Você está na página 1de 5

UM CORPO NO OUTRO: A PERFORMATIVIDADE DO ENCONTRO NO

CINEMA DE CLAIRE DENIS

Raiane Cláudia Feitosa Ferreira1* (PG), Daniel da Silva Araújo2 (PG).

1. Centro Universitário 7 de Setembro – Especialista em Cinema e Audiovisual


2. Centro Universitário 7 de Setembro – Especialista em Cinema e Audiovisual

Resumo
O presente trabalho busca investigar a performatividade dos corpos diante do ato do encontro
no filme "Sexta-Feira à Noite" (Vendredi soir, 2002) de Claire Denis. Partindo da noção sobre a
capacidade agregadora e transformadora da performance por via do encontro dos corpos,
investigamos a memória afetiva do encontro, e a interação dos corpos dentro do gesto de
encontrar, assim como acontece a espectatorialidade na obra selecionada. Levantamos
também a reflexão sobre como se dá o entrelace dos corpos (corpos no filme, corpo filme e
corpo do espectador), lembrando sempre do caráter sensorial que transpassa o corpo fílmico
atingindo o corpo memória de quem assiste.
Palavras-chave: Cinema. Corpo. Encontro. Performance. Afeto.

Introdução
Pensando mais sobre os estudos da performance que se baseiam na noção de novos
possíveis, pensar performance do afeto, é ter em mente estruturas de sentimento que agem na
identificação do ser com o que o rodeia, criando modos de existir, novos espaços e culturas.
Assim, na teoria da performance o afeto é "um objeto privilegiado para a investigação das
estratégias "micropolíticas" da subjetividade em sua contínua relação com o político, o social e o
cultural." (ASSUMPÇÃO, 201, p. 40)
Deleuze compreende o corpo em cena como um devir, um transformar-se submetido a
possibilidades onde desencadeia afetos. Mas para que isso aconteça seria necessário a intrusão
de algo externo, algo ou alguém que entra em contato com o outro, que se relaciona com o
outro. Desta forma, “devir” demanda um encontro. Ele afirma que “São estados de corpo
(afecções) e variações de potência (afectos) que remetem uns aos outros. (...) Têm por referente
misturas confusas de corpos e variações obscuras de potência, segundo uma ordem que é a do
Acaso ou do encontro fortuito entre os corpos. (1997, p. 159).
Em “Sexta-Feira à Noite” (2002) de Claire Denis temos o gesto do encontro como
possibilidade de transformação dos corpos e dos espaços. O tempo parece reger uma lógica
própria, sendo difícil saber a hora exata de cada momento, e neste fluxo, Denis parece explorar
o contínuo enigma dos corpos humanos, e exprimir, através do uso do primeiríssimo plano da
pele dos personagens, a materialização do contato amoroso.
A fim de investigarmos de que forma acontece a materialização da performance sem
acionar interpretações fechadas, já que estamos lidando com os signos do corpo performático e
seus possíveis, que suspende o regime de significação automatizado sobre o corpo, e que quer
produzir um espectador que feche o circuito de sentidos, apresentamos a seguir uma breve
análise do filme “Sexta-Feira à Noite” (2002).

Metodologia
O presente estudo adotou procedimentos metodológicos que incluem pesquisas
bibliográficas e filmográficas a fim de embasar os pontos de discussão sobre o encontro, o corpo
performativo e a experiência fílmica. Todo o levantamento bibliográfico foi realizado por meio de
livros, artigos e vídeos relacionados ao tema exposto, seja o próprio filme “Sexta-feira à noite”,
ou a fortuna crítica que a obra incita. Com este objetivo, traçamos um diálogo entre teóricas
como Elena Del Rio (2012), que agrega as teorias de Deleuze para falar da performance no
cinema; Diana Taylor (2013) que pensa o conceito de performance de Judith Butler (1990) para o
âmbito performático, incorporando o corpo em cena; Vivian Sobchack (1992) que utiliza a
abordagem fenomenológica para discutir o cinema como uma experiência corporificada; e Erika
Fischer-Lichte (2008) que reflete sobre a relação entre a materialidade e a semioticidade dos
elementos da performance, levando o espectador ao campo da experiência.

Resultados e Discussão
A filmografia de Claire Denis é reconhecida por focar no corpo humano, no
estrangeirismo e nas relações interculturais. Essa característica do seu fazer autoral, por outro
lado, também é percebida pelas abordagens que a diretora adota nas suas obras, trazendo um
aspecto plástico às imagens e a performance do corpo assinalando a sensualidade. “Sexta-Feira
à Noite” foi lançado em 2002, continuação de uma sucessão de trabalhos significativos da
autora, como os filmes “Bom trabalho” (1999) e “Desejo e obsessão" (2001).
Os estudos da relação entre corpo crescem ao passo que se começou a entender que o
mundo se apresenta através dos sentidos. Assim também é o filme. Ele não acontece fora do
campo sensorial. E muitos trabalhos passaram a dar ênfase aos aspectos materiais da
experiência cinematográfica, entendendo que compreender o cinema como corpo, pele que toca
o espectador abre caminhos interessantes para pensar uma extensão espectatorial que vem da
experiência fílmica.
No trabalho de Denis o corpo surge com uma potencialidade inserida dentro de uma
lógica sensorial, desta forma, podemos considerá-los corpos performáticos. Elena del Rio (2008)
em seu livro Deleuze and the Cinemas of Performance Powers of Affection, aponta que "As
forças ou afetos corporais são totalmente criativos e performáticos em sua atividade incessante
de desenhar e redesenhar conexões entre si por meio de um processo de auto-modificação ou
transformação" (2008, p. 3). Neste sentido, a performance seria a atualização do potencial dos
corpos por meio das ações, expressões, pensamentos, gestos, etc. No cinema ela é entendida
como um artifício de expressividade, e o corpo dos personagens seriam um lugar onde os
encontros acontecem.
“Sexta-Feira à Noite” (2002) acompanha Laure, uma mulher que está em processo de
mudança para morar com o namorado. Ao entrar no carro e se deslocar ao novo endereço,
acaba por ficar presa no trânsito por horas. Neste ambiente caótico, ela encontra Jean, um
homem misterioso que precisa de carona. Os dois ficam juntos enquanto esperam o fluxo do
trânsito melhorar, e se envolvem afetivamente durante aquela noite. E é partindo do gesto de
encontrar que a narrativa aciona potenciais dos corpos na tela, estes carregam expressividade,
assim como o próprio corpo fílmico carrega um teor sensível oriundo das escolhas estéticas, e
que atinge o espectador de uma forma que mobiliza seu potencial criativo.
Pensando na presença dos espectadores na construção da obra artística, Erika
Fischer-Lichte argumenta que para que a performance aconteça é preciso da presença física de
dois grupos de pessoas, os actores e os espectadores, e eles precisam "se juntar num
determinado tempo e num determinado lugar de modo a partilharem uma situação, um lapso de
tempo. Uma performance surge desse encontro – a partir da sua interacção." (2005, p. 2). Diante
disso, em “Sexta-Feira à Noite” somos levados pela dinâmica do repentino casal, assim como
são guiados pelos eventos ocorridos nos espaços por onde trafegam. O filme se passa em uma
só noite, mas perante uma trilha que oscila entre silêncio, ruídos e a música, uma câmera que
passeia pelos espaços, o uso da fusão, e outras escolhas estéticas que juntas criam uma outra
ordem temporal. Os personagens estão à deriva, respondem aos estímulos dos encontros que
surgem naquelas poucas horas noturnas.
Através do constante uso do plano detalhe, corpo se assemelha a um mapa na tela,
havendo uma ressignificação, por parte do espectador, daquilo que se está vendo. Os corpos se
mesclam e o que seria dois corpos, vira só um. E é nesta experiência imagética que se encontra
o devir dos corpos dos personagens e dos espectadores, que se transformam após viver uma
experiência conjunta de criação e sensação. Assim, é interessante perceber que Denis propõe
uma prática afetiva no envolvimento dos corpos, das relações entre eles diante de suas
potências afetivo-performáticas, e da inserção do corpo do espectador na construção do sentido
da imagem no filme “Sexta-feira à noite”.
Apesar de termos na narrativa um casal eterosexual, isso é colocado fora do campo
representativo, a figura de Laure não depende da de Jean, na verdade ambos se permitem viver
uma vivência juntos. Essa percepção acontece porque Denis consegue construir um exercício de
olhar desnudo dos padrões de controle entre espectador e filme. Ela volta a atenção no corpo
como lugar complexo de percepção, e pensa o cinema como uma forma específica de contato,
onde acontece encontros de seres que possuem corpos culturalmente codificados, assim, esta
dinâmica pode proporcionar modificações através do seu poder de afetar.
Para Diana Taylor, “a performance transmite memória, faz reivindicações políticas e
manifesta o senso de identidade de um grupo” (2013, p. 19). De acordo com ela, é necessário
reorganizar os modos como se tem estudado a memória e a cultura, e integrar um olhar atento
para o comportamento performatizados, assim talvez poderia ser identificado algo além do que
os documentos e textos podem proporcionar.
A noção de cultura como performance trouxe um destaque ao termo “Performativo”, no
qual recebeu uma reconsideração teórica a fim de conciliar atos explicitamente corporais. Judith
Butler trouxe a noção do ato performativo como atos corporais que são não referenciais, já que
corporalmente não expressam uma identidade pré-existente, mas ao mesmo tempo, geram
identidade; “o corpo não é apenas matéria, mas uma materialização contínua e incessante de
possibilidades” (BUTLER, 1990, apud LICHTE, 2008, p. 27).
Neste pensamento, Elena del Rio aponta que ao entendermos a performance como um
evento afetivo, a expressividade do corpo e sua intensidade afetiva criam uma espécie de fuga
que faz com que ele não sinta as pressões dos aspectos culturais (DEL RIO, 2008). A autora
aponta que a performance se desloca do campo mimético, se aproximando do criativo; "Na
representação, a repetição dá origem ao mesmo; na performance, cada repetição representa seu
próprio evento único." (2008, p. 4).
Dentre as inúmeras abordagens que procuram entender as formas de percepção
sensorial no cinema, Vivian Sobchack critica as teorias que focam apenas no olhar como forma
de ligação espectador-filme, eliminando todas as outras formas de endereçamentos do cinema
aos demais sentidos humanos. Assim, a teórica utiliza o pensamento da fenomenologia
existencialista de Merleau-Ponty para refletir sobre a relação dialógica e dialética entre o filme e
o espectador. “Não experimentamos nenhum filme apenas atrás de nossos olhos, vemos e
compreendemos e sentimos os filmes com todo nosso ser corporal, influenciado por toda a
história e o conhecimento carnal de nosso sensório aculturado.” (SOBCHACK, 1992, p.63 apud
HAGENER, ELSAESSER, 2018, p.134).
O potencial desta reflexão vem da relação entre a obra e do seu observador, propondo
uma mudança na ideia do espetáculo visual (fetichista) e do espectador voyeur (MULVEY, 2008),
que negligencia as camadas da imagem e suas capacidades de afetar e ser afetada. Abrindo,
assim, caminhos para um fazer cinematográfico fora do campo da representação, e que possui
um potencial performático e transformador que atinge as dimensões físicas, estéticas e
ideológicas do filme.

Conclusão
Claire Denis é considerada uma das diretoras autorais mais icônicas, isso se dá pela
qualidade de suas obras, e no seu rigor estético e característico. Seu fazer autoral observamos
a presença dos corpos em cena ocupando espaços, relacionando-se com outros corpos e com
as paisagens, desta forma modificam-se, criam sentidos e provocam sensações que
extrapolam os limites do próprio corpo fílmico. Este espaço surge como uma zona de contato
entre a obra e o espectador, um lugar onde este existe em conjunto com o fazer na obra, e isto
só se dá pela presença da performance que materializada nas imagens.
E por pensar os corpos na tela através das intensidades e dos espaços que os
perpassam, bem como dos signos e dos gestos ou estados de ser dos personagens em
determinada situação, que o filme “Sexta-feira à noite” (Vendredi soir, 2002) propõem um
experiência fílmica que se origina do potencial performativo dos corpos diante do gesto do
encontro, assim o espectador é deslocado do seu lugar passivo-reflexivo e colocado em um
lugar participativo que possibilita a criação de novos fluxos de pensamento, sensações e
memória.

Referências
DELEUZE, Gilles. O que é a Filosofia? Trad: Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. São
Paulo: Editora 34, 1993.
DEL RIO, Elena. Deleuze and the cinemas of performances: powers of affection.
Edinburgh: Edinburgh University Press, 2008.
FISCHER-LICHTE, Erika. The transformative power of the performance: A new aesthetics.
Trad: Saskya Iris Jain. Londres: Routledge, 2008.
FISCHER-LICHTE, Erika. A cultura como performance: Desenvolver um conceito. Sinais
de cena nº 4. Lisboa. Dezembro, 2005. Disponível em:
https://revistas.rcaap.pt/sdc/article/view/12426/9539
JUNIOR, Antonio Wellington de Oliveira. O corpo implicado. Leituras sobre corpo e
performance na contemporaneidade. Fortaleza: Expressão e Gráfica e Editora, 2011.
HAGENER, Malte. ELSAESSER, Thomas. Teoria do cinema: Uma introdução através dos
sentidos. Trad: Mônica Saddy Martins. São Paulo: Papiru, 2018.
SEXTA-FEIRA a Noite. Direção: Claire Denis. França: Bac Films, 2002.
TAYLOR, Diana. O arquivo e o repertório: Performance e memória cultural nas Américas.
Editora UFMG, 2013.

Agradecimentos
Gostaríamos de agradecer à Universidade de Fortaleza pela oportunidade de fazermos parte do
Grupo de Pesquisa sobre a Imagem, lugar onde estudos anteriores foram desenvolvidos sob a
supervisão do ex-professor da Unifor, Henrique Codato. Também gostaríamos de agradecer ao
Centro Universitário 7 de Setembro pela oportunidade de desenvolver o projeto que idealizou
esta pesquisa na disciplina de trabalho de conclusão da Especialização em Cinema e
Audiovisual, por meio do qual esse trabalho foi viabilizado, bem como agradecer especialmente
a professora Daiany Ferreira Dantas, pela disposição e solicitude junto a nós ao longo do
percurso aonde essa pesquisa nos levou. Agradecemos também o apoio e colaboração das
professoras Rúbia Mércia e Mariana Porto pelas ideias partilhadas ao longo do processo de
feitura do artigo.

Você também pode gostar