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Revista Movimentos Sociais e Dinâmicas Espaciais, Recife, V. 8, N.

1, 2019 (140-159)

ISSN: 2238-8052
Volume 8, Número 1 (2019)
https://periodicos.ufpe.br/revistas/revistamseu

O HABITAR NO ESPAÇO GEOGRÁFICO: UMA BREVE DISCUSSÃO SOBRE O


PERCURSO HISTÓRICO DAS POLÍTICAS HABITACIONAIS BRASILEIRAS
(1840 – 2019)

THE DWELL IN THE GEOGRAPHICAL SPACE: A BRIEF DISCUSSION ABOUT THE


COURSE HISTORICAL OF BRAZILIAN HOUSING POLICIES (1840 – 2019)

Ana Karoline de Carvalho SILVA1


Manuela Maria Pereira do NASCIMENTO2

Artigo recebido em 29/04/2019 e aceito em 01/07/2019

RESUMO
Palavras-chave: O habitar é uma ação inerente ao ser, e a partir disso, deve ser compreendido enquanto
Espaço geográfico, objeto e ação simultâneos na reprodução do espaço. No Brasil, a situação e o lugar onde
Habitação, se habita foram negligenciados, até o momento em que os governos, por caminhos
Políticas de controversos, e o Estado, compreenderam que o ato de habitar é uma das necessidades
Habitação Social primárias da sociedade, sendo, portanto, reconhecido como um direito social por meio
Brasileiras. da constituição de 1988. Este artigo tem por finalidade uma discussão de como tem sido
promovido o direito social do habitar no Brasil. Para tanto, foi observado o processo do
habitar no espaço geográfico como elemento essencial para a reprodução do/no espaço,
e aliado a isso, foram retomados os principais governos brasileiros e suas principais
medidas relativas as políticas habitacionais do país, desde o período designado Segundo
Reinado (1840-1888) até a atualidade (2019). Por fim, foram tecidas breves
considerações acerca do cenário atual da habitação social brasileira.

ABSTRACT
Keywords: The dwell is an inherent action of being, and from that, it must be understood as a
Geographical Space, simultaneous object and action in the reproduction of space. In Brazil, the situation and
Habitation, the place where they live have been neglected until the moments that the governments,
Brazilian social through controversial ways, and the State, have understood that the act of dwelling is
housing policies.
one of the primary needs of society and is therefore recognized through of the
constitution of 1988 as a social right. This article aims at a discussion of how it is
promoted the social right of dwelling in Brazil. For that, the process of dwelling in
geographic space was observed as an essential element for spatial reproduction, and
allied to this, were taken up main Brazilian governments and their main measures
regarding the housing policies of the country, from the period designated Segundo
Reinado (1840-1888) until nowadays (2019). Finally, brief considerations were made
about the current scenario of the Brazilian social habitation.

1 Bacharela em Geografia pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE (2018). Discente do curso de Licenciatura em
Geografia pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE (2019). Atualmente, é pesquisadora no Grupo Movimentos
Sociais e Espaço Urbano (MSEU) e membra da Empresa Júnior do Departamento de Ciências Geográficas da UFPE, SIGAGEO
Jr. E-mail: karolcarvalho869@gmail.com.
2 Doutora em Desenvolvimento e Meio Ambiente – PRODEMA (UFPE). Pesquisadora no Grupo de Pesquisa Movimentos

Sociais e Espaço Urbano (MSEU). E-mail: manuelanascimento@yahoo.com.br.

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1 INTRODUÇÃO

O espaço preexiste a vida. Mas o homem, a partir de sua existência, além de se adaptar às
intempéries encontradas no espaço, aprendeu a organizá-lo de maneira a servir como suporte para a
resolução das suas necessidades e intencionalidades, seja por questões de sobrevivência, ou de
domínio sobre o território, e consequentemente, sobre os outros seres.
Enquanto sobrevivência, é justificável que após o comer e o beber, o ato mais básico, natural, e
necessário a vida, é o de habitar, que também é ligado ao domínio. Domínio da moradia em que se
habita, do seu lugar, que se expande para o terreno da moradia e se choca com o domínio público do
entorno, que ao mesmo tempo, é de todos os que ali habitam (e não habitam mas fazem uso de outras
maneiras) e de ninguém em especial. Onde a esfera do individual esbarra com o coletivo, mas nem por
isso, deixa de fazer parte do habitar de cada um que ali existe/sobrevive. O entorno também faz parte
do Estado, mas muitas vezes deixa sua influência marcada na falta de ações, ao não conceder as
mínimas condições para uma população se manter.
É com base nas controversas práticas associadas ao habitar, que este artigo se justifica,
propondo em uma abordagem teórica, a partir da geografia, mostrar como a habitação é essencial para
a construção das relações no espaço. Observou-se também, em que medida o Estado, os governos e a
população, entendem essa importância e traçam caminhos, ao longo do tempo, que ora aproximam a
sociedade da conquista de seu direito básico, ora afastam-na dele.
Para tanto, realizou-se pesquisa bibliográfica em livros, artigos, periódicos e matérias online da
imprensa brasileira sobre o entendimento do espaço geográfico e da questão habitacional no Brasil,
que foram associados ao levantamento histórico de informações sobre as principais medidas políticas
no âmbito habitacional do país. Dessa forma, este artigo parte primeiramente do processo que
configura o habitar no espaço geográfico, para em seguida, analisar a relação temporal entre o Estado,
os governos e os movimentos sociais, na efetivação do direito social de habitar no Brasil, bem como ele
vem sendo promovido, elevando algumas considerações acerca do atual cenário brasileiro.

2 AS RELAÇÕES DO HABITAR NO ESPAÇO GEOGRÁFICO

O espaço geográfico é uma categoria que há muito tempo é discutida nas ciências humanas,
especialmente na Geografia e sua concepção modificou-se consideravelmente no decorrer das diversas
correntes de pensamento. Compreender o espaço é se deparar com a sua complexidade e totalidade,
através das dinâmicas inseridas nele e realizadas a partir dele.
Ao seguir a linha de modificação desta categoria em relação às correntes de pensamento, tem-
se o espaço, na Geografia Tradicional, como um receptáculo de coisas que não dependeria de nada
para existir. Na corrente Crítica ou Radical, ele evolui para um conjunto de sistemas de objetos e ações

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intrínsecos e contrastantes, que possibilitariam a reprodução das relações sociais de produção. Nas
correntes seguintes, Geografia Humanista e Cultural, tem-se o destaque do espaço como o vivido,
valorizado por crenças, e o estabelecimento de laços afetivos que configuram a diferenciação de suas
partes. Ao final, compreende-se que o conceito evoluiu de receptáculo, único, comum e não real, para
um sistema de objetos e ações que é base para reprodução das relações sociais, ao passo que é
contraditório e torna-se, portanto, dotado dos mais diversos significados para cada realidade
vivenciada no tempo e na história, seja pessoal ou coletiva (CORRÊA, 2014; SANTOS, 2006).
O espaço também pode ser questionado e formulado a partir da existência da vida. Numa
abordagem entre o existencialismo e a fenomenologia, o filósofo Alemão Heidegger (1954) traz o ato e
o significado do verbo habitar, por via de um remonte do ponto de vista linguístico, que contribui
significativamente com a visão geográfica sobre a habitação, relacionando-a inclusive ao conceito de
espaço.
O habitar (wohnen) para Heidegger é “ser e estar sobre a terra” (1964, n.p.) e deriva do gótico
“wunian”, que se refere a permanecer de modo a estar em paz. Indo mais além, o autor busca o
significado da palavra paz (friede) e livre (freie) que remontam à ideia de preservado de ameaça,
resguardado.
Resguardar não é simplesmente não fazer nada com aquilo que se resguarda.
Resguardar é, em sentido próprio, algo positivo e acontece quando deixamos alguma
coisa entregue de antemão ao seu vigor de essência, quando devolvemos, de maneira
própria, alguma coisa ao abrigo de sua essência, seguindo a correspondência com a
palavra libertar (freien): libertar para a paz de um abrigo. Habitar, ser trazido à paz de
um abrigo, diz: permanecer pacificado na liberdade de um pertencimento, resguardar
cada coisa em sua essência. O traço fundamental do habitar é esse resguardo. O
resguardo perpassa o habitar em toda a sua amplitude. Mostra-se tão logo nos
dispomos a pensar que ser homem consiste em habitar e, isso, no sentido de um de-
morar-se dos mortais sobre essa terra. (HEIDEGGER, 1954, p. 03)

Ao relacionar a ideia de habitar a construir, Heidegger (1954) procura as origens da palavra


construir no alto-alemão e faz um paralelo, que excede o plano do entendimento de que construir é
apenas edificar, e que edificar uma casa, seja a única relação com o habitar. “Bauen” significava
construir no sentido de edificar e, concomitantemente, proteger e cultivar. Dessa forma, tem-se a
compreensão de que edificar seria produzir, gerar um ‘produto final’, e além disso, proteger
(resguardar) e cultivar, que correspondem a “cultivar o campo, cultivar a vinha. [...] cuidar do
crescimento que, por si mesmo, dá tempo aos seus frutos” (HEIDEGGER, 1954, n.p.). Nessa concepção,
ocorre um ciclo em contínuo crescimento, que nunca acaba enquanto um produto final, mas sim, evolui
e começa novamente. Uma palavra com duas ideias opostas, que, no entanto, se complementam.
Considera-se que esse entendimento de Heidegger (1954), sobre o habitar e a habitação no
espaço, assemelha-se ao conceito de espaço adotado pela geografia crítica, em que “ não é nem ponto
de partida (espaço absoluto), nem ponto de chegada (espaço como produto social)” (CORRÊA, 2014),
mas está numa constante relação entre si e os objetos, transformando-se sem haver um fim prescrito.

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A abordagem da geografia crítica defende que o espaço apenas pode ser analisado por suas próprias
categorias, que segundo Santos (1985) são chamadas de forma, função, estrutura e processo. Abaixo
segue uma tentativa de aplicar estas categorias espaciais de maneira simples e concisa para a análise,
por exemplo, das habitações operárias construídas por ordem dos proprietários das fábricas (durante
o século XIX), com a finalidade de “atender” as demandas por moradia dos trabalhadores, e
aumentarem a produtividade sem precisar investir nos salários:
a) a forma seria o aspecto exterior de um ou mais objetos localizados numa área,
configurando um padrão, como casas de vila operária, por exemplo. Com uma pequena
sala, um quarto, um banheiro e uma cozinha;
b) a função refere-se ao que o objeto seria atribuído, ou seja, qual a sua serventia para a
forma. Em relação à casa, seria a habitação de operários de uma fábrica ou indústria, de
forma que desse suporte às condições básicas como se alimentar, dormir, e satisfazer
outras necessidades físicas. Apenas resguardar (ainda que de maneira incipiente e até
insalubre) os corpos físicos;
c) a estrutura é a maneira na qual a forma e a função do objeto estão inter-relacionadas. A
forma e a função são assim devido ao espaço-tempo em que estão inseridas. No caso das
casas de vilas operárias, a sua única função era a de funcionários habitarem próximo às
indústrias, de modo a otimizarem o seu tempo de trabalho em relação ao deslocamento
tanto para casa, quanto para instituições sociais que moldavam a sociedade e os seus
valores daquele tempo (igrejas, escolas), comércio e demandas sociais e familiares. Com
isso, é possível perceber que a estrutura não apenas determina, como também limita o
meio e a classe social aos quais os trabalhadores são pertencentes;
d) o processo é a ação que sempre é realizada e que pretende algum resultado, indicando
transformação no decorrer do tempo. O processo está em contínua mudança. Hoje, quase
não mais existem as vilas operárias com as mesmas formas, funções e estruturas de
antigamente. E com a diversidade e inovação de serviços (formais e informais), gerados
pela demanda de mercado, existem pessoas que fazem da sua moradia o seu local de
trabalho, o que por si só, quebraria com o posto de ter a única função de atender as
demandas físicas do corpo.
Com isso, é necessário ter cuidado com o emprego dessas categorias, pois deverão ser
utilizadas em seu conjunto, como uma totalidade para compreender melhor a complexidade da
realidade. Caso contrário, segundo Corrêa (2014), a autonomia dada às análises isoladas, incidirá em
observações parciais da realidade.
De volta à ideia sobre o que representa o construir (bauen), o ser humano alcança parte do
sentido da palavra habitar, ao entender que “o homem é à medida que habita” (HEIDEGGER, 1954).
Ainda que uma ponte, uma rodovia, um navio, ou um espaço público sejam produtos finais de um

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construir (edificar), não deixam de fazer parte do nosso habitar. Mesmo que não sejam parte de uma
residência, pela simples lógica de estarem inseridos no cotidiano (habitual), esses produtos são
orientados para o conjunto das diversas atividades do homem ao possibilitar que este faça uso
relacionado, ao existir e estar sobre a Terra (HEIDEGGER, 1954; BAUTISTA, 2015). A partir disso,
compreende-se que a questão habitacional não se limita ao produto físico de uma casa, “mas envolve
também as condições coletivas e privadas, físicas, psicológicas, sociais e culturais da produção social
da moradia.” (CAMPOS, 2013, p. 53), configurando, assim, as condições necessárias para se habitar, a
tão falada “habitabilidade”. Essas condições são estabelecidas principalmente, a partir do acesso e
qualidade dos serviços urbanos, e da inclusão social da população no território, fatores determinantes
para a qualidade de vida da população.
Com a transformação semântica de “bauen” para o atual “buan” (palavra do alto-alemão usada
para dizer “construir”, mas ainda relacionada ao significado de habitar), os significados “proteger e
cultivar” foram perdidos, e com eles também a capacidade de se pensar sobre esta outra dimensão do
construir por trás de um habitar, a que seria o “traço fundamental do ser-homem” (HEIDEGGER,
1954). Um construir e habitar que envolviam simbolismos, crenças, noção de pertencimento, respeito
e harmonia, alinhando e constituindo uma organização espacial (que considerava a importância do
lugar no espaço). A partir daqui, percebe-se com clareza a aproximação direta com o espaço da
geografia humanística e cultural, principalmente pela importância do lugar no espaço, até o ponto de
Heidegger (1954, n.p) afirmar que “os espaços recebem sua essência dos lugares e não ‘do’ espaço”.
Embora o lugar, para Heidegger (1954), exerça uma grande influência sobre o habitar no
espaço, esta compreensão que parte do indivíduo, da sua morada para o mundo, deriva tanto da
apropriação do espaço feita por este indivíduo/ator, quanto por um coletivo (atores).
Para Raffestin (1993), a apropriação do espaço, seja este concreto ou abstrato (representativo),
acontece por meio das mais diversas relações de poder que resultam na formação de um território.
Esse, por sua vez, deve ser pensado enquanto um produto, uma consequência complexa, entre a
relação do homem com o ambiente ao qual está inserido. Essa consequência, possui diversas
dimensões que se configuram como reflexos da soma entre as intenções e os projetos de múltiplos
atores, que muitas vezes são antagônicos, o que potencializa o desenvolvimento de lutas e conflitos
territoriais.
Carlos (2007, p. 111) corrobora com a ideia de apropriação, ao escrever que “O ato de ‘habitar’
está na base da construção do sentido da vida, que acontece por meio dos modos de apropriação dos
lugares da cidade a partir da casa, constituindo a vida cotidiana enquanto prática socioespacial.”. Dessa
forma, as relações pessoais, o cotidiano, as crenças, a essência dos lugares, são produtos da vivência,
experiência e percepção constituídas pela apropriação humana sobre o espaço.
As intenções e projetos, enquanto práticas sociais debruçadas sobre o espaço, originam as
diversas territorialidades praticadas pelos sujeitos. Quando postas em contato, as diferenças tornam-

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se evidentes, e por mais que sejam encontrados laços de identidade que tentem homogeneizá-las em
relação ao território, a existência de uma fronteira de alteridade (relação com o que lhe é externo)
entre estas identidades territoriais e territorialidades será contínua (SERPA, 2009).
A categoria em epígrafe, mantém uma relação contraditória com espaço dominado. Se a
apropriação segue a lógica de usar e ocupar, a normatização da dominação estabelece por vezes quais
usos e quais ocupações podem e devem ser feitas. O poder de quem domina, na maioria das vezes não
está em consonância com a população como um todo, mas sim com alguns grupos seletos da
sociedade. Esse fato faz da produção do espaço urbano o resultado de uma mistura e disputa de
interesses públicos e privados (este último se sobressai), que são visíveis no nosso entorno, por meio
da instalação e desenvolvimento de empreendimentos e atividades que impactam, direta e
indiretamente, o modo de vida das pessoas que habitam ou convivem no local ou próximo.
Dessa forma, a Carlos (2001) justifica que a produção do espaço é marcada pela dominação
política, pela acumulação do capital e, por fim, pela realização da vida humana. A primeira se refere as
ações do poder da administração municipal e das elites que produzem os espaços públicos, privados e
indefinidos, como resposta tanto aos interesses públicos quanto aos privados. A acumulação do capital
se dá através da reprodução e circulação deste, mediante a especulação e produção imobiliária, que
incita a compra e o consumo de formas e conteúdos modernos em detrimento de outras “obsoletas”. E
em último nível, mas não menos importante, encontra-se a realização da vida humana que se traduz
nas práticas cotidianas, relacionadas ao lazer, consumo e circulação. Com isso:
O sentido de utilidade invade a vida, redefinindo-a com imensas perdas, pois os
homens tornam-se instrumentos no processo de reprodução espacial, e suas casas se
tornam mercadorias passíveis de serem trocadas ou derrubadas (em função das
necessidades do crescimento econômico, que tem na reprodução do espaço urbano
condição essencial da acumulação hoje). (CARLOS, 2007, p. 111)

Sobarzo (2006) afirma que a dominação política da elite dominante pode ser efetuada
mediante a um duplo poder sobre o espaço, primeiramente através da propriedade privada do solo e
depois, pelo poder municipal, que reafirma e legitima os seus interesses na medida em que intervém
no município, corroborando com a hierarquia de lugares e surgimento de novas centralidades. Logo, a
relação entre o poder municipal, o espaço urbano e a dominação política, é analisada tanto na
perspectiva do poder no espaço, quanto do poder do espaço. O poder municipal é exercitado para
controle do espaço (poder no espaço) por meio da definição e modificação de regulamentos acerca de
“uso e ocupação do solo, as definições sobre a política tributária, a implementação de infraestrutura,
serviços e investimentos (SOBARZO, 2006, p. 97)”. Porém, é o poder do espaço, enquanto
consequência das desigualdades e contradições, que facilita ou dificulta o meio em que a dominação
política (através do controle da sociedade) será dada.
A solução para a influência do poder municipal (enquanto Estado na sua instância local) e da
elite no acirramento das desigualdades e contradições inerentes ao capitalismo, encontra-se na

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apropriação dos espaços públicos e na pressão exercida, pelas classes desfavorecidas sobre o Estado,
para a conquista e acessibilidade de seus direitos. Garantindo não só a acessibilidade de bens e
serviços essenciais, mas também a construção e reafirmação de sua cidadania (SANTOS, 2012).
Essa apropriação deve ocorrer por intermédio dos seus sentidos corporais em relação aos
lugares da cidade, ao entorno e no cotidiano das pessoas, de forma a conquistar primeiramente o lugar
para que possa conquistar o espaço. Ou seja, a apropriação espacial deve partir do lugar (casa, bairro,
praça, rua), enquanto escala local do espaço (micro-espaço do corpo), para poder fazer articulações
com outros locais e assim transformar o global (macro-espaço da globalização) (SOBARZO, 2006;
HARVEY, 1998; CARLOS, 2007). É aí que Heiddeger (1954, n.p), em sua reflexão sobre o espaço
receber a sua essência dos lugares, estabelece um sentido geográfico e apoia não só a apropriação do
lugar para compreensão e ação sobre o espaço, mas também para a construção do homem na medida
em que habita no espaço.
É a partir dessa primeira apropriação, originária do lugar e do entorno (bairro, rua, praça) no
cotidiano das pessoas, que são desenvolvidas as experiências e as noções de pertencimento e
reconhecimento do lugar e do homem a ser construído. A partir daí, também se reconhecem as
diferenças, percebidas como injustiças sociais, que acabam por produzir os conflitos materializados no
espaço urbano. Terreno fértil para o desenvolvimento de mobilizações sociais, que possuem a
superação dessas injustiças como principal objetivo, e então, do conflito, trazendo a possibilidade de
transformar a realidade (injusta e desigual) a qual está inserida (SOBARZO, 2006).

3 TRAJETÓRIA DA HABITAÇÃO SOCIAL BRASILEIRA: LEGISLAÇÃO, GOVERNOS E MOVIMENTOS


SOCIAIS NA EFETIVAÇÃO DO DIREITO DE HABITAR

Desde o início da formação das cidades brasileiras, as injustiças e desigualdades sociais no


planejamento urbano se fizeram presentes. Isso pode ser comprovado através do levante histórico
sobre como a dominação e a apropriação da propriedade da terra se desenvolveu sobre a perspectiva
habitacional. Segundo Nascimento (2014, p. 24), ao se considerar o “(...) comportamento do processo
de ocupação em seu aspecto temporal, têm-se evidências de como a cidade surgiu, desenvolveu-se e
quais os possíveis rumos que ela terá”.
Além da análise temporal do processo de ocupação, outra condição importante a ser
considerada, é como o Estado, enquanto agente de controle e provisão habitacional, se posicionou e se
posiciona frente às demandas relativas ao solo urbano, infraestrutura e serviços e finalmente as
moradias em si. Pretendendo, assim, reconhecer as tomadas de decisões que contribuíram tanto para a
diminuição das injustiças e desigualdades quanto para o acirramento entre elas na sociedade,
estimulando direta e indiretamente o surgimento de movimentos sociais populares que lutaram e
lutam em prol dos direitos sociais, concernentes à temática de uma vida urbana mais justa.

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A partir dessa pretensão, remontaremos os principais governos do Brasil e suas principais


medidas relativas as políticas habitacionais do país, iniciando do período designado Segundo Reinado
(1840-1888) até a atualidade (2019). Comentando suas medidas e relacionando-as aos
acontecimentos posteriores, para então adentrarmos na complexidade em que o tema habitacional
está inserido ao permear as esferas da sociedade, do Estado e do mercado, enquanto atores com
diferentes projetos e intenções sobre a utilização do espaço. Para tanto, montou-se uma linha do
tempo (Figura 1) a fim de nortear a discussão de maneira linear, fazendo suas correlações com outros
períodos quando possível.

Figura 1. Linha do tempo dos governos brasileiros e suas principais medidas no âmbito das políticas
habitacionais do país.

Elaboração: Ana Karoline de Carvalho Silva, 2019.

O primeiro fato importante a ser considerado na trajetória habitacional do Brasil inicia-se no


Segundo Reinado, quando houve a outorga da Lei de Terras em 1850, que possuía o propósito de
regular tanto as terras devolutas, quanto as aquisições de outras. Segundo esta lei, a única maneira de
se adquirir qualquer propriedade de terras era mediante a sua aquisição financeira, desconsiderando
assim, qualquer forma de apropriação, seja por uso ou por ocupação. Após 38 anos desta lei, a abolição
da escravatura entrou em voga, fato que incidiu no crescimento “informal” e periférico das cidades. O
crescimento foi dado pela busca de emprego nos núcleos urbanos pelos antigos escravos, os quais se

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assentaram precariamente nos seus perímetros, devido à impossibilidade financeira de adquirir


terrenos nas áreas centrais (HOLZ e MONTEIRO, 2008).
Somado a esse acontecimento, durante o mesmo período da abolição, aconteceu a primeira
explosão demográfica devido às atividades urbanas (indústrias têxteis, comércio, serviços e sistema
bancário) impulsionadas pela expansão do mercado de trabalho gerado através do complexo cafeeiro,
entre os anos de 1886 e 1900. O aumento dessas atividades urbanas estabeleceu a necessidade de
habitações próxima a elas. O que incidiu em uma crescente demanda por aluguéis de baixo custo
(cortiços, vilas operárias e correr de casas), por conseguinte insalubres, que possuíam como origem a
autoconstrução, ou então, a produção sob responsabilidade do setor privado3. É neste período, que é
marcada a primeira intervenção estatal sobre as condições de moradias. Intervenção esta, autoritária e
de caráter higienista, que buscou normatizar e homogeneizar tanto os espaços públicos, quanto o
comportamento da sociedade por via do controle sanitário das habitações, da legislação e de códigos
de postura. (BONDUKI, 2004).
Apenas no governo Vargas (1930-1945) é que o Estado começa a intervir nacionalmente no
setor habitacional por artifício das Carteiras Prediais (1937), que tinham como objetivo principal
reorganizar o setor previdenciário e oferecer assistência médica, e em segundo plano tratar da questão
habitacional. Logo depois, em paralelo, outra intervenção se fez necessária. Devido ao projeto
nacional-desenvolvimentista, o governo enxergou a habitação popular como peça central para se
legitimar e continuar no comando nos anos posteriores.
Primeiro, a habitação vista como condição básica de reprodução de trabalho e,
portanto, como fator econômico na estratégia de industrialização do país; segundo, a
habitação como elemento na formação ideológica do “homem novo” e do trabalhador
padrão que o regime queria forjar, como sua principal base de sustentação política.
(BONDUKI, 2004, p. 73)

A outra intervenção se deu face a dois problemas: a regulação do livre mercado imobiliário e
de aluguéis, que ditava os preços e formas das habitações como resposta ao poder delegado e falta de
interesse dos governos anteriores; e as autoconstruções precárias em loteamentos irregulares nas
periferias em consolidação, ocasionadas pelo baixo preço das terras em detrimento dos altos preços
no centro urbano. Dessa forma, o Estado criou como instrumentos para resolução dessas questões, o
Decreto-Lei Nº 58, regulamentando as vendas e prestações dos lotes urbanos, e o Decreto-Lei do
Inquilinato, que visava congelar os preços dos aluguéis, que foram aplicados ainda sob a continuidade
das Carteiras Prediais (BONDUKI, 2004; BEZERRA, 2014; NASCIMENTO, 2014).
A seguinte intervenção estatal a ocorrer foi a criação da Fundação Casa Popular – FCP (1946),
após o período do Estado Novo. Embora tivesse sido planejada como política redistributiva, ao ser
aplicada, transformou-se em clientelismo político, e no fim, os Institutos de Aposentadorias e Pensões

3A primeira produção habitacional pública foi construída em 1906 no Rio de Janeiro (ainda Distrito Federal naquele tempo)
como resultado de uma resposta política as críticas recebidas pelo governo de Pereira Passos, que despejou milhares de
pessoas para a construção da Avenida Central (BONDUKI, 1994; 2004).

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– IAP (construídos a partir das Carteiras Prediais), acabaram por produzir mais moradias que a FCP
(BEZERRA, 2014).
Durante o Regime Militar (1964-1985) foi criada uma estrutura nacional que substituiu tanto
os IAP, quanto a FCP. Ela era composta pelo Banco Nacional da Habitação – BNH (enquanto órgão
financiador da estrutura), Sistema Financeiro de Habitação - SFH, e Fundo de Garantia por Tempo de
Serviço – FGTS. Tais instituições assumiram papéis importantes na configuração da primeira política
nacional de habitação popular em 1966, que era predeterminada para famílias com renda de até três
salários mínimos. Porém, até o final do período, 70% das unidades que tinham sido construídas foram
encaminhadas a grupos familiares com rendas mensais superiores a cinco salários mínimos. Os
pequenos poupadores de caderneta de poupança, e os assalariados que participaram através do FGTS,
acabaram financiando essa política, que redistribuiu a renda para os grupos mais abastados da
sociedade (REIS, 2013; NASCIMENTO, 2014; BEZERRA, 2014). Dentre as principais críticas ao BNH
estiveram o abandono da questão social, a desarticulação entre os projetos habitacionais e a política
urbana, as construções em terrenos com níveis irregulares e em áreas afastadas do centro urbano,
padronização excessiva e a desconsideração das peculiaridades regionais. Tais queixas levaram à
extinção do Banco Nacional de Habitação em 1986. (MELCHIORS, 2016).
Durante esse mesmo período, entre os anos de 1970 e 1980, começaram a se rearticular
nacionalmente alguns movimentos sociais urbanos, compostos por militantes derivados de diversas
instâncias civis e públicas, desde moradores representando seus bairros, a acadêmicos e técnicos que
tratavam da temática urbana. Tomados pela finalidade de reverter o quadro de desigualdade social em
que o país se encontrava, suas reinvindicações tornaram-se cada vez mais visíveis ao passo que
acontecia uma abertura política lenta e gradual (JÚNIOR e UZZO, 2010).

[...] Os vinte e um anos de ditadura e seus programas governamentais tradicionais


direcionaram os profissionais envolvidos com a questão para exercerem sua cidadania
em parceria com os movimentos populares, sobretudo os urbanos. Arquitetos e
urbanistas e suas entidades sindicais, comprometidas com a socialização da profissão,
fazem parte expressiva dessas iniciativas que, aos poucos, se projetam junto às
camadas populares carentes de habitação, infraestrutura e terra para construir seus
habitat (BORGES et al., 2010, p. 415 - 416).

Em 1985, foi retomado o Movimento Nacional pela Reforma Urbana, composto por esses
diversos atores da sociedade, que se encarregaram de desenvolver uma proposta de lei para a
Assembleia Nacional Constituinte. A proposta deveria contribuir para a resolução do perfil excludente
das cidades, indo de encontro aos pilares da questão urbana – Saneamento, habitação, transporte e
ocupação do solo urbano, de maneira a conceber o acesso à cidade como um direito a todos os seus
habitantes. Para tanto, foi-se articulada a participação popular brasileira como forma de atender as
reais demandas do povo (JÚNIOR e UZZO, 2010).

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Em 1988 foi promulgada uma nova Constituição Federal do Brasil - CF, que tornou o acesso à
moradia um direito social e estabeleceu a função social da propriedade como principal ponto a ser
trabalhado por uma política de desenvolvimento urbano a ser criada (BRASIL, 1998), conquistas
engendradas graças as contribuições do Movimento Nacional pela Reforma Urbana, que foram
convertidas nos artigos 182 – que determina a função social da propriedade, e 183 – que configura o
usucapião urbano.
Porém, apesar desses avanços, as temáticas relativas a direitos sociais que se encontram na
Constituição apenas são possíveis de serem resolvidas considerando a cobrança e construção de
políticas públicas pelo legislador constituído, e isso não seria diferente na questão dos direitos sociais
relativos a habitação. Segundo o especialista em direito constitucional, José Afonso da Silva (2012), os
referidos direitos sociais estão inseridos constitucionalmente como normas de eficácia limitada
(fraca), de princípio programático. Ou seja, as quais o constituinte aponta os princípios a serem
seguidos pelos órgãos legislativos, executivos, jurisdicionais e administrativos. Entretanto, essas
normas não têm caráter de eficácia total, nem imediata, por dependerem “de uma ação legislativa
infraconstitucional, ou de ação de adequação para seu integral cumprimento (SILVA, 2012, p. 121)”, ou
seja, formulação de leis complementares à CF (estando hierarquicamente abaixo da Constituição). Por
isso é tão necessária a Política Nacional de Habitação, e com ela, a sua revisão conforme períodos de
governos decorridos.
Nesta mesma década de 80, após a promulgação da CF, houve uma descentralização
administrativa (municipalização) das políticas urbanas, e mais especificamente das habitacionais, que
agravaram o caso dos municípios que não possuíam estrutura administrativa e nem quadro técnico
para viabilizar a construção de habitações, o que acarretou numa diminuição no volume de
construções (REIS, 2013; MELCHIORS, 2016). Nesta situação, o governo brasileiro em acordo com a
Caixa Econômica Federal - CEF criou programas como o PRÓ-MORADIA e PRÓ-SANEAMENTO, mas
que não possuíram o sucesso e abrangência esperados (NASCIMENTO, 2014; MELCHIORS, 2016).
Então, no governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) foi implantada a Política Nacional de
Habitação – PNH.
Criada em um contexto das lutas sociais4, a PNH propôs a integração da habitação à
produção da cidade preconizando como fundamental não apenas o acesso à
infraestrutura, mas o reconhecimento da função social da terra e a necessidade de
criar mecanismos que estimulassem a participação coletiva nos processos decisórios
(CAMPOS; MENDONÇA, 2013 apud MELCHIORS, 2016, p. 204).

É a partir dessa política que foram criados novos programas como o Habitar-Brasil (único
programa financiado com o Orçamento Geral da União), Pró-Moradia (voltado para a recuperação de
áreas degradadas e de pobreza extrema), Programa Carta de Crédito (concedia financiamento direto a

4 “[...] paralelamente à implantação da PNH, o Instituto Cidadania desenvolveu o Projeto Moradia, que acabou influenciando
nacionalmente o desenvolvimento da questão habitacional.” (MELCHIORS, 2016). Luiz Inácio Lula da Silva coordenou esta
instituição não governamental enquanto candidato à presidência em 2000.

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famílias através de recursos do FGTS) e o Programa de Arrendamento Residencial – PAR (que também
possuía o FGTS enquanto financiador, mas possuía a novidade de ter o arrendamento como opção de
compra), que embora visassem o foco do problema habitacional, que eram as classes baixas,
direcionaram apenas 10% do volume dos recursos para programas que lidavam com essa expressiva
parcela da sociedade. Apresentou como principal falha, a exclusão de municípios que não possuíam
estrutura técnica e institucional suficiente para os critérios designados nesses programas (pois eram
critérios únicos para municípios de regiões metropolitanas, municípios de médio e pequeno portes e
exteriores a esta), outro fator que condicionou esta exclusão foram os métodos burocráticos adotados
pelo Estado e CEF, para aprovar e liberar as verbas aos municípios, provocando a disputa entre eles
enquanto privilegiava outros (REIS, 2013; NASCIMENTO, 2014; MELCHIORS, 2016).
Em 2001, por intermédio do Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001), foram estabelecidas as
diretrizes gerais para a política urbana brasileira, que possuíam como finalidade a execução por parte
de todos os municípios brasileiros acima de 20 mil habitantes por intermédio de um Plano Diretor
Municipal. É através do Estatuto que cada município também se torna responsável pelas
determinações face ao uso e à ocupação do solo, apresentando dentre os vários instrumentos para a
efetivação do planejamento municipal, a instituição de áreas destinadas às Zonas Especiais de
Interesse Social - ZEIS e o recolhimento de Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana -
IPTU (BRASIL, 2001).
Em 2003, no governo de Lula, foi criado o Ministério das Cidades - MinC, como órgão
coordenador, gestor e formulador da política tanto urbana quanto habitacional, que trabalhando em
cima da tríade habitação-saneamento-transporte, instituiu secretarias nacionais e programas relativos
a cada elemento da tríade. A criação o MinC surge como reflexo também das lutas de movimentos
sociais, que aliados a técnicos urbanos e acadêmicos participaram do Fórum Nacional da reforma
Urbana como maneira de criar um espaço urbano mais justo e menos desigual para a população
(AKAISHI, 2011; BEZERRA, 2014; NASCIMENTO, 2014; MELCHIORS, 2016). No mesmo ano, o MinC
instalou o Conselho Nacional das Cidades, através da Conferência Nacional das Cidades, que objetivou
assessorar, estudar e propor diretrizes para a execução de uma nova política urbana nacional. E é a
partir dessas diretrizes, que foi desenvolvida e aprovada a mais recente Política Nacional de Habitação
- PNH, em 2004 (BRASIL, 2004; AKAISHI, 2011), e foram criados tanto o Sistema Nacional de
Habitação de Interesse Social – SNHIS, quanto o Fundo Nacional de Interesse Social - FNHIS.
Em 2007, o governo lança, em paralelo, o Plano Nacional de Habitação – PlanHab e o Programa
de Aceleração do Crescimento – PAC. O primeiro (PlanHab), objetivou estabelecer um planejamento de
médio a longo prazo das ações públicas e privadas por meio do levantamento do perfil do déficit por
moradia, a demanda futura e a diversidade do território nacional (SNH, 2007); enquanto o PAC foi uma
estratégia para incentivar o crescimento econômico do país ao passo que “liberava recursos para ações
vinculadas a melhorias de infraestrutura nas áreas de saneamento, habitação, planejamento urbano e

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de transporte (rodovias, ferrovias e portos)” (MELCHIORS, 2016, p. 207). Com a crise econômica
mundial de 2008, o governo expandiu o crédito dos bancos como forma de continuar o investimento
sobre o PAC. Esta ação visou a criação de emprego e renda para movimentar a economia, ameaçada
pela crise, além de investir na diminuição do problema habitacional na medida em que introduzia o
Programa Minha Casa, Minha Vida – PMCMV, em 2009, mediante a uma parceria com a CEF (agente
operadora e financiadora do programa).

3.1 O PROGRAMA MINHA CASA, MINHA VIDA (PMCMV) ENQUANTO ATUALIDADE NA


HABITAÇÃO SOCIAL BRASILEIRA

O PMCVC possui duas categorias como subprogramas, o Programa Nacional de Habitação


Urbana (PNHU) e o Programa Nacional de Habitação Rural (PNHR), e quatro modalidades de negócio
que variam de acordo com os parceiros e a renda dos beneficiários: Oferta pública, Entidades,
Empresarial/FAR e Empresarial/FGTS. Em relação a PNHU, na fase inicial (a partir de 2009), o
programa construiu 1 milhão de moradias produzidas apenas pelo mercado imobiliário, sendo que
600 mil destas foram direcionadas à modalidade FGTS. Essa modalidade atendia à faixa de renda do
tipo 2 e 3, sendo apenas 40% dos recursos, direcionados à faixa 1 pela empresarial/FAR (AKAISHI,
2011; MELCHIORS, 2016) (TABELA 1).

Tabela 1. Metas das fases do Programa Minha Casa, Minha Vida.

FASE 1
FAIXAS Salários Mínimos Unidades Previstas
1 Até 3 (R$ 1.395 na época) 400.000
2 3-6 (R$ 2.790 na época) 400.000
3 6-10 (R$ 4.650 na época) 200.000
TOTAL Até 10 1.000.000
FASE 2
FAIXAS Renda (R$) Unidades Previstas
1 Até 1.600 1.200.000
2 1.600 a 3.100 600.000
3 3.100 a 5.000 200.000
TOTAL 2.000.000
FASE 3
FAIXAS Renda (R$) Unidades Previstas
1 Até 1.800 500.000
1,5 1.800 a 2.350 500.000
2 2.350 a 3.600 800.000
3 3.600 a 6.500 200.000
TOTAL 2.000.000

Fonte: CEF. Elaboração: FGV. Adaptado por: Ana Karoline de Carvalho Silva, 2019.

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Na segunda fase (a partir de 2011) o programa foi ajustado para atender a maior demanda, que
é a da faixa 1. A quantidade de Unidades Habitacionais - UH pretendidas foi de 2 milhões para os dois
subprogramas, das quais apenas 60 mil eram destinadas ao PNHR e o restante ao PNHU. Como
resultado dessa segunda etapa, a faixa 1 recebeu mais que 58% dos investimentos e construções em
UH. Tornando o programa ainda mais inovador, devido ao histórico político de medidas anteriores que
não conseguiram atender expressivamente a demanda populacional de baixa renda (AKAISHI, 2011;
MELCHIORS, 2016).
Porém, apesar do perfil inovador, o programa apresentou algumas pontas soltas no quesito
final, o de realização tanto nos projetos quanto nas construções. Em 2014 foram divulgados os
resultados de uma auditoria realizada pelo Tribunal de Contas da União – TCU (2014), solicitada pelo
Congresso Nacional, após a veiculação de matérias do Correio Brasiliense que apontavam
irregularidades em empreendimentos do PMCMV (Faixa 1, modalidade FAR) no Distrito Federal.
Como diagnóstico, em virtude da auditoria, foram encontrados os seguintes problemas: a)
defeitos ou vícios construtivos; b) inadequações nas dimensões, instalações e materiais empregados
na residência e indisponibilidade de equipamentos de lazer/uso comum; c) deficiências quanto à
pavimentação asfáltica, calçamento, drenagem urbana e sistema de esgoto sanitário ou pluvial; d)
ausência ou insuficiência dos dispositivos de acessibilidade para pessoas com deficiência ou
mobilidade reduzida; e) deficiência no projeto executivo; e f) ausência de equipamentos comunitários
nas proximidades do empreendimento.
Esses problemas eram apontados desde a primeira fase do programa (2009), e tornaram-se
frequentes na fase posterior (a partir de 2011). Embora não seja uma situação generalizada em todas
as obras do programa no Brasil, as maiores irregularidades são recorrentes e concentraram-se na
Faixa 1 – FAR (que atendia a população com renda até R$ 1.600,00 na época). Em relação a carência de
equipamentos e serviços, os moradores dos empreendimentos investigados apontaram como
principais déficits as áreas de lazer e recreação (79,8%), os equipamentos de Educação básica
(73,4%), equipamentos de saúde (70,2%), comércio local (68,1%) e transporte público (46,8%).
Equipamentos e serviços essenciais para o suporte e a manutenção da vida e das relações sociais no
espaço, configurando assim as condições necessárias de habitabilidade para essa população.
As recomendações do TCU foram direcionadas principalmente a gestores municipais, e a Caixa
Econômica Federal. Desde medidas visando a “eliminação de fatores fundiários, jurídicos, técnicos e
financeiros que limitam a contratação de empreendimentos em municípios com atendimento abaixo
do esperado em relação ao déficit habitacional (TCU, 2014, n.p.)” até questões como a disposição de
equipamentos comunitários no entorno de empreendimentos em que ainda são inexistentes, garantia
de que os projetos serão adequados às normas de acessibilidade, incentivo à oferta de terrenos pelos
municípios e por fim, que a Caixa identifique os vícios construtivos graves ou a utilização de métodos

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que não estão previstos nas normas técnicas para as construções, de forma a corrigir os eventuais
problemas relacionados a funcionalidade e vida útil das moradias, e na segurança delas e dos
moradores.
Em 2016, no segundo Governo de Dilma Rousseff, foi lançada a terceira fase do programa, que
teve por meta a entrega de 2 milhões de moradias até 2018. Nessa nova etapa, foi adicionada uma
outra faixa de financiamento (Faixa 1,5) destinada a famílias com renda até R$ 2.350,00, e houve
aumentos nos limites de renda das faixas restantes e no valor máximo dos imóveis (BRASIL, 2016;
MATOSO, 2016). Previu-se, naquele ano, investimentos de R$ 210,6 bilhões ao longo de 3 anos.
Medidas foram adotadas em relação as falhas anteriormente apontadas. Por exemplo, os aumentos nos
valores máximos dos imóveis cobriram as novas especificações mínimas estabelecidas para o
programa, como o aumento da metragem mínima de imóveis, que passou de 39 para 41 metros
quadrados, projetos realizados em forma de loteamento, arborizados, com ruas e calçadas obedecendo
a larguras mínimas de forma a comportar os fluxos e diferentes meios de locomoção, conexão com o
entorno e etc. Essas medidas vieram como resposta a algumas das críticas direcionadas a inserção
“segregada” dos empreendimentos às localidades, mas também, relacionadas as reais necessidades
dos beneficiários do programa, desde o interior da unidade habitacional até os espaços públicos
dentro do empreendimento e no seu entorno, e ainda o acesso à equipamentos e serviços públicos
como escolas, creches, unidades básicas de saúde, e etc.
Após o controverso processo de impeachment da Presidenta Dilma Rousseff, o vice-presidente
Michel Temer assumiu o governo, e entre os anos de 2016 e 2017 foram entregues apenas 1,17
milhões de moradias. Em 2017, Temer apenas cumpriu 13,5% da meta na entrega de moradias para
famílias inseridas na faixa 1, que era de 170 mil. A meta geral para o ano, 610 mil, também não foi
atingida, sendo entregues apenas 434.405 mil moradias. Como justificativa para o não cumprimento
das metas, estiveram na pauta tanto as mudanças em relação a seleção de empreendimentos, quanto
os sucessivos cortes no Orçamento federal (GADELHA & ALVES, 2018). Em 2018, a meta de
contratação do governo foi de 630 mil moradias, das quais, 130 mil para a faixa 1; 70 mil para a faixa
1,5; 400 mil para a faixa 2; e 50 mil para a faixa 3 (ISTO É, 2018). Em novembro de 2018, a Caixa
interrompeu o financiamento para faixa 1,5, como justificativa, a CEF informou que havia acabado o
recurso.
No início de 2019, no governo de Jair Bolsonaro, ocorreram fusões de pastas ministeriais do
governo. O Ministério das Cidades foi fundido ao Ministério da Integração Nacional, sendo formado
então o Ministério do Desenvolvimento Regional. Segundo o governo, o objetivo dessa fusão é de
integrar o desenvolvimento regional ao urbano, alinhando-os a um desenvolvimento produtivo. Com
isso, apesar das notórias especificidades do programa no contexto da habitação social e popular,
mercado imobiliário e transformações, positivas ou repensáveis, dos espaços de moradia brasileiros, o
PMCMV passa a fazer parte da mesma pasta que o projetos de outra natureza, como o de transposição

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do Rio São Francisco, e já iniciou o ano sob declarações de limitações orçamentárias, alegando-se que
são necessárias revisões e avaliações mais profundas sobre o programa (VALENTE, 2019).
Pouco tempo depois, Gustavo Canuto, o ministro do Desenvolvimento Regional, suspendeu as
contratações do “Minha Casa, Minha Vida” que tinham sido autorizadas nos últimos dias do governo
Temer em 2018. Eram 17,4 mil unidades habitacionais destinadas a população de baixa renda
distribuídas entre 12 estados, com expectativa de entrega em até 3 anos. Entre os destinos específicos,
estavam o Complexo de favelas do Alemão, no Rio de Janeiro, e a favela do Sururu do Capote, em
Alagoas (LIMA, 2019). Novas contratações também estão suspensas até segunda ordem, em qualquer
faixa e modalidade, a espera desse período de análise do governo.
As alterações nas pastas ministeriais e a desvinculação de secretarias a um ministério para a
vinculação a outro, justamente em período de transições de governo, é comum no cenário
governamental brasileiro. O problema é que mudanças como essas, comprometem o desenvolvimento
dos programas e projetos federais, que são em grande parte de médio a longo prazo. Eles acabam por
ficar em situação de “espera” até que a nova estrutura do governo seja finalizada e os ministérios e
suas secretarias, estejam todos a par da situação em que os referidos programas e projetos estavam
inseridos. Acarretando, dessa forma, como reflexo, períodos de instabilidade na construção de
políticas efetivas em nível federal. Fato semelhante ao que ocorreu entre 1985 até 2003, anos em que a
política de habitação perpassa por ministérios como o do Interior; Desenvolvimento Urbano;
Habitação, Urbanismo e Desenvolvimento Urbano; Habitação e Bem-estar Social; Interior, novamente;
Ação Social/Bem-estar Social; Planejamento e orçamento; Secretaria Especial de Desenvolvimento
Urbano (SEDU); e por fim Secretaria Nacional da Habitação, subordinada ao Ministério das Cidades
(CYMBALISTA e MOREIRA, 2006). Este período também apresentou sérias dificuldades no
desenvolvimento de programas e esquemas financeiros que precisavam de um caráter contínuo para
progredir.
De volta a situação atual, o governo é pressionado tanto por gestores municipais, quanto por
parlamentares e setores da construção civil, contrariados com a suspensão de novas contratações do
programa. A Câmara Brasileira da Indústria e da Construção (CBIC, 2019) já aponta que o setor da
construção civil começa a se alvoroçar por se sentirem prejudicados desde a suspensão de
financiamentos da faixa 1,5 por parte de Caixa Econômica Federal, em novembro de 2018. O setor, em
algumas cidades, já começou a desmobilizar canteiros de obras e dispensar uma estimativa de 20 a 30
mil funcionários entre os meses de janeiro e fevereiro de 2019.
Diante de tantas pressões, o Ministro da Economia liberou R$700 milhões para a pasta
ministerial do Desenvolvimento Regional, para custear as parcelas atrasadas e garantir as despesas do
programa até o final do primeiro trimestre de 2019, porém, sem nenhuma informação sobre as novas
contratações. Além da pressão política (prefeitos e parlamentares), e do Mercado (construtoras e

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imobiliárias), a pressão da sociedade mantém-se firme, principalmente na indignação, apesar de não


ser amplamente divulgada nos veículos midiáticos tradicionais.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS SOBRE OS PADRÕES OBSERVADOS NA POLÍTICA HABITACIONAL


BRASILEIRA

Em termos gerais, desde que o Estado passou a se ocupar com as questões relacionadas ao
bem-estar social, as políticas governamentais apresentadas como redistributivas, na maioria das
vezes, não conseguiram desvincular-se do clientelismo. Essa situação tornou-se mais evidente após o
governo Vargas. Suas ações direcionadas ao bem-estar social estavam diretamente relacionadas a uma
consciência de atar os laços do trabalhador com o Estado, para que este não apresentasse resistência
ao governo, ao passo que era o público-alvo na garantia de manutenção da elite e do Governo Vargas
no poder.
No Regime Militar, a quebra democrática, associada a alta burocracia estatal, mais uma vez
refletiu em políticas sociais de viés clientelistas. Nos períodos posteriores, principalmente na década
de 90, os movimentos sociais e sindicatos passaram a ter maior poder de participação e, de fato, as
políticas passaram a ser mais direcionadas à camada populacional mais vulnerável. Porém, também foi
o período em que houve maior apoio do mercado e do setor privado, que por um lado, ao contribuir
com o Estado para desburocratizar algumas partes, acabou por adquirir grande relevância no cenário
político.
Nos governos do Partido dos Trabalhadores, as parcerias voltadas principalmente na área da
habitação popular de mercado, juntamente com a forte institucionalização da habitação de interesse
social, atuaram como forças retardatárias a desembocadura de uma crise econômica no Brasil, iniciada
no exterior. Com o PMCMV, ao passo em que se impulsionou a geração de emprego e renda, o déficit
habitacional foi atacado de maneira mais incisiva do que em planos e programas anteriores. Porém o
setor privado (incorporadoras e construtoras) ao assumir o papel de parceiro, obteve carta branca
relacionada a construção dos projetos e elaboração dos empreendimentos, o que favoreceu o
desenvolvimento de um modelo de produção mais rentável (baixo custo e alto lucro) para esse setor,
nas faixas mais baixas do programa (1 e 1,5). O mesmo modelo também favoreceu a compra de
terrenos acidentados, distantes de equipamentos públicos e serviços básicos, além disso, a produção
em massa de empreendimentos uniformizados, não atendendo às especificidades das famílias e nem
dos locais.
Outra questão relevante é que nos últimos anos (2016-2018) as metas não foram cumpridas,
principalmente as relativas a faixa 1, onde está concentrada a maior demanda. Também é nessa faixa
onde o governo mais investe recursos do Orçamento Geral da União (aproximadamente 90% do valor
das unidades habitacionais), sendo, portanto, a faixa mais afetada quando se trata de cortes

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orçamentários do governo, já que as demais, possuem financiamento por parte do Fundo de Garantia
por Tempo e Serviço (FGTS).
Com a mudança de governo em 2019 e sua afinidade com a política de contenção de gastos
(derivada do período Temer e acentuada após o advento do governo Bolsonaro) é necessário atentar
para o risco de descontinuidade das políticas habitacionais, que já se vê atacada por três vias: a
primeira, direto na produção das moradias para a população que mais demanda, por receber recursos
diretos do OGU; a segunda, em relação às condições de habitabilidade, ao considerar que os serviços
públicos de saúde e de educação terão manutenção e expansão precária, após a Emenda Constitucional
nº 95 que instituiu o Teto dos Gastos Públicos durante 20 anos contados a partir de 2018; e por fim, o
mix de políticas, planos e programas importantes e que foram agregados a uma única pasta ministerial
(Ministério do Desenvolvimento Regional) que dividirão importância de maneira desigual,
aumentando a perturbação no cenário da habitação social que manteve-se em evolução positiva por
aproximadamente 18 anos (entre os Governos de Fernando Henrique, Luiz Inácio Lula da Silva e
primeiro mandato de Dilma Rousseff).
Por fim, ao confrontar-se a história das políticas habitacionais do país aos níveis de produção
do espaço geográfico, comprova-se que os interesses privados foram sobrepostos continuamente em
relação às demandas sociais e públicas ao longo do tempo. E nos últimos anos, o seu uso para o
enfrentamento de crises econômicas acarretou um protagonismo do setor privado de construção civil,
não se devendo, obviamente, deixar de lado os avanços em relação ao acesso à moradia para as
populações sem rendimentos ou faixas de renda mais baixas.
Devem ser avaliados, criteriosamente, efeitos territoriais e sociais do programa de um ponto
de vista específico para os locais de intervenção, agregando aspectos qualitativos aos dados gerais
financeiros ou numéricos, observando-se fatores tais como: a compra de terrenos irregulares e
distantes dos centros das cidades, a instalação das moradias e empreendimentos residenciais, a
disposição de equipamentos e serviços públicos (por parte do setor de construção e da administração
municipal), ou seja, os reflexos dos interesses do capital da construção civil e imobiliário privados que
incidiram sobre a realização do habitar e da vida da população, sobretudo em relação à mais pobre.
Entretanto, são esses mesmos interesses que influenciam na reação defensiva dessa classe
necessitada, fazendo com que esta aproprie-se do espaço pelas formas que lhe restam (ocupando-os e
cobrando o seu protagonismo nas decisões do governo sobre planos, planejamentos e ações federais,
regionais e municipais), a fim de reproduzirem seus projetos e intenções com os instrumentos que
lhes sobrevivem (leis) e/ou por meio da articulação e mobilização que possuem, exercendo assim, seu
poder sobre, e a partir do espaço.

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REFERÊNCIAS

AKAISHI, A. G. Desafios do planejamento urbano- CAMPOS, D. J. S. L. Ordenamento Territorial em


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