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DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO I

Exame final – 2ª turma – 14/1/21


PARÂMETROS DE CORREÇÃO

I - Dê uma noção sucinta de:


1 – Conciliação
Trata-se de um meio político-diplomático (logo, não jurisdicional) para solução pacífica de conflitos
internacionais (em conformidade com o fundamental princípio da proibição do recurso à força – arts.
2.º, n.ºs 3 e 4; e 33.º, n.º 1, da CNU), com intervenção, por compromisso convencional assumido pelas
partes, de terceiros (comissão de conciliação). É usualmente qualificado como um meio quase-
jurisdicional, na medida em que não apenas obedece ao trâmite típico de processos judiciais (instrução
e análise fático-probatória – ‘questão de facto’, em uma primeira fase; e subsequente apreciação de
mérito – ‘questão de direito’), como é orientado por princípios processuais elementares, como o
contraditório e a igualdade das partes. Nada obstante, o resultado final consiste em uma (mera)
proposta de solução para o conflito, não vinculando as partes à sua adoção.

2 – Recepção por transformação


Trata-se de uma solução positiva, de matriz teórica dualista, para incorporação de normas
internacionais na ordem interna. Consiste em que, para vigorar na ordem jurídica interna, as normas de
direito internacional tenham de ser reproduzidas, pelo legislador ordinário, em um ato normativo
interno de sua competência, perdendo, assim, a qualidade de normas internacionais e passando a
assumir natureza e forma de normas direito interno, vigorando enquanto tais.
(3 val.)

II – Distinga:
1 – Voto negativo, veto e duplo veto (no Conselho se Segurança da ONU)
Os membros (permanentes ou não) do Conselho de Segurança da ONU podem, nas deliberações, votar
afirmativamente, negativamente ou abster-se e, em qualquer caso, o órgão delibera por maioria
qualificada de 9 votos (tudo conforme o art. 27.º CNU). Nada obstante, somente os membros
permanentes têm poder de veto, a depender da natureza das questões submetidas à deliberação. Isto
porque, tratando-se de questões procedimentais, a resolução do Conselho pode ser adotada por
quaisquer nove votos afirmativos (n.º 2); tratando-se de questões materiais, porém, na literalidade do
n.º 3, dos nove votos, cinco de entre eles deverão ser de membros permanentes (Estados Unidos,
Rússia, China, França e Reino Unido), fazendo assim emergir o poder de veto. Ademais, considerando
que a própria qualificação de questões – se materiais ou procedimentais – é, ela própria, de natureza
material, emerge o denominado duplo veto: o primeiro, na ocasião da qualificação da questão, para
impedir que seja qualificada como processual; e, o segundo, já na deliberação quanto ao mérito da
questão, eventualmente paralisando a tomada de decisão. Mais, somente o voto negativo de um dos
membros permanentes em deliberações de questões materiais ensejará a caracterização de veto – não a
abstenção, por força da formação de um costume contra legem.

2 – Domínio marítimo e domínio fluvial


Ambos formam – rectius, podem integram – o território do Estado (um de seus elementos essenciais),
no âmbito dos quais este exerce poderes de soberania. Diferenciam-se, porém, desde logo, em que o
domínio fluvial é constituído por cursos de água doce e, o marítimo, superfícies de água salgada,
incluindo o solo e subsolo respetivos, compreendidas em duas zonas marítimas: águas interiores e mar
territorial. Ademais, o regime jurídico do domínio marítimo é estabelecido internacionalmente –
Convenção de Montego Bay, a qual, aliás, estabelece algumas flexibilizações ao exercício dos poderes
soberanos no mar territorial. Relativamente ao domínio fluvial, tal nem sempre sucede, na medida em
que, não excedendo os rios os limites territoriais, a sua regulamentação é, como regra (e.g., navegação,
pesca, exploração industrial e agrícola), da competência exclusiva do Estado em que se situam.
(3 val.)

III – Comente a seguinte afirmação:


1 - «Desejavelmente, a reparação de danos na responsabilidade internacional deverá ser uma
restitutio in integrum. Tal, porém, nem sempre se verifica».
A prática de um ato internacionalmente ilícito imputável ao Estado que, como consequência direta e
imediata, origine danos a outro(s), desencadeia a responsabilidade internacional, com o surgimento do
dever de reparação. Das três modalidades de reparação – restitutio in integrum, indemnização e
satisfação –, privilegia-se, entre a primeira e a segunda, aquela, porquanto “permite a total obliteração
dos efeitos emergentes da comissão de factos ilícitos”. E isto porque a reparação, desejavelmente,
deve, “tanto quanto possível, apagar as consequências do facto ilícito, restabelecendo o status quo
ante, isto é, a situação que teria existido caso aquele não tivesse sido praticado (reposição da situação
actual hipotética)”. “Nem sempre, porém, se revela exequível esta forma de reparação dos danos. Com
efeito, não faltam ocasiões em que, seja pela circunstância de o acto jurídico (ilícito) em causa haver já
produzido efeitos irreversíveis (v.g., a morte de uma pessoa), seja pelo facto de os danos materiais,
eventualmente produzidos, terem redundado num prejuízo definitivo para o Estado vítima (v.g., uma
destruição de bens), não resta outra alternativa senão partir em busca de outra modalidade de
reparação. Para mais, deve ainda ter-se por afastada a restitutio in integrum (excepção feita, note-se
bem, aos ilícitos mais graves, em que avulta o interesse geral da comunidade internacional) nos casos
em que esta envolva para o Estado autor do facto ilícito um prejuízo desproporcionado,
comparativamente às vantagens que o Estado lesado obtenha beneficiando dessa forma de reparação
(…); ou quando a sua efectivação possa comprometer gravemente a independência política ou a
estabilidade económica do Estado infractor”1. Tal(is) sucedendo, recorre-se à reparação por

1
ALMEIDA, Francisco António de Macelo Lucas Ferreira de. Direito Internacional Público. 2ª ed. Coimbra:
Coimbra Editora, 2003, pp. 232-233.
equivalente ou indemnização. Em qualquer caso, emergindo danos de natureza moral, a reparação
realizar-se-á por satisfação.
(6 val.)

IV – Considere a seguinte hipótese:


Através de convenção internacional, concluída em Outubro de 2020, Estado A comprometeu-
se a fornecer a B 1000 ventiladores destinados a equipar o seu serviço público de saúde.
Aquando da entrega da encomenda no território de B, em Dezembro do mesmo ano, verificou-
se, no entanto, que os referidos equipamentos não reuniam, afinal, os requisitos técnicos necessários
para a sua utilização imediata em unidades de cuidados intensivos.
Confrontado com essa situação, B comunicou de imediato a A a sua intenção de invalidar a
sobredita convenção, alegando que, durante as negociações, o seu representante oficial (de B) não se
dera conta do defeito nas válvulas reguladoras de pressão dos ventiladores adquiridos. Mais advertiu
que a situação económica particularmente difícil em que se encontra inviabiliza o pagamento do preço
acordado para a aludida transação comercial.
Pergunta-se:
a) - Haveria fundamento (s) para a invalidação pretendida por B e para o não pagamento dos
1000 ventiladores? Justifique.
Depreende-se da narrativa dos factos ter havido, por B, uma representação inexata da realidade, a qual,
direta e determinantemente, operou na formação da vontade (i.e., na base essencial do consentimento),
sendo evidente que, tivesse conhecimento do defeito nas válvulas reguladoras de pressão dos
ventiladores que são objeto da convenção internacional, não a teria celebrado. Isto, porém, não é
bastante a ensejar a invalidação da convenção.
Com efeito, a representação inexata da realidade ensejará a nulidade (relativa) da convenção somente
se: (i) for, para além de determinante, também desculpável, na hipótese de erro (art. 48.º da CVDT);
ou (ii) tiver sido induzida ou provocada pela conduta fraudulenta da contraparte, no caso de dolo (art.
49.º da CVDT).
Analisando (i), deve-se, antes de mais, perquirir se era, aquando da celebração da convenção, possível
identificar o defeito nas válvulas. Negativa a hipótese, então o caso é de erro desculpável, a viciar o
consentimento nos termos do art. 48.º da CVDT. Sendo possível conhecer a existência do defeito,
então é o caso de questionar se uma diligência (razoável) quanto aos requisitos e propriedades técnicas
dos equipamentos poderia ter resultado na sua identificação e se o Estado B a empreendeu, relevando
aqui, igualmente, verificar se o representante oficial enviado por B reunia as condições e valências
(técnicas, sobretudo) necessárias à negociação e celebração de uma convenção com tal objeto. Não
tendo o Estado realizado as diligências que seriam de esperar ou/tampouco enviado um representante
apto para o efeito, o erro não pode ser qualificado como desculpável.
Examinando (ii), para caracterização de dolo deve estar demonstrada e comprovada a má-fé, a
intencional conduta (comissiva ou omissiva) de A no sentido de ludibriar B – não parecendo ser este o
caso, já que não há menção no enunciado neste sentido (muito embora haja espaço para fundamentada
argumentação, pois cogitável ter A conhecimento do defeito antes da celebração do pacto).
Concluindo-se que o erro é determinante e desculpável, o caso é de nulidade relativa da convenção,
ensejando que – não tendo havido sanação, pois B notificou imediatamente A do vício, tampouco
estando preenchidos os requisitos do art. 44.º da CVDT para divisibilidade – a convenção em sua
integralidade seja declarada inválida, de que decorrem, por força do art. 69.º, particularmente a alínea
a), da CVDT, fundamentos bastantes a que B não realize quaisquer pagamentos.
Ao revés, concluindo-se que o erro, apesar de determinante, não é desculpável; e que não há quaisquer
outros vícios (especialmente dolo), então a convenção é válida e, nos termos do art. 26.º da CVDT, a
obrigação de pagamento deve ser satisfeita por B.
O incumprimento de tal obrigação é ato internacionalmente ilícito, imputável ao Estado B, a
ocasionar, direta e imediatamente, danos a A – i.e., responsabilidade internacional.
B, contudo, alega encontrar-se numa “situação económica particularmente difícil”, convocando a
normativa do art. 25.º do projeto de artigos da CDI, relativa ao estado de necessidade – o qual somente
poderia afastar a responsabilidade internacional se preenchidas todas as condições dos n.ºs 1 e 2.
Analisando-as, é de questionar, desde logo, se o não pagamento dos 1.000 ventiladores é a única forma
de B salvaguardar um interesse essencial contra um perigo grave e iminente (n,º 1, a). E isto porque,
nada obstante a situação pandémica (circunstância que, aliás, satisfaz, pela sua imprevisibilidade, o
requisito do n.º 2, b), somente cotejando as forças económico-financeiras do Estado com o montante
devido a A seria possível verificar se há, efetivamente, insolvência estadual em dimensão tal a
ocasionar um perigo (grave e iminente) de falhanço e/ou paralisação de serviços públicos essenciais
caso realizados os pagamentos a A; e, mais, se tal incumprimento seria o único meio de salvaguardar
os interesses em causa.
Também relativamente ao n.º 1, b), seria necessário conhecer as forças económico-financeiras de A,
de modo a verificar se o incumprimento não comprometeria gravemente interesse essencial deste
Estado. Finalmente, perquirir se a convenção não afastou, ela própria, a possibilidade de invocar
estado de necessidade (n.º 2, a).

b) - Supondo que ambos os Estados (A e B) haviam subscrito a cláusula facultativa de


jurisdição obrigatória, poderia o Tribunal Internacional de Justiça apreciar o caso, sabendo-se que A o
havia feito em 2015, por um período de 5 anos, excluindo da sua aceitação da jurisdição do Tribunal
os conflitos relativos a convenções internacionais? Justifique.
O encontro de duas vontades unilateralmente manifestadas pela subscrição da cláusula facultativa de
jurisdição obrigatória do Tribunal (art. 36.º, n.º 2, ETIJ) satisfaz, inequivocamente, o princípio da
consensualidade.
Porém, considerando que a subscrição da cláusula por A fez-se com reservas (temporal e substantiva),
é fundamental analisar se a propositura da ação por B far-se-á, ainda, no decurso do prazo de 5 anos –
caso contrário, poderá A suscitar uma exceção preliminar ratione temporis; e se o objeto da lide não
está excluído, por força da reserva substantiva, do âmbito da jurisdição do Tribunal – caso em que
poderá A suscitar uma exceção preliminar ratione personae.
Ajuizando B a ação após o prazo de 5 anos determinado por A aquando da subscrição da cláusula e
não sobrevindo acordo especial nem aceitação tácita, tampouco havendo prévio compromisso
convencional ou cláusula compromissória na convenção celebrada pelas partes de submissão de
conflitos ao Tribunal, então não parece que o TIJ possa apreciar o caso.
Quanto ao objeto, dada a reserva substantiva realizada por A no sentido de excluir os conflitos
relativos a convenções internacionais (e apesar de haver fundamentos para argumentar em diverso
sentido), seria suscitável exceção preliminar ratione personae caso B ajuizasse uma ação para ver
declarada a nulidade relativa da Convenção – embora o problema não se coloque na eventualidade de
ser A o autor de uma ação dirigida ao reconhecimento da responsabilidade internacional de B, pois
que tal seria do interesse processual daquele Estado.
Em qualquer hipótese, nos termos do art. 36.º, n.º 6, ETIJ, “Qualquer controvérsia sobre a jurisdição
do Tribunal será resolvida por decisão do próprio Tribunal”.
(8 val.)

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