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ESTRUTURAL
EM ÁFRICA
Percepções deturpadas,
novas narrativas e
desenvolvimento
no século XXI
CARLOS LOPES
GEORGE KARARACH
L ISBOA
T I N T A‑ D A‑ C H I N A
MMXXII
ISBN 978‑989‑671-696-7
Depósito Legal n.º 502232/22
Agradecimentos7
Abreviaturas8
Introdução13
Apêndice313
Referências bibliográficas 317
Índice remissivo 345
O lugar ocupado pelo continente africano na cena mundial não tem sido
uma questão isenta de controvérsia, particularmente no que diz respeito
ao seu mais recente desempenho de crescimento (Jerven, 2013). Histo‑
ricamente, África tem sido retratada numa perspectiva que não faz jus à
verdadeira dimensão das suas conquistas em termos de desenvolvimen‑
to. Embora o seu território abranja mais de 30 milhões de quilómetros
quadrados, a projecção de Mercator representou o continente africano
com as mesmas dimensões que as da Gronelândia, que é 14 vezes mais
pequena. A descrição cartográfica do mundo feita por Mercator, datada
de 1569, tornou‑se uma das projecções mais influentes e amplamente
difundidas ao longo dos séculos xix e xx. Houve quem defendesse que
a intenção inicial era sobretudo proporcionar aos marinheiros uma fer‑
ramenta de navegação, devido à facilidade de assegurar a precisão dos
formatos e dos ângulos, mas o certo é que esta descrição acabou por se
tornar o mapa mundial mais reconhecido, aparecendo como pano de
fundo nos jornais televisivos, na decoração de paredes das casas, em mu‑
rais e na capa de muitos atlas.
Efectivamente, e apesar de reconhecer estas distorções, o Google
Maps continuou a usar a projecção de Mercator como base dos seus
mapas na internet. Por outro lado, muitos foram os que argumentaram
que esta projecção serviu para reforçar as atitudes coloniais do Ocidente
perante o continente africano e que foi essencial para forjar as imagens
de supremacia europeia (Peters, 1983; Henderson e Waterstone, 2009).
Em 1967, Arno Peters criou um método alternativo de olhar para os ma‑
pas, de forma a corrigir a imprecisão e o racismo que, segundo ele, eram
projectados pelo mapa de Mercator.
Sabemos hoje que a dimensão do território do continente africano
corresponde à soma total dos territórios da Índia, da China, dos Esta‑
dos Unidos e da maior parte da Europa. A economia azul (ou marítima)
africana é ainda maior do que o seu território, e representa um imenso
BREVE REFLEXÃO SOBRE AS PERCEPÇÕES DETURPADAS
O que faz com que as percepções deturpadas sobre África persistam até
aos dias de hoje? Para responder a esta questão temos de nos desviar
um pouco da cartografia e analisar alguns dos pressupostos históricos
fundamentais que desempenharam um papel importante na construção
desta visão.
O pessimismo e o cepticismo relativamente às perspectivas de de‑
senvolvimento africano estão obviamente longe de constituir uma no‑
vidade. Durante o Renascimento europeu, muitos autores e pensadores
contribuíram para apoiar as diversas bulas papais que legitimavam a co‑
lonização pelos reis exploradores; esta visão estendia‑se à representação
aviltante das pessoas negras nas obras de pintores famosos como Pigafe‑
tta, Rubens, Velázquez ou Rigaud; e incluía também a construção filosó‑
fica segundo a qual o Egipto se destacava do resto do continente como a
sociedade mais letrada. O filósofo alemão Hegel captou a essência desta
representação, proclamando que os africanos não possuíam uma histó‑
ria anterior à chegada dos europeus. Muito mais tarde, O Coração das
Trevas, de Joseph Conrad, foi ainda mais flagrante no seu imaginário,
descrevendo os africanos como «não civilizados» (Camara, 2005). Mais
recentemente, Fukuyama (1992) deu seguimento a esta tradição, procla‑
mando a supremacia da civilização ocidental como representando o «fim
da história», sugerindo assim que as culturas e tradições que não caís‑
sem no âmbito da órbita ocidental eram particularmente insignificantes.
Numa descrição distópica que consta do seu relato de viagem O Último
Comboio para a Zona Verde, Paul Theroux retrata o continente como
«a terrível, envenenada, populosa África: a África das pessoas engana‑
das, desprezadas, inadaptadas: dos flagelos aparentemente irreparáveis»
(Theroux, 2013). No seu trajecto da Cidade do Cabo até Luanda, escre‑
veu: «Tomei consciência de que estava a entrar numa zona de irraciona‑
lidade. Penetrar mais fundo em Luanda significava viajar em direcção
à loucura.» Outro excerto revelador é aquele em que Theroux fala da
música rap africana: «Naturalmente questionamo‑nos sobre o que estará
na cabeça destes jovens que adoptaram estas canções como hinos. Serão
apenas ociosos, com as mentes colonizadas pelas músicas estrangeiras?»
Theroux dá assim o seu contributo para o cânone das percepções detur‑
padas, apresentando um ponto de vista distorcido, com a agravante de
estar a escrever de forma séria sobre África.
Estas considerações sugerem que as percepções deturpadas sobre
África encontram as suas premissas em três elementos, designadamente:
a geografia não reflecte a verdadeira abrangência da actividade humana;
a economia não capta a verdadeira dotação de recursos; e a demografia
subestima o número de africanos no futuro próximo, em especial a popu‑
lação emergente, vibrante de juventude. Iremos explorar a forma como
estas questões geográficas2, económicas e demográficas têm influenciado
e continuarão a influenciar o desenvolvimento do continente. Trata‑se
de aspectos muito importantes para a compreensão da transformação
estrutural que é o enfoque deste livro. Estes aspectos têm estreita ligação
com os processos através dos quais o protagonismo africano — tanto ao
nível do estado como da sociedade — é capaz de traçar rotas autónomas
de crescimento e de desenvolvimento que tornem as descrições negati‑
vas irrelevantes e desprovidas de fundamento.
Por conseguinte, as percepções deturpadas sobre a África dos tem‑
pos modernos não dizem apenas respeito às injustiças da cartografia
UM GRANDE CONTINENTE
E A IMPORTÂNCIA DA MUDANÇA ESTRUTURAL
Food Insecurity in the World) [relatório SOFI 2015] registou uma dimi‑
nuição de 31 por cento na incidência global da fome na África subsaa‑
riana entre o período de base (1990‑1992) e 2015. Isto representou um
passo de gigante na redução para metade da percentagem da população
africana que sofre de carência alimentar. Pelo menos sete países (Angola,
Djibuti, Camarões, Gabão, Gana, Mali e São Tomé e Príncipe) atingiram
as metas, quer dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio (ODM),
quer da Cimeira Mundial da Alimentação (World Food Summit, WFS),
de reduzir para metade o número de pessoas que sofrem de fome até
2015 (FAO, 2015). Embora, no que diz respeito a estes progressos, ainda
subsistam grandes variações entre diferentes regiões, enraizaram‑se for‑
ças transformadoras de relevo ao longo dos últimos 25 anos. Inserem‑se
neste âmbito alterações significativas ao nível político, económico e de‑
mográfico, que contribuíram para um crescimento económico susten‑
tável. Este crescimento, por sua vez, impulsionou as conquistas acima
referidas, reduzindo a fome e obtendo uma melhoria substancial dos
modos de vida e do bem‑estar de milhões de africanos. Contudo, há ain‑
da muito trabalho por fazer. Cerca de 218 milhões de pessoas (uma em
cada quatro) na África subsaariana continuaram a sofrer de subnutrição
entre 2014 e 2016 — um aumento de 24 por cento face a 1990‑1992,
altura em que totalizavam 176 milhões. A abordagem producionista e
de elevado teor tecnológico (incluindo a utilização de sementes híbri‑
das, fertilizantes e pesticidas) — que tem alimentado a «Nova Revolução
Verde» africana, cada vez mais promovida como a melhor estratégia para
melhorar a produção alimentar (D’Alessandro e Zulu, 2017) — levantou
importantes questões sobre adequação e eficácia. Esta abordagem tende
a alicerçar‑se em parcerias público‑privadas, no financiamento da pro‑
moção do sector privado e também nas ligações entre agricultores afri‑
canos, fornecedores de insumos, agro‑negociantes, agro‑processadores e
retalhistas, com uma crescente penetração de supermercados em bairros
mais pobres, sendo até considerada como uma solução para a inseguran‑
ça alimentar urbana (Moseley et al., 2015).
Essencialmente, e apesar dos progressos registados, o desafio que
permanece é o de saber como alcançar vantagens mais profundas e equili‑
bradas em termos de segurança alimentar nos países da África subsaaria‑
na (FAO, 2015). A rápida urbanização e a difusão tecnológica resultaram
num pico do sector dos serviços, que representa actualmente mais de
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