissão de Israel, foi argumentado que o compromisso solene de
Israel para cumprir com as suas obrigações ao abrigo da Carta era suficiente para efeito
de preenchimento deste critério.
18. Foi também expressa a opinião de que a Carta exigia mais do que um compromisso
verbal de cumprimento com as suas obrigações ao abrigo da Carta por parte daquele que
pede admissão; um requerente tem de demonstrar o seu compromisso com a resolução
pacífica de diferendos e abster-se de ameaçar ou usar a força na condução das suas

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84 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
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1º semestre

relações internacionais. A este propósito foi sublinhado que o Hamas não aceitou estas
obrigações.
19. Foi expressa a posição de que o Comité deveria recomendar ao Conselho que a
Palestina fosse admitida como membro das Nações Unidas. Em sentido diferente, foi
expresso que o pedido de admissão não poderia ser apoiado neste momento e que a
abstenção estava prevista no caso de uma votação. Ainda uma outra opinião foi expressa
de que havia questões graves quanto ao pedido de admissão, que o requerente não cumpria
os requisitos para ser membro e que uma recomendação favorável à Assembleia Geral
não seria apoiada.
20. Ademais, foi sugerido que, como um passo intermédio, a Assembleia Geral deveria
adotar uma resolução através da qual a Palestina adquirisse o estatuto de Estado
Observador.
21. Ao resumir o debate da 110ª reunião do Comité, o Presidente declarou que o
Comité não era capaz de fazer uma recomendação unânime ao Conselho de Segurança.
22. O Comité sobre a Admissão de Novos Membros conclui a sua análise quanto ao
pedido de admissão às Nações Unidas por parte da Palestina.
23. Na sua 111.ª reunião, o Comité aprovou o presente relatório sobre a análise ao
pedido de admissão às Nações Unidas por parte da Palestina.

Questões:

a) No parágrafo 21 deste relatório, resulta claro que “o Comité não era capaz de fazer
uma recomendação unânime ao Conselho de Segurança” a propósito da questão em
análise, isto é o pedido de admissão como membro das Nações Unidas por parte da
Palestina. Com efeito, ao longo do relatório são apresentados os vários argumentos e
posições (divergentes) que foram sendo apresentados, nomeadamente quanto à
estadualidade da Palestina. Identifique a discussão e os argumentos apresentados a
propósito de cada um dos elementos de manifestação da estadualidade.
b) E quanto aos demais requisitos de admissão às Nações Unidas? Quais foram as
posições discutidas?

3. Nações Unidas, Assembleia Geral, resolução 67/19, Estatuto da Palestina nas


Nações Unidas, 29 de novembro de 2012

In https://www.securitycouncilreport.org/atf/cf/%7B65BFCF9B-6D27-4E9C-8CD3-
CF6E4FF96FF9%7D/a_res_67_19.pdf

A Assembleia Geral,
Guiada pelos objetivos e princípios da Carta das Nações Unidas e sublinhando, a este
propósito o princípio da igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos,
Recordando a sua resolução 2625 (XXV) de 24 de outubro de 1970, através da qual
afirmou, inter alia, o dever de todos os Estados promoverem, através de ações conjuntas
e separadas, a realização do princípio da igualdade de direitos e da autodeterminação dos
povos,
Sublinhando a importância de manter e reforçar a paz internacional fundada na
Liberdade, igualdade, justiça e respeito pelos direitos humanos fundamentais,
Recordando a sua resolução 181 (II) de 29 de novembro de 1947,

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85 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

Reafirmando o princípio, estabelecido na Carta, da inadmissibilidade da aquisição


territorial pela força,
Reafirmando também as resoluções relevantes do Conselho de Segurança, incluindo
as resoluções 242 (1967) de 22 de novembro de 1967, 338 (1973) de 22 de outubro de
1973, 446 (1979) de 22 de março de 1979, 478 (1980) de 20 de agosto de 1980, 1397
(2002) de 12 de março de 2002, 1515 (2003) de 19 de novembro de 2003 e 1850 (2008)
de 16 de dezembro de 2008,
Reafirmando ainda a aplicabilidade da Convenção de Genebra relativa à proteção de
civis em tempo de guerra de 12 de agosto de 1949 ao Território Ocupado da Palestina,
incluindo Jerusalém Oriental, incluindo relativamente a assuntos de prisioneiros,
Reafirmando a sua resolução 3236 (XXIX) de 22 de novembro de 1974 e todos as
resoluções relevantes, incluindo a resolução 66/146 de 19 de dezembro de 2011,
reafirmando o direito do povo palestiniano à autodeterminação, incluindo o direito ao seu
Estado da Palestina independente;
Reafirmando também as suas resoluções 43/176 de 15 de dezembro de 1988 e 66/17
de 30 de novembro de 2011 e todas as resoluções relevantes relativamente à resolução
pacífica da questão da Palestina que, inter alia, reafirma a necessidade da retirada de
Israel do território Palestiniano ocupado desde 1967, incluindo Jerusalém Oriental, a
realização dos direitos inalienáveis do povo Palestiniano, em primeiro lugar o direito de
autodeterminação e o direito a ser Estado independente, uma justa resolução do problema
dos refugiados Palestiniano em conformidade com a resolução 194 (III) de 11 de
dezembro de 1948 e uma cessação completa de todas as atividades de estabelecimento de
colonatos no Território Ocupado da Palestina, incluindo Jerusalém Oriental, por parte de
Israel.
Reafirmando ainda as suas resoluções 66/18 de 30 de novembro de 2011 e todas as
resoluções relevante relativas ao estatuto de Jerusalém, tendo presente que a anexação de
Jerusalém Oriental não será reconhecida pela comunidade internacional e sublinhando a
necessidade de encontrar um caminho nas negociações para resolver o estatuto de
Jerusalém como capital de dois Estados,
Recordando o Parecer Consultivo do Tribunal Internacional de Justiça de 9 de julho
de 2004,
Reafirmando a sua resolução 58/292 de 6 de maio de 2004 afirmando, inter alia, que
o estatuto do território Palestiniano ocupado desde 1967, incluindo Jerusalém Oriental,
permanece o de uma ocupação militar e que, de acordo com o direito internacional e as
resoluções relevantes das Nações Unidas, o povo Palestiniano tem o direito de
autodeterminação e de soberania sobre o seu território,
Recordando as suas resoluções 3210 (XXIX) de 14 de outubro de 1974 e 3237 (XXIX)
de 22 de novembro de 1974, através das quais, respetivamente, a Organização para a
Libertação da Palestina foi convidada a participar nas deliberações da Assembleia Geral
como o representante do povo Palestiniano e foi-lhe garantido o estatuto de observador,
Recordando também a sua resolução 43/177 de 15 de dezembro de 1988, através da
qual, inter alia, tomou conhecimento da proclamação do Estado da Palestina pelo
Parlamento Nacional Palestino a 5 de novembro de 1988 e decidiu que a designação
“Palestina” deveria ser utilizada em substituição da designação “Organização para a
Libertação da Palestina” no sistema das Nações Unidas, sem prejuízo do estatuto de
observador das funções da Organização para a Libertação da Palestina no sistema das
Nações Unidas,

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86 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

Tomando em consideração que o Comité Executivo da Organização para a Libertação


da Palestina, de acordo com a decisão pelo parlamento nacional Palestino, está
confortável com os poderes e responsabilidade do Governo provisório do Estado da
Palestina,
Recordando a sua resolução 52/250 de 7 de julho de 1998, através da qual foram
concedidos à Palestina direitos e privilégios adicionais na sua capacidade como
observador,
Recordando também a iniciativa Árabe para a Paz adotada em março de 2002 pelo
Conselho da Liga dos Estados Árabes,
Reafirmando o seu compromisso, de acordo com o direito internacional, com uma
solução de um Estado Palestino independente, soberano, democrático, viável e contíguo,
existindo lado a lado com Israel em paz e segurança tendo como referência as fronteiras
pré-1967,
Tendo presente o reconhecimento mútuo de 9 de setembro de 1993 entre o Governo
do Estado de Israel e a Organização para a Libertação da Palestina, o representante do
povo Palestiniano,
Afirmando o direito de todos os Estados na região a viverem em paz no interior de
fronteiras seguras e internacionalmente reconhecidas,
Elogiando o plano de 2009 da Autoridade Nacional Palestiniana para construir as
instituições de um Estado Palestino independente dentro de um período de dois anos, e
saudando as avaliações positivas a esse respeito sobre a estadualidade pelo Banco
Mundial, as Nações Unidas e o Fundo Monetário Internacional e como refletido nas
conclusões do Presidente do Comité de Ligação Ad Hoc de abril de 2011 e nas conclusões
subsequentes do Presidente, que determinaram que a Autoridade Palestina está acima do
limite para um Estado funcional nos principais setores estudados,
Reconhecendo que a Palestina é membro de pleno direito da Organização das Nações
Unidas para a Educação, Ciência e Cultura, da Comissão Económica e Social para a Ásia
Ocidental, e do Grupo dos Estados Ásia-Pacífico e que a Palestina é também membro
pleno da Liga dos Estados Árabes, do Movimento dos Países não-alinhados, da
Organização da Cooperação Islâmica e do Grupo dos 77 e China,
Reconhecendo também que, até à data, 132 Estados membros das Nações Unidas
reconheceram o Estado da Palestina,
Tomando nota do relatório do Comité do Conselho de Segurança sobre a admissão de
novos membros de 11 de novembro de 2011,
Sublinhando a responsabilidade permanente das Nações Unidas relativamente à
questão da Palestina até que esteja satisfatoriamente resolvida em todos os seus aspetos,
Reafirmando o princípio da universalidade relativamente à pertença às Nações Unidas,

1. Reafirma o direito do povo palestiniano à autodeterminação e independência no seu


Estado da Palestina no território Palestiniano ocupado desde 1967;
2. Decide conceder à Palestina o estatuto de Estado observador nas Nações Unidas,
sem prejuízo dos direitos, privilégios e papel adquiridos pela Organização para a
Libertação da Palestina nas Nações Unidas como representante do povo Palestiniano, de
acordo com as resoluções e prática relevantes;
3. Exprime a sua esperança de que o Conselho de Segurança venha a considerar
favoravelmente o pedido de admissão como membro pleno das Nações Unidas
apresentado pelo Estado da Palestina a 23 de setembro de 2011;

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87 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

4. Afirma a sua determinação em contribuir para que o povo Palestiniano alcance os


seus direitos inalienáveis e se alcance um acordo pacífico para o Médio Oriente que ponha
termo à ocupação que se iniciou em 1967 e cumpra a visão de dois Estados: um Estado
da Palestina independente, soberano, democrático, contíguo, e viável, existindo lado a
lado com Israel em paz e segurança, tendo como referência as fronteiras pré-1967;
5. Expressa a necessidade urgente da retoma e aceleração das negociações do processo
de paz no Médio Oriente baseado nas resoluções relevantes das Nações Unidas, nos
termos de referência da Conferência de Madrid, incluindo o princípio de território por
paz, na Iniciativa para a Paz Árabe e no road map do Quarteto para uma solução
permanente de dois-Estados para o conflito Israelo-palestiniano para alcançar um acordo
de paz justo, duradouro e abrangente entre os lados Palestiniano e Israelita que resolva
todos os assuntos centrais principais, nomeadamente os refugiados palestinianos,
Jerusalém, os colonatos, as fronteiras, a segurança e a água;
6. Urge todos os Estados e agências especializadas e organizações do sistema das
Nações Unidas a continuarem a apoiar e assistir o povo Palestiniano na rápida realização
do seu direito de autodeterminação, independência e liberdade;
7. Pede ao Secretário-Geral que tome as medidas necessárias para implementar a
presente resolução e apresente um relatório à Assembleia Geral quando ao progresso
alcançado a este respeito num prazo de 3 meses.

Questões:

a) Nesta resolução, a Assembleia Geral das Nações Unidas concede à Palestina o estatuto
de Estado observador das Nações Unidas. Considerando a anterior posição do Comité, e
considerando que a Organização para a Libertação da Palestina tinha já o estatuto de
observador, qual a importância desta resolução?
b) Nesta resolução há uma resposta a algumas das dúvidas que tinham sido suscitadas no
anterior debate do Comité a propósito dos elementos de manifestação da estadualidade.
Identifique e explique.
c) Na sua opinião, e tendo em conta todos os elementos que estudou sobre a noção de
Estado, e relação entre estadualidade e admissão às Nações Unidas, e o caso concreto da
Palestina, a Palestina é um Estado? Justifique.
d) Que elementos são apresentados nesta resolução que parecem acolher algumas
nuances de uma teoria constitutiva do reconhecimento de Estado, mitigando, portanto,
uma abordagem puramente declarativa daquele reconhecimento?

RECONHECIMENTO DE ESTADO

A. TRATADOS, JURISPRUDÊNCIA E OUTROS DOCUMENTOS

1. Carta da Organização de Estados Americanos

Artigo 13
A existência política do Estado é independente do seu reconhecimento pelos outros
Estados. Mesmo antes de ser reconhecido, o Estado tem o direito de defender a sua
integridade e independência, de promover a sua conservação e prosperidade, e, por
conseguinte, de se organizar como melhor entender, de legislar sobre os seus interesses,
de administrar os seus serviços e de determinar a jurisdição e a competência dos seus

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88 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

tribunais. O exercício desses direitos não tem outros limites senão o do exercício dos
direitos de outros Estados, conforme o direito internacional.

Artigo 14
O reconhecimento significa que o Estado que o outorga aceita a personalidade do novo
Estado com todos os direitos e deveres que, para um e outro, determina o direito
internacional.

Questões:

a) Em geral, qual a posição relativamente ao reconhecimento de Estado que resulta dos


dois preceitos acima transcritos da Carta da Organização de Estados Americanos?
b) Atendendo às duas teses principais sobre o reconhecimento de Estado, qual lhe parece
fortemente acentuada no artigo 13?

2. Eugène L. Didier, adm., et a. v. Chile (n.º 5), Chile/Estados Unidos da América,


Sentença Arbitral, Comissão Mista (Convenção de 7 de agosto de 1892), Moore, IV, pp.
4329-4332, 4329 s.

Considerando:

1.º. Que foi determinado judicialmente que o reconhecimento do Chile pelos Estados
Unidos da América ocorreu em 1822; que, até essa data, e no que aos Estados Unidos
respeita, o Chile estava de jure sob domínio espanhol; que só a partir desse período
tiveram início relações jurídicas internacionais entre os dois países que assinaram a
Convenção concluída em Santiago a 7 de agosto de 1892;
2.º. Que, com a assinatura da Convenção referida, os Estados Unidos da América e a
República do Chile, animados pelo desejo de resolver e solucionar amigavelmente as
reclamações apresentadas pelos cidadãos de cada um dos países contra o Governo do
outro, não tinham em vista quaisquer reclamações decorrentes do período anterior ao do
reconhecimento do Governo do Chile pelo dos Estados Unidos da América, antes do
estabelecimento de relações jurídicas internacionais entre as duas nações;
3.º. Que, se a sua intenção tivesse sido a de alargar a jurisdição da Convenção de
Santiago a um período anterior ao do reconhecimento da República do Chile pelos
Estados Unidos, essa intenção teria sido expressamente indicada na Convenção referida,
não tendo sido esse o caso;
4.º. Que, de acordo com as suas próprias alegações, os contratos em que os autores das
memórias baseiam as suas reclamações foram assinados a 31 de outubro e a 18 de
novembro de 1816 pela casa D’Arcy & Didier, como uma das partes, e pelo General
Carrera, como outra parte – ou seja, vários anos antes do reconhecimento da República
do Chile pelos Estados Unidos da América;

Declara:
Que a objeção apresentada quanto à sua decisão pelo honorável agente da República
do Chile é aceite, e a reclamação não cabe na sua jurisdição.”

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89 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
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1º semestre

3. Eugène L. Didier, adm., et a. v. Chile (n.º 5), Chile/Estados Unidos da América,


Sentença Arbitral, Comissão Mista (Convenção de 7 de agosto de 1892), Moore, IV, pp.
4329-4332, 4332

“Considerando: […]

5.º. Que, se esta Comissão alargasse a sua jurisdição a um período anterior ao da


existência do Chile como Estado independente, estaria, forçosamente, a admitir uma
jurisprudência inteiramente diferente, uma vez que, nesse período, o Chile não era uma
entidade internacional, mas era de jure uma colónia de outro Estado independente;
6.º. Que, aceitando esta situação incerta, que é regulada por elementos e regras de outra
índole, o tribunal não encontraria um ponto preciso para a determinação da sua jurisdição;
7.º. Que as opiniões dos autores citados pelos reclamantes não têm aplicação neste
caso, uma vez que tendem a afirmar a responsabilidade de um governo relativamente aos
atos dos seus predecessores num Estado independente, ao passo que aquilo que esta
Comissão estabeleceu é que a convenção de 7 de Agosto de 1892 entre os Estados Unidos
e a República do Chile não deve ser interpretada num sentido que faria com que fosse
aplicada a um período anterior ao do reconhecimento do Chile como Estado
independente, capaz de assumir direitos e obrigações em conformidade com o direito
internacional;
8.º. Que, ao contrário do que é alegado, não é um princípio aceite pelas opiniões mais
qualificadas de autores de direito internacional que o reconhecimento de um novo Estado
retroage a um período anterior a esse reconhecimento. (…)

Questões:

a) Como e quando é que, de acordo com os dois excertos do caso apresentado, os Estados
Unidos reconheceram o Chile como Estado soberano e independente?
b) No caso concreto, qual a consequência da determinação daquela data?
c) Considerando a situação em análise, que Estado seria eventualmente responsável por
factos violadores do direito internacional que tivessem ocorrido naquele território, antes
daquela data?

4. Deutsche Continental Gas-Gesellschaft c. Etat polonais, 1.8.1929, T.A.M. germano-


polonais, Rec. T.A.M., IX, pp. 336-348, 343 ss.

No entender da requerente, o direito de liquidação [dos bens, direitos e interesses


alemães] assim consagrado [pelo Tratado de Versalhes] não pode aplicar-se à Polónia
(fora do quadro do art. 92, al. 4), pelo motivo de que, a 10 de janeiro de 1920, este Estado
não possuía juridicamente qualquer território além daquele (regulado pelo referido art.
92, al. 4) que, em aplicação do próprio Tratado, recebia da Alemanha. Com efeito, a 10
de janeiro de 1920 o território dito polaco, no qual havia sido tomada a medida
recriminada (território diverso daquele que a Alemanha cedia) era ainda juridicamente
russo, que a Rússia não o tinha cedido à Polónia e que, mesmo admitindo uma cessão de

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90 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

princípio já assente, as fronteiras desse território ainda não estavam determinadas, uma
vez que só o foram posteriormente.
Na abordagem da análise desta objeção, cuja importância jurídica não pode ser
ignorada, convém recordar que a tarefa do Tribunal consiste na interpretação da intenção
comum das partes, tal como é expressa no art. 297 do Tratado, em particular nos termos
que a seguir se transcrevem: ‘…no seu território, nas suas colónias, possessões e países
de protetorado, incluindo os territórios que lhes foram cedidos em virtude do presente
Tratado’. A tese da requerente consiste em sustentar que, na intenção comum das partes,
o art. 297 não se aplicava à Polónia. Relativamente a este ponto, impõe-se uma primeira
verificação: nenhuma disposição do art. 297 exclui a Polónia da aplicação deste artigo.
Mais do que isso, o art. 297 contém estipulações que, como o reconheceram todas as
partes, são aplicáveis à Polónia, tal como o art. 297, als. d e e, daí a consequência de que,
em qualquer caso, o art. 297 não pode ter sido considerado pelas Potências signatárias do
Tratado de Versalhes como inaplicável, no seu conjunto, à Polónia.
A argumentação da requerente reconduz-se, portanto, à tese muito precisa de que, ao
redigir o art. 297 b, as Potências signatárias consideravam a Polónia como um Estado que
não tinha, a 10 de janeiro de 1920, qualquer outro território além daquele que, nesse
mesmo dia, adquiria da Alemanha e ao qual aquelas consagravam, especificamente, o art.
92, al. 4.
Para resolver a questão assim colocada, convém recordar as condições pelas quais a
Polónia, em conjunto com as outras Potências Aliadas e Associadas, negociou e assinou
com a Alemanha o Tratado de Versalhes.
Costuma ser admitido, entre outros, por autores alemães, tal como o Dr. Paul Roth, no
seu estudo sobre o nascimento do Estado polaco, que em novembro de 1918, e, em todo
o caso, em finais de 1918, o Estado polaco existia de facto. Dispunha de um território que
incluía, em traços gerais, a Polónia do Congresso e a Galícia ocidental. Possuía um
governo independente, cuja autoridade pública se afirmava lentamente, mas sempre em
progressão. Na mesma altura, em novembro de 1918, a Alemanha acreditou em Varsóvia
um ministro em missão extraordinária, que remeteu ao chefe de Estado polaco as suas
cartas credenciais. No entender do autor alemão acima citado, esta missão, qualquer que
tenha sido a sua brevidade, representava, por parte da Alemanha, o reconhecimento de
jure do novo Estado polaco.

Questões:
a) Qual a questão suscitada no excerto supra?
b) Sem prejuízo do que, como referido, está no Tratado de Versalhes, e tendo em
consideração o último parágrafo do excerto e o que estudou sobre a estadualidade, diria
que em finais de 1918, a Polónia era um Estado? Porquê? E como qualifica, do ponto de
vista jurídico-internacional, a ação da Alemanha ali descrita?

5. Conferência de Paz para a Jugoslávia, Comissão Arbitral, Parecer n.º 8, Paris, 4


de julho de 1992

A 18 de maio o Presidente da Comissão Arbitral recebeu uma carta de Lorde


Carrington, Presidente da Conferência de Paz para a Jugoslávia, colocando três questões
à Comissão (...).

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91 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
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1º semestre

Na opinião da Comissão, a resposta à primeira e terceira questões depende da resposta


dada à segunda. A Comissão irá, então, começar por dar o seu parecer à Questão n.º 2.
As questões n.ºs 1 e 3 serão tratadas nos Pareceres n.ºs 10 e 9 respetivamente.
A Questão n.º 2 é a seguinte:
Questão n.º 2
“No seu Parecer n.º 1, de 29 de novembro de 1991, a Comissão Arbitral foi da opinião
“que a RFSJ [República Federal Socialista da Jugoslávia] (encontrava-se) em processo se
dissolução”. Pode esta dissolução ser considerada agora como concluída?
A Comissão tomou nota dos memorandos, observações e documentos enviados pelas
Repúblicas da Bósnia-Herzegovina, Croácia, Eslovénia, Macedónia, Montenegro e
Sérvia.
Numa decisão interlocutória tomada hoje, a Comissão considerou que esta matéria se
encontrava dentro da sua competência.
1. No seu Parecer n.º 1 de 29 de novembro, a Comissão Arbitral concluiu que:
- a existência ou não existência de um Estado teve de ser determinada com base em
princípios de direito internacional universalmente aceites relativos aos elementos
constitutivos de um Estado;
- a RFSJ era ainda, a essa data, uma entidade jurídica internacional mas o desejo de
independência já tinha sido manifestado através de referendos na República da Eslovénia,
Croácia e Macedónia, e através de uma resolução sobre a soberania na Bósnia-
Herzegovina;
- a composição e o funcionamento dos órgãos essenciais da Federação já não satisfazia
os requisitos intrínsecos de um Estado federal relativos à participação e
representatividade;
- o recurso à força em diferentes partes da Federação tinha demonstrado a impotência
da Federação;
- a RFSJ estava em processo de dissolução, mas competia, contudo, às Repúblicas que
assim o desejassem, se fosse o caso, constituir uma nova associação com as instituições
democráticas da sua escolha;
- a existência ou desaparecimento de um Estado é, em qualquer caso, uma matéria de
facto.
2. A dissolução de um Estado implica que deixa de ter personalidade jurídica, algo que
tem enormes repercussões para o direito internacional. Exige, consequentemente, o maior
dos cuidados.
A Comissão considera que a existência de um Estado federal, que é constituído por
um número de entidades distintas, está seriamente comprometida quando a maioria dessas
entidades, abrangendo a maior parte do território e população, constituem-se elas próprias
como Estados soberanos com a consequência de que a autoridade federal já não pode
continuar a ser efetivamente exercida.
Do mesmo modo, ao passo que o reconhecimento de um Estado por outros Estados
tem apenas valor declarativo, tal reconhecimento, juntamente com a participação em
organizações internacionais, é testemunha da convicção desses Estados de que a entidade
política assim reconhecida é uma realidade e atribui-lhe certos direitos e obrigações de
acordo com o direito internacional.
3. A Comissão Arbitral observa que desde a adoção do Parecer n.º 1:
- O referendo proposto no Parecer n.º 4 foi realizado na Bósnia-Herzegovina a 29 de
fevereiro e a 1 de março: uma larga maioria da população votou a favor da independência
da República;

91
92 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

- A Sérvia e o Montenegro, enquanto República, constituíram um novo Estado, a


“República Federal da Jugoslávia”, e a 27 de abril adotaram uma nova constituição;
- A maioria dos novos Estados formados a partir da ex-República da Jugoslávia
reconheceram reciprocamente a sua independência, demonstrando assim que a autoridade
do Estado federal já não dominava o território dos Estados recém-constituídos;
- Os órgãos federais comuns nos quais todas as Repúblicas Jugoslavas estavam
representadas já não existem: nenhum órgão dessa natureza funcionou desde então;
- O anterior território nacional e a população da RFSJ estão agora inteiramente sobre
a autoridade soberana dos novos Estados;
- A Bósnia-Herzegovina, a Croácia e a Eslovénia foram reconhecidos por todos os
Estados Membros da Comunidade Europeia e por muitos outros Estados, e foram
admitidos como Membros das Nações Unidas a 22 de maio de 1992;
- As Resoluções do Conselho de Segurança n.ºs 752 e 757 (1992) incluem um certo
número de referências à “ex-RFSJ”;
- Além do mais, a Resolução n.º 757 (1992) observa que “a pretensão da República
Federal da Jugoslávia (Servia e Montenegro) de continuar automaticamente (a
participação) da ex-República Federal Socialista da Jugoslávia (nas Nações Unidas) não
foi geralmente aceite”;
- A declaração adotada no Conselho Europeu de Lisboa, de 27 de junho, faz referência
expressa à “ex-Jugoslávia”.
4. A Comissão Arbitral é, então, da opinião:
- Que o processo de dissolução da RFSJ a que se refere o Parecer n.º 1 de 29 de
novembro de 1991 está agora concluído e que a RFSJ já não existe.

6. Conferência de Paz para a Jugoslávia, Comissão Arbitral, Parecer n.º 10, Paris,
4 de julho de 1992

A 18 de maio de 1992 o Presidente da Comissão Arbitral recebeu uma carta de Lorde


Carrington, Presidente da Conferência de Paz para a Jugoslávia, solicitando o parecer da
Comissão sobre as seguintes questões:
“É a República Federal da Jugoslávia, segundo o direito internacional, um novo Estado
solicitando o reconhecimento por outros Estados Membros da Comunidade Europeia, nos
termos da declaração conjunta sobre a Jugoslávia e as Diretrizes sobre o reconhecimento
de novos Estados na Europa Oriental e na União Soviética adotados pelo Conselho das
Comunidades Europeias a 16 de dezembro de 1991?”
A Comissão tomou nota dos memorandos, observações e documentos enviados pelas
Repúblicas da Bósnia-Herzegovina, Croácia, Eslovénia, Macedónia, Montenegro e
Sérvia.
Numa decisão interlocutória tomada hoje, a Comissão considerou que esta matéria se
encontrava dentro da sua competência.
1. Como concluiu a Comissão Arbitral no seu Parecer n.º 8, a resposta a esta questão
dependia em muito da Questão n.º 2 do Presidente da Conferência.
No Parecer n.º 8, a Comissão Arbitral concluiu que a dissolução da República Federal
Socialista da Jugoslávia (RFSJ) ficou concluída e que nenhuma das entidades dela
resultantes poderia reclamar ser a única sucessora da RFSJ.
2. A 27 de abril deste ano a Sérvia e o Montenegro decidiram criar uma nova entidade
denominada “República Federal da Jugoslávia” e adotaram a sua constituição.

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93 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

A Comissão Arbitral entende que, dentro das fronteiras constituídas pelos limites
administrativos do Montenegro e da Sérvia na RFSJ, a nova entidade preenche os critérios
de estadualidade do direito internacional público, que foram elencados no Parecer n.º 1,
de 29 de novembro de 1991. Contudo, como a Resolução 757 (1992) do Conselho de
Segurança das NU assinala, “a pretensão da República Federal da Jugoslávia (Sérvia e
Montenegro) de continuar automaticamente (a participação) da República Federal
Socialista da Jugoslávia (nas Nações Unidas) não foi geralmente aceite”. Como a
Comissão Arbitral destaca no seu Parecer n.º 9, a RFJ é, na verdade, um novo Estado, e
não poderia ser o único sucessor da RFSJ.
3. Isto significa que a RFJ (Sérvia e Montenegro) não goza ipso facto do
reconhecimento gozado pela RFSJ em circunstâncias completamente diferentes. Caberá,
então, aos outros Estados, quando for o caso, reconhecer o novo Estado.
4. Como, no entanto, salientou a Comissão Arbitral no Parecer n.º 1, enquanto o
reconhecimento não é um pré-requisito para a criação de um Estado e é puramente
declarativo no seu impacto, é todavia um ato discricionário que outros Estados podem
executar quando entenderem e da maneira que entenderem, sujeito apenas ao
cumprimento das normas imperativas de direito internacional geral, em particular as que
proíbem o uso da força nas relações com outros Estados ou que garantem os direitos das
minorias étnicas, religiosas ou linguísticas.
Acresce que, a Comunidade e os seus Estados Membros, na sua declaração conjunta
sobre a Jugoslávia de 16 de dezembro de 1991 e as Diretrizes, adotadas no mesmo dia,
sobre o reconhecimento de novos Estados na Europa Oriental e na União Soviética,
estabeleceu as condições para o reconhecimento das Repúblicas Jugoslavas.
5. Consequentemente, a opinião da Comissão de Arbitragem é que:
- A RFJ (Sérvia e Montenegro) é um novo Estado que não pode ser considerado o
único sucessor da RFSJ;
- O seu reconhecimento pelos Estados Membros da Comunidade Europeia estaria
sujeito ao cumprimento das condições estabelecidas no direito internacional geral para
um tal ato e na declaração conjunta e Diretrizes de 16 de dezembro de 1991.

Questões:

a) No parecer n.º 8 a Comissão Arbitral indica que a dissolução do Estado, assim como o
seu surgimento, são questões de facto. Explicite, recorrendo a passagens do parecer.
b) A propósito da dissolução da RFSJ, a Comissão parece utilizar alguns elementos que
apontariam para uma tese constitutiva no surgimento dos “novos” Estados. Identifique e
explique as passagens do texto em que isso parece resultar claro.
c) Ainda assim, pode dizer-se que na verdade esses elementos, mais do que constitutivos,
comprovam um dos elementos de manifestação da estadualidade. Qual? Explique.
d) Qual a questão jurídica subjacente ao Parecer n.º 10? E qual a conclusão a que chega
a Comissão?
e) Pode dizer-se que este parecer explicita o importante papel do CS das NU pode
desempenhar em matéria de surgimento de novos Estados e, consequentemente, do seu
reconhecimento? Explique.
f) Em que medida é que o conjunto dos Pareceres e a atividade desta Comissão Arbitral
comprova e revela a cada vez maior institucionalização da sociedade internacional?

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94 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

ESTUDO DE CASO: KOSOVO

1. Kosovo, Parlamento, Declaração Unilateral de Independência, 17 de fevereiro de


2008

Reunidos em sessão extraordinária no dia 17 de fevereiro de 2008, em Pristina, a


capital do Kosovo,
Respondendo à chamada do povo para construir uma sociedade que honra a dignidade
humana e afirma o orgulho e objetivos dos seus cidadãos,
O Parlamento do Kosovo aprovou por unanimidade esta declaração histórica.
Comprometido em enfrentar o doloroso legado do passado recente, num espírito de
reconciliação e perdão.
Empenhado em proteger, promover e honrar a diversidade do nosso povo,
Reafirmando o nosso desejo de nos tornarmos totalmente integrados na família das
democracias Euro-Atlânticas,
Observando que o Kosovo é um caso especial, que surge de uma desagregação não
consensual da Jugoslávia e que não constitui precedente para qualquer outra situação,
Recordando os anos de luta e violência no Kosovo, que perturbaram a consciência de
todos os povos civilizados,
Agradecido que em 1999 o mundo tenha intervindo, removendo dessa forma o governo
de Belgrado sobre o Kosovo e colocando o Kosovo sob a administração transitória das
Nações Unidas,
Orgulhoso pelo facto de o Kosovo ter desenvolvido, desde então, instituições
democráticas multiétnicas funcionais que expressam livremente a vontade dos nossos
cidadãos,
Recordando os anos de negociações apoiadas internacionalmente entre Belgrado e
Pristina sobre a questão do nosso estatuto político futuro,
Lamentando que não foi possível encontrar uma solução mutuamente aceitável, apesar
do envolvimento de boa-fé dos nossos líderes,
Confirmando que as recomendações do Enviado Especial das NU Martti Ahtisaari
dotam o Kosovo de um quadro abrangente para o seu desenvolvimento futuro e estão em
linha com os mais elevados standards Europeus de direitos humanos e boa governança,
Determinado em ver a questão do nosso estatuto resolvido para dar ao nosso povo
clareza quanto ao seu futuro, ultrapassados os conflitos do passado e na realização do
potencialmente totalmente democrático da nossa sociedade,
Honrando, todos os homens e mulheres que fizeram grandes sacrifícios para contruir
um futuro melhor para o Kosovo,
Nós, os líderes democraticamente eleitos do nosso povo, declaramos por este meio que
o Kosovo é um Estado independente e soberano. Esta declaração reflete a vontade do
nosso povo e está em acordo total com as recomendações do Enviado Especial das NU
Martti Ahtisaari e a sua Proposta Abrangente para o Estabelecimento do Estatuto do
Kosovo.
Declaramos que o Kosovo é uma república democrática, secular e multiétnica, guiada
pelos princípios da não discriminação e da igual proteção perante a lei. Deveremos

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95 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

proteger e promover os direitos de todas as comunidades no Kosovo e criar as condições


necessárias para a sua participação efetiva nos processos políticos e de tomada de decisão.
Aceitamos na totalidade as obrigações para o Kosovo contidas no Plano Ahtisaari e
congratulamo-nos com a abordagem que propõe para guiar o Kosovo nos próximos anos.
Implementaremos plenamente aquelas obrigações, incluindo através da adoção prioritária
da legislação incluída no seu Anexo XII, em particular aquela que protege e promove os
direitos das comunidades e dos seus membros.
O mais rapidamente possível adotaremos uma Constituição que consagre o nosso
compromisso com o respeito pelos direitos humanos e as liberdades fundamentais de
todos os nossos cidadãos, em particular como definidos na Convenção Europeia dos
Direitos Humanos. A Constituição deverá incorporar todos os princípios relevantes do
plano Ahtisaari e ser adotada através de um processo democrático e deliberativo.
Saudamos o apoio contínuo da comunidade internacional ao nosso desenvolvimento
democrático através das presenças internacionais no Kosovo estabelecidas tendo por base
a resolução 1244 (1999) do Conselho de Segurança das NU.
Convidamos e saudamos uma presença internacional de natureza civil para
supervisionar a nossa implementação do Plano Ahtisaari e de uma missão para o Estado
de Direito liderada pela União Europeia. Convidamos também e saudamos a Organização
do Tratado do Atlântico Norte a manter o papel de liderança na presença militar
internacional no Kosovo e para implementar as responsabilidades que lhe são confiadas
na resolução 1244 (1999) do Conselho de Segurança das NU e no Plano Ahtisaari, até
que as instituições do Kosovo sejam capazes de assumir aquelas responsabilidades.
Cooperaremos plenamente com estas presenças para assegurar ao futuro Kosovo paz,
prosperidade e estabilidade.
Por razões de cultura, geografia e história, acreditamos que o nosso futuro é com a
família Europeia. Assim sendo, declaramos a nossa intenção de adotar todos os passos
necessários para facilitar a pertença como membro pleno da União Europeia assim que
seja possível e implementar as reformas necessárias para a integração Europeia e Euro-
Atlântica.
Expressamos a nossa profunda gratidão às Nações Unidas pelo trabalho que tem feito
a ajudar-nos a recuperar e reconstruir depois da guerra e erguer instituições democráticas.
Estamos comprometidos a trabalhar construtivamente com as Nações Unidas no trabalho
que continua no período que se segue.
Com a independência vem o dever de membros responsáveis da comunidade
internacional. Aceitamos plenamente este dever e agiremos de acordo com os princípios
da Carta das Nações Unidas, a Ata Final de Helsínquia e outros atos da Organização para
a Segurança e Cooperação na Europa, e as obrigações jurídicas internacionais e os
princípios da comunidade internacional que marcam as relações entre Estados. O Kosovo
deverá ter as suas fronteiras internacionais como estabelecidas no Anexo VIII do Plano
Ahtisaari e deve respeitar totalmente a soberania e integridade territorial de todos os seus
vizinhos. O Kosovo abster-se-á da ameaça ou uso da força de qualquer forma
incompatível com as finalidades das Nações Unidas.
Desta forma, assumimos as obrigações internacionais do Kosovo, incluindo aquelas
concluídas em nosso nome pela Missão de Administração Interina das Nações Unidas no
Kosovo (UNMIK) e tratados e outras obrigações da antiga República Federal Socialista
da Jugoslávia às quais estamos vinculadas como anterior parte constituinte, incluindo as
Convenções de Viena sobre as relações diplomáticas e consulares. Deveremos cooperar
plenamente como o Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia. Pretendemos

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96 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

tornarmos membros de organizações internacionais, nas quais o Kosovo deverá procurar


contribuir para a paz e estabilidade internacionais.
O Kosovo declara o seu compromisso com a paz e estabilidade na nossa região do
sudeste da Europa. A nossa independência põe fim ao processo violento da dissolução da
Jugoslávia. Embora este processo tenha sido doloroso, devemos trabalhar sem descanso
para contribuir para uma reconciliação que permita ao sudeste da Europa ultrapassar os
conflitos do passado e desenvolver novos laços de cooperação regional. Devemos por
isso trabalhar em conjunto com os nossos vizinhos no sentido de um futuro Europeu
comum.
Expressamos, em particular, o nosso desejo de estabelecer boas relações com todos os
nossos vizinhos, incluindo a República da Sérvia com quem temos laços históricos,
comerciais e sociais profundos e que pretendemos desenvolver no futuro próximo.
Continuaremos a envidar esforços para contribuir para relações de amizade e cooperação
com a República da Sérvia, promovendo ao mesmo tempo a reconciliação entre os nossos
povos.
Por este meio afirmamos, claramente, concretamente e de modo irrevogável, que o
Kosovo está juridicamente obrigado a cumprir as disposições contidas nesta declaração,
incluindo, em especial, as obrigações de acordo com o Plano Ahtisaari. Em todas as outras
matérias, atuaremos de modo consistente com os princípios do direito internacional e as
resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas, incluindo a resolução 1244
(1999). Declaramos publicamente que todos os Estados têm o direito de confiar nesta
declaração e apelam a que nos concedam o seu apoio e amizade.

2. Presidente dos Estados Unidos da América, Declaração relativa à normalização


económica entre a Sérvia e o Kosovo, 4 de setembro de 2020
In https://www.whitehouse.gov/briefings-statements/statement-president-regarding-economic-normalization-serbia-kosovo/

É uma honra anunciar hoje mais um compromisso histórico. A Sérvia e o Kosovo


comprometeram-se mutuamente à normalização económica. Depois de uma história
violenta e trágica e anos de negociações falhadas, a minha Administração propôs uma
nova forma de aproximar aqueles que estão divididos. Concentrando-se na criação de
emprego e no crescimento económico, os dois países foram capazes de alcançar um
verdadeiro avanço na cooperação económica em inúmeras áreas.
Também alcançamos um progresso adicional na busca pela paz no Médio Oriente. O
Kosovo e Israel concordaram em normalizar os seus laços e estabelecer relações
diplomáticas. A Sérvia comprometeu-se em abrir uma delegação comercial em Jerusalém
este mês e mudar a sua Embaixada para Jerusalém até julho.
Foi necessária tremenda valentia por parte do Presidente Vučić da Sérvia e do Primeiro
Ministro Hoti do Kosovo para empreender estas conversações e vir a Washington
finalizar estes compromissos. Ao fazê-lo, tornaram os seus países, os Balcãs e o mundo
mais seguro. Espero com entusiasmo ver a Sérvia e o Kosovo prosperarem à medida que
trabalhamos juntos na cooperação económica na região daqui em diante.

Questões:

a) O Parlamento do Kosovo refere-se, para efeitos da declaração unilateral de


independência, aos elementos “clássicos” de estadualidade?

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97 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

b) Que elementos são apresentados como relevantes pelo Parlamento para o Kosovo ser
considerado Estado?
c) O Parlamento faz referência expressas ao direito internacional (e à sua vontade e
capacidade de o cumprir) e, também, a inúmeras organizações internacionais. Porquê?
Será que isso nos diz alguma coisa sobre aquilo que é “hoje” necessário para ser Estado?
d) Sabendo que a Sérvia não reconhece o Kosovo, o que nos diz este acordo entre aqueles
Estados acima referenciado sobre a importância prática do reconhecimento de Estado e a
evolução das relações internacionais?

3. Portugal, Ministério dos Negócios Estrangeiros, 8 de outubro de 2008

Comunicado de Imprensa - Kosovo

O Governo tem acompanhado de perto a evolução da situação no Kosovo, antes e


depois da declaração de independência de 17 de fevereiro de 2008. Durante a Presidência
Portuguesa do Conselho da União Europeia, procurou dar um contributo para uma ação
responsável e coerente da União Europeia visando a estabilização do Kosovo e de toda a
região. Portugal, que neste momento contribui para KFOR com um batalhão, procedeu a
uma avaliação metódica da questão, constatando que as autoridades do Kosovo têm
respeitado os compromissos assumidos perante a ONU. O Governo entende que a
evolução dos acontecimentos no Kosovo é globalmente positiva.
Verifica-se também que 21 Estados-membros da União Europeia e outros tantos da
NATO efetuaram já o reconhecimento do Kosovo. Foram ainda acompanhados por
Estados que nos são próximos, num total de 47. Estão assim a ser criadas as condições
para que o Kosovo se integre plenamente na comunidade internacional.
O Kosovo representa, recorde-se, um caso único, tendo o processo que levou à sua
independência sido conduzido pelas Nações Unidas, com envolvimento direto da União
Europeia e de outras organizações que Portugal integra. O Relatório do Enviado Especial
do Secretário-Geral das Nações Unidas, Martti Ahtisaari, foi devidamente ponderado
nesse quadro.
Portugal reiterou consistentemente o seu apoio às aspirações europeias da Sérvia, e
não se tem poupado a esforços para que estas possam ser concretizadas. Dar uma
perspetiva europeia à Sérvia é um dos objetivos da nossa política externa, a par do reforço
das relações bilaterais com aquele Estado.
Neste contexto, o Governo português decidiu reconhecer hoje a República do Kosovo.
Assim sendo, e na sequência de um amplo e diversificado conjunto de contactos
prévios, que incluíram a Assembleia da República e os Partidos Políticos ali
representados, foi esta tarde enviada uma carta do Ministro de Estado e dos Negócios
Estrangeiros ao seu homólogo do Kosovo onde se comunica que, com efeitos a partir
desta data, o Governo Português reconhece formalmente a República do Kosovo como
Estado soberano e independente.

Questões:

a) De um ponto de vista jurídico-internacional, que ato é praticado por Portugal e aqui


comunicado? Recorde aqui, os artigos relevantes da Convenção de Montevideo de 1933
a este propósito.

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98 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

b) Neste comunicado é possível identificar diferentes elementos que foram tidos em


consideração por Portugal na sua tomada de decisão. Identifique-os.
c) A determinada altura é dito: “Estão assim a ser criadas as condições para que o Kosovo
se integre plenamente na comunidade internacional.” Quais os elementos apresentados
por Portugal que o levam a essa conclusão? Que alínea do artigo 1 do Convenção de
Montevideo parece estar aqui em causa?
d) Conhecendo as duas teorias sobre o reconhecimento de Estado, em qual pareceria de
incluir esta afirmação do MNE português? Analise a argumentação de Portugal na
perspetiva das diferentes teorias estudadas a propósito do reconhecimento de Estado.

4. República do Gana, Ministro dos Negócios Estrangeiros e da Integração


Regional, 11 de novembro de 2019
In https://media.srbija.gov.rs/medeng/documents/odluka-povlacenje-gana-priznanje-kosova-eng.pdf

O Ministro dos Negócios Estrangeiros e da Integração Regional da República do Gana


apresenta os seus cumprimentos ao Ministro dos Negócios Estrangeiros da República da
Sérvia e tem a honra de comunicar o seguinte:
O Governo do Gana decidiu retirar o reconhecimento efetuado pelo Gana ao Kosovo
como um Estado independente. Esta decisão do Governo baseia-se nas seguintes
considerações:
Em 2012 o Gana decidiu reconhecer o Kosovo como um Estado independente e
soberano o que conduziu ao estabelecimento de relações diplomáticas entre os dois
Estados. Este reconhecimento foi adotado em desconformidade com a Ata Final de
Helsínquia e, mais importante, em desconformidade com a resolução 1244 (1999) do
Conselho de Segurança das NU.
A decisão de reconhecer o Kosovo revelou-se prematura considerando o parágrafo 10
da resolução 1244 (1999) do CSNU que autorizou o Secretário-Geral a “estabelecer uma
presença internacional civil no Kosovo para aí assegurar uma administração provisória
no quadro da qual o população do Kosovo poderá gozar de um autonomia substancial no
seio da República Federativa da Jugoslávia e que assegurará uma administração
transitória assim como a instalação e a supervisão das instituições democráticas
autónomas provisórias necessárias para que todos os habitantes do Kosovo possam viver
normalmente e com tranquilidade”.
A decisão do Governo do Gana, porém, deve ter sido inspirada, na altura, pela busca
de paz e harmonia.
O Governo do Gana teve em consideração o diálogo contínuo entre a Sérvia e Kosovo
com o objetivo de resolver a questão de este último ser reconhecido como uma entidade
independente e soberana e apoia o processo em curso para resolver este assunto.
O Ministro dos Negócios Estrangeiros e da Integração Regional da República do Gana
aproveita esta oportunidade para renovar ao Ministro dos Negócios Estrangeiros da
República da Sérvia protesto da sua mais elevada consideração.

Acra, 7 de novembro de 2019

Questões:
a) O que é que é comunicado pelo Gana à Sérvia nesta carta?

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99 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

b) Olhando ao disposto na Convenção de Montevideo e o que estudou sobre o


reconhecimento, o que lhe parece “inovador” neste comportamento? Qual o artigo
relevante?
c) Qual a razão invocada pelo Gana para “desreconhecer” o Kosovo? Analise esse
argumento à luz dos limites ao reconhecimento de Estado. Quais são esses limites,
explique-os e aplique a este caso.

RECONHECIMENTO DE GOVERNO E PRINCÍPIO DA CONTINUIDADE DO ESTADO

A. Jurisprudência e outros documentos

1. A doutrina de Estrada: Apresentação de Genaro Estrada, Secretário Geral das


Relações Externas do México, 27 de setembro de 1930

In Textos Históricos do Direito e das Relações Internacionais, pp. 356 ss.

Devido às mudanças de regime ocorridas em alguns países da América do Sul, o


Governo do México teve mais uma vez necessidade de decidir quanto à aplicação da
doutrina dita de “reconhecimento” de Governos.
É um facto sobejamente conhecido que o México sofreu como poucos países, há alguns
anos, as consequências dessa doutrina, que deixa ao arbítrio de governos estrangeiros
a pronúncia sobre a legitimidade ou ilegitimidade de outro regime, produzindo-se,
dessa forma, situações em que a capacidade jurídica ou o apoio nacional de Governos
ou autoridades parece subordinar-se à opinião dos estranhos.
A doutrina dos chamados “reconhecimentos” foi aplicada, a partir da Grande Guerra,
especialmente a nações deste continente, sem que, em casos muito conhecidos de
mudanças de regime na Europa, os Governos das nações tenham reconhecido
expressamente, pelo que o sistema se tem vindo a transformar numa especialidade para
as Repúblicas latino-americanas.
Depois de um estudo aprofundado sobre a matéria, o Governo do México transmitiu
instruções aos seus ministros ou encarregados de negócios nos países afetados pelas
recentes crises políticas, dando-lhes a conhecer que o México não se pronuncia no
sentido de outorgar reconhecimentos, porque considera que esta é uma prática
infamante que, por afetar a soberania de outras nações, as coloca na situação em que
os seus assuntos internos são qualificados em qualquer sentido por outros Governos,
os quais, de facto, assumem uma atitude de crítica ao decidirem, favoravelmente ou
desfavoravelmente, sobre a capacidade jurídica de regimes estrangeiros.

2. A doutrina de Tobar: Tratado de Paz e Amizade entre os Cinco Estados Centro-


Americanos Relativo ao Não-Reconhecimento de Governos Revolucionários,
Washington, 20 de dezembro de 1907

Artigo I
Os Governos das Altas Partes Contratantes não reconhecerão qualquer outro Governo
que surja em qualquer uma das cinco Repúblicas como consequência de um golpe de
Estado, ou de uma revolução contra um Governo reconhecido, enquanto
representantes livremente eleitos do respetivo povo não tiverem reorganizado
constitucionalmente o País.
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100 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

Artigo II
Nenhum Governo da América Central poderá, em caso de guerra civil, intervir a favor
ou contra o Governo no qual a luta tiver lugar.

Artigo III
Recomenda-se aos Governos da América Central que procurem, pelos meios que
estiverem ao seu alcance e, em primeiro lugar, a reforma constitucional, no sentido da
proibição da reeleição do Presidente da República, onde tal proibição não exista, e, em
segundo lugar, a adoção de todas as disposições necessárias para garantir na íntegra o
princípio da alternância no poder.

Questão:
Explique as duas teorias estudadas a propósito do reconhecimento de Governo e recorra
aos excertos para demonstrar as suas características fundamentais.

3. Atlantic and Hope Insurance Companies v. Ecuador (Schooner “Mechanic”),


Equador/Estados Unidos da América, Comissão Mista (Convenção de 25 de
novembro de 1862), 17.8.1865, Moore, III, pp. 3221-3227, 3223

É um dos princípios mais fundamentais do direito internacional aquele segundo o qual


um Estado nunca perde qualquer dos seus direitos, nem fica desvinculado de qualquer das
suas obrigações, devido a uma mudança na forma do seu governo civil. Aplica-se, por
analogia, a casos como o que nos é presente, quando uma parte da nação se separa da
outra. É evidente que, no momento da criação de um novo Estado, devido a uma divisão
territorial, esse novo Estado tem um direito soberano de concluir novos tratados e assumir
novos compromissos com outras nações; mas, até que o faça, os tratados a que estava
vinculado como parte do Estado no seu conjunto continuam a vincular o novo Estado e
os seus súbditos.

4. Tinoco, Grã-Bretanha c. Costa Rica, Aguilar-Amory and Royal Bank of Canada


Claims, Wahington, 18 de outubro de 1923 (Árbitro: William Taft)
In Reports of International Arbitral Awards, vol. I, pp. 369 ss., 377 ss.

Indo, agora, às questões gerais aplicáveis a ambas as queixas, a Grã-Bretanha


considera, em primeiro lugar, que o Governo Tinoco foi o único Governo de facto e
de jure durante dois anos e nove meses; que, durante esse período, não houve outro
governo que questionasse a sua soberania; que administrou, pacificamente, a
totalidade do País, com a aquiescência do seu povo.
Em segundo lugar, que o governo que lhe sucedeu não podia, por decreto
legislativo, afastar a responsabilidade por atos daquele governo que afetassem
súbditos britânicos, ou apropriar-se ou confiscar direitos e propriedade através
daquele governo, exceto com violação do direito internacional; que a Lei das
Nulidades atinge interesses britânicos, sendo por isso ela própria nula, com a
consequência de que os contratos validamente celebrados com o Governo Tinoco

100
101 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

devem ser cumpridos pelo atual Governo da Costa Rica, e que a propriedade que foi
lesada, assim como os direitos anulados, devem ser restaurados.
A estas alegações, o Governo da Costa Rica responde: em primeiro lugar, que o
Governo Tinoco não era um governo de facto ou de jure segundo as regras do direito
internacional. Isto suscita uma questão de facto.
Em segundo lugar, que os contratos e obrigações do Governo Tinoco, defendidos
pela Grã-Bretanha em nome dos seus súbditos, são de nenhum efeito, e não criam uma
obrigação jurídica, porque o Governo Tinoco e os seus atos violaram a Constituição
da Costa Rica de 1871.
Em terceiro lugar, que a Grã-Bretanha está impedida, pelo facto de não ter
reconhecido o Governo Tinoco enquanto este esteve em funções, de apresentar uma
reclamação, em nome dos seus cidadãos, que o Governo de Tinoco podia conferir
direitos que vinculassem o seu sucessor.
Em quarto lugar, que os súbditos da Grã-Bretanha cujas reclamações aqui são
debatidas, estavam, quer por contrato quer pelo direito da Costa Rica, obrigados a
procurar reparação perante os tribunais da Costa Rica, não podendo procurar a
intervenção diplomática através do seu Governo.
O Dr. John Bassett Moore, atualmente membro do Tribunal Permanente de Justiça
Internacional, anuncia no seu Digest of International Law, Volume I, p. 249, o princípio
geral que tinha já uma tal aquiescência universal que estava bem assente como direito
internacional:

As mudanças no governo ou na política interna de um Estado não afetam, por regra, a sua posição em
direito internacional. Uma monarquia pode transformar-se numa república ou uma república numa
monarquia; princípios absolutos podem ser substituídos por princípios constitucionais, ou a inversa; mas,
embora o governo mude, a nação permanece, com direitos e obrigações intocados… O princípio da
continuidade dos Estados tem consequências importantes. O Estado está vinculado por compromissos
assumidos por governos que deixaram de existir; o governo restaurado é, geralmente, responsável pelos
atos do usurpador. Os Governos de Luís XVIII e Luís Filipe indemnizaram até ao limite do praticável os
cidadãos de Estados estrangeiros pelos prejuízos causados pelo Governo de Napoleão; e o Rei das duas
Sicílias compensou cidadãos dos Estados Unidos pelos atos ilícitos de Murat.

E o Dr. Moore acrescenta:

A origem e organização dos governos são, geralmente, questões de discussão e decisão internas. As
Potências estrangeiras tratam com o governo de facto existente, estando este suficientemente estabelecido,
de forma a dar garantias razoáveis de permanência e quanto à aquiescência daqueles que constituem o
Estado na sua capacidade para se manter e para cumprir os seus deveres internos e as suas obrigações
externas.

O mesmo princípio é exposto no novo trabalho do Professor Borchard sobre A


Protecção Diplomática dos Cidadãos no Estrangeiro [The Diplomatic Protection of
Citizens Abroad]:

Tomando em consideração as características e atributos do governo de facto, um governo de facto geral


que tenha substituído completamente as autoridades regularmente constituídas no Estado vincula a nação.
No que respeita às suas obrigações internacionais, representa o Estado. Sucede nas dívidas do governo
regular que derrubou e transmite as suas próprias obrigações aos governos que lhe sucedam. Os seus
empréstimos e contratos obrigam o Estado e o Estado é responsável pelos atos governamentais das
autoridades de facto. Em geral, os seus tratados são obrigações válidas do Estado. Pode alienar o território
do Estado e as sentenças dos seus tribunais consideram-se efetivas depois da sua autoridade ter cessado.

101
102 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

Ocasionalmente, verificou-se uma exceção a estas regras na prática de alguns Estados da América Latina,
que declararam nulos e de nenhum efeito os atos de um governo transitório usurpador de facto, quando o
governo regular derrubado consegue retomar o controlo. Não obstante, os atos adotados validamente em
nome do Estado e que tenham carácter internacional não podem ser recusados com ligeireza e, geralmente,
os governos estrangeiros insistem na sua força vinculante. A legalidade ou legitimidade constitucional de
um governo de facto não é internacionalmente relevante do ponto de vista da representação dos Estado.
(…)

Em primeiro lugar, quais são os factos que podem ser coligidos dos documentos e
provas aduzidas pelas duas partes quanto ao carácter de facto do Governo Tinoco?
Em janeiro de 1917, Frederico A. Tinoco era Ministro da Guerra de Alfredo Gonzalez,
o então Presidente da Costa Rica. Com o argumento de que Gonzalez procurava ser
reeleito como Presidente em violação de um limite constitucional, Tinoco utilizou o
Exército e a Marinha para se apropriar do governo, assumir a liderança provisória da
República e para se tornar Comandante-Chefe do Exército. Gonzalez refugiou-se na
Legação americana, tendo posteriormente fugido para os Estados Unidos. Tinoco
constituiu imediatamente um governo provisório e convocou o povo para a eleição de
deputados a uma assembleia constituinte a 1 de maio de 1917. Simultaneamente, decidiu
que teria lugar uma eleição para a Presidência e ele mesmo se apresentou como candidato.
As eleições realizaram-se. Foram escrutinados aproximadamente 61.000 votos em favor
de Tinoco e 259 em favor de outro candidato. Tinoco foi então designado Presidente para
exercer os seus poderes de acordo com a Constituição anterior, até à adoção de uma nova
Constituição. Esta foi adotada a 8 de junho de 1917, substituindo a Constituição de 1871.
Durante dois anos, Tinoco e a Assembleia legislativa que lhe estava submetida
administraram pacificamente os assuntos do Governo da Costa Rica e durante esse
período não se verificaram desordens de carácter revolucionário. Nenhum governo de
qualquer outro tipo afirmou o seu poder no país. Os tribunais funcionaram, o Congresso
legislou e o Governo administrou devidamente. O povo parece ter aceite o Governo
Tinoco com grande boa vontade quando este se estabeleceu e aplaudido a mudança.
Mesmo o comité do Governo anterior, que formulou e publicou um relatório a 29 de maio
de 1920, proferindo a acusação contra o Presidente Tinoco pelo crime de revolução
militar, declarando os atos do seu regime nulos e de nenhum efeito e sem qualquer valor
jurídico, utilizou os termos seguintes:

Sem ter uma Constituição que instituísse o cargo de Presidente e determinasse as suas funções, ou
mesmo que indicasse o período do seu mandato, a eleição teve lugar apenas com base na vontade da pessoa
que, pela violência, exercia o poder executivo. E, como seria de esperar, a eleição foi ganha pelo mesmo
Sr. Tinoco e, sendo embora triste referi-lo, o país aplaudiu! Por conseguinte, a decisão de que tal eleição
teria lugar naquelas condições é contrária aos princípios mais elementares do direito político.

A transcrição só é importante porque mostra, na altura, o consentimento do povo no


resultado. Apesar de Tinoco ter conseguido a aprovação popular, o resultado dos seus
dois anos de administração aumentou a oposição contra si. Fora do país, estavam em curso
planos conspirativos destinados a organizar uma força para o atacar. No entanto, estes
não resultaram em nenhum conflito significativo ou mesmo num governo provisório
nominal no território até bastante mais de dois anos após o estabelecimento do seu
governo, e não resultaram no estabelecimento de qualquer governo real até setembro
desse ano, tendo ele renunciado à Presidência em agosto, devido à sua saúde débil, e ido
para a Europa. A verdade é que, com base nas provas aduzidas neste caso, não há
elementos substanciais que permitam afirmar que Tinoco não estava a administrar de

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103 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

forma efetiva e pacífica, sem resistência ou conflito ou contestação por quem quer que
fosse até alguns meses antes de se retirar e de se demitir.
A propósito do retomar de funções do atual governo, este excerto encontra-se nas
alegações em nome da Costa Rica:

Desde o início, opunham-se a Tinoco forças poderosas na Costa Rica, mas o seu derrube em eleições
ou através de uma oposição não armada era impossível, assim como era igualmente impossível organizar
uma oposição armada contra ele em território da Costa Rica.

É verdade que a ação dos apoiantes dos que procuravam restaurar o anterior governo
foi de certa forma adiada pela influência dos Estados Unidos junto de Gonzalez e dos
seus amigos, com o argumento de que, durante a Guerra Mundial, seriam prejudiciais
para os interesses das Potências Aliadas distúrbios militares na América Central. No
entanto, não são importantes as causas que permitiram a Tinoco governar de forma efetiva
e pacífica. A questão é: deve o seu Governo ser entendido como continuidade do Governo
da Costa Rica? Devo afirmar, com base nas provas, que o Governo Tinoco era um
governo soberano.
No entanto, é alegado que muitas das principais Potências recusaram reconhecer o
Governo Tinoco, e que o reconhecimento por outras nações é a principal e melhor prova
sobre o nascimento, existência e continuidade de sucessão de um governo. Sem dúvida,
o reconhecimento por outras Potências é um fator indiciário importante para demonstrar
a existência de um governo na sociedade das nações. Quanto a isto, quais são os factos?
O Governo Tinoco foi reconhecido pela Bolívia a 17 de Maio de 1917; pela Argentina, a
22 de Maio de 1917; pelo Chile, a 22 de Maio de 1917; pelo Haiti, a 22 de Maio de 1917;
pela Guatemala, a 28 de Maio de 1917; pela Suíça, a 1 de Junho de 1917; pela Alemanha,
a 10 de Junho de 1917; pela Dinamarca, a 18 de Junho de 1917; pela Espanha, a 18 de
Junho de 1917; pelo México, a 1 de Julho de 1917; pela Holanda, a 11 de Julho de 1917;
pelo Vaticano, a 9 de Junho de 1917; pela Colômbia, a 9 de Agosto de 1917; pela Áustria,
a 10 de Agosto de 1917; por Portugal, a 14 de Agosto de 1917; por El Salvador, a 12 de
Setembro de 1917; pela Roménia, a 15 de Novembro de 1917; pelo Brasil, a 28 de
Novembro de 1917; pelo Peru, a 15 de Dezembro de 1917; e pelo Equador, a 23 de Abril
de 1917.
Quais eram as circunstâncias quanto às outras nações?
A 9 de Fevereiro de 1917, duas semanas depois de Tinoco ter assumido o poder, os
Estados Unidos tomaram a seguinte posição:

O Governo dos Estados Unidos encara com grande preocupação o recente derrube do governo
estabelecido na Costa Rica e considera que atos ilegais desta natureza tendem a perturbar a paz na América
Central e a pôr em causa a unidade do continente americano. À luz da sua política relativamente à tomada
do poder por meios ilegais, claramente enunciada em várias ocasiões ao longo dos últimos quatro anos, o
Governo dos Estados Unidos deseja acentuar de forma enfática e clara a sua atual posição relativamente à
situação na Costa Rica. Não reconhecerá ou apoiará qualquer governo que possa vir a ser estabelecido, a
não ser que esteja claramente demonstrado que é eleito por meios legais e constitucionais.

E, ainda, a 24 de fevereiro de 1917:

Para que os cidadãos dos Estados Unidos possam conhecer claramente a posição deste Governo quanto
a qualquer apoio financeiro a que possam pretender, ou quanto a qualquer transação comercial em que
possam estar envolvidos com as pessoas que derrubaram o Governo constitucional da Costa Rica por um
ato de rebelião armada, o Governo dos Estados Unidos deseja adverti-los de que não considerará atendíveis

103
104 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

para efeito de apoio diplomático quaisquer reclamações que possam no futuro ocorrer em relação a esses
negócios.

A 18 de Abril de 1918, o Departamento de Estado declarou o seguinte:

O Departamento de Estado foi informado de que os cidadãos da Costa Rica que agora exercem as
funções de governo na República da Costa Rica foram levadas a acreditar pelas pessoas que agora atuam
como seus agentes que o Governo dos Estados Unidos estava a ponderar reconhecê-los como Governo da
Costa Rica. Tendo em vista corrigir uma tal impressão, que é absolutamente errónea, o Governo dos Estados
Unidos deseja declarar clara e enfaticamente que não modificou a posição que assumiu relativamente ao
reconhecimento dos acima referidos cidadãos da Costa Rica que lhes foi comunicada em fevereiro de 1917,
e insiste que esta posição não será alterada no futuro.

Provavelmente pela importância dos Estados Unidos relativamente a um assunto desta


natureza, os que então eram seus aliados na guerra, Grã-Bretanha, França e Itália,
recusaram reconhecer o Governo Tinoco. Por conseguinte, a Costa Rica não pôde assinar
o Tratado de Paz em Versalhes, embora o Governo Tinoco tivesse declarado guerra à
Alemanha.
Não cabe ao árbitro discutir os méritos da política dos Estados Unidos neste não-
reconhecimento, pelo facto de que, na sua consideração deste caso, está necessariamente
controlado por princípios de direito internacional e, ainda que justificado que possa ser
como política nacional o não reconhecimento com este fundamento, este não mereceu a
aquiescência de todas as nações do Mundo, o que representa uma condição prévia para
que possa ser considerado um postulado de direito internacional.
O não-reconhecimento por outras nações de um governo que pretenda ter
personalidade nacional é, usualmente, demonstração apropriada de que não alcançou a
independência e controlo que o titulam, de acordo com o direito internacional, a ser
qualificado como tal. Mas quando o reconhecimento vel non de um governo é
determinado por averiguação por essas nações, não à luz da sua soberania de facto e
controlo governamental completo, mas segundo a sua ilegitimidade ou irregularidade
originária, o seu não-reconhecimento perde algum do seu peso relativamente à questão
que preocupa, exclusivamente, aqueles que aplicam as regras de direito internacional. O
que vale para o não-reconhecimento dos Estados Unidos, ao apoiarem-se na existência de
um governo de facto dirigido por Tinoco durante trinta meses valerá provavelmente, em
alguma medida, para o não-reconhecimento pelos seus Aliados na Guerra Europeia. No
entanto, este não-reconhecimento, qualquer que seja a sua razão, não pode prevalecer
sobre as provas que me foram apresentadas quanto ao carácter de facto do governo
Tinoco, de acordo com o padrão estabelecido pelo direito internacional.
Segundo. Em nome da Costa Rica, foi arguido com talento e seriamente que o governo
Tinoco não pode ser considerado um governo de facto, porque não foi estabelecido e
mantido de acordo com a Constituição da Costa Rica de 1871. Sustentar que um governo
que se estabelece e mantém uma administração pacífica com o consentimento do povo
por um período significativo de tempo não se torna um governo de facto a não ser que se
conforme com uma Constituição anterior equivaleria a defender que, de acordo com as
regras de direito internacional, uma revolução contrária à lei fundamental do governo
existente não pode estabelecer um novo governo. Isto não pode ser, e não é, verdade. A
mudança por revolução derruba o poder das autoridades em funções de acordo com a lei
fundamental então existente, e afasta a lei fundamental na medida em que a mudança de
poder o torne necessário. Falar-se de uma revolução que cria um governo de facto em
conformidade com a constituição anterior é uma contradição nos termos. O mesmo

104
105 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

governo continua a existir internacionalmente, mas não segundo o direito interno. A


questão não reside em saber se o novo governo assume o poder, ou dirige a sua
administração, de acordo com os limites constitucionais estabelecidos pelo povo durante
a vigência do governo que derrubou. A questão consiste no seguinte: o novo governo
estabeleceu-se realmente de um modo tal que todos os que estão sob a sua influência
reconhecem o seu controlo, não havendo uma força oposicionista que pretenda ser
governo em seu lugar? Está a exercer as suas funções tal como um governo faz
normalmente, respeitado na esfera da sua jurisdição própria?
É ainda feita referência, em nome da Costa Rica, ao Tratado de Washington de 20 de
dezembro de 1907, celebrado pelas Repúblicas da América Central, no qual foi acordado
que:

Os governos das partes contratantes não reconhecerão quem quer que seja que chegue
ao poder numa das cinco Repúblicas em consequência de um golpe de Estado ou através
de uma revolução contra um governo reconhecido até que os representantes do povo
tenham reorganizado o país na sua forma constitucional através de eleições livres.

Um tratado desta natureza não afeta os direitos dos súbditos de um governo que nele
não seja signatário nem emenda ou modifica as regras de direito internacional em matéria
de governo de facto. A sua ação à luz do tratado não poderia pesar mais na determinação
da existência de um governo de facto de Tinoco do que a política dos Estados Unidos, já
analisada. Para além disso, deve destacar-se que todos os signatários do tratado, com
excepção da Nicarágua, manifestaram a sua convicção de que a exigência do tratado tinha
sido respeitada no caso do Governo Tinoco, pelo seu reconhecimento depois da adoção
da Constituição de 1917 e da eleição de Tinoco.
Terceiro. É ainda objetado pela Costa Rica que a Grã-Bretanha, ao não reconhecer o
governo de Tinoco, vê agora precludida a possibilidade de endossar as reclamações dos
seus súbditos assentes nos atos e contratos do Governo Tinoco. Já analisei e admiti o peso
desse não-reconhecimento, confrontado com o seu carácter de facto. A argumentação vai
aqui mais além e impede um governo que não reconhece um governo de facto de surgir
perante um tribunal internacional em nome dos seus nacionais a reclamar quaisquer
direitos baseados nos atos desse governo.
Foi citado um grande número de decisões em tribunais ingleses e americanos em apoio
deste ponto de vista, segundo o qual um tribunal interno não pode, num caso perante si,
reconhecer ou assumir o carácter de facto de um governo estrangeiro que o departamento
dos Negócios Estrangeiros do Executivo do governo de que o tribunal é um ramo não
reconheceu. Isto é claramente verdade. É ao executivo, e não aos tribunais, que cabe
decidir questões de política externa. Seria o mais impróprio possível que existisse um
conflito de opiniões relativamente às relações externas de um país entre o departamento
encarregado da condução das suas relações externas e o seu ramo judicial. No entanto,
estes casos não têm pertinência para a questão que se nos coloca. Aqui, o Executivo da
Grã-Bretanha assume a posição de que o Governo Tinoco, que não reconheceu, era, não
obstante, um governo de facto que podia criar direitos na esfera de súbditos britânicos
que, agora, procura proteger. Naturalmente, como já foi acentuado, a ausência do seu
reconhecimento do governo de facto pode ser aduzida contra si como elemento de prova
que põe em causa o carácter que agora atribui a tal governo, mas isso não o impede de
mudar de posição. Na hipótese de ser apreciado um caso nos seus tribunais depois de ter

105
106 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

mudado a sua posição, não restam dúvidas de que o tribunal se sentiria obrigado a
mudança nas suas decisões subsequentes.
São mencionados precedentes em arbitragens Americanas para mostrar que um
estoppel como aquele que é invocado realmente se constituiu. São eles os casos Schultz
(Moore, International Arbitrations, vol. 3, 2973), Jansen (ibidem, 2902) e Jarvis (Ralston,
Venezuela Arbitrations, 150). Nas decisões destes 5 casos, proferidas por comissários
Americanos, há indícios que sustentam o ponto de vista segundo o qual existe a objecção
de um estoppel, mas uma apreciação mais atenta mostra que não são invocadas
autoridades, assim como não são apresentados argumentos em favor daquela opinião.
Para além disso, o conjunto de factos nos casos era convincente quanto à inexistência de
um governo de facto, e as afirmações eram desnecessárias para a conclusão. No caso
Schultz, a reclamação de um cidadão americano era dirigida contra o governo Juarez, pela
perda de bens devido a incêndio entre as linhas de batalha lançadas pelas forças de
Miramon contra o governo Juarez. Patentemente, a reclamação contra o governo Juarez
não tinha fundamento, em primeiro lugar porque tinha ocorrido no decurso de guerra e,
em segundo lugar, porque as forças de Miramon nunca tinham, efetivamente, constituído
um governo de facto. O caso Jansen, perante o mesmo tribunal, referia-se ao valor de uma
barcaça apreendida pelos soldados de Miramon para fugirem do país face ao exército
vitorioso de Juarez.

5. Bolivar Railways Company (Reino Unido/Venezuela), Comissão Mista de


Reclamações (Protocolo de 13 de fevereiro de 1903), 1903, RSA, IX, pp. 445-455,
452-453

No entanto, não é esse o fundamento com o qual se responsabilizam através do


governo as revoluções bem-sucedidas. A responsabilidade existe porque se trata da
mesma nação. As nações não morrem quando ocorre uma mudança dos seus dirigentes
ou das suas formas de governo. Estas não são mais do que a expressão de mudança na
vontade nacional. ‘O Rei morreu; viva o Rei!’ tipificou esta ideia desde tempos
imemoriais. A nação responde pelas dívidas contraídas pelo seu governo titular, e essa
responsabilidade continua através de todas as modificações das formas de governo, até
que a obrigação seja executada. A nação é responsável pelas obrigações de uma revolução
bem-sucedida desde o seu início, porque, em teoria, representou ab initio uma vontade
nacional em mudança, que se cristaliza no resultado bem-sucedido.

6.Melville E. Day and David E. Garrison c. Venezuela (n.º 38), Estados Unidos da
América/Venezuela, Sentença final, Comissão Mista (Convenção de 5 de dezembro de
1885), 2.9.1890, Moore, IV, pp. 3548-3564, 3552-3553

Há uma distinção bem assente entre um Estado e um governo ou corpo governativo.


O Estado é uma pessoa jurídica, e uma vez admitido à família dos Estados, preserva a sua
identidade como pessoa internacional, até que a perca por incorporação num qualquer
outro Estado, ou pela continuação de anarquia tão prolongada que torne a reconstituição
impossível ou altamente improvável. (Halleck, International Law, p. 29) Como pessoa
investida de uma vontade que é exercida através do governo como órgão ou instrumento
de sociedade, daqui decorre como consequência necessária que meras mudanças internas
que resultem no afastamento de um qualquer órgão particular para a expressão da sua
vontade, e a substituição por outro, não podem alterar as relações da sociedade com os

106
107 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

outros membros da família dos Estados enquanto o Estado, por si, conservar a sua
personalidade. O Estado permanece, embora os governos possam mudar; e as relações
internacionais, se hão-de ter alguma permanência ou estabilidade, só podem ser
estabelecidas entre Estados, e apoiar-se-iam em areias movediças se formas acidentais de
governo se lhe substituíssem como base das relações internacionais. Idem enim est
populus Romanus sub regibus, consulibus, imperatoribus, diz Grócio, como argumento
para a responsabilidade continuada do Estado, ainda que o carácter particular da
responsabilidade a que se refere seja uma obrigação de respeitar os tratados (Grócio, L.
II, cap. Ix, v. 8). Todos os Pactos e tratados são nacionais e vinculam os príncipes legais,
ainda que concluídos com usurpadores (Tindall, Law of Nations; Phillimore, 1, p. 174).
É posição clara do direito das nações, diz Kent, que os tratados não são afetados, nem são
enfraquecidas obrigações positivas de qualquer tipo com outras potências ou com
credores devido a mudanças internas na forma do governo. O corpo político é o mesmo,
embora possa ter um órgão diferente de comunicação. (Kent, col. 1, pp. 25-26) Um Estado
responde pelos factos ilícitos cometidos relativamente ao governo ou súbditos de outro
Estado, independentemente de qualquer mudança transitória na forma de governo ou na
pessoa dos seus dirigentes. Os Tratados de Amizade, Comércio e Aliança Real continuam
em vigor; as dívidas públicas, quer para com o Estado, quer do Estado, não se extinguem
nem são afetadas. (Halleck, p. 77).
Um Estado sujeito a mudanças periódicas na forma do seu governo ou das pessoas que
o dirigem terá talvez um maior interesse na manutenção desta doutrina do que outro
ancorado de forma mais segura nos princípios de ordem social, mas aquela é
absolutamente necessária ao conjunto da família dos Estados, como única condição
possível de relação entre as nações. Se não fosse dever de um Estado respeitar as suas
obrigações internacionais, apesar das mudanças internas, quer da forma de governo, quer
das pessoas que exercem o poder governativo, as nações não poderiam tratar entre si com
qualquer garantia de que os seus acordos seriam executados, e as consequências para a
paz e bem-estar do Mundo seriam desastrosas. Podem além disso dizer-se, com grande
certeza, que um governo de facto, uma vez investidos nos poderes que são necessários
para lhe conferir esse carácter, pode vincular o Estado com o mesmo alcance e efeitos
jurídicos que um governo de jure. Com efeito, como apontou Austin, cada governo, assim
designado em sentido próprio, é um governo de facto. Um governo de jure mas não de
facto, diz, é um que era governo, e que (…) devia ainda ser governo, mas que o não é no
plano dos factos. (Austin, Juris, vol. 1, 336).

Questões:

a) Tendo em conta os excertos do caso Tinoco, distinga governo de jure e de facto e


explique qual a consequência de qualificar o Governo Tinoco como um governo de jure
e de facto. Porque é que era essa a posição defendida pela Grã-Bretanha? Qual a posição
da Costa Rica?
b) A certo ponto são citados dois especialistas em direito internacional, Moore e
Borchard, a propósito de um princípio geral de direito internacional. Qual é esse
princípio? Como é que o relaciona com o tema do reconhecimento de governo?
c) Qual o valor do não-reconhecimento do Governo Tinoco por parte dos Estados Unidos
da América? Justifique com passagens do caso.
d) Qual é a doutrina do reconhecimento de governo adotada pelo Tratado de Washington
de 20 de dezembro de 1907? Justifique.

107
108 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

e) Em Bolivar Railways Company é afirmado que “a responsabilidade existe porque se


trata da mesma nação. As nações não morrem quando ocorre uma mudança dos seus
dirigentes ou das suas formas de governo.” Relacione esta passagem com o que aprendeu
sobre o princípio da continuidade do Estado.
f) Explique, citando partes da decisão, como é que em Melville E. Day and David E.
Garrison c. Venezuela é distinguido o Estado do governo.

ESTUDO DE CASO: PROCLAMAÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA: O RECONHECIMENTO


DOS ESTADOS UNIDOS

In https://history.state.gov/historicaldocuments/frus1911/ch96

1. Do Encarregado de Negócios para o Secretário de Estado, Legação Americana,


Lisboa, 10 de fevereiro de 1911

Excelência: Ontem, durante uma conversa com o Ministro dos Negócios Estrangeiros,
este trouxe à baila o assunto do reconhecimento e expressou longamente o quanto
lamentava que os Estados Unidos não tivessem seguido o exemplo do Brasil e outros
países latino-americanos de oferecerem reconhecimento sem quaisquer condições logo
após a proclamação da República. Disse que tinha sido uma grande surpresa para os
membros do Governo Provisório verem os Estados Unidos a seguirem a liderança das
monarquias europeias nesta atitude para com a República Portuguesa.
Esforcei-me por explicar ao Ministro que a ação do nosso Governo relativamente à nova
República se baseia nos precedentes da política que tem sido seguida pelos Estados
Unidos relativamente ao reconhecimento de governos provisórios noutros países, e que
logo que o Povo português determine, através do voto decisivo da Assembleia
Constituinte ou de qualquer outra maneira inquestionável, a forma e a natureza do futuro
governo do país, estava certo que os Estados Unidos seriam dos primeiros a estabelecer
relações oficiais com o Governo que vier a ser constituído de acordo com a vontade do
povo de Portugal. Como exemplos, referi a atitude dos Estados Unidos relativamente à
proclamação da República em França e no Brasil. O Senhor Machado retorquiu que
compreendia que a atitude dos Estados Unidos nesta questão se baseasse em precedentes,
mas que considerava que se justificava uma exceção neste caso, tomando em
consideração o controlo não contestado do País pelos Republicanos, em conformidade
com o desejo unânime, em sua opinião, do povo Português. Continuou dizendo que, se o
Governo Provisório não quer pedir o reconhecimento de nenhum País, esperava que os
Estados Unidos, como república, considerassem adequado encorajar a jovem República
com um reconhecimento rápido. (…)
(…)
George Lorillard.

2. Do Secretário de Estado para o Encarregado de Negócios Americano,


Departamento de Estado, Washington, 3 de março de 1911

Excelência: O Departamento recebeu o seu [telegrama] n.º 83 de 10 de fevereiro relatando


a síntese de uma conversa recente entre o Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal
e V. Ex.ª relativa ao reconhecimento do atual Governo desse País.
108
109 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

A sua legação foi instruída por telegrama de 2 de janeiro sobre a atitude deste Governo,
naquela altura, relativamente ao Governo de facto de Portugal e, no dia 31 do mesmo
mês, foi informado de que a atitude deste Governo era, ainda, a de uma expectativa
benevolente. Esta atitude relativamente ao novo Governo de Portugal continua hoje a ser
exatamente a mesma.
(…)
P. C. Knox

3. Do Secretário de Estado para o Encarregado de Negócios Americano,


Departamento de Estado, Washington, 6 de junho de 1911

Assim que a Assembleia Constituinte, que reúne a 19 do corrente, tiver falado em nome
do povo e determinado a forma de governo a ser adotada por Portugal, está instruído para
informar o Ministro dos Negócios Estrangeiros do reconhecimento oficial do seu
Governo pelo Governo dos Estados Unidos da América. Deverá estar preparado para o
fazer, se possível, no mesmo dia em que a Assembleia Constituinte decida com caráter
definitivo. (…)
Knox.

4. Do Encarregado de Negócios para o Secretário de Estado, Legação Americana,


Lisboa, 19 de junho de 1911

A Assembleia Constituinte reuniu esta tarde e proclamou formal e definitivamente a


República. Em conformidade com as instruções de V. Ex.ª de 6 e 7 de junho, acabei de
entregar ao Ministro dos Negócios Estrangeiros uma nota que declara que o Governo da
República Portuguesa foi nesta data reconhecido oficialmente pelo Governo dos Estados
Unidos da América, sendo a primeira grande potência a fazê-lo.
Lorillard.

5. Sem título, Legação Americana, Lisboa, 20 de junho de 1911

Excelência: Relativamente ao meu telegrama de 19 de junho, 19 horas, sobre o


reconhecimento da República Portuguesa pelo Governo dos Estados Unidos da América,
tenho a honra de informar que a Assembleia Nacional Constituinte teve a sua sessão
inaugural ontem à tarde e que, no meio de muito entusiasmo popular, proclamou
unanimemente a forma republicana de governo (…).
Pelas 18h30m, fui recebido no Ministério dos Negócios Estrangeiros pelo Ministro dos
Negócios Estrangeiros, a quem transmiti verbalmente a informação sobre o
reconhecimento da República Portuguesa pelo Governo dos Estados Unidos e, ao mesmo
tempo, entreguei-lhe uma nota oficial sobre o assunto (…). O Senhor Machado pareceu
encantado com o facto de o reconhecimento pelo nosso Governo ter ocorrido quase
imediatamente a seguir à Proclamação oficial, e pediu-me que transmitisse a V. Ex.ª o
seu profundo reconhecimento por esta ação tão célere. À noite uma multidão de várias
centenas de pessoas, com uma banda musical, fez uma manifestação amigável em frente
à Legação. (…). Até à data, nenhuma outra potência estrangeira reconheceu a República,
com exceção de alguns países latino-americanos que já o tinham feito pouco tempo depois
da revolução. (…)
George Lorillard.

109
110 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

Questões:
a) Qual é a questão discutida nesta troca de correspondência entre o Encarregado de
Negócios norte-americano e o Secretário de Estado dos Estados unidos?
b) Identifique passagens da diferente correspondência em que resulte clara a dimensão
(também) política do reconhecimento de Governo.
c) Que evento era (e foi) determinante para os Estados Unidos reconhecerem o Governo
de Portugal? Antes do reconhecimento, como qualificavam os Estados Unidos aquele
Governo?
d) No seu entender, o que justificava a pressão do MNE português sobre os Estados
Unidos para efeitos do reconhecimento do seu Governo?

ESTUDO DE CASO: A PRÁTICA DO NÃO-RECONHECIMENTO EM ÁFRICA

1. Organização de Unidade Africana, Declaração sobre o quadro para uma resposta


da OUA às mudanças inconstitucionais de Governos, AHG/Decl.5 (XXXVI), 2000

In: https://archives.au.int/bitstream/handle/123456789/2890/AHG%20Decl%201-5%20XXXVI-AHG%20St%201-
3%20XXXVI%20_P.pdf?sequence=1&isAllowed=y

Nós, Chefes de Estado e de Governo da Organização da Unidade Africana, reunidos


na Trigésima-Sexta Sessão Ordinária da nossa Conferência em Lomé, Togo, de 10 a 12
de julho de 2000, passámos em revista os desenvolvimentos políticos no Continente e,
em particular, o estado de consolidação da democracia em África.
Expressamos a nossa grave preocupação acerca da ressurgência do fenómeno de
golpes de Estado em África. Reconhecemos que essa evolução constitui uma ameaça para
a paz e a segurança no Continente e que é uma tendência muito perturbadora e, em
definitivo, um sério retrocesso para o processo de democratização em curso no
Continente.
Reconhecemos que o fenómeno de golpes de Estado resultou em flagrantes violações
dos princípios básicos da nossa Organização continental e dos princípios das Nações
Unidas. Esse fenómeno contraria também e é uma violação da posição adotada pela nossa
Organização em Harare, em 1997, na sequência do golpe de Estado na Serra Leoa, em
que inequivocamente condenámos e rejeitámos qualquer mudança inconstitucional de
governo.
Reafirmamos que os golpes de Estado constituem um triste e inaceitável
desenvolvimento no nosso Continente, que acontece num momento em que os nossos
povos estão empenhados no respeito pelo primado do direito baseado na vontade do povo
expresso através das urnas e não através das armas.
Evocamos a nossa Decisão AHG/141 (XXXV), adotada durante a 35ª Sessão Ordinária
da nossa Conferência, em que unanimemente rejeitámos qualquer mudança
inconstitucional como um ato anacrónico inaceitável, que está em contradição com o
nosso compromisso em promover princípios e condições democráticos.
(…)

110
111 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

Com vista a dar efeito prático aos princípios que enunciámos, acordamos na seguinte
definição de situações que podem ser consideradas como situações de mudança
inconstitucional de governo:
i) golpe de Estado militar contra um governo democraticamente eleito;
ii) intervenção de mercenários para substituir um governo democraticamente eleito;
iii) uma intervenção de grupos armados dissidentes e movimentos rebeldes para
derrubar um governo resultante de eleições democráticas;
iv) a recusa de um governo que administra de deixar o poder ao partido vencedor
depois de eleições livres, justas e regulares;
Decidimos também que:
- Sempre que num Estado Membro ocorrer uma mudança inconstitucional tal como
previsto na definição acima, o Presidente em Exercício e o Secretário Geral da OUA
devem imediata e publicamente condenar essa mudança e apelar para um rápido retorno
à ordem constitucional. O Presidente em Exercício e o Secretário Geral devem também
transmitir um claro e inequívoco aviso aos perpetradores da mudança inconstitucional no
sentido de que, em nenhuma circunstância a sua ação ilegal pode ser tolerada ou
reconhecida pela OUA. A este respeito, o Presidente em Exercício e o Secretário Geral
devem exortar para uma ação consistente aos níveis bilateral, inter-Estados, sub-regional
e internacional. O Órgão Central deve reunir-se a seguir, urgentemente, para discutir a
questão.
(…)

2. Ato Constitutivo da União Africana


In: https://au.int/sites/default/files/treaties/7758-treaty-0021_-_constitutive_act_of_the_african_union_p.pdf

Artigo 4
Princípios
A União Africana funciona em conformidade com os seguintes princípios
fundamentais:
(…)
p) Condenação e rejeição de mudanças inconstitucionais de governos.

3. Organização de Unidade Africana, Sexagésima-Sexta Sessão Ordinária do


Conselho de Ministros, Harare, Zimbabué, 28-31 de maio de 1997
In: https://au.int/sites/default/files/decisions/9622-
council_en_28_31_may_1997_council_ministers_sixty_sixth_ordinary_session.pdf

SERRA LEOA – (DOC. CM/2004 (LXVI) - C –


Conselho:
(a) CONDENA INEQUIVOCA E FIRMEMENTE o golpe de estado que teve lugar
na Serra Leoa a 25 de maio, 1997; e apela ao imediato restabelecimento da ordem
constitucional;
(b) SOLICITA a todos os países Africanos, e à Comunidade Internacional em geral,
de se absterem de reconhecer o novo regime e de prestar apoio sob qualquer forma aos
perpetradores do golpe de estado;
(c) SOLICITA aos líderes da CEDEAO que auxiliem o povo da Serra Leoa no
restabelecimento da ordem constitucional do país; e APELA ao apoio de outros países
Africanos e da Comunidade Internacional em geral, a esse respeito;
111
112 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

(d) SALIENTA a necessidade imperativa de implementar o Acordo de Abidjan que


continua a servir como um quadro viável para a paz, estabilidade e reconciliação na Serra
Leoa.

CM/Dec.357 (LXVI)

Questões:
a) Da leitura destes textos pode dizer que estas organizações internacionais regionais
adotaram uma posição que, ao arrepio da neutralidade do DI, aponta para a defesa de uma
determinada forma de organização política do Estado?
b) É possível afirmar que a prática da OUA e a “constitucionalização” na UA do não-
reconhecimento de governos saídos de golpes de estado em África apontam para uma
alteração no paradigma clássico dos reconhecimentos de governo? Identifique qual.
c) A consolidação em África desta prática sobre reconhecimento de governo corresponde,
em seu entender, a uma evolução a nível regional do entendimento do princípio da não-
intervenção nos assuntos internos dos Estados?

ESTUDO DE CASO: VENEZUELA, “MADURO VS. GUAIDÓ”

1. Carta da Organização de Estados Americanos

Artigo 9
Um membro da Organização, cujo governo democraticamente constituído seja deposto
pela força, poderá ser suspenso do exercício do direito de participação nas sessões da
Assembleia Geral, da Reunião de Consulta, dos Conselhos da Organização e das
Conferências Especializadas, bem como das comissões, grupos de trabalho e demais
órgãos que tenham sido criados.

a) A faculdade de suspensão somente será exercida quando tenham sido infrutíferas as


gestões diplomáticas que a Organização houver empreendido a fim de propiciar o
restabelecimento da democracia representativa no Estado membro afetado;
b) A decisão sobre a suspensão deverá ser adotada em um período extraordinário de
sessões da Assembleia Geral, pelo voto afirmativo de dois terços dos Estados membros;
c) A suspensão entrará em vigor imediatamente após sua aprovação pela Assembleia
Geral;
d) Não obstante a medida de suspensão, a Organização procurará empreender novas
gestões diplomáticas destinadas a coadjuvar o restabelecimento da democracia
representativa no Estado membro afetado;
e) O membro que tiver sido objeto de suspensão deverá continuar observando o
cumprimento de suas obrigações com a Organização;
f) A Assembleia Geral poderá levantar a suspensão mediante decisão adotada com a
aprovação de dois terços dos Estados membros; e
g) As atribuições a que se refere este artigo se exercerão de conformidade com a
presente Carta.

112
113 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

2. Conselho Permanente da Organização dos Estados Americanos, Resolução sobre


a situação na Venezuela, 10 de janeiro de 2019

In https://www.oas.org/en/media_center/press_release.asp?sCodigo=E-001/19

O Conselho Permanente da Organização dos Estados Americanos,

Reafirmando o direito dos povos das Américas à democracia e a obrigação dos seus
governos de a promoverem e defenderem, tal como expresso no Artigo 1 da Carta
Democrática Interamericana,
Recordando que, através da resolução AG/RES. 2929 (XLVIII-O/18), de 5 de junho
de 2018, a Assembleia Geral declarou que o processo eleitoral de 20 de maio de 2018 na
Venezuela carecia de legitimidade, por não ter tido a participação de todos os atores
políticos venezuelanos, por não ter cumprido standards internacionais e por ter sido
levado a cabo sem as garantias necessárias de um processo livre, justo, transparente e
democrático,
Considerando que o período presidencial 2019-2025, que começa na Venezuela a 10
de janeiro de 2019, é resultado de um processo eleitoral ilegítimo,
Sublinhando a autoridade constitucional da Assembleia Nacional, democraticamente
eleita,
Reiterando a sua profunda preocupação com o agravamento da crise política,
económica, social e humanitária na Venezuela, que resulta na rutura da democracia e em
violações graves de direitos humanos naquele Estado, e com a falta de diligência do
Governo da Venezuela em respeitar os standards fundamentais interamericanos de
direitos humanos e democracia,
Reconhecendo que, por esse motivo, um número significativo de venezuelanos tem
sido obrigado a deixar o País por não dispor das necessidades básicas,
Reiterando a sua grande preocupação com o colapso do sistema de saúde venezuelano,
que levou à reemergência de doenças infeciosas antes erradicadas na Venezuela e em
países vizinhos e na região mais alargada,
Notando que o êxodo de venezuelanos está a ter impacto na capacidade de os países
da região cumprirem as suas necessidades humanitárias e coloca desafios à saúde pública
e segurança.
Notando, a este respeito, a Declaração de Quito sobre a mobilidade humana de
cidadãos venezuelanos, de 4 de setembro de 2018, e o seu Plano de Ação, adotado a 23
de novembro de 2018,
Condenando, nos termos mais veementes, as detenções arbitrárias, a falta de um
processo equitativo e a violação de outros direitos humanos de prisioneiros políticos pelo
Governo da Venezuela,
(…)
Resolve:
Não reconhecer a legitimidade do novo mandato de Nicolas Maduro a partir de 10 de
janeiro de 2019;
Reafirmar que só através do diálogo nacional, com a participação de todos os atores
políticos venezuelanos e outras partes interessadas pode alcançar-se a reconciliação
nacional e serem acordadas as condições necessárias para realizar um novo processo
eleitoral que realmente reflita a vontade dos cidadãos venezuelanos e resolva a atual crise
naquele país;

113
114 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

Instar todos os Estados Membros e convidar os Observadores Permanentes da OEA a


adotarem, em conformidade com o direito internacional e com a sua legislação nacional,
as medidas diplomáticas, políticas, económicas e financeiras que considerem adequadas,
para contribuírem para restaurar, rapidamente, a ordem democrática na Venezuela;
Apelar a novas eleições presidenciais, com todas as garantias necessárias de um
processo livre, justo, transparente e legítimo, a ter lugar o mais rapidamente possível com
observadores internacionais;
Convidar os Estados Membros e Observadores Permanentes a implementarem
medidas para enfrentar a crise humanitária na Venezuela e Países que estão a ser
atingidos, através do apoio das organizações internacionais e regionais adequadas;
Instar o regime venezuelano a permitir a entrada imediata de ajuda humanitária para
as pessoas na Venezuela (…);
Exigir a libertação imediata e incondicional de todos os prisioneiros políticos;
Expressar a continuada solidariedade da Organização para com o povo venezuelano, e
o seu compromisso em manter-se ocupado com a situação na Venezuela, e a apoiar
medidas diplomáticas que facilitem a restauração das instituições democráticas e o
respeito pleno pelos direitos humanos;
Instruir o Secretário Geral para que transmita o texto desta resolução ao Secretário
Geral das Nações Unidas.

3. Venezuela: Declaração do Alto Representante, em nome da União Europeia,


sobre os últimos acontecimentos na Venezuela, 30 de junho de 2020

Em 29 de junho, o regime de Nicolás Maduro anunciou que a embaixadora da UE


tinha 72 horas para abandonar o país. A UE condena com firmeza esta decisão e lamenta
profundamente o maior isolamento internacional a que conduzirá. Apelamos a que esta
decisão seja anulada.
A profunda crise política e socioeconómica que a Venezuela atravessa só pode ser
resolvida através de uma solução pacífica e negociada entre os venezuelanos. Esta solução
tem de basear-se em eleições credíveis, no reconhecimento e respeito do papel e da
independência de todas as instituições democraticamente eleitas, nomeadamente a
Assembleia Nacional, na libertação de todos os presos políticos e na observância dos
direitos humanos e das liberdades fundamentais. A UE reafirma os seus compromissos
de apoiar o povo venezuelano, contribuir para resolver a crise política e aliviar o
sofrimento da população através da sua ajuda humanitária.
A República da Macedónia do Norte, o Montenegro e a Albânia* – países candidatos –, a Bósnia-Herzegovina – país do Processo
de Estabilização e de Associação e potencial candidato –, e a Islândia e o Listenstaine – países da EFTA membros do Espaço
Económico Europeu –, bem como a Ucrânia, a República da Moldávia e a Geórgia, subscrevem a presente declaração.

ESTUDO DE CASO: BIELORRÚSSIA

1. Bielorrússia: Declaração do Alto Representante, em nome da União Europeia,


sobre a escalada da violência e intimidação contra membros do Conselho de
Coordenação, 11 de setembro de 2020

A União Europeia lamenta o desrespeito cada vez mais explícito pelo Estado de direito
na Bielorrússia, em particular a escalada de violência e o exílio forçado de membros do

114
115 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

Conselho de Coordenação, em violação do direito nacional da Bielorrússia e das suas


obrigações internacionais.
Todos os membros do Praesidium do Conselho de Coordenação, com exceção de
Sviatlana Alexeivitchda, vencedora do Prémio Nobel, foram detidos ou forçados ao
exílio. Num espírito de solidariedade, os diplomatas da UE permanecem junto de
Sviatlana Alexeivitchda de forma intermitente. Maxim Znak, Maryja Kaliesnikava,
Siarhei Dyleusky e Liliya Ulasova foram detidos ilegalmente. Anteriormente, Pavel
Latushka e Volha Kavalkova tinham sido forçados ao exílio.
A sociedade civil e os intervenientes que participam nos debates sobre o futuro da
Bielorrússia, incluindo os membros do Conselho de Coordenação, devem ser protegidos
contra a intimidação, o exílio forçado, a detenção arbitrária e a violência. Por conseguinte,
a UE exorta as autoridades bielorrussas a libertarem imediatamente todas as pessoas
detidas ilegalmente, incluindo os presos políticos, e a assegurarem que esses atos ilegais
não se continuem a verificar/não se repitam.
A União Europeia recorda a necessidade de um diálogo nacional inclusivo com a
sociedade em geral, nomeadamente com o Conselho de Coordenação, que conduza a uma
solução pacífica e dê uma resposta positiva ao povo bielorrusso, que reclama novas
eleições democráticas. O assédio, a violência e o exílio forçado contra membros do
Conselho de Coordenação e outros representantes da sociedade civil são contrários a esse
objetivo. O empenhamento impressionante do povo bielorrusso em favor de um futuro
democrático e o apelo permanente ao respeito dos seus direitos fundamentais merecem
uma resposta diferente.
A UE reitera a sua determinação em impor sanções contra as pessoas responsáveis pela
violência, pela repressão de protestos pacíficos e pela falsificação de resultados eleitorais
e está disposta a tomar novas medidas restritivas, conforme necessário.

2. Bielorrússia: Declaração do Alto Representante, em nome da União Europeia,


sobre a alegada "tomada de posse" de Aleksandr Lukashenko, 24 de setembro de 2020

Recordando a declaração emitida em 11 de setembro pelo alto representante, em nome


da União Europeia, a UE volta a reiterar que as eleições presidenciais de 9 de agosto na
Bielorrússia não foram livres nem justas. A União Europeia não reconhece os resultados
falsificados dessas eleições. Por conseguinte, a alegada "tomada de posse" de 23 de
setembro de 2020 e o novo mandato reivindicado por Aleksandr Lukashenko carecem de
legitimidade democrática.
Esta "tomada de posse" contradiz diretamente a vontade de uma grande parte da
população bielorrussa – que se tem expressado desde as eleições por um grande número
de protestos pacíficos sem precedentes – e contribui apenas para agravar ainda mais a
crise política na Bielorrússia.
A posição da União Europeia é clara: Os cidadãos bielorrussos têm o direito de ser
representados por quem livremente escolherem em novas eleições inclusivas,
transparentes e credíveis.
Estamos impressionados e sensibilizados com a coragem do povo bielorrusso, que
continua a manifestar-se pacificamente pela democracia e pelos seus direitos
fundamentais, apesar da repressão brutal das autoridades bielorrussas. Manifestamos-lhe
a nossa solidariedade e apoiamos inteiramente o seu direito democrático de eleger o seu
presidente em novas eleições livres e justas, sob a supervisão da OSCE/ODIHR.

115
116 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

Reiteramos a nossa expectativa de que as autoridades bielorrussas se abstenham


imediatamente de praticar mais atos de repressão e violência contra o povo bielorrusso e
libertem imediata e incondicionalmente todas as pessoas detidas, incluindo os presos
políticos.
A UE continua convicta de que um diálogo nacional inclusivo e uma resposta positiva
às reivindicações do povo bielorrusso de que sejam realizadas novas eleições
democráticas são o único meio de encontrar para a grave crise política na Bielorrússia
uma solução que respeite a vontade do povo bielorrusso.
Tendo em conta a atual situação, a UE está a repensar a sua relação com a Bielorrússia.

A República da Macedónia do Norte, o Montenegro, a Sérvia e a Albânia* – países candidatos –, a Bósnia-


Herzegovina – país do Processo de Estabilização e de Associação e potencial candidato – e o Listenstaine – país da
EFTA membro do Espaço Económico Europeu –, bem como a Ucrânia, subscrevem a presente declaração.
* A República da Macedónia do Norte, o Montenegro, a Sérvia e a Albânia continuam a fazer parte do Processo de
Estabilização e de Associação.

Questões:
a) Qual a questão tratada nos dois documentos acima a propósito da Venezuela?
b) Identifique os excertos daqueles dois documentos (sobre a Venezuela) que apontam
no sentido da preferência por uma teoria da legitimidade no reconhecimento de Governo?
c) Faça o mesmo exercício em relação aos documentos da UE sobre a situação na
Bielorrússia.
d) Os quatro documentos apresentados são adotados por Organizações Internacionais.
Com efeito, tem havido uma “transferência progressiva” daqueles reconhecimentos para
a esfera das Organizações Internacionais. Por um lado, porque serão mais “competentes”
para o fazer; por outro lado, porque a multilateralização daquela questão diminui o risco
de ingerência nos assuntos internos. Explique e demonstre as vantagens relativamente ao
reconhecimento de Governo mais “tradicional”.

RECONHECIMENTO DE INSURGÊNCIA

ESTUDO DE CASO: A CAPACIDADE CONVENCIONAL DA FRENTE REVOLUCIONÁRIA


UNIDA (SERRA LEOA)

1. Acordo de Paz na Serra Leoa, entre o Governo da Serra Leoa e a Frente


Revolucionária Unida (Conselho de Segurança S/1999/777, de 12 de julho de 1999)
In: https://peacemaker.un.org/sites/peacemaker.un.org/files/SL_990707_LomePeaceAgreement.pdf

CARTA DE 12 DE JULHO DE 1999, DO ENCARREGADO DE NEGÓCIOS AD


INTERIM DA MISSÃO PERMANENTE DO TOGO NAS NAÇÕES UNIDAS
DIRIGIDA AO PRESIDENTE DO CONSELHO DE SEGURANÇA.

Tenho a honra de transmitir, por esta via, o texto do Acordo de Paz entre o Governo
da Serra Leoa e a Frente Revolucionária Unida concluído em Lomé a 7 de julho de 1999
(ver anexo).
Ficarei muito agradecido se puder providenciar a circulação desta carta e do seu anexo
como documento do Conselho de Segurança.

116
117 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

(Assinado) Kodjo MENAN


Encarregado de Negócios ad interim

Anexo
Acordo de Paz entre o Governo da Serra Leoa e a Frente Revolucionária Unida da
Serra Leoa

Tendo reunido em Lomé, Togo, de 25 de maio de 1999 a 7 de julho de 1999, sob os


auspícios do atual Presidente da CEDEAO, Presidente Gnassingbé Eyadéma; (…)
Impulsionados pela necessidade imperativa de ir ao encontro do desejo do povo da
Serra Leoa para uma resolução definitiva da guerra fratricida no seu país e para a genuína
unidade e reconciliação nacionais;
Empenhados em promover o respeito integral pelos direitos humanos e direito
humanitário; (…)
Determinados a estabelecer uma paz e segurança duradouras; comprometem-se, daqui
em diante, a resolver todas as diferenças e queixas passadas, presentes e futuras por meios
pacíficos; e a abster-se da ameaça ou uso da força armada para promover qualquer
mudança na Serra Leoa;
Reafirmando a convicção de que a soberania pertence ao povo, e que todos os poderes,
autoridade e legitimidade do Governo assentam no povo; (…)
Guiados pela Declaração no Comunicado Final da Reunião, em Lomé, dos Ministros
dos Negócios Estrangeiros da CEDEAO, de 25 de maio de 1999, na qual sublinharam a
importância da democracia como fator de paz e segurança regionais, e tão fundamental
ao desenvolvimento socioeconómico dos Estados Membros da CEDEAO; e na qual
assumem o compromisso de consolidação da democracia e respeito dos direitos humanos,
ao passo que reafirmam a necessidade para todos os Estados Membros de consolidarem
a sua base democrática, observar os princípios de boa governação e boa gestão
económica, com vista a garantir a emergência e o desenvolvimento de uma cultura
democrática que tenha em consideração os interesses dos povos da África Ocidental; (…)
Acordam pelo presente o seguinte:

Parte Um
Cessação das hostilidades

Artigo I
Cessar-fogo
O conflito armado entre o Governo da Serra Leoa e a FRU/SL é pelo presente
terminado com efeito imediato. Em consequência, as duas partes devem garantir que uma
total e permanente cessação das hostilidades é doravante observada.
(…)
Nota: o Acordo de Paz foi assinado pelo Presidente da Serra Leoa, pelo Líder da Frente Revolucionária
Unida, pelo Presidente do Togo e da CEDEAO, pelo Presidente do Burkina Faso, pelo Presidente da
Libéria, pelo Presidente da Nigéria, pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros do Gana, pelo Ministro dos
Negócios Estrangeiros da Costa do Marfim, pelo Representante Especial do Secretário Geral das Nações
Unidas, pelo Representante da Organização de Unidade Africana, pelo Representante do Secretário
Executivo da CEDEAO, e pelo Representante da Commonwealth.

2. Conselho de Segurança, Resolução 1270 (1999), de 22 de outubro de 1999


in: http://unscr.com/en/resolutions/doc/1270

117
118 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

O Conselho de Segurança, (…)


Decidindo que a situação na Serra Leoa continua a constituir uma ameaça à paz e
segurança na região,

1. Saúda os importantes passos dados pelo Governo da Serra Leoa, a liderança da


Frente Revolucionária Unida da Serra Leoa (FRU), o Grupo Militar Observador
(ECOMOG) da Comunidade Económica dos Estados da Africa Ocidental (CEDEAO), e
a Missão de Observação das Nações Unidas na Serra Leoa (UNOSMIL) na direção da
implementação do Acordo de Paz (S/1999/777) desde a sua assinatura em Lomé a 7 de
julho de 1999, e reconhece o relevante papel do Comité de Implementação Conjunto
estabelecido pelo Acordo de Paz sob a presidência do Presidente do Togo;
2. Solicita às partes que cumpram todos os seus compromissos do Acordo de Paz para
facilitar o restabelecimento da paz, estabilidade, reconciliação nacional e
desenvolvimento na Serra Leoa; (…)

3. Tribunal Especial para a Serra Leoa, Procurador c. Morris Kallon e Brime Bazzy
Kamara, Juízo de Recurso, Decisão sobre a Impugnação da Jurisdição: Amnistia do
Acordo de Lomé, 13 de março de 2004
in: https://www.legal-tools.org/doc/b67cdd/pdf

(…)
B. Têm os insurgentes a capacidade para celebrar tratados?
45. Não obstante a falta de unanimidade entre os jus-internacionalistas relativamente
ao fundamento da obrigação dos insurgentes de respeitarem o disposto no Artigo 3
Comum às Convenções de Genebra, atualmente não existem dúvidas que esta norma
vincula do mesmo modo Estados e insurgentes, e que os insurgentes estão sujeitos ao
direito internacional humanitário. Esse facto, contudo, só por si não atribui à FRU [Frente
Revolucionária Unida] personalidade jurídica nos termos do direito internacional.
46. O Artigo 3 Comum às Convenções de Genebra reconhece a existência de “Partes
no conflito”. O penúltimo parágrafo do Artigo 3 Comum dispõe que “As Partes no
conflito esforçar-se-ão também por pôr em vigor, por meio de acordos especiais, todas ou
parte das restantes disposições da presente Convenção”. Mas o último parágrafo do
Artigo 3 Comum também estabelece que “[a] aplicação das disposições precedentes não
afetará o estatuto jurídico das Partes no conflito”. Tem sido referido que o penúltimo
parágrafo “realça o facto de que partes num conflito interno estão apenas vinculadas a
cumprir o Artigo 3, permanecendo livres para ignorar a totalidade das restantes
disposições em cada uma das Convenções” [L. Moir, The Law of Internal Armed
Conflict, Cambridge, 2002, pp. 63-64], e que o último parágrafo indica que os insurgentes
podem ainda ficar sujeitos à jurisdição criminal interna do Estado. Num livro fidedigno
sobre direito internacional foi afirmado que:
um conjunto de fatores deve ser cuidadosamente examinado antes de poder ser
estabelecido se uma entidade tem personalidade jurídica e, se assim for, que direitos,
deveres e competências se aplicam no caso em questão. A Personalidade é um fenómeno
relativo que varia com as circunstâncias. [M. N. Shaw, International Law, 5th ed., 2003,
p. 176]
47. Basta dizer, para efeitos do presente caso, que ninguém sugeriu que os insurgentes
estão vinculados, porque foi-lhes atribuída personalidade pelo direito internacional de
118
119 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

uma tal natureza que tornasse possível virem a ser partes nas Convenções de Genebra.
Pelo contrário, uma teoria convincente é de que estão vinculados nos termos do direito
internacional consuetudinário a cumprir as obrigações previstas no Artigo 3 Comum que
têm por finalidade a proteção da humanidade. Sem dúvida que o Governo da Serra Leoa
considerava a FRU como uma entidade com a qual poderiam celebrar um acordo.
Contudo, não existe nada que demonstre que qualquer outro Estado tenha reconhecido a
FRU como uma entidade com a qual pudesse estabelecer relações jurídicas ou que o
Governo da Serra Leoa a tenha considerado como uma entidade em vez de uma fação
dentro da Serra Leoa.
48. Apesar do nível de organização dos insurgentes poder ser um fator na determinação
sobre se existia uma situação factual de um conflito armado interno, devemos ter presente
a distinção entre a questão factual sobre se os insurgentes estão suficientemente
organizados e a questão de direito, à qual se refere o objeto deste procedimento, se entre
eles e o governo legítimo o direito internacional considerava-os como tendo capacidade
para celebrar tratados. A FRU não tinha capacidade para celebrar tratados de forma tornar
o Acordo de Lomé um acordo internacional.
49. A conclusão parece evidente de que o Acordo de Lomé não é nem um tratado nem
um acordo equiparado a um tratado. Contudo, não tem de ter essa natureza para ser capaz
de criar, entre as partes no acordo, obrigações e direitos vinculativos no direito interno.
A consequência de não ser um tratado ou um acordo equiparado a um tratado é a de que
não cria uma obrigação para o direito internacional.

Questões:

a) Identifique o parágrafo em que os insurgentes são destinatários diretos de normas


(direitos e obrigações) internacionais.
b) Concorda com o Tribunal quando afirma que o facto de a Frente Revolucionária Unida
estar sujeita às normas de direito internacional humanitário não a torna sujeito de direito
internacional (isto é, não tem personalidade jurídica internacional)?
c) A Resolução 1270 do Conselho de Segurança não “trata” a FRU como sujeito de direito
internacional? Justifique.
d) Aceitando que os insurgentes podem ter personalidade internacional, concorda com a
posição do Tribunal ao recusar-lhes capacidade para celebrar acordos regulados pelo
direito internacional? Como qualificaria o Acordo de Paz acima referido?

4. Limitações à independência: Acordo entre os Estados Unidos e Cuba para


fornecimento de carvão ou bases navais, 16-23 de fevereiro de 1903 (excertos)
In https://history.state.gov/historicaldocuments/frus1911/d110

Os Estados Unidos da América e a República de Cuba, desejosos de executarem


plenamente as disposições do Artigo VII da Lei do Congresso aprovada a 2 de março de
1901, e do Artigo VII do anexo à Constituição da República de Cuba promulgada a 20 de
maio de 1902, que estabelece

Artigo VII. Para permitir que os Estados Unidos mantenham a independência de Cuba
e para proteger o seu povo, assim como para sua própria defesa, o Governo Cubano

119
120 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

venderá ou arrendará aos Estados Unidos as terras necessárias para fornecimento de


carvão ou para bases navais em certos pontos específicos, a serem acordados com o
Presidente dos Estados Unidos

Alcançaram um acordo para esse fim nos termos seguintes:

Artigo I. A República de Cuba arrenda aos Estados Unidos, pelo tempo necessário
para o fim de fornecimento de carvão ou do estabelecimento de bases navais, as a seguir
descritas áreas terrestres e aquáticas na ilha de Cuba.

1. Em Guantánamo (…).
2. No noroeste de Cuba (…)

Na Bahía Honda (…).


(…)

Artigo III. Enquanto que, por um lado, os Estados Unidos reconhecem a continuidade
em última instância da soberania da República de Cuba sobre as acima referidas áreas
terrestres e aquáticas, por outro, a República de Cuba consente que, durante o período de
ocupação pelos Estados Unidos das referidas áreas, nos termos deste acordo, os Estados
Unidos exercerão jurisdição e controlo plenos sobre e nas referidas áreas, com o direito
de adquirir (em condições a serem acordadas pelos dois Governos), para os fins públicos
dos Estados Unidos, qualquer terreno ou outra propriedade, por compra ou por domínio
eminente, com plena compensação dos proprietários.

O TERRITÓRIO DO ESTADO

1. TIJ, Caso Relativo à soberania sobre Pedra Branca/Pulau Batu Puteh


(Malásia/Singapura), Acórdão, 23 de maio de 2008, Col. 2008, pars. 76 e 79

76. Em apoio da sua asserção de que o Sultão de Johor não detinha soberania sobre
Pedra Branca/Pulau Batu Puteh, Singapura apresenta um outro argumento sobre aquilo
que descreve como “o conceito tradicional malaio de soberania”. Por isso, alega:
“A Malásia discorreu sobre…o conceito tradicional malaio de soberania. Este conceito
põe em causa a pretensão da Malásia a um título original. Baseia-se, principalmente, no
controlo sobre pessoas, e não no controlo sobre o território. O conceito malaio de
soberania centra-se na pessoa, não no território”.
(…)
79. Relativamente à asserção de Singapura sobre a existência de um “conceito
tradicional malaio de soberania”, baseado no controlo sobre pessoas mais do que no
controlo sobre território, o Tribunal observa que a soberania inclui ambos elementos,
pessoal e territorial. (…)

2. TIJ, Caso Delimitação Marítima no Mar Negro (Roménia c. Ucrânia), Acórdão,


3 de fevereiro de 2009, p. 85, par. 64

120
121 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

64. (…) [O]s acordo incidem sobre as “fronteiras de Estado”, expressão que só
dificilmente se aplica a zonas situadas para lá do território, incluindo o mar territorial.
(…)

3. TIJ, Caso relativo à soberania sobre Pulau Ligitan e Pulau Sipadan


(Indonésia/Malásia), Acórdão, 17 de dezembro de 2002, p. 682, par. 135

135. O Tribunal observa, além disso, que não pode tomar em consideração atos que
tiveram lugar depois da data em que o diferendo entre as Partes cristalizou, a não ser que
esses atos sejam uma continuação normal de atos anteriores e não tenham sido adotados
para reforçar a posição jurídica da Parte que neles se apoia (…).

4. TIJ, Caso Relativo às Plataformas Petrolíferas, República Islâmica do Irão c.


Estados Unidos da América, Acórdão, 6 de novembro de 2003, p. 200, par. 82

82. (…) Os Estados Unidos alegaram, para efeito da interpretação do Artigo X, n.º 1,
que o que deve ser considerado é se o petróleo das plataformas atacadas era, ou teria
podido ser, exportado para os Estados Unidos. A este propósito, questiona que as
plataformas possam considerar-se no “território” do Irão, uma vez que estão para lá do
mar territorial deste, ainda que sobre a sua plataforma continental e na sua zona
económica exclusiva. No entanto, o Tribunal não considera sustentável uma interpretação
do Tratado de 1955 que distinga, para efeito da “liberdade de comércio”, entre petróleo
no território terrestre ou no mar territorial do Irão, e petróleo produzido na sua plataforma
continental, no exercício dos seus direitos soberanos de exploração da plataforma e
direitos paralelos sobre a zona económica exclusiva.

5.TIJ, Caso da Plataforma Continental do Mar Egeu, Grécia c. Turquia, Acórdão,


19 de dezembro de 1978, Col., 1978, pp. 35 s., pars. 84-86

84. Deixando de lado o facto de o presente diferendo não poder (…) ser considerado
como referindo-se, apenas, a delimitação, seria difícil aceitar a proposição ampla de que
a delimitação é totalmente alheia à noção de estatuto territorial. Qualquer delimitação
contestada de um limite pressupõe alguma determinação do direito às áreas a serem
delimitadas e a prova histórica apresentada pelo próprio Governo grego mostra que na
prática convencional no período da Sociedade das Nações, as noções de “integridade
territorial”, “fronteiras” e “estatuto territorial” se consideravam muito próximas.

85. O diferendo refere-se à determinação das áreas respetivas de plataforma


continental sobre as quais a Grécia e a Turquia têm o direito de exercer direitos soberanos
reconhecidos pelo direito internacional. Por conseguinte, é necessário definir o limite ou
limites entre Estados vizinhos, ou seja, definir a linha ou linhas exatas em que a extensão
no espaço dos poderes e direitos soberanos da Grécia encontra os da Turquia. Quer
estejam em questão uma fronteira terrestre ou uma linha de limites da plataforma
continental, o processo é, essencialmente, o mesmo, e, inevitavelmente, envolve o mesmo
elemento de estabilidade e permanência e está sujeito à regra que exclui acordos de limites
da alteração fundamental de circunstâncias.

121
122 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

86. A segunda contenção mencionada no parágrafo 82, supra, não coloca nos seus
termos corretos a questão a ser decididas. A questão para decisão é saber-se se este
diferendo se refere ao “estatuto territorial da Grécia”, e não se os direitos controvertidos
devem, juridicamente, considerar-se como direitos “territoriais”; e um diferendo relativo
ao título sobre, e à delimitação de, áreas da plataforma continental tende, pela sua própria
natureza, a ser um diferendo relacionado com o estatuto territorial. E isto porque,
juridicamente, os direitos de um Estado costeiro sobre a plataforma continental
dependem, e decorrem diretamente, da soberania do Estado sobre o território que confina
com essa plataforma continental. Isso emerge, claramente, da ênfase dada pelo Tribunal
nos casos da Plataforma continental do Mar do Norte ao “prolongamento natural” da
terra como critério para determinar a extensão do título de um Estado costeiro sobre a
plataforma continental perante outros Estados que confinem com a mesma plataforma
continental (TIJ, Col., 1969, pp. 31 s.); e o Tribunal nota que este critério foi invocado
tanto pela Grécia como pela Turquia durante as suas negociações relativas ao objeto do
presente diferendo. (…)

6. TIJ, Caso do Templo de Preah Vihear, Camboja c. Tailândia, Acórdão, 15 de


junho de 1962, Col. 1962, p. 17 e 34-35

Em segundo lugar, enquanto que o caráter geral da fronteira estabelecido no Artigo 1


era, ao longo do Dangrek, a linha da bacia hidrográfica, a linha exata desta fronteira, em
virtude do Artigo 3, deveria ser delimitada por uma Comissão Mista Franco-Siamesa.
Deve assinalar-se, além disso, que o que havia para delimitar eram “as fronteiras” entre
o Sião e a Indochina francesa; e, isso, ainda que esta delimitação tivesse, prima facie, de
ser realizada tendo como referência o critério indicado no Artigo 1, cuja finalidade era
estabelecer a linha de fronteira. Em consequência, a linha de fronteira, teria, para todos
os efeitos, de ser a linha resultante do trabalho de delimitação, a não ser que demonstrasse
que a delimitação não era válida. (p. 17)

(p. 34) Em geral, quando dois Países definem uma fronteira entre si, um dos objetivos
principais é o de alcançar uma solução estável e definitiva. Isso é impossível se a linha
assim definida puder ser posta em causa a qualquer momento, e com base num
procedimento sempre aberto, e reclamada a sua retificação, sempre que for descoberta
uma inexatidão por referência a uma cláusula do tratado de base. Este processo poderia
continuar indefinidamente, e nunca se alcançaria o caráter definitivo [da fronteira]
enquanto possíveis erros continuassem a ser descobertos. Uma tal fronteira, longe de ser
estável, seria completamente precária. Deve perguntar-se qual a razão pela qual as Partes,
neste caso, optaram por uma delimitação, em vez de se apoiarem na cláusula do Tratado
que indicava que a linha de fronteira naquela região seria a da bacia hidrográfica. Há
tratados de limites que não fazem mais do que referir-se a uma linha da bacia hidrográfica,
ou a uma linha de cumeada, e que não dispõem sobre qualquer delimitação adicional. As
Partes no presente caso devem ter tido razões para darem este passo suplementar. Isso
apenas pode ter-se devido ao facto de considerarem a indicação da base hidrográfica como
insuficiente para alcançarem estabilidade e caráter definitivo. É precisamente para os
alcançar que se recorre a delimitações e linhas cartográficas.
Há vários fatores que apoiam este ponto de vista de que o objetivo principal das Partes
era a de alcançar estabilidade e caráter definitivo através dos acordos de fronteiras de
1904-1908. De entre as provas apresentadas ao Tribunal, e pelas declarações das próprias

122
123 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

Partes, parece claro que a questão geral das muito extensas fronteiras com a Indochina
francesa tinham sido, no período anterior a 1904, uma causa de incerteza, perturbação e
fricção, gerando aquilo que foi descrito num documento da altura, apresentado perante o
Tribunal, como um estado de “tensão crescente” nas relações entre o Sião e a França. O
Tribunal considera legítimo concluir que um objetivo importante, para não dizer
fundamental (p.35), dos acordos do período 1904-1908 (que resultou numa regulação
abrangente de todas as questões de fronteira mais importantes entre os dois Países) foi o
de pôr um termo a este estado de tensão e alcançar a estabilidade das fronteiras com base
na segurança e no seu caráter definitivo.
No Tratado de limites Franco-Siamês de 23 de março de 1907, as Partes afirmaram no
Preâmbulo que estavam desejosas de “garantir a regulação final de todas as questões
relacionadas com as fronteiras comuns da Indochina e Sião”. Um sinal adicional com o
mesmo objeto pode encontrar-se no desejo, amplamente evidenciado documentalmente,
e que foi evidenciado por ambas as Partes, por fronteiras naturais e visíveis. Mesmo se,
como o Tribunal declarou antes, esta não é, por si, uma razão para considerar que a
fronteira deve seguir uma linha natural e visível, apoia a ideia de que as Partes queriam
certeza e caráter definitivo através de linhas naturais e visíveis.
A mesma ideia é fortemente apoiada pela atitude das Partes relativamente às fronteiras
nos Tratados de 1925 e 1937. Excluindo expressamente as fronteiras do processo de
revisão de Tratados anteriores, efetuado pelos Tratados de 1925 e 1937, as Partes
testemunharam a importância fundamental que atribuíam ao caráter definitivo neste
campo. A sua atitude em 1925 e 1937 pode, com propriedade, ser tomada como
demonstração de que, da mesma forma, desejavam esse caráter definitivo no período
1904-1908.
A indicação da linha da bacia hidrográfica no Artigo 1 do Tratado de 1904 não era,
por si, mais do que uma maneira óbvia e conveniente de descrever objetivamente a linha
de fronteira, ainda que em termos gerais. Não há, no entanto, razão que leve a supor que
as Partes atribuíam uma qualquer importância especial à linha da bacia hidrográfica
enquanto tal, quando comparada com a importância muito superior, no interesse da
definitividade, de aderirem à linha cartográfica tal como delimitada e por elas aceite. O
Tribunal, por conseguinte, sente-se vinculado, como questão de interpretação do tratado,
a pronunciar-se a favor da linha tal como mapeada na área objeto do diferendo.

Povos e Movimentos de Libertação Nacional

1. Decreto da Convenção Nacional sobre a Assistência aos povos libertados, 17 de


novembro de 1792

A Convenção declara, em nome da nação francesa, que concederá fraternidade e


auxílio a todos os povos que queiram recuperar a sua liberdade e encarrega o poder
executivo de dar aos generais as ordens necessárias para acorrer em auxílio desses povos
e defender os cidadãos que tenham sido, ou possam vir a ser lesados pela causa da
liberdade.

2. Caso da Determinação da fronteira marítima (Guiné-Bissau/Senegal), 31 de julho


de 1989, RSA, vol. XX, pp. 119-213, pp. 135 ss.

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124 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

40. A Guiné-Bissau afirma que a assinatura do Acordo [entre a França e Portugal] de


1960 contradiz um corolário que decorre do princípio da autodeterminação dos povos
segundo o qual, depois de desencadeado um processo de libertação, o Estado colonizador
não pode concluir tratados que incidam sobre os elementos essenciais do direito dos
povos. Esta norma, não sendo senão um corolário, derivaria a sua existência jurídica e
carácter imperativo do princípio fundamental referido. Por conseguinte, de acordo com a
Guiné-Bissau, o princípio de autodeterminação dos povos teria como consequência lógica
uma restrição do jus tractatus do Estado colonizador a partir do início de um processo de
libertação nacional. Por outro lado, esta restrição teria o carácter de norma de jus cogens.
41. A doutrina atual do direito internacional ocupou-se abundantemente do jus cogens,
sobretudo a partir da Convenção de Viena sobre o direito dos tratados, de 1969. Uma
parte dessa doutrina faz surgir o jus cogens como conjunto de normas de hierarquia
superior. Os estudos sobre a noção de jus cogens e a identificação das normas com um tal
carácter foram muitas vezes influenciados por conceções ideológicas e por atitudes
políticas. Do ponto de vista do direito dos tratados, o jus cogens é, simplesmente, a
característica de certas normas jurídicas de não serem suscetíveis de derrogação por via
convencional.
42. O respeito pelo princípio da igualdade dos direitos dos povos e do seu direito à
autodeterminação é referido no n.º 2 do artigo 1 da Carta das Nações Unidas como um
dos objetivos da organização, e este princípio foi posteriormente objeto de formulações
globais ou parciais em certos instrumentos e documentos internacionais, nomeadamente,
da Assembleia Geral, como aquelas que constam da ‘Declaração sobre a Concessão de
Independência aos Países e Povos Coloniais’ (resolução 1514 (XV)), de 1960, invocada
várias vezes pela Guiné-Bissau no decurso da presente arbitragem (cf., p. e., Memória,
vol. I, pp. 139, 141 e 145; PV/1, pp. 113 e 122; PV/13, pp. 112 e 113) e a ‘Declaração
sobre os Princípios de Direito Internacional Referentes às Relações de Amizade e
Cooperação entre os Estados’ (resolução 2625 (XXV)), de 1970.
43. A Guiné-Bissau apresenta a regra segundo a qual o jus tractatus sofreria uma
restrição a partir do início de um processo de libertação, como corolário do princípio do
direito de autodeterminação dos povos. No entender do Tribunal, a relação entre estas
duas proposições não é um caso de corolário em que a verdade de uma proposição possa
ser deduzida através de uma simples operação de lógica formal. A Guiné-Bissau não
aduziu prova ou demonstração de que a relação lógica que existe entre as normas seja a
de um corolário. Não é suficiente a simples afirmação de que entre as duas proposições
há uma certa relação lógica. A regra invocada pela Guiné-Bissau tem um conteúdo que
não pode ser deduzido do direito de autodeterminação dos povos. Constitui uma norma
jurídica independente do princípio de autodeterminação e que está mais ligada ao
princípio da efetividade e às regras sobre a formação do Estado na esfera internacional.
44. Um Estado nascido de um processo de libertação nacional tem o direito de aceitar
ou não os tratados que o Estado colonizador tenha concluído depois do desencadear do
processo. Neste domínio, o novo Estado goza de uma liberdade total e absoluta, e não
existe nenhuma norma imperativa que obrigue a declarar nulos ou a recusar os tratados
concluídos durante este período.
Na presente arbitragem, a Guiné-Bissau não demonstrou que a norma por si invocada
se tivesse tornado numa regra de jus cogens, quer pela via consuetudinária, quer pela
formação de um princípio geral de direito.
45. No presente caso, a Guiné-Bissau alega que a França, ao assinar o Acordo de 1960,
violou em prejuízo do Senegal um corolário do princípio da autodeterminação dos povos,

124
125 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

segundo o qual o Estado colonizador não podia concluir tratados que incidissem sobre os
elementos essenciais do direito dos povos depois do desencadear de um processo de
libertação nacional. De acordo com a Guiné-Bissau, este Acordo seria nulo e, tratando-se
de uma norma de jus cogens, o Senegal não teria o direito de confirmar o tratado. A norma
em que se apoia a Guiné-Bissau existe em direito internacional, mas, como se diz no
parágrafo precedente, não pertence ao jus cogens. Por conseguinte, o Senegal tinha
liberdade total e absoluta de aceitar ou não o Acordo de 1960. Em virtude desta faculdade,
o Senegal aceitou-o e invoca agora a sua aplicação perante este Tribunal. A Guiné-Bissau,
pelo seu lado, não tem o direito de pedir ao Tribunal a nulidade do Acordo de 1960
baseando-se numa violação da norma invocada pela França, em prejuízo do Senegal.
46. A Guiné-Bissau sustenta igualmente que Portugal teria violado, em seu detrimento,
a mesma regra já referida, a qual não seria mais do que um corolário do princípio da
autodeterminação dos povos. Afirma, com mais precisão, que em 1960 Portugal não tinha
competência para assinar o Acordo: ‘Nem uma nem outra das Potências coloniais
dispunha, em 1960, da plenitude de soberania necessária para concluir [tratados]’ (PV/3,
p. 133).
47. Para provar a aplicabilidade desta regra ao caso concreto, a Guiné-Bissau procura
demonstrar que, em 1960, data do Acordo franco-português, o processo de libertação na
Guiné já se tinha iniciado.
Tanto na sua réplica como no decorrer das audiências, a Guiné-Bissau descreveu,
sobretudo, a evolução do processo de libertação nacional na província portuguesa da
Guiné. De acordo com as provas fornecidas, o período que medeia entre 1955 e 1960
caracteriza-se pela fundação, na Guiné ou no estrangeiro, de diversas associações,
algumas clandestinas, que declaravam ter como finalidade última a independência do seu
país. Assim, é criado em 1955 em Bissau o Movimento da Independência Nacional da
Guiné portuguesa (MING), formado por um grupo de comerciantes, de funcionários e de
estudantes, movimento que se extingue no ano seguinte. Em setembro de 1956 é fundado
em Bissau o Partido Africano da Independência (PAI), o qual, a partir de 1960, se
designará PAIGC. Em 1958, surge o Movimento Anti-Colonial (MAC), que resulta dos
trabalhos de um pequeno grupo de estudos, reunido em Paris em novembro de 1957, sobre
a situação e as perspetivas de luta nas colónias portuguesas. Em 1959, é constituída a
Frente de Libertação da Guiné e de Cabo Verde (FLGCV). Em 1960, o PAIGC e o
Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) criam a FRAIN (Frente
Revolucionária Africana para a Independência das Colónias portuguesas). Este
organismo só terá um ano de existência e é substituído em 1961 pela Conferência das
Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas (CONCP).
Durante este período, e mais precisamente a 3 de agosto de 1959, teve lugar a repressão
laboral de Pidjiguiti, em que morreram cinquenta pessoas. Este acontecimento
transformou-se no símbolo da luta de libertação nacional.
A 3 de Agosto de 1961, o PAIGC proclama a passagem da luta política à insurreição
nacional. São então cometidos alguns atos de sabotagem, que provocam um grande
número de prisões. A luta armada na Guiné só começa em janeiro de 1963 (Réplica, vol.
I, p. 213; PV/3, p. 64).
48. Pelo seu lado, Portugal adotava como política a negação da existência das suas
próprias colónias. Considerava-se como Estado unitário constituído por províncias
situadas em vários continentes. Durante os anos 60, Portugal continuou a representar as
suas províncias ultramarinas tanto junto da Organização das Nações Unidas quanto de
outras organizações internacionais. Em 1972, pela resolução 2918 (XXVII), a Assembleia

125
126 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

Geral das Nações Unidas afirmou ‘que os movimentos de libertação nacional de Angola,
da Guiné (Bissau) e de Cabo Verde e de Moçambique são os representantes autênticos
das verdadeiras aspirações dos povos desses territórios’, mas sem nomear os referidos
movimentos. A resolução 3113 (XXVIII) reiterou esta ideia e, finalmente, a resolução
3294 (XXIX) reafirmou “que a Frente Nacional para a Libertação de Angola, o
Movimento Popular de Libertação de Angola, o Partido Africano da Independência da
Guiné e Cabo Verde, a Frente de Libertação de Moçambique e o Movimento de
Libertação de São Tomé e Príncipe… são representantes autênticos dos povos
respetivos”. Até 1973, Portugal exerceu a representação da província ultramarina da
Guiné nas Nações Unidas. A 17 de Dezembro de 1973, a resolução 3181 I (XXVIII) da
Assembleia Geral reconheceu os poderes dos representantes de Portugal unicamente para
o Estado situado no interior das fronteiras europeias, recusando-lhes qualquer
representatividade relativamente a Moçambique, a Angola e à Guiné-Bissau. Esta
resolução não era mais do que a consequência lógica da resolução 3061 (XXVIII), de 2
de novembro de 1973, na qual a Assembleia Geral se congratulava com o acesso à
independência da Guiné-Bissau.
49. O Senegal afirma que o princípio da autodeterminação dos povos surgiu depois de
1960 e não pode ser aplicado retroativamente. Quanto ao corolário que a Guiné-Bissau
retira deste princípio, segundo o qual o Estado colonizador não podia concluir certos
tratados relativos ao seu território colonial a partir do momento em que fosse
desencadeado um processo de libertação, o Senegal aceitou-o nas suas alegações (PV/9,
p. 62), mas recusa que a situação na Guiné em 1960 pudesse ser considerada como a o
desencadear de um processo desse género.
50. Num processo de libertação nacional há sempre, na origem, um pequeno grupo de
homens decididos que se organiza e que, pouco a pouco, desenvolve uma atividade nos
planos intelectual, político e militar, até à obtenção da independência do seu país. A
duração deste processo e os métodos a aplicar dependem de diversos fatores, entre os
quais se pode referir a política do Estado colonizador e o auxílio que o movimento de
libertação obtém do estrangeiro. No processo de libertação, atinge-se um estádio em que
as aspirações do movimento são especificadas e em que está organizado
institucionalmente. Depois de se estruturar, o movimento pode começar a agir e sai da
clandestinidade. A ação não é obrigatoriamente levada a cabo no plano da guerrilha, pode
tratar-se, apenas, de uma atividade política. Mas é necessário sublinhar que o elemento
decisivo do êxito ou do fracasso de um movimento de libertação nacional é sempre o
concurso da vontade popular.
51. Neste processo de formação de um movimento de libertação nacional, a questão
jurídica não consiste em identificar o instante preciso em que este nasceu como tal. O que
importa saber é a partir de quando a sua atividade teve um alcance internacional.
Tal como observou o Senegal, existem hoje na Europa ocidental e noutras parcelas do
Mundo vários movimentos independentistas. Não é possível afirmar que a atividade de
um ou de outro de entre eles tem um alcance internacional pelo simples facto de se ter
constituído como organização ou de ter levado a cabo certas manifestações públicas.
Essas atividades têm alcance no plano internacional apenas a partir do momento que
que constituem, na vida institucional do Estado territorial, um evento anormal que o força
a adotar medidas excecionais, quer dizer, quando, para dominar ou tentar dominar os
acontecimentos, é levado a recorrer a meios que não são aqueles a que se recorre
normalmente para fazer face a distúrbios ocasionais.

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127 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

No caso do que era na altura a Guiné portuguesa, o Tribunal não tem que analisar se o
processo de libertação nacional tinha ou não começado em 1960; o que é necessário
indagar é se as atividades pelas quais se manifestava esse processo em abril de 1960
tinham ou não um alcance internacional.
52. A este propósito, e referindo-se ao período da assinatura do Acordo de 26 de abril
[de 1960], a Guiné-Bissau afirmou na sua Memória (p. 62): “1959/1960, ainda não se
pode dizer que a integridade das competências portuguesas tenha sido afetada no plano
territorial”. Além disso, foi confirmada por diversas vezes na presente arbitragem a
afirmação da sentença arbitral de 14 de fevereiro de 1985 entre a Guiné e a Guiné-Bissau
de acordo com a qual a guerra de libertação só teve início em 1963 na Guiné portuguesa
(Réplica, vol. I, p. 213; PV/3, p. 64). Quanto às Nações Unidas, só em novembro de 1973
– quer dizer, depois da proclamação da independência da Guiné-Bissau – é que adotaram
uma resolução, de acordo com a qual Portugal já não representava aquele país. No caso
concreto, não foram aduzidas provas que demonstrassem que, em 1960, a vida
institucional do que era então a Guiné portuguesa sofria perturbação tal que o Estado
tivesse de recorrer a medidas excecionais para assegurar o desenrolar normal das
atividades civis e para garantir a segurança pública.
Por todas estas razões, a norma que restringe a capacidade do Estado uma vez
desencadeado o processo de libertação não é aplicável à situação que existia em 1960 na
Guiné portuguesa.

3. Assembleia Geral das Nações Unidas, resolução 3294 (XXIX), A questão dos
territórios sob domínio português, 13 de dezembro de 1974

A Assembleia Geral,
Tendo considerado a questão dos territórios sob domínio português, (…)
Consciente de que as mudanças na política de Portugal relativamente aos seus
Territórios coloniais ocorreram, sobretudo, como consequência da luta heroica e da
resistência persistente dos povos dos Territórios respetivos, conduzidos pelos seus
movimentos de libertação nacional, para conseguirem a sua independência e a restauração
dos seus direitos humanos, (…)
Reiterando que só a descolonização total poderá restaurar a paz nos Territórios, (…)
Tendo presente a responsabilidade das Nações Unidas em continuar a prestar apoio
moral e material aos povos dos Territórios sob domínio português e aos seus movimentos
de libertação nacional reconhecidos pela Organização de Unidade Africana nos seus
esforços para consolidar a unidade nacional e reconstruir os seus países,

1. Reafirma o direito inalienável à autodeterminação e independência dos povos dos


Territórios sob domínio português, em conformidade com a Declaração sobre a
Concessão de Independência aos Países e aos Povos Coloniais, incluída na sua resolução
1514 (XV);
(…)
6. Reafirma o seu total apoio e constante solidariedade para com os povos dos
Territórios sob domínio português na sua luta legítima para alcançar sem mais demoras a
liberdade e a independência sob a direção dos seus movimentos de libertação nacional –
a Frente Nacional para a Libertação de Angola, o Movimento Popular de Libertação de
Angola, o Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde, a Frente de

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128 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
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Libertação de Moçambique e o Movimento de Libertação de São Tomé e Príncipe – que


são representantes autênticos dos povos respetivos;
(…)

4. Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, Carta de Banjul, 27 de junho
de 1981

Artigo 19
Todos os povos são iguais, gozam da mesma dignidade e têm os mesmos direitos.
Nada pode justificar a dominação de um povo por outro.

Artigo 20
1.Todo povo tem direito à existência. Todo povo tem um direito imprescritível e
inalienável à autodeterminação. Ele determina livremente o seu estatuto político e
assegura o seu desenvolvimento económico e social segundo a via que livremente
escolheu.
2. Os povos colonizados ou oprimidos têm o direito de se libertar do seu estado de
dominação recorrendo a todos os meios reconhecidos pela comunidade internacional.
3.Todos os povos têm direito à assistência dos Estados Partes na presente Carta, na sua
luta de libertação contra a dominação estrangeira, quer seja esta de ordem política,
econômica ou cultural.

Questões:

a) No breve excerto do Decreto da Convenção Nacional sobre a Assistência aos povos


libertados, é feita uma referência explícita aos povos. Pode considerar-se que, naquele
documento, são configurados como sujeitos de direito internacional? Justifique.
b) No caso da Delimitação, qual é a tese principal apresentada pela Guiné-Bissau? Por
que razão pode afirmar-se (independentemente da posição expressa na sentença arbitral)
que aquela tese influencia a condição estadual? Qual o conceito fundamental que a Guiné-
Bissau considera qualificar o direito de autodeterminação dos povos?
c) Na resolução 3294 da Assembleia Geral das Nações Unidas, de que acima se transcreve
um excerto, pode afirmar-se que se confirma a personalidade jurídica internacional dos
Movimentos de Libertação Nacional? Neste documento, assim como no excerto do caso
da delimitação, pode afirmar-se que, em relação aos MLN, se afigura essencial o
reconhecimento internacional? Justifique.
d) É possível afirmar-se que a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos
reconhece aos povos o estatuto de sujeitos internacionais? Justifique.

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129 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS - INTRODUÇÃO

1. Comissão de Direito Internacional, Projeto de artigos sobre a responsabilidade


internacional das organizações internacionais, 2011

https://legal.un.org/ilc/texts/instruments/english/draft_articles/9_11_2011.pdf

Parte Um
Introdução

Artigo 1
Âmbito do presente projeto de artigos
1. O presente projeto de artigos regula a responsabilidade internacional de qualquer
organização internacional por um facto internacionalmente ilícito.
(..)

Artigo 2
Termos utilizados
Para efeitos do presente projeto de artigos,
(a) uma ‘organização internacional’ significa uma organização estabelecida por um
tratado ou outro instrumento regulado pelo direito internacional e que possui a sua própria
personalidade jurídica internacional. As organizações internacionais podem ter como
membros, além de Estados, outras entidades;
(b) as ´regras da organização’ significa, em especial, os instrumentos constitutivos, as
decisões, as resoluções e outros atos da organização internacional adotados de acordo
com aqueles instrumentos e a prática estabelecida da organização;
(c) um ‘órgão de uma organização internacional’ significa qualquer pessoa ou entidade
que tem esse estatuto de acordo com as regras da organização;
(d) um ‘agente de uma organização internacional’ significa um funcionário ou outra
pessoa ou entidade, que não um órgão, que tem a responsabilidade, atribuída pela
organização, de desempenhar ou auxiliar no desempenho de uma das suas funções e
assim, aqueles através dos quais a organização atua.”

Questões:

a) Como é que o projeto de artigos define uma organização internacional?


b) O que é o tratado constitutivo da organização?
c) De acordo com o projeto, o que pode ser o “direito da organização internacional”?
d) Quem representa a organização internacional?
e) Quem pode ser membro de uma organização internacional?
f) Quem representa a organização internacional nas relações internacionais?

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130 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

2. TIJ, Licitude da utilização de armas nucleares por um Estado num conflito armado,
Parecer Consultivo, 8 de julho de 1996, Col. 1996, pp. 66 ss., 79-81

25. O Tribunal quase não sente necessidade de recordar que as organizações


internacionais são sujeitos de direito internacional que, ao contrário dos Estados, não
possuem competências gerais. As organizações internacionais são governadas pelo
“princípio da especialidade”, quer dizer, dotadas pelos Estados que as criam de
competências de atribuição cujos limites existem em função dos interesses comuns que
aqueles lhes estabelecem para serem prosseguidos. O Tribunal Permanente de Justiça
Internacional referiu-se a este princípio de base nos termos seguintes:

“Como a Comissão Europeia não é um Estado, mas uma instituição internacional dotada de um objeto
especial, apenas detém as atribuições que lhe são conferidas no Estatuto definitivo, para lhe permitir realizar
esse objeto; mas tem competência para exercer essas funções na sua plenitude, desde que o Estatuto não
lhe imponha restrições” (Competência da Comissão Europeia do Danúbio, Parecer Consultivo, 1927, TPJI,
série B, n.º 14, p. 64).

As competências conferidas às organizações internacionais, normalmente, são objeto de


uma formulação expressa no seu ato constitutivo. No entanto, as exigências da vida
internacional podem destacar a necessidade de as organizações internacionais disporem,
para poderem alcançar os seus objetivos, de competências subsidiárias que não estão
expressamente previstas nos textos fundamentais que regulam a sua atividade.
Geralmente, admite-se que as organizações internacionais podem exercer esses poderes,
ditos “implícitos”. Tratando-se da Organização das Nações Unidas, o Tribunal exprimiu-
se, a este respeito, da seguinte forma:

“De acordo com o direito internacional, deve considerar-se que a organização possui estes poderes que, se
não são expressamente enunciados na Carta, são, por consequência necessária, conferidos à organização
por serem essenciais para o exercício das suas funções. Este princípio jurídico foi aplicado à Organização
Internacional do Trabalho pelo Tribunal Permanente de Justiça Internacional no seu Parecer consultivo n.º
13, de 23 de julho de 1926 (Série B, n.º 13, p. 18) e deve sê-lo à Organização das Nações Unidas”
(Reparação dos danos sofridos ao serviço das Nações Unidas, Parecer Consultivo, TIJ, Col. 1949, pp. 182-
183; cf. Efeito de julgamentos do Tribunal Administrativo das Nações Unidas que conferem indemnização,
TIJ, Col. 1954, p. 57).

No entender do Tribunal, reconhecer à OMS competência para tratar da licitude da


utilização das armas nucleares – mesmo tomando em consideração o efeito destas armas
para a saúde e o ambiente – equivaleria a ignorar o princípio da especialidade; com efeito,
uma tal competência não poderia considerar-se estar necessariamente pressuposta pela
Constituição da organização, à luz dos objetivos que lhe foram estabelecidos pelos seus
Estados Membros.

26. Para além disso, a OMS é uma organização internacional de uma natureza particular.
Tal como anuncia o preâmbulo e o confirma o artigo 69 da sua Constituição, “a
Organização está ligada às Nações Unidas como uma das organizações especializadas
previstas no artigo 57 da Carta das Nações Unidas”. (…) É difícil sustentar que,
autorizando várias organizações especializadas a solicitar Pareceres ao Tribunal, nos
termos do artigo 96, n.º 2, da Carta, a Assembleia Geral tenha querido permitir-lhes
suscitar perante o Tribunal questões que advêm de uma competência de atribuição das
Nações Unidas. Pelo conjunto destes motivos, o Tribunal considera que a questão sobre

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Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

que incide o pedido de parecer consultivo que a OMS lhe submeteu não se inclui “no
quadro de atividade” desta organização, tal como definido pela sua Constituição.

3. Tribunal de Justiça da União Europeia, Acórdão Comissão c. Conselho (AETR),


31 de março de 1971, Processo 22/70

12. Na inexistência de disposições específicas do Tratado relativas à negociação e à


conclusão de acordos internacionais no domínio da política de transportes — categoria
em que essencialmente se inclui o AETR — há que recorrer ao sistema geral do direito
comunitário no que respeita às relações com Estados terceiros.
13. O artigo 210 dispõe que «a Comunidade tem personalidade jurídica».
14. Esta disposição, colocada no cabeçalho da sexta parte do Tratado consagrada às
«disposições gerais e finais», significa que, nas relações externas, a Comunidade goza da
capacidade de estabelecer vínculos contratuais com Estados terceiros em toda a extensão
do campo dos objetivos definidos na primeira parte do Tratado, da qual a sexta constitui
o prolongamento.
15. Para fixar, num caso determinado, a competência da Comunidade para concluir
acordos internacionais, há que tomar em consideração a sistematização do Tratado, e bem
assim as suas disposições materiais.
16. Esta competência resulta não apenas duma atribuição explícita feita pelo Tratado —
como sucede com os artigos 113 e 114 relativamente aos acordos pautais e comerciais e
com o artigo 238 relativamente aos acordos de associação — como pode decorrer
igualmente doutras disposições do Tratado e dos atos adotados, no âmbito destas
disposições, pelas instituições da Comunidade.
17. Em especial, sempre que, para execução duma política comum prevista pelo Tratado,
a Comunidade tome disposições que instituem, sob qualquer forma, regras comuns, os
Estados-membros, quer agindo individual quer coletivamente, deixam de ter o direito de
contrair para com Estados terceiros obrigações que afetem estas regras.
18. Com efeito, à medida que se instituem estas regras comuns, só a Comunidade está em
condições de assumir e executar, com efeitos em todo o domínio de aplicação da ordem
jurídica comunitária, os compromissos assumidos em relação a Estados terceiros.
19. Na aplicação das disposições do Tratado, não se pode, por isso, separar o regime das
medidas internas da Comunidade do das relações externas.
20. Nos termos do artigo 3, alínea e), a adoção de uma política comum no domínio dos
transportes está especialmente mencionada entre os objetivos da Comunidade.
21. Nos termos do artigo 5, os Estados-membros devem, por um lado, tomar todas as
medidas adequadas para assegurar a execução das obrigações decorrentes do Tratado ou
resultantes de atos das instituições e, por outro lado, abster-se de tomar quaisquer medidas
suscetíveis de pôr em perigo a realização dos objetivos do Tratado.
22. Resulta da conjugação destas disposições que, uma vez que as regras comunitárias
são adotadas para realizar os fins do Tratado, os Estados-membros não podem, fora do
quadro das instituições comuns, assumir compromissos suscetíveis de afetar essas regras
ou de lhes alterar o alcance.
23. Nos termos do artigo 74, os objetivos do Tratado em matéria de transportes são
prosseguidos no quadro de uma política comum.

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132 Direito Internacional Público
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1º semestre

24. Para esse efeito, o n.º 1 do artigo 75 encarrega o Conselho de estabelecer as regras
comuns e de tomar, por outro lado, «quaisquer outras disposições adequadas».
25. Nos termos da alínea a) da mesma disposição, as regras comuns são aplicáveis «aos
transportes internacionais efetuados a partir de ou com destino ao território de um Estado-
membro ou que atravessem o território de um ou vários Estados-membros».
26. Esta disposição diz igualmente respeito, no que se refere à parte do trajeto situada em
território comunitário, aos transportes provenientes ou destinados a Estados terceiros.
27. A mesma disposição pressupõe, por isso, que a competência da Comunidade abrange
as relações que relevam do direito internacional e implica, por isso, no referido domínio,
a necessidade de acordos com os Estados terceiros interessados.
28. Embora os artigos 74 e 75 não prevejam explicitamente a competência da
Comunidade para a conclusão de acordos internacionais, a entrada em vigor, em 25 de
Março de 1969, do Regulamento n.º 543/69 do Conselho relativo à harmonização de
determinadas disposições em matéria social no domínio dos transportes rodoviários (…)
teve, contudo, como efeito necessário atribuir à Comunidade competência para concluir
com Estados terceiros todos os acordos que se refiram à matéria disciplinada pelo mesmo
regulamento.
29. Esta atribuição de competência é, aliás, expressamente reconhecida pelo artigo 3 do
referido regulamento, que prevê que «a Comunidade encetará com países terceiros as
negociações que se venham a revelar necessárias à aplicação do presente regulamento».
30. Relevando a matéria do AETR do domínio de aplicação do Regulamento n.º 543/69,
a competência para negociar e concluir o acordo em questão pertence à Comunidade, após
a entrada em vigor do referido regulamento.
31. Esta competência comunitária exclui a possibilidade duma competência concorrente
dos Estados-membros, sendo qualquer iniciativa tomada fora do quadro das instituições
comuns incompatível com a unidade do mercado comum e a aplicação uniforme do
direito comunitário.

Questões:

a) As organizações internacionais têm personalidade jurídica internacional? Idêntica à


dos Estados?
b) É estritamente necessário que o tratado constitutivo determine que a organização em
causa tem personalidade jurídica?
c) Qual o princípio determinante na delimitação das competências atribuídas a uma
organização internacional?
d) Qual a importância do tratado constitutivo para este efeito?
e) Nos casos concretos o tratado constitutivo é determinante para os tribunais concluírem
se a organização internacional em causa (a OMS e a UE, respetivamente) tem uma
determinada competência. Explique a questão em causa em cada uma das situações e as
respetivas decisões dos tribunais (TIJ e TJUE, respetivamente).
f) O que é a teoria dos poderes implícitos? Explicite a sua aplicação aos casos anteriores.

132
133 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

ESTUDO DE CASO: A ADESÃO DA UNIÃO EUROPEIA À CONVENÇÃO EUROPEIA DOS


DIREITOS HUMANOS

Nota: As Comunidades Europeias (atual União Europeia) foram criadas originalmente como uma
organização internacional de âmbito essencialmente económico.
Com a progressiva expansão das competências da UE em políticas que têm um impacto direito com os
direitos fundamentais, os tratados foram sendo alterados de modo a ancorar, sem sombra de dúvida, a
proteção dos direitos fundamentais na UE.
Entretanto, com o Tratado de Lisboa, o artigo 6 do Tratado da UE, estabelece o seguinte:
“2. A União adere à Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades
Fundamentais. Essa adesão não altera as competências da União, tal como definidas nos Tratados.
3. Do direito da União fazem parte, enquanto princípios gerais, os direitos fundamentais tal como os garante
a Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais e tal como
resultam das tradições constitucionais comuns aos Estados-Membros.”
Por outro lado, o artigo 47 estabelece: “A União tem personalidade jurídica.”

4. Tribunal de Justiça da União Europeia (Tribunal Pleno), Parecer 2/13, de 18 de


dezembro de 2014
https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN-
PT/TXT/?uri=CELEX:62013CV0002&from=EN

(…)
I – Pedido de parecer
1. O pedido de parecer submetido ao Tribunal de Justiça da União Europeia pela
Comissão Europeia tem a seguinte redação: «O projeto de Acordo relativo à adesão da
União Europeia à Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das
Liberdades Fundamentais [assinada em Roma em 4 de novembro de 1950, a seguir
‘CEDH’] é compatível com os Tratados?»
(…)
V – Projeto de acordo
49. O Projeto de Acordo contém as disposições consideradas necessárias para que a União
possa aderir à CEDH. Um primeiro grupo dessas disposições diz respeito à adesão
propriamente dita e introduz os mecanismos processuais necessários para permitir uma
adesão efetiva. Um segundo grupo das referidas disposições, de caráter puramente
técnico, prevê, por um lado, as alterações a esta Convenção que se impõem atendendo ao
facto de esta ter sido redigida para se aplicar aos Estados‑Membros do Conselho da
Europa, quando a União não é nem um Estado nem um membro dessa organização
internacional. Por outro lado, estão previstas disposições relativas a outros instrumentos
ligados à CEDH, bem como as cláusulas finais sobre a entrada em vigor e as notificações
dos atos de ratificação ou de adesão.

(…)

B – Quanto ao mérito
1. Considerações preliminares
153. Antes mesmo de iniciar a análise do pedido da Comissão, importa salientar, a título
preliminar, que, diversamente do estado do direito comunitário em vigor à data em que o
Tribunal de Justiça proferiu o seu parecer 2/94 (…), a adesão da União à CEDH dispõe,
desde a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, de uma base jurídica específica no artigo
6 TUE.

133
134 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

154. No entanto, esta adesão continua a apresentar importantes particularidades.


155. Com efeito, desde a adoção da CEDH, apenas entidades estatais podiam ser partes,
o que explica que, até hoje, esta Convenção só vincule Estados. Isto é também
corroborado pela circunstância de que, para permitir a adesão da União, não só foi
alterado o artigo 59 da CEDH como o próprio Acordo Projetado contém uma série de
alterações a esta Convenção para tornar esta adesão operacional no quadro do sistema que
a própria Convenção estabelece.
156. Ora, estas alterações justificam-se precisamente pela circunstância de,
contrariamente a qualquer outra Parte Contratante, a União, do ponto de vista do direito
internacional, não poder, em razão da sua natureza, ser considerada um Estado.
157. Com efeito, como o Tribunal de Justiça declarou reiteradamente, os Tratados
fundadores da União instauraram, contrariamente aos tratados internacionais ordinários,
uma nova ordem jurídica, dotada de instituições próprias, a favor da qual os seus Estados-
Membros limitaram, em domínios cada vez mais amplos, os seus direitos soberanos e
cujos sujeitos são não só os Estados-membros, mas também os seus nacionais (…).
158. Ora, a circunstância de a União ser dotada de um novo tipo de ordenamento jurídico,
com uma natureza que lhe é específica, um quadro constitucional e princípios fundadores
que lhe são próprios, uma estrutura institucional particularmente elaborada bem como um
conjunto completo de regras jurídicas que asseguram o seu funcionamento, tem
consequências no que respeita ao processo e às condições de uma adesão à CEDH.
159. É precisamente atendendo a esta circunstância que os Tratados submetem esta
adesão ao respeito de diversas condições.
160. Assim, antes de mais, depois de ter estabelecido que a União adere à CEDH, o artigo
6, n.º 2, TUE precisa, no seu segundo período, que «[e]ssa adesão não altera as
competências da União, tal como definidas nos Tratados».
161. Em seguida, o Protocolo n.º 8 UE, que tem o mesmo valor jurídico que os Tratados,
prevê designadamente que o Acordo de Adesão deve refletir a necessidade de preservar
as características próprias da União e do direito da União e assegurar que a adesão não
afete as competências da União, nem as atribuições das suas instituições, nem a situação
dos Estados-Membros em relação à CEDH, nem tão-pouco o artigo 344 TFUE.
162. Finalmente, com a Declaração ad. ao n.º 2 do artigo 6 do Tratado da União Europeia,
a Conferência Intergovernamental que adotou o Tratado de Lisboa acordou em que a
adesão se deverá realizar segundo modalidades que permitam preservar as especificidades
do ordenamento jurídico da União.
163. É designadamente à luz destas disposições que incumbe ao Tribunal de Justiça, no
quadro da missão que lhe é confiada pelo artigo 19, n.º 1, primeiro parágrafo, TUE,
controlar que as modalidades jurídicas segundo as quais está prevista a adesão da União
à CEDH estejam em conformidade com as prescrições indicadas e, mais genericamente,
com a carta constitucional de base da União, que são os Tratados (…).
164. Para efetuar esse controlo, importa salientar que, como resulta dos n.ºs 160 a 162 do
presente parecer, as condições a que os Tratados subordinam a adesão destinam-se
especialmente a garantir que esta não afeta as características específicas da União e do
seu direito.
165. A este respeito, importa recordar que, entre essas características figuram as relativas
à estrutura constitucional da União, que se reflete no princípio da atribuição das
competências referido nos artigos 4, n.º 1, e 5, n.ºs 1 e 2, TUE, bem como no quadro
constitucional definido nos artigos 13 TUE a 19 TUE.

134
135 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

166. A isto acrescem as características específicas relativas à própria natureza do direito


da União. Em especial, como o Tribunal de Justiça salientou reiteradamente, o direito da
União caracteriza-se pelo facto de emanar de uma fonte autónoma, constituída pelos
Tratados, pelo seu primado relativamente aos direitos dos Estados-Membros (…), bem
como pelo efeito direto de toda uma série de disposições aplicáveis aos seus nacionais e
aos próprios Estados (…).
167. Estas características essenciais do direito da União dão origem a uma rede
estruturada de princípios, de regras e de relações jurídicas mutuamente interdependentes,
que vinculam, reciprocamente, a própria União e os seus Estados-Membros, e estes entre
si, os quais estão comprometidos desde então, como recordado no artigo 1, segundo
parágrafo, TUE, num «processo de criação de uma união cada vez mais estreita entre os
povos da Europa».
168. Esta construção jurídica assenta na premissa fundamental segundo a qual cada
Estado-Membro partilha com todos os outros Estados-Membros, e reconhece que estes
partilham com ele, uma série de valores comuns em que a União se funda, como precisado
no artigo 2 TUE. Esta premissa implica e justifica a existência da confiança mútua entre
os Estados-Membros no reconhecimento desses valores e, por conseguinte, no respeito
do direito da União que os aplica.
169. No cerne desta construção jurídica figuram, aliás, os direitos fundamentais,
conforme reconhecidos na Carta — a qual, por força do artigo 6, n.º 1, TUE, tem o mesmo
valor jurídico que os Tratados —, cuja observância constitui uma condição da legalidade
dos atos da União, pelo que não podem ser admitidas na União medidas incompatíveis
com esses mesmos direitos (…).
170. Ora, a autonomia de que goza o direito da União relativamente aos direitos dos
Estados-Membros e ao direito internacional impõe que a interpretação desses direitos
fundamentais seja assegurada no quadro da estrutura e dos objetivos da União (…).
171. Quanto à estrutura da União, importa sublinhar que a observância da Carta se impõe
não só às instituições, órgãos e organismos da União mas também aos Estados-Membros
quando aplicam o direito da União (…).
172. A prossecução dos objetivos da União, tal como recordados no artigo 3 TUE, é, por
sua vez, confiada a uma série de disposições fundamentais, como as que preveem a livre
circulação de mercadorias, de serviços, de capitais e de pessoas, a cidadania da União, o
espaço de liberdade, segurança e justiça e a política da concorrência. Essas disposições,
na medida em que se inscrevem no quadro de um sistema próprio à União, estão
estruturadas de forma a contribuir, cada uma no seu domínio específico e com as suas
características particulares, para a realização do processo de integração, que é a razão de
ser da própria União.
173. Do mesmo modo, compete aos Estados-Membros, designadamente, por força do
princípio da cooperação leal, enunciado no artigo 4, n.º 3, primeiro período, TUE,
assegurar, nos respetivos territórios, a aplicação e o respeito do direito da União. Além
disso, por força do segundo período deste mesmo n.º 3, os Estados-Membros tomarão
todas as medidas gerais ou específicas adequadas para garantir a execução das obrigações
decorrentes dos Tratados ou resultantes de atos das instituições da União (…).
174. Para garantir a preservação das características específicas e da autonomia deste
ordenamento jurídico, os Tratados instituíram um sistema jurisdicional destinado a
assegurar a coerência e a unidade na interpretação do direito da União.

135
136 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

175. Neste quadro, cabe aos órgãos jurisdicionais nacionais e ao Tribunal de Justiça
garantir a aplicação plena do direito da União em todos os Estados-Membros, bem como
a proteção jurisdicional dos direitos conferidos aos particulares pelo referido direito (…).
176. Em especial, a pedra angular do sistema jurisdicional assim concebido é constituída
pelo processo de reenvio prejudicial, previsto no artigo 267 TFUE, que, ao instituir um
diálogo de juiz para juiz, precisamente, entre o Tribunal de Justiça e os órgãos
jurisdicionais dos Estados-Membros, tem por objetivo assegurar a unidade de
interpretação do direito da União (…), permitindo assim assegurar a sua coerência, o seu
pleno efeito e a sua autonomia, bem como, em última instância, o caráter adequado do
direito instituído pelos Tratados (…).
177. Por conseguinte, é no respeito deste quadro constitucional, recordado nos n.ºs 155 a
176 do presente parecer, que os direitos fundamentais, conforme reconhecidos em
especial pela Carta, devem ser interpretados e aplicados no âmbito da União.

2. Quanto à compatibilidade do Acordo Projetado com o direito primário da União

178. A fim de tomar posição sobre o pedido de parecer da Comissão, importa não só
verificar se o Acordo Projetado é suscetível de lesar as características específicas do
direito da União acima recordadas e, como a própria Comissão sublinhou, a autonomia
deste direito na interpretação e na aplicação dos direitos fundamentais — conforme
reconhecidos pelo direito da União e, designadamente, pela Carta — mas também
examinar se os mecanismos institucionais e processuais previstos nesse acordo asseguram
o respeito das condições a que os Tratados subordinaram a adesão da União à CEDH.

a) Quanto às características específicas e à autonomia do direito da União

179. Importa recordar que, em conformidade com o artigo 6, n.º 3, TUE, os direitos
fundamentais, tal como garantidos pela CEDH, fazem parte do direito da União, enquanto
princípios gerais. Todavia, na falta de adesão da União à Convenção, esta não constitui
um instrumento jurídico formalmente integrado na ordem jurídica da União (…).
180. Em contrapartida, em resultado da adesão, a CEDH, como qualquer outro acordo
internacional celebrado pela União, vincularia, por força do artigo 216, n.º 2, TFUE, as
instituições da União e os Estados-Membros e faria, por conseguinte, parte integrante do
direito da União (…).
181. Assim, a União, como qualquer outra Parte Contratante, estaria sujeita a uma
fiscalização externa que teria por objeto o respeito dos direitos e das liberdades que a
União se comprometeria a observar em conformidade com o artigo 1 da CEDH. Neste
contexto, a União e as suas instituições, incluindo o Tribunal de Justiça, ficariam sujeitos
aos mecanismos de fiscalização previstos nesta Convenção e, em especial, às decisões e
acórdãos do TEDH.
182. A este propósito, é verdade que o Tribunal de Justiça já esclareceu que um acordo
internacional que prevê a criação de uma jurisdição com competência para interpretar as
suas disposições e cujas decisões vinculam as instituições, incluindo o Tribunal de
Justiça, não é, em princípio, incompatível com o direito da União, e isso é tanto mais
assim quanto, como no caso em apreço, a celebração desse acordo está prevista nos
próprios Tratados. Com efeito, a competência da União em matéria de relações
internacionais e a sua capacidade para celebrar acordos internacionais comportam
necessariamente a faculdade de se submeter às decisões de uma jurisdição criada ou

136
137 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

designada em virtude de tais acordos, no que diz respeito à interpretação e à aplicação das
suas disposições (…).
183. Todavia, o Tribunal de Justiça também precisou que um acordo internacional só
pode ter repercussões nas suas próprias competências se os requisitos essenciais de
preservação da natureza destas estiverem reunidos e, consequentemente, a autonomia da
ordem jurídica da União não for prejudicada (…).
184. Em especial, a intervenção dos órgãos investidos de competências decisórias pela
CEDH, como prevista no Acordo Projetado, não deve ter por efeito impor à União e às
suas instituições, no exercício das suas competências internas, uma interpretação
determinada das regras de direito da União (…).
185. Ora, é certamente inerente ao próprio conceito de fiscalização externa que, por um
lado, a interpretação da CEDH fornecida pelo TEDH vincularia, por força do direito
internacional, a União e as suas instituições, incluindo o Tribunal de Justiça, e que, por
outro lado, a interpretação dada pelo Tribunal de Justiça acerca de um direito reconhecido
por esta Convenção não vincularia os mecanismos de fiscalização previstos pela mesma
e, muito em especial, o TEDH, como previsto no artigo 3, n.º 6, do Projeto de Acordo e
clarificado no n.º 68 do Projeto de Relatório Explicativo.
186. Todavia, o mesmo não se pode aplicar relativamente à interpretação dada pelo
Tribunal de Justiça do direito da União, incluindo da Carta. Em especial, as apreciações
do Tribunal de Justiça relativas ao âmbito de aplicação material do direito da União, para
efeitos, designadamente, de determinar se um Estado‑Membro está obrigado a respeitar
os direitos fundamentais da União, não deveriam poder ser postas em causa pelo TEDH.
(…)
190. Ora, no Acordo projetado não se previu nenhuma disposição para assegurar tal
coordenação.
191. Em segundo lugar, importa recordar que o princípio da confiança mútua entre os
Estados‑Membros tem, no direito da União, uma importância fundamental, dado que
permite a criação e a manutenção de um espaço sem fronteiras internas. Ora, este
princípio impõe, designadamente no que respeita ao espaço de liberdade, segurança e
justiça, que cada um dos Estados‑Membros considere, salvo em circunstâncias
excecionais, que todos os outros Estados‑Membros respeitam o direito da União e, muito
em especial, os direitos fundamentais reconhecidos por esse direito (…).
192. Assim, quando aplicam o direito da União, os Estados‑Membros podem ser
obrigados, por força desse mesmo direito, a presumir o respeito dos direitos fundamentais
por parte dos outros Estados‑Membros, pelo que não lhes é possível exigir a outro
Estado‑Membro um nível de proteção nacional dos direitos fundamentais mais elevado
do que o assegurado pelo direito da União, nem tão‑pouco, salvo em circunstâncias
excecionais, verificar se esse outro Estado‑Membro respeitou efetivamente, num caso
concreto, os direitos fundamentais garantidos pela União.
193. Ora, a abordagem adotada no âmbito do Acordo Projetado, que consiste em
equiparar a União a um Estado‑Membro e em lhe reservar um papel em tudo idêntico ao
de qualquer outra Parte Contratante, ignora precisamente a natureza intrínseca da União
e, em especial, não toma em consideração a circunstância de os Estados‑Membros, pelo
facto de serem membros da União, terem aceitado que as suas relações mútuas, no que
respeita às matérias que foram objeto da transferência de competências dos
Estados‑Membros para a União, sejam reguladas pelo direito da União, com exclusão, se
este assim o exigir, de qualquer outro direito.

137
138 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

194. Na medida em que a CEDH, ao impor que a União e os Estados‑Membros sejam


considerados Partes Contratantes não só nas suas relações com as partes que não são
Estados‑Membros da União mas também nas suas relações recíprocas, incluindo quando
essas relações se regem pelo direito da União, exigiria que um Estado‑Membro verificasse
o respeito dos direitos fundamentais por outro Estado‑Membro, apesar de o direito da
União impor a confiança mútua entre esses Estados‑Membros, a adesão é suscetível de
comprometer o equilíbrio em que a União se funda, bem como a autonomia do direito da
União.
195. Ora, o Acordo Projetado não prevê nada para evitar esta evolução.
(…)
258. À luz do conjunto das considerações precedentes, há que declarar que o Acordo
Projetado, na medida em que: é suscetível de lesar as características específicas e a
autonomia do direito da União, uma vez que não garante a coordenação entre o artigo 53
da CEDH e o artigo 53 da Carta, não previne o risco de violação do princípio da confiança
mútua entre os Estados‑Membros no direito da União e não prevê uma articulação entre
o mecanismo instituído pelo Protocolo n.º 16 e o processo de reenvio prejudicial previsto
no artigo 267 TFUE; é suscetível de afetar o artigo 344 TFUE, uma vez que não exclui a
possibilidade de os litígios entre os Estados‑Membros ou entre estes e a União, relativos
à aplicação da CEDH no âmbito de aplicação material do direito da União, serem
submetidos ao TEDH; não prevê modalidades de funcionamento do mecanismo do
corresponsável e do processo de apreciação prévia pelo Tribunal de Justiça que permitam
preservar as características específicas da União e do seu direito; e não tem em conta as
características específicas do direito da União relativo à fiscalização jurisdicional dos
atos, ações ou omissões da União em matéria de PESC, uma vez que confia a fiscalização
jurisdicional de alguns desses atos, ações ou omissões exclusivamente a um órgão externo
à União; não é compatível com o artigo 6, n.º 2, TUE nem com o Protocolo n.º 8 UE.
Consequentemente, o Tribunal de Justiça (Tribunal Pleno) emite o seguinte parecer:

O Acordo relativo à adesão da União Europeia à Convenção Europeia para a Proteção


dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais não é compatível com o artigo
6, n.º 2, TUE nem com o Protocolo (n.º 8) relativo ao n.º 2 do artigo 6 do Tratado da
União Europeia respeitante à adesão da União à Convenção Europeia para a Proteção dos
Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais.

5. A adesão da UE à Convenção Europeia de Direitos Humanos: Declaração


conjunto em nome do Conselho da Europa e da Comissão Europeia, 29 de setembro
de 2020
https://ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/en/statement_20_1748

A Vice-Presidente da Comissão Europeia para os Valores e Transparência, Věra Jourová,


e a Secretária-Geral do Conselho da Europa de 47 Nações, Marija Pejčinović Burić,
fizeram a seguinte declaração relativamente ao recomeço das negociações relativas à
adesão das União Europeia à Convenção Europeia do Direitos Humanos na terça-feira,
dia 29 de setembro:

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139 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

“A adesão da União Europeia à Convenção Europeia dos Direitos Humanos será um


importante passo na proteção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais na
Europa.
Durante 70 anos a Convenção tem sido um instrumento único e inestimável na proteção
de milhões de Europeus e em apoio aos nossos valores partilhados dos direitos humanos,
democracia e estado de direito.
A adesão da UE à Convenção, que é uma obrigação jurídica de acordo com o Tratado de
Lisboa, reforçará a proteção dos direitos humanos na Europa. A adesão ajudará a garantir
coerência e consistência entre o direito da UE e o sistema da Convenção. Também
garantirá que a UE esteja sujeita ao mesmo sistema de monitorização dos direitos
humanos que os seus 27 Estados membros e outros 20 países do Conselho da Europa que
não são membros da UE.
Isto significa que todos os cidadãos poderão contestar as ações da UE perante o Tribunal
Europeu de Direitos Humanos. A UE poderá também intervir em apoio dos seus Estados
membros em procedimentos no Tribunal Europeu de Direitos Humanos relativos a
alegadas violações resultantes de direito da UE.
A Convenção Europeia de Direitos Humanos representa tudo o que o Conselho da Europa
e a União Europeia defendem. Nestes tempos difíceis, o recomeço destas negociações
cruciais dá um sinal forte quanto ao compromisso das duas nossas organizações e dos
nossos Estados membros quanto aos valores fundamentais que nos animam.
Esperamos vivamente que as negociações possam ser concluídas rapidamente e com
sucesso em benefício da Europa como um todo.”

Questões:
a) Identifique as principais questões suscitadas pelo TJUE no seu parecer de 2014,
enquadrando-as de um ponto de vista de direito internacional.
b) Considerando aquilo que já estudou sobre o direito internacional e os sujeitos de direito
internacional, faça uma apreciação crítica das questões identificadas.

6. Carta das Nações Unidas, 26 de junho de 1945

[…]
CAPÍTULO III
ÓRGÃOS

Artigo 7
1 - Ficam estabelecidos como órgãos principais das Nações Unidas: uma Assembleia
Geral, um Conselho de Segurança, um Conselho Económico e Social, um Conselho de
Tutela, um Tribunal Internacional de Justiça e um Secretariado.
2 - Poderão ser criados, de acordo com a presente Carta, os órgãos subsidiários
considerados necessários.

CAPÍTULO IV
ASSEMBLEIA GERAL

Composição

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140 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

Artigo 9
1 - A Assembleia Geral será constituída por todos os membros das Nações Unidas.
2 - Nenhum membro deverá ter mais de cinco representantes na Assembleia Geral.

Funções e poderes

Artigo 10
A Assembleia Geral poderá discutir quaisquer questões ou assuntos que estiverem dentro
das finalidades da presente Carta ou que se relacionarem com os poderes e funções de
qualquer dos órgãos nela previstos, e, com exceção do estipulado no artigo 12, poderá
fazer recomendações aos membros das Nações Unidas ou ao Conselho de Segurança, ou
a este e àqueles, conjuntamente, com a referência a quaisquer daquelas questões ou
assuntos.

Artigo 11
1 - A Assembleia Geral poderá considerar os princípios gerais de cooperação na
manutenção da paz e da segurança internacionais, inclusive os princípios que disponham
sobre o desarmamento e a regulamentação dos armamentos, e poderá fazer
recomendações relativas a tais princípios aos membros ou ao Conselho de Segurança, ou
a este e àqueles conjuntamente.
2 - A Assembleia Geral poderá discutir quaisquer questões relativas à manutenção da paz
e da segurança internacionais, que lhe forem submetidas por qualquer membro das
Nações Unidas, ou pelo Conselho de Segurança, ou por um Estado que não seja membro
das Nações Unidas, de acordo com o artigo 35, n.º 2, e, com exceção do que fica
estipulado no artigo 12, poderá fazer recomendações relativas a quaisquer destas questões
ao Estado ou Estados interessados ou ao Conselho de Segurança ou a este e àqueles.
Qualquer destas questões, para cuja solução seja necessária uma ação, será submetida ao
Conselho de Segurança pela Assembleia Geral, antes ou depois da discussão.
3 - A Assembleia Geral poderá chamar a atenção do Conselho de Segurança para
situações que possam constituir ameaça à paz e à segurança internacionais.
4 - Os poderes da Assembleia Geral enumerados neste artigo não limitarão o alcance geral
do artigo 10.

Artigo 12
1 - Enquanto o Conselho de Segurança estiver a exercer, em relação a qualquer
controvérsia ou situação, as funções que lhe são atribuídas na presente Carta, a
Assembleia Geral não fará nenhuma
recomendação a respeito dessa controvérsia ou situação, a menos que o Conselho de
Segurança o
solicite.
[…]

CAPÍTULO V
CONSELHO DE SEGURANÇA

Composição

Artigo 23

140
141 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

1 - O Conselho de Segurança será constituído por 15 membros das Nações Unidas. A


República da China, a França, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, o Reino
Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte e os Estados Unidos da América serão
membros permanentes do Conselho de Segurança. A Assembleia Geral elegerá 10 outros
membros das Nações Unidas para membros não permanentes do Conselho de Segurança,
tendo especialmente em vista, em primeiro lugar, a contribuição dos membros das Nações
Unidas para a manutenção da paz e da segurança internacionais e para os outros objetivos
da Organização e também uma distribuição geográfica equitativa.
2 - Os membros não permanentes do Conselho de Segurança serão eleitos por um período
de dois anos. Na primeira eleição dos membros não permanentes, depois do aumento do
número de membros do Conselho de Segurança de 11 para 15, dois dos quatro membros
adicionais serão eleitos por um período de um ano. Nenhum membro que termine o seu
mandato poderá ser reeleito para o período imediato.
3 - Cada membro do Conselho de Segurança terá um representante.

Funções e poderes

Artigo 24
1 - A fim de assegurar uma ação pronta e eficaz por parte das Nações Unidas, os seus
membros conferem ao Conselho de Segurança a principal responsabilidade na
manutenção da paz e da segurança internacionais e concordam em que, no cumprimento
dos deveres impostos por essa responsabilidade, o Conselho de Segurança aja em nome
deles.
2 - No cumprimento desses deveres, o Conselho de Segurança agirá de acordo com os
objectivos e os princípios das Nações Unidas. Os poderes específicos concedidos ao
Conselho de Segurança para o cumprimento dos referidos deveres estão definidos nos
capítulos VI, VII, VIII e XII.
3 - O Conselho de Segurança submeterá à apreciação da Assembleia Geral relatórios
anuais e, quando necessário, relatórios especiais.

Artigo 25
Os membros das Nações Unidas concordam em aceitar e aplicar as decisões do Conselho
de Segurança, de acordo com a presente Carta.

[…]
Votação

Artigo 27
1 - Cada membro do Conselho de Segurança terá um voto.
2 - As decisões do Conselho de Segurança, em questões de procedimento, serão tomadas
por um voto afirmativo de nove membros.
3 - As decisões do Conselho de Segurança sobre quaisquer outros assuntos serão tomadas
por voto favorável de nove membros, incluindo os votos de todos os membros
permanentes, ficando entendido que, no que se refere às decisões tomadas nos termos do
capítulo VI e do n.º 3 do artigo 52, aquele que for parte numa controvérsia se absterá de
votar.

[…]

141
142 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

CAPÍTULO XIV
O TRIBUNAL INTERNACIONAL DE JUSTIÇA

Artigo 92
O Tribunal Internacional de Justiça será o principal órgão judicial das Nações Unidas.
Funcionará de acordo com o Estatuto anexo, que é baseado no Estatuto do Tribunal
Permanente de Justiça Internacional e forma parte integrante da presente Carta.

Artigo 93
1 - Todos os membros das Nações Unidas são ipso facto partes no Estatuto do Tribunal
Internacional de Justiça.
2 - Um Estado que não for membro das Nações Unidas poderá tornar-se parte no Estatuto
do Tribunal Internacional de Justiça, em condições que serão determinadas, em cada caso,
pela Assembleia Geral, mediante recomendação do Conselho de Segurança.
[…]

CAPÍTULO XVI
DISPOSIÇÕES DIVERSAS

Artigo 102
1 - Todos os tratados e todos os acordos internacionais concluídos por qualquer membro
das Nações Unidas depois da entrada em vigor da presente Carta deverão, dentro do mais
breve prazo possível, ser registados e publicados pelo Secretariado.
2 - Nenhuma parte em qualquer tratado ou acordo internacional que não tenha sido
registado em conformidade com as disposições do n.º 1 deste artigo poderá invocar tal
tratado ou acordo perante qualquer órgão das Nações Unidas.

Artigo 103
No caso de conflito entre as obrigações dos membros das Nações Unidas em virtude da
presente Carta e as obrigações resultantes de qualquer outro acordo internacional,
prevalecerão as obrigações assumidas em virtude da presente Carta.

Artigo 104
A Organização gozará, no território de cada um dos seus membros, da capacidade jurídica
necessária ao exercício das suas funções e à realização dos seus objetivos.

Artigo 105
1 - A Organização gozará, no território de cada um dos seus membros, dos privilégios e
imunidades necessários à realização dos seus objetivos.
2 - Os representantes dos membros das Nações Unidas e os funcionários da Organização
gozarão, igualmente, dos privilégios e imunidades necessários ao exercício independente
das suas funções relacionadas com a Organização.
3 - A Assembleia Geral poderá fazer recomendações com o fim de determinar os
pormenores da aplicação dos nºs 1 e 2 deste artigo ou poderá propor aos membros das
Nações Unidas convenções nesse sentido.

142
143 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

CAPÍTULO XVIII
EMENDAS

Artigo 108
As emendas à presente Carta entrarão em vigor, para todos os membros das Nações
Unidas, quando forem adotadas pelos votos de dois terços dos membros da Assembleia
Geral e ratificadas, de acordo com os seus respetivos métodos constitucionais, por dois
terços dos membros das Nações Unidas, inclusive todos os membros permanentes do
Conselho de Segurança.

[…]

7. Constituição da Organização Mundial de Saúde

http://bibliobase.sermais.pt:8008/BiblioNET/Upload/PDF2/0902_Constituição%20da%20Organização%2
0Mundial%20da%20Saúde.pdf

Os Estados parte desta Constituição declaram, em conformidade com a Carta das Nações
Unidas, que os seguintes princípios são basilares para a felicidade dos povos, para as suas
relações harmoniosas e para a sua segurança;
A saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas
na ausência de doença ou de enfermidade.
Gozar do melhor estado de saúde que é possível atingir constitui um dos direitos
fundamentais de todo o ser humano, sem distinção de raça, de religião, de credo político,
de condição económica ou social.
A saúde de todos os povos é essencial para conseguir a paz e a segurança e depende da
mais estreita cooperação dos indivíduos e dos Estados.
Os resultados conseguidos por cada Estado na promoção e proteção da saúde são de valor
para todos.
O desigual desenvolvimento em diferentes países no que respeita à promoção de saúde e
combate às doenças, especialmente contagiosas, constitui um perigo comum.
O desenvolvimento saudável da criança é de importância basilar; a aptidão para viver
harmoniosamente num meio variável é essencial a tal desenvolvimento.
A extensão a todos os povos dos benefícios dos conhecimentos médicos, psicológicos e
afins é essencial para atingir o mais elevado grau de saúde.
Uma opinião pública esclarecida e uma cooperação activa da parte do público são de uma
importância capital para o melhoramento da saúde dos povos.
Os Governos têm responsabilidade pela saúde dos seus povos, a qual só pode ser assumida
pelo estabelecimento de medidas sanitárias e sociais adequadas.
Aceitando estes princípios com o fim de cooperar entre si e com os outros para promover
e proteger a saúde de todos os povos, as partes contratantes concordam com a presente
Constituição e estabelecem a Organização Mundial da Saúde como um organismo
especializado, nos termos do artigo 57 da Carta das Nações Unidas.

Capítulo I
Objetivo

Artigo 1
143
144 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

O objetivo da Organização Mundial da Saúde (daqui em diante denominada Organização)


será a aquisição, por todos os povos, do nível de saúde mais elevado que for possível.

Capítulo II
Funções

Artigo 2
Para conseguir o seu objetivo, as funções da Organização serão:
a) Atuar como autoridade diretora e coordenadora dos trabalhos internacionais no
domínio da saúde;
b) Estabelecer e manter colaboração efetiva com as Nações Unidas, organismos
especializados, administrações sanitárias governamentais, grupos profissionais e outras
organizações que se julgue apropriado;
c) Auxiliar os Governos, a seu pedido, a melhorar os serviços de saúde;
d) Fornecer a assistência técnica apropriada e, em caso de urgência, a ajuda necessária, a
pedido dos Governos ou com o seu consentimento;
e) Prestar ou ajudar a prestar, a pedido das Nações Unidas, serviços sanitários e
facilidades a grupos especiais, tais como populações de territórios sob tutela;
f) Estabelecer e manter os serviços administrativos e técnicos julgados necessários,
compreendendo os serviços de epidemiologia e de estatística;
g) Estimular e aperfeiçoar os trabalhos para eliminar doenças epidémicas, endémicas e
outras;
h) Promover, em cooperação com outros organismos especializados, quando for
necessário, a prevenção de danos por acidente;
i) Promover, em cooperação com outros organismos especializados, quando for
necessário, o melhoramento da alimentação, da habitação, do saneamento, do recreio, das
condições económicas e de trabalho e de outros fatores de higiene do meio ambiente;
j) Promover a cooperação entre os grupos científicos e profissionais que contribuem para
o progresso da saúde;
k) Propor convenções, acordos e regulamentos e fazer recomendações respeitantes a
assuntos internacionais de saúde e desempenhar as funções que neles sejam atribuídas à
Organização, quando compatíveis com os seus fins;
l) Promover a saúde e o bem-estar da mãe e da criança e favorecer a aptidão para viver
harmoniosamente num meio variável;
m) Favorecer todas as atividades no campo da saúde mental, especialmente as que afetam
a harmonia das relações humanas;
n) Promover e orientar a investigação no domínio da saúde;
o) Promover o melhoramento das normas de ensino e de formação prática do pessoal
sanitário, médico e de profissões afins;
p) Estudar e relatar, em cooperação com outros organismos especializados, quando for
necessário, as técnicas administrativas e sociais referentes à saúde pública e aos cuidados
médicos sob os pontos de vista preventivo e curativo, incluindo os serviços hospitalares
e a segurança social;
q) Fornecer informações, pareceres e assistência no domínio da saúde;
r) Ajudar a formar entre todos os povos uma opinião pública esclarecida sobre assuntos
de saúde;
s) Estabelecer e rever, conforme for necessário, a nomenclatura internacional das
doenças, das causas de morte e dos métodos de saúde pública;

144
145 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

t) Estabelecer normas para métodos de diagnóstico, conforme for necessário;


u) Desenvolver, estabelecer e promover normas internacionais com respeito aos
alimentos, aos produtos biológicos, farmacêuticos e semelhantes;
v) Dum modo geral, tomar as medidas necessárias para alcançar os fins da Organização.

Capítulo III
Membros e membros associados

Artigo 3
A qualidade de membro da Organização é acessível a todos os Estados.

Artigo 4
Os Estados membros das Nações Unidas podem tornar-se membros da Organização
assinando ou aceitando de qualquer outra maneira esta Constituição, de acordo com as
disposições do capítulo XIX e de acordo com as suas normas constitucionais.

(…)
Artigo 7
Se um Estado membro não cumprir as suas obrigações financeiras para com a
Organização, ou em outras circunstâncias excecionais, a Assembleia da Saúde pode, em
condições que ela julgue apropriadas suspender os privilégios de voto e os serviços a que
um Estado membro tem direito. A Assembleia da Saúde terá autoridade para restabelecer
tais privilégios de voto e serviços.

(…)

Capítulo IV
Órgãos

Artigo 9
O funcionamento da Organização é assegurado por:
a) A Assembleia Mundial da Saúde (daqui em diante denominada Assembleia da Saúde);
b) O Conselho Executivo (daqui em diante denominado Conselho);
c) O Secretariado.

Capítulo V
Assembleia Mundial da Saúde

Artigo 10
A Assembleia da Saúde é composta por delegados representando os Estados membros.
(…)
Artigo 17
A Assembleia da Saúde adotará o seu próprio regulamento.

Artigo 18

145
146 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

As funções da Assembleia da Saúde serão:


a) Determinar a política da Organização;
b) Indicar os Estados membros com direito a designar uma pessoa para fazer parte do
Conselho;
c) Nomear o diretor-geral;
d) Rever e aprovar os relatórios e as atividades do Conselho e do diretor-geral, dar ao
Conselho instruções em relação com os assuntos sobre os quais possam considerar-se
convenientes medidas, estudos, investigações ou elaboração de relatórios;
e) Criar as comissões que considere necessárias às atividades da Organização;
f) Fiscalizar a política financeira da Organização e rever e aprovar o orçamento;
g) Dar instruções ao Conselho e ao diretor-geral para chamar a atenção dos Estados
membros e das organizações internacionais, governamentais ou não governamentais,
sobre qualquer assunto respeitante à saúde que a Assembleia considere apropriado;
h) Convidar qualquer organização internacional ou nacional, governamental ou não
governamental, que tenha responsabilidades relacionadas com as da Organização, a
nomear representantes para participar, sem direito de voto, nas suas sessões ou nas das
comissões e conferências reunidas sob a sua autoridade, nas condições prescritas pela
Assembleia da Saúde; mas, no caso de organizações nacionais, os convites só serão
enviados com o consentimento do Governo interessado;
i) Considerar recomendações que tratem de saúde, feitas pela Assembleia Geral, pelo
Conselho Económico e Social, pelo Conselho de Segurança ou pelo Conselho de Tutela
das Nações Unidas e informá-los das medidas tomadas pela Organização para levar a
efeito tais recomendações;
j) Relatar ao Conselho Económico e Social, em conformidade com as disposições de
qualquer acordo realizado entre a Organização e as Nações Unidas;
k) Promover e dirigir investigações no domínio da saúde pelo pessoal da Organização,
pelo estabelecimento das suas próprias instituições ou pela cooperação com instituições
oficiais ou não oficiais de qualquer Estado membro, com o consentimento do respetivo
Governo;
l) Criar quaisquer outras instituições que considere convenientes;
m) Tomar quaisquer outras medidas tendentes a realizar o objetivo da Organização.

Artigo 19
A Assembleia da Saúde terá autoridade para adotar convenções ou acordos respeitantes a
qualquer assunto que seja da competência da Organização. Será necessário uma maioria
de dois terços dos votos da Assembleia da Saúde para a adoção de tais convenções ou
acordos, que entrarão em vigor para cada Estado membro quando aceites por ele em
conformidade com as suas normas constitucionais.
(…)
Capítulo VI
Conselho Executivo

Artigo 24
O Conselho será composto por dezoito pessoas indicadas por outros tantos Estados
membros. A Assembleia da Saúde, tendo em conta uma distribuição geográfica
equitativa, elegerá os Estados membros, com direito a indicar uma pessoa para fazer parte
do Conselho. Cada um destes Estados membros nomeará para o Conselho uma pessoa

146
147 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

tecnicamente qualificada no domínio da saúde, que poderá ser acompanhada por


substitutos e conselheiros.
(…)
Artigo 27
O Conselho elegerá o seu presidente de entre os seus membros e adotará o seu próprio
regulamento.

Artigo 28
As funções do Conselho serão:
a) Executar as decisões e as diretrizes da Assembleia da Saúde;
b) Atuar como órgão executivo da Assembleia da Saúde;
c) Exercer todas as funções que lhe sejam confiadas pela Assembleia da Saúde;
d) Aconselhar a Assembleia da Saúde sobre as questões que lhe sejam apresentadas por
aquele organismo e sobre os assuntos atribuídos à Organização por convenções, acordos
e regulamentos;
e) Submeter pareceres ou propostas à Assembleia da Saúde, por sua própria iniciativa;
f) Preparar as ordens do dia das sessões da Assembleia da Saúde;
g) Apresentar à Assembleia da Saúde, para exame e aprovação, um programa geral de
trabalho referido a um período determinado;
h) Estudar todos os assuntos dependentes da sua competência;
i) Tomar medidas de urgência dentro das funções e recursos financeiros da Organização
para tratar de acontecimentos que exijam ação imediata.
Em particular pode autorizar o diretor-geral a tomar as medidas necessárias para combater
as epidemias, participar no empreendimento de socorros sanitários a levar às vítimas de
uma catástrofe e realizar estudos ou investigações sobre a urgência dos quais tenha sido
chamada a atenção do Conselho por qualquer Estado membro ou pelo diretor-geral.

Artigo 29
O Conselho exercerá, em nome da Assembleia da Saúde integralmente, os poderes que
lhe são cometidos por este organismo.
(…)

Capítulo XVI
Relações com outras organizações

Artigo 69
A Organização será posta em conexão com as Nações Unidas como uma das instituições
especializadas referidas no artigo 57 da Carta das Nações Unidas. O acordo ou acordos
pondo a Organização em conexão com as Nações Unidas ficarão sujeitos à aprovação por
uma votação de dois terços da Assembleia da Saúde.

Artigo 70
A Organização estabelecerá relações efetivas e cooperará estreitamente com outras
organizações intergovernamentais quando for conveniente. Qualquer acordo formal
concluído com tais organizações ficará sujeito à aprovação por uma votação de dois terços
da Assembleia da Saúde.

Artigo 71

147
148 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

A Organização pode, em assunto dentro da sua competência, tomar todas as disposições


convenientes para consultar e cooperar com organizações internacionais ou
governamentais e, com aprovação do Governo interessado, com organizações nacionais,
governamentais ou não governamentais.

Artigo 72
Sob reserva de aprovação por uma votação de dois terços da Assembleia da Saúde, a
Organização pode tomar a seu cargo, de qualquer outra organização ou instituição
internacional cujos fins e atividades caibam no domínio da competência da Organização,
as funções, recursos e obrigações que possam ser atribuídos à Organização, por acordo
internacional ou por acordos mutuamente aceitáveis, concluídos entre as autoridades
competentes das respetivas organizações.

8. Tratado da Organização do Atlântico Norte, 4 de abril de 1949

Os Estados Partes no presente Tratado,


Reafirmando a sua fé nos intuitos e princípios da Carta das Nações Unidas e o desejo de
viver em paz com todos os povos e com todos os Governos;
Decididos a salvaguardar a liberdade, herança comum e civilização dos seus povos,
fundadas nos princípios da democracia, das liberdades individuais e do respeito pelo
direito:
Desejosos de favorecer a estabilidade e o bem-estar na área do Atlântico Norte;
Resolvidos a congregar os seus esforços para a defesa coletiva e a preservação da paz e
da segurança;
Acordam no presente Tratado da Organização do Atlântico Norte:

Artigo 1
As Partes comprometem-se, de acordo com o estabelecido na Carta das Nações Unidas,
a regular por meios pacíficos todas as divergências internacionais em que possam
encontrar-se envolvidas, por forma que não façam perigar a paz e a segurança
internacionais, assim como a justiça, e a não recorrer, nas relações internacionais, a
ameaças ou ao emprego da força de qualquer forma incompatível com os fins das Nações
Unidas.

Artigo 2
As partes contribuirão para o desenvolvimento das relações internacionais pacíficas e
amigáveis mediante o revigoramento das suas livres instituições, melhor compreensão
dos princípios sobre que se fundam e o desenvolvimento das condições próprias para
assegurar a estabilidade e o bem-estar. As Partes esforçar-se-ão por eliminar qualquer
oposição entre as respetivas políticas económicas internacionais e encorajarão a
colaboração económica entre cada uma delas e qualquer das outras ou entre todas.

Artigo 3
A fim de atingir mais eficazmente os fins deste Tratado, as Partes, tanto individualmente
como em conjunto, manterão e desenvolverão, de maneira contínua e efetiva, pelos seus

148
149 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

próprios meios e mediante mútuo auxílio, a sua capacidade individual e coletiva para
resistir a um ataque armado.

Artigo 4
As Partes consultar-se-ão sempre que, na opinião de qualquer delas, estiver ameaçada a
integridade territorial, a independência política ou a segurança de uma das Partes.

Artigo 5
As Partes concordam em que um ataque armado contra uma ou várias delas na Europa ou
na América do Norte será considerado um ataque a todas, e, consequentemente,
concordam em que, se um tal ataque armado se verificar, cada uma, no exercício do
direito de legítima defesa, individual ou coletiva, reconhecido pelo artigo 51, da Carta das
Nações Unidas, prestará assistência à Parte ou Partes assim atacadas, praticando sem
demora, individualmente e de acordo com as restantes Partes, a ação que considerar
necessária, inclusive o emprego da força armada, para restaurar e garantir a segurança na
região do Atlântico Norte.
Qualquer ataque armado desta natureza e todas as providências tomadas em consequência
desse ataque serão imediatamente comunicados ao Conselho de Segurança. Essas
providências terminarão logo que o Conselho de Segurança tiver tomado as providências
necessárias para restaurar e manter a paz e a segurança internacionais.
[…]

9. Acordo OMC – Acordo que Cria a Organização Mundial do Comércio, 1 de


janeiro de 1995

As Partes no presente Acordo:

Reconhecendo que as suas relações no domínio comercial e económico deveriam ser


orientadas tendo em vista a melhoria dos níveis de vida, a realização do pleno emprego e
um aumento acentuado e constante dos rendimentos reais e da procura efetiva, bem como
o desenvolvimento da produção e do comércio de mercadorias e serviços, permitindo
simultaneamente otimizar a utilização dos recursos mundiais em consonância com o
objetivo de um desenvolvimento sustentável que procure proteger e preservar o ambiente
e aperfeiçoar os meios para atingir esses objetivos de um modo compatível com as
respetivas necessidades e preocupações a diferentes níveis de desenvolvimento
económico;
Reconhecendo ainda que é necessário envidar esforços positivos no sentido de assegurar
que os países em desenvolvimento e, em especial, os países menos desenvolvidos
beneficiam de uma arte do crescimento do comércio internacional que corresponda às
suas necessidades de desenvolvimento económico;
Desejosas de contribuir para a realização destes objetivos mediante a conclusão de
acordos recíprocos e mutuamente vantajosos tendo em vista a redução substancial dos
direitos aduaneiros e de outros entraves ao comércio, bem como a eliminação do
tratamento discriminatório nas relações comerciais internacionais;
Resolvidas, por conseguinte, a desenvolver um sistema comercial multilateral integrado,
mais viável e duradouro, que integre o Acordo Geral sobre Pautas Aduaneiras e

149
150 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

Comércio, os resultados dos esforços de liberalização comercial empreendidos no


passado e todos os resultados das negociações comerciais multilaterais do Uruguay
Round;
Determinados a preservar os princípios fundamentais e a promover a realização dos
objetivos subjacentes a este sistema comercial multilateral;

Acordam no seguinte:

Artigo I
Criação da Organização

É criada a Organização Mundial do Comércio (a seguir designada ‘a OMC’).

Artigo II
Âmbito da OMC

1. A OMC constituirá o enquadramento institucional comum para a condução das


relações comerciais entre os seus Membros em questões relativas a acordos e aos
instrumentos jurídicos conexos que figuram nos Anexos do presente Acordo.
2. Os acordos e os instrumentos jurídicos conexos que figuram nos Anexos 1, 2 e 3 (a
seguir designados ‘acordos comerciais multilaterais’) fazem parte integrante do presente
Acordo e são vinculativos para todos os Membros.
(…)

Artigo III
Funções da OMC

1. A OMC facilitará a aplicação, gestão e funcionamento do presente Acordo e dos


acordos comerciais multilaterais e promoverá a realização dos seus objetivos,
constituindo igualmente o enquadramento para a aplicação, gestão e funcionamento dos
acordos comerciais plurilaterais.
2. A OMC constituirá o fórum para as negociações entre os seus Membros no que respeita
às suas relações comerciais multilaterais em questões abrangidas pelos acordos que
figuram nos anexos ao presente Acordo. A OMC, poderá igualmente constituir um fórum
para a realização de outras negociações entre os seus Membrosno que respeita às suas
relações multilaterais, bem como um enquadramento na aplicação dos resultados de tais
negociações caso a Conferência Ministerial assim o decida.
(…)
5. A fim de conferir uma maior coerência à elaboração das políticas económicas mundiais,
a OMC cooperará, conforme adequado, com o Fundo Monetário Internacional e com o
Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento e respetivas agências.

Artigo IV
Estrutura da OMC

150
151 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

1. Será instituída uma Conferência Ministerial composta por representantes de todos os


membros, que se reunirá, pelo menos, uma vez de dois em dois anos. A Conferência
Ministerial exercerá as funções da OMC e tomará as medidas necessárias para o efeito.
A Conferência Ministerial será competente para decidir de todas as questões abrangidas
por qualquer dos acordos comerciais multilaterais, se para tal for solicitada por um
membro, em conformidade com os requisitos específicos em matéria de tomada de
decisões do presente acordo e do acordo comercial multilateral aplicável.
2. Será instituído um Conselho Geral composto por representantes de todos os membros,
que se reunirá quando necessário. No intervalo entre as reuniões da Conferência
Ministerial, as funções desta serão exercidas pelo Conselho Geral. O Conselho Geral
exercerá igualmente as funções que lhe incumbem por força do presente acordo. O
Conselho Geral estabelecerá o seu regulamento interno e aprovará os regulamentos
internos dos comités previsos no nº 7.
3. O Conselho Geral reunir-se-á, quando necessário, para desempenhar funções de Órgão
de Resolução de Litígios, tal como previso no Memorando de Entendimento sobre a
Resolução de Litígios. O Órgão de Resolução de Litígios pode ter o seu próprio presidente
e estabelecerá o regulamento interno que considere necessário para o cumprimento
daquelas funções.
4. O Conselho Geral reunir-se-á, quando necessário, para desempenhar as funções de
Órgão de Exame das Políticas Comerciais previsto no Mecanismo de Exame das Políticas
Comerciais. O Órgão de Exame das Políticas Comerciais pode ter o seu próprio presidente
e estabelecerá o regulamento interno que considere necessário para o cumprimento
daquelas funções.
(…)
6. O Conselho do Comércio de Mercadorias, o Conselho do Comércio de Serviços e o
Conselho TRIPS instituirão órgãos subsidiários em função das necessidades. Esses
órgãos subsidiários estabelecerão os respetivos regulamentos internos, sujeitos à
aprovação dos respetivos Conselhos.
(…)

Artigo V
Relações com outras organizações

1. O Conselho Geral tomará as medidas adequadas para garantir uma cooperação eficaz
com outras organizações intergovernamentais cujas competências estejam relacionadas
com as da OMC.
2. O Conselho Geral pode tomar as medidas adequadas para a consulta e cooperação com
organizações não governamentais que se ocupem de questões relacionadas com as da
OMC.
(…)

Artigo VIII
Estatuto da OMC

1. A OMC será dotada de personalidade jurídica, sendo-lhe concedida pelos seus


Membros a capacidade jurídica que se afigure necessária para o exercício das suas
funções.

151
152 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

2. Os Membros da OMC conceder-lhe-ão os privilégios e imunidades necessários para o


exercício das suas funções.
3. Os Membros da OMC concederão igualmente aos funcionários desta última e aos
representantes dos Membros os privilégios e imunidades necessários para o exercício
independente das suas funções relacionadas com a OMC.
4. Os privilégios e imunidades a conceder por um membro à OMC, aos seus funcionários
e aos representantes dos seus membros serão análogos aos privilégios e imunidades
previstos na Convenção sobre Privilégios e Imunidades das Instituições Especializadas,
aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 21 de novembro de 1947.
5. A OMC poderá concluir um acordo de sede.

Questões
a) Quais são as características que permitem identificar um tratado como constitutivo de
uma organização internacional? Identifique, recorrendo aos excertos apresentados, alguns
exemplos.
b) Considerando as categorizações estudadas a propósito das organizações internacionais
(segundo o objeto, poderes e extensão), analise os excertos apresentados a propósito das
Nações Unidas, da Organização Mundial do Comércio, da Organização Mundial de
Saúde, e da Organização do Atlântico Norte.
c) Qual a importância de as organizações internacionais terem órgãos com competências
próprias?

O INDIVÍDUO

A) Direitos

1. Protocolo Facultativo Referente ao Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e


Políticos, adotado e aberto à assinatura, ratificação e adesão pela resolução 2200A
(XXI) da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 16 de dezembro de 1966
(...)

ARTIGO 1.º
Os Estados partes no Pacto que se tornem partes no presente Protocolo reconhecem que
o Comité tem competência para receber e examinar comunicações provenientes de
particulares sujeitos à sua jurisdição que aleguem ser vítimas de uma violação, por esses
Estados Partes, de qualquer dos direitos enunciados no Pacto. O Comité não recebe
nenhuma comunicação respeitante a um Estado Parte no Pacto que não seja parte no
presente Protocolo.
(…)
ARTIGO 5.º
1 - O Comité examina as comunicações recebidas em virtude do presente Protocolo, tendo
em conta todas as informações escritas que lhe são submetidas pelo particular e pelo
Estado parte interessado.
2 - O Comité não examinará nenhuma comunicação de um particular sem se assegurar
de que:

152
153 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

a) A mesma questão não está a ser examinada por outra instância internacional de
inquérito ou de decisão;
b) O particular esgotou todos os recursos internos disponíveis. Esta regra não se aplica
se os processos de recurso excederem prazos razoáveis.
3 - O Comité realiza as suas sessões à porta fechada quando examina as comunicações
previstas no presente Protocolo.
4 - O Comité comunica as suas constatações ao Estado parte interessado e ao particular.

2. Convenção Europeia dos Direitos Humanos, adotada pelo Conselho da Europa,


em 4 de novembro de 1950
(...)
ARTIGO 1°
Obrigação de respeitar os direitos do homem
As Altas Partes Contratantes reconhecem a qualquer pessoa dependente da sua jurisdição
os direitos e liberdades definidos no título I da presente Convenção.
(…)
ARTIGO 19°
Criação do Tribunal
A fim de assegurar o respeito dos compromissos que resultam, para as Altas Partes
Contratantes, da presente Convenção e dos seus protocolos, é criado um Tribunal Europeu
dos Direitos do Homem, a seguir designado “o Tribunal”, o qual funcionará a título
permanente.
(…)
ARTIGO 34°
Petições individuais
O Tribunal pode receber petições de qualquer pessoa singular, organização não
governamental ou grupo de particulares que se considere vítima de violação por qualquer
Alta Parte Contratante dos direitos reconhecidos na Convenção ou nos seus protocolos.
As Altas Partes Contratantes comprometem -se a não criar qualquer entrave ao exercício
efetivo desse direito.
(…)
ARTIGO 46°
Força vinculativa e execução das sentenças
1. As Altas Partes Contratantes obrigam-se a respeitar as sentenças definitivas do
Tribunal nos litígios em que forem partes.
2. A sentença definitiva do Tribunal será transmitida ao Comité de Ministros, o qual
velará pela sua execução. (…)

3. 1. Convenção de Viena sobre Relações Consulares, de 24 de abril de 1963

Artigo 36
Comunicação com os nacionais do Estado que envia
1. A fim de facilitar o exercício das funções consulares relativas aos nacionais do Estado
que envia:

153
154 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

a) Os funcionários consulares terão liberdade de se comunicar com os nacionais do Estado


que envia e visitá-los. Os nacionais do Estado que envia terão a mesma liberdade de se
comunicar com os funcionários consulares e de os visitar;
b) Se o interessado assim o solicitar, as autoridades competentes do Estado recetor
deverão, sem tardar, informar o posto consular competente quando, na sua área de
jurisdição, um nacional do Estado que envia for preso, encarcerado, posto em prisão
preventiva ou detido de qualquer outra maneira. Qualquer comunicação endereçada ao
posto consular pela pessoa detida, encarcerada ou presa preventivamente deve igualmente
ser transmitida sem tardar pelas referidas autoridades. Estas deverão imediatamente
informar o interessado dos seus direitos, nos termos da presente alínea;
c) Os funcionários consulares terão direito a visitar o nacional do Estado que envia que
esteja encarcerado, preso preventivamente ou detido de qualquer outra maneira, conversar
e corresponder-se com ele e providenciar quanto à sua defesa perante os tribunais. Terão
igualmente o direito de visitar o nacional do Estado que envia que, na sua área de
jurisdição, esteja encarcerado ou detido em execução de uma sentença. Todavia, os
funcionários consulares deverão abster-se de intervir em favor de um nacional
encarcerado, preso preventivamente ou detido de qualquer outra maneira sempre que o
interessado a isso se opuser expressamente.
2. Os direitos a que se refere o parágrafo 1 do presente artigo serão exercidos de acordo
com as leis e regulamentos do Estado recetor, entendendo-se, contudo, que tais leis e
regulamentos não devem impedir o pleno efeito dos direitos reconhecidos pelo presente
artigo.

3.2. Tribunal Internacional de Justiça, Caso LaGrand, Alemanha c. Estados Unidos


da América, Decisão de 27 de junho de 2001

(...)
75. A Alemanha alega ainda que “o incumprimento do Artigo 36 pelos Estados Unidos
não apenas infringiu os direitos da Alemanha enquanto Estado parte na Convenção [de
Viena] mas também implicou uma violação dos direitos individuais dos irmãos
LaGrand”. Invocando o seu direito à proteção diplomática, a Alemanha procura também
obter a reparação dos Estados Unidos com este fundamento.
A Alemanha sustenta que o direito a ser informado dos direitos decorrentes da alínea b)
do n.º 1 do Artigo 36 da Convenção de Viena, é um direito individual de todo o nacional
de um Estado parte na Convenção que entre no território de outro Estado parte. Afirma
que a sua posição é suportada pelo sentido comum dos termos da alínea b) do n.º 1 do
Artigo 36 da Convenção de Viena, uma vez que a última frase dessa disposição menciona
os “direitos” nos termos da presente alínea do “interessado”, isto é, do nacional
estrangeiro detido ou preso. A Alemanha acrescenta que o disposto na alínea b) do n.º 1
do Artigo 36, nos termos do qual compete à pessoa detida decidir se a notificação consular
deve ser realizada, tem o efeito de atribuir um direito individual ao nacional estrangeiro
em causa. Na sua opinião, o contexto do Artigo 36 apoia esta conclusão uma vez que
abrange quer os interesses dos Estados que enviam e dos que são recetores, quer os dos
indivíduos. De acordo com a Alemanha, os travaux préparatoires da Convenção de Viena
conferem apoio adicional a esta interpretação. Para além disso, a Alemanha afirma que a
“Declaração das Nações Unidas sobre os direitos humanos de indivíduos que não são
nacionais do país onde residem”, adotada pela resolução da Assembleia Geral 40/144, de

154
155 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

13 de dezembro de 1985, confirma o entendimento de que o direito de acesso ao


consulado do Estado, assim como a informação sobre este direito, constitui um direito
individual dos nacionais estrangeiros e devem ser considerados como direitos humanos
dos estrangeiros.
76. Os Estados Unidos questionam o que é que esta pretensão adicional da proteção
diplomática contribui para o caso e argumentam que não existe paralelo entre o caso atual
e os casos de proteção diplomática envolvendo a apropriação por um Estado de
reclamações económicas dos seus nacionais. Os Estados Unidos afirmam que o direito de
um Estado a prestar assistência a nacionais detidos noutro país, e o direito do Estado a
assumir as reclamações dos seus nacionais através da proteção diplomática, são
juridicamente de natureza distinta.
Os Estados Unidos alegam, além disso, que os direitos de notificação e acesso consular
nos termos da Convenção de Viena são direitos de Estados, e não de indivíduos, ainda
que esses direitos possam beneficiar indivíduos ao permitir aos Estados oferecer-lhes
assistência consular. Afirmam que o tratamento devido aos indivíduos de acordo com a
Convenção está inextricavelmente ligado e decorre do direito do Estado, atuando através
do seu funcionário consular, de comunicar com os seus nacionais, e não constitui um
direito fundamental ou um direito humano. Os Estados Unidos alegam que o facto de os
termos do Artigo 36 reconhecerem os direitos de indivíduos não determina a natureza
desses direitos ou a das medidas de correção prescritas pela Convenção de Viena em caso
de incumprimento daquele Artigo. Sublinham que o Artigo 36 começa com as palavras,
“[a] fim de facilitar o exercício das funções consulares relativas aos nacionais do Estado
que envia”, e que esta redação não dá apoio ao entendimento que os direitos e as
obrigações enumerados no n.º 1 desse Artigo se destinam a garantir que nacionais do
Estado que envia possuem quaisquer direitos ou tratamento específicos no contexto de
um procedimento criminal. Os travaux préparatoires da Convenção de Viena, segundo
os Estados Unidos, não refletem um consenso de que o Artigo 36 se referia a direitos
individuais imutáveis, por oposição a direitos individuais decorrentes de direitos de
Estados.
77. O Tribunal observa que a alínea b) do n.º 1 do Artigo 36 especifica as obrigações que
o Estado recetor tem relativamente à pessoa detida e ao Estado que envia. Dispõe que, a
pedido da pessoa detida, o Estado recetor deve informar o posto consular do Estado que
envia da detenção do indivíduo “sem tardar”. Significativamente, esta alínea termina com
a seguinte linguagem: “Estas [as autoridades do Estado recetor] deverão imediatamente
informar o interessado dos seus direitos, nos termos da presente alínea” (itálico
acrescentado). Por outro lado, nos termos da alínea c), do n.º 1, do Artigo 36, o direito do
Estado que envia a prestar assistência consular à pessoa detida pode não ser exercitado
“sempre que o interessado a isso se opuser expressamente”. A clareza destas disposições,
vistas no seu contexto, não admite qualquer dúvida. Daqui decorre, como foi sustentado
em várias ocasiões, que o Tribunal deve aplicá-las tal qual (...). Com base no texto destas
disposições, o Tribunal conclui que o Artigo 36, n.º 1, cria direitos individuais, que, em
virtude do Artigo I do Protocolo Opcional, podem ser invocados neste Tribunal pelo
Estado nacional da pessoa detida. Estes direitos foram violados no presente caso. (...)

155
156 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

B) Deveres

1. Carta do Tribunal Militar Internacional – Anexo ao Acordo de Londres de


(1945)
(...)
Artigo 1
Em execução do Acordo assinado a 8 de agosto de 1945 pelo Governo dos Estados Unidos
da América, o Governo Provisório da República Francesa, o Governo do Reino Unido da
Grã-Bretanha e Irlanda do Norte e o Governo da União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas, estabelece-se um Tribunal Militar Internacional (doravante designado como
“o Tribunal”) para o julgamento justo e célere e a punição dos principais criminosos da
Europa do Eixo.
(...)
Artigo 6
O Tribunal estabelecido pelo Acordo referido no Artigo 1 para a acusação e punição dos
principais criminosos de guerra dos países da Europa do Eixo terá competência para julgar
e punir as pessoas que, agindo no interesse dos países da Europa do Eixo, quer a título
individual ou na qualidade de membros de organizações, tenham cometido um dos crimes
seguintes.
Os atos seguintes, ou qualquer um deles, são crimes incluídos na competência do
Tribunal, para os quais caberá responsabilidade individual:
a) Crimes contra a paz: nomeadamente, o planeamento, preparação, iniciação ou
lançamento de uma guerra de agressão, ou de uma guerra em violação de tratados
internacionais [...]
b) Crimes de guerra: nomeadamente, violações de leis ou costumes de guerra [...]
c) Crimes contra a humanidade: nomeadamente, homicídio, extermínio, escravatura,
deportação e outros atos desumanos cometidos contra qualquer população civil, antes ou
durante a guerra; ou perseguições por motivos políticos, raciais ou religiosos, em
execução de, ou relacionados com qualquer crime incluído na jurisdição do Tribunal,
tenham ou não ocorrido em violação do direito interno do país onde tiverem sido
perpetrados.

2. Acórdão do Tribunal Militar Internacional de Nuremberga (30 de setembro-1 de


outubro de 1946)

[...] Foi alegado que o direito internacional apenas se ocupa das condutas de Estados
soberanos, e não prevê qualquer punição para indivíduos; e ainda que onde o facto em
causa é um facto do Estado, aqueles que o praticam não são pessoalmente responsáveis,
antes são protegidos pela doutrina da soberania do Estado. Na opinião do Tribunal, ambas
as alegações devem ser rejeitadas. Que o direito internacional impõe deveres e
responsabilidades aos indivíduos, assim como aos Estados, desde há muito é reconhecido.
No recente caso Ex parte Quirin (1942, 317 U.S. 1), perante o Tribunal Supremo dos
Estados Unidos, foram acusados indivíduos, durante a guerra, de desembarcarem nos
Estados Unidos com o objetivo de espiar e sabotar. O Chief Justice Stone, falando em
nome do tribunal afirmou:
“Desde o começo da sua história este tribunal tem aplicado o direito da guerra como
abrangendo aquela parte do direito internacional que prescreve a conduta durante a

156
157 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

guerra, o estatuto, os direitos e deveres das nações inimigas assim como os das pessoas
inimigas.”
Continuou dando uma lista de casos julgados por tribunais, em que perpetradores
individuais foram acusados de crimes contra o direito das nações, e em especial o direito
da guerra. Muitas outras autoridades podiam ser citadas, mas já foi referido o suficiente
para demonstrar que os indivíduos podem ser punidos por violações do direito
internacional. Os crimes contra o direito internacional são cometidos por homens, não por
entidades abstratas, e só punindo os indivíduos que cometeram tais crimes é que as
normas de direito internacional podem ser garantidas.
O disposto no já referido Artigo 228 do Tratado de Versalhes ilustra e reforça este
entendimento da responsabilidade individual.
O princípio de direito internacional que, em certas circunstâncias, protege os
representantes de um Estado, não pode ser aplicado a condutas que são sancionadas como
criminosas pelo direito internacional. Os autores destas condutas não podem escudar-se
atrás da sua posição oficial com a finalidade de livrarem-se da punição em procedimento
próprio. O Artigo 7 da Carta declara expressamente:
A posição oficial dos réus, quer como Chefes de Estado, ou dirigentes responsáveis em
departamentos governamentais, não será admitida como eximindo-os da sua
responsabilidade, ou atenuando a punição.
Por outro lado, a verdadeira essência da Carta é que os indivíduos têm deveres
internacionais que transcendem as obrigações nacionais de obediência impostas por cada
Estado. Aquele que violar o direito da guerra não pode obter imunidade por atuar no
exercício da autoridade do Estado, se o Estado ao autorizar tais condutas extravasa a sua
competência segundo o direito internacional.

3. Estatuto do Tribunal Penal Internacional, adotado em Roma a 17 de julho de 1998

Os Estados Partes no presente Estatuto: (…)


Tendo presente que, no decurso deste século, milhões de crianças, homens e mulheres
têm sido vítimas de atrocidades inimagináveis que chocam profundamente a consciência
da Humanidade;
Reconhecendo que crimes de uma tal gravidade constituem uma ameaça à paz, à
segurança e ao bem-estar da Humanidade;
Afirmando que os crimes de maior gravidade que afetam a comunidade internacional no
seu conjunto não devem ficar impunes e que a sua repressão deve ser efetivamente
assegurada através da adoção de medidas a nível nacional e do reforço da cooperação
internacional;
Decididos a pôr fim à impunidade dos autores desses crimes e a contribuir assim para a
prevenção de tais crimes; (…)
Determinados em prosseguir este objetivo e, no interesse das gerações presentes e
vindouras, a criar um tribunal penal internacional com carácter permanente e
independente no âmbito do sistema das Nações Unidas, e com jurisdição sobre os crimes
de maior gravidade que afetem a comunidade internacional no seu conjunto; (…)

Artigo 1.º
O Tribunal
É criado, pelo presente instrumento, um Tribunal Penal Internacional («o Tribunal»). O
Tribunal será uma instituição permanente, com jurisdição sobre as pessoas responsáveis

157
158 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

pelos crimes de maior gravidade com alcance internacional, de acordo com o presente
Estatuto, e será complementar das jurisdições penais nacionais. A competência e o
funcionamento do Tribunal reger-se-ão pelo presente Estatuto.
(…)
Artigo 5.º
Crimes da competência do Tribunal
1 - A competência do Tribunal restringir-se-á aos crimes mais graves que afetam a
comunidade internacional no seu conjunto. Nos termos do presente Estatuto, o Tribunal
terá competência para julgar os seguintes crimes:
a) O crime de genocídio;
b) Os crimes contra a Humanidade;
c) Os crimes de guerra;
d) O crime de agressão.
(…)
Artigo 25.º
Responsabilidade criminal individual
1 - De acordo com o presente Estatuto, o Tribunal será competente para julgar as pessoas
singulares.
2 - Quem cometer um crime da competência do Tribunal será considerado
individualmente responsável e poderá ser punido de acordo com o presente Estatuto. (…)
4 - O disposto no presente Estatuto sobre a responsabilidade criminal das pessoas
singulares em nada afetará a responsabilidade do Estado, de acordo com o direito
internacional.

4. Tribunal Penal Internacional para o Ruanda, Procurador v. Joseph Kanyabashi,


Decisão sobre a Moção da Defesa sobre a Jurisdição (Caso n.º ICTR 96-15-T)

(...)
B.4. Sobre as objeções do advogado de defesa contra a jurisdição do Tribunal sobre
indivíduos
§33. O advogado de defesa alega ainda que atribuir ao Tribunal jurisdição sobre
indivíduos é inconsistente com a Carta das NU, pela razão de que o Conselho de
Segurança não tem autoridade sobre indivíduos, e que apenas os Estados podem ameaçar
a paz e segurança internacionais.
§34. O Procurador respondeu a esta alegação citando os Julgamentos de Nuremberga, nos
quais, na opinião do Procurador, ficou estabelecido que os indivíduos que cometeram
crimes de acordo com o direito internacional podem ser diretamente responsabilizados
criminalmente segundo o direito internacional. O procurador alegou ainda que a
atribuição de responsabilidade criminal individual é uma expressão fundamental da
necessidade de medidas coercitivas pelo Conselho de Segurança. É, com efeito, difícil
separar a individuo do Estado, uma vez que os deveres e os direitos dos Estados são
apenas deveres e direitos dos indivíduos que os compõem, e como o direito internacional
criminal, como outros ramos do direito, lida com a regulação da conduta humana. É aos
indivíduos, não a abstrações, que o direito internacional se aplica, e é contra os indivíduos
que deve prever sanções. Nas palavras do Procurador Adjunto no julgamento de Frank
Hans [Hans Frank] em 1946:

158
159 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

“Parece intolerável a qualquer ser humano com bom senso que os homens que
colocaram a sua vontade à disposição da entidade Estadual de modo a usar o poder e
os recursos materiais desta entidade para chacinar, como o fizeram, milhões de seres
humanos na execução de uma política há muito definida, deva-lhes ser garantida a
imunidade. O princípio da soberania do Estado que deve proteger os homens é apenas
uma máscara; removida esta máscara, a responsabilidade dos homens reaparece.”
§35. O Juízo de 1.ª Instância relembra que a questão da responsabilidade criminal
individual direta nos termos do direito internacional é e tem sido, desde há muitas
décadas, uma questão controvertida dentro e entre os vários sistemas jurídicos e que os
julgamentos de Nuremberga em particular têm sido interpretados de forma distinta
relativamente à posição do indivíduo como sujeito de direito internacional. Ao estabelecer
os dois Tribunais Penais Internacionais para a ex-Jugoslávia e para o Ruanda, contudo, o
Conselho de Segurança expressamente alargou as obrigações jurídicas e a
responsabilidade criminal internacionais diretamente aos indivíduos pelas violações de
direito internacional humanitário. Ao fazê-lo o Conselho de Segurança introduziu uma
inovação significativa no direito internacional, mas não há nada na moção do Advogado
de Defesa que sugira que esta extensão da aplicação do direito internacional a indivíduos
não foi justificada, ou exigida, pelas circunstâncias, designadamente, a importância, a
magnitude e a gravidade dos crimes cometidos durante o conflito.

Questões
a) Considerando os vários instrumentos jurídicos internacionais acima transcritos, pode
afirmar-se que o indivíduo goza de personalidade jurídica internacional? Justifique,
apontando se, em todos os casos, chega nos mesmos termos a essa conclusão.
b) Os direitos atribuídos nas convenções de proteção internacional de direitos humanos
são de gozo universal?
c) É possível invocar a Convenção de Viena sobre relações consulares como exemplo de
atribuição direta de direitos ao indivíduo, não obstante depender do Estado da
nacionalidade fazê-los valer no plano internacional? Como justifica o TIJ a posição
adotada no caso LaGrand?
d) As decisões do Tribunal de Nuremberga e o Tribunal Penal Internacional para o
Ruanda para justificar a responsabilidade criminal internacional do individuo têm
similitudes do ponto de vista da justificação. Identifique-as e caracterize-as.

PARTICIPANTES

Declaração sobre o Direito e a Responsabilidade dos Indivíduos, Grupos ou Órgãos


da Sociedade de Promover e Proteger os Direitos Humanos e Liberdades
Fundamentais Universalmente Reconhecidos (Defensores de Direitos Humanos)

Resolução 53/144 da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 9 de dezembro de 1998.


A Assembleia Geral

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160 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

Reafirmando a importância da realização dos objetivos e princípios da Carta das Nações


Unidas para a promoção e proteção de todos os direitos humanos e liberdades
fundamentais de todas as pessoas em todos os países do mundo,
Tomando nota da resolução 1998/7 da Comissão dos Direitos do Homem, de 3 de abril
de 1998, na qual a Comissão aprovou o texto do projeto de declaração sobre o direito e a
responsabilidade dos indivíduos, grupos ou órgãos da sociedade de promover e proteger
os direitos humanos e liberdades fundamentais universalmente reconhecidos,
(…)
1. Adota a Declaração sobre o Direito e a Responsabilidade dos Indivíduos, Grupos ou
Órgãos da Sociedade de Promover e Proteger os Direitos Humanos e Liberdades
Fundamentais Universalmente Reconhecidos, anexa à presente resolução;
2. Convida os Governos, as agências e organizações do sistema das Nações Unidas e as
organizações intergovernamentais e não governamentais a intensificarem os seus esforços
para divulgar a Declaração e para promover o respeito universal e a compreensão da
mesma, e solicita ao Secretário-Geral que inclua o texto da Declaração na próxima edição
da obra Direitos Humanos: Compilação de Instrumentos Internacionais.
85.ª reunião plenária
9 de dezembro de 1998

ANEXO
Declaração sobre o Direito e a Responsabilidade dos Indivíduos, Grupos ou Órgãos da
Sociedade de Promover e Proteger os Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais
Universalmente Reconhecidos
A Assembleia Geral
Reafirmando a importância que assume a realização dos objetivos e princípios da Carta
das Nações Unidas para a promoção e proteção de todos os direitos humanos e liberdades
fundamentais de todas as pessoas em todos os países do mundo,
Reafirmando também a importância da Declaração Universal dos Direitos do Homem e
dos Pactos Internacionais sobre Direitos Humanos enquanto elementos essenciais dos
esforços internacionais para promover o respeito universal e efetivo dos direitos humanos
e liberdades fundamentais, bem como a importância de outros instrumentos de direitos
humanos adotados no âmbito do sistema das Nações Unidas e a nível regional,
Sublinhando que todos os membros da comunidade internacional deverão cumprir, em
conjunto e separadamente, a sua solene obrigação de promover e estimular o respeito dos
direitos humanos e liberdades fundamentais para todos sem qualquer distinção baseada,
nomeadamente, na raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou outra, origem
nacional ou social, condição económica, nascimento ou outra situação, e reafirmando a

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161 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

particular importância de conseguir a cooperação internacional para cumprir essa


obrigação em conformidade com a Carta das Nações Unidas,
Reconhecendo o importante papel da cooperação internacional e o importante contributo
do trabalho dos indivíduos, grupos e associações para a efetiva eliminação de todas as
violações de direitos humanos e liberdades fundamentais dos povos e dos indivíduos,
nomeadamente no que diz respeito a violações em massa, flagrantes e sistemáticas como
as que resultam do apartheid, de todas as formas de discriminação racial, do colonialismo,
do domínio ou ocupação estrangeira, da agressão ou ameaças à soberania nacional,
unidade nacional ou integridade territorial e da recusa em reconhecer o direito dos povos
à autodeterminação e o direito de todos os povos a exercerem a sua plena soberania sobre
as suas riquezas e recursos naturais,
Reconhecendo a relação entre a paz e a segurança internacionais e o gozo dos direitos
humanos e liberdades fundamentais, e consciente de que a ausência de paz e segurança
internacionais não constitui desculpa para o desrespeito destes direitos e liberdades,
Reiterando que todos os direitos humanos e liberdades fundamentais são universais,
indivisíveis, interdependentes e indissociáveis e deverão ser promovidos e realizados de
forma justa e equitativa, sem prejuízo da realização de cada um desses direitos e
liberdades,
Sublinhando que a responsabilidade e o dever primordiais de promover e proteger os
direitos humanos incumbem ao Estado,
Reconhecendo que os indivíduos, grupos e associações têm o direito e a responsabilidade
de promoverem o respeito e o conhecimento dos direitos humanos e liberdades
fundamentais a nível nacional e internacional,
Declara
Artigo 1.º
Todas as pessoas têm o direito, individualmente e em associação com outras, de promover
e lutar pela proteção e realização dos direitos humanos e das liberdades fundamentais a
nível nacional e internacional.
Artigo 2.º
1. Cada Estado tem a responsabilidade e o dever primordiais de proteger, promover e
tornar efetivos todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, nomeadamente
através da adoção das medidas necessárias à criação das devidas condições nas áreas
social, económica, política e outras, bem como das garantias jurídicas que se impõem
para assegurar que todas as pessoas sob a sua jurisdição, individualmente e em associação
com outras, possam gozar na prática esses direitos e liberdades;
2. Cada Estado deverá adotar as medidas legislativas, administrativas e outras que se
revelem necessárias para assegurar que os direitos e liberdades referidos na presente
Declaração são efetivamente garantidos.

161
162 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

(…)
Artigo 5.º
A fim de promover e proteger os direitos humanos e liberdades fundamentais, todos têm
o direito, individualmente e em associação com outros, a nível nacional e internacional:
a) De se reunir ou manifestar pacificamente;
b) De constituir organizações, associações ou grupos não governamentais, de aderir aos
mesmos e de participar nas respetivas atividades;
c) De comunicar com organizações não governamentais ou intergovernamentais.

Artigo 6.º
Todos têm o direito, individualmente e em associação com outros:
a) De conhecer, procurar, obter, receber e guardar informação sobre todos os direitos
humanos e liberdades fundamentais, nomeadamente através do acesso à informação sobre
a forma como os sistemas internos nos domínios legislativo, judicial ou administrativo
tornam efetivos esses direitos e liberdades;
b) Em conformidade com os instrumentos internacionais de direitos humanos e outros
instrumentos internacionais aplicáveis, de publicitar, comunicar ou divulgar livremente
junto de terceiros opiniões, informação e conhecimentos sobre todos os direitos humanos
e liberdades fundamentais;
c) De estudar e debater a questão de saber se todos os direitos humanos e liberdades
fundamentais são ou não respeitados, tanto na lei como na prática, de formar e defender
opiniões a tal respeito e, através destes como de outros meios adequados, de chamar a
atenção do público para estas questões.
Artigo 7.º
Todos têm o direito, individualmente e em associação com outros, de desenvolver e
debater novas ideias e princípios no domínio dos direitos humanos e de defender a sua
aceitação.
Artigo 8.º
1. Todos têm o direito, individualmente e em associação com outros, de ter acesso efetivo,
numa base não discriminatória, à participação no governo do seu país e na condução dos
negócios públicos.
2. Este direito compreende, entre outros aspetos, o direito de, individualmente ou em
associação com outros, apresentar aos organismos governamentais e às agências e
organizações que se ocupam dos negócios públicos críticas e propostas para aperfeiçoar
o respetivo funcionamento e chamar a atenção para qualquer aspeto do respetivo trabalho

162
163 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

que possa prejudicar ou impedir a promoção, proteção e realização dos direitos humanos
e liberdades fundamentais.
Artigo 9.º
1. No exercício dos direitos humanos e liberdades fundamentais, nomeadamente na
promoção e proteção dos direitos humanos enunciados na presente Declaração, todos têm
o direito, individualmente e em associação com outros, de beneficiarem de recursos
adequados e de serem protegidos na eventualidade de violação de tais direitos.
2. Para este fim, todas as pessoas cujos direitos ou liberdades tenham alegadamente sido
violados têm o direito, pessoalmente ou através de representantes legalmente autorizados,
de apresentar queixa e de que esta queixa seja rapidamente examinada em audiência
pública perante uma autoridade judicial ou outra autoridade independente, imparcial e
competente estabelecida por lei e de obter dessa autoridade uma decisão, em
conformidade com a lei, que lhe atribua uma reparação, incluindo qualquer indemnização
que seja devida, caso a pessoa tenha sido vítima de uma violação dos seus direitos ou
liberdades, e garanta a execução da eventual decisão e o cumprimento da obrigação de
reparar, tudo isto sem demora indevida.
3. Para o mesmo fim, todos têm o direito, individualmente e em associação com outros,
nomeadamente:
a) De se queixar das políticas e ações de funcionários individuais e organismos públicos
que consubstanciem uma violação dos direitos humanos e liberdades fundamentais,
através de petição ou outro meio adequado, às autoridades judiciais, administrativas ou
legislativas competentes nos termos da lei nacional ou a qualquer outra autoridade
competente prevista nos termos do ordenamento jurídico interno do Estado, que deverão
proferir a sua decisão sobre a queixa sem demora indevida;
b) De comparecer às audiências, diligências e julgamentos públicos, de forma a formar
uma opinião sobre a conformidade dos mesmos com a lei nacional e as obrigações e
compromissos internacionais aplicáveis;
c) De oferecer e prestar assistência jurídica profissionalmente qualificada ou outro tipo
de aconselhamento e assistência relevantes para a defesa dos direitos humanos e
liberdades fundamentais.
4. Para o mesmo fim, e em conformidade com os instrumentos e procedimentos
internacionais aplicáveis, todos têm o direito, individualmente e em associação com
outros, de acesso irrestrito aos organismos internacionais com competência genérica ou
específica para receber e considerar comunicações sobre questões de direitos humanos e
liberdades fundamentais e de se comunicarem livremente com os mesmos.
5. O Estado deverá proceder a uma investigação imediata e imparcial ou garantir a
instauração de um inquérito caso existam motivos razoáveis para crer que ocorreu uma
violação de direitos humanos em qualquer território sob a sua jurisdição.
(…)

163
164 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

Artigo 12.º
1. Todos têm o direito, individualmente ou em associação com outros, de participar em
atividades pacíficas contra violações de direitos humanos e liberdades fundamentais.
2. O Estado deverá adotar todas as medidas adequadas para garantir que as autoridades
competentes protegem todas as pessoas, individualmente e em associação com outras,
contra qualquer forma de violência, ameaças, retaliação, discriminação negativa de facto
ou de direito, coação ou qualquer outra ação arbitrária resultante do facto de a pessoa em
questão ter exercido legitimamente os direitos enunciados na presente Declaração.
3. A este respeito, todos têm o direito, individualmente e em associação com outros, a
uma proteção eficaz da lei nacional ao reagir ou manifestar oposição, por meios pacíficos,
relativamente a atividades, atos e omissões imputáveis aos Estados, que resultem em
violações de direitos humanos e liberdades fundamentais, bem como a atos de violência
perpetrados por grupos ou indivíduos que afetem o gozo dos direitos humanos e
liberdades fundamentais.
(…)
Artigo 16.º
Os indivíduos, as organizações não governamentais e as instituições competentes têm um
importante contributo a dar na sensibilização do público para as questões relativas aos
direitos humanos e liberdades fundamentais, através de atividades como a educação, a
formação e a investigação nessas áreas com o fim de reforçar, nomeadamente, a
compreensão, a tolerância, a paz e as relações amigáveis entre as nações e entre todos os
grupos raciais e religiosos, tendo em conta a diversidade das sociedades e comunidades
onde as suas atividades se desenvolvem.
(…)
Artigo 18.º
1. Todos têm deveres para com a comunidade e no seio desta, fora da qual o livre e pleno
desenvolvimento da respetiva personalidade não é possível.
2. Os indivíduos, grupos, instituições e organizações não governamentais têm um papel
importante a desempenhar e a responsabilidade de defender a democracia, proteger os
direitos humanos e liberdades fundamentais e contribuir para a promoção e progresso das
sociedades, instituições e processos democráticos.
3. Os indivíduos, grupos, instituições e organizações não governamentais têm também
um papel importante a desempenhar e a responsabilidade de contribuir, conforme
necessário, para a promoção do direito de todos a que reine, no plano social e no plano
internacional, uma ordem capaz de tornar plenamente efetivos os direitos e liberdades
enunciados na Declaração Universal dos Direitos do Homem.
[…]

164
165 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

2. Protocolo de Cooperação entre o Mecanismo Internacional, Independente e


Imparcial e as Organizações da Sociedade Civil Síria que participam na Plataforma
de Lausanne
Contexto de finalidade do Protocolo
Desde que os distúrbios irromperam na Síria em março de 2011, os Sírios e as ONGs,
muitas vezes com enorme risco para as suas vidas e segurança, têm documentado
amplamente as violações de direitos humanos e de direito internacional humanitário,
algumas das quais podem ascender a crimes internacionais.
O Mecanismo Internacional, Independente e Imparcial para Apoiar a Investigação e a
Acusação dos Responsáveis pelos Crimes mais Graves de Direito Internacional
Cometidos na República Árabe Síria desde Março de 2011 (“o Mecanismo”) criado pela
Resolução da Assembleia Geral A/71/248 /de 21 de dezembro de 2016), tem mandato
para recolher, consolidar, preservar e analisar as provas das violações de direito
internacional humanitário e violações e abusos de direitos humanos e preparar dossiers
com a finalidade de facilitar e agilizar procedimentos criminais justos e independentes
em tribunais nacionais, regionais ou internacionais.
Na resolução que criou o Mecanismo, a Assembleia Geral apelou a várias entidades,
incluindo a sociedade civil, para com ele cooperar plenamente e, em particular, para lhe
fornecer toda a informação e documentação que possuam, assim como outras formas de
apoio relacionadas com o seu mandato.
A finalidade deste Protocolo é delinear um conjunto de princípios de enquadramento para
orientar a relação entre o Mecanismo e as ONGs Sírias signatárias, e para assegurar um
entendimento comum relativamente às oportunidades de colaboração, no cumprimento
do objetivo comum das duas partes de garantir a justiça, a responsabilização, e a reparação
para as vítimas dos crimes cometidos na Síria. Este Protocolo visa estabelecer um
consenso alargado entre as partes de modo a possibilitar uma relação de colaboração,
mais do que tratar de aspetos operacionais ou de metodologias de trabalho. Estas questões
podem ser tratadas em memorandos de entendimento (MdE) autónomos que o
Mecanismo pode celebrar com cada organização, se necessário e requerido por qualquer
das entidades.

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166 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

Estudo de caso: a Ascensão e Queda do Califado do Da’esh

Nota: O Da’esh é uma organização terrorista que despontou no Iraque no ano de 2013, após uma cisão da Al-Qaida
no Iraque (AQI). Vulgarmente conhecido como Estado Islâmico, nome oficial desde 2014, também é designado como
Estado Islâmico no Iraque e na Síria (ISIS) ou Estado Islâmico no Iraque e no Levante (ISIL). Outra forma de o designar
é pela utilização do acrónimo Árabe, Daesh (‫)ﺩﺍﻋﺵ‬. Este acrónimo, Da’esh, é formado pelas letras do nome em Árabe:
“al-Dawla al-Islamiya fi Iraq wa al- Sham”. A utilização deste acrónimo é considerada pejorativa pela própria
organização terrorista, que a rejeita, pelo que é a preferida por quem se opõe à ideologia do grupo.
A 29 de junho de 2014, após a tomada da cidade de Mosul no Iraque, o Da’esh anunciou o início do califado e
mudou o nome de Estado Islâmico no Iraque e no Levante (ISIL) para Estado Islâmico (‫)ﺍﻟﺩﻭﻟﺔ ﺍﻹﺳﻼﻣﻳﺔ‬, a ser utilizado
como único nome oficial. O líder Al-Baghdadi (entretanto morto) foi declarado como “califa”. Este anúncio foi feito
pelo porta-voz oficial do ISIS, Abu Muhammad al-‘Adnani, num discurso de 34 minutos intitulado “Esta é a Promessa
do Profeta”, que foi difundido nas redes sociais (Twitter).
O sistema jurídico do Da’esh assenta na aplicação estrita do corpo de preceitos do direito Islâmico, de revelação
divina, conhecido como a shari’a. Esta constitui a única fonte legítima de governação, devendo os diferendos ser
resolvidos apenas pelo recurso a esta lei divina em tribunais Islâmicos.
Em 2014 foi constituída uma coligação multinacional, liderada pelos Estados Unidos, com o objetivo de combater,
e em último termo, derrotar o Da’esh no Iraque e na Síria, através do treino, fornecimento de equipamento e apoio às
operações militares, respetivamente, das Forças de Defesa Iraquianas e das “Forças Democráticas Sírias”. Em 2019 foi
anunciada a derrota militar do Da’esh e o fim do califado no Iraque e na Síria.

1. Declaração do Porta-Voz do Da’esh, de 29 de junho de 2014, “Esta é a Promessa do


Profeta”

(...)
Chegou o tempo para essas gerações que se afogavam em oceanos de desgraça, amamentadas
no leite da humilhação, e governadas pelas mais repugnantes de todas as pessoas, após a o seu
longo sono nas trevas do abandono – chegou o tempo de se erguerem. Chegou o tempo para a
ummah [nação/comunidade] de Maomé (a paz esteja com ele) de acordar do seu sono, de remover
as vestes da desonra, e sacudir o pó da humilhação e desgraça, porque a era da lamentação e do
gemido já terminou, e a madrugada da honra emergiu novamente. O sol da jihad levantou-se. As
boas-novas do bem brilham. O triunfo paira no horizonte. Os sinais da vitória surgiram.
Aqui a bandeira do Estado Islâmico, a bandeira do tawhid (monoteísmo), levanta-se e
drapeja. A sua sombra cobre a terra desde Aleppo até Diyala. Por debaixo, os muros do Tawãghit
(governantes que invocavam os direitos de Alá) foram demolidos, as suas bandeiras caíram, e as
suas fronteiras foram destruídas. Os seus soldados ou foram mortos, ou aprisionados ou
derrotados. Os Muçulmanos são homenageados. Os kuffâr (infiéis) são desonrados. Ahlus-Sunnah
(os Sunis) são chefes e são estimados. As pessoas bid’ah (heresia) são humilhadas. As hudud
(sanções da Sharia) são implementadas – as hudud de Alá – todas elas. As linhas da frente estão
defendidas.
As cruzes e os túmulos são demolidos. Os prisioneiros são libertados pela ponta da espada.
A população desloca-se nas terras do Estado para prover à sua subsistência e seguir o seu caminho,
sentindo-se segura na sua vida e património. Wulãt (plural de wãli ou “governadores”) e juízes
foram nomeados. Jizyah (um imposto lançado sobre os kuffãr) foi executado. Fay’ (dinheiro
tirado aos kuffãr sem combate) e zakat (esmola obrigatória) foram cobrados. Tribunais foram
estabelecidos para resolver disputas e reclamações. O mal foi removido. Lições e aulas tiveram
lugar em masãjid (plural de masjid) [mesquitas] e, pela graça de Alá, a religião tornou-se
completamente de Alá. Só ficou a faltar uma questão, uma wãjib kifã’i (obrigação coletiva) que
a ummah pecou ao abandoná-la. É uma obrigação que ficou esquecida. A ummah não saboreou a
honra desde que a perderam. É um sonho que vive no íntimo de cada Muçulmano crente. É uma
esperança que palpita no coração de cada mujãhid muwahhid (monoteísta). É o khilãfah
(califado). É o khilãfah – a obrigação abandonada da era.

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167 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

Alá (o Exaltado) disse, {E referiu quando o teu Senhor disse aos anjos, “Efetivamente, irei
criar na terra um califado”} [Al-Baqarah: 30]
O Imã al- Qurtubī disse no seu tafsīr (exegese do Corão), “Este verso é a base fundamental
para a nomeação de um líder e califa que é ouvido e obedecido para que a ummah seja por ele
unida e as suas ordens cumpridas. Não há qualquer disputa sobre esta matéria entre a ummah e os
académicos, com exceção do que foi reportado de al-Asamm [o seu nome significa “o homem
surdo”], pois a sua surdez impediu-o de escutar a Sharia.” Com isto terminam as suas palavras,
que Alá tenha misericórdia dele.
Assim, o conselho shūrā (consultivo) do Estado Islâmico estudou este assunto depois de o
Estado Islâmico – pela graça de Alá – ter adquirido os fundamentos necessários para o califado,
que os Muçulmanos serão pecadores se não o tentarem estabelecer. À luz do facto de o Estado
Islâmico não ter impedimento shar’ī (legal) ou desculpa que possa justificar o atrasar ou
negligenciar o estabelecimento do califado de modo a que não fosse pecaminoso, o Estado
Islâmico – representado pelo ahlul-halli-wal-‘aqd (as suas pessoas com autoridade), composta
pelas suas figuras seniores, líderes, e o conselho shūrā – decidiu anunciar o estabelecimento do
califado Islâmico, a designação de um califa para os Muçulmanos, e a promessa de fidelidade ao
shaykh (xeque), ao mujāhid, o estudioso que pratica o que ensina, o crente, o líder, o guerreiro, o
restaurador, descendente da família do Profeta, o escravo de Alá, Ibrāhīm Ibn ‘Awwād Ibn
Ibrāhīm Ibn ‘Alī Ibn Muhammad al-Badrī al-Hāshimī al-Husaynī al-Qurashī por descendência,
como Sāmurrā’ī por nascimento e educação, al-Baghdādī por residência e estudos. E ele aceitou
o bay’ah (promessa de fidelidade). Assim, ele é o imã e o califa para os Muçulmanos em qualquer
lado. Em conformidade, a expressão “Iraque e Levante” no nome do Estado Islâmico é doravante
retirada de todas as deliberações e comunicações, e desde a data desta declaração o nome oficial
é Estado Islâmico.
Deixamos claro aos Muçulmanos que com esta declaração do califa é obrigação de todos os
Muçulmanos prometer fidelidade ao califa Ibrāhīm e apoiá-lo (que Alá o preserve). A legalidade
de todos os emiratos, grupos, estados, e organizações, torna-se nula pela expansão da autoridade
do califado e pela chegada das suas tropas aos seus territórios. O Imã Ahmad (que Alá tenha
misericórdia dele) disse, tal como relatado por ‘Abdūs Ibn Mālik al-‘Attār, “não é admissível a
quem quer que acredite em Alá dormir sem o considerar como seu líder quem quer que os
conquiste pela espada até se tornar califa e ser chamado Amīrul-Mu’minīn (o líder dos crentes),
seja este líder justo ou pecador”.
(...)
Nós – por Alá – não encontramos qualquer fundamentação shar’i (jurídica) para justificar
que se abstenham de apoiar este Estado. Tomem posição considerando que Alá (o Exaltado) ficará
satisfeito convosco. O véu foi levantado e a verdade tornou-se cristalina. De facto, é o Estado. E
o Estado para os Muçulmanos – aqueles que são oprimidos, os órfãos, os viúvos e os pobres. Se
o apoiarem, então estarão a fazê-lo para o vosso próprio bem.
De facto, é o Estado. De facto, e o khilãfah. É tempo de acabar este abominável sectarismo,
dispersão e divisão, por esta situação não advir, de todo, da religião de Alá. E se renunciam ao
Estado ou desencadeiam uma guerra contra ele, não lhe causarão dano. Apenas irão causar danos
a vós próprios.
É o Estado – o Estado para os Muçulmanos. (...)

2. Conselho de Segurança das Nações Unidas, Resolução 2170 de 15 de agosto de 2014

O Conselho de Segurança
(...)

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168 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

Reafirmando a independência, soberania, unidade e integridade territorial da República do


Iraque e da República Árabe Síria, e reafirmando ainda os objetivos e princípios da Carta das
Nações Unidas,
Reafirmando que o terrorismo em todas as suas formas e manifestações constitui uma das
mais graves ameaças à paz e segurança internacionais e que todos os atos de terrorismo são
criminosos e injustificáveis independentemente das suas motivações, onde e por quem quer que
sejam cometidos,
Expressando a sua maior preocupação que partes do território do Iraque e da Síria se
encontrem sob o controlo do Estado Islâmico do Iraque e do Levante (ISIL) da Frente Al Nusrah
(ANF) e sobre o impacto negativo da sua presença, a ideologia extremista violenta e as ações
sobre a estabilidade no Iraque, Síria e na região, incluindo o impacto humanitário devastador
sobre a população civil que levou à deslocação de milhões de pessoas, e sobre os seus atos de
violência que fomentam as tensões sectárias,
Reiterando a sua condenação do ISIL, da ANF e de todos os outros indivíduos, grupos,
empresas e entidades associadas com a Al-Qaida pelos contínuos e múltiplos atos de terrorismo
dirigidos a causar a morte de civis e outras vítimas, destruição de propriedade e de locais culturais
e religiosos, e comprometendo significativamente a estabilidade, e relembrando que as exigências
do congelamento de bens, da proibição de viajar e do embargo de armas no parágrafo 1 da
resolução 2161 (2014) aplicam-se ao ISIL, à ANF, e a todos os outros indivíduos, grupos,
empresas e entidades associadas com a Al-Qaida,
Reafirmando que o terrorismo, incluindo as ações do ISIL, não podem e não devem ser
associadas com qualquer religião, nacionalidade ou civilização.
Sublinhando que o terrorismo só pode ser derrotado através de uma abordagem sustentável
e alargada envolvendo a participação ativa e a colaboração de todos os Estados, e das
organizações internacionais e regionais para impedir, enfraquecer, isolar e neutralizar a ameaça
terrorista,
Reafirmando que os Estados Membros devem garantir que quaisquer medidas adotadas para
combater o terrorismo, incluindo as de implementação desta resolução, estejam em conformidade
com todas as suas obrigações decorrentes do direito internacional, em particular do direito
internacional dos direitos humanos, do direito internacional dos refugiados e do direito
internacional humanitário, e sublinhando que as medidas de contra terrorismo efetivas e o respeito
pelos direitos humanos, as liberdades fundamentais e o primado do direito são complementares e
reforçam-se mutuamente, e são uma parte essencial de um esforço de contra terrorismo bem
sucedido, e registam a importância do respeito pelo primado do direito de forma a prevenir e
combater o terrorismo de modo efetivo.
Reafirmando que aqueles que cometeram ou são de outro modo responsáveis pelas violações
de direito internacional humanitário ou violações ou abusos de direitos humanos no Iraque e na
Síria, incluindo a perseguição de indivíduos com base na sua religião ou crença, ou por motivos
políticos, devem ser responsabilizados.
Seriamente preocupado pelo financiamento, assim como pelos recursos financeiros ou
outros obtidos pelo ISIL, pela ANF e por todos os outros indivíduos, grupos, empresas e entidades
associadas com a Al-Qaida, e sublinhando que estes recursos irão apoiar as suas futuras atividades
terroristas.
Condenando fortemente os incidentes de rapto e tomada de reféns cometidos pelo ISIL, pela
ANF e por todos os outros indivíduos, grupos, empresas e entidades associadas com a Al-Qaida
seja qual for a finalidade, incluindo com o objetivo de angariar fundos ou de conseguir concessões
políticas, expressando a sua determinação em prevenir os raptos e a tomada de reféns por grupos
terroristas e para garantir a libertação em segurança dos reféns sem o pagamento de resgates ou

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169 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
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1º semestre

concessões políticas, de acordo com o direito internacional aplicável, apelando a todos os Estados
Membros que impeçam que os terroristas beneficiem direta ou indiretamente dos pagamento de
resgates ou de concessões políticas e que garantam a libertação em segurança dos reféns, e
reafirmando a necessidade de todos os Estados Membros cooperarem estreitamente durante os
incidentes de rapto e tomada de reféns cometidos por grupos terroristas,
Expressando a sua preocupação pelo fluxo de combatentes terroristas estrangeiros para o
ISIL, a ANF e todos os outros indivíduos, grupos, empresas e entidades associadas com a Al-
Qaida, bem como com a escala deste fenómeno,
Expressando a sua preocupação pela utilização crescente, numa sociedade globalizada,
pelos terroristas e pelos seus apoiantes de novas tecnologias de comunicação e informação, em
particular da Internet, com a finalidade de recrutamento e de incitamento à comissão de atos
terroristas, assim como para o financiamento, planeamento e preparação das suas atividades, e
sublinhando a necessidade de os Estados Membros atuarem concertadamente para impedir os
terroristas de explorarem a tecnologia, as comunicações e os recursos para incitar ao apoio dos
atos terroristas, no respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais e em conformidade
com outras obrigações de direito internacional,
Condenando vigorosamente o incitamento à prática de atos terroristas e repudiando as
tentativas de justificação ou glorificação (apologia) dos atos terroristas que possam incitar outros
atos terroristas,
Sublinhando a responsabilidade primária dos Estados Membros na proteção da população
civil nos seus territórios, de acordo com as suas obrigações de direito internacional,
Exortando a todas as partes para protegerem a população civil, em particular as mulheres e
as crianças, afetadas pelas ações violentas do ISIL, da ANF e de todos os outros indivíduos,
grupos, empresas e entidades associadas com a Al-Qaida, especialmente contra qualquer forma
de violência sexual,
Reafirmando a necessidade de combater por todos os meios, de acordo com a Carta das
Nações Unidas e o direito internacional, incluindo o direito internacional dos direitos humanos, o
direito internacional dos refugiados e o direito internacional humanitário aplicável, as ameaças à
paz e segurança internacionais causadas pelos atos terroristas, enfatizando a este respeito o papel
importante que as Nações Unidas desempenham ao liderar e coordenar este esforço,
Observando com preocupação que a continuada ameaça que é colocada à paz e segurança
internacionais pelo ISIL, pela ANF e por todos os outros indivíduos, grupos, empresas e entidades
associadas com a Al-Qaida, e reafirmando a sua determinação em lidar com todos os aspetos
dessa ameaça,
Atuando nos termos do Capítulo VII da Carta das Nações Unidos,

1. Deplora e condena nos termos mais vigorosos as ações terroristas do ISIL e a sua
ideologia extremista violenta, e as seus continuados abusos de direitos humanos e violações de
direito internacional humanitário;
2. Condena vivamente as mortes indiscriminadas e o visar deliberado de civis, numerosas
atrocidades, execuções em massa e execuções extrajudiciais, incluindo de soldados, perseguição
de indivíduos e comunidades inteiras com base na sua religião ou crença, rapto de civis,
deslocação forçada de membros de grupos minoritários, morte e mutilação de crianças,
recrutamento e utilização de crianças, violação e outras formas de violência sexual, detenções
arbitrárias, ataques a escolas e hospitais, destruição de locais culturais e religiosos e obstrução ao
exercício de direitos económicos, sociais e culturais, incluindo o direito à educação,
especialmente nas províncias Sírias de Ar-Raqqah, Deir ez-Zor, Aleppo and Idlib, e no norte do
Iraque, especialmente nas províncias de Tamim, Salaheddine e Niniveh;

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170 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

3. Relembra que os ataques generalizados e sistemáticos dirigidos contra qualquer


população civil por causa da sua origem étnica ou politica, religião ou crença podem constituir
um crime contra a humanidade, sublinha a necessidade de garantir que o ISIL, a ANF e todos os
outros indivíduos, grupos, empresas e entidades associadas com a Al-Qaida são responsabilizados
pelos abusos de direitos humanos e pelas violações de direito internacional humanitário, insta
todas as partes a prevenir tais violações e abusos;

3. Resolução do Parlamento Europeu de 18 de setembro de 2014, sobre a situação no Iraque


e na Síria e a ofensiva do EI, incluindo a perseguição de minorias (2014/2843(RSP))

O Parlamento Europeu, (...)

A. Considerando que a situação humanitária e em matéria de segurança no Iraque e na Síria,


que já era particularmente crítica, se deteriorou ainda mais em consequência da ocupação de
partes do seu território pelo grupo terrorista jihadista dissidente da Al-Qaeda, o grupo do Estado
Islâmico (EI); que o caráter transnacional do EI e seus grupos associados representa uma ameaça
para toda a região; que se avolumam os receios quanto ao destino de todos quantos se encontram
ainda sitiados nas áreas controladas pelas forças do EI;

B. Considerando que a desintegração da fronteira entre o Iraque e a Síria permitiu ao EI


reforçar a sua presença em ambos os países; considerando que o EI tem, nos últimos meses,
alargado a sua conquista territorial do leste da Síria para o noroeste do Iraque, nomeadamente
Mossul, a segunda maior cidade do Iraque; que, em 29 de junho de 2014, foi noticiado que o EI
declarara a instituição de um «califado» ou «Estado islâmico» nos territórios que controla no
Iraque e na Síria e que o seu líder, Abu Bakr al-Baghdadi, se autoproclamou califa; que o EI não
reconhece as fronteiras aceites internacionalmente e declarou a sua intenção de expandir o
«califado islâmico» a outros países de maioria muçulmana;

C. Considerando que a conquista dos territórios no Iraque e na Síria foi seguida pela imposição
da interpretação severa da lei islâmica (Sharia); considerando que nas zonas sob o controlo do EI
e de grupos associados foram cometidas graves violações dos Direitos Humanos e do Direito
Internacional Humanitário, designadamente execuções seletivas, conversões forçadas, raptos,
venda e escravatura de mulheres e crianças, recrutamento de crianças para atentados suicidas,
abuso físico e sexual e tortura; que o EI assassinou os jornalistas James Foley e Steven Sotloff e
o trabalhador humanitário David Haines; que as comunidades cristã, yazidi, turquemenistanesa,
shabak, kaka’i, sabeíta e xiita estão na linha de mira do EI, bem como muitos árabes e
muçulmanos sunitas; que foram deliberadamente destruídos monumentos, mesquitas, santuários,
igrejas e outros locais de culto, túmulos e cemitérios, bem como sítios arqueológicos e património
cultural;

D. Considerando que os cristãos do Iraque foram recentemente alvo de perseguições, privados


dos seus direitos fundamentais, forçados a abandonar os seus lares e se tornaram refugiados
devido à sua religião e convicções; que, de acordo com a «Open Doors International», o número
de cristãos na população do Iraque registou uma diminuição significativa, passando de 1,2
milhões no início da década de 1990 para um valor situado agora entre os 330 mil e os 350 mil;
que antes do início do conflito na Síria, viviam no país cerca de 1,8 milhões de cristãos; que,
desde o início do conflito foram deslocados, pelo menos, 500 mil cristãos; (...)

1. Vê com extrema preocupação a deterioração da situação humanitária e de segurança no


Iraque e na Síria, em resultado da ocupação de algumas partes dos seus territórios pelo EI;
condena firmemente os assassínios indiscriminados e as violações dos direitos humanos
perpetradas por esta e outras organizações terroristas contra minorias religiosas e étnicas e os

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171 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

grupos mais vulneráveis; condena veementemente os ataques contra alvos civis – incluindo
hospitais, escolas e locais de culto – e a utilização de execuções e de violência sexual por parte
do EI no Iraque e na Síria; salienta que não deve haver impunidade para os autores destes atos;

2. Condena veementemente os assassínios, pelo EI, dos jornalistas James Foley e Steven
Sotloff, bem como do funcionário de uma organização humanitária David Haines, expressando
profunda preocupação com a segurança de outros reféns em poder dos extremistas; manifesta a
sua solidariedade e expressa as suas condolências às respetivas famílias, bem como às famílias de
todas as vítimas do conflito;

3. Sublinha que os ataques disseminados ou sistemáticos dirigidos contra civis devido à sua
etnia, orientação política, religião, crença ou género podem constituir um crime contra a
humanidade; condena energicamente todos os tipos de perseguição, discriminação e intolerância
com base na religião e no credo, bem como os atos de violência contra qualquer comunidade
religiosa; realça, uma vez mais, que o direito à liberdade de pensamento, de consciência e de
religião é um direito humano fundamental;

4. Manifesta o seu apoio a todas as vítimas de ódio e de intolerância religiosa; expressa a sua
solidariedade para com os membros das comunidades cristãs perseguidas e que enfrentam o risco
de extinção nas respetivas pátrias, o Iraque e a Síria, e para com as demais minorias religiosas
perseguidas; confirma e apoia o direito inalienável de todas as minorias religiosas e étnicas que
vivem no Iraque e na Síria, incluindo os cristãos, continuarem a viver nas suas pátrias tradicionais
e históricas com dignidade, igualdade e em segurança, e a professarem livremente a sua religião;
sublinha que os crimes cometidos contra as minorias cristãs como os caldeus, os siríacos e os
assírios, bem como contra os yazidis e os muçulmanos xiitas, representam um último esforço do
EI de proceder a uma total limpeza religiosa na região; faz notar que, durante séculos, membros
de diferentes grupos religiosos coexistiram pacificamente nesta região;

5. Rejeita sem reservas, considerando-o ilegítimo, o anúncio dos líderes do EI relativo à


instauração de um califado nas zonas que controla atualmente; salienta que a criação e a expansão
do «califado islâmico», bem como as atividades desenvolvidas por outros grupos extremistas no
Iraque e na Síria, constituem uma ameaça direta à segurança dos países europeus; opõe-se à ideia
de qualquer alteração unilateral e pela força de fronteiras reconhecidas internacionalmente; frisa,
uma vez mais, que o EI é objeto de um embargo ao armamento e de um congelamento de bens
impostos pelas resoluções 1267 (1999) e 1989 (2011) do Conselho de Segurança das Nações
Unidas e sublinha a importância de aplicar estas medidas de forma imediata e eficaz; insta o
Conselho a analisar formas de utilizar mais eficazmente os atuais regimes de sanções, em especial
para impedir que o EI beneficie da venda ilegal de petróleo ou da venda de outros recursos nos
mercados internacionais; está particularmente preocupado com as alegações de que alguns
agentes em alguns Estados-Membros estarão implicados no comércio ilegal de petróleo com o
EI; insta a Comissão a indicar se estas alegações podem ser confirmadas e, em caso afirmativo,
exorta a Comissão e os Estados-Membros a velar por que seja posto termo imediato ao comércio
ilegal de petróleo; (...)

4. Declaração da Alta Representante/Vice-Presidente da União Europeia Federica


Mogherini e do Comissário para a Ajuda Humanitária & Gestão de Crises Christos
Stylianides após a libertação de Mossul (Bruxelas, 09.07.2017 – 20:19)

A ocupação de Mossul chegou finalmente ao fim

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172 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

A ocupação de Mossul chegou finalmente ao fim: o Primeiro-Ministro iraquiano al-Abadi


anunciou a libertação da cidade pelas forças armadas iraquianas, com o apoio da Coligação Global
para combater o Da’esh.
A recuperação de Mossul das mãos do Da’esh constitui uma etapa decisiva na campanha para
eliminar o controlo terrorista em partes do Iraque e libertar o seu povo. A UE presta tributo à
coragem do povo iraquiano, ao seu Governo e às forças armadas, assim como ao sacrifício de
vidas militares e civis que o povo iraquiano para alcançar esta vitória. Reitera a importância de
proteger as vidas civis para o sucesso da campanha e para a posterior reconciliação da população,
quer em Mossul e na campanha para libertar as restantes áreas que ainda resistem em outras partes
do país.
É agora essencial que comece o processo de regresso e o restabelecimento da confiança entre
as comunidades, e que todos os iraquianos sejam capazes de iniciar a construção de um futuro em
comum. A UE compromete-se a continuar a apoiar o Iraque nos desafios humanitários,
securitários, de estabilização e reconciliação que ainda enfrenta.

5. Comissão Europeia, Bruxelas 08.01.2018 (JOIN(2018) 1 final)


Comunicação Conjunta ao Parlamento Europeu e ao Conselho.
Elementos para uma estratégia da EU relativa ao Iraque.

Introdução

O povo iraquiano, o seu governo e as suas forças armadas, com o apoio da coligação
internacional contra o Daexe [Da’esh], conseguiram pôr fim ao controlo territorial efetivo
exercido pelo Daexe no Iraque. Durante muitos anos, desde 2003 e mesmo antes, o país foi palco
de numerosos conflitos, mas os atos de terror praticados pelo Daexe desde 2014 foram a
manifestação mais tenebrosa de violência interna jamais vista. Presentemente, o Iraque necessita
de agarrar a nova oportunidade de que dispõe para construir um sistema político inclusivo e
responsável, que sirva todas as comunidades, regiões e crenças, preserve a diversidade do país e
reforce a sua ordem democrática. É fundamental restabelecer a confiança entre o povo e o seu
governo e evitar um regresso ao sectarismo e ao separatismo fraturantes.
A luta de três anos contra o Daexe teve consequências tremendas para o país, designadamente
a perda de numerosas vidas civis e militares, o sofrimento e trauma humanos generalizados, os
milhões de pessoas que ainda se encontram deslocadas, a destruição do tecido social,
especialmente junto das comunidades afetadas pelo conflito, a destruição generalizada das
infraestruturas públicas e privadas e uma situação financeira e económica precária. São muitos os
desafios que o governo e o povo iraquianos têm pela frente. É vital para o Iraque, para o Médio
Oriente e para a comunidade internacional como um todo que o país ultrapasse estes desafios —
todos sentiram as consequências da crise e todos seriam afetados negativamente pela continuação
da instabilidade no Iraque. (...)

6. Casa Branca, 23 de março de 2019


Declaração do Presidente sobre a Libertação do Território Controlado pelo ISIS

Tenho o prazer de anunciar que, juntamente com os nossos parceiros na Coligação Global
para Derrotar o ISIS, incluindo as Forças de Defesa Iraquianas e as Forças Democráticas Sírias,
os Estados Unidos libertaram todo o território controlado pelo ISIS na Síria e no Iraque – 100%
do “califado”.

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Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

Há somente dois anos, o ISIS controlava uma vasta extensão de território, quer no Iraque
quer na Síria. Desde então, recuperamos mais de 20.000 milhas quadradas [cerca de 32 mil km2]
de território e libertamos milhões de Sírios e Iraquianos do “califado” do ISIS. A perda de
território do ISIS é uma demonstração adicional da sua narrativa falsa, que procura legitimar um
registo de selvajaria que inclui execuções brutais, a exploração de crianças como soldados, e a
violência sexual e a morte de mulheres e crianças. Para todos os jovens que na internet acreditam
na propaganda do ISIS, vocês serão mortos se se juntarem. Pensem antes em ter uma ótima vida.
Ainda que ocasionalmente estes cobardes regressem, perderam todo o prestígio e poder. São
uns falhados e serão sempre falhados.
Iremos manter-nos vigilantes em relação ao ISIS ao alinharmos o esforço global contra o
terrorismo para combater o ISIS até que esteja definitivamente derrotado onde quer que opere. Os
Estados Unidos defenderão o interesse americano sempre e onde for necessário. Continuaremos
a trabalhar com os nossos parceiros para esmagar totalmente os Terroristas Islâmicos Radicais.

Questões:

a) O Da’esh controlou efetivamente e com alguma estabilidade um território de dimensão


considerável, e estabeleceu um “governo” que desempenhou as funções estaduais típicas, desde
a cobrança de impostos até à administração da justiça. Pode afirmar-se que a proclamação do
“califado” constituiu o momento da criação de um novo Estado? Estão preenchidos todos os
elementos de manifestação estadual? Justifique.
b) O Da’esh pode ser considerado um grupo insurgente durante o período em que ocupou
territorialmente e administrou partes da Síria e do Iraque? Que normas internacionais são referidas
como tendo sido violadas pelo Da’esh?
c) As organizações terroristas e os seus elementos têm algum estatuto jurídico segundo o Direito
Internacional ou serão meros participantes nas relações internacionais?

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174 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

PARTE III - AS FONTES DE DIREITO INTERNACIONAL

AS FONTES DO DIREITO INTERNACIONAL

1. Estatuto do Tribunal internacional de Justiça, art. 38

Artigo 38

1. O Tribunal, cuja função é decidir em conformidade com o direito internacional as


controvérsias que lhe forem submetidas, aplicará:

a) As convenções internacionais, quer gerais, quer especiais, que estabeleçam regras


expressamente reconhecidas pelos Estados litigantes;
b) O costume internacional, como prova de uma prática geral aceite como direito;
c) Os princípios gerais de direito, reconhecidos pelas nações civilizadas;
d) com ressalva das disposições do artigo 59, as decisões judiciais e a doutrina dos publicistas
mais qualificados das diferentes nações, como meio auxiliar para a determinação das regras de
direito.

2. A presente disposição não prejudicará a faculdade do Tribunal de decidir uma questão ex


aequo et bono, se as partes assim convierem.

Questões
a) O que são fontes formais de direito internacional?
b) Quais as fontes elencadas no artigo 38 do ETIJ?
c) Existe alguma hierarquia de fontes?
d) A lista presente neste artigo é exaustiva?
e) Faça uma análise critica ao artigo 38.

O COSTUME INTERNACIONAL

1. CDI, Projeto de conclusões sobre a identificação do direito internacional


consuetudinário, 2018 (tradução não oficial)

IDENTIFICAÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL CONSUETUDINÁRIO

Parte Primeira
Introdução

Conclusão 1
Âmbito

O presente projeto de conclusões refere-se ao modo de determinação da existência e conteúdo


das regras de direito internacional consuetudinário.

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175 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

Parte Segunda
Abordagem básica

Conclusão 2
Dois elementos constitutivos

Para determinar a existência e conteúdo de uma regra de direito internacional consuetudinário,


é necessário verificar se existe uma prática geral aceite como direito (opinio juris).

Conclusão 3
Avaliação dos meios para estabelecer os dois elementos constitutivos

1. Na avaliação dos meios para estabelecer a existência de uma prática geral e a sua aceitação
como direito (opinio juris), deverá tomar-se em consideração o contexto geral, a natureza da
norma e as circunstâncias próprias de cada um desses meios.
2. Cada um dos dois elementos constitutivos deve ser determinado de forma separada. Isso
exige uma valoração dos meios para estabelecer cada elemento.

Parte Terceira
Prática geral

Conclusão 4
Exigência de uma prática

1. A exigência de uma prática geral, como elemento constitutivo do direito internacional


consuetudinário, refere-se, principalmente, à prática dos Estados que contribui para a formação
ou a expressão de regras de direito internacional consuetudinário.
2. Em certos casos, a prática das organizações internacionais também contribui para a
formação ou a expressão de regras de direito internacional consuetudinário.
3. O comportamento de outros atores não constitui uma prática que possa contribuir para a
formação ou a expressão de regras de direito internacional consuetudinário, mas pode ser
relevante para efeito da apreciação da prática a que se referem os números 1 e 2.

Conclusão 5
Comportamento do Estado como prática do Estado

A prática do Estado consiste no comportamento do Estado no exercício das suas funções


executiva, legislativa, judicial ou de outra natureza.

Conclusão 6
Formas de prática

1. A prática pode assumir uma ampla variedade de formas. Inclui tanto atos materiais como
verbais. Pode, em determinadas circunstâncias, incluir a inação.
2. As formas da prática estadual incluem, mas não estão limitadas a: atos e correspondência
diplomáticos; comportamento relativo a resoluções aprovadas por uma organização internacional
ou numa conferência intergovernamental; comportamento relativo a tratados; comportamento no
exercício de funções executivas, incluindo o comportamento operacional “no terreno”; atos
legislativos e administrativos; e decisões de tribunais nacionais.
3. Não há uma hierarquia predeterminada entre as diferentes formas de prática.

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176 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
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1º semestre

Conclusão 7
Avaliação da prática do Estado

1. Deverá tomar-se em consideração toda a prática disponível do Estado em causa, que deverá
ser avaliada no seu conjunto.
2. Quando a prática de um determinado Estado variar, o peso a acordar a esta prática poderá,
conforme as circunstâncias, ser reduzido.

Conclusão 8
A prática deve ser geral

1. A prática pertinente deve ser geral, ou seja, suficientemente alargada e representativa, além
de constante.
2. Se a prática for geral, não se exige qualquer duração particular.

Parte Quarta
Aceite como direito (opinio juris)

Conclusão 9
Exigência de uma prática geral aceite como direito (opinio juris)

1. A exigência, enquanto elemento constitutivo do direito internacional consuetudinário de que


a prática geral seja aceite como direito (opinio juris) significa que a prática em questão deve ser
seguida com a convicção sobre a existência de uma obrigação jurídica ou de um direito.
2. A prática geral aceite como direito (opinio juris) deve distinguir-se do simples uso ou hábito.

Conclusão 10
Formas de prova da aceitação como direito (opinio juris)

1. A prova da aceitação como direito (opinio juris) pode revestir uma grande variedade de
formas.
2. As formas da prova da aceitação como direito (opinio juris) incluem, mas não estão
limitadas a: declarações públicas feitas em nome dos Estados; publicações oficiais; pareceres
jurídicos governamentais; correspondência diplomática; decisões dos tribunais nacionais;
disposições de tratados; e comportamento relativamente a resoluções aprovadas por uma
organização internacional ou numa conferência intergovernamental.
3. A ausência de reação, que se prolongue no tempo, relativamente a uma prática pode servir
de prova da aceitação dessa prática como direito (opinio juris), sempre que os Estados estivessem
em condições de reagir e que as circunstâncias exigissem alguma reação.

Parte Quinta
Alcance de certos meios de determinação do direito internacional consuetudinário

Conclusão 11
Tratados

1. Uma regra enunciada num tratado pode refletir uma regra de direito internacional
consuetudinário se se estabelecer que a regra convencional:

a) codificou uma regra de direito internacional consuetudinário existente no momento da


conclusão do tratado, ou

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177 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

b) resultou na cristalização de uma regra de direito internacional consuetudinário que tinha


começado a surgir antes da celebração do tratado; ou
c) deu origem a uma prática geral aceite como direito (opinio juris), gerando, assim, uma nova
regra de direito internacional consuetudinário.

2. O facto de uma regra ser enunciada em vários tratados pode significar, ainda que não
necessariamente, que a regra convencional reflete uma regra de direito internacional
consuetudinário.

Conclusão 12
Resoluções de organizações internacionais e conferências intergovernamentais

1. Uma resolução adotada por uma organização internacional ou numa conferência


intergovernamental não pode, por si, criar uma regra de direito internacional consuetudinário.
2. Uma resolução adotada por uma organização internacional ou numa conferência
intergovernamental pode constituir um elemento de prova para determinar a existência e conteúdo
de uma regra de direito internacional consuetudinário, ou contribuir para o seu desenvolvimento.
3. Uma disposição de uma resolução adotada por uma organização internacional ou numa
conferência intergovernamental pode refletir uma regra de direito internacional consuetudinário
se se estabelecer que essa disposição corresponde a uma prática geral aceite como direito (opinio
juris).

Conclusão 13
Decisões de tribunais

1. As decisões de tribunais internacionais, em especial do Tribunal Internacional de Justiça,


relativas à existência e ao conteúdo de regras de direito internacional consuetudinário, constituem
um meio auxiliar de determinação das referidas regras.
2. Podem tomar-se em consideração, quando apropriado, as decisões de tribunais nacionais
relativas à existência e ao conteúdo de regras de direito internacional consuetudinário, como meio
auxiliar de determinação dessas regras.

Conclusão 14
Doutrina

A doutrina dos publicistas mais qualificados das diferentes nações pode servir como meio
auxiliar para a determinação de regras de direito internacional consuetudinário.

Parte Sexta
Objetor persistente

Conclusão 15
Objetor persistente

1. Quando um Estado tiver objetado a uma regra de direito internacional consuetudinário


quando esta estava em processo de formação, a regra não é oponível ao Estado em causa enquanto
este mantiver a sua a sua objeção.
2. A objeção deve ser expressa claramente, ser comunicada aos outros Estados e mantida de
forma persistente.
3. O presente projeto de conclusões entende-se sem prejuízo de qualquer questão relativa a
normas imperativas de direito internacional geral (jus cogens).

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178 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

Parte Sétima
Direito internacional consuetudinário particular

Conclusão 16
Direito internacional consuetudinário particular

1. Uma regra de direito internacional consuetudinário particular, quer seja regional, local ou
outra, é uma regra de direito internacional consuetudinário que apenas se aplica entre um número
limitado de Estados.
2. Para determinar a existência e o conteúdo de uma norma de direito internacional
consuetudinário particular, é necessário verificar se existe uma prática geral entre os Estados
interessados que seja aceite por eles como direito (opinio juris) aplicável entre esses Estados.

Questões
a) Quais são os dois elementos que constituem o costume internacional?
b) Perante a identificação de um desses elementos, pode presumir-se a existência do outro?
c) O que pode constituir prática? Há alguma hierarquia em relação às diferentes formas que
podem constituir prática?
d) A prática das organizações internacionais é relevante para efeitos da formação do costume?
e) E o comportamento de atores não estaduais, é relevante para a formação do costume?
f) Que características deve ter a prática para contribuir para a formação de costume?
g) Qual o significado do elemento psicológico do costume internacional, isto é, “ser aceite
como direito”?
h) O facto de um comportamento ser habitual é suficiente para ser considerado “aceite como
de direito”?
i) Como se pode provar a existência deste elemento?
j) Uma norma convencional pode refletir uma norma consuetudinária? Quando?
k) O facto de um determinado conteúdo normativo estar consagrado em várias normas
convencionais é por si só suficiente para se afirmar que aquela norma é, também, de origem
consuetudinária?
l) Explique o sentido da conclusão 12.
m) Qual o papel das decisões de tribunais internacionais? Compare a Comissão de Direito
Internacional diz a este propósito com o artigo 38 do ETIJ.
n) Faça o mesmo exercício em relação à doutrina.
o) O que é o objetor persistente? Quais as consequências jurídicas do ponto de vista da
formação da norma da existência de um objetor desta natureza?
p) Recorde o que já estudou (a propósito da evolução da sociedade e direito internacionais) a
propósito dos ditos “objetores subsequentes”. Compare com o objetor persistente.
q) Que tipos de costume internacional podem existir e o que os diferencia?

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179 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

B) Jurisprudência sobre costume

1)TIJ, Caso Atividades militares e paramilitares na Nicarágua e contra esta, Nicarágua c.


Estados Unidos da América, acórdão, fundo, 27 de junho de 1986, Col., 1986, pp. 108-109, par.
207

Quanto aos comportamentos acima descritos, no entanto, o Tribunal deve sublinhar que, como
foi lembrado nos casos da Plataforma continental do mar do Norte, para a formação de uma nova
regra consuetudinária, os atos correspondentes devem, não só ‘representar uma prática constante’,
mas, além disso, estar ligados a uma opinio juris sive necessitatis. Os Estados que atuem dessa
forma, ou outros Estados que estejam em posição de reagir, deverão ter-se comportado de uma
forma que testemunhe

‘a convicção de que essa prática é obrigatória pela existência de uma regra de direito. A
necessidade de tal convicção, ou seja, a existência de um elemento subjetivo, está implícita na
própria noção de opinio juris sive necessitatis’ (TIJ, Col., 1969, p. 44, par. 77)’.

Não foi atribuída competência ao Tribunal para estatuir sobre a conformidade com o direito
internacional de comportamentos de Estados que não partes no presente diferendo, ou de
comportamentos das Partes que não se relacionem com este; nada, também, o autoriza a atribuir
a Estados opiniões jurídicas que eles próprios não formulam. Para o Tribunal, o significado de
comportamentos estaduais que, à primeira vista, são inconciliáveis com o princípio da não-
intervenção reside na natureza do motivo invocado como justificação. A invocação por um Estado
de um direito novo, ou de uma exceção sem precedente relativamente ao princípio poderia, se
fosse partilhada por outros Estados, tender a modificar o direito internacional consuetudinário.
No entanto, de facto, o Tribunal verifica que os Estados não justificaram a sua conduta por
invocação de um novo direito de intervenção, ou de uma nova exceção ao princípio que a proíbe.
Por diversas vezes os Estados Unidos expuseram, com clareza, os motivos que tinham para
intervir nos assuntos de um Estado estrangeiro, e que se referiam, por exemplo, à política interna
desse país, à sua ideologia, ao nível do seu armamento ou à orientação da sua política externa.
Mas tratava-se, aí, da exposição de considerações de política internacional, e de nenhum modo da
afirmação de regras do direito internacional contemporâneo.

2) TIJ, Casos da Plataforma continental do mar do Norte, República Federal da


Alemanha/Dinamarca; República Federal da Alemanha/Países Baixos, acórdão, Col., 1969, p.
44, par. 77

[O]s Estados interessados devem ter o sentimento de estarem a conformar-se ao que equivale
a uma obrigação jurídica. A frequência ou mesmo carácter habitual dos atos não é, em si mesma,
suficiente. Há muitos atos internacionais, por exemplo no domínio do protocolo, que são
realizados quase invariavelmente, mas que apenas se devem a simples considerações de cortesia,
conveniência ou tradição, e não ao sentimento de uma obrigação jurídica.

Questões:
a) Quais são os dois elementos constitutivos do costume internacional como fonte formal de
direito internacional?
b) Considerando as decisões do TIJ, o que significa “aceite como direito” nos termos do art.º 38
do ETIJ? A frequência ou caráter habitual de uma prática é suficiente para a verificação daquele
elemento?
c) Qual a questão discutida pelo TIJ no último parágrafo do primeiro excerto apresentado e qual
a sua decisão? Enquadre à luz das conclusões da Comissão de Direito Internacional sobre o direito
internacional consuetudinário.

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180 Direito Internacional Público
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2022/2023
1º semestre

3) TIJ, Casos da Plataforma continental do mar do Norte, República Federal da


Alemanha/Dinamarca; República Federal da Alemanha/Países Baixos, acórdão, Col., 1969,
pp. 44-45, par. 78

[V]erifica-se simplesmente que, em certos casos – em número escasso –, Estados acordaram


em traçar, ou traçaram, os limites que lhes dizem respeito segundo o princípio da equidistância.
Nada prova que tenham agido dessa maneira porque a isso se sentiam juridicamente vinculados
por uma regra obrigatória de direito consuetudinário, sobretudo se se pensar que outros fatores
puderam motivar a sua ação.

4) TIJ, Casos da Plataforma continental do mar do Norte, República Federal da


Alemanha/Dinamarca; República Federal da Alemanha/Países Baixos, acórdão, Col., 1969, p.
43, par. 74

Mesmo se o decurso de um breve lapso temporal não constitui por si, necessariamente, um
obstáculo à formação de uma nova regra de direito internacional consuetudinário a partir de uma
regra que, originariamente, tinha natureza puramente convencional, seria sempre indispensável
que, no período em questão, por breve que tivesse sido, a prática dos Estados, incluindo a dos
Estados particularmente interessados, tivesse sido frequente e praticamente uniforme no sentido
da disposição invocada, e que, além disso, se tivesse manifestado de modo a evidenciar um
reconhecimento geral de que está em causa uma regra de direito ou uma obrigação jurídica.

5) TIJ, Caso da Plataforma continental, Jamahiriya Árabe Líbia/Malta, Acórdão, fundo, 3


de junho de 1985, Col., 1985, p. , par. 44

44. A este respeito, algo deve ser dito a propósito da prática dos Estados relativamente à
delimitação da plataforma continental; de facto, as Partes discutiram o significado dessa prática,
tal como expressa em acordos de delimitação publicados, principalmente no contexto do estatuto
da equidistância no direito internacional atual. Foram identificados e apresentados perante o
Tribunal mais de 70 destes acordos, e sujeitos a diversas interpretações. A Líbia questiona a
relevância da prática estadual neste domínio, e sugeriu que esta prática mostra, quando muito, o
desaparecimento progressivo da distinção que se encontra no artigo 6 da Convenção de Genebra
sobre a Plataforma Continental, de 1958, entre Estados “opostos” e “adjacentes” e que, desde
1969, tem havido uma tendência clara de afastamento da equidistância, manifestada em acordos
de delimitação entre Estados, assim como em jurisprudência e nas deliberações da Conferência
das Nações Unidas sobre o Direito do Mar. Malta rejeita as duas contenções expendidas por
último, e sustenta que essa prática não tem de ser vista como prova de uma regra particular de
direito consuetudinário, mas constitui, necessariamente, elemento significativo e fiável dos
critérios normais da equidade. O Tribunal, por si, não tem dúvidas sobre a importância da prática
do Estado neste assunto. Ainda assim, esta prática, como quer que seja interpretada, fica aquém
de provar a existência de uma regra que prescreva o uso da equidistância, ou, de facto, de qualquer
método, como obrigatório. Até a existência de uma regra destas, tal como defendido por Malta,
que obrigaria a que a equidistância apenas fosse usada como primeira etapa de qualquer
delimitação, mas sujeita a correção, não pode ser sustentada apenas pela enumeração de exemplos
de delimitação que recorreram à equidistância ou a uma equidistância modificada, ainda que esses
exemplos mostrem, de forma impressiva, que o método da equidistância pode, em muitas
situações, resultar num resultado equitativo.

Questões:

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Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

a) De acordo com o primeiro excerto apresentado do caso da Plataforma Continental do


Mar do Norte, o estabelecimento dos limites segundo o princípio da equidistância é uma
norma consuetudinária? Porquê?
b) De acordo com o segundo excerto apresentado, qual a relação entre o tempo e a
formação do costume? E a formação do direito consuetudinário quando existe uma norma
convencional?
c) Em relação ao último excerto apresentado, o TIJ considera que a prática associada ao
princípio da equidistância é suficiente para a afirmação de uma norma consuetudinária?
Explique.

6) TIJ, Caso Atividades militares e paramilitares na Nicarágua e contra esta, Nicarágua c.


Estados Unidos da América, acórdão, fundo, 27 de junho de 1986, Col., 1986, pp. 97-98, par.
184

Vinculado como está pelo artigo 38 do seu Estatuto a aplicar, inter alia, o costume
internacional ‘como prova de uma prática geral aceite como direito’, o Tribunal não pode ignorar
o papel essencial de uma prática geral. Quando dois Estados acordam em incorporar num tratado
uma regra particular, o seu acordo é suficiente para tornar essa regra numa regra jurídica, que os
vincula; mas, no domínio do direito internacional consuetudinário, não basta que as partes tenham
a mesma opinião quanto ao conteúdo do que consideram uma regra. O Tribunal deve verificar se
a existência da regra na opinio juris dos Estados é confirmada pela prática.

Questão:
a) Uma norma convencional pode ter, simultaneamente, natureza consuetudinária. O que
é que é explicitado pelo Tribunal como sendo necessário para se verificar a natureza
consuetudinária da referida regra?
b) Qual a razão por que o TIJ considera, a respeito da existência de uma norma
consuetudinária, que pode não ser suficiente a identidade de opinião das partes sobre a
existência e conteúdo de uma norma consuetudinária?

7) TIJ, Caso Atividades militares e paramilitares na Nicarágua e contra esta, Nicarágua c.


Estados Unidos da América, acórdão, fundo, 27 de junho de 1986, Col., 1986, p. 98, par. 186

Não deve esperar-se que a aplicação das regras em questão seja perfeita na prática estadual,
no sentido de os Estados se absterem de recorrer à força ou à intervenção nos assuntos internos
dos outros Estados de forma totalmente consistente. O Tribunal não considera que, para que uma
regra esteja estabelecida consuetudinariamente, a prática correspondente deva ser rigorosamente
conforme a essa regra. Para deduzir a existência de regras consuetudinárias, parece-lhe suficiente
que, de uma maneira geral, os Estados conformem a sua conduta a essas regras, e que eles próprios
considerem os comportamentos desconformes com a regra como violações desta e não como
manifestações do reconhecimento de uma nova regra. Se um Estado age de uma forma que, prima
facie, não é possível conciliar com uma regra reconhecida, mas defende a sua conduta invocando
exceções ou justificações contidas na própria regra, daí resulta uma confirmação da regra, mais
do que o seu enfraquecimento, quer a atitude desse Estado possa ou não justificar-se nessa base.

181
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Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

Questão:
a) Explicite em que medida é que, de acordo com o TIJ, uma prática, mesmo que não seja
rigorosamente conforme a uma regra consuetudinária preexistente, não põe em causa a
existência da regra, isto é, a generalidade da prática.

8) TIJ, Caso relativo ao Direito de asilo, Colômbia/Peru, acórdão, 20 de novembro de 1950,


Col., 1950, pp. 276-278

O governo da Colômbia invocou em seu favor, “de uma maneira geral, o direito internacional
americano”. Para além das regras convencionais já analisadas, baseou-se num alegado costume
regional ou local, próprio dos Estados da América Latina.
A Parte que invoca um costume desta natureza deve provar que este se constitui de tal modo
que se tornou obrigatório para a outra Parte. O Governo da Colômbia deve provar que a regra que
invoca está em conformidade com um uso constante e uniforme, praticado pelos Estados em
causa, e que esse uso traduz um direito do Estado que concede asilo e um dever que incumbe ao
Estado territorial. Isto decorre do artigo 38 do Estatuto do Tribunal, que faz referência ao costume
internacional como “prova de uma prática geral aceite como direito”.
Para apoiar a sua tese sobre a existência de um tal costume, o Governo da Colômbia citou um
grande número de tratados de extradição que, como já se disse, não têm pertinência para a questão
que aqui é considerada. Citou convenções e acordos que não contêm qualquer disposição relativa
à alegada regra de qualificação unilateral e definitiva, como a convenção de Montevideu de 1899
sobre o direito penal internacional, o Acordo bolivariano de 1911 e a Convenção da Havana de
1928. Invocou convenções que não foram ratificadas pelo Peru, como as Convenções de
Montevideu de 1933 e 1939. De facto, a Convenção de 1933 apenas foi ratificada por onze
Estados e a Convenção de 1939 apenas por dois Estados.
Também a este propósito, foi em especial sobre a Convenção de Montevideu de 1933 que o
advogado do Governo da Colômbia se baseou. Foi defendido que esta convenção apenas
codificou os princípios já reconhecidos pelo costume da América latina e que poderia ser oponível
ao Peru, por constituir a prova do direito consuetudinário. O número limitado de Estados que
ratificaram esta convenção revela a debilidade desta tese, que, além disso, é contradita pelo
preâmbulo da convenção onde se diz que esta modifica a Convenção da Havana.
Finalmente, o Governo da Colômbia citou um grande número de casos concretos, nos quais o
asilo diplomático foi, de facto, concedido e respeitado. Mas não foi demonstrado que a alegada
regra de qualificação unilateral e definitiva tenha sido invocada, ou que – se, em certos casos,
tiver de facto sido invocada – tenha sido aplicada, para lá das estipulações convencionais, pelos
Estados que concediam asilo, enquanto direito que lhes coubesse, e respeitada pelos Estados
territoriais enquanto dever a que estivessem sujeitos, e não, apenas, por razões de oportunidade
política. Os factos submetidos ao Tribunal revelam tanta incerteza e contradições, tanta flutuação
e contradições no exercício do asilo diplomático e nas opiniões oficialmente expressas em várias
ocasiões; houve uma tal inconsistência na rápida sucessão de convenções sobre o asilo, ratificadas
por alguns Estados e rejeitadas por outros, e a prática foi, nos vários casos, tão influenciada por
considerações de oportunidade política, que não é possível deduzir de tudo isto um uso constante
e uniforme aceite como direito quanto à alegada regra da qualificação unilateral e definitiva do
delito.
Por conseguinte, o Tribunal não pode aceitar que o Governo da Colômbia tenha provado a
existência de um tal costume. Mas, mesmo que pudesse admitir-se que esse costume existia
apenas entre certos Estados da América Latina, não poderia ser invocado perante o Peru que,
longe de a ele ter aderido pelo seu comportamento, ao contrário o repudiou, abstendo-se de
ratificar as convenções de Montevideu de 1933 e 1939, as que primeiro incluíram uma regra sobre
a qualificação do delito em matéria de asilo diplomático.

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183 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

9) TIJ, Caso do Direito de passagem em território indiano (Portugal c. Índia), fundo,


acórdão de 12 de abril de 1960, Col., 1960, p. 33

No presente caso, Portugal reivindica um direito de passagem em território indiano. Afirma a


existência de uma obrigação correlativa por parte da Índia. Pede uma decisão em que se verifique
que a Índia não cumpriu essa obrigação. Em apoio das suas duas primeiras alegações, invoca um
tratado de 1779, de que a Índia contesta tanto a existência como a interpretação. Portugal apoia-
se numa prática de que a Índia contesta, não apenas a substância como também o caráter
vinculativo entre os dois Países que Portugal procura associar-lhe. Para além disso, Portugal
invoca o costume internacional e os princípios de direito internacional, tal como os interpreta.
Defender que um tal direito de passagem existe perante a Índia, sustentar que uma tal obrigação
vincula a Índia, invocar, com ou sem razão, esses princípios, é colocar-se no plano do direito
internacional.

10) TIJ, Caso do Direito de passagem em território indiano (Portugal c. Índia), fundo,
acórdão, 12 de abril de 1960, Col., 1960, p. 39

Relativamente à pretensão de Portugal relativamente a um direito de passagem, tal como por


si formulado com base num costume local, a Índia objeta que nenhum costume local pode ser
estabelecido apenas entre dois Estados. É difícil de ver porque é que tem de ser necessariamente
superior a dois o número de Estados entre os quais pode estabelecer-se um costume local com
base numa longa prática. O tribunal não vê razão por que uma prática longa e continuada entre
dois Estados, por eles aceite como regulando as suas relações, não poderia formar a base de
direitos e obrigações mútuos entre Estados.

11) TIJ, Caso do Direito de passagem em território indiano (Portugal c. Índia), fundo,
acórdão, 12 de abril de 1960, Col., 1960, p. 44

O Tribunal está em presença de um caso concreto com características especiais. Pelas suas
origens, a causa remonta a um período e diz respeito a uma região em que as relações entre
Estados vizinhos não eram reguladas por regras formuladas com precisão, mas amplamente
determinadas pela prática. Por conseguinte, quando o Tribunal considera estar em presença de
uma prática claramente estabelecida entre dois Estados e que as Partes aceitam regular as suas
relações, o Tribunal deve atribuir um efeito decisivo a essa prática tendo em vista a determinação
dos seus direitos e obrigações específicos. Essa prática particular deve prevalecer sobre quaisquer
regras gerais.

Questões:
a) Regra geral o costume internacional é geral ou universal. No entanto, como refere a
CDI na conclusão 16 do Projeto de conclusões sobre a identificação do direito
consuetudinário podem existir regras de “direito internacional particular”. Explique o que
são e quais os elementos necessários para verificar a sua existência.
b) Explicite a que tipo de “direito internacional consuetudinário particular” é analisado
pelo TIJ no caso relativo ao direito de asilo. No caso concreto, o TIJ concluiu pela
existência ou inexistência daquela regra particular? Porquê?
c) E no caso do direito de passagem em território indiano, qual o tipo de costume
particular em análise? No caso concreto, o Tribunal conclui pela existência ou
inexistência daquela regra particular? Porquê?

183
184 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

12) O Estudo da Cruz Vermelha Internacional sobre o Direito Internacional


Humanitário de Origem Consuetudinária

Nota: Em 2005, o Comité Internacional da Cruz Vermelha Internacional publicou um estudo aprofundado,
resultado de cerca de uma década de trabalho, em que identificou o conteúdo normativo de direito internacional
humanitário (DIH) de natureza consuetudinária.
As regras identificadas, bem como a respetiva prática, podem ser consultadas no site da Cruz Vermelha
Internacional https://ihl-databases.icrc.org/customary-ihl/eng/docs/home?opendocument
O corpo essencial de DIH está vertido, principalmente, nas 4 Convenções de Genebra de 1949 e nos seus respetivos
Protocolos Adicionais de 1977. Considerando que as 4 Convenções de Genebra de 1949 são quase universalmente
ratificadas, a questão quanto à natureza consuetudinária (e por isso obrigatória para todos os Estados,
independentemente da sua vinculação aos tratados) coloca-se, assim, mormente em relação às normas consagradas nos
Protocolos Adicionais de 1977.
O estudo consiste na identificação das regras e, associado a cada regra, a prática identificação da prática que sustenta
a afirmação, por parte da Cruz Vermelha Internacional da natureza consuetudinária naquela regra.
De seguida apresenta-se um exemplo da prática de Portugal identificada pela Cruz Vermelha Internacional a
propósito de uma norma, e a explicação de uma regra consuetudinária identificada pela Cruz Vermelha, em que se faz
referência à prática variada de muitos Estados e também a existência de “objetores persistentes”.

12.1) Portugal, Prática relativa à proibição de certo tipo de minas terrestre

IV. Legislação Nacional

O Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal reconheceu em outubro de 2000 que a


publicação oficial da Convenção de Ottawa sobre a Proibição da Utilização, Armazenagem,
Produção e Transferência de Minas Antipessoais e sobre a sua Destruição de 1997 “não alcança
total implementação legislativa do Tratado através da imposição de sanções penais e que este
assunto deve ser tratado a um nível interministerial”.
Em janeiro de 2001, os Ministros dos Negócios Estrangeiros e da Defesa Nacional declararam
que Portugal “está atualmente a estudar a forma, em coordenação com as diferentes autoridades
competentes, de criar legislação nacional a este propósito. No entanto, afirmaram que Portugal
tinha já legislação que punia a posse, venda e produção de substâncias e engenhos explosivos.

VI. Outra Prática Nacional

Portugal expressou pela primeira vez o seu apoio a uma proibição imediata e total de minas
antipessoais a 3 de maio de 1996 durante as negociações da alteração ao Protocolo II à Convenção
sobre Certas armas convencionais. Ao mesmo tempo, Portugal anunciou também uma moratória
indefinida à produção, exportação e uso, exceto para efeitos de treino, de minas antipessoais.
Portugal participou em todas as reuniões preparatórias para a adoção de um tratado para a
proibição de minas antipessoais, endossada na Declaração Final da Conferência de Bruxelas sobre
minas terrestres antipessoais em junho de 1997 e foi um participante pleno nas negociações em
Oslo em setembro de 1997. Também votou favoravelmente as Resoluções da Assembleia Geral
das NU em apoio à proibição de minas terrestres antipessoais em 1996, 1997 e 1998.

12.2) Norma 45. Danos graves ao meio ambiente (excluídas as notas de rodapé)

Norma 45. É proibido o emprego de meios e métodos de combate que tenham sido concebidos
para causar, ou dos quais se pode prever que causem, danos extensos, duradouros e graves ao
meio ambiente. A destruição do meio ambiente não pode ser empregada como uma arma.
(…)
Sumário

184
185 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

A prática dos Estados estipula esta regra como uma norma do direito internacional
consuetudinário e, possivelmente, aplicável tanto nos conflitos armados internacionais como não
internacionais. Aparentemente, os Estados Unidos são um “opositor persistente” da primeira parte
desta norma. Além disso, a França, os Estados Unidos e o Reino Unido são opositores persistentes
em relação à aplicação da primeira parte desta norma no uso de armas nucleares.

Causando danos extensos, duradouros e graves ao meio ambiente


O artigo 35(3) do Protocolo Adicional I proíbe o emprego de “métodos e meios de combate
que tenham sido concebidos para causar, ou dos quais se pode prever que causem, danos extensos,
duradouros e graves ao meio ambiente”. A proibição também, figura no artigo 55(1) do Protocolo
Adicional I. Estas disposições eram evidentemente novas quando foram adotadas. Ao adotar o
Protocolo Adicional I, a França e o Reino Unido afirmaram que se deve avaliar o risco de danos
ambientais que se encaixem nas disposições “de forma objetiva com base nas informações
disponíveis no momento”.
Entretanto, desde então, têm surgido práticas importantes de modo que esta proibição se tornou
costumeira, figurando em muitos manuais militares. É um delito causar danos extensos,
duradouros e graves ao meio ambiente de acordo com a legislação de inúmeros Estados. Esta
prática compreende os Estados que não são, ou não eram no momento, partes do Protocolo
Adicional I. Muitos Estados indicaram nas suas apresentações perante a Corte Internacional de
Justiça, nos casos Nuclear Weapons e Nuclear Weapons (WHO), que consideram as normas dos
artigos 35(3) e 55(1) do Protocolo Adicional I como consuetudinárias. No mesmo sentido, outros
Estados manifestaram a opinião de que estas normas são costumeiras ao declararem que qualquer
parte em um conflito deve observá-las ou deve evitar empregar meios e métodos de combate que
destruiriam o meio ambiente ou que teria efeitos desastrosos sobre este. O Relatório sobre a
Prática de Israel, que não é parte do Protocolo Adicional I, demonstra que as Forças de Defesa de
Israel não empregam nem justificam o emprego de meios e métodos e combate que tenham sido
concebidos para causar, ou dos quais se pode prever que causem, danos extensos, duradouros e
graves ao meio ambiente. Os Estados Unidos afirmaram, em resposta a um memorando do CICV
sobre a aplicabilidade do DIH na região do Golfo em 1991, que a “prática dos Estados Unidos
não compreende métodos de combate que constituiriam danos extensos, duradouros e graves ao
meio ambiente”. Outra prática relevante compreende condenações dos Estados que não são, ou
não eram no momento, partes do Protocolo Adicional I por “ecocídio” ou “destruição massiva do
meio ambiente” ou por terem violado os artigos 35(3) e 55(1) do Protocolo Adicional I.
A proibição de infligir danos extensos, duradouros e graves ao meio ambiente é reafirmada
nas Orientações sobre a Proteção do Meio Ambiente em Tempo de Conflito Armado e no Boletim
do Secretário-Geral da ONU sobre a observância do Direito Internacional Humanitário pelas
forças da ONU. O CICV, no seu documento de trabalho sobre crimes de guerra, submetido, em
1997, ao Comitê Preparatório para o Estabelecimento de um Tribunal Penal Internacional,
considerou crime de guerra “causar propositadamente danos extensos, duradouros e graves ao
meio ambiente”. O texto final acordado para o crime de guerra, incluído no Estatuto do Tribunal
Penal Internacional, o define como “lançar intencionalmente um ataque sabendo que o mesmo
causará (...) prejuízos extensos, duradouros e graves no meio ambiente que se revelem claramente
excessivos em relação à vantagem militar global concreta e direta que se previa”. Dessa forma, o
Estatuto estabelece uma condição adicional para a criminalização da proibição contida nesta
norma.
Existem, contudo, certas práticas que demonstram dúvida quanto à natureza consuetudinária
da norma no Protocolo Adicional I, em particular com relação à expressão “se pode prever que
causem”. As apresentações do Reino Unido e dos Estados Unidos perante a Corte Internacional
de Justiça no caso Nuclear Weapons afirmam que os artigos 35(3) e 55(1) do Protocolo Adicional
I não são consuetudinários. A Corte pareceu considerar a norma da mesma maneira já que
somente se refere à aplicabilidade da disposição aos “Estados que aderiram a essas disposições”.
Ao ratificar a Convenção sobre Certas Armas Convencionais, que retoma no seu preâmbulo a
norma nos artigos 35(3) e 55(1) do Protocolo Adicional I, tanto a França como os Estados Unidos

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186 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

fizeram uma declaração interpretativa de que esta não era uma norma consuetudinária. Menos
claro é o Relatório Final do Comitê Estabelecido para Revisar o Bombardeio da OTAN contra a
República Federal da Iugoslávia, que afirma que o artigo 55 do Protocolo Adicional I “pode (...)
refletir o Direito Consuetudinário atual”.
O problema da natureza consuetudinária da norma, como elaborada no Protocolo Adicional I,
parece acionar a posição da França, Reino Unido e Estados Unidos, que possuem práticas que
demonstram sua aceitação da norma desde que se aplique a armas convencionais e não armas
nucleares. Isto é evidenciado pelo Manual de DICA do Reino Unido, o Manual do Comandante
da Força Área dos EUA e pelas reservas feitas pela França e o Reino Unido ao ratificar o Protocolo
Adicional I de modo que o Protocolo não se aplique às armas nucleares. Esta posição, em
conjunção com as declarações da França e Reino Unido de que os artigos 35(3) e 55(1) do
Protocolo Adicional I não são consuetudinários, significa que o opinio juris destes três Estados
estabelece que essas normas, por si só, não proíbem o uso de armas nucleares.
As práticas, em relação aos métodos de combate e uso de armas convencionais, demonstram
uma aceitação extensa, representativa e virtualmente uniforme da natureza costumeira da norma
que consta nos artigos 35(3) e 55(1) do Protocolo Adicional I. A prática contrária da França,
Estados Unidos e Reino Unido, neste sentido, não é totalmente consistente. Suas declarações em
alguns contextos de que as normas não são consuetudinárias contradizem às feitas em outros
contextos (em particular nos manuais militares) nos quais a norma é vista como vinculante desde
que não aplicada a armas nucleares. Como esses três Estados não são “especialmente afetados”
com relação ao sofrimento dos danos causados, esta prática contrária não é suficiente para evitar
o surgimento desta norma costumeira. Contudo, estes três Estados são especialmente afetados em
relação à posse das armas nucleares, sendo consistente a sua objeção à aplicação desta norma
específica desde a adoção da mesma na forma de tratado em 1977. Portanto, se a doutrina do
“opositor persistente” é possível no âmbito das normas humanitárias, esses três Estados não estão
vinculados por nenhuma regra específica no que diz respeito ao emprego de armas nucleares. No
entanto, deve-se observar que isto não impede de se considerar ilegal o uso de armas nucleares
com base em outras normas como, por exemplo, a proibição de ataques indiscriminados (ver
Norma 11) e o princípio de proporcionalidade (ver Norma 14).

Questões:

a) Como se explica na nota, o corpo essencial de regras de DIH está presente em


convenções internacionais. Identifique então, qual a principal questão subjacente neste
estudo e a Conclusão da CDI relevante para este efeito, explicando-a.
b) No primeiro excerto apresentado, apresenta-se a prática de Portugal que foi
considerada pelo Comité Internacional da Cruz Vermelha Internacional para efeitos da
formação de uma determinada norma consuetudinária. Explicite quais os atos do Estado
que foram considerados à luz das conclusões da CDI.
c) Relativamente ao segundo excerto apresentado, identifique diferentes tipos de prática
identificada pelo CICVI como sendo uma prática geral que confirma a existência de uma
norma consuetudinária relativamente à primeira parte da regra.
d) A prática de Estados que não são parte nos tratados (ou que ainda não eram parte) é
referida de modo específico. Onde? Qual a relevância desta referência?
e) E qual a relevância de determinados Estados, como é referido, exprimirem no momento
em que assinam um tratado que uma determinada norma que ali consta não é direito
consuetudinário?
f) O CICVI identifica, em duas situações a existência de objetor persistente. Explique o
que é o objetor persistente e identifique os dois casos em que isso é mencionado. Quais

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187 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
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são os atos dos Estados em causa que foram considerados objeções? Aqueles
comportamentos não põem em causa o carácter geral da prática?
g) Considerando os dois elementos que constituem o direito internacional
consuetudinário, explicite, justificando, quais os elementos apresentados pelo CICVI que
lhe parecem ser mais adequados para sustentar o elemento material, e aqueles que serão
mais adequados para sustentar a opinio iuris.

13) TIJ, Caso Atividades militares e paramilitares na Nicarágua e contra esta, Nicarágua c.
Estados Unidos da América, Acórdão, fundo, Col. 1986, 27 de junho de 1986, pp. 92-96, pars.
172 ss.

172. O Tribunal tem agora de analisar a questão do direito aplicável ao presente diferendo. Ao
formular a sua opinião sobre o significado da reserva dos Estados Unidos a tratados multilaterais,
o Tribunal concluiu que deve abster-se de aplicar os tratados multilaterais invocados pela
Nicarágua em apoio das suas pretensões, sem prejuízo de outros tratados ou das outras fontes de
direito enunciadas no Artigo 38 do Estatuto. O primeiro passo na determinação do direito que
deverá ser aplicado a este diferendo é o de verificar quais as consequências da exclusão da
aplicabilidade dos tratados multilaterais para a definição do conteúdo do direito consuetudinário
internacional que continua a aplicar-se.
173. De acordo com os Estados Unidos, estas consequências são extremamente alargadas. Os
Estados Unidos alegaram que

“Tal como as pretensões da Nicarágua, alegadamente baseadas no ‘direito internacional


consuetudinário e geral’, não podem ser determinadas sem recurso à Carta das Nações Unidas
como fonte principal desse direito, também não podem ser determinadas sem referência ao
‘direito internacional particular’ estabelecido por convenções multilaterais em vigor entre as
partes”

Os Estados Unidos contendem que o único direito internacional geral e consuetudinário em


que a Nicarágua pode basear as suas pretensões é o da Carta: em especial, o Tribunal não poderia,
no seu entender, considerar a licitude de um alegado uso da força armada sem se referirem à
“fonte principal do direito internacional aplicável”, nomeadamente, o Artigo 2, n.º 4, da Carta das
Nações Unidas. Em síntese, num sentido mais geral, “as disposições aqui pertinentes da Carta das
Nações Unidas subsumem e são supervenientes relativamente a princípios relacionados de direito
internacional consuetudinário e geral”. Os Estados Unidos concluem que, “uma vez que a reserva
a tratados multilaterais impede a apreciação judicial de queixas baseadas nesses tratados, impede
a apreciação de todas as queixas da Nicarágua”. Desta forma, o efeito da reserva em questão não
seria, alega-se, apenas o de evitar que o Tribunal decidisse as queixas da Nicarágua através da
aplicação dos tratados multilaterais em questão; para além disso, o Tribunal estaria impedido de,
na sua decisão aplicar qualquer regra de direito internacional consuetudinário cujo conteúdo fosse
também objeto de uma disposição naqueles tratados multilaterais.
174. No seu acórdão de 26 de novembro de 1984, o Tribunal já se pronunciou, brevemente,
sobre esta linha de argumentação. Contrariamente aos pontos de vista expressos pelos Estados
Unidos, afirmou que

“não pode rejeitar as queixas da Nicarágua à luz do direito internacional consuetudinário e


geral, apenas porque esses princípios foram consagrados nos textos das convenções em que se
apoia a Nicarágua. O facto de os acima referidos princípios, reconhecidos como tais, terem sido
codificados ou integrados em convenções multilaterais não significa que deixem de existir e de
se aplicar como princípios de direito consuetudinário, mesmo no que se refere a países que sejam
partes nessas convenções. Princípios como os do não-uso da força, da não-intervenção, do

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respeito pela independência e integridade territorial dos Estados, e a liberdade de navegação,


continuam a ser vinculantes como parte do direito internacional consuetudinário, apesar das
disposições de direito convencional em que foram incorporados” (TIJ, Col. 1984, p. 424, par. 73).

Agora que o Tribunal chegou à fase da decisão quanto ao fundo, deve desenvolver e apurar
estas observações iniciais. (…)

175. O Tribunal não considera que, nas áreas do Direito relevantes para o presente diferendo,
se possa considerar que todas as regras consuetudinárias que podem ser invocadas tenham um
conteúdo exatamente idêntico ao das regras contidas nos tratados que não podem ser aplicados
em virtude da reserva dos Estados Unidos. Num certo número de aspetos, as áreas reguladas pelas
duas fontes de direito não se sobrepõem exatamente, e as regras substantivas em que estão
enquadradas não têm um conteúdo idêntico. Mas, além disso, mesmo se uma norma convencional
e uma norma consuetudinária aplicáveis ao presente diferendo devessem ter exatamente o mesmo
conteúdo, essa não seria uma razão para o Tribunal concluir que a existência do tratado priva a
norma consuetudinária da sua aplicação separada. Nem pode a reserva ao tratado multilateral ser
interpretada no sentido de que, uma vez aplicável a um determinado diferendo, excluiria a
aplicação de qualquer regra de direito internacional consuetudinário cujo conteúdo fosse o
mesmo, ou análogo, ao da regra de direito convencional que tornou efetiva a reserva.
(…)
177. (…) [C]omo assinalado acima (par. 175), mesmo que a norma consuetudinária e a norma
do tratado tivessem exatamente o mesmo conteúdo, isso não seria uma razão para o Tribunal
considerar que a incorporação da norma consuetudinária em direito convencional privava a norma
consuetudinária da sua aplicação, porque distinta da da norma convencional. A existência de
regras idênticas no direito internacional convencional e consuetudinário foi claramente
reconhecida pelo Tribunal nos casos da Plataforma Continental do Mar do Norte. (…) Em sentido
mais geral, não há fundamento para considerar que, quando o direito internacional
consuetudinário está incluído em regras idênticas de direito convencional, este “prevaleça” sobre
o anterior, de uma forma em que o direito internacional consuetudinário já não tenha existência
própria.
178. Há uma série de razões para considerar que, mesmo quando duas normas de duas fontes
de direito internacional parecem ter um conteúdo idêntico, e mesmo que os Estados em causa
estejam vinculados por essas regras tanto no plano do direito convencional como no direito
internacional consuetudinário, essas normas mantêm uma existência separada. É isso que
acontece do ponto de vista da sua aplicabilidade. (…) Além disso, as regras que são idênticas no
direito convencional e no direito internacional consuetudinário também se distinguem
relativamente aos métodos de interpretação e aplicação. Um Estado pode aceitar uma regra
contida num tratado, não apenas porque favorece a aplicação da própria regra, mas também
porque o tratado cria aquilo que o Estado considera serem instituições ou mecanismos desejáveis
para garantir a implementação da regra. Assim, se essa regra está em paralelo com uma regra de
direito internacional consuetudinário, duas regras com o mesmo conteúdo estão sujeitas a um
tratamento diferente no que se refere aos órgãos competentes para verificar a sua aplicação,
consoante se trate de normas consuetudinárias ou convencionais. O presente caso ilustra esta
situação.
179. Por conseguinte, é claro que o direito internacional consuetudinário continua a existir e
aplicar-se, autonomamente do direito internacional convencional, mesmo quando as duas
categorias de direito têm um conteúdo idêntico. Desta forma, ao determinar o conteúdo do direito
internacional consuetudinário aplicável ao presente diferendo, o Tribunal tem de dar por
verificado que as Partes estão vinculadas pelas regras consuetudinárias em causa; mas o Tribunal
não está de todo obrigado a só manter essas regras se forem diferentes das regras convencionais
que está impedido de aplicar no presente diferendo devido à reserva dos Estados Unidos.

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Questões, Casos e Materiais
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1º semestre

Questões:
a) Em geral, qual é a questão substantiva que o Tribunal tem de decidir neste excerto do
acórdão?
b) O que pretendiam os Estados Unidos com a aposição da sua reserva relativa a tratados
multilaterais?
c) Porque é que o Tribunal considera, a dado passo, que os Estados Unidos pretendiam
extrair consequências muito alargadas da referida reserva?
d) Qual seria, para os Estados Unidos, a consequência jurídica de uma norma
consuetudinária ter, ou não ter, o mesmo conteúdo de uma norma convencional?

14) Caso Arctic Sunrise, Tribunal constituído Segundo o Anexo VII da Convenção das Nações
Unidas sobre o Direito do Mar de 1982, Reino dos Países Baixos e Federação Russa, sentença
arbitral, fundo, 14 de agosto de 2015, RSA, XXXII, pp. 205 ss., 258 ss., pars. 183 ss. (notas de
rodapé não incluídas) [aplicação do costume para interpretação de disposições de um
tratado]

183. Para além disso, os Países Baixos contendem que direitos humanos básicos – incluindo o
direito à liberdade de expressão, o direito a não ser detido de forma arbitrária, e a liberdade de
deixar um país – têm um caráter erga omnes (partes). Os Países Baixos sustentam que, como
“parte no PIDCP, [têm] por esse facto o direito de invocar a responsabilidade internacional da
Federação Russa, também ela parte no PIDCP, por violações do Pacto”. Argumenta que:

“…as violações das regras pertinentes do direito do mar estão, razoavelmente, relacionadas
com violações de direitos humanos segundo o direito internacional consuetudinário e o PIDCP,
ambos vinculativos para os Países Baixos e a Federação Russa. A violação de direitos humanos
individuais, como sustentado neste caso, foi causada pela violação do direito à liberdade de
navegação e do direito de exercer jurisdição exclusiva sobre o Arctic Sunrise. Uma vez que a
pretensão relativa às violações do direito referido por último é admissível, os Países Baixos
também têm o direito para reclamar quanto ao primeiro”.

184. Os Países Baixos defendem que a invocação de responsabilidade erga omnes (partes)
está sujeita a apenas dois critérios: 1) saber se a norma violada se aplica erga omnes; e 2) se o
Estado que invoca a responsabilidade erga omnes (partes) é parte do omnes. Os Países Baixos
sustentam que, assim como a Rússia, são partes no PIDCP, e que, no que respeita aos direitos
humanos, também estão vinculados pelo direito internacional consuetudinário. Por conseguinte,
os Países Baixos consideram ser parte do erga omnes a que se aplicam as normas violadas pela
Rússia. Deste modo, os Países Baixos têm legitimidade para invocar a responsabilidade
internacional da Rússia por alegadas violações de direitos humanos básicos.
(…)
191. No caso de disposições [da Convenção das Nações Unidas sobre o direito do mar]
redigidas em termos amplos ou gerais, pode também ser necessário basear-se em regras primárias
de direito internacional que não sejam as da Convenção, tendo em vista interpretar e aplicar
disposições concretas da Convenção. Tanto tribunais arbitrais como o TIDM interpretaram a
Convenção como permitindo a aplicação de regras pertinentes de direito internacional. O artigo
293 da Convenção possibilita-o. Por exemplo, no caso M/V “Saiga” n.º 2, o TIDM tomou em
consideração regras de direito internacional geral relativas ao uso da força, ao analisar o uso da
força para apresar um navio:

“Ao considerar a força usada pela Guiné no apresamento do Saiga, o Tribunal deve tomar em
consideração as circunstâncias do apresamento no contexto das regras de direito internacional

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190 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
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aplicáveis. Ainda que a Convenção não contenha normas expressas sobre o uso da força no
apresamento de navios, o direito internacional, aplicável por força do artigo 293 da Convenção,
exige que o uso da força seja evitado tanto quanto possível e, quando a força seja inevitável, não
vá além do que seja razoável e necessário de acordo com as circunstâncias. Considerações de
humanidade devem aplicar-se ao direito do mar, do mesmo modo que se aplicam a outras áreas
do direito internacional”.

192. Contudo, o artigo 293 não é um meio para se alcançar a determinação de que foi violado
um tratado distinto da Convenção, a não ser que esse tratado seja, por outra via, uma fonte de
competência, ou a não ser que o tratado de outro modo se aplique diretamente, nos termos da
Convenção.

193. Por vezes, os Países Baixos parecem convidar o Tribunal a determinar, diretamente, que
houve uma violação pela Rússia dos artigos 9 e 12, n.º 2, do PIDCP, de que ambos os Estados são
Partes. (…)
(…)
197. O Tribunal considera que, se necessário, pode atender ao direito internacional geral
relativo aos direitos humanos para determinar se ações para aplicação do direito, tais como a
abordagem, arresto e apresamento do Arctic Sunrise e a detenção e prisão dos que estavam a
bordo era razoável e proporcional. Isso equivaleria a interpretar as disposições pertinentes da
Convenção por referência ao contexto relevante. Isso, no entanto, não é o mesmo que, nem exige,
uma determinação sobre se houve ou não uma violação dos artigos 9 e 12, n.º 2, enquanto tais.
Este tratado tem o seu próprio regime de aplicação, e não cabe ao Tribunal agir substituindo-se a
esse regime.

198. Na determinação das alegações dos Países Baixos relativamente à interpretação e


aplicação da Convenção, o Tribunal pode, por conseguinte, em aplicação do artigo 293, tomar em
consideração, conforme necessário, regras de direito internacional consuetudinário, incluindo
standards de direitos humanos, que não sejam incompatíveis com a Convenção, tendo em vista
ajudar na interpretação e aplicação das disposições da Convenção que autorizam o arresto ou
apresamento de um navio e a detenção de pessoas. O Tribunal não considera que tenha
competência para aplicar diretamente disposições como as dos artigos 9 e 12, n.º 2, do PIDCP, ou
para determinar violações dessas disposições.

Questões
a) A interpretação de um tratado pode implicar a aplicação simultânea de outras regras
internacionais? Justifique.
b) Tomando em consideração o expendido pelo Tribunal no caso Arctic Sunrise, em que
contexto e com que limites pode aplicar-se direito internacional geral ou outras normas
de direito convencional para resolver um diferendo relativo à Convenção das Nações
Unidas sobre o Direito do Mar?

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TRATADOS INTERNACIONAIS

1) TIJ, Plataforma Continental do Mar Egeu, Grécia c. Turquia, acórdão, 19 de


dezembro de 1978, Col., 1978, p. 39, pars. 95 s.

95. O Comunicado de Bruxelas de 31 de maio de 1975 não é assinado nem rubricado,


e o Tribunal foi informado por um dos consultores da Grécia que os Primeiros Ministros
apresentaram diretamente aos jornalistas durante uma conferência de imprensa realizada
naquela data no fim do seu encontro. O Governo turco, nas observações que transmitiu
ao Tribunal a 25 de agosto de 1976, considerou “evidente que um comunicado não pode
considerar-se um acordo segundo o direito internacional”, acrescentando que, “se o fosse,
teria que ser ratificado, pelo menos pela Turquia” (par. 15). O Governo grego, por outro
lado, mantém que um comunicado conjunto pode constituir um acordo desse tipo. Para
tal efeito, diz, “é necessário, e é suficiente, que o comunicado inclua, além das fórmulas
protocolares, dos protestos de amizade, da referência a grandes princípios e das
declarações de intenção, disposições de natureza convencional” (Memória, par. 279). Um
consultor da Grécia, além disso, referiu-se à questão dos comunicados conjuntos como
“um ritual moderno que adquiriu estatuto pleno na prática internacional”.

96. Sobre a questão da forma, o Tribunal limita-se a observar que não existe qualquer
regra de direito internacional que proíba um comunicado conjunto de constituir um
acordo internacional para submeter um diferendo a arbitragem ou a resolução judicial (cf.
arts. 2, 3 e 11 da Convenção de Viena sobre o direito dos tratados). Em consequência,
que o comunicado de Bruxelas de 31 de maio de 1975 constitua ou não um tal acordo
depende, essencialmente, da natureza do ato ou da transação a que se refere; a questão
não pode ser resolvida pela invocação da forma de comunicado dada ao ato referido ou
àquela transação. Ao contrário, para determinar qual era, de facto, a natureza do ato ou
transação consagrada no comunicado de Bruxelas, o Tribunal deve tomar em
consideração os termos utilizados e as circunstâncias em que o comunicado foi elaborado.

2) TIJ, Delimitação Marítima e Questões Territoriais, Julgamento, Qatar c.


Bahrain, 1 de julho de 1994
https://www.icj-cij.org/public/files/case-related/87/087-19940701-JUD-01-00-EN.pdf

21. Em primeiro lugar, o Tribunal irá indagar da natureza dos textos invocados pelo Qatar,
antes de analisar o conteúdo daqueles textos.
22. As Partes estão de acordo que a troca de correspondência em dezembro de 1987
constitui um acordo internacional com força jurídica vinculativa nas suas relações
mútuas. Contudo, o Bahrain defende que as Atas de 25 de dezembro de 1990 não são
mais do que um simples registo de negociações, de natureza similar às Atas do Comité
Tripartido; consequentemente, não se trataria de um acordo internacional e não poderia,
de igual modo, ser a base para o exercício da jurisdição pelo Tribunal.

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Questões, Casos e Materiais
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1º semestre

23. O Tribunal observa, em primeiro lugar, que os acordos internacionais podem ter
inúmeras formas e podem ser nomeados de maneiras diversas. O artigo 2, n.º 1, alínea a),
da Convenção de Viena sobre o direito dos tratados de 23 de maio de 1969 estabelece que
para efeitos daquela Convenção,
“’tratado’ designa um acordo internacional concluído por escrito entre Estados e regido
pelo direito internacional, quer esteja consignado num documento único, quer em dois ou
vários instrumentos conexos, e qualquer que seja a sua designação particular”.
Além disso, como o Tribunal referiu, num caso a propósito de um comunicado conjunto,
“não conhece qualquer regra de direito internacional que impeça que um comunicado
conjunto possa constituir um acordo internacional para submeter uma disputa a
arbitragem ou a resolução judicial” (…)
Para determinar se um acordo desta natureza foi concluído, “o Tribunal tem de ter em
consideração antes de mais os seus termos reais e as circunstâncias particulares em que
foi efetuado” (...).
24. As Atas de 1990 referem-se às consultas entre os Ministros dos Negócios Estrangeiros
do Bahrain e do Qatar, na presença do Ministro dos Negócios Estrangeiros da Arábia
Saudita e revelam aquilo que tinha sido “acordado” entre as Partes. No parágrafo 1 os
compromissos anteriormente assumidos são reafirmados (que incluem, pelo menos, o
acordo constituído pela troca de correspondência de dezembro de 1987). No parágrafo 2,
as Atas estabelecem que os bons ofícios do Rei da Arábia Saudita continuarão até maio
de 1991, e excluem a submissão da controvérsia ao Tribunal antes daquela data. São
tratadas as circunstâncias nas quais a controvérsia pode posteriormente ser submetida ao
Tribunal. A aceitação por parte do Qatar relativamente à fórmula proposta pelo Bahrain
é registada. As Atas estabelecem que os bons ofícios Sauditas continuarão enquanto o
caso estiver pendente perante o Tribunal e, continuam estabelecendo que, se um acordo
de compromisso for alcançado durante aquele período, o caso será retirado.
25. Assim, as Atas de 1990 incluem uma reafirmação das obrigações anteriormente
estabelecidas; confiam ao Rei Fahd a tarefa de procurar encontrar uma solução para a
controvérsia num período de 6 meses; e, por último, tratam das circunstâncias de acordo
com as quais o Tribunal poderia ser chamado a intervir depois de maio de 1991.
Consequentemente, e contrariamente ao alegado pelo Bahrain, as Atas não são apenas um
simples registo de um encontro, semelhante aos realizados no enquadramento do Comité
Tripartido; não dão apenas conta das discussões e sumarizam os pontos de acordo e de
desacordo. Enumeram os compromissos relativamente aos quais as Partes consentiram.
Deste modo, criam direitos e obrigações de direito internacional para as Partes.
Constituem um acordo internacional.
26. Contudo, o Bahrain alega que os signatários das Atas “nunca tiveram a intenção de
concluir um acordo daquela natureza”. Apresentou uma declaração do Ministro dos
Negócios Estrangeiros do Bahrain, datada de 21 de maio de 1992, em que aquele declara
que “em momento algum considerei que ao assinar as Atas estava a vincular
juridicamente o Bahrain a um acordo”. E continua dizendo que, de acordo com a
Constituição do Bahrain “tratados ‘relativos ao território do Estado’ podem produzir os
seus efeitos apenas depois de serem positivamente decretados como lei”. O Ministro
indica que, por isso, não lhe seria permitido assinar um acordo internacional com aquele
efeito no momento da assinatura. Ele estava consciente desta situação e preparado para

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193 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
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1º semestre

subescrever uma declaração dando conta de um entendimento político, mas não para
assinar um acordo juridicamente vinculativo.
27. O Tribunal não considera necessário analisar quais tenham sido as intenções do
Ministro dos Negócios Estrangeiros do Bahrain ou, para esse efeito, as do Ministro dos
Negócios Estrangeiros do Qatar. Os dois Ministros assinaram um texto que regista
compromissos aceites pelos seus Governos, alguns dos quais tiveram aplicação
automática. Tendo assinado este texto, o Ministro dos Negócios Estrangeiros do Bahrain
não está em posição de posteriormente dizer que tinha como intenção apenas “uma
declaração que registava um entendimento político” e não um acordo internacional.
28. O Bahrain, contudo, baseia a sua contestação de que não foi concluído qualquer
acordo internacional, ainda noutro argumento. Mantém que a conduta subsequente das
partes demonstrara que aquelas nunca tinham considerado que as Atas de 1990 era um
acordo daquela natureza; e essa foi não apenas a posição do Bahrain, mas também a do
Qatar. O Bahrain chama a atenção de que o Qatar esperou até junho de 1991 para registar
as Atas de 1990 junto do Secretariado das Nações Unidas ao abrigo do artigo 102 da
Carta; e, além disso, o Bahrain objetou àquele registo. O Bahrain observa também que,
ao contrário do que está estabelecido no artigo 17 do Pacto da Liga dos Estados Árabes,
o Qatar não entregou as Atas de 1990 junto do Secretariado Geral da Liga; nem cumpriu
os procedimentos exigidos pela sua própria Constituição para a conclusão dos tratados.
Esta conduta demonstra que o Qatar, como o Bahrain, nunca consideraram que as Atas
de 1990 eram um acordo internacional.
29. O Tribunal observa que um acordo internacional ou tratado que não tenha sido
registado junto do Secretariado das Nações Unidas não pode, de acordo com o
estabelecido no artigo 102 da Carta, ser invocado pelas partes perante qualquer órgão das
Nações Unidas. O não registo ou o registo tardio, por outro lado, não tem qualquer
consequência quanto à validade efetiva do acordo que permanece vinculativo para as
partes. O Tribunal não pode, portanto, inferir do facto de o Qatar não ter procedido ao
registo das Atas de 1990 se não seis meses depois de terem sido assinadas que o Qatar
considerava em dezembro de 1990, que aquelas Atas não constituíam um acordo
internacional. A mesma conclusão decorre relativamente ao não-registo do texto junto do
Secretariado Geral da Liga Árabe. Nem qualquer elemento que foi apresentado perante o
Tribunal justifica que deduzisse de qualquer desconsideração por parte do Qatar
relativamente às suas regras constitucionais relativas à conclusão dos tratados que aquele
não tinha a intenção de concluir, ou não considerava ter concluído um instrumento
daquela natureza; nem poderia uma tal intenção, mesmo se tivesse sido demonstrada,
prevalecer sobre os termos reais do instrumento em questão. Consequentemente os
argumentos do Bahrain quanto a estes aspetos não podem ser aceites.
30. O Tribunal conclui que as Atas de 25 de dezembro de 1990, bem como a troca de
correspondência de dezembro de 1987, constituem um acordo internacional que cria
direitos e obrigações para as Partes.

3) Nações Unidas, Secretariado, Orientações sobre Plenos Poderes


https://treaties.un.org/doc/source/publications/NV/2010/Full_Powers-2010.pdf

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194 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

Apenas os Chefes de Estado ou de Governo ou os Ministros dos Negócios Estrangeiros,


ou uma pessoa agindo, ad interim, numa das funções anteriores pode, em virtude das suas
funções, executar ações relativas a tratados. Qualquer outra pessoa tem de estar na posse
de plenos poderes apropriados. São exigidos plenos poderes apropriados a qualquer
pessoa que procure assinar um tratado depositado junto do Secretário-Geral, assinar um
instrumento de ratificação, aceitação, aprovação ou adesão; uma declaração ou
notificação com efeitos vinculativos; ou uma reserva relacionada com um tratado
depositado junto do Secretário-Geral. Contudo, os plenos poderes não são exigidos para
depositar junto do Secretário-Geral um instrumento de ratificação, aceitação, aprovação
ou adesão que esteja devidamente assinado.
Requisitos do Secretário-geral aplicáveis aos plenos poderes:
1. Assinatura do Chefe de Estado, Chefe de Governo ou Ministro do Negócios
Estrangeiros, ou das pessoas agindo, ad interim, numa das funções acima designadas;
2. Título do tratado;
3. Autorização expressa para assinar o tratado ou adotar a ação em causa relativamente
ao tratado;
4. Nome completo e título da pessoa devidamente autorizada a assinar;
5. Data e local da assinatura do instrumento de plenos poderes; e
6. Selo Oficial. Este é opcional e não substitui a assinatura de uma das três autoridades
do Estado.
Note, por favor:
Quando tenham sido atribuídos plenos poderes genéricos a uma determinada pessoa e
aqueles tenham sido previamente depositados no Secretariado, não são exigidos plenos
poderes específicos.
Os plenos poderes têm de ser submetidos para verificação à Secção de Tratados antes da
data pretendida para a assinatura ou a ação relativa ao tratado.
[…]

4) TIJ, Caso relativo à delimitação das fronteiras terrestre e marítima entre os


Camarões e a Nigéria, 10 de outubro de 2002

https://www.icj-cij.org/public/files/case-related/94/094-20021010-JUD-01-00-EN.pdf

265. O Tribunal irá agora pronunciar-se sobre o argumento da Nigéria de que de as suas
regras constitucionais relativas à conclusão dos tratados não foram cumpridas. A este
propósito o Tribunal recorda que o artigo 46, n.º 1 da Convenção de Viena estabelece que
“a circunstância de o consentimento de um Estado a obrigar-se por um tratado ter sido
expresso com violação de um preceito do seu direito interno relativo à competência para
a conclusão dos tratados, não pode ser alegada como tendo viciado o seu consentimento”.

194
195 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

É verdade que aquele número continua dizendo “a não ser que a violação tenha sido
manifesta e diga respeito a uma regra do seu direito interno de importância fundamental”,
enquanto que o n.º 2 do artigo 46 estabelece que “[u]ma violação é manifesta se é
objetivamente evidente ara qualquer Estado que proceda, nesse domínio, de acordo com
a prática habitual e de boa fé”. As regras relativas à competência para assinar tratados são
regras constitucionais de importância fundamental. Contudo, a limitação da capacidade
de Chefes de Estado a este respeito não é manifesta no sentido do artigo 46, n.º 2, a não
ser que pelo menos seja devidamente publicitada. Isto é assim, de modo particular, porque
os Chefes de Estado pertencem ao grupo de pessoas que, de acordo com o artigo 7, n.º 2
da Convenção “em virtude das suas funções e sem terem que apresentar instrumento de
plenos poderes” se consideram como representando o seu Estado.
O Tribunal não pode aceitar o argumento da Nigéria de que o artigo 7, n.º 2 da Convenção
de Viena sobre o direito dos tratados é apenas relativo à forma como a função da pessoa
como representante do Estado é estabelecida, mas não sobre a extensão dos poderes dessa
pessoa quando exerce aquela função representativa. O Tribunal nota que o Comentário
da Comissão de Direito Internacional ao artigo 7, n.º 2 prevê expressamente que “os
Chefes de Estado (…) são considerado como representando o seu Estado para efeitos de
qualquer ato relacionado com a conclusão de um tratado” (…)
266. A Nigéria argumenta ainda que os Camarões sabiam, ou tinham de saber, que o
Chefe de Estado da Nigéria não tinha poder para vincular juridicamente a Nigéria sem
consultar o Governo Nigeriano. A este respeito o Tribunal recorda que não existe uma
qualquer obrigação jurídica geral de os Estados se manterem informado dos
desenvolvimentos legislativos e constitucionais de outros Estados que são ou podem vir
a ser importantes para as relações desses Estados.
Neste caso, o Chefe de Estado da Nigéria tinha afirmado em agosto de 1974 na Carta
enviada ao Chefe de Estado dos Camarões que as posições da Comissão Conjunta “tinham
de ser sujeitas a acordo entre os dois Governos”. Contudo, no parágrafo seguinte da
mesma carta, indicada ainda: “Sempre acreditei que podemos, em conjunto, reexaminar
a situação e alcançar uma decisão adequada e aceitável a este propósito”. Ao contrário do
que é alegado pela Nigéria, o Tribunal considera que estas duas declarações, lidas em
conjunto, não podem ser interpretadas como sendo um aviso específico aos Camarões de
que o Governo Nigeriano contestaria estar vinculado a qualquer acordo negociado entre
os Chefes de Estado. E, em particular, não podiam ser entendidas como relacionadas com
qualquer acordo a ser estabelecido em Maroua nove meses depois. A carta em questão,
na verdade, era relativa ao encontro a realizar-se em Kano, na Nigéria de 30 de agosto e
1 de setembro de 1974. Esta carta parece ter sido parte de um padrão que marcou as
negociações das fronteiras entre as Partes entre 1970 e 1975, nas quais os dois Chefes de
Estado tomaram a iniciativa de resolver as dificuldades naquelas negociações através de
acordos entre si, incluindo os de Yaoundé II e Maroua.

5) TJUE, Acórdão A. Racke GmbH & Co. contra Hauptzollamt Mainz, Processo C-
162/96, 16 de junho de 1998

46. Segue-se que as regras do direito consuetudinário internacional relativas à cessação e


à suspensão das relações convencionais em virtude de uma alteração fundamental de
circunstâncias vinculam as instituições da Comunidade e integram a ordem jurídica
comunitária.

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196 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

47. Importa em seguida observar que, no caso em apreço, o interessado põe em causa, a
título incidental, a validade de um regulamento comunitário na perspetiva dessas regras
para invocar direitos que para ele decorrem diretamente de um acordo da Comunidade
com um país terceiro. O presente processo não diz, portanto, respeito ao efeito direto das
referidas regras.

48. Com efeito, o interessado invoca regras do direito consuetudinário internacional de


natureza essencial contra o regulamento controvertido, que foi adotado em aplicação
dessas regras e o priva do direito ao tratamento preferencial que o acordo de cooperação
lhe concede (v., para uma situação comparável relativamente às regras de base de natureza
convencional, acórdão de 7 de Maio de 1991, Nakajima/Conselho, C-69/89, Colect., p. I-
2069, n._ 31).

49. As regras invocadas pelo interessado constituem uma exceção ao princípio pacta sunt
servanda que constitui um princípio fundamental de qualquer ordem jurídica e, em
especial, da ordem jurídica internacional. Aplicado ao direito internacional, esse princípio
exige que todo o tratado em vigor vincule as partes e deva ser por elas executado de boa
fé (v. artigo 26 da Convenção de Viena).

50. A importância desse princípio foi ainda recordada pelo Tribunal Internacional de
Justiça, segundo o qual «a estabilidade das relações convencionais exige que o
fundamento baseado numa alteração fundamental de circunstâncias só se aplique em
situações excecionais» (acórdão de 25 de Setembro de 1997, processo relativo ao projecto
Gabcíkovo - Nagymaros, Hungria/Eslováquia, n._ 104, ainda não publicado na
Colectânea dos acórdãos, pareceres consultivos e despachos).

51. Nestas condições, não se pode recusar a um interessado, quando nos tribunais invoca
direitos que retira diretamente de um acordo com um país terceiro, a possibilidade de pôr
em causa a validade de um regulamento que, ao suspender as concessões comerciais
concedidas por esse acordo, o impede de dele se prevalecer, e de invocar, para contestar
a sua validade, as obrigações que decorrem das regras do direito consuetudinário
internacional que regulam a cessação e a suspensão das relações convencionais.

52. Todavia, em virtude da complexidade das regras em causa e da imprecisão de algumas


noções para que remetem, o controlo jurisdicional deve necessariamente, em especial no
âmbito do processo de reenvio prejudicial de validade, limitar-se à questão de saber se o
Conselho, ao adotar o regulamento de suspensão, cometeu erros manifestos de apreciação
quanto às condições de aplicação dessas regras.

53. Para que a cessação ou a suspensão de um acordo possa ser considerada em virtude
de uma alteração fundamental de circunstâncias, o direito consuetudinário internacional,
como foi codificado no artigo 62, n.º 1, da Convenção de Viena, estabelece duas
condições. Em primeiro lugar, a existência dessas circunstâncias teve de constituir uma
base essencial do consentimento das partes a obrigarem-se pelo acordo; em segundo, essa
alteração deve ter por efeito a transformação radical da natureza das obrigações assumidas
no acordo.

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197 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

54. Quanto à primeira condição, importa observar que, de acordo com o preâmbulo do
acordo de cooperação, as partes contratantes estão determinadas «a promover o
desenvolvimento e a diversificação da cooperação económica, financeira e comercial
tendo em vista favorecer um melhor equilíbrio, bem como a melhoria da estrutura e
desenvolvimento do volume das suas trocas comerciais e o aumento do bem-estar das
suas populações» e que estão conscientes «da necessidade de ter conta a nova situação
criada pelo alargamento da Comunidade e de reforçar os laços de vizinhança existentes
na criação de relações económicas e comerciais mais harmoniosas entre a Comunidade e
a República Socialista Federativa da Jugoslávia». Na sequência destas considerações, o
artigo 1 desse acordo estipula que este «tem por objetivo promover uma cooperação
global entre as partes contratantes tendo em vista contribuir para o desenvolvimento
económico social da República Socialista Federativa da Jugoslávia e favorecer o reforço
das suas relações mútuas».

55. Face a um objetivo de tal envergadura, a manutenção de uma situação de paz na


Jugoslávia, indispensável às relações de boa vizinhança, e a existência de instituições
capazes de garantir a implementação da cooperação tida em vista pelo acordo em todo o
território da Jugoslávia constituíam uma condição fundamental para iniciar e prosseguir
a cooperação prevista pelo acordo.

56. Quanto à segunda condição, não parece que o Conselho, ao declarar, no segundo
considerando do regulamento controvertido, que «a continuação das hostilidades e as suas
consequências nas relações económicas e sociais, tanto entre as repúblicas da Jugoslávia
como com a Comunidade, constituem uma alteração radical das condições em que foram
celebrados o acordo de cooperação entre a Comunidade Económica Europeia e a
República Socialista Federativa da Jugoslávia e os seus protocolos» e «que põem em
causa a aplicação desses textos», tenha cometido um erro manifesto de apreciação.

57. Embora seja verdade, como a Racke afirma, que devia continuar a existir um certo
volume de comércio com a Jugoslávia e que a Comunidade podia ter continuado a
conceder concessões pautais, também não deixa de ser verdade, como observou o
advogado-geral no n.º 93 das suas conclusões, que a aplicação das regras do direito
consuetudinário internacional em causa não depende da impossibilidade de executar uma
obrigação e que a continuação das preferências, na intenção de estimular as trocas, deixou
de ter sentido a partir do momento em que a Jugoslávia estava em estado de
decomposição.

6) Carta das Nações Unidas, excerto

Capítulo XIX
Ratificação e assinatura
Artigo 110
1. A presente Carta deverá ser ratificada pelos Estados signatários de acordo com as
respetivas regras constitucionais.
2. As ratificações serão depositadas junto do Governo dos Estados Unidos da América,
que notificará de cada depósito todos os Estados signatários, assim como o Secretário-
Geral da Organização depois da sua nomeação.

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198 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
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3. A presente Carta entrará em vigor depois do depósito de ratificação pela República da


China, França, União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, Reino Unido da Grã-
Bretanha e Irlanda do Note e Estados Unidos da América, e pela maioria dos outros
Estados signatários. O Governo dos Estados Unidos da América organizará, em seguida,
um protocolo das ratificações depositadas, o qual será comunicado, por meio de cópias,
aos Estados signatários.
4. Os Estados signatários da presente Carta que a ratificarem depois da sua entrada em
vigor tornar-se-ão membros originários das Nações Unidas na data do depósito das suas
ratificações respetivas.
7) Tratado da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço

Artigo 97
O presente tratado é concluído para vigorar cinquenta anos a partir da sua entrada em
vigor.

Artigo 98
Todos os Estados europeus podem pedir para aderir ao presente tratado dirigindo ao seu
pedido ao Conselho, que, depois de ouvida a opinião da Alta Autoridade, delibera por
unanimidade e fixa, também por unanimidade, as condições de adesão. O Tratado entra
em vigor a partir do dia em que o instrumento de adesão for recebido pelo governo
depositário de Tratado.

Artigo 99
O presente Tratado será ratificado por todos os Estados membros em conformidade com
as suas regras constitucionais respetivas; os instrumentos de ratificação serão depositados
junto do Governo da República Francesa. Entrará em vigor no dia do depósito do
instrumento de ratificação do Estado signatário que proceda em último lugar a essa
formalidade. No caso de todos os instrumentos de ratificação não terem sido depositados
num período de seis meses à data da assinatura do presente Tratado, os governos dos
Estados que tenham efetuado aquele depósito concertar-se-ão quanto às medidas a adotar.

8) Declaração da Russia depositada junto das Nações Unidas a propósito do Estatuto


do Tribunal Penal Internacional, que havia assinado sob reserva de ratificação a 13
de setembro de 2000

https://treaties.un.org/Pages/ViewDetails.aspx?src=TREATY&mtdsg_no=XVIII-10&chapter=18&clang=_en#12

“Em comunicação recebida a 30 de novembro de 2016, o Governo da Federação Russa


informou o Secretário-Geral do seguinte:
Tenho a honra de o informar da intenção da Federação Russa em não se tornar Parte do
Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, adotado em Roma a 17 de julho de
1998 e assinado pela Federação Russa a 13 de setembro de 2000.
Peço-lhe por favor, Senhor Secretário-Geral, que considere este instrumento como uma
notificação oficial por parte da Federação Russa nos termos do artigo 18, alínea a) da
Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969.”

198
199 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

9) Declaração dos Estados Unidos depositada junto das Nações Unidas a propósito
do Estatuto do Tribunal Penal Internacional, que havia assinado sob reserva de
ratificação a 31 de dezembro de 2000

Em comunicação recebida a 6 de maio de 2002, o Governo dos Estados Unidos da


América informou o Secretário-Geral do seguinte:
Venho por este meio informá-lo, relativamente ao Estatuto de Roma do Tribunal Penal
Internacional adotado a 17 de julho de 1998, que os Estados Unidos não têm intenção de
se tornar Parte naquele tratado. Consequentemente, os Estados Unidos não têm qualquer
obrigação jurídica derivada da sua assinatura em 31 de dezembro de 2000. Os Estados
Unidos pedem que a sua intenção de não se tornar Parte, como expressa nesta carta, seja
refletida na lista do depositário relativa ao estatuto quanto a este tratado.

10) Estatuto do Tribunal Penal Internacional, excerto

Artigo 120.º - Reservas


Não são admitidas reservas a este Estatuto.

11) Convenção sobre Poluentes Orgânicos Persistentes (POP), Estocolmo, 22 de


maio de 2001, excerto

Artigo 27.º - Reservas


Não podem ser estabelecidas reservas à presente Convenção.

12) Protocolo de Montreal sobre as Substâncias que Empobrecem a Camada de


Ozono, excerto

Artigo 18.º Reservas


O presente Protocolo não pode ser objeto de reservas.

13) Convenção das Nações Unidas sobre o direito do Mar, excerto

Artigo 298º - Exceções de carácter facultativo à aplicação da secção 2


1. Ao assinar ou ratificar a presente convenção ou a ela aderir, ou em qualquer outro
momento ulterior, um Estado pode, sem prejuízo das obrigações resultantes da secção 1,
declarar por escrito não aceitar um ou mais dos procedimentos estabelecidos na secção 2,
com respeito a uma ou várias das seguintes categorias de conflitos:

Artigo 309º - Reservas e exceções


A presente convenção não admite quaisquer reservas ou exceções além das por ela
expressamente autorizadas noutros artigos.

14) Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Crianças, excerto

Artigo 51.º

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2022/2023
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1. O Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas recebe e comunica a todos os


Estados o texto das reservas que forem feitas pelos Estados no momento da ratificação
ou da adesão.
2. Não é autorizada nenhuma reserva incompatível com o objeto e com o fim da presente
Convenção.
3. As reservas podem ser retiradas em qualquer momento por via de notificação dirigida
ao Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas, o qual informará todos os
Estados Partes na Convenção. A notificação produz efeitos na data da sua receção pelo
Secretário-Geral.

15) Declarações Interpretativas – Argélia, na data da ratificação (12 de setembro de


1989), a propósito dos Pactos Internacionais de direitos civis e políticos, e de direitos
económicos sociais e culturais

1. O Governo da Argélia interpreta o artigo 1, que é comum aos dois Pactos, como em
nenhum caso comprometer o direito inalienável de todos os povos à autodeterminação e
ao controle sobre suas riquezas e recursos naturais.
Além disso, considera que a manutenção por parte de um Estado da dependência de certos
territórios referidos no artigo 1, n.º 3 de ambos os Pactos e no artigo 14 do Pacto
Internacional de direitos Económicos, Sociais e Culturais é contrário aos fins e princípios
das Nações Unidas, à Carta da Organização e à Declaração sobre a concessão da
independência aos países e aos povos coloniais [Resolução da AG 1514 (XV)].
2. O Governo da Argélia interpreta as disposições do artigo 8 do Pacto Internacional de
Direitos Económicos, Sociais e Culturais e o artigo 22 do Pacto Internacional de Direitos
Civis e Políticos como reconhecendo a lei como o enquadramento para a ação do Estado
em relação à organização e exercício do direito de se organizar.
3. O Governo da Argélia considera que as disposições dos n.ºs 3 e 4 do artigo 13 do Pacto
Internacional de Direitos Económicos, Sociais e Culturais, como em nenhum caso poder
comprometer o seu direito de organizar livremente o seu Sistema educativo.
4. O Governo da Argélia interpreta as disposições do artigo 23, n.º 4 do Pacto
Internacional de Direitos Civis e Políticos sobre os direitos e responsabilidades dos
cônjuges quanto ao casamento, durante o casamento e sua dissolução, sem comprometer
os fundamentos essenciais do sistema jurídico argelino.

16) Declarações de Portugal a propósito das Declarações interpretativas da Argélia,


26 outubro de 1990

“O Governo de Portugal apresenta deste modo a sua objeção formal às declarações


interpretativas apresentadas pelo Governo da Argélia no momento da ratificação dos
Pactos Internacionais de Direitos Civis e Políticos, e de Direitos Económicos, Sociais e
Culturais. Tendo examinado as referidas declarações, o Governo de Portugal conclui que
podem ser consideradas como reservas e, consequentemente, deveriam ser consideradas
inválidas, assim como incompatíveis com o objeto e o fim dos Pactos.
Esta objeção não obsta à entrada em vigor dos Pactos entre Portugal e a Argélia."

17) Depósito pelo Governo da Suíça de notificação de retirada de reserva, de 12 de


janeiro de 2004

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Questões, Casos e Materiais
2022/2023
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Aviso n.º 112/2008 Por ordem superior se torna público ter o Governo da Suíça efetuado,
junto do Secretário-Geral das Nações Unidas, numa notificação recebida em 12 de Janeiro
de 2004, a sua decisão de retirar a reserva relativa às alíneas d) e f) do n.º 3 do artigo 14.º,
formulada no momento da ratificação do Pacto Internacional sobre os Direitos Humanos,
adotado em Nova Iorque em 16 de Dezembro de 1966, adiante denominado o Pacto.

18) Declaração da Tunísia a propósito da Convenção de Viena sobre o direito dos


Tratados

Os diferendos a que se refere o artigo 66, alínea a), exigem o consentimento de todos as
partes envolvidas no mesmo para que possam ser submetidos ao Tribunal Internacional
de Justiça para decisão.

19) Declaração do Reino Unido a propósito da Declaração da Tunísia

“O Reino Unido objeta à reserva apresentada pelo Governo da Tunísia relativamente ao


artigo 66, alínea a) da Convenção e não aceita a entrada em vigor da Convenção entre o
Reino Unido e a Tunísia.”

ESTUDO DE CASO: RESERVAS, DECLARAÇÕES INTERPRETATIVAS E OBJEÇÕES À


CONVENÇÃO INTERNACIONAL PARA A ELIMINAÇÃO DO FINANCIAMENTO DO
TERRORISMO, DE 9 DE DEZEMBRO DE 1999

A) Convenção Internacional para a Eliminação do Financiamento do Terrorismo,


de 9 de dezembro de 1999

https://dre.pt/application/file/a/197044

Preâmbulo
Os Estados Contratantes na presente Convenção: (…)
Recordando igualmente todas as resoluções da Assembleia Geral sobre esta matéria,
particularmente a Resolução n.º 49/60, de 9 de Dezembro de 1994, e o seu anexo sobre a
Declaração sobre as Medidas para Eliminar o Terrorismo Internacional, na qual os
Estados-Membros das Nações Unidas solenemente afirmaram que condenavam
categoricamente todos os atos, métodos e práticas terroristas como criminosos e
injustificáveis, onde quer que aconteçam e sejam quais forem os seus autores, muito
especialmente as que comprometem as relações de amizade entre os Estados e os povos
e que ameaçam a integridade territorial e a segurança dos Estados;
Observando que a Declaração sobre as Medidas para Eliminar o Terrorismo Internacional
também encorajou os Estados a examinar com urgência o âmbito das disposições jurídicas
internacionais em vigor sobre a prevenção, a repressão e a eliminação do terrorismo sob
todas as suas formas e manifestações, com o fim de assegurar a existência de um quadro
jurídico geral que abranja todas as questões nesta matéria; (…)
acordaram o seguinte: (…)

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Questões, Casos e Materiais
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Artigo 2.º
1 - Comete uma infração, nos termos da presente Convenção, quem, por quaisquer meios,
direta ou indiretamente, ilegal e deliberadamente, fornecer ou reunir fundos com a
intenção de serem utilizados ou sabendo que serão utilizados, total ou parcialmente, tendo
em vista a prática:
a) De um ato que constitua uma infração compreendida no âmbito de um dos tratados
enumerados no anexo e tal como aí definida; ou
b) De qualquer outro ato destinado a causar a morte ou ferimentos corporais graves num
civil ou em qualquer pessoa que não participe diretamente nas hostilidades numa situação
de conflito armado, sempre que o objetivo desse ato, devido à sua natureza ou contexto,
vise intimidar uma população ou obrigar um governo ou uma organização internacional
a praticar ou a abster-se de praticar qualquer ato.
2 - a) Ao depositar o seu instrumento de ratificação, aceitação, aprovação ou adesão, um
Estado Contratante que não seja parte de um tratado enumerado no anexo referido no n.º
1, alínea a), poderá declarar que, no quadro da aplicação da presente Convenção a este
Estado Contratante, esse tratado será considerado como não figurando naquele anexo.
Essa declaração ficará sem efeito a partir da entrada em vigor do tratado para o Estado
Contratante, que notificará o depositário desse facto.
b) Quando um Estado Contratante deixe de ser parte de um tratado enumerado no anexo,
poderá efetuar uma declaração, relativamente a esse tratado, de acordo com o presente
artigo
(…)
Artigo 24.º
1 - Qualquer diferendo entre dois ou mais Estados, respeitando a interpretação ou a
aplicação da presente Convenção, que não possa ser resolvido amigavelmente num
período de tempo razoável será, a pedido de um dos Estados, submetido a arbitragem. Se,
num prazo de seis meses a contar da data do pedido de arbitragem, as Partes não
alcançarem um acordo quanto à organização da arbitragem, qualquer das Partes em causa
poderá submeter o diferendo ao Tribunal Internacional de Justiça, mediante pedido por
escrito, em conformidade com o Estatuto do Tribunal.
2 - Qualquer Estado poderá, no momento da assinatura, ratificação, aceitação ou
aprovação da presente Convenção, ou da respetiva adesão, declarar que não se considera
vinculado pelo disposto no n.º 1. Os restantes Estados Contratantes não ficarão vinculados
pelo disposto no n.º 1 relativamente a qualquer Estado Contratante que tenha formulado
tal reserva.
3 - Qualquer Estado que tenha formulado uma reserva em conformidade com o n.º 2
poderá, a todo o momento, retirar tal reserva mediante notificação dirigida ao Secretário-
Geral da Organização das Nações Unidas

B) Reservas e Declarações à Convenção Internacional para a Eliminação do


Financiamento do Terrorismo formuladas pela República Árabe do Egito, 1 de
março de 2005

https://treaties.un.org/pages/ViewDetails.aspx?src=IND&mtdsg_no=XVIII-11&chapter=18&clang=_en#EndDec

Reservas e Declaração:

202
203 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

1. Nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 2.º da Convenção, o Governo da República


Árabe do Egito entende que, na aplicação da Convenção, as convenções em relação às
quais não é parte são consideradas como não incluídas no anexo.
2. Nos termos do n.º 2 do artigo 24.º da Convenção, o Governo da República Árabe do
Egito não se considera vinculado pelo disposto no n.º 1 do referido artigo.
Declaração interpretativa:
Sem prejuízo dos princípios e normas de direito internacional geral e das resoluções
relevantes das Nações Unidas, a República Árabe do Egito não considera os atos de
resistência nacional em todas as suas formas, incluindo a resistência armada contra a
ocupação estrangeira e a agressão com a finalidade de libertação e autodeterminação,
como atos terroristas no sentido da alínea b) do n.º 1 do artigo 2.º da Convenção.

C) Ministério dos Negócios Estrangeiros, Diário da República n.º 94/2008, Série I de


2008-05-15

https://dre.pt/application/conteudo/249210

Aviso n.º 64/2008


Por ordem superior se torna público ter a República Portuguesa efetuado, junto do
Secretário-Geral das Nações Unidas, em 31 de agosto de 2005, uma objeção à declaração
formulada pela República Árabe do Egito no momento da adesão à Convenção
Internacional para a Eliminação do Financiamento do Terrorismo, adotada em Nova
Iorque em 9 de dezembro de 1999.
Notificação (Tradução)
O Governo de Portugal considera que a declaração formulada pelo Governo da República
Árabe do Egito é, na realidade, uma reserva que procura limitar o âmbito de aplicação da
Convenção numa base unilateral sendo, por conseguinte, contrária ao seu objeto e ao seu
fim, que é a eliminação do financiamento de atos terroristas, independentemente do local
onde são praticados ou de quem os pratica.
A declaração é, além disso, contrária aos termos do artigo 6.º da Convenção, segundo o
qual os Estados Contratantes comprometem-se a «adotar as medidas necessárias,
incluindo, se apropriado, legislação interna, com vista a garantir que os atos criminosos
previstos na presente Convenção não possam, em nenhuma circunstância, ser justificados
por considerações de ordem política, filosófica, ideológica, racial, étnica, religiosa ou de
natureza similar».
O Governo de Portugal relembra que, em conformidade com a alínea c) do artigo 19.º da
Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, não são admitidas reservas
incompatíveis com o objeto e o fim da Convenção.
O Governo de Portugal apresenta, portanto, a sua objeção à reserva acima mencionada,
formulada pela República Árabe do Egipto à Convenção Internacional para a Eliminação
do Financiamento do Terrorismo. Contudo, a presente objeção não prejudica a entrada
em vigor da Convenção entre Portugal e a República Árabe do Egito.
Portugal é Parte nesta Convenção, aprovada, para ratificação, pela Resolução da
Assembleia da República n.º 51/2002, publicada no Diário da República, 1.ª série-A, n.º
177, de 2 de Agosto de 2002, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º
31/2002, publicado no Diário da República, 1.ª série-A, n.º 177, de 2 de Agosto de 2002,

203
204 Direito Internacional Público
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2022/2023
1º semestre

tendo depositado o seu instrumento de ratificação em 18 de Outubro de 2002, conforme


aviso publicado no Diário da República, 1.ª série-A, n.º 193, de 7 de Outubro de 2005.
Direcção-Geral de Política Externa, 25 de janeiro de 2008. - O Subdirector-Geral para os
Assuntos Multilaterais, António Manuel Ricoca Freire.

Questões:
a) Identifique as normas em que a Convenção Internacional para a Eliminação do
Financiamento do Terrorismo prevê a possibilidade de serem formuladas reservas.
b) Partindo do artigo 19.º da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969,
e analisando as disposições transcritas da Convenção Internacional para a Eliminação do
Financiamento do Terrorismo, que reservas podem ser formuladas a esta Convenção? Só
a expressamente prevista no seu artigo 24.º? Ou outras não expressamente previstas? E
com que limites?
c) Portugal formula uma objeção a uma declaração interpretativa ou a uma reserva do
Governo da República Árabe do Egito?
d) Na objeção formulada por Portugal é expressamente referido que “a presente objeção
não prejudica a entrada em vigor da Convenção entre Portugal e a República Árabe do
Egito”. Se Portugal não o declarasse expressamente a Convenção não se aplicaria nas
relações entre as duas partes?

ESTUDO DE CASO: RESERVAS AO PROTOCOLO FACULTATIVO REFERENTE AO PACTO


INTERNACIONAL SOBRE OS DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS

A) Reserva introduzida por Trindade e Tobago no momento da nova adesão ao


Protocolo Facultativo Referente ao Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e
Políticos (a 26 de maio de 1998):

«[...] Trindade e Tobago volta a aderir ao Protocolo Facultativo Referente ao Pacto


Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos formulando uma Reserva ao art. 1.º com
o efeito de excluir a competência do Comité dos Direitos Humanos para receber e
examinar comunicações referentes a qualquer prisioneiro a quem tenha sido aplicada a
pena de morte em relação à sua acusação, detenção, julgamento, condenação, sentença ou
execução da pena de morte e a qualquer outro assunto em conexão com aqueles.
Aceitando o princípio de que os Estados não podem utilizar o Protocolo Facultativo como
veículo para a introdução de reservas ao Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e
Políticos, o Governo da Trindade e Tobago sublinha que a sua Reserva ao Protocolo
Facultativo de modo algum a exime das suas obrigações e compromissos nos termos do
Pacto, incluindo o compromisso de respeitar e garantir a todos os indivíduos que se
encontrem no território da Trindade e Tobago e sujeitos à sua jurisdição os direitos
reconhecidos no Pacto (na medida em que não tenham sido objeto de reserva) como
previsto no seu art. 2.º, bem como o seu compromisso de apresentar relatórios ao Comité
nos termos do mecanismo de monitorização estabelecido no art. 40.º.»

B) Declaração de objeção da Noruega (6 de agosto de 1999):

204
205 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

«O Governo da Noruega considera que o objeto e fim do Protocolo Facultativo é o de


contribuir para a garantia do cumprimento das disposições do Pacto Internacional sobre
os Direitos Civis e Políticos pelo reforço da posição do indivíduo em relação ao Pacto.
Por efeito da universalidade de todos os Direitos Humanos, o direito de petição, que está
consagrado no art. 1.º do Protocolo Facultativo, deve ser concedido a todos os indivíduos
que se encontram submetidos à jurisdição do Estado Parte. Acresce que, a negação dos
benefícios, decorrentes do Protocolo Facultativo em relação ao Pacto, a um grupo de
indivíduos vulnerável irá contribuir para enfraquecer ainda mais a posição desse grupo, o
que o Governo da Noruega considera ser contrário ao objeto e fim do Protocolo
Facultativo.
Além disso, o Governo da Noruega está preocupado com o procedimento adotado por
Trindade e Tobago. O Governo da Noruega considera que a denúncia do Protocolo
Facultativo seguida de nova adesão com a formulação de uma reserva, constitui uma
forma de contornar as regras do direito dos tratados estabelecidas que proíbem a
introdução de reservas após a ratificação.
Por estas razões o Governo da Noruega objeta à reserva introduzida por Trindade e
Tobago.
Esta objeção não precludirá a entrada em vigor do Protocolo Facultativo entre o Reino da
Noruega e Trindade e Tobago.»

C) Rawle Kennedy v. Trindade e Tobago, Comité dos Direitos Humanos,


Comunicação N.º 845/1999. Decisão sobre a admissibilidade (2 de novembro de
1999):
(…)
6.4. Como referido na Comentário Geral n.º 24 do Comité, compete ao Comité, enquanto
órgão convencional do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e dos seus
Protocolos Facultativos, interpretar e determinar a validade das reservas feitas a estes
tratados. O Comité rejeita a alegação do Estado parte de que excedeu a sua jurisdição ao
registar a comunicação e em avançar com o pedido de medidas provisórias nos termos da
regra 88 do regulamento processual. A este respeito, o Comité observa que é axiomático
que o Comité forçosamente tenha jurisdição para registar a comunicação de forma a poder
determinar se é ou não admissível em virtude da reserva. Quanto ao efeito da reserva, se
for válida, parece à primeira vista, e o autor não alegou o contrário, que a reserva deixará
o Comité sem jurisdição para apreciar a presente comunicação quanto ao seu mérito. O
Comité tem, contudo, de determinar se tal reserva pode ou não ser validamente formulada.
6.5. Para começar, deverá ser referido que o próprio Protocolo Facultativo não regula a
permissibilidade de reservas às suas disposições. De acordo com o Artigo 19 da
Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados e com os princípios de direito
internacional consuetudinário, as reservas podem, nesse caso, ser formuladas desde que
sejam compatíveis com o objeto e o fim do tratado em causa. A questão a ser apreciada
é, então, saber se a reserva do Estado parte pode ou não ser considerada compatível com
o objeto e o fim do Protocolo Facultativo.
6.6. No seu Comentário Geral n.º 24, o Comité exprimiu a opinião de que uma reserva
visando excluir a competência do Comité segundo o Protocolo Facultativo em relação a
certas disposições do Pacto não poderia ser considerada como tendo passado esse teste:
“A função do primeiro Protocolo Facultativo é a de permitir reclamações em relação aos
direitos [do Pacto] a fim de serem apreciadas pelo Comité. Consequentemente, uma
reserva a uma obrigação de um Estado de respeitar e assegurar um direito previsto no

205
206 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

Pacto, formulada ao primeiro Protocolo Facultativo no caso em que não tenha sido
previamente formulada relativamente aos mesmos direitos previstos na Convenção, não
afeta o dever do Estado de cumprir a sua obrigação substantiva. Uma reserva não pode
ser introduzida ao Pacto através da instrumentalização do Protocolo Facultativo, uma vez
que uma tal reserva teria a finalidade de garantir que o cumprimento dessa obrigação pelo
Estado não pudesse vir a ser avaliado pelo Comité nos termos do primeiro Protocolo
Facultativo. E porque o objeto e o fim do primeiro Protocolo Facultativo é o de permitir
que os direitos que são obrigatórios para um Estado segundo o Pacto sejam avaliados pelo
Comité, uma reserva que procure impedir isto seria contrária ao objeto e fim do primeiro
Protocolo Facultativo, se não mesmo do Pacto” (itálico acrescentado).
6.7. A presente reserva, que foi formulada depois da publicação do Comentário Geral n.º
24, não tem por finalidade excluir a competência do Comité nos termos do Protocolo
Facultativo relativamente a qualquer disposição específica do Pacto, mas antes de todo o
Pacto para um grupo particular de reclamações, designadamente de prisioneiros
condenados à pena de morte. Isto não a torna, contudo, compatível com o objeto e fim do
Protocolo Facultativo. Pelo contrário, o Comité não pode aceitar uma reserva que outorga
a um certo grupo de indivíduos uma menor proteção processual comparada com a que
beneficia o resto da população. Na opinião do Comité, tal constitui uma discriminação
que vai contra alguns princípios básicos previstos no Pacto e nos seus Protocolos, e por
esta razão a reserva não pode ser considerada compatível com o objeto e fim do Protocolo
Facultativo. A consequência é a de que o Comité não está impedido de examinar a
presente comunicação nos termos do Protocolo Facultativo.
6.8. O Comité, observando que o Estado parte não impugnou a admissibilidade de
nenhuma das reclamações do autor com qualquer outro fundamento a não ser a sua
reserva, considera que as reclamações do autor estão suficientemente fundadas para serem
apreciadas quanto ao seu mérito.

Questões:

a) Explique em que consiste a reserva formulada pelo Governo de Trindade e Tobago?


b) A objeção formulada pela Noruega assenta em duas razões principais: identifique-as e
assinale as disposições da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969 que
podem estar causa com a reserva de Trindade e Tobago.
c) A apreciação da conformidade da reserva, introduzida por Trindade e Tobago, com o
regime jurídico do direito dos tratados aplicável, é feita pelo Comité dos Direitos
Humanos. Onde encontra a base legal desta competência na Convenção de Viena?
d) A decisão sobre a admissibilidade da comunicação do Sr. Rawle Kennedy por parte do
Comité dos Direitos Humanos desconsidera a reserva formulada por Trindade e Tobago,
não deixando, no entanto, de entender que este Estado continua vinculado ao Protocolo
Facultativo. A Convenção de Viena de 1969 prevê esta opção no regime jurídico das
reservas? Ou terá a prática internacional inovado e introduzido uma especificidade (ou
exceção) quando estão em causa reservas a direitos previstos em instrumentos jurídicos
internacionais de proteção de direitos humanos?

ESTUDO DE CASO: RESERVAS À CONVENÇÃO DO GENOCÍDIO (TIJ, 1951)

206
207 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

A) Comentário da Comissão de Direito Internacional ao artigo 50 (atual artigo 53)


do Projeto de Convenção sobre o Direito dos Tratados, 1966 Excerto

“(…) O surgimento de normas com carácter ius cogens é relativamente recente, embora
o direito se encontre em rápida evolução. A Comissão considerou conveniente estabelecer
em termos gerais que um tratado é nulo se é incompatível com uma norma de ius cogens
e deixar que o conteúdo dessa norma se forme na prática dos Estados e na jurisprudência
dos tribunais internacionais.”

B) TIJ, Reservas à Convenção para a prevenção e a repressão do crime de genocídio,


parecer consultivo, Col., 1951, 23

“O objeto de uma tal convenção também tem de ser considerado. A Convenção [para a
prevenção e repressão do crime de genocídio] foi manifestamente adotada com um
propósito puramente humanitário (…). Com efeito é difícil imaginar uma convenção que
possa ter este (…) carácter com tal intensidade, uma vez que o seu objeto é por um lado,
salvaguardar a própria existência de determinados grupos humanos e, por outro,
confirmar e defender os mais elementares princípios de moralidade. Em tal convenção os
Estados não têm quaisquer interesses próprios; apenas têm, cada um e todos, um interesse
comum, nomeadamente, alcançar aqueles elevados propósitos que são a raison d’être da
Convenção. (…) O objeto e finalidade da Convenção sobre o Genocídio implica que era
intenção da Assembleia Geral e dos Estados que a adotaram que nela participassem tantos
Estados quanto possível. A exclusão plena da Convenção de um ou mais Estados não
restringiria o seu âmbito de aplicação, mas diminuiria a autoridade moral e princípios
humanitários que são a sua base. É inconcebível que as partes contratantes contemplassem
prontamente que uma objeção a uma reserva menor devesse produzir esse resultado. Mas
muito menos poderiam as partes contratantes ter querido sacrificar o próprio objeto da
Convenção ao desejo vão de assegurar tantos participantes quanto possível. O objeto e
finalidade da Convenção limitam, desse modo, quer a liberdade de fazer reservas quer a
liberdade de objetar às mesmas. Consequentemente, é a compatibilidade de uma reserva
com o objeto e finalidade da Convenção que deve fornecer os critérios para a atitude de
um Estado que faz uma reserva no momento da acessão, bem como da avaliação por um
Estado ao objetar uma reserva. Esta é a regra de conduta que deve guiar todos os Estados
na avaliação que deve fazer, individualmente e do seu próprio ponto de vista, quanto à
admissibilidade de qualquer reserva.”

C) Ratificação dos Estados Unidos da Convenção para a prevenção e repressão do


crime de Genocídio, 25 de novembro de 1988

“Reservas:
1. Relativamente ao artigo IX da Convenção, antes de que em virtude do mesmo se possa
submeter uma controvérsia na qual os Estados Unidos sejam parte ao Tribunal
Internacional de Justiça será necessário em cada caso o consentimento expresso dos
Estados Unidos.

207
208 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

2. Nada na presente Convenção implicará para os Estados Unidos a exigência ou


autorização para promulgar leis ou medidas que sejam proibidas pela sua Constituição,
de acordo com a interpretação dos Estados Unidos.

Interpretações:
1. A expressão ‘com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional,
étnico, racial ou religioso enquanto tal’, nos termos do artigo 2, será entendida como a
intenção de destruir no todo ou em parte substancial, um grupo nacional, étnico, racial ou
religioso como tal através dos atos especificados no artigo 2.
2. O termo ‘danos mentais’, mencionado no artigo 2 b), entender-se-á como a deterioração
permanente das faculdades mentais produzida pelo emprego de drogas, tortura ou técnicas
semelhantes”.
D) Objeção da Suécia a reserva aposta pelos Estados Unidos à Convenção para a
prevenção e repressão do crime de Genocídio

“O Governo da Suécia examinou a reserva declarada pelos Estados Unidos da América


em que os Estados Unidos da América expressam que ‘nada na presente Convenção
implicará para os Estados Unidos a exigência ou autorização para promulgar leis ou
medidas que sejam proibidas pela sua Constituição, de acordo com a interpretação dos
Estados Unidos’. O Governo da Suécia considera que um Estado Parte na presente
Convenção não pode alegar as disposições de direito interno, incluindo a própria
Constituição, para justificar o incumprimento das suas obrigações em virtude da dita
Convenção, pelo que objeta a reserva. A presente objeção não obsta à entrada em vigor
da referida Convenção entre a Suécia e os Estados Unidos da América”.

E) Objeção do Reino dos Países Baixos às reservas aposta pelos Estados Unidos à
Convenção para a prevenção e repressão do crime de Genocídio

“Relativamente à primeira reserva, o Governo do Reino dos Países Baixos recorda a sua
declaração de 20 de junho de 1966 aquando da adesão do Reino dos Países Baixos à
Convenção em que se declara que, em sua opinião, as reservas referentes ao artigo IX da
Convenção, feitas nesse momento por uma série de Estados, eram incompatíveis com o
objeto e fim da Convenção, e que o Governo do Reino dos Países Baixos não considerava
Parte no Tratado os países que faziam tais reservas. Consequentemente, o Governo dos
Países Baixos não considera os Estados Unidos da América parte na Convenção. (…)
Uma vez que a Convenção poderia entrar em vigor entre o Reino dos Países Baixos e os
Estados Unidos da América como resultado da retirada, por parte deste último, da sua
reserva relativamente ao artigo IX, o Governo do Reino dos Países Baixos considera
conveniente expressar a sua posição relativamente à segunda reserva dos Estados Unidos
da América: ‘O Governo dos Países Baixos apresenta a sua objeção à dita reserva uma
vez que não resulta claro até que ponto o Governo dos Estados Unidos está disposto a
assumir as suas obrigações relativas à Convenção. Além disso, qualquer incumprimento
por parte dos Estados Unidos das obrigações presentes na dita Convenção, alegando que
tal medida estaria proibida na sua Constituição, seria contrária à norma comummente
aceite pelo direito internacional, como estabelecida no artigo 27 da Convenção de Viena
sobre o direito dos tratados.’”

208
209 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

Questões:

a) Partindo dos excertos apresentado, defina o que são normas ius cogens e a sua
influência no regime jurídico dos tratados.
b) Qual a diferença entre reservas e declarações interpretativas?
c) Qual a importância do objeto e finalidade do tratado no regime das reservas?
d) Analise criticamente, a substância das reservas e declarações dos Estados Unidos (bem
como as reacções da Suécia e dos Países Baixos) à luz das normas da Convenção de Viena
sobre o Direito dos Tratados e da Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de
Genocídio.

ATOS JURÍDICOS UNILATERAIS

1) CDI, Princípios orientadores aplicáveis às declarações unilaterais dos Estados


com capacidade para criar obrigações jurídicas, 2006 (tradução não oficial)

A Comissão do Direito internacional,


Assinalando que os Estados podem ficar vinculados pelos comportamentos unilaterais
que adotam no plano internacional,
Assinalando que os comportamentos com capacidade para vincularem juridicamente
os Estados podem consistir em declarações formais ou traduzir-se num simples
comportamento informal, incluindo o silêncio que podem manter em certas situações,
sobre as quais os outros Estados podem, razoavelmente, basear-se,
Assinalando, igualmente, que a questão de saber se um comportamento unilateral do
Estado o vincula numa determinada situação depende das circunstâncias do caso,
Assinalando, também, que, na prática, é muitas vezes difícil determinar se os efeitos
jurídicos que decorrem do comportamento unilateral de um Estado são consequência da
intenção que exprimiu ou dependem das expectativas que o seu comportamento suscitou
junto de outros sujeitos de direito internacional,
Adota os princípios orientadores seguintes, que só incidem sobre os atos unilaterais
stricto sensu, ou seja, aqueles que revistam a forma de declarações formais formuladas
por um Estado com a intenção de produzir obrigações segundo o direito internacional.

1. As declarações formuladas publicamente e que manifestam a vontade de se


comprometer podem ter por efeito a criação de obrigações jurídicas. Quando as
condições para tal estiverem preenchidas, o caráter obrigatório dessas declarações
assenta na boa fé; os Estados interessado podem, por conseguinte, tomá-las em
consideração e basear-se nelas; esses Estados têm o direito de exigir que essas
obrigações sejam respeitadas;
2. Qualquer Estado tem capacidade para assumir obrigações jurídicas através de
declarações unilaterais;
3. Para determinar os efeitos jurídicos dessas declarações, deve tomar-se em
consideração o seu conteúdo, todas as circunstâncias de facto em que tiveram lugar
e as reações que suscitaram;
4. Uma declaração unilateral só vincula internacionalmente o Estado se emanar de
uma autoridade com competência para tal. Em virtude das suas funções, os Chefes
de Estado, Chefes de Governo e Ministros dos Negócios Estrangeiros estão

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210 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

habilitados a formular essas declarações. Outras pessoas que representem o Estado


em áreas específicas podem ser autorizadas a obrigar este, pelas suas declarações
nas matérias que sejam de sua competência;
5. As declarações unilaterais podem ser escritas ou verbais;
6. As declarações unilaterais podem ser dirigidas à comunidade internacional no seu
conjunto, a um ou a vários Estados ou a outras entidades;
7. Uma declaração unilateral só constitui obrigações para o Estado que a formulou se
tiver um objeto claro e preciso. Em caso de dúvida sobre o alcance dos
compromissos que resultem dessa declaração, aqueles devem ser interpretados de
forma restritiva. Para interpretar o conteúdo dos compromissos em causa, deverá
tomar-se prioritariamente em consideração o texto da declaração assim como o
contexto e as circunstâncias em que aquela foi formulada;
8. Uma declaração unilateral que esteja em conflito com uma norma imperativa de
direito internacional geral é nula.
9. Da declaração unilateral de um Estado não pode resultar qualquer obrigação para
os outros Estados. No entanto, o ou os outros Estados interessados podem incorrer
em obrigações relativas a uma tal declaração unilateral na medida em que tenham
aceite, claramente, essa declaração;
10. Uma declaração unilateral que criou obrigações jurídicas para o Estado autor não
pode ser revogada de forma arbitrária. Para avaliar se essa revogação é arbitrária,
deverão tomar-se em consideração:
a) Quaisquer termos específicos da declaração relacionados com a revogação;
b) A medida em que as pessoas às quais as obrigações são devidas se basearam
nessas obrigações;
c) A medida em que possa ter ocorrido uma alteração fundamental das
circunstâncias.

2) TPJI, Estatuto jurídico da Gronelândia Oriental, Dinamarca c. Noruega,


Acórdão, 5 de abril de 1933, Série A/B, pp. 36-37 e 69 ss. [a declaração Ihlen]

(p. 36) A 12 de julho de 1919, o Ministro dos Negócios Estrangeiros dinamarquês


enviou instruções ao Ministro da Dinamarca em Christiania em que assinalava que tinha
sido instituída na Conferência de Paz uma Comissão para analisar as “reivindicações que
os diferentes países poderiam apresentar relativamente ao Spitzberg”; o Governo
dinamarquês estaria disposto a reiterar perante a Comissão uma informação oficiosa que
já tinha sido transmitida (a 2 de abril de 1919) ao Governo norueguês, de acordo com a
qual a Dinamarca, que não tinha interesses particulares na questão do Spitzberg, não
colocaria objeção às reivindicações da Noruega sobre este arquipélago. Ao expor o que
antecede ao Ministro dos Negócios Estrangeiro norueguês, o Ministro da Dinamarca
deveria insistir “que o Governo dinamarquês se tem empenhado desde há alguns anos a
conseguir o reconhecimento, por parte do conjunto das Potências interessadas, da
soberania da Dinamarca sobre toda a Gronelândia, que tencionava suscitar a questão
perante a referida Comissão” e que, por outro lado, o Governo dinamarquês contava que
a extensão, por este Governo, dos seus interesses políticos e económicos ao conjunto da
Gronelândia “não depararia com dificuldades por parte do Governo norueguês”.
A 14 de julho de 1919, o Ministro da Dinamarca encontrou-se com o Sr. Ihlen,
Ministro dos Negócios Estrangeiros da Noruega, que, nessa altura, se limitou a responder

210
211 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

“que a questão seria analisada”. O Ministro norueguês elaborou uma minuta do seu
encontro com o representante dinamarquês cuja exatidão não é contestada pelo Governo
dinamarquês. A 22 de julho, o Sr. Ihlen comunicou ao Ministro da Dinamarca “que o
Governo norueguês não colocaria entraves à resolução deste caso” (ou seja, à questão
suscitada a 14 de julho pelo Governo dinamarquês). Estas são as expressões que constam
da minuta da autoria do Sr. Ihlen. De acordo com relatório feito ao seu Governo pelo
Ministro dinamarquês, as palavras utlizadas pelo Sr. Ihlen foram “os projetos do Governo
real [dinamarquês] relativos à soberania da Dinamarca sobre o conjunto da
Gronelândia…não suscitariam dificuldades da parte da Noruega”. (p. 37) Esta declaração
do Ministro dos Negócios Estrangeiros da Noruega é designada, no presente acórdão,
como “declaração Ihlen”.
Em 1920, o Governo dinamarquês abordou os Governos de Londres, Paris, Roma e
Tóquio, para obter garantias a respeito do reconhecimento da soberania dinamarquesa
sobre o conjunto da Gronelândia. Cada um destes Governos respondeu em termos
satisfatórios para o Governo dinamarquês; este abordou então, em 1921, os Governos
sueco e norueguês, por serem os únicos outros Governos interessados. A comunicação ao
Governo sueco foi a 13 de janeiro. A comunicação dirigida ao Governo norueguês foi a
18 de janeiro.
O Governo sueco não suscitou quaisquer dificuldades. O Governo norueguês não se
mostrou disposto a adotar a mesma atitude, a menos que obtivesse do Governo
dinamarquês o compromisso de que não seria afetada a liberdade de caça e pesca na costa
oriental (para lá dos limites da colónia de Angmagssalik), liberdade que até aí tinham tido
os noruegueses.
(…)
(p. 69) 3) para além dos compromissos recordados supra, cabe, também, analisar a
declaração Ihlen – quer dizer, a resposta dada a 22 de julho de 1919 pelo Sr. Ihlen,
Ministro dos Negócios Estrangeiros da Noruega, ao Ministro da Dinamarca. Os
advogados do Governo dinamarquês basearam-se nesta declaração do Sr. Ihlen para
alegar que se tratava do reconhecimento da soberania dinamarquesa sobre a Gronelândia.
O Tribunal não pode acolher esta interpretação. Uma análise cuidadosa dos termos
utilizados, das circunstâncias em que foram empregues, assim como dos acontecimentos
ulteriores, mostra que o Sr. Ihlen não pode ter tido a intenção de dar, nesse momento, um
reconhecimento definitivo à soberania dinamarquesa sobre a Gronelândia e, por outro
lado, o Governo dinamarquês não pode, na altura, ter atribuído esse significado à
declaração. (…) Ainda assim, importa agora analisar a questão de saber se a declaração
Ihlen, mesmo não sendo um reconhecimento formal da soberania dinamarquesa, constitui
um compromisso que obriga a Noruega a abster-se de ocupar uma qualquer parcela da
Gronelândia. (…)
(p. 70) Dos documentos dinamarqueses que antecederam a iniciativa do Ministro
dinamarquês em Christiania, a 14 de julho de 1919, resulta com clareza que, do lado
dinamarquês, a atitude dinamarquesa na questão do Spitzberg e a atitude norueguesa no
caso da Gronelândia foram consideradas interdependentes, interdependência que parece
também refletir-se na minuta feita pelo Sr. Ihlen. Mas, mesmo que não se quisesse
considerar demonstrada esta interdependência, que, pela resposta afirmativa do Governo
norueguês, em nome do qual falava o Ministro dos Negócios Estrangeiros, teria dado
lugar a uma obrigação bilateral, é difícil negar que aquilo que a Dinamarca pedia à
Noruega (“não colocar (p. 71) dificuldades à resolução do caso da Gronelândia”) é a
mesma coisa que deixava entrever no caso do Spitzberg (não se “opor ao desejo da

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212 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

Noruega relativamente à resolução deste caso”). Com efeito, o que a Dinamarca desejava
obter da Noruega é que esta não fizesse nada que pudesse constituir um obstáculo aos
projetos dinamarqueses relativamente ao conjunto da Gronelândia. A declaração de 22 de
julho de 1919, feita pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros em nome do Governo
norueguês, foi claramente afirmativa (…).
O Tribunal considera incontestável que uma tal resposta a uma iniciativa do
representante diplomático de uma Potência estrangeira, feita pelo Ministro dos Negócios
Estrangeiros em nome do Governo, numa questão que é de sua competência, vincula o
País de que é Ministro.

3) TIJ, Caso Obrigação de negociar um acesso ao Oceano Pacífico, Bolívia c. Chile,


Acórdão, fundo, 1 de outubro de 2018, Col., 2018, pp. 552-559, pars. 140-159

140. A Bolívia considera que a obrigação de o Chile negociar o acesso soberano da


Bolívia ao Oceano Pacífico se baseia, também, num certo número de declarações do Chile
e outros atos unilaterais. No entender da Bolívia, “[e]stá bem assente em direito
internacional que declarações escritas e verbais feitas por representantes dos Estados que
mostrem uma intenção clara de aceitar obrigações relativamente a outro Estado podem
gerar efeitos jurídicos, sem exigirem compromissos recíprocos desse outro Estado”. A
Bolívia defende que o Tribunal, em múltiplas ocasiões, tomou em consideração atos
unilaterais e reconheceu o seu caráter autónomo. De acordo com a Bolívia, “não é exigida
uma aceitação subsequente, ou resposta, por parte do outro Estado, para que esses atos
criem obrigações jurídicas.

141. Tendo em vista determinar os requisitos que têm de estar preenchidos para que
uma declaração unilateral seja vinculativa para um Estado, a Bolívia faz referência à
jurisprudência do Tribunal e aos Princípios Orientadores aplicáveis às declarações
unilaterais dos Estados capazes de criarem obrigações jurídicas, adotados pela Comissão
do Direito Internacional. Segundo este texto, uma declaração unilateral tem de ser feita
por uma autoridade investida do poder de vincular o Estado, com a intenção de o vincular,
relativamente a um assunto específico e formulada publicamente. Relativamente a estes
critérios, a Bolívia assinala que, no caso presente, foram feitas um número significativo
de declarações por Presidentes do Chile, Ministros dos Negócios Estrangeiros e outros
altos dignatários. A Bolívia alega, além disso, que o objeto das declarações era “claro e
preciso”: nomeadamente, para negociar com a Bolívia o seu acesso soberano ao Oceano
Pacífico. No entender da Bolívia, através das suas declarações unilaterais, o Chile não
prometeu apenas negociar, mas comprometeu-se a alcançar um objetivo preciso. As
declarações do Chile foram também dadas a conhecer à Bolívia, e aceites por esta. A
Bolívia argumenta que “[a] jurisprudência do Tribunal não admite a possibilidade de
representantes do Estado, que fizeram declarações juridicamente vinculantes em nome do
seu Governo, revogarem as suas declarações e pretenderem que eram, apenas, declarações
políticas”.

142. A Bolívia identifica uma série de declarações e outros atos unilaterais do Chile
que, tomados individualmente ou no seu conjunto, constituem, no entender da Bolívia,
uma obrigação jurídica de o Chile negociar o acesso soberano da Bolívia ao Oceano
Pacífico. (…)

212
213 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

143. (…) A Bolívia também atribui relevância à declaração seguinte, feita a 11 de


setembro de 1974 pelo Presidente Pinochet do Chile (…): “Desde o encontro de Charaña
com o Presidente da Bolívia, temos repetido o nosso propósito imutável de estudar, com
este País irmão, no quadro de uma negociação franca e amigável, os obstáculos que
limitam o desenvolvimento da Bolívia por causa da sua condição de Estado encravado”.
(…) Para além disso, a Bolívia destaca que, numa declaração de 31 de outubro de 1979
perante a Assembleia Geral da Organização de Estados Americanos (…), o Chile declarou
que “[tinha] sempre mostrado disponibilidade para negociar com a Bolívia”. O
representante chileno acrescentou: “Por diversas ocasiões, dei conta da disponibilidade
do Chile para negociar uma solução com a Bolívia sobre a sua aspiração de ter um acesso
livre e soberano ao Oceano Pacífico. A forma de alcançar este objetivo é a negociação
direta”. (…)

144. O Chile concorda com a Bolívia que as declarações unilaterais podem criar
obrigações jurídicas se evidenciarem uma intenção clara por parte do autor para que assim
seja. O Chile afirma que “[a] intenção do Estado que faz uma declaração unilateral tem
que ser avaliada à luz dos termos utilizados, analisados de forma objetiva”. No entanto,
segundo o Chile, o ónus para o Estado que procura provar a existência de uma obrigação
baseada numa declaração unilateral é exigente; a declaração deverá ser “clara e
específica”, e as circunstâncias em que ocorre o ato, assim como reações subsequentes
com ele relacionadas, deverão ser tomadas em consideração. O Chile considera que a
Bolívia não conseguiu identificar de que forma é que o conteúdo de qualquer dos atos
unilaterais em que se baseia, assim como as circunstâncias em que ocorreram, podem
entender-se como tendo criado uma obrigação jurídica.
(…)

**

146. O Tribunal recorda que enunciou nos termos seguintes o critério a aplicar tendo
em vista decidir se uma declaração por um Estado resulta em obrigações jurídicas: “É
amplamente aceite que as declarações feitas através de atos unilaterais, relativamente a
situações jurídicas ou factuais, podem ter por efeito a criação de obrigações jurídicas.
Declarações deste tipo podem ter, e muitas vezes têm, um conteúdo muito específico.
Quando é intenção do Estado que faz a declaração que esta se torne vinculativa de acordo
com os seus termos, essa intenção confere à declaração o caráter de um compromisso
jurídico, ficando o Estado daí em diante juridicamente obrigado a adotar um
comportamento compatível com a declaração. Um compromisso deste tipo, se assumido
publicamente, e com a intenção de ser vinculativo, mesmo que não no contexto de
negociações internacionais, é obrigatório.” (Ensaios Nucleares, Austrália c. França,
Acórdão, TIJ, Col., 1974, p. 267, par. 43 (…)). O Tribunal também afirmou que, tendo
em vista determinar o efeito jurídico de uma declaração de uma pessoa que representa o
Estado, de “analisar-se o seu real conteúdo assim como as circunstâncias em que foi feita”
(Atividades armadas no território do Congo, novo pedido, 2002, República Democrática
do Congo c. Ruanda, competência e admissibilidade, Acórdão, TIJ, Col. 2006, p. 28, par.
49).

147. O Tribunal nota que as declarações do Chile e outros atos unilaterais em que a
Bolívia se baseia estão expressos, não em termos do assumir uma obrigação jurídica, mas

213
214 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

de disponibilidade para iniciar negociações sobre a questão do acesso soberano da Bolívia


ao Oceano Pacífico. Por exemplo, o Chile declarou que estava disposto “a tentar que a
Bolívia adquirisse a sua própria saída para o mar”, e a “atender a qualquer proposta
boliviana destinada a resolver a sua condição de Estado encravado” (…) A redação destes
textos não aponta para que o Chile tenha assumido uma obrigação jurídica de negociar o
acesso soberano da Bolívia ao Oceano Pacífico.

148. Relativamente às circunstâncias das declarações e afirmações do Chile, o


Tribunal mais observa que não se provou uma intenção, por parte do Chile, de assumir
uma obrigação de negociar. Por conseguinte, o Tribunal conclui que uma obrigação de
negociar o acesso soberano da Bolívia ao oceano não resulta de nenhum dos atos
unilaterais a que fez referência a Bolívia.

3. Aquiescência

149. A Bolívia sustenta que a obrigação de o Chile negociar o acesso soberano da


Bolívia ao oceano pode também basear-se na aquiescência do Chile. Neste contexto, a
Bolívia faz referência à jurisprudência do Tribunal como autoridade para a proposição de
que a ausência de reação por uma parte pode corresponder a aquiescência quando o
comportamento da outra parte exigia uma resposta (citando Soberania sobre Pedra
Branca/Pulau Batu Puteh, Middle Rocks e South Ledge, Malásia/Singapura, Acórdão,
TIJ, Col., 2008, pp. 50-51, par. 121).
(…)
151. O Chile contende que a Bolívia não demonstrou, no presente caso, como é que
poderia ter sido criada por aquiescência uma obrigação de negociar, nem evidenciou um
qualquer silêncio relevante do Chile, ou explicou como é que o silêncio do Chile pode ser
considerado um consentimento tácito à criação de uma obrigação jurídica. No entender
do Chile, o silêncio de um Estado tem de ser apreciado à luz das circunstâncias e dos
factos que o rodeiam para poder ser considerado como consentimento. (…)

**
152. O Tribunal observa que a “aquiescência é equivalente a um reconhecimento tácito
manifestado por um comportamento unilateral que a outra parte pode interpretar como
consentimento” (Delimitação da fronteira marítima do Golfo do Maine, Canadá/Estados
Unidos da América, Acórdão, TIJ, Col. 1984, p. 305, par. 130) e que “o silêncio pode
também ser eloquente, mas apenas se a conduta do outro Estado exigir uma resposta”
(Soberania sobre Pedra Branca/Pulau Batu Puteh, Middle Rocks e South Ledge,
Malásia/Singapura, Acórdão, TIJ, Col. 2008, p. 51, par. 121). O Tribunal nota que a
Bolívia não identificou qualquer declaração que exigisse uma reação ou resposta por parte
do Chile, tendo em vista evitar a constituição de uma obrigação. Em especial, a declaração
da Bolívia, no momento da assinatura da CNUDM, que fazia referência a “negociações
para restabelecer o acesso soberano da Bolívia ao Oceano Pacífico, não equivale a afirmar
a existência de qualquer obrigação do Chile a este propósito. Assim, não pode considerar-
se que a aquiescência seja uma base jurídica de uma obrigação de negociar o acesso
soberano da Bolívia ao oceano.

214
215 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

4. Estoppel

153. A Bolívia invoca o estoppel como mais uma base jurídica suscetível de fundar a
obrigação de o Chile negociar com a Bolívia. Tendo em vista a definição do estoppel, a
Bolívia apoia-se na jurisprudência do tribunal e em sentenças arbitrais. A Bolívia indica
que, para que o estoppel possa considerar-se estabelecido, deve haver “uma declaração
ou tomada de posição de uma parte em relação a outra”, e que essa outra parte “se baseie
nessa declaração ou tomada de posição em seu detrimento ou em benefício da parte que
a fez ou tomou” (citando Diferendo fronteiriço terrestre, insular e marítimo, El
Salvador/Honduras, requerimento para intervenção, TIJ, Col., 1990, p. 118, par. 63).
Citando a sentença arbitral no caso de Chagos, a Bolívia enumera quarto condições para
que haja estoppel:

“a) Um Estado tomou posição de maneira clara e constante, pelas suas declarações,
comportamento ou silêncio; b) essas tomadas de posição foram feitas por um agente
habilitado a exprimir-se em nome do Estado sobre o assunto em causa; c) o Estado que
invoca o estoppel foi induzido por essas tomadas de posição a agir em seu detrimento, a
sofrer um prejuízo ou a conferir uma vantagem ao Estado de que provieram as tomadas
de posição referidas; e d) o Estado que invoca o estoppel podia legitimamente fazer fé
nessas tomadas de posição, porque tinha fundamento para confiar nelas” (Zona marítima
protegida de Chagos, República da Maurícia c. Reino Unido, sentença de 18 de março de
2015, International Law Reports (ILR), vol. 162, p. 249, par. 438).

154. A Bolívia argumenta que o estoppel não depende do consentimento do Estado;


destina-se a fornecer, para certas obrigações, uma base diferente da intenção de ficar
vinculado” (itálico no texto).
(…)
156. O Chile não contesta as condições do estoppel, tal como enunciadas pela
jurisprudência referida pela Bolívia. No entanto, segundo o Chile, o estoppel desempenha
um papel apenas em situações de incerteza. O Chile argumenta que, quando é claro que
um Estado não expressou qualquer intenção de ficar vinculado, o estoppel não pode
aplicar-se.

157. No presente caso, o Chile mantém que é “manifesto” que o não teve qualquer
intenção de criar uma obrigação jurídica de negociar. Para além disso, sustenta que a
Bolívia não se fundou em qualquer tomada de posição do Chile. (…)

**

158. O Tribunal recorda que os “elementos essenciais exigidos pelo estoppel” são
“uma declaração ou tomada de posição de uma parte em relação a outra, e que essa outra
parte se baseie nessa declaração ou tomada de posição em seu detrimento ou em benefício
da parte que a fez ou tomou” (Diferendo fronteiriço terrestre, insular e marítimo, El
Salvador/Honduras, requerimento para intervenção, TIJ, Col., 1990, p. 118, par. 63). Ao
avaliar se estavam preenchidas as condições estabelecidas na jurisprudência do Tribunal
para existir um estoppel relativamente ao diferendo fronteiriço entre os Camarões e a
Nigéria, o Tribunal declarou: um estoppel só surgiria se pelos seus atos e declarações, os
Camarões tivessem, de forma consistente, tornado totalmente claro que tinham aceite

215
216 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

resolver o diferendo fronteiriço submetido ao Tribunal apenas por meios bilaterais. Teria
além disso sido necessário que, baseando-se em tal atitude, a Nigéria tivesse alterado a
sua posição, em seu detrimento, ou tivesse sofrido algum prejuízo” (Fronteira Terrestre
e marítima entre os Camarões a Nigéria, Camarões c. Nigéria, Objeções preliminares,
Acórdão, TIJ, Col. 1998, p. 303, par. 57).

159. O Tribunal considera que, no presente caso, as condições essenciais exigidas para
o estoppel não estão preenchidas. Ainda que tenha havido tomadas de posição sucessivas
do Chile sobre a sua disponibilidade para negociar o acesso soberano da Bolívia ao
Oceano Pacífico, essas tomadas de posição não resultam numa obrigação de negociar. A
Bolívia não demonstrou que tinha mudado a sua posição, em seu detrimento ou em
benefício do Chile, baseando-se nas tomadas de posição do Chile. Por conseguinte, o
estoppel não constitui base jurídica para a obrigação de o Chile negociar o acesso
soberano da Bolívia ao oceano.

4) TIJ, Caso dos Ensaios Nucleares, Austrália c. França, acórdão, 20 de dezembro


de 1974, Col. 1974, pp. 266 ss., pars. 36 ss.

36. O Tribunal tem, também, de analisar as declarações feitas sobre este assunto pelas
autoridades francesas após as alegações orais, ou seja, a 25 de julho de 1974 pelo
Presidente da República, a 16 de agosto de 1974 pelo Ministro da Defesa, a 25 de
setembro de 1974 pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros, perante a Assembleia Geral
das Nações Unidas e a 11 de outubro de 1974 pelo Ministro da Defesa.

37. A declaração que deve ser analisada em primeiro lugar é a do Presidente da


República, a 25 de julho de 1974, quando de um encontro com a imprensa, nos termos
seguintes:

“sobre esta questão dos ensaios nucleares, sabem que o Primeiro Ministro se
pronunciou publicamente na Assembleia Nacional, na altura da apresentação do
programa de Governo. Tinha indicado que os ensaios nucleares franceses iam prosseguir.
Eu próprio tinha precisado que esta campanha de ensaios atmosféricos seria a última e,
por conseguinte, os membros do Governo estavam plenamente informados das nossas
intenções a esse respeito…”

38. A 16 de agosto de 1974, no decurso de uma entrevista dada à televisão francesa, o


Ministro da Defesa afirmou que o Governo francês tinha planeado tudo para que os
ensaios nucleares de 1974 fossem os últimos a ter lugar na atmosfera.

39. A 25 de setembro de 1974, o Ministro dos Negócios Estrangeiros afirmou, num


discurso perante a Assembleia Geral das Nações Unidas:

“Tendo doravante alcançado um ponto na tecnologia nuclear em que nos é possível


prosseguir os nossos programas através de ensaios subterrâneos, fizemos o necessário
para nos comprometermos com essa opção a partir do próximo ano.”

40. A 11 de outubro de 1974, o Ministro da Defesa deu uma conferência de imprensa


na qual afirmou duas vezes, em termos quase idênticos, que não haveria ensaios na

216
217 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

atmosfera em 1975, e que a França estava preparada para proceder a ensaios subterrâneos.
Quando foi feito o comentário de que não tinha acrescentado “em princípio”, concordou.
Esta indicação é relevante, tendo em conta o excerto da nota da embaixada de França em
Wellington ao Ministério dos Negócios Estrangeiros da Nova Zelândia, de 10 de junho
de 1974 (…), em que se afirma que os ensaios atmosféricos em causa “serão, em
princípio, os últimos deste tipo”. O Ministro mencionou também que outros Governos,
tivessem ou não sido avisados da decisão, podiam ter tomado conhecimento dela através
da imprensa ou pela leitura dos comunicados da Presidência da República.

41. Tendo em conta o que antecede, o Tribunal considera que a França publicitou a
sua intenção de cessar os ensaios nucleares atmosféricos após a conclusão da série de
ensaios de 1974. Em especial, o Tribunal tem de tomar em consideração a declaração do
Presidente de 25 de julho de 1974 (…) seguida da declaração do Ministro da Defesa a 11
de outubro de 1974 (…). Elas mostram que as declarações oficiais feitas em nome da
França a propósito de futuros testes nucleares não estão sujeitas à condição que poderia
considerar-se implícita na expressão “em princípio” [normalement].
(…)

43. É amplamente aceite que as declarações feitas através de atos unilaterais,


relativamente a situações jurídicas ou factuais, podem ter por efeito a criação de
obrigações jurídicas. Declarações deste tipo podem ter, e muitas vezes têm, um conteúdo
muito específico. Quando é intenção do Estado que faz a declaração que esta se torne
vinculativa de acordo com os seus termos, essa intenção confere à declaração o caráter de
um compromisso jurídico, ficando o Estado daí em diante juridicamente obrigado a adotar
um comportamento compatível com a declaração. Um compromisso deste tipo, se
assumido publicamente, e com a intenção de ser vinculativo, mesmo que não no contexto
de negociações internacionais, é obrigatório. Nestas circunstâncias, para que a declaração
tenha efeito, não se exige uma qualquer contrapartida ou aceitação posterior da
declaração, ou sequer uma qualquer resposta ou reação de outros Estados, uma vez que
uma tal exigência seria inconsistente com a natureza estritamente unilateral do ato
jurídico pelo qual se realizou a pronúncia do Estado.

44. Naturalmente, nem todos os atos unilaterais resultam numa obrigação; mas um
Estado pode escolher assumir uma determinada posição relativamente a um assunto
específico com a intenção de se obrigar – a intenção terá de ser aferida por interpretação
do ato. Quando Estados fazem declarações que limitam a sua liberdade de ação futura,
impõe-se uma interpretação restritiva.

45. No que se refere à questão da forma, deve assinalar-se que este não é um domínio
no qual o direito internacional imponha regras estritas ou especiais. Quer uma declaração
seja verbal ou escrita não resulta em nenhuma diferença essencial, uma vez que essas
declarações, feitas em circunstâncias particulares, podem constituir obrigações em direito
internacional, não se exigindo que sejam reduzidas a escrito. Por conseguinte, a questão
da forma não é decisiva. Como o Tribunal disse no seu Acórdão relativo às objeções
preliminares no caso relativo ao Templo de Preah Vihear:

“Quando…como é, em geral, o caso em direito internacional, que coloca a ênfase


principal na intenção das partes, o direito não prescreve nenhuma forma especial, as partes

217
218 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

têm a liberdade de escolher a forma que preferirem, desde que a sua intenção seja clara”
(TIJ, Col., 1961, p. 31)

O Tribunal acrescentou, no mesmo caso: “…a única questão relevante é se os termos


utilizados numa qualquer declaração mostram uma intenção clara…” (ibid., p. 32).

46. Um dos princípios básicos que regulam a criação e execução de obrigações


jurídicas, qualquer que seja a sua fonte, é o princípio da boa fé. A confiança é inerente à
cooperação internacional, em especial, numa época em que, em muitos domínios, essa
cooperação é cada vez mais essencial. Assim como a regra pacta sunt servanda no direito
dos tratados se baseia na boa fé, assim o é, também, o caráter de uma obrigação
internacional assumida através de uma declaração unilateral. Desta forma, os Estados
interessados podem tomar conhecimento de declarações unilaterais e confiar nelas, e têm
o direito de exigir que seja respeitada a obrigação criada dessa forma.

47. De entre as declarações do Governo francês agora perante o Tribunal, as mais


essenciais são, claramente, as do Presidente da República. Não pode duvidar-se, olhando
às suas funções, que as suas comunicações ou declarações, verbais ou escritas, na
qualidade de Chefe de Estado, são, nas relações internacionais, atos do Estado francês.
As suas declarações, e as dos membros do Governo francês atuando nessa qualidade, até
à última declaração feita pelo Ministro da Defesa (de 11 de outubro de 1974), constituem
um conjunto. Deste modo, qualquer que tenha sido a forma de expressão destas
declarações, têm de considerar-se como compromisso do Estado, tomando em
consideração a sua intenção e as circunstâncias em que foram feitas.

50. As declarações unilaterais das autoridades francesas foram feitas fora do Tribunal,
publicamente e erga omnes, ainda que a primeira delas tivesse sido comunicada ao
Governo da Austrália. Como observado acima, para terem efeito jurídico, não era
necessário que essas declarações fossem dirigidas a um Estado específico, nem era
exigida a aceitação por qualquer outro Estado. A natureza geral e características destas
declarações são decisivas para a avaliação das consequências jurídicas, e o Tribunal deve,
agora, proceder à interpretação das declarações. Logo à partida, o Tribunal considera
poder presumir que essas declarações não foram feitas in vácuo, mas em relação com os
ensaios que constituem o próprio objeto deste processo, ainda que a França tenha decidido
não comparecer. (…) O Tribunal considera que o Presidente da República, ao decidir
sobre a cessação efetiva dos ensaios na atmosfera, assumiu um compromisso perante a
comunidade internacional, a qual se dirigiam as suas palavras. É verdade que o Governo
francês manteve de forma consistente, por exemplo em Nota de 7 de fevereiro de 1973
do Embaixador francês em Camberra, que estava “convicto de que os seus ensaios
nucleares não violaram qualquer regra de direito internacional” e que, por outro lado, a
França não reconheceu que estivesse vinculada por qualquer regra de direito internacional
a cessar os ensaios, mas isso não afeta as consequências jurídicas das declarações atrás
analisadas.

Aquiescência e estoppel

218
219 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

5) TIJ, Caso Atividades militares e paramilitares na Nicarágua e contra esta,


acórdão, competência e admissibilidade, 26 de novembro de 1984, Col., 1984, pp. 414
s., par. 51

51. (…) [O] Tribunal não necessita de se debruçar longamente sobre a contenção
baseada no estoppel. O Tribunal considerou que o comportamento da Nicarágua, tendo
em conta as circunstâncias muito especiais em que ocorreu, equivalia a manifestar o seu
consentimento em ficar vinculada de uma forma que evidenciava a aceitação de
competência [do Tribunal] (par. 47, acima). É assim evidente que o Tribunal não pode
considerar a informação obtida pelos Estados Unidos em 1943, ou as dúvidas expressas
em contactos diplomáticos em 1955, como suficientes para contrariar esta conclusão, e
ainda menos para apoiar um estoppel. A tese da Nicarágua, segundo a qual desde 1946
mantém estar sujeita à competência do Tribunal está apoiada em provas substanciais.
Além disso, como o Tribunal assinalou nos casos da Plataforma Continental do Mar do
Norte (TIJ, Col., 1969, p. 26), o estoppel pode ser inferido de um comportamento, de
declarações, etc., de um Estado, que não só teriam atestado de uma maneira clara e
constante a aceitação, por esse Estado, de um regime particular, mas que também teriam
levado outro ou outros Estados, baseando-se nesse comportamento, a modificar a sua
posição em seu detrimento ou a sofrer algum prejuízo. O Tribunal não pode considerar
que a invocação, pela Nicarágua, da cláusula facultativa seja por qualquer forma contrária
à boa fé e à equidade; não pode também dizer-se que o critério adotado nos casos da
Plataforma Continental do Mar do Norte se aplique à Nicarágua, pelo que o estoppel
invocado pelos Estados Unidos da América não lhe é aplicável.

6) TIJ, caso da delimitação da fronteira marítima na região do Golfo do Maine,


Canadá/Estados Unidos da América, acórdão, 12 de outubro de 1984, Col., 1984, pp.
303-305, pars. 126 ss.

126. Tendo chegado a esta conclusão sobre a ausência de uma obrigação jurídica entre
as partes para aplicarem determinados métodos práticos ao traçado da linha única de
delimitação das suas zonas marítimas respetivas, a Câmara ainda tem que colocar-se uma
questão com ela relacionada. Deve analisar se, entre as referidas Partes, não intervieram
outros fatores, que tivessem podido, independentemente de qualquer ato formal de
criação de regras ou de instauração de relações de direito internacional particular, estar
na origem da existência de uma obrigação deste género. Trata-se, aqui, da questão, que
as partes debateram longamente no presente processo, de saber se o comportamento que
adotaram durante um dado período nas suas relações mútuas não teria implicado para um
delas uma aquiescência relativamente à aplicação à delimitação de um método específico
defendido pela outra Parte, ou a preclusão da possibilidade de se lhe opor, ou ainda de
saber se este comportamento não teria tido por efeito estabelecer um modus vivendi,
respeitado de facto, relativamente a uma linha que correspondesse a uma tal aplicação.

127. Foi o Canadá que desenvolveu, muito em especial, a tese segundo a qual o
comportamento dos Estados Unidos teria tido como consequência o surgimento, sob uma
destas diferentes formas, de uma espécie de consentimento substantivo da sua parte
relativamente à aplicação do método da equidistância, naquilo que sobretudo diz respeito
à delimitação a traçar no setor da margem de Georges. Por conseguinte, a Câmara irá
tomar em consideração esta tese para analisar este aspeto da questão.

219
220 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

128. No entender do Canadá, por conseguinte, o comportamento dos Estados Unidos


pode ser tomado em consideração a três títulos, embora de diferente importância: em
primeiro lugar, enquanto prova de uma verdadeira aquiescência da sua parte à ideia de
uma linha mediana como limite entre as jurisdições marítimas respetiva, e de um estoppel
que daí resultaria para os Estados Unidos; em segundo lugar, como indício, pelo menos,
de um modus vivendi ou de um limite de facto, que os Estados Unidos teriam deixado
estabelecer-se; e, finalmente, em terceiro lugar, enquanto simples indício do tipos de
delimitação que as próprias Partes considerariam equitativo. É de notar que esta tese
canadiana se referia, à data do comportamento em causa, à plataforma continental
propriamente dita e, nomeadamente, à da margem de Georges. Os Estados Unidos, por
seu turno, contestam veementemente que o seu comportamento possa ter tido as
consequências jurídicas ou de outra natureza que lhe atribui o Canadá.

129. Nas alegações canadianas, os termos aquiescência e estoppel são utilizados em


conjunto e praticamente para o mesmo fim. O Canadá define da seguinte maneira as
regras relativas à aquiescência, considerada como um reconhecimento de direitos:

“Quando o Governo de um Estado parte num diferendo tem conhecimento,


diretamente ou por dedução, do comportamento da outra parte ou de uma sua afirmação
de direitos, e que se abstém de protestar contra essa conduta ou afirmação, isso quer dizer
que esse Governo aceita, tacitamente, a posição jurídica que traduz a conduta da outra
parte ou a sua afirmação de direitos” (audiência de 4 de abril de 1984, parte da tarde).

Quanto ao estoppel, o Canadá admite que, no direito internacional, esta “doutrina”


continua a evoluir. No seu entender, no entanto, no caso vertente, estarão preenchidas
todas as condições para que este princípio possa ser invocado, mesmo que se optasse pelas
condições mais estritas. Nas suas alegações, o Canadá disse que o estoppel é o “alter ego
da aquiescência”. Acrescentou, no entanto, que mesmo que devesse entender-se que as
condições para o reconhecimento de uma situação de estoppel são mais exigentes do que
as requeridas para uma aquiescência – os Estados Unidos consideram, com efeito, que a
parte que queira invocar esta causa de preclusão tem que se basear no facto de as
declarações da outra parte terem operado, seja em seu detrimento, seja em benefício da
outra – este último critério deveria considerar-se preenchido no caso concreto.

130. A Câmara verifica, em todo o caso, que as noções de aquiescência e estoppel,


qualquer que seja o seu estatuto em direito internacional, decorrem, ambas, dos princípios
fundamentais da boa fé e da equidade. Resultam, no entanto, de construções jurídicas
diferentes, equivalendo a aquiescência a um reconhecimento tácito manifestado por um
comportamento unilateral que a outra parte pode interpretar como consentimento; e,
diferentemente, estando o estoppel ligado à ideia de preclusão. De acordo com uma certa
forma de ver, a preclusão seria, aliás, a vertente processual e o estoppel a vertente
substancial do mesmo princípio. Sem querer entrar aqui num debate teórico que vai para
além das suas preocupações atuais, a Câmara limitar-se-á a destacar que, importando os
mesmos factos para a aquiescência como para o estoppel, exceto no que se refere à
existência de um prejuízo, pode considerar os dois conceitos como aspetos distintos de
um mesmo instituto.

220
221 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

PRINCÍPIOS GERAIS DO DIREITO

1) Projeto de Conclusões sobre os Princípios Gerais do Direito, Comissão de


Direito Internacional, Segundo Relatório, 9 de abril de 2020

Projeto de Conclusão 1
Âmbito

O presente projeto de conclusões refere-se aos princípios gerais do direito como fonte
de direito internacional.

Projeto de Conclusão 2
Requisito do reconhecimento

Para que um princípio geral do direito exista deve ser geralmente reconhecido pela
[comunidade das nações].

Projeto de Conclusão 3
Categorias de princípios gerais do direito

Os princípios gerais do direito compreendem aqueles:


a) provenientes dos sistemas jurídicos nacionais;
b) formados dentro do sistema jurídico internacional.

Projeto de Conclusão 4
Identificação de princípios gerais do direito provenientes dos sistemas jurídicos
nacionais

Para determinar a existência e conteúdo de um princípio geral do direito proveniente


dos sistemas jurídicos nacionais, é necessário verificar:
a) a existência de um princípio comum aos principais sistemas jurídicos do mundo;
e
b) a sua transposição para o sistema jurídico internacional.

Projeto de Conclusão 5
Determinação da existência de um princípio comum aos principais sistemas
jurídicos do mundo

1. Para determinar a existência de um princípio comum aos principais sistemas


jurídicos do mundo é necessário proceder a uma análise comparativa dos sistemas
jurídicos nacionais.
2. A análise comparativa deve ser abrangente e representativa, incluindo das diferentes
famílias do direito e regiões do mundo.
3. A análise comparativa inclui uma avaliação das legislações nacionais e das decisões
dos tribunais nacionais.

221
222 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

Projeto de Conclusão 6
Verificação da transposição para o sistema jurídico internacional

Um princípio comum aos principais sistemas jurídicos do mundo é transposto para o


sistema jurídico internacional se:
a) é compatível com os princípios fundamentais de direito internacional; e
b) existem as condições para a sua adequada aplicação no sistema jurídico
internacional.

Projeto de Conclusão 7
Identificação de princípios gerais do direito formados dentro do sistema
jurídico internacional

Para determinar a existência e conteúdo de um princípio geral do direito formado


dentro do sistema jurídico internacional, é necessário dar por verificado que:
a) um princípio é amplamente reconhecido em tratados e outros instrumentos
jurídicos internacionais;
b) um princípio está subjacente a normas gerais de direito internacional convencional
ou consuetudinário; ou
c) um princípio é intrínseco às principais características e aos requisitos
fundamentais do sistema jurídico internacional.

Projeto de Conclusão 8
Decisões de tribunais

1. As decisões de tribunais internacionais, em especial do Tribunal Internacional de


Justiça, relativas à existência e conteúdo de princípios gerais do direito são um meio
auxiliar para a determinação de tais princípios.
2. Podem ser tomadas em consideração, conforme apropriado, as decisões de tribunais
nacionais relativas à existência e conteúdo de princípios gerais do direito como meio
auxiliar para a determinação de tais princípios.

Projeto de Conclusão 9
Doutrina

A doutrina dos publicistas mais qualificados das diferentes nações pode servir de meio
auxiliar para a determinação de princípios gerais do direito.

222
223 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

PARTE IV - IMUNIDADES JURISDICIONAIS DOS ESTADOS E DOS SEUS BENS

1) Tribunal Internacional de Justiça, Caso relativo às imunidades jurisdicionais do


Estado, Alemanha c. Itália, com intervenção da Grécia, 3 de fevereiro de 2012
https://www.icj-cij.org/public/files/case-related/143/143-20120203-JUD-01-00-EN.pdf

III. As alegadas violações da imunidade de jurisdição da Alemanha nas queixas


apresentadas perante tribunais italianos

1. As questões perante o Tribunal

52. O Tribunal começa por observar que os procedimentos perante tribunais italianos
têm a sua origem em atos perpetrados pelas forças armadas alemãs e outros órgãos do
Reich alemão. A Alemanha reconheceu plenamente o “sofrimento inominável infligido a
homens e mulheres italianos em especial durante os massacres e a antigos soldados
italianos” (Declaração conjunta Alemanha e Itália, Trieste, 18 de novembro de 2008),
aceita que estes atos foram ilícitos e declarou perante este Tribunal que “tem total
consciência da [sua] responsabilidade a este respeito”. O Tribunal considera que os atos
em questões apenas podem ser descritos como demonstrando uma completa
desconsideração por “elementares considerações de humanidade” (…). Um conjunto de
casos envolve assassinatos em larga escala de civis no território ocupado, como parte de
uma política de represálias, exemplificado nos massacres de 29 de junho de 1944 na
Civitella (Val di Chiana), em Cornia e em San Pancrazio pelos membros da divisão
“Hermann Göring” das forças armadas alemãs, envolvendo o assassinato de 203 civis
tomados como reféns depois de os combatentes da resistência terem morto quatro
soldados alemães alguns dias antes (…). Outra categoria de casos envolveu membros da
população civil que, como Luigi Ferrini, foram deportados de Itália para prestar aquilo
que era, na sua substância, trabalho escravo na Alemanha. A terceira [categoria de casos]
prende-se com membros das forças armadas italianas a quem foi negado o estatuto do
prisioneiro de guerra, juntamente com as proteções devidas de acordo com aquele
estatuto, ao qual tinham direito e que, de modo idêntico, foram utilizados para trabalho
forçado. O Tribunal considera que não há qualquer dúvida de que esta conduta foi uma
violação grave do direito internacional dos conflitos armados aplicável em 1943-1945. O
artigo 6, alínea b) da Carta do Tribunal Internacional Militar, de 8 de agosto de 1945 (…),
acordado em Nuremberga, inclui como crimes de guerra “assassínio, tratamento cruel ou
deportação para trabalho forçado ou com qualquer outra finalidade da população civil de
ou num território ocupado”, assim como “assassínio ou tratamento cruel de prisioneiros
de guerra”. A lista de crimes contra a humanidade no artigo 6, alínea c), incluíam
“assassínio, extermínio, escravatura, deportação e outros atos desumanos cometidos
contra a população civil, antes e durante a guerra”. O assassinato de reféns civis em Itália
foi uma das acusações a que vários réus de crimes de guerra foram condenados em
julgamentos imediatamente após a Segunda Guerra Mundial (…). Os princípios da Carta
de Nuremberga foram confirmados pela Assembleia Geral das Nações Unidas, na
Resolução 95 (I) de 11 de dezembro de 1946.

53. Contudo, o Tribunal não é chamado a decidir se estes atos foram ilícitos, um ponto
que não está em discussão. A questão perante o Tribunal é a de saber se, nos processos

223
224 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

relativos a pedidos de compensação com base naqueles casos, os tribunais italianos


estavam obrigados, ou não, a garantir imunidade à Alemanha. Neste contexto, o Tribunal
sublinha que as partes estão em ampla medida de acordo quanto ao direito aplicável. Em
particular, ambas as Partes concordam que a imunidade é regulada pelo direito
internacional e não é uma questão de cortesia.

54. No que diz respeito às relações entre a Alemanha e a Itália, qualquer direito à
imunidade derivará do direito internacional consuetudinário, e não do direito
convencional. Embora a Alemanha seja um dos oito Estados Parte da Convenção
Europeia sobre a Imunidade do Estado de 16 de maio de 1972 (Conselho da Europa) (…),
a Itália não é parte e, consequentemente, a Convenção não a obriga. Nenhum dos Estados
é parte na Convenção das Nações Unidas sobre as Imunidades Jurisdicionais dos Estados
e dos seus Bens, adotada a 2 de dezembro de 2004 (…), que nem sequer entrou ainda em
vigor. A 1 de fevereiro de 2012, a Convenção das Nações Unidas tinha sido assinada por
vinte e oito Estados e tinham sido depositados treze instrumentos de ratificação,
aceitação, aprovação ou adesão. O artigo 30 da Convenção estabelece que entrará em
vigor no trigésimo dia depois do depósito do trigésimo instrumento daquela natureza.
Nem a Alemanha nem a Itália assinaram a Convenção.

55. Consequentemente, o Tribunal tem de determinar, de acordo com o artigo 38, n.º
1, alínea b) do seu Estatuto, a existência de um “costume internacional, como prova de
prática geral aceite como direito” que confere imunidade aos Estados e, em caso
afirmativo, qual o âmbito e extensão dessa imunidade. Para esse efeito, terá de aplicar os
critérios que tem estabelecido de modo sistemático para identificar uma regra de direito
internacional consuetudinário. (…) No contexto em análise, a prática estadual encontrar-
se-á, com significado particular, nas decisões de tribunais nacionais confrontados com a
questão de saber se um Estado estrangeiro é imune, no direito interno daqueles Estados
que aprovaram legislação que garante estatutos de imunidade, nas alegações de
imunidade apresentadas por Estados perante tribunais estrangeiros, e nas declarações
proferidas pelos Estados, primeiro, no decurso do estudo extensivo da matéria feito pela
Comissão do Direito Internacional e, depois, no contexto da adoção da Convenção das
Nações Unidas. Neste contexto, a opinio juris está refletida em particular na invocação
pelos Estados que reivindicam a imunidade, alegando que o direito internacional lhes
concede o direito a essa imunidade da jurisdição de outros Estados; no reconhecimento,
pelos Estados que garantem a imunidade, que o direito internacional lhes impõe tal
obrigação; e, inversamente, na alegação por parte dos Estados, noutros casos, de um
direito a exercer jurisdição sobre Estados estrangeiros. (…)

56. Apesar do amplo debate quanto às origens da imunidade do Estado e a


identificação, no passado, dos princípios relativos a essa imunidade, a Comissão do
Direito Internacional concluiu, em 1980, que a regra da imunidade do Estado tinha sido
“adotada como uma regra geral de direito internacional consuetudinário solidamente
alicerçada na prática atual dos Estados (…)”. Essa conclusão baseou-se num
levantamento exaustivo da prática estadual e, na opinião do Tribunal, é confirmada pelo
levantamento da legislação nacional, decisões judiciais, pelas invocações de um direito à
imunidade e pelos comentários dos Estados àquela que veio a ser a Convenção das Nações
Unidas. Essa prática demonstra que, quer alegando a sua própria imunidade, quer
reconhecendo-a relativamente a outros, os Estados, em geral, atuam com base no

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225 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

entendimento de que existe um direito à imunidade de acordo com o direito internacional,


acompanhado da correspondente obrigação da parte dos outros Estados em respeitar e
garantir tal imunidade.

57. O Tribunal considera que a regra da imunidade do Estado ocupa um lugar


importante no direito internacional e nas relações internacionais. Deriva do princípio da
igualdade soberana dos Estados que, como resulta claro no artigo 2, n.º 1 da Carta das
Nações Unidas, é um dos princípios fundamentais da ordem jurídica internacional. Este
princípio tem de ser lido em conjunto com o princípio de que cada Estado possui
soberania sobre o seu próprio território e que dessa soberania deriva a jurisdição do
Estado sobre eventos e pessoas dentro desse território. As exceções à imunidade do
Estado representam um afastamento do princípio da igualdade soberana. A imunidade
pode representar um afastamento do princípio da soberania territorial e da jurisdição que
resulta deste.

58. Por conseguinte, as Partes estão essencialmente de acordo quanto à existência e à


importância da imunidade do Estado, enquanto elemento do direito internacional
consuetudinário. Os seus pontos de vista divergem, no entanto, quanto ao ponto de saber
se o direito que deve ser aplicado é (como sustenta a Alemanha) aquele que determinava
o alcance e a extensão da imunidade do Estado em 1943-1945 – dito de outra forma, na
altura dos factos que estão na origem das ações intentadas perante as jurisdições italianas
– ou (como adianta a Itália) aquele que estava em vigor quando essas ações foram
iniciadas. O Tribunal destaca que, de acordo com o princípio enunciado no artigo 13 dos
artigos da Comissão do Direito Internacional sobre a responsabilidade do Estados por
factos internacionalmente ilícitos, a conformidade de um facto com o direito internacional
só pode ser determinada tomando em consideração o direito em vigor no momento em
que esse facto se produziu. Importa, por conseguinte, estabelecer uma distinção entre os
factos pertinentes da Alemanha e da Itália. Os factos pertinentes da Alemanha – descritos
no parágrafo 52 – tiveram lugar em 1943-1945 e, por conseguinte, é o direito em vigor
nessa altura que se lhes aplica. Os factos relevantes da Itália – a recusa de imunidade
pelos tribunais italianos e o exercício, por estas, da sua competência – só se produziram
quando tiveram lugar os processos italianos. Uma vez que a questão perante o Tribunal
diz respeito aos factos das jurisdições italianas, é o direito internacional em vigor na altura
dos referidos processos que o Tribunal tem que aplicar. Além disso, como o Tribunal
referiu (no contexto das imunidades pessoais de que gozam os ministros dos negócios
estrangeiros em virtude do direito internacional), o direito da imunidade tem uma natureza
essencialmente processual (Mandado de detenção de 11 de abril de 2000 (República
Democrática do Congo c. Bélgica), Acórdão, TIJ, Rep., 2002, p. 25, par. 60)). Regula o
exercício do poder de jurisdição relativamente a um dado comportamento e, por
conseguinte, é totalmente distinto do direito substantivo que determina se esse
comportamento é lícito ou não. Em consequência, o Tribunal considera que lhe cabe
apreciar e aplicar o direito da imunidade dos Estados que existia no momento dos
processos italianos e não aquele que estava em vigor em 1943-1945.

59. As Partes também discordam quanto ao alcance e extensão da regra da imunidade


do Estado. A este respeito, o Tribunal destaca que muitos Estados (incluindo a Alemanha
e a Itália) fazem hoje uma distinção entre os atos jure gestionis – relativamente aos quais
limitaram a imunidade que para si reivindicam e acordam aos outros – e os atos jure

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226 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

imperii. Esta abordagem é, igualmente, a da Convenção das Nações Unidas e da


Convenção Europeia (ver, também, o projeto de convenção interamericana sobre a
imunidade jurisdicional dos Estados, adotado em 1983 pelo Comité Jurídico
Interamericano da Organização dos Estados Americanos (ILM, vol. 22, p. 292)).

60. No caso concreto, o Tribunal não tem de se pronunciar sobre a forma como o
direito internacional regula a questão da imunidade dos Estados quando os atos em causa
são jure gestionis. Os atos das forças armadas e de outros órgãos do Estado alemão postos
em causa perante a justiça italiana eram, seguramente, atos jure imperii. O Tribunal
assinala que, em resposta a uma questão colocada por um membro do Tribunal, a Itália
reconheceu que os atos em questão deviam ser qualificados como atos jure imperii, e isso
apesar do seu caráter ilícito. O Tribunal considera que as expressões “jure imperii” e “jure
gestionis” não pressupõem de nenhum modo que os atos em causa sejam lícitos, apenas
indicam se devem ou não ser apreciados nos termos do direito que regula o exercício do
poder soberano (jus imperii) ou do direito que regula as atividades não soberanas do
Estado, em especial as de natureza privada e comercial (jus gestionis). Na medida em que
esta distinção importa para determinar se um Estado tem o direito de beneficiar da
imunidade de jurisdição perante os tribunais de outro Estado a respeito de um dado ato,
deve ser tomada em consideração antes de os tribunais em questão possam exercer a sua
competência, enquanto que a questão de saber se este ato é lícito ou não só pode ser
decidida no exercício desta competência. Ainda que o presente caso tenha como pouco
habitual o facto de a Alemanha ter admitido, em todas as fases do processo, a ilicitude
dos atos em causa, o Tribunal considera que isso não tem influência na sua qualificação
como atos jure imperii.

61. As Partes concordam que os Estados gozam, regra geral, de imunidade no caso de
atos jure imperii. Essa é a abordagem adotada na Convenção das Nações Unidas, na
Convenção Europeia e no projeto de convenção interamericana, assim como nas leis
adotadas pelos Estados que legislaram sobre a questão e na jurisprudência dos tribunais
nacionais. É tendo isso presente que o Tribunal deve considerar a questão que suscita a
presente instância, ou seja, a de saber se a imunidade é aplicável aos atos cometidos pelas
forças armadas de um Estado (e de outros órgãos que atuem em cooperação com essas
forças) no âmbito de um conflito armado. A Alemanha sustenta que a imunidade se aplica
e que não é aplicável no caso nenhuma das exceções à imunidade de que goza um Estado
relativamente aos atos jure imperii. A Itália, quanto a ela, argumenta que a Alemanha não
pode beneficiar de imunidade nos processo que foram iniciados perante os seus tribunais
pela razão dupla de que, em primeiro lugar, esta imunidade não inclui, no que se refere
aos atos jure imperii, os atos danosos ou ilícitos que tiveram como consequência a morte,
um dano corporal ou um dano material cometidos no território do Estado do foro e que,
em segundo lugar, independentemente do local em que se produziram os atos em questão,
a Alemanha não poderia beneficiar de imunidade porque aqueles atos eram constitutivos
das violações mais graves de regras de direito internacional de caráter imperativo, e que
não existia, como remédio, qualquer outra via de recurso. O Tribunal irá examinar cada
um dos argumentos da Itália.

2. O primeiro argumento da Itália: os danos foram causados no território do Estado do


foro

226
227 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
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1º semestre

62. O primeiro argumento da Itália consiste, essencialmente, em sustentar que o direito


internacional consuetudinário evoluiu de tal forma que os Estados hoje já não podem
pretender imunidade relativamente a atos que tenham tido como consequência a morte,
um dano corporal ou um dano material no território do Estado do foro, e isso, mesmo que
os atos em causa tenham sido praticados jure imperii. A Itália reconhece que este
argumento apenas vale no que respeita às queixas submetidas perante a justiça italiana
que se referem a atos ocorridos em Itália e não no que se refere aos internados italianos
feitos prisioneiros fora de Itália e transferidos para a Alemanha – ou para qualquer outro
território que não o da Itália – para aí serem sujeitos a trabalho forçado. Em apoio deste
argumento, a Itália invoca a adoção do artigo 11 da Convenção Europeia e o artigo 12 da
Convenção das Nações Unidas, assim como o facto de nove dos dez Estados por si
recenseados que promulgaram leis relativas, especificamente, à imunidade dos Estados
estrangeiros adotaram disposições semelhantes às destas duas convenções (sendo o
Paquistão a exceção). A Itália reconhece que a Convenção Europeia contém uma
disposição em virtude da qual este instrumento não se aplica aos atos das forças armadas
estrangeiras (art. 31); sustenta, no entanto, que apenas se trata de uma cláusula de
salvaguarda que, no essencial, tem por objeto evitar qualquer conflito entre a Convenção
e os instrumentos que regulam o estatuto das forças estrangeiras presentes no território de
um Estado com o consentimento deste, e que daí não resulta que os Estados beneficiam
de imunidade relativamente aos atos cometidos pelas suas forças armadas no território de
um outro Estado. (…)

[Nos parágrafos seguintes, o Tribunal analisa, tanto o disposto na Convenção Europeia


como na Convenção das Nações Unidas, assim como declarações de Estados e decisões
de jurisprudência, entendendo que todas apontam, claramente, no sentido do
reconhecimento da imunidade jurisdicional do Estado no caso de atos das suas forças
armadas].

69. (…) À luz destas diferentes declarações, o Tribunal conclui que a inclusão do artigo
12 na Convenção não pode considerar-se como apoiando o argumento segundo o qual o
direito internacional consuetudinário não reconhece a um Estado imunidade nos
processos que se refiram a atos danosos que tenham como consequência a morte, um dano
corporal ou material cometidos no território do Estado do foro pelas forças armadas e
órgãos associados de um outro Estado no âmbito de um conflito armado.
(…)
79. Em consequência, o Tribunal conclui que, contrariamente ao sustentado pela Itália
no quadro da presente instância, a decisão dos tribunais italianos de não acordarem
imunidade à Alemanha não pode justificar-se com base na exceção territorial.

3. O segundo argumento da Itália: o objeto e as circunstâncias das queixas apresentadas


perante os tribunais italianos.

80. O segundo argumento da Itália que, contrariamente ao primeiro, se aplica a todas


as queixas apresentadas perante a justiça italiana, consiste em sustentar que a recusa de
imunidade se justificava em virtude da natureza particular dos atos que constituíam o
objeto dessas queixas e tomando em consideração as suas circunstâncias. Este argumento
comporta três dimensões. Desde logo, a Itália alega que os atos de que resultaram as
queixas referidas constituíam violações graves dos princípios do direito internacional

227
228 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

aplicáveis à condução dos conflitos armados, a saber, crimes de guerra e crimes contra a
Humanidade. De seguida, sustenta que as regras do direito internacional assim violadas
era regras imperativas (jus cogens). Enfim, alega que, uma vez que aos queixosos tinha
sido recusada qualquer outra forma de reparação, o exercício pelos tribunais italianos da
sua jurisdição era necessário enquanto último recurso. (…)
(…)
84. A prática dos outros Estados que confirmam que, no direito internacional
consuetudinário, o direito à imunidade não resulta da gravidade do ato de que o Estado é
acusado ou do caráter imperativo da regra que teria sido violada é (…) bastante robusta.

85. Esta prática resulta, claramente, das decisões dos tribunais nacionais. (…)
(…)
92. O Tribunal vai, agora, apreciar a segunda dimensão do argumento italiano, segundo
o qual as regras violadas pela Alemanha entre 1943 e 1945 resultariam do jus cogens.
Este aspeto da defesa italiana assenta na hipótese de que existiria um conflito entre as
regras de jus cogens que fazem parte do direito dos conflitos armados e o reconhecimento
da imunidade da Alemanha. No entender da Itália, as regras de jus cogens prevalecem
sempre sobre qualquer regra contrária de direito internacional, quer figure num tratado
ou integre o direito internacional consuetudinário; não tendo estatuto de jus cogens a regra
em virtude da qual um Estado goza de imunidade perante as jurisdições de um outro
Estado, deveria, portanto, ser afastada.

93. Por conseguinte, este argumento assenta na existência de um conflito entre uma
regra, ou regras, de jus cogens e a regra de direito consuetudinário que obriga um Estado
a conceder imunidade a outro. Ora, no entender do Tribunal, não existe um tal conflito.
Supondo, para efeito da presente análise, que sejam normas de jus cogens as regras do
direito dos conflitos armados que proíbem matar civis em território ocupado, ou deportar
civis ou prisioneiros de guerra para os obrigar a trabalho forçado, estas regras não
conflituam com as que regulam a imunidade do Estado. Estas duas categorias de regras
referem-se, com efeito, a questões diferentes. Aquelas que regulam a imunidade do
Estado têm natureza processual e limitam-se a determinar se os tribunais de um Estado
podem exercer a sua jurisdição relativamente a outro. Não incidem sobre a questão de
saber se o comportamento relativamente ao qual são iniciadas as ações era lícito ou ilícito.
Por isso, o facto de aplicar o direito contemporâneo da imunidade do Estado a uma
instância que se refere a acontecimentos ocorridos entre 1943 e 1945 não afeta o princípio
segundo o qual os tribunais não devem aplicar o direito de forma retroativa para efeito de
se pronunciarem sobre questões de licitude e de responsabilidade (…). Pelo mesmo
motivo, o facto de reconhecer a imunidade de um Estado estrangeiro, em conformidade
com o direito internacional consuetudinário, não tem como consequência julgar como
lícita uma situação criada pela violação de uma regra de jus cogens, nem a prestar auxílio
ou assistência à manutenção dessa situação, e não poderia, portanto, violar o princípio
enunciado no artigo 41 dos artigos da Comissão do Direito Internacional sobre a
responsabilidade do Estado.

Questões:

a) Qual é a questão sobre a qual o Tribunal Internacional de Justiça é chamado a decidir no excerto
apresentado?

228
229 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

b) Qual o direito que regula a questão? E qual a sua fonte formal?


c) Em que consiste a imunidade jurisdicional dos Estados?
d) Que princípios estão subjacentes à afirmação daquela imunidade?
e) Qual a distinção entre atos jure gestionis e atos juris imperii?
f) Qual o primeiro argumento apresentado pela Itália para sustentar a exceção de imunidade? E
qual a resposta do TIJ?
g) Qual o segundo argumento apresentado pela Itália? E qual a análise do TIJ?Qual a relação, de
acordo com o TIJ, a relação entre imunidade jurisdicional e normas ius cogens?

2) Portugal, Supremo Tribunal de Justiça, Processo, 2075/12.0TTLSB.L1.S1, 4


de junho de 2014
(…)

1. O tribunal recorrido deu como provados os factos seguintes:


1) A autora AA é cidadã argelina;
2) Na data de 15/10/2004, na Argélia, a autora e a ré Embaixada em Portugal da República
Democrática e Popular da Argélia acordaram de forma verbal que aquela prestaria […]
as funções de cozinheira para esta e sob a sua autoridade, direção e fiscalização, mediante
uma remuneração mensal,
3) Tendo, em consequência deste acordo, a ré tratado da documentação para a entrada da
autora em Portugal para funções como membro da Missão;
4) Posteriormente, em 21/02/2005, nas instalações da ré, esta e a autora reduziram a
escrito o referido acordo verbal, através da subscrição do escrito particular denominado
«CONTRAT D’ENGAGEMENT», cuja cópia consta de fls. 68 a 70 dos autos e cujo teor
se dá por integralmente [reproduzido], e cuja tradução consta de fls. 66 e 67 dos autos e
cujo teor se dá por integralmente [reproduzido];
5) A autora exerceu as funções de cozinheira na própria Embaixada e na residência oficial
da Sr.ª Embaixadora da Argélia;
6) Funções essas que desempenhou até 31.05.2011;
7) Data em que a ré lhe entregou a carta cuja cópia consta de fls. 18 dos autos e cujo teor
se dá por integralmente [reproduzido], e cuja tradução consta de fls. 17 dos autos e cujo
teor se dá por integralmente [reproduzido];
8) Enquanto prestou o seu trabalho para a ré, por iniciativa desta, a autora fazia descontos
para a Segurança Social Portuguesa.

Os factos materiais fixados pelo tribunal recorrido não foram objeto de impugnação pelas
partes (…).

2. A ré sustenta que o acórdão recorrido «viola o princípio da imunidade de jurisdição, o


qual estabelece a igualdade soberana entre Estados, pois nenhum Estado pode julgar os
atos de outro ou mesmo de um dos seus órgãos superiores, maxime, por intermédio de um
dos seus Tribunais, sem consentimento deste, violando expressamente o artigo 2.º, n.º 1
da Carta das Nações Unidas e o artigo 3.º do Tratado de Amizade, Boa Vizinhança e
Cooperação entre a República Portuguesa e a República Democrática e Popular da
Argélia», que a «condenação da República Democrática e Popular da Argélia ou da sua
Embaixada em Portugal no caso sub judice seria atentatória da sua soberania, para além
de ser inexequível, porquanto a execução de uma sentença nesse sentido, implicaria a

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230 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
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1º semestre

execução de atos materiais do Estado Português sobre a Embaixada da Argélia, a qual


não poderá ser exigida a um Estado Soberano ou a algum dos seus órgãos» e que «os
tribunais Portugueses são formal e materialmente incompetentes para a apreciação do
caso sub judice», sendo que «[o] Tribunal recorrido reconheceu expressamente que a
Convenção de Basileia não vigora na Ordem Jurídica Interna Portuguesa, todavia aplicou-
a ao caso sub judice e fundamentou a sua decisão com base nas disposições nela previstas,
o que configura, de forma clara e manifesta, um erro na determinação da lei aplicável».
E acrescenta que «[n]ão poderá igualmente ser invocada a tese da imunidade relativa de
jurisdição, equiparando uma Embaixada a um escritório, agência ou estabelecimento
privado, sob pena de violação expressa da Convenção de Viena», que «uma Embaixada
é uma Representação Diplomática de um Estado» e que «a Embaixada da República
Democrática e Popular da Argélia em Portugal goza de imunidade de jurisdição face aos
Tribunais Portugueses».
De todo o modo, prossegue a ré, «estamos perante um contrato de trabalho celebrado, em
território Argelino, entre a Embaixada da República Democrática e Popular da Argélia e
uma cidadã argelina, o qual está sujeito à lei Argelina e foi celebrado pela referida
Embaixada ao abrigo das suas funções de ius imperii, para integrar o pessoal da Missão
Diplomática», sendo certo que «todos os elementos de conexão do presente caso se
reconduzem ao Estado da República Democrática e Popular da Argélia logo estamos
perante uma relação jurídica à qual só poderá ser aplicada a legislação e jurisdição
Argelinas», aditando que «as funções para as quais a Recorrida foi contratada, e que
desempenhava, eram de extrema relevância, pois era a Recorrida que confecionava toda
a alimentação da Embaixada e da família da Exma. Sra. Embaixadora, além de que,
também a segurança e a vida da Exma. Sra. Embaixadora, da sua família e demais
elementos que compõem a Missão estava “nas mãos” da ora Recorrida, em virtude da
grande proximidade entre a ora Recorrida e a Exma. Sra. Embaixadora», donde «apenas
poderá ser aplicada ao caso sub iudice a Convenção de Viena, ao abrigo da qual é
reconhecida de forma expressa a imunidade de jurisdição à ora Recorrente», tendo sido
«erradamente aplicado pelo Tribunal a quo o Regulamento Comunitário n.º 44/2001 de
22 de Dezembro de 2000, uma vez que o Estado da República Democrática e Popular da
Argélia é um Estado Terceiro à União Europeia», não estando vinculado por um
regulamento comunitário.

2.1. As instâncias divergiram na decisão do caso em apreciação.

O tribunal de 1.ª instância reconheceu a imunidade de jurisdição da ré, tendo julgado


procedente a exceção de incompetência absoluta dos tribunais portugueses para julgar a
presente ação e absolvido a ré da instância, já o tribunal da relação não reconheceu a
imunidade jurisdicional da ré, tendo determinado que o processo devia prosseguir para
conhecimento dos pedidos formulados pela autora.
(…)

2.2. A imunidade de jurisdição de que gozam os Estados estrangeiros é, comummente,


acolhida como um princípio de direito internacional consuetudinário e afirma-se como
um corolário do princípio da igualdade soberana dos Estados, consagrado no n.º 1 do
artigo 2.º da Carta das Nações Unidas, o qual dispõe que «[a] Organização baseia-se no
princípio da igualdade de todos os seus membros».

230
231 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

Tal imunidade de jurisdição significa que nenhum Estado pode julgar os atos de outro
Estado por intermédio de um dos seus tribunais, sem o consentimento expresso deste
Estado para o exercício da jurisdição por esse tribunal.

Trata-se, pois, de um princípio de direito internacional que se desenvolveu a partir da


máxima latina «par in parem non habet imperium».

No ordenamento jurídico português, não existe norma que regule a questão da imunidade
jurisdicional dos Estados estrangeiros perante os tribunais portugueses, problemática que
tem de ser apreciada à luz das normas e dos princípios de direito internacional geral ou
comum, os quais, segundo o n.º 1 do artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa,
«fazem parte integrante do direito português».

Refira-se que, na atualidade, os desenvolvimentos na prática dos Estados relativamente à


imunidade jurisdicional dos Estados estrangeiros, influenciados pela intervenção
crescente dos Estados em áreas do direito privado, apontam no sentido do reforço da
teoria da imunidade jurisdicional relativa em detrimento da teoria da imunidade
jurisdicional absoluta, sustentando aquela que o Estado só beneficiaria da imunidade para
os atos jure imperii, mas não para os atos jure gestionis, aqueles em que intervém como
pessoa de direito privado em relações de direito privado.

Idêntica tendência evolutiva tem caracterizado a jurisprudência dos tribunais superiores


portugueses, designadamente no foro laboral, que, atualmente, tem vindo a seguir a tese
da imunidade jurisdicional restrita dos Estados estrangeiros.

Nesta linha de entendimento, este Supremo Tribunal, no acórdão de 13 de Novembro de


2002, proferido no Processo n.º 2172/01, da 4.ª Secção — orientação reafirmada no
acórdão de 18 de Janeiro de 2006, proferido no Processo n.º 3279/05, da 4.ª Secção —,
asseverou que «a regra consuetudinária de direito internacional segundo a qual os Estados
estrangeiros gozam de imunidade de jurisdição local quanto às causas em que poderiam
ser réus não foi revogada pela Constituição da República Portuguesa de 1976, uma vez
que, na sua formulação mais recente, essa regra não contraria nenhum dos preceitos
fundamentais da Constituição. Essa formulação conforme ao sistema constitucional
português é a conceção restrita da regra da imunidade de jurisdição, que a restringe aos
atos praticados jure imperii, excluindo dessa imunidade os atos praticados jure gestionis.
Quer a extensão da aludida regra, quer os critérios de diferenciação entres estes tipos de
atividade, não têm contornos precisos e evoluem de acordo com a prática,
designadamente jurisprudencial, dos diversos Estados que integram a comunidade
internacional.»

Reapreciada a questão, não se vislumbra qualquer fundamento para divergir do assinalado


entendimento jurisprudencial, que se reputa mais conforme ao estádio atual dos
desenvolvimentos na prática dos Estados e na jurisprudência internacional.

Tudo para concluir que a prática da imunidade jurisdicional relativa é, hoje, a dominante,
passando a resolução da questão posta por saber se a atividade a que se refere o presente
litígio se configura como um ato jure imperii ou jure gestionis, sendo atos jure imperii os

231
232 Direito Internacional Público
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atos de poder público, de manifestação de soberania, enquanto os atos jure gestionis são
atos de natureza privada, os que poderiam ser de igual modo praticados por um particular.

Adite-se que a recorrente defende que resulta claro da Convenção de Viena que «a
Embaixada da República Democrática e Popular da Argélia em Portugal goza de
imunidade de jurisdição, em virtude do seu estatuto diplomático».

Ora, a Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, aprovada para adesão pelo
Decreto-Lei n.º 48.295, de 27 de Março de 1968, regula o estatuto dos agentes
diplomáticos, reconhecendo-lhe privilégios e imunidades, com o objetivo de «garantir o
eficaz desempenho das funções das missões diplomáticas, em seu carácter de
representantes dos Estados» (cf. respetivo proémio), não tendo visado assegurar aos
Estados estrangeiros imunidade total perante os tribunais do País em que se localizam as
missões diplomáticas.

Isto mesmo resulta do estipulado no n.º 1 do artigo 31.º daquela Convenção que dispõe
que o agente goza de imunidade de jurisdição penal do Estado acreditador e também da
imunidade da sua jurisdição civil e administrativa, com exceção das situações
discriminadas nas suas alíneas a) a c).
Acresce que se mostra completamente superado o entendimento da extensão aos Estados
estrangeiros das imunidades reconhecidas aos agentes diplomáticos.

Assim, a imunidade jurisdicional dos Estados não radica no sobredito direito


convencional, a qual consubstancia um instituto distinto das imunidades diplomáticas e
consulares, pelo que, sendo a ação instaurada contra a Embaixada da República
Democrática e Popular da Argélia, não está em causa a aplicação direta do regime das
imunidades contido na Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas.

2.3. No caso sujeito, resultou provado que a autora AA é cidadã argelina [facto provado
1)], que, em 15 de Outubro de 2004, a autora e a ré acordaram, de forma verbal, que
aquela prestaria as funções de cozinheira para esta e sob a sua autoridade, direção e
fiscalização, mediante remuneração mensal [facto provado 2)], e que a ré, na sequência
deste acordo, tratou da documentação para a entrada da autora em Portugal como membro
da Missão [facto provado 3)] e, em 21 de Fevereiro de 2005, nas instalações da ré, esta e
a autora reduziram a escrito o dito acordo verbal, através da subscrição do escrito
particular denominado «Contrat d’engagement» [facto provado 4)], tendo a autora
exercido as funções de cozinheira na Embaixada e na residência oficial da Sr.ª
Embaixadora da Argélia até 31 de Maio de 2011 [factos provados 5) e 6)], data em que a
ré lhe comunicou que o contrato terminava em 1 de Junho de 2011 [facto provado 7)],
sendo que, enquanto prestou o seu trabalho para a ré, por iniciativa desta, a autora fazia
descontos para a Segurança Social Portuguesa [facto provado 8)].

Ora, as funções de cozinheira exercidas pela autora, na Embaixada e na residência oficial


da respetiva Embaixadora, são obviamente de carácter subalterno, não lhe podendo,
manifestamente, ser reconhecida qualquer posição de direção na organização do serviço
público da ré ou de desempenho de funções de autoridade ou de representação, não
assumindo essa atividade, nem a correspondente contratação, a natureza de ato de poder
público ou de manifestação de soberania, ainda que aquelas funções possam ser

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233 Direito Internacional Público
Questões, Casos e Materiais
2022/2023
1º semestre

consideradas como necessárias para o regular e normal funcionamento dos serviços


próprios da missão diplomática.

Na verdade, a natureza das atividades a que se deve atender é a assumida pelas concretas
funções da trabalhadora em causa, interessando apurar se o regime legal aplicável à
relação laboral estabelecida é substancialmente diferente do que liga qualquer outro
trabalhador com as mesmas funções a um qualquer particular, sendo que, no caso, a
resposta é negativa.

Assim, impõe-se concluir pelo não reconhecimento, à ré, da imunidade de jurisdição


pretendida e, por via disso, pela competência internacional dos tribunais do trabalho
portugueses para preparar e julgar a ação em apreciação, nos termos do preceituado nos
artigos 10.º, 13.º e 14.º do Código de Processo do Trabalho.

Improcedem, pois, as conclusões da alegação do recurso de revista da ré.

III

Pelo exposto, delibera-se negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.


Custas do recurso de revista a cargo da recorrente.

Questões
a) Qual a questão em análise nesta decisão do Supremo Tribunal de Justiça?
b) Quais os factos que são tidos como provados?
c) O que alega a ré?
d) O que decide o STJ e qual a sua argumentação? Que fator identificaria como
determinante na decisão do STJ?
e) Atendendo à Convenção das Nações Unidas sobre as Imunidades Jurisdicionais dos
Estados e dos seus bens, de que Portugal é Parte, mas que ainda não está em vigor na
ordem jurídica internacional, qual seria a norma pertinente na análise deste caso?

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