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menos coesas, às vezes até muito difusas e nosso destino dependerá sobre-
tudo da posição que dentro delas conseguirmos conquistar. Dentro das co-
munidades os serviços prestados e os benefícios colhidos aparentemente
se equilibram. As comunidades não podem beneficiar todos os indivíduos
que as integram se, simultaneamente, cada um não contribuir com alguma
coisa. E na verdade todas estas comunidades, estruturadas ou não - pá-
tria, comunidade religiosa, família, círculo de amigos, partido político, as-
sociação profissional, freguesia-, todas elas exigem algo em retribuição
por aquilo que fazem por nós e as normas sociais vigentes nestas co1nuni-
dades não são outra coisa que o reflexo das exigências feitas ao indivíduo.
Quem depende do respaldo de seu grupo - e quem não necessitaria
dele?- faz bem em observar, ao menos grosso modo, as normas do grupo.
Todo recalcitrante deve saber que seu comportamento abalará a coesão
com os seus; quem insiste em resistir, rompe os laços que o unem aos seus
companheiros e estes começam a evitá-lo, até excluí-lo. É, portanto, das
associações sociais que emana a força coativa de todas as normas sociais,
sejam elas jurídicas, morais, religiosas ou outras. No que concerne às boas
maneiras e à moda, Jhering explicitou sua natureza em dois artigos surgi-
dos há muitos anos na Gegenwart de Berlim ("A função social da moda" e
"A função social do uniforme"). Boas maneiras e moda são normas de um
círculo social privilegiado e sinais visíveis de que a pessoa o integra; quem
quer ser aceito e gozar das vantagens de pertencer a ele, deve conhecê-las e
observá-las.
Desta maneira, o homem age de acordo com o direito, acima de tudo,
porque as relações sociais o obrigam a isto! Neste sentido a norma jurídica
não se distingue de outras normas. O Estado não é a única associação coa-
tiva; há, na sociedade, inúmeras associações que são muito mais rígidas
que ele. Uma delas é, até hoje, a família. As legislações modernas tendem a
restringir cada vez mais a interferência judiciária na comunidade conju-
gal. Mas, mesmo que se abolisse todo o direito familiar estatal, a família
não seria muito diferente do que é hoje; no direito familiar felizmente a
coação estatal raras vezes é necessária. O operário, o funcionário público,
todos eles cumprem seus compromissos contratuais e profissionais, talvez
não tanto pelo sentimento do dever, mas pelo fato de desejarem permane-
cer em seu posto ou porque querem melhorar sua posição. O médico, o
advogado, o artesão, o comerciante cumprem à risca seus acordos, a fim
de deixar satisfeita sua clientela e assim ampliá-la e também para manter o
crédito. A pena ou a execução judiciária são a última coisa em que pensam.
Existem grandes casas comerciais que, por princípio, não recorrem à jus-
tiça e procuram evitar que outros recorram contra elas. atendendo, para
isso, n1uitas vezes, a recla1nações injustificadas. Não pagan1ento e reclarna-
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posses são uma garantia para sua credibilidade. Em Roma, onde a com-
pra. em virtude da penhora que ela implicava, na realidade era uma
operação de crédito, dificilmente se comprava de um desconhecido, como
mostram as fontes.
A credibilidade, portanto, não resulta da perspectiva de que se possa
recorrer à execução judiciária. Ela é muito antes a expressão econômica
das relações sociais em que o credor se baseia ao conceder o crédito. Quem
não tem uma posição que dê alguma gãrantia, não recebe crédito; com
este só se realizam negócios à vista ou em troca de um penhor. Negócios à
vista ou com penhora constituem um intercâmbio de posses e, em conse-
qüência, não pressupõe a possibilidade da execução judicial nem a ordem
jurídica; negócios à vista ou com penhora se realizam até com primitivos
que nunca viram um homem branco - basta proteger-se contra sua fero-
cidade. Numa sociedade civilizada, a posse é garantida pela ordem interna
das associações e, em última instância, pelo Estado, a associação mais
abrangente que a sociedade conhece. Negócios à vista e com penhora po-
dem realizar-se com qualquer pessoa, justamente porque, como simples
troca de posses, não pressupõem uma coação jurídica, tornando-a, pelo
contrário, supérflua. O direito de exigir penhora que possui o locador
tem, assim, o efeito benéfico de possibilitar a qualquer um alugar uma
moradia, independente de sua credibilidade; o locador pode apossar-se
do objeto penhorado, caso não seja pago e poderá contar, neste caso, com
a conivência da comunidade. Como na Inglaterra o locador não tem direi-
to de exigir penhora, exige-se na hora de alugar lease references, ou um
atestado sobre a posição pessoal do locatário, sobre sua credibilidade. Ape-
nas o hoteleiro, que não tem possibilidade de verificar a credibilidade do
cliente (who has no option as to the customer with wlwm he will deal), tem um
direito legal à penhora (lien). Em vez do crédito, portanto, mais uma vez
temos a segurança garantida pela posse.
Superestima-se, como se nota, o valor da execução judicial, quando se
vê nela o fundamento da ordem jurídica, como tantas vezes acontece, em
especial entre juristas. De antemão, ela se restringe a uma fração da vida
jurídica, isto é, aos casos em que há dinheiro em jogo e mesmo nestes casos
ela perde muito em eficácia, se comparada à força das イ・ャセウ@ sociais que ·
nos obrigam ao cumprimento de nossos compromissos. Não há dúvida de ·
que em geral o credor pode calcular com ampla m<rrgem de segurança a
credibilidade do devedor; assim, os motivos que o levam a conceder o cré-
dito coincidem amplamente com os que levam o devedor a saldar seus
compromissos. E, na realidade, quem der algum valor à sua imagem, a
seus contatos sociais, a suas relações econômicas, em suma, quem der 。ゥセ@
gum valor a seu crédito, não pensará em permitir que uma cobrança lhe
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seja feita por via judiciária; todos estes aspectos da vida são por demais
importantes para serem perdidos em troca de uma vantagem temporária.
Quem foi derrotado no jogo paga, mesmo que este pagamento não possa
ser exigido por via judicial, mas por causa da pressão social; e a média das
pessoas tem no mínimo tanta sensibilidade para a coação social, quanto a
tem a média dos jogadores. Mesmo dívidas decorrentes de especulação fi-
nanceira e que não podem ser cobradas judicialmente via de regra são pa-
gas, apesar de que neste caso as conseqüências sociais e econômicas do
não-pagamento são muito menores que en1 caso de dívidas comerciais. A
comprovada ineficiência das leis de usura mostra claramente que os usuá-
rios podem ser levados a pagar sem execução judiciária. Os relatórios das
organizações creditícias ligadas ao comércio provam que os meios de coa-
ção puramente econômicos (listas negras) têm mais efeito que a execução
judicial; Nothnagel em seu livro citado apresenta, neste sentido, material
já relativamente antigo, mas ainda não ultrapassado. Portanto, a execução
judicial, assim como a pena, só existe para os degradados e excluídos da
sociedade: para o devedor imprudente, o peculatário, ou o que está im-
possibilitado de pagar em conseqüência de uma desgraça. Mesmo que es-
tas pessoas representem um ônus para a vida econômica, sua importância
relativa é muito pequena para que se possa dizer que o valor da ordem
jurídica consiste nos meios que proporciona para o combate a tais ele-
mentos.
Fundamentalmente, a abrangência da ordem jurídica coativa do Es-
tado, assim, se restringe à proteção de pessoas e posses contra os que se
encontram fora da sociedade. O que o Estado realiza, além disto, para a
manutenção do direito, é de significado secundário e pode afirmar-se que
sem estas medidas a sociedade também não sucumbiria. Negócios reali-
zam-se, mesmo que precariamente, na velha repllblica polonesa e conti-
nuam a realizar-se no PQセゥ・ョエ@ atual, apesar de que o direito, por causa da
corrupção e da ineficiência, ali praticamente não merece este nome. Antes
que se realizasse a reforma judiciária na Inglaterra nos anos 30 do século
passado, os benefícios do caro e moroso processo civil não atingiam mais
que a camada superior da burguesia inglesa; isto, porém, não se constituiu
em empecilho para que os ingleses se transforn1assem num povo rico e
altamente civilizado. E mesmo na Alemanha e na Áustria a proteção jurí-
dica não era muito mais eficiente enquanto vigorava o antigo sistema judi-
ciário. Em condições assim restringe-se o crédito e procura-se inventar ou-
tros meios de segurança, o resto, porém, pern1anece por conta das associa-
ções sociais. Goethe, que notou claramente os limites da contribuição da
suprema corte para o exercício do direito, colocou o problema de máneira
muito correta. As coisas se complicam quando também falha a administra-
Funda111entos da Sociologia do !)ireito 61
ção do direito penal. Mas a Hungria, o sul da Itália, a Espanha provam que
um povo até pode suportar a rapinagem durante séculos.
Não só nos primórdios da humanidade, quando toda a sociedade se
compunha exclusivamente de pequenas associações, mas mesmo muito
mais tarde e até no presente não faltam exemplos de sociedades que se
mantêm com base exclusivamente na ordem interna de suas associações.
Onde a força do Estado é muito fraca, a rigor, não há outra ordem;
mesmo na era moderna sociedades européias se constituíram sobre a base
da ordem interna de suas associações; como exemplos pode citar-se a ve-
lha república polonesa, a Hungria dos séculos XVII e XVIII, os reinados
de Nápoles, da Sicília e o mesmo ocorre hoje no Oriente. Na Idade Média
a fraqueza do Estado conduziu ao surgimento de associações específicas
para a defesa do direito; na era moderna pode-se encontrar fenômenos
parecidos nélS confeder.:t.çües da antiga Polônia, na can1orra e na Máfia em
Nápoles e na Sicília. Por fim, pode-se citar as informações de Nõldeke a
respeito dos árabes no século VI como prova de que um grande povo e até
uma grande e rica cidade comercial podem persistir baseados exclusiva-
mente na força interna de suas associações. "É de salientar sobretudo que
em lugar nenhum entre os árabes se encontra uma formação estatal. A
gens, a tribo são unidades morais de grande autoridade, mas sem poder de
coação ... Quem não participa de um empreendimento da tribo ou da gens
expõe-se ao escárnio e ao desprezo, mas não há meio de coação contra ele.
Somente a vingança de morte garante a segurança em determinados ca-
sos. Não tenho conhecimento de que qualquer crime seja castigado por
outro meio que não seja a vingança privada. Roubar algo de um compa-
nheiro da tribo ou de um hóspede era moralmente condenado, mas orou-
bado não tinha outro meio a não ser procurar reaver por meios próprios o
objeto que lhe fora tirado. Estas condições não só imperavam entre os be-
duínos, mas também nas cidades, até em Meca. Quase não se pode acredi-
tar que um lugar, cujos habitantes mantinham extensas relações comer-
ciais muito superiores aos beduínos - pouco tempo depois foram con-
quistadores e dominadores de meio mundo-, não possuísse uma autori-
dade. Mas deve-se acentuar que a autoridade moral das pessoas mais des-
tacadas compensava plenamente esta deficiência. Quando os cabeças de
uma gens - que por sua vez também exerciam apenas uma autoridade
moral - chegavam a um acordo sobre determinado assunto, era difícil
que um indivíduo ou uma família se opusessem; apesar de que havia casos
em que isto ocorria". Estas observações de Nõldeke mostram que a exis-
tência de tal sociedade só era possível em virtude da coesão extremamente
forte e duradoura da parentela árabe e do respaldo. que cada um tinha
entre os seus.
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nunca foi n1ais do que pura pregação ou doutrina e que esta moralidade
nunca se transformoú em regra do agir para a grande massa das pessoas.
l'\tfandamentos morais continuam a ser cumpridos à risca somente no cír-
culo familiar ou de amigos; à medida que os círculos se ampliatn, sua fOrça
diminui e etn relação ao estranho o homem médio atual praticamente não
conhece uma moralidade que o comprometa a mais do que a uma simples
gentileza que não implica etn qualquer esforço maior. O ódio ao inimigo
da pátria continua a ser louvado con10 o era na tnais retnota Antigüidade.
O nível que a n1oralidade alcançou no hon1en1 n1oderno, quando se ron1-
pen1 todos os laços sociais, pode1nos aquilatar pelos relatos dos horrores
praticados nas colônias e estes イセャ。エッウ@ certan1ente aprese11tan1 apenas unia
fraç<lo do que integrantes cios povos n1ais civilizados da terra pensan1 po-
der btzer con1 autóctones indefesos.
Utna série de nor1nas jurídicas, porén1, vale para todos e diante de
todos. Wias estas pertencem ao direito estatal ou então são puras normas
de decisão, isto é, um direito válido para tribunais e órgãos estatais, mas
náo são regras do agir. Inclusive o assitn chamado direito internacional
privado e penal contén1 apenas nor1nas de decisão; destina-se somente aos
órgãos governan1entais, não ao povo. O direito vivo, mestno quando tenha
origem estatal, restringe-se, quanto ao seu conteúdo, a uma associação. Os
direitos e deveres emanados do direito estatal pressupõem o direito de ci-
dadania, o direito familiar pressupôe pertencimento a uma comunidade
fan1iliar, o direito corporativo pressupôe a participação numa corporação,
o direito contratual pressupõe o contrato, o direito hereditário mais uma
vez pressupõe o pertencin1ento a uma comunidade familiar ou a aceitação
de um benefício testamentário. Outros direitos e deveres decorren1 da
condição de funcionário público, de servidor do Estado. A situação, ィ」セ・@
em dia, apenas tnuda em relação ao direito à vida, à liberdade e à posse,
pois este, ao tnenos no âmbito incontestado da civilização européia, não
pode ser negado a ninguém, independentemente de seu pertencimento
étnico ou racial. Esta é uma conquista relativamente moderna; ainda no
século XVI o estrangeiro não tinha garantidas a vida e a posse. Nas regiões
limítrofes da civilização ainda hoje não há esta garantia, como o demons-
tram a história colonial e o destino dos negros na América. A legislação
antiescravocrata do século XIX cotnprova quão difícil fOi ensinar aos po-
vos mais ci,1lizados da terra o respeito pela vida e pela liberdade dos ne-
gros indefesos. Mas, apesar de todas estas restrições de ordem temporal e
local, o respeito pela vida, pela liberdade e pela posse de todos os homens
hoje não é mais somente uma questão de norma de decisão ou de regula-
mentação estatal, mas transforma-se, de fato, ·em fundamento do direito
vivo. Neste âmbito acanhado a humanidade hoje pertence a uma grande
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associação jurídica. Isto, porém, não vale para outras áreas do direito; so-
bretudo não é válido para o direito contratual. A insegurança na área do
crédito - um fato pern1anente em relatórios con1erciais - é prova disto.
Apesar de tudo isso, permanece de pé o fato de que na atualidade per-
siste a ética religiosa e filosófica que não restringe sua n1oralidade a apenas
uma associação humana. Este fato, no entanto, requer un1a explicação. Ele
indica que entre os espíritos n1ais destacados do inundo já despontou a
concepção de uma moralidade universal, de un1 direito que não conhece
limites. Esta idéia hoje ainda não é mais do que uni sonho que existe ape-
nas na cabeça dos n1ais nobres e dos melhores, rnas pro1nete un1 futuro
melhor e se tornou realidade no direito vivo, ao n1enos en1 tal medida que
nas regiôes em que reina a ci\·ilização n1ais adiantada se garante a toda pes-
soa a vida, a liberdade e a posse.