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IV

A COAÇÃO SOCIAL E A COERÇÃO ESTATAL

Uma doutrina atualmente muito difundida e cuja origem é diversifi-


cada, procura identificar como fonte das normas jurídicas e às vezes tam-
IJém das outras normas sociais, sobretudo as da moralidade, o poder dos
círculos dominantes da sociedade, os quais as teriam estabelecido e as
manteriam por interesse próprio. Mas o poder sobre pessoas só pode ser
exercido e mantido de maneira duradoura, quando elas são reunidas em
associações, prescrevendo-se-lhes as regras do agir - portanto, organi-
zando-as. Compreendido assim, esta doutrina coincidiria com a que se
procura explicitar aqui, isto é, que as normas sociais não são outra coisa
que a ordem das associações humanas. Quando, porém, se afirma que os
círculos dominantes das associações estabelecem as regras do comporta-
mento exclusivamente em benefício do "interesse" próprio, isto não diz
nada ou é incorreto. O homem sempre age no próprio interesse e quem
conseguisse estabelecer em definitivo os interesses que levam uma pessoa
a agir não teria solucionado apenas a questão relativa à coação através das
normas, mas praticam.ente todas as demais questões significativas da ciên-
cia social. No entanto, é totalmente errado contrapor diametralmente os
interesses dos círculos dominantes das associações humanas ao interesse
de toda a associação ou ao dos demais integrantes. É imprescindível que o
interesse dos círculos dominantes coincida ao menos em parte com o de
toda a associação ou no mínimo o da maioria, pois do contrário os demais
não se ateriam às normas estipuladas pelos círculos dominantes. Será ex-
tremamente difícil conseguir a adesão de um grupo mais amplo de pes-
soas, sem que estas tenham no mínimo uma vaga impressão de que o obje-
tivo, se alcançado, beneficiará a todos. E esta impressão nunca é total-
mente infundada. A ordem na associação pode - numa análise abstrata
- ser ruim, beneficiando excessivamente os dirigentes e impondo pesa-
dos encargos aos outros, mas ela sempre será melhor que sua total ausên-
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eia; a inexistência de uma ordem melhor é prova de que a sociedade, nas


condições espirituais e morais em que se encontrava e com as reservas eco-
nômicas que possuía, era incapaz de criar uma ordem mais perfeita.
A questão que se coloca, portanto, é a seguinte: como as associações
sociais podem levar o indivíduo que delas faz parte a seguir suas normas?
Não há concepção que contrarie mais frontalmente os princípios da psi-
cologia do que a de que os homens não avança1n sobre a propriedade
alheia, por temerem as leis penais ou a de que pagam suas dívidas, por
causa da ameaça do oficial de justiça. Mesmo quando todas as leis penais
perdem sua eficácia - e isto tem acontecido em períodos de guerra ou de
convulsões internas - , mesmo nestes casos, somente uma pequena par-
cela da população participa de assassinatos, assaltos, roubos, depredações;
e em períodos calmos a maioria das pessoas cumpre seus compromissos
sem pensar no oficial de justiça. Isto evidentemente não prova que a
grande maioria das pessoas observa as normas exclusivamente por causa
de um impulso interno; mas o fato sem dúvida indica que o medo da pena
não é o único fator; além disso é bom lembrar que existe uma grande
quantidade de normas sociais, por cuja transgressão não se precisa temer
por qualquer pena e que, mesmo assim, estas normas são observadas.
A coação não é utna coisa que emane exclusivamente da norma jurí-
dica. As normas da moral, da religião, dos costumes, das boas maneiras, da
moda, não teriam qualquer sentido, se delas não emanasse uma certa coa-
ção. Também elas constituem uma ordem nas associações humanas; têm a
tarefa de coagir os indivíduos a observar esta ordem. Qualquer coerção
através de normas, porém, repousa no fato de que o indivíduo na reali-
dade nunca é um "ser individual"; ele se encontra alínhado, inserido, im-
prensado em un1a série de associações, de modo que a existência à mar-
gem delas se tornaria insuportável para ele. セヲイ。エMウ・@ aqui de fatores fun-
damentais relacionados aos sentimentos humanos. Não se deve acentuar
exageradamente as necessidades espirituais do homem, mas, apesar disso,
pátria, comunidade religiosa, família, círculo de amigos, militância políti-
co-partidária não são conceitos vazios para ninguéin. Uma pessoa pode
desprezar isto, outra aquilo, mas certamente poucos não terão um peque-
no círculo, ao qual se atém de todo o coração. É no seu círculo que a pessoa
procura apoio em caso de necessidade, procura conforto na desgraça,
procura reconhecimento, honra, prestígio: o seu círculo, assim, lhe dá
tudo aquilo que te111 valor em sua vida. Mas o significado destas associações
não se restringe a estes aspectos - elas são decisivas para o sucesso profis-
sional. Por outro lado, a própria profissão nos arrasta para uma série de
associações profissionais.
Vivemos todos dentro de uma infinidade de comunidades, mais ou
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menos coesas, às vezes até muito difusas e nosso destino dependerá sobre-
tudo da posição que dentro delas conseguirmos conquistar. Dentro das co-
munidades os serviços prestados e os benefícios colhidos aparentemente
se equilibram. As comunidades não podem beneficiar todos os indivíduos
que as integram se, simultaneamente, cada um não contribuir com alguma
coisa. E na verdade todas estas comunidades, estruturadas ou não - pá-
tria, comunidade religiosa, família, círculo de amigos, partido político, as-
sociação profissional, freguesia-, todas elas exigem algo em retribuição
por aquilo que fazem por nós e as normas sociais vigentes nestas co1nuni-
dades não são outra coisa que o reflexo das exigências feitas ao indivíduo.
Quem depende do respaldo de seu grupo - e quem não necessitaria
dele?- faz bem em observar, ao menos grosso modo, as normas do grupo.
Todo recalcitrante deve saber que seu comportamento abalará a coesão
com os seus; quem insiste em resistir, rompe os laços que o unem aos seus
companheiros e estes começam a evitá-lo, até excluí-lo. É, portanto, das
associações sociais que emana a força coativa de todas as normas sociais,
sejam elas jurídicas, morais, religiosas ou outras. No que concerne às boas
maneiras e à moda, Jhering explicitou sua natureza em dois artigos surgi-
dos há muitos anos na Gegenwart de Berlim ("A função social da moda" e
"A função social do uniforme"). Boas maneiras e moda são normas de um
círculo social privilegiado e sinais visíveis de que a pessoa o integra; quem
quer ser aceito e gozar das vantagens de pertencer a ele, deve conhecê-las e
observá-las.
Desta maneira, o homem age de acordo com o direito, acima de tudo,
porque as relações sociais o obrigam a isto! Neste sentido a norma jurídica
não se distingue de outras normas. O Estado não é a única associação coa-
tiva; há, na sociedade, inúmeras associações que são muito mais rígidas
que ele. Uma delas é, até hoje, a família. As legislações modernas tendem a
restringir cada vez mais a interferência judiciária na comunidade conju-
gal. Mas, mesmo que se abolisse todo o direito familiar estatal, a família
não seria muito diferente do que é hoje; no direito familiar felizmente a
coação estatal raras vezes é necessária. O operário, o funcionário público,
todos eles cumprem seus compromissos contratuais e profissionais, talvez
não tanto pelo sentimento do dever, mas pelo fato de desejarem permane-
cer em seu posto ou porque querem melhorar sua posição. O médico, o
advogado, o artesão, o comerciante cumprem à risca seus acordos, a fim
de deixar satisfeita sua clientela e assim ampliá-la e também para manter o
crédito. A pena ou a execução judiciária são a última coisa em que pensam.
Existem grandes casas comerciais que, por princípio, não recorrem à jus-
tiça e procuram evitar que outros recorram contra elas. atendendo, para
isso, n1uitas vezes, a recla1nações injustificadas. Não pagan1ento e reclarna-
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ções injustas são respondidas através do rotnpimento das relações comer-


ciais; são tão auto-suficientes em sua posição, que podem desprezar a pro-
teção jurídica. Também pessoas bem posicionadas na sociedade, em geral,
não recorrem à justiça em suas disputas com empregados e funcionários;
sua influência social e econômica as inibe. As trade unions inglesas recu-
saram durante decênios o reconhecimento pelo Estado, abrindo, de
forma consciente, mão da proteção legal; aparentemente não セ・@ deram
mal. Os modernos trustes e cartéis possuem uma ampla gama de meios de
coação para impor seus reclamos justos, e em muitos casos também os in-
justos, a todos os que entram em sua órbita de influência, sem nunca
apelar ao poder do .Estado ou aos tribunais. En1 uma enqú.fte promovida
pelo governo austríaco sobre o cartel do ferro, um de seus principais che-
fes, diretor Kestranek, declarou que para ele é secundário se o cartel tem
caráter legal ou não, já que os compromissos assumidos são cumpridos,
sejam eles legalmente válidos ou não: "Os industriais do ferro são homens
que cumprem contratos, mesmo que estes não tenham validade jurídica".
Ele poderia ter acrescentado que o empresário isolado, na maioria dos ca-
sos, pode ser obrigado a cumpri-los através de mecanismos tão eficientes
que dificilmente um t'.ibunal estatal poderia fazê-lo melhor. Também
para os operários a cobertura jurídica das convenções sindicais teria pouco
significado, já que são observadas como se tivessem esta cobertura, em
grande parte por motivos semelhantes aos dos industriais. Tanto os ad-
miradores, quanto os detratores da igreja católica admiram a coesão que se
verifica em sua ordem jurídica. Nos países em que existe separação entre
Igreja e Estado, esta coesão náo é garantida pela coerção estatal e nestes
casos toda a estrutura repousa, acima de tudo, e em muitos aspectos exclu-
sivamente, sobre fundamentos sociais. Na França, mesmo após a separa-
ção entre Igreja e :Estado, o católico descrente continua a pagar seus im-
postos eclesiásticos. A execução através de "grupos de interesse" foi abor-
dada por Nothnagel- infelizmente falecido prematuramente- em seu
livro de estréia.
Talvez nenhum exemplo seja melhor para aclarar o que foi dito, do
que as lutas salariais modernas. Durante anos o operário cumpriu à risca
as determinações do contrato de trabalho. Que o levou a isto? Se não era
seu sentimento do dever, era o temor da de111issão e do desemprego, a
perspectiva de melhorar sua posição na empresa em que trabalha ou de
ser prezado pelos companheiros e chefes. Para ele, cuja única propriedade
são seus braços, recurso à justiça e execução judicial não são muito mais
que palavras ocas. l)e repente, se filia à associação operária e esta decide
que seus membros não podem cooperar com operários não organizados.
Esta norma, porém, não tem força jurídica diante de tribunais e outras
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instâncias governamentais; o operário, no entanto, a acatará sem se opor,


pois ela parte de uma associação a que está intimamente ligado. E, no mo-
mento em que seus companheiros, com base nesta resolução, entram em
greve, ele não vacila um minuto para aderir, rompendo assim o contrato
de trabalho que por anos cumpriu tão rigorosamente, expondo-se e aos
seus a riscos do desemprego; a miséria que segue à demissão perdeu agora
seu caráter intimidador, a força da norma contratual -que é uma norma
jurídica com potencialidade coativa - é totalmente neutralizada pela ou-
tra norma. A greve dividiu os operários do setor atingido em dois exércitos
inimigos e nos dois campos as ordens dos líderes são obedecidas cega-
mente, apesar de que essa obediência não poderia_ ser garantida por via
judicial. No fim vem o tratado de paz, o acordo tarifário. Se este acordo é
passível de ação judicial, é assunto no mínimo controvertido; na maioria
dos casos o direito vigente não permitiria que tribunais o reconhecessem
como documento com validade jurídica. Mas isto não tem importância.
Apesar de sua debilidade jurídica, ambas as partes o cumprirão à risca,
mesmo os empresários que não o assinaram e também os operários que
ingressaram mais tarde no serviço. Pois de agora em diante o acordo tari-
fário é o fundamento da ordem de trabalho no respectivo setor econômico
e mesmo que as partes estejam descontentes com ele, sabem que esta or-
dem imperfeita é melhor que a luta permanente.
Há, no entanto, formas de coerção que derivam sobretudo de normas
jurídicas; são, por exemplo, a pena e a execução judicial. Que significado
têm estas duas formas? São, de fato, elas que dão força à norma jurídica,
como em geral se supõe? O direito sem coerção ou, em outras pàlavras,
sem pena e sem execução judicial, de fato seria apenas um fogo que não
queima, como pensa Jhering? (A propósito, há muitos tipos de fogo que
não queimam.) Para responder em definitivo a estas perguntas, seria ne-
cessária uma pesquisa sobre os efeitos da pena e da execução judicial; mas
uma análise superficial do dia-a-dia é suficiente para comprovar que o sig-
nificado de ambas é restrito. Abstraindo-se daqueles casos em que os tribu-
nais e outras instâncias são invocados, em virtude de litígio quanto à inter-
pretação a ser dada à lei ou a um fato - e nesses casos não se trata de
impor o direito, mas de determinar o que é direito -, excetuando estes
casos, vê-se que a pena e a execução judicial são fenômenos que não ocor-
ren1 en1 massa e só ocorren1 quando os outros meios de coação das asso-
ciações sociais, por qualquer motivo, falharam.
Quanto à pena, as estatísticas são significativas para mostrar o seu sig-
nificado. Há casos de imposição de pena em todos os círculos sociais. Mas o
direito penal é aplicado quase exclusivamente àqueles que estão excluídos
da sociedade humana, quer em virtude de sua origem, quer em virtude da
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miséria econômica, da educação desieixada ou do descalabro moral; evi-


dentemente há exceções, como os casos que envolvem pessoas transtorna-
das que não conhecem limitações sociais e os casos em que a posição social
é de influência secundária (como ofensas, duelos, crimes políticos). Assim
é quase só a estes excluídos da sociedade que a associação mais abrangente,
o Estado, atinge com seu poder de impor penas. Aqui o Estado, como ór-
gão da sociedade, protege a sociedade daqueles que estão fora dela. O su-
cesso com que isto ocorre está demonstrado pela experiência de milênios.
Cada vez mais se impõe a convicção de que o único remédio eficaz contra o
crime consiste em reintegrar o criminoso na comunidade humana, para
submetê-lo novamente·à pressão social.
E que ocorre com a execução judicial? Já se acentuou que nos casos de
prestação de serviço personalizado praticamente não tem qualquer in-
fluência; significado social ela só possui nos casos em que estão em jogo
valores monetários, portanto, em apenas uma pequena fração da vida ju-
diciária. E mesmo neste caso cabe a pergunta se demandas que envolvem
dinheiro são fundamentadas com a possibilidade da execução judiciária.
Pois é evidente que o credor, ao conceder o crédito, leva em conta todos os
fatores que poderiam mover um devedor a pagar sua dívida. Uma breve
análise da organização do crédito, porém, nos ensina quão secundária é,
neste ramo dos negócios, a coação jurídica. Pode-se afirmar sem medo de
errar que em nenhuma economia mais ou menos desenvolvida a credibili-
dade repousa na possibilidade de uma execução judiciária. A credibili-
dade do cliente é estabelecida através de informações sociais e psicológicas
a seu respeito e, neste caso, num estágio menos desenvolvido, a experiên-
cia diária é básica como fonte de informação, num estágio de maior desen-
volvimento comercial recorre-se a organizações especializadas. Se as infor-
mações indicam que existe a probabilidade de ocorrer uma disputa jurí-
dica ou a necessidade de se recorrer a uma execução judicial, a credibili-
dade do cliente normalmente já está decidida· negativamente.
A probabilidade <le obtenção de crédito está condicionada pelas pos-
ses, pela posição social, pelas necessidades econômicas, pelas relações so-
ciais e pela mentalidade do solicitante; todos estes dados devem fornecer a
garantia de que o solicitante se aterá e cumprirá o combinado. É exata-
mente o crédito menos organizado e mais arrq_jado - e que em geral co-
bra os juros mais elevados para garantir-se contra eventuais perdas- que
mais confia em que o sentimento do dever e as condições em que vive, le-
varão o devedor a saldar seus compromissos. Em todos estes casos trans-
parece a importância das associações sociais que são pressuposto da ativi-
dade creditícia. Nos casos em que se concede crédito a uni desconhecido,
seu comportamento deve ter dado a impressão de que sua posição e suas
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posses são uma garantia para sua credibilidade. Em Roma, onde a com-
pra. em virtude da penhora que ela implicava, na realidade era uma
operação de crédito, dificilmente se comprava de um desconhecido, como
mostram as fontes.
A credibilidade, portanto, não resulta da perspectiva de que se possa
recorrer à execução judiciária. Ela é muito antes a expressão econômica
das relações sociais em que o credor se baseia ao conceder o crédito. Quem
não tem uma posição que dê alguma gãrantia, não recebe crédito; com
este só se realizam negócios à vista ou em troca de um penhor. Negócios à
vista ou com penhora constituem um intercâmbio de posses e, em conse-
qüência, não pressupõe a possibilidade da execução judicial nem a ordem
jurídica; negócios à vista ou com penhora se realizam até com primitivos
que nunca viram um homem branco - basta proteger-se contra sua fero-
cidade. Numa sociedade civilizada, a posse é garantida pela ordem interna
das associações e, em última instância, pelo Estado, a associação mais
abrangente que a sociedade conhece. Negócios à vista e com penhora po-
dem realizar-se com qualquer pessoa, justamente porque, como simples
troca de posses, não pressupõem uma coação jurídica, tornando-a, pelo
contrário, supérflua. O direito de exigir penhora que possui o locador
tem, assim, o efeito benéfico de possibilitar a qualquer um alugar uma
moradia, independente de sua credibilidade; o locador pode apossar-se
do objeto penhorado, caso não seja pago e poderá contar, neste caso, com
a conivência da comunidade. Como na Inglaterra o locador não tem direi-
to de exigir penhora, exige-se na hora de alugar lease references, ou um
atestado sobre a posição pessoal do locatário, sobre sua credibilidade. Ape-
nas o hoteleiro, que não tem possibilidade de verificar a credibilidade do
cliente (who has no option as to the customer with wlwm he will deal), tem um
direito legal à penhora (lien). Em vez do crédito, portanto, mais uma vez
temos a segurança garantida pela posse.
Superestima-se, como se nota, o valor da execução judicial, quando se
vê nela o fundamento da ordem jurídica, como tantas vezes acontece, em
especial entre juristas. De antemão, ela se restringe a uma fração da vida
jurídica, isto é, aos casos em que há dinheiro em jogo e mesmo nestes casos
ela perde muito em eficácia, se comparada à força das イ・ャセ￧￵ウ@ sociais que ·
nos obrigam ao cumprimento de nossos compromissos. Não há dúvida de ·
que em geral o credor pode calcular com ampla m<rrgem de segurança a
credibilidade do devedor; assim, os motivos que o levam a conceder o cré-
dito coincidem amplamente com os que levam o devedor a saldar seus
compromissos. E, na realidade, quem der algum valor à sua imagem, a
seus contatos sociais, a suas relações econômicas, em suma, quem der 。ゥセ@
gum valor a seu crédito, não pensará em permitir que uma cobrança lhe
60 Eugen Ehrlich

seja feita por via judiciária; todos estes aspectos da vida são por demais
importantes para serem perdidos em troca de uma vantagem temporária.
Quem foi derrotado no jogo paga, mesmo que este pagamento não possa
ser exigido por via judicial, mas por causa da pressão social; e a média das
pessoas tem no mínimo tanta sensibilidade para a coação social, quanto a
tem a média dos jogadores. Mesmo dívidas decorrentes de especulação fi-
nanceira e que não podem ser cobradas judicialmente via de regra são pa-
gas, apesar de que neste caso as conseqüências sociais e econômicas do
não-pagamento são muito menores que en1 caso de dívidas comerciais. A
comprovada ineficiência das leis de usura mostra claramente que os usuá-
rios podem ser levados a pagar sem execução judiciária. Os relatórios das
organizações creditícias ligadas ao comércio provam que os meios de coa-
ção puramente econômicos (listas negras) têm mais efeito que a execução
judicial; Nothnagel em seu livro citado apresenta, neste sentido, material
já relativamente antigo, mas ainda não ultrapassado. Portanto, a execução
judicial, assim como a pena, só existe para os degradados e excluídos da
sociedade: para o devedor imprudente, o peculatário, ou o que está im-
possibilitado de pagar em conseqüência de uma desgraça. Mesmo que es-
tas pessoas representem um ônus para a vida econômica, sua importância
relativa é muito pequena para que se possa dizer que o valor da ordem
jurídica consiste nos meios que proporciona para o combate a tais ele-
mentos.
Fundamentalmente, a abrangência da ordem jurídica coativa do Es-
tado, assim, se restringe à proteção de pessoas e posses contra os que se
encontram fora da sociedade. O que o Estado realiza, além disto, para a
manutenção do direito, é de significado secundário e pode afirmar-se que
sem estas medidas a sociedade também não sucumbiria. Negócios reali-
zam-se, mesmo que precariamente, na velha repllblica polonesa e conti-
nuam a realizar-se no PQセゥ・ョエ@ atual, apesar de que o direito, por causa da
corrupção e da ineficiência, ali praticamente não merece este nome. Antes
que se realizasse a reforma judiciária na Inglaterra nos anos 30 do século
passado, os benefícios do caro e moroso processo civil não atingiam mais
que a camada superior da burguesia inglesa; isto, porém, não se constituiu
em empecilho para que os ingleses se transforn1assem num povo rico e
altamente civilizado. E mesmo na Alemanha e na Áustria a proteção jurí-
dica não era muito mais eficiente enquanto vigorava o antigo sistema judi-
ciário. Em condições assim restringe-se o crédito e procura-se inventar ou-
tros meios de segurança, o resto, porém, pern1anece por conta das associa-
ções sociais. Goethe, que notou claramente os limites da contribuição da
suprema corte para o exercício do direito, colocou o problema de máneira
muito correta. As coisas se complicam quando também falha a administra-
Funda111entos da Sociologia do !)ireito 61

ção do direito penal. Mas a Hungria, o sul da Itália, a Espanha provam que
um povo até pode suportar a rapinagem durante séculos.
Não só nos primórdios da humanidade, quando toda a sociedade se
compunha exclusivamente de pequenas associações, mas mesmo muito
mais tarde e até no presente não faltam exemplos de sociedades que se
mantêm com base exclusivamente na ordem interna de suas associações.
Onde a força do Estado é muito fraca, a rigor, não há outra ordem;
mesmo na era moderna sociedades européias se constituíram sobre a base
da ordem interna de suas associações; como exemplos pode citar-se a ve-
lha república polonesa, a Hungria dos séculos XVII e XVIII, os reinados
de Nápoles, da Sicília e o mesmo ocorre hoje no Oriente. Na Idade Média
a fraqueza do Estado conduziu ao surgimento de associações específicas
para a defesa do direito; na era moderna pode-se encontrar fenômenos
parecidos nélS confeder.:t.çües da antiga Polônia, na can1orra e na Máfia em
Nápoles e na Sicília. Por fim, pode-se citar as informações de Nõldeke a
respeito dos árabes no século VI como prova de que um grande povo e até
uma grande e rica cidade comercial podem persistir baseados exclusiva-
mente na força interna de suas associações. "É de salientar sobretudo que
em lugar nenhum entre os árabes se encontra uma formação estatal. A
gens, a tribo são unidades morais de grande autoridade, mas sem poder de
coação ... Quem não participa de um empreendimento da tribo ou da gens
expõe-se ao escárnio e ao desprezo, mas não há meio de coação contra ele.
Somente a vingança de morte garante a segurança em determinados ca-
sos. Não tenho conhecimento de que qualquer crime seja castigado por
outro meio que não seja a vingança privada. Roubar algo de um compa-
nheiro da tribo ou de um hóspede era moralmente condenado, mas orou-
bado não tinha outro meio a não ser procurar reaver por meios próprios o
objeto que lhe fora tirado. Estas condições não só imperavam entre os be-
duínos, mas também nas cidades, até em Meca. Quase não se pode acredi-
tar que um lugar, cujos habitantes mantinham extensas relações comer-
ciais muito superiores aos beduínos - pouco tempo depois foram con-
quistadores e dominadores de meio mundo-, não possuísse uma autori-
dade. Mas deve-se acentuar que a autoridade moral das pessoas mais des-
tacadas compensava plenamente esta deficiência. Quando os cabeças de
uma gens - que por sua vez também exerciam apenas uma autoridade
moral - chegavam a um acordo sobre determinado assunto, era difícil
que um indivíduo ou uma família se opusessem; apesar de que havia casos
em que isto ocorria". Estas observações de Nõldeke mostram que a exis-
tência de tal sociedade só era possível em virtude da coesão extremamente
forte e duradoura da parentela árabe e do respaldo. que cada um tinha
entre os seus.
62 Eugen Ehrlich

Quando se recua aos primórdios da civilização humana, vê-se que a


força da norma jurídica, que ainda náo se distingue das normas religiosas,
morais e con1portamentais, repousa quase exclusivamente sobre a in-
fluência que os companheiros de cada associação têm sobre o companhei-
ro individual. Em geral todos se submeten1 sem resistência à ordem de sua
família ou de sua parentela. J\ coerção jurídica ou a pena contra o compa-
nheiro pratican1ente inexistem; contra a resistência continuada usa-se o
remédio da exclusão da comunidade e esta é considerada como a 111aior
desgraça que pode atingir uma pessoa (en1 J-Iornero: cxqi/;'f]TW/;, aveuLoc;,
'ÔeµicrTo<;). Aplicação coercitiva do direito e defesa violenta só se aplicam
t.ontra o estranho, e1n relação ao qual as nortnas da própria con1unidade
não têm validade. Estaríamos equivocados, se julgássemos estes fatos
como pertencentes ao passado ren1oto. ャゥ\セ・L@ con10 no início da evolução
do direito, sua força repousa acin1a de tudo sobre a ação ャ・イゥエ。セ@ 1nas ininter-
rupta das associaçües a que o indivíduo pertence. Neste sentido, n1esn10
ィ」セェ・@ e111 dia, o direito se asse111elha nn1ito ;:\s outras nor111as sociais relativas
à イ・ャゥァセQッL@ à 111oral, às boas 111aneiras, à 1noda. ·1·a1nhé111 hoje a exclusão da
comunidade (na ゥァイセェ。L@ no clube), a perda do crédito, a perda da posiçt10
ou da clientela constituen1-se e1n n1eios eficazes ao co111hate de ッーウゥ￧セQ@
continuada. ·ran1bén1 ィ」セェ@ a pena e a exccuçf10 judicial, nas quais o jurista
costun1a ver o flindan1ento de qualquer ordc111j11rídica, representa1n ape-
nas os n1ecanisn1os extren1os, utilizados contra os que são excluídos da so-
ciedade, assim corno antigan1ente a justiça pelas próprias tnãos era utili-
zada contra os que pertencia111 a uina con1unidade estranha.
Mesmo assim. o fato de que a fOrça das normas sociais geraln1ente é
atribuída à força coercitiva do Estado, merece uma explicaçào. ··roda falsa
doutrina repousa sobre fatos que se observan1 na realidade; nossas per-
cepções e sensaçôes sen1pre são verdadeiras, incorretas só podem ser as
conclusões que delas firn1amos. En1 primeiro lugar, é verdade que uma
parte do direito, de fato, se n1antém efetiva através da coerção estatal. Esta
parte não é grande nen1 muito importante, mas é justamente aquela que
mais interessa aos juristas, pois eles começarn a lidar com o direito justa-
n1ente no ponto em que existe a n(:'.cessidade da coação. Além disso, exis-
tem normas que, sern a aineaça da pena ou da execução judicial, não
seriam observadas pela maioria. Apesar de tere1n significado secundário,
enquadram-se neste caso as norn1as policiais (Max Ernst Mayer), que não
são aplicadas exclusivamente pela polícia. São normas de decisão, 」セェ。@ ori-
gem é o Estado, mas que são estranhas à vida social, tornando-se conheci-
das e transformando-se em regras do agir so1nente quando formalmente
se toma conhecimento delas. Este conhecitnento ocorre con1 a publicação
das e transforn1ando-se e1n regras do agir son1ente quando forn1aln1ente
Funda1nentos da Sociologia do l)ireito 63

importante é o fato que de toda a organização militar e toda a estrutura


tributária do Estado moderno - exatamente o que se costuma ver con10
fundamento da vida estatal-dificilmente sobreviveria, por um mon1ento
sequer, sem a coação estatal. Isto, porém, significa que o Estado e uma
grande parte da sociedade se encontratn em oposição mútua. Em conse-
qüência desta oposição à organização, militar e tributária do Estado pern1a-
necem estranhas à sociedade, permanecendo como instituições restritas
ao Estado. Creio que isto, no entanto, é apenas un1a f3se intermediária na
evolução histórica. Nas antigas cidades-estado não acontecia isto. Todo o
exército e a parte das contribuições para o Estado que provinha dos cida-
dãos eram socialmente organizados; em estados pequenos o mesmo ocor-
re até ィセェ・N@
A concepção do direito co1no ordem coercitiva, portanto, Tepousa no
fato de que estas partes constitutivas do direito, cuja força emana do Es-
tado, recebem un1 destaque unilateral. Mas isto não é tudo ..Etn parte esta
concepção ten1 sua origem não somente na maneira de se encarar o direi-
to, n1as na maneira de se encarar toda a vida social. Vê-se a enorme oposi-
ção entre ricos e pobres na sociedade, vê-se que repousa sobre o pobre
todo o peso do trabalho social; vê-se que os pobres não recebem pelo seu
trdbalho nem o estritamente necessário para viver; vê-se que são pressio-
nados pela ordem jurídica a dar à sociedade muito 1nais do que dela rece-
bem. Que esta situação fosse suportada indefinidatnente pelos desprivile-
giados, só parecia possível 1nediante a arneaça da coação estatal. Esta idéia
fOi levada às últin1as 」ッョウ・アセゥ。@ na filosofia da ィゥウエ￳セ。@ dos socialistas.
Ela parte da organização econômica pritnitiva da sociedade - da ordem
fauniliar e de parentela, da econo1nia don1éstica fechada, da atividade arte-
sanal-, onde havia uma distribuição n1ais ou nienos eqüitativa dos resul-
tados do trabalho con1um (Engels, Rodbertus); ela 1nostra, depois, con10
esta situação fOi-se n1odificando sob a influênciá do capitalismo em prejuí-
zo do cada vez nlaior número de despossuídus e e1n benefício do cada vez
n1enor número de proprietários (f\lfarx). A velha ordem econômica era
sustentada por todos que dela se beneficiava1n; a nova, a capitalista, seria
sustentada exclusívan1ente pelo Estado e este é uma organização artificial-
mente fortalecida para defender a ordem jurídica baseada na proprie-
dade, no contrato e no direito hereditário. Coerenten1ente os socialistas
conclamatn os despossuídos a contrapor a organização da grande massa à
organização dos proprietários, para conseguir criar u1na ordem jurídica
n1ais favorável a eles.
Se estivesse correto que toda a ordem jurídica atual repousasse exclu-
sivamente sobre o Estado e que este não fosse outra coisa que a organiza-
ção da minoria cada vez mais restriia de proprietários em detrimento da
64 Eugen Ehrlirh

grande massa dos despossuídos, o futuro da orde1n jurídica e do próprio


Estado estariam decididos. No entanto, a presente pesquisa já demonstrou
que os meios de coação do Estado para a defesa da ordem jurídica de fato
não se voltan1 contra a grande n1assa do povo, n1as somente contra uma
pequena minoria, contra os excluídos, os que romperatn suas relações
com a sociedade. A grande n1assa do povo não precisa ser domesticada
pelo Estado, pois ela se submete voluntariarnente, por sentir que está em
jogo sua própria ordem, a ordem das associa\:ües econômicas e sociais em
que cada un1 está inserido. Por isso não pode ser correto que através destas
associaçües uma ínfin1a 111inoria explore uma enorn1e maioria. A expe-
riência histórica e a psicologia de massas ensinan1 que isto, a longo prazo,
seria impossível sem irrupçôes de violência. "I'oda grande greve-que im-
plica o rompimento de un1 acordo - prova que os meios de coerção do
Estado não são suficientes para impor o direito a centenas e milhares de
pessoas que a ele resiste1n. Se, portanto, a grande maioria das pessoas- e
nela se inclui, con10 se sabe, todo o operariado - observa a ordem jurí-
dica, é porque tem, senão uma visão clara, ao n1enos uma sensação vaga de
que a observação da ordem jurídica reverte em seu próprio benefício. Esta
sensação tambén1 se manifesta en1 toda revolta que não visa objetivos polí-
ticos, mas apenas econômicos; a grande n1aioria coloca-se ao lado do po-
der estatal e nunca un1a revolta destas alcançou sucesso suficiente para im-
por-se duradouramente sobre u1na extensão significativa do território de
um Estado.
Na realidade, a atual ordem jurídica, por ser ao mesmo tempo u-n1a
organização da produção e da distribuição de bens, não pode ser elimi-
nada, sem que co1n isto se elinline a possibilidade de sobrevivência tanto da
grande massa quanto das pequenas minorias. Deste n1odo, para que a ci-
vilização continue a existir, a ordem jurídica não poderia simplesmente ser
eliminada, mas deveria ser substituída de in1ediato por uma outra ordem
jurídica, a socialista. Mas nenhuma pessoa racional, nem mes1no um socia-
lista, negará que hoje isto não é possível sem mais, a qualquer momento.
Os socialistas inteligentes desde há muito tempo falam apenas de uma gra-
dativa absorção da economia capitalista pela socialista; que mesmo esta
perspectiva não tem possibilidade de concretização dentro de um prazo
previsível, penso ter demonstrado e1n outro lugar (Sürlrieutsche Mo-
natshefte, ano Ili). Se, portanto, a atual ordem social, apesar dos grandes
sacrifícios que impõe à maioria da população, continua a apresentar uma
estrutura sólida, isto se deve ao fato de que, no momento, não há outra que
pudesse ser melhor ou ao menos igual, tanto para os proprietários quanto
para os despossuídos. A questão do "objetivo final" pode ser colorada de
lado; mesmo o operariado socialista da Europa contemporânea visa ape-
Funda111entos da S<>Ci<>i<>gia do l)ireito 65

nas uma melhoria da atual ordem jurídica, para possibilitar-lhe um pro-


gresso social efetivo, mesmo que modesto.
Na pressão exercida pelas associaçôes· sociais para conseguir a obser-
vância das norn1as, o indivíduo, aparentemente, sempre é um elemento
ativo e ao 1nesmo tempo sofre seus efeitos; o 1nen1bro da associação tem
parte ativa no exercício da pressão, mas ao mesmo tempo se sente cons-
trangido a subn1eter-se a ele. A coação das nor1nas é u1n fenômeno per-
tencente ao campo da psicologia das massas, mas ao 1nesmo ten1po ela pro-
duz o fenômeno da sua observância que pertence ao campo da psicologia
individual. i\tfas seria errado insistir neste aspecto. Para a grande massa das
pessoas que durante toda a vida se adaptam sen1 resistência à enortne en-
grenagem, não se trata do resultado de un1a elaboração mental cons-
ciente, n1as de un1a adaptação inconsciente aos senti1nentos e às idéias do
contexto, que os acon1panha do nascimento até a morte. As normas mais
in1portantes só agem por sugestão. Apresentam-se ao homem como or-
dens e proibiçôes, setn que fossen1justificadas, e ele as observa sen1 pensar
muito sobre elas. As normas não coagem o hon1e1n, mas o educam. Ainda
criança lhe são gravadas na mente; a criança ouve por toda parte: "isto não
se faz!", "isto não é bom!", "é Deus que quer assim!". E a pessoa humana se
inclina a obedecer com certa facilidade,justan1ente porque conhece muito
bem as vantagens da obediência e as desvantagens da rebeldia. As vanta-
gens e desvantagens não são apenas sociais, mas também pessoais, pois
quen1 obedece a uma orden1 poupa o serviço, às vezes árduo, de pensar
por conta própria e evita a tarefa, às vezes ainda 1nais árdua, de tomar urna
decisão. Liberdade e independência são ideais do poeta, do artista, do
pensador; o home1n rnédio é um filisteu que não tem muita con1preensão
para estas coisas, ele gosta do usuat do instintivo e odeia o esf(>rço intelec-
tual. É por isso que as mulheres se entusiasn1am tanto com homens enérgi-
cos; eles tomam as decisões no lugar delas e sufocam qualquer idéia de
resistência no nascedouro. São muito agradecidas aos seus homens pelos
esforços de que estes as poupam.
Assim a adequação às normas leva à estruturação interna do homem;
elas não só orientam a ação isolada, mas o transformam em um ser moral,
crente, comportado, hábil, honroso, moderno. Ele se subtnete às normas
por convicção e isto concede persistência às suas açôes; a pressão social
exercida pelas normas sobre o indivíduo não pode mais ser superada por
outras influências. As normas sociais 1noldam a individualidade.
Talvez não seria de todo insensato se todo aquele que se dedica a pes-
quisar a influência das normas jurídicas procurasse responder primeira-
mente à pergunta, bem mais simples, relativa ao fato de não se encontrar
na rua homem bem-vestido sem uma セイ。カエN@ Não se pode tratar apenas
66 Eugen Ehrlich

de uma questão de elegância; não há dúvida de que existe um bom nú-


mero de pessoas que não dão qualquer importância à roupa e mesrno estas
não aparecerão em público sen1 gravata. Para facilitar um pouco a pesqui-
sa histórica, observo que este elemento supérfluo e de gosto duvidoso da
nossa indumentária tem sua origem no uniforme dos regin1entos croatas
em Paris sob Luís XIV, ele onde també1n provém seu nome. E é exata-
mente pelo fato de que atualmente não é evidente a função da norma so-
cial que obriga a todo europeu civilizado que se preze a usar urna gravata,
que a ocupação com o teina traria uma série de esclarecimentos também
ao jurista.
Normas sociais, sejam elas normasjurídicas ou outras, sen1pre têm sua
origem numa associação; elas são obrigatórias somente para os ·membros
desta associação e a obrigatoriedade se refere somente à relação do mem-
bro com a respectiva associação. Elas não têm validade füra do âmbito da
associação. Se estas frases tivessem sido escritas na Antigüidade, teriam sido
claras para todo n1undo e não requereriam qualquer comprovação. Na
época ninguém tinha dúvidas de que o direito, a religião, a moral eram váli-
dos apenas para o próprio povo que freqüentemente não ultrapassava os
limites dos muros da cidade e nunca atingia a outra tribo ou a outro g?-upo
lingüístico. Com outro povo só se estabeleciam vínculos após o estabeleci-
mento de tratados de amizade ou comércio. () mesmo acontece ainda hoje
entre os povos não pertencentes à civilização européia. É verdade que em
geral a hospitalidade tem caráter sagrado, mas o hóspede, no momento em
que entra na Glsa, é incluído na comunidade familiar e a proteçào que lhe é
garantida em geral cessa no momento em que abandona a casa.
Na atualidade não é mais exatamente assitn. Mas está claro que as nor-
mas referentes à n1oral, às boas maneiras, à moda tê1n sua validade restrita
a determinado círculo. Mas as normas do direito valen1, ao menos em
parte, para todos e em relação a qualquer urr:, Três ou quatro religiões
universais proclamam suas verdades a toda a humanidade. A moralidade
moderna igualmente nào conhece mais os antigos limites tribais. A ques-
tão é determinar o que isto significa.
No que tange às religiões, de anten1ão tanto a sua dogmática quanto
suas normas rituais se restringem aos seus adeptos. Quando se apresen-
tam como religiões universais, isto apenas significa que suas portas estão
abertas para todos os que aceitam suas verdades. Neste aspecto se diferen-
ciam das religiões nacionais da antigüidade, mas a diferença está num ou-
tro nível.
De maneira diferente se apresenta a moderna moralidade, tenha ela
ヲオョ、。ュセエッウ@ morais ou filosóficos. Ela quer impor os mandamentos
morais a todos e a tudo. No entanto, deve-se acentuar com ênfase que isto
Funda1nentos <la Sociologia do I)ireito 67

nunca foi n1ais do que pura pregação ou doutrina e que esta moralidade
nunca se transformoú em regra do agir para a grande massa das pessoas.
l'\tfandamentos morais continuam a ser cumpridos à risca somente no cír-
culo familiar ou de amigos; à medida que os círculos se ampliatn, sua fOrça
diminui e etn relação ao estranho o homem médio atual praticamente não
conhece uma moralidade que o comprometa a mais do que a uma simples
gentileza que não implica etn qualquer esforço maior. O ódio ao inimigo
da pátria continua a ser louvado con10 o era na tnais retnota Antigüidade.
O nível que a n1oralidade alcançou no hon1en1 n1oderno, quando se ron1-
pen1 todos os laços sociais, pode1nos aquilatar pelos relatos dos horrores
praticados nas colônias e estes イセャ。エッウ@ certan1ente aprese11tan1 apenas unia
fraç<lo do que integrantes cios povos n1ais civilizados da terra pensan1 po-
der btzer con1 autóctones indefesos.
Utna série de nor1nas jurídicas, porén1, vale para todos e diante de
todos. Wias estas pertencem ao direito estatal ou então são puras normas
de decisão, isto é, um direito válido para tribunais e órgãos estatais, mas
náo são regras do agir. Inclusive o assitn chamado direito internacional
privado e penal contén1 apenas nor1nas de decisão; destina-se somente aos
órgãos governan1entais, não ao povo. O direito vivo, mestno quando tenha
origem estatal, restringe-se, quanto ao seu conteúdo, a uma associação. Os
direitos e deveres emanados do direito estatal pressupõem o direito de ci-
dadania, o direito familiar pressupôe pertencimento a uma comunidade
fan1iliar, o direito corporativo pressupôe a participação numa corporação,
o direito contratual pressupõe o contrato, o direito hereditário mais uma
vez pressupõe o pertencin1ento a uma comunidade familiar ou a aceitação
de um benefício testamentário. Outros direitos e deveres decorren1 da
condição de funcionário público, de servidor do Estado. A situação, ィ」セ・@
em dia, apenas tnuda em relação ao direito à vida, à liberdade e à posse,
pois este, ao tnenos no âmbito incontestado da civilização européia, não
pode ser negado a ninguém, independentemente de seu pertencimento
étnico ou racial. Esta é uma conquista relativamente moderna; ainda no
século XVI o estrangeiro não tinha garantidas a vida e a posse. Nas regiões
limítrofes da civilização ainda hoje não há esta garantia, como o demons-
tram a história colonial e o destino dos negros na América. A legislação
antiescravocrata do século XIX cotnprova quão difícil fOi ensinar aos po-
vos mais ci,1lizados da terra o respeito pela vida e pela liberdade dos ne-
gros indefesos. Mas, apesar de todas estas restrições de ordem temporal e
local, o respeito pela vida, pela liberdade e pela posse de todos os homens
hoje não é mais somente uma questão de norma de decisão ou de regula-
mentação estatal, mas transforma-se, de fato, ·em fundamento do direito
vivo. Neste âmbito acanhado a humanidade hoje pertence a uma grande
68 Eugen Ehrlich

associação jurídica. Isto, porém, não vale para outras áreas do direito; so-
bretudo não é válido para o direito contratual. A insegurança na área do
crédito - um fato pern1anente em relatórios con1erciais - é prova disto.
Apesar de tudo isso, permanece de pé o fato de que na atualidade per-
siste a ética religiosa e filosófica que não restringe sua n1oralidade a apenas
uma associação humana. Este fato, no entanto, requer un1a explicação. Ele
indica que entre os espíritos n1ais destacados do inundo já despontou a
concepção de uma moralidade universal, de un1 direito que não conhece
limites. Esta idéia hoje ainda não é mais do que uni sonho que existe ape-
nas na cabeça dos n1ais nobres e dos melhores, rnas pro1nete un1 futuro
melhor e se tornou realidade no direito vivo, ao n1enos en1 tal medida que
nas regiôes em que reina a ci\·ilização n1ais adiantada se garante a toda pes-
soa a vida, a liberdade e a posse.

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