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MUDANÇA

ESTRUTURAL
EM ÁFRICA
Percepções deturpadas,
novas narrativas e
desenvolvimento
no século XXI

CARLOS LOPES
GEORGE KARARACH

TRADUÇÃO DE MYRIAM ZALUAR

L ISBOA
T I N T A­‑ D A­‑ C H I N A
MMXXII

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© 2022, Carlos Lopes, George Kararach
e Edições tinta­‑da­‑china, Lda.
Palacete da Quinta dos Ulmeiros
Alameda das Linhas de Torres, 152 ­‑ E. 10
1750­‑149 Lisboa
Tels: 21 726 90 28
E­‑mail: info@tintadachina.pt
www.tintadachina.pt

Título original: Structural Change in Africa:


Misperceptions, new narratives and
development in the 21st century
© Carlos Lopes e George Kararach, 2019
Direitos reservados.
Tradução autorizada da edição inglesa
publicada pela Routledge, membro do
Taylor & Francis Group

Título: Mudança Estrutural em África:


Percepções deturpadas, novas narrativas
e desenvolvimento no século xxi
Autores: Carlos Lopes e George Kararach
Tradução: Myriam Zaluar
Revisão: Tinta­‑da­‑china
Composição: Tinta­‑da­‑china
Capa: Tinta­‑da­‑china (Pedro Serpa)

1.ª edição: Agosto de 2022

ISBN 978­‑989‑671-696-7
Depósito Legal n.º 502232/22

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ÍNDICE

Agradecimentos7
Abreviaturas8

Introdução13

1. Definir a transformação estrutural 31


2. Em busca de transformação? África não está só 77
3. Industrialização: compreender o papel das políticas
  industriais e associadas na transformação 143
4. Compreender os outros facilitadores­‑chave
  da transformação estrutural africana 199
5. Financiamento inovador para o desenvolvimento 243
6. Casos seleccionados: as dimensões nacionais
  da transformação 269
7. As circunstâncias africanas e os esforços
  rumo ao futuro 295

Apêndice313
Referências bibliográficas 317
Índice remissivo 345

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AGRADECIMENTOS

Este livro é o resultado de múltiplos esforços para influenciar os deba‑


tes sobre o desenvolvimento económico africano do ponto de vista das
narrativas e percepções. Um continente constantemente maltratado por
aqueles que se consideram ou são legitimados por outros como especia‑
listas da sua história, da sua política ou do seu desempenho ao nível do
desenvolvimento merece um tratamento mais justo. Procuramos neste
livro colmatar essa lacuna. Estamos cientes de que esta tradução aparece
quase três anos depois da edição original. Durante esse período, o mun‑
do conheceu mudanças de grande envergadura, tais como a pandemia de
COVID­‑19, as disputas comerciais entre o Ocidente e a China e a guerra
da Ucrânia. Todos estes desenvolvimentos têm um grande impacto nos
dados estatísticos e em alguns factos específicos relatados no nosso livro.
Estamos, porém, convencidos de que não alteraram a narrativa essencial
e a descrição dos desafios estruturais de África.
Este trabalho não teria sido possível sem o apoio de muitos colegas
enquanto ambos trabalhávamos na Comissão Económica para África,
em Adis Abeba. Gostaríamos de salientar os contributos de Chichi Bo‑
dart, Mestawet Mistir, Stephen Karingi, Bartholomew Armah e Adam
el-Hiraika, a quem são alheias eventuais falhas que os leitores possam
encontrar. Gostaríamos também de agradecer o zelo dos nossos amigos
Fewstancia Munyaradzi e Garth Le Pere, pela sua leitura e comentários a
todo o manuscrito, que nos permitiram apurar as nossas análises. A di‑
recção editorial de Richard Sanders foi ainda essencial para finalizarmos
o manuscrito a tempo. Queremos igualmente manifestar o nosso apreço
pelo trabalho de tradução de Myriam Zaluar. Estamos em dívida para
com o tempo e a paciência de todos eles.
Finalmente, as nossas famílias suportaram as muitas horas adicio‑
nais de trabalho que uma tarefa destas exige. Carlos agradece o papel da
sua mulher, Mara, que criou as condições para que esta obra se concre‑
tizasse. George agradece à sua família, que foi também uma constante
inspiração para o debate sobre o desenvolvimento africano.

Cidade do Cabo e Joanesburgo, Maio de 2022

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ABREVIATURAS

ACP African, Caribbean and Pacific — África, Caribe e Pacífico


ACP–EU African, Caribbean and Pacific–European Union — África, Caribe
e Pacífico–União Europeia
AERC African Economic Research Consortium — Consórcio Africano
de Investigação em Economia
AfCFTA African Continental Free Trade Area — Zona de Comércio Livre
Continental Africana
AfDB African Development Bank — Banco Africano de Desenvolvimento
AGA African Governance Architecture — Arquitectura Africana de
Governação
AIDA Accelerated Industrial Development of Africa — Desenvolvimento
Industrial Acelerado de África
APSA African Peace and Security Architecture — Arquitectura Africana
de Paz e Segurança
ARV anti­‑retrovirais
ASP average selling price — preço médio de venda
ASS África subsaariana
AUC African Union Commission — Comissão da União Africana
AuM assets under management — activos sob gestão
BCG Boston Consulting Group

BRICS Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul 

CDM Convenção [das Nações Unidas] sobre o Direito do Mar

CEEAC Communauté Économique des États de l’Afrique Centrale —
Comunidade Económica dos Estados da África Central
CEGIS Center for Environmental and Geographic Information Services

CNOOC China National Offshore Oil Corporation

CNPC China National Petroleum Corporation
CNUCED Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento
(em inglês, UNCTAD)
COMESA Common Market of Eastern and Southern Africa — Mercado Comum
da África Oriental e Austral
CSIR Council for Scientific and Industrial Research — Conselho para a
Investigação Científica e Industrial
CTI Ciências, tecnologia e inovação

DBSA Development Bank of Southern Africa — Banco de Desenvolvimento
da África Austral
DRM domestic resource mobilisation — mobilização de recursos internos
DVD digital versatile disc

EAC East African Community — Comunidade da África Oriental

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EAU Emirados Árabes Unidos



ECA Economic Commission for Africa — Comissão [das Nações Unidas]
Económica para África
ECOWAS Economic Community of West African States — Comunidade Económica
dos Estados da África Ocidental
EDN Estratégias de Desenvolvimento Nacional
EIF Enhanced Integrated Framework — Quadro Avançado de Integração
EITI Extractive Industries Transparency Initiative — Iniciativa para a
Transparência das Indústrias Extractivas
EMU European Monetary Union — União Monetária Europeia

EPRDF Ethiopian Peoples’ Revolutionary Democratic Front — Frente
Democrática Revolucionária do Povo Etíope

ERP Estratégias de Redução da Pobreza
EUA Estados Unidos da América

FAO Food and Agricultural Organization — Organização [das Nações Unidas]
para a Alimentação e a Agricultura
FMI Fundo Monetário Internacional
FT Financial Times

GEE gases com efeito de estufa

GERD Grand Ethiopian Renaissance Dam — Grande Represa Etíope
do Renascimento

GSMA Global System for Mobile Communications/Groupe Spécial Mobile

GTZ Gesellschaft für Technische Zusammenarbeit

GVC global value chains — cadeias de valor global

GW Gigawatts

HABITAT United Nations Human Settlements Programme — Programa das
Nações Unidas para a Habitação e o Assentamento 

I&D investigação e desenvolvimento

IA inteligência artificial
IADB Inter­‑American Development Bank — Banco Interamericano
de Desenvolvimento

IDE investimento directo estrangeiro
IEA International Energy Agency — Agência Internacional da Energia

IHDP International Human Dimension Programme on Global Environmental
Change — Programa Internacional para as Dimensões Humanas das
Alterações Climáticas Globais

IPCC Inter­‑governmental Panel on Climate Change — Painel
Intergovernamental sobre Alterações Climáticas
IRP international reference prices — preços internacionais de referência

IWMI International Water Management Institute — Instituto Internacional
de Gestão Hídrica
LPG Lowest­‑Priced Generics — Genéricos de Baixo Preço


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MAU Maghreb Africa Union — União da África Magrebina



MdE Memorando de Entendimento
MGI McKinsey Global Institute
MTN Mobile Telephone Network — Rede de Telefones Móveis

NDS National Development Strategies — Estratégias de Desenvolvimento
Nacional 

NEPAD New Partnership for Africa’s Development — Nova Parceria para o
Desenvolvimento Africano

NSDS National Strategy for the Development of Statistics — Estratégia Nacional
para o Desenvolvimento Estatístico
OB original brand — marca original 

OCDE Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico
ODA Overseas Development Assistance — Assistência ao Desenvolvimento
Ultramarino

ODI Overseas Development Institute — Instituto para o Desenvolvimento
Ultramarino

ODM Objectivos de Desenvolvimento do Milénio
ODS Objectivos de Desenvolvimento Sustentável

OMC Organização Mundial do Comércio
OMS Organização Mundial da Saúde

ONU Organização das Nações Unidas
OUA Organização da Unidade Africana

PAE Programas de Ajustamento Estrutural

PDSL Países em Desenvolvimento Sem Litoral
PEID Pequenos Estados Insulares em Desenvolvimento

PIB produto interno bruto

PIDA Programme for Infrastructure Development in Africa — Programa para
o Desenvolvimento de Infra­‑estruturas em África
PMA Países Menos Avançados
PNUD Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas, (em inglês, UNDP)
PNUMA Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente
PRM Países de Rendimento Médio
PTA Preferential Trade Area — Área de Comércio Preferencial
RDC República Democrática do Congo

REC Regional Economic Communities — Comunidades Económicas
Regionais

SADC Southern Africa Development Cooperation — Cooperação para
o Desenvolvimento da África Austral

SEZ Special Economic Zones — Zonas Económicas Especiais
SNA System of National Account — Sistema Nacional de Contas

TB Tuberculose
TIC tecnologias de informação e comunicação

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TRIPS Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights — Aspectos


Relacionados com o Comércio dos Direitos de Propriedade Intelectual

TWh Terawatt hours — horas terawatt

UA União Africana
UE União Europeia

UNCTAD United Nations Conference on Trade and Development —
Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento
(em português, CNUCED)
UNDESA UN Department of Economic and Social Affairs — Departamento
das Nações Unidas sobre Assuntos Sociais e Económicos
UNDP United Nations Development Programmme (em português, PNUD)
UNESCO United Nations Educational Scientific and Cultural Organization —
Organização das Nações Unidas para a Cultura, Educação e Ciência

UNFCCC United Nations Framework Convention on Climate Change —
Convenção­‑Quadro das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas
UNICEF United Nations Children Fund — Fundo das Nações Unidas para
a Infância

UNIDO United Nations Industrial Development Organization —
Organização Nações Unidas sobre Desenvolvimento Industrial

VIH Vírus da Imunodeficiência Humana
ZEE Zonas Económicas Exclusivas


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INTRODUÇÃO

África é demasiado grande para seguir um guião único,


pelo que os seus países têm adoptado caminhos diferentes
para se tornarem lugares melhores.
(The Economist, 2 de Março de 2013)

O lugar ocupado pelo continente africano na cena mundial não tem sido
uma questão isenta de controvérsia, particularmente no que diz respeito
ao seu mais recente desempenho de crescimento (Jerven, 2013). Histo‑
ricamente, África tem sido retratada numa perspectiva que não faz jus à
verdadeira dimensão das suas conquistas em termos de desenvolvimen‑
to. Embora o seu território abranja mais de 30 milhões de quilómetros
quadrados, a projecção de Mercator representou o continente africano
com as mesmas dimensões que as da Gronelândia, que é 14 vezes mais
pequena. A descrição cartográfica do mundo feita por Mercator, datada
de 1569, tornou­‑se uma das projecções mais influentes e amplamente
difundidas ao longo dos séculos xix e xx. Houve quem defendesse que
a intenção inicial era sobretudo proporcionar aos marinheiros uma fer‑
ramenta de navegação, devido à facilidade de assegurar a precisão dos
formatos e dos ângulos, mas o certo é que esta descrição acabou por se
tornar o mapa mundial mais reconhecido, aparecendo como pano de
fundo nos jornais televisivos, na decoração de paredes das casas, em mu‑
rais e na capa de muitos atlas.
Efectivamente, e  apesar de reconhecer estas distorções, o  Google
Maps continuou a usar a projecção de Mercator como base dos seus
mapas na internet. Por outro lado, muitos foram os que argumentaram
que esta projecção serviu para reforçar as atitudes coloniais do Ocidente
perante o continente africano e que foi essencial para forjar as imagens
de supremacia europeia (Peters, 1983; Henderson e Waterstone, 2009).
Em 1967, Arno Peters criou um método alternativo de olhar para os ma‑
pas, de forma a corrigir a imprecisão e o racismo que, segundo ele, eram
projectados pelo mapa de Mercator.
Sabemos hoje que a dimensão do território do continente africano
corresponde à soma total dos territórios da Índia, da China, dos Esta‑
dos Unidos e da maior parte da Europa. A economia azul (ou marítima)
africana é ainda maior do que o seu território, e representa um imenso

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potencial, ainda por explorar, para o desenvolvimento. Só as zonas maríti‑


mas sob jurisdição africana totalizam cerca de 13 milhões de quilómetros
quadrados, incluindo mares territoriais e aproximadamente 6,5 milhões
de quilómetros quadrados da plataforma continental (ECA, 2016a). Ain‑
da assim, quando, em 1992, Thomas Frederick Saarinen levou a cabo um
estudo em que testava a forma como os ocidentais viam o mundo, os re‑
sultados indicavam uma visão diminuída do tamanho e da importância
de África (Meffe, 2013). Quase duas décadas depois, Kai Kruse tentou dar
resposta àquilo a que chamou «rampant immappancy»1 (imapacia desen‑
freada) e mostrar até que ponto a projecção de Mercator distorce os ta‑
manhos relativos dos países. Com uma simples ilustração gráfica, o autor
demonstrou quão «imenso» é o continente africano (Economist, 2010).
O seu objectivo era simples: «criar uma representação gráfica simples da
afirmação: África é absolutamente gigantesca — muito, muito maior do
que você ou eu pensávamos» (Economist, 2010). Esta singela ilustração fez
sensação em todo o mundo, mas não corrigiu as percepções distorcidas
sobre África nem diminuiu a intensidade com que estas têm boicotado os
esforços desenvolvimentistas empreendidos pelos africanos.


BREVE REFLEXÃO SOBRE AS PERCEPÇÕES DETURPADAS

O que faz com que as percepções deturpadas sobre África persistam até
aos dias de hoje? Para responder a esta questão temos de nos desviar
um pouco da cartografia e analisar alguns dos pressupostos históricos
fundamentais que desempenharam um papel importante na construção
desta visão.
O pessimismo e o cepticismo relativamente às perspectivas de de‑
senvolvimento africano estão obviamente longe de constituir uma no‑
vidade. Durante o Renascimento europeu, muitos autores e pensadores
contribuíram para apoiar as diversas bulas papais que legitimavam a co‑
lonização pelos reis exploradores; esta visão estendia­‑se à representação
aviltante das pessoas negras nas obras de pintores famosos como Pigafe‑
tta, Rubens, Velázquez ou Rigaud; e incluía também a construção filosó‑
fica segundo a qual o Egipto se destacava do resto do continente como a
sociedade mais letrada. O filósofo alemão Hegel captou a essência desta
representação, proclamando que os africanos não possuíam uma histó‑

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ria anterior à chegada dos europeus. Muito mais tarde, O Coração das
Trevas, de Joseph Conrad, foi ainda mais flagrante no seu imaginário,
descrevendo os africanos como «não civilizados» (Camara, 2005). Mais
recentemente, Fukuyama (1992) deu seguimento a esta tradição, procla‑
mando a supremacia da civilização ocidental como representando o «fim
da história», sugerindo assim que as culturas e tradições que não caís‑
sem no âmbito da órbita ocidental eram particularmente insignificantes.
Numa descrição distópica que consta do seu relato de viagem O Último
Comboio para a Zona Verde, Paul Theroux retrata o continente como
«a terrível, envenenada, populosa África: a África das pessoas engana‑
das, desprezadas, inadaptadas: dos flagelos aparentemente irreparáveis»
(Theroux, 2013). No seu trajecto da Cidade do Cabo até Luanda, escre‑
veu: «Tomei consciência de que estava a entrar numa zona de irraciona‑
lidade. Penetrar mais fundo em Luanda significava viajar em direcção
à loucura.» Outro excerto revelador é aquele em que Theroux fala da
música rap africana: «Naturalmente questionamo­‑nos sobre o que estará
na cabeça destes jovens que adoptaram estas canções como hinos. Serão
apenas ociosos, com as mentes colonizadas pelas músicas estrangeiras?»
Theroux dá assim o seu contributo para o cânone das percepções detur‑
padas, apresentando um ponto de vista distorcido, com a agravante de
estar a escrever de forma séria sobre África.
Estas considerações sugerem que as percepções deturpadas sobre
África encontram as suas premissas em três elementos, designadamente:
a geografia não reflecte a verdadeira abrangência da actividade humana;
a economia não capta a verdadeira dotação de recursos; e a demografia
subestima o número de africanos no futuro próximo, em especial a popu‑
lação emergente, vibrante de juventude. Iremos explorar a forma como
estas questões geográficas2, económicas e demográficas têm influenciado
e continuarão a influenciar o desenvolvimento do continente. Trata­‑se
de aspectos muito importantes para a compreensão da transformação
estrutural que é o enfoque deste livro. Estes aspectos têm estreita ligação
com os processos através dos quais o protagonismo africano — tanto ao
nível do estado como da sociedade — é capaz de traçar rotas autónomas
de crescimento e de desenvolvimento que tornem as descrições negati‑
vas irrelevantes e desprovidas de fundamento.
Por conseguinte, as percepções deturpadas sobre a África dos tem‑
pos modernos não dizem apenas respeito às injustiças da cartografia

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actual ou às visões erróneas retratadas na literatura ou nas artes contem‑


porâneas. Estas visões enganosas também impregnam as percepções de
risco, os níveis de conflitualidade, os problemas de estabilidade política
e outras esferas da existência humana. Com efeito, África continua a ser
globalmente percebida como um continente assolado por crises e com
um ambiente arriscado para o investimento. Isto deve­‑se, em larga me‑
dida, à natureza dos conflitos africanos e à sua visibilidade mundial, que
são entendidos como problemas endémicos (Makinda, 2012). Estas re‑
presentações negativas persistem, além do mais, por causa das imagens
enraizadas na mentalidade africana, a qual exclui a possibilidade de um
protagonismo africano (Fanon, 1952). Tais representações apontam para
uma acumulação de problemas que prejudica a diversidade de um con‑
tinente que, todavia, alcançou um notável progresso desde o início do
século xxi. As representações de África organizam­‑se como narrativas
que acabam por criar um fosso entre as percepções e as diferentes reali‑
dades, no que diz respeito ao potencial de transformação do continente
para além das categorias estritamente económicas.
Torna­‑se assim essencial contextualizar tais narrativas. Fundamen‑
talmente, é preciso compreender a realidade africana confrontando­‑a e
libertando­‑a das percepções vindas do exterior, de modo que África não
seja privada do seu papel na evolução e na história da humanidade. Che‑
gou a hora de mudar a narrativa, para que uma nova perspectiva, mais
realista, possa superar o muito apregoado guião sobre «o despertar afri‑
cano». Tal objectivo só poderá ser alcançado através de um acentuado
enfoque na agenda de transformação e nos desafios enfrentados por um
continente em rápido desenvolvimento, amplamente sustentado por um
protagonismo localizado.

UM GRANDE CONTINENTE
E A IMPORTÂNCIA DA MUDANÇA ESTRUTURAL

África viveu um crescimento sem precedentes ao longo da última década e


meia e tem permanecido como a segunda região do mundo a crescer mais
rapidamente desde o início do milénio. Apesar das recessões e das incerte‑
zas económicas provocadas pela crise financeira mundial de 2008, muitos
países da região continuam a crescer, situando­‑se entre as economias de

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crescimento mais rápido em todo o mundo. Os indicadores macroeconó‑


micos são os melhores desde as independências. Na viragem do milénio,
o PIB era de 600 mil milhões; em 2013, aumentou de forma extraordinária
para 2,2 biliões de dólares, representando uma das trajectórias de cresci‑
mento mais rápidas da história (AfDB, 2014). Em comparação, a China
levou 12 anos a duplicar o seu PIB per capita, a Índia 17 anos, e os Estados
Unidos e a Alemanha entre 30 e 60 anos (Barth et al., 2009).
A ideia de uma «grande» África continental é frequentemente asso‑
ciada à sua riqueza em recursos naturais. Onuoha (2016) defende que a
abundância de recursos proporciona ao continente a autoconfiança e a es‑
perança de um crescimento contínuo. A narrativa do «despertar africano»
tenta descrever o imenso potencial de crescimento do continente. Exis‑
tem inúmeros indícios de que um dos motores do crescimento africano
tem sido um superciclo de produção (de matérias­‑primas) que conferiu
poder às economias dos países especialmente ricos em recursos naturais.
Efectivamente, a descoberta de novos recursos alimentou o aumento do
IDE (investimento directo estrangeiro) em África por parte de potências
emergentes como a China, a Índia, o Brasil e a Rússia, na medida em que
estas procuram as mercadorias necessárias ao seu próprio crescimento e
desenvolvimento (Kararach e Odiambo, 2017; ECA, 2018).
Contudo, o optimismo económico das duas últimas décadas tem sido
refreado por uma combinação de factores, incluindo a volatilidade dos
preços das matérias­‑primas; o abrandamento e reajustamento da econo‑
mia chinesa; a seca generalizada, especialmente na África oriental e me‑
ridional; e a insegurança e instabilidade crescentes no Corno de África
(Hanson et al., 2017). Estes ventos adversos apontam para a importância
da transformação estrutural. Tal transformação só poderá ocorrer através
da diversificação das economias africanas, da dinamização da sua com‑
petitividade nos mercados mundiais, do aumento das quotas da indústria
transformadora no seu PIB e da utilização de tecnologias mais sofisticadas
na produção. As economias tornar­‑se­‑ão então mais prósperas, menos de‑
pendentes da ajuda externa e muito mais resilientes aos choques (Kara‑
rach, 2014), conforme demonstra o crescimento alcançado por diversos
países asiáticos e latino­‑americanos ao longo das últimas décadas.
A importância da mudança estrutural prende­‑se sobretudo com o
facto de a distribuição mundial do trabalho ter atrasado as economias
africanas face a outros grupos de países, mantendo­‑as dependentes das

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exportações de produto primário (Lawrence e Graham, 2015). Os preços


destas matérias­‑primas têm estado frequentemente em queda, o que, por
sua vez, provoca um declínio considerável das condições comerciais de
África e da sua quota nas exportações mundiais. Por outro lado, o co‑
mércio interafricano tem crescido, assim como as trocas comerciais com
o continente asiático (com um aumento de 27,9 por cento em 2017, face
a 26,3 por cento em 2016) (Afreximbank, 2018). Porém, nesta depen‑
dência das exportações de produto primário, os minérios têm desem‑
penhado um papel cada vez mais importante, o  que em alguns países
acabou por exacerbar as suas vulnerabilidades (Kararach e Odhiambo,
2016). Enquanto as exportações dos países mais desenvolvidos conhe‑
ceram, nos últimos anos, uma maior diversificação, em muitos países
africanos as exportações concentram­‑se num número reduzido de pro‑
dutos, como o petróleo, os diamantes e o café, conforme demonstra o
índice de Herfindahl­‑Hirschman3.
A liberalização do comércio mundial não ajudou a agricultura
africana, já que as suas exportações diminuíram, tornando­‑se o conti‑
nente um importador líquido de bens alimentares. Não obstante a lógi‑
ca da liberalização, não deixa de ser irónico que a agricultura dos paí‑
ses desenvolvidos continue a ser altamente subsidiada4. A  liberalização
do comércio, imposta ao continente africano através dos programas de
«ajustamento estrutural», teve efeitos igualmente negativos nas tenta‑
tivas de se industrializar. E, apesar da pressão liberalizadora dos países
desenvolvidos, tal não impediu o «preconceito tarifário» em relação aos
países africanos, que ainda enfrentam obstáculos significativos à expor‑
tação para países desenvolvidos, em comparação com as taxas bem mais
baixas que vigoram entre estes últimos. A indústria reduzida e predomi‑
nantemente de capital intensivo existente nos países africanos não criou
tanto emprego quanto inicialmente o fez nos países desenvolvidos. A per‑
centagem média do emprego na indústria entre os países africanos é de
11 por cento, enquanto a contribuição da indústria para o PIB é de
21 por cento. Já nos países de rendimento elevado, estas são, respecti‑
vamente, de 26 e 23 por cento (números de 2017). Assim, o sector dos
serviços e o investimento para transformar a agricultura tornaram­‑se es‑
pecialmente relevantes como catalisadores da mudança estrutural e da
criação de emprego. Por conseguinte, a disponibilidade de uma mão­‑de­
‑obra urbana e com mais formação é um sinal de que as economias afri‑

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canas estão bem colocadas para um maior desenvolvimento da indústria.


Uma estratégia alicerçada no processamento de recursos agrícolas e mi‑
nerais internos poderia ajudar a criar um sector de bens de investimento.
Esta abordagem poderia ser complementada com uma política científica,
tecnológica, de investigação e desenvolvimento activa, a fim de adaptar as
tecnologias importadas às necessidades locais. O desafio que se coloca à
indústria é encontrar um caminho viável que lhe permita produzir bens
essenciais para o consumo de massas (ECA, 2013; Lawrence e Graham,
2015). No entanto, limitar­‑se a reproduzir ou a tentar imitar o percurso
de industrialização empreendido pelas economias agora industrializadas
(ou pós­‑industrializadas?) pode não ser a melhor opção, e seguramente
nem é uma opção obrigatória (Chang, 2002, 2007; Kararach, 2014).
À medida que o próprio capitalismo avançado evolui, assumindo
novas formas de organização social, a identificação das actividades eco‑
nómicas do futuro tem de levar em conta o crescimento das actividades
não mercantis, o recurso ao auto­‑emprego e a diminuição da mão­‑de­
‑obra assalariada na indústria tradicional. O aumento dos empregos de
baixo salário no sector dos serviços também contribui para reduzir o
potencial de crescimento dos mercados, dada a limitada «comerciabili‑
dade» destes serviços, o que pode igualmente subverter uma estratégia
de industrialização apoiada num mercado de consumo de massas.

UMA ÁFRICA EM MUTAÇÃO: A ECONOMIA E A DEMOGRAFIA

Por volta de 2050, a  África subsaariana (ASS) terá uma mão­‑de­‑obra


mais numerosa e mais jovem do que a China ou a Índia5. Juntamente
com a abundância em terra e recursos naturais do continente, esta mão­
‑de­‑obra pode representar uma vantagem competitiva e um activo valio‑
so na dinamização da transformação económica (ACET, 2014). Recen‑
temente, os países africanos conheceram um período de ressurgimento
após décadas de estagnação económica generalizada, turbulência política
e conflitos (Cheru, 2002). O elevado crescimento económico foi essen‑
cialmente impulsionado por uma melhor política de desenvolvimento,
combinada com uma revitalização comercial nos sectores prósperos das
telecomunicações, da banca, do retalho, dos minérios e da construção
(Kararach, 2014). A reforma do sector público foi crucial para melhorar

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de forma significativa a eficiência do estado. Além do mais, também não


podemos ignorar uma nova corrida pelos recursos e pelas oportunidades
económicas de África por parte dos países ocidentais, assim como das
economias emergentes (Carmody, 2011). Todos estes factores colocaram
o continente no centro das relações internacionais, das negociações e
dos acordos económicos, bem como das transacções geopolíticas (Cor‑
nelissen et al., 2012). As dinâmicas urbanas estão no cerne da renovação
e do potencial de crescimento africanos, como se pode comprovar pela
importância crescente das classes médias, pela concentração de consu‑
midores e de mercados (urbanos), pela emergência de novos desafios de
bem­‑estar e pela necessidade de soluções criativas e inovadoras perante
os rápidos ritmos de urbanização6. É preciso instituir uma transforma‑
ção urbana estratégica (Versi, 2014) que seja potenciada por soluções
eficazes e sustentáveis para os desafios associados ao desenvolvimento
(Grant, 2015). As áreas que exigem este tipo de atenção na era pós­‑2015
incluem habitação adequada, transportes, infra­‑estruturas e outros ser‑
viços, além da resolução de outros problemas, como a escassez energé‑
tica, a insegurança alimentar e a poluição (D’Alessandro e Zulu, 2017).
As estratégias de industrialização, incluindo a criação de parques
e pólos industriais, de zonas económicas especiais e de corredores de
transporte multimodais, vêm igualmente evidenciar a importância da
geografia para a transformação e o desenvolvimento. Até a criação de
emprego e o desenvolvimento do sector privado — como impulsionador
fundamental do desenvolvimento económico e social — estão ligados
com uma série de mudanças directas e indirectas do mundo rural para
o urbano. A nova ênfase nas economias e nas indústrias contribui para
atrair as atenções para os impactos ambientais das actividades económi‑
cas e, em geral, para a qualidade de vida das populações e das comuni‑
dades. Esta consideração deve ser o alvo central de um desenvolvimento
transformador. Se for gerida de forma adequada, África, em particular a
área subsaariana, pode tornar­‑se cada vez mais uma nova fronteira para
o desenvolvimento no século xxi (Grant, 2015).
Também se registaram alguns progressos na área essencial da pro‑
dução e da segurança alimentares. A  Organização das Nações Unidas
para a Alimentação e a Agricultura (FAO) notou que «as perspectivas
africanas de segurança alimentar são as mais promissoras de sempre»
(FAO, 2015). O  Relatório da Insegurança Alimentar de 2015 (State of

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Food Insecurity in the World) [relatório SOFI 2015] registou uma dimi‑
nuição de 31 por cento na incidência global da fome na África subsaa‑
riana entre o período de base (1990­‑1992) e 2015. Isto representou um
passo de gigante na redução para metade da percentagem da população
africana que sofre de carência alimentar. Pelo menos sete países (Angola,
Djibuti, Camarões, Gabão, Gana, Mali e São Tomé e Príncipe) atingiram
as metas, quer dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio (ODM),
quer da Cimeira Mundial da Alimentação (World Food Summit, WFS),
de reduzir para metade o número de pessoas que sofrem de fome até
2015 (FAO, 2015). Embora, no que diz respeito a estes progressos, ainda
subsistam grandes variações entre diferentes regiões, enraizaram­‑se for‑
ças transformadoras de relevo ao longo dos últimos 25 anos. Inserem­‑se
neste âmbito alterações significativas ao nível político, económico e de‑
mográfico, que contribuíram para um crescimento económico susten‑
tável. Este crescimento, por sua vez, impulsionou as conquistas acima
referidas, reduzindo a fome e obtendo uma melhoria substancial dos
modos de vida e do bem­‑estar de milhões de africanos. Contudo, há ain‑
da muito trabalho por fazer. Cerca de 218 milhões de pessoas (uma em
cada quatro) na África subsaariana continuaram a sofrer de subnutrição
entre 2014 e 2016 — um aumento de 24 por cento face a 1990­‑1992,
altura em que totalizavam 176 milhões. A  abordagem producionista e
de elevado teor tecnológico (incluindo a utilização de sementes híbri‑
das, fertilizantes e pesticidas) — que tem alimentado a «Nova Revolução
Verde» africana, cada vez mais promovida como a melhor estratégia para
melhorar a produção alimentar (D’Alessandro e Zulu, 2017) — levantou
importantes questões sobre adequação e eficácia. Esta abordagem tende
a alicerçar­‑se em parcerias público­‑privadas, no financiamento da pro‑
moção do sector privado e também nas ligações entre agricultores afri‑
canos, fornecedores de insumos, agro­‑negociantes, agro­‑processadores e
retalhistas, com uma crescente penetração de supermercados em bairros
mais pobres, sendo até considerada como uma solução para a inseguran‑
ça alimentar urbana (Moseley et al., 2015).
Essencialmente, e  apesar dos progressos registados, o  desafio que
permanece é o de saber como alcançar vantagens mais profundas e equili‑
bradas em termos de segurança alimentar nos países da África subsaaria‑
na (FAO, 2015). A rápida urbanização e a difusão tecnológica resultaram
num pico do sector dos serviços, que representa actualmente mais de

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metade do crescimento africano. O aumento dos gastos e da afluência


dos consumidores fará com que em 2020 já existam em África mais de
1,1 mil milhões de consumidores — mais do que a soma das populações
da Europa e da América do Norte —, com duas vezes mais consumido‑
res prósperos do que o Reino Unido (BCG, 2016). As ligações à internet
têm melhorado, com alguns países a atingirem taxas de conectividade de
83 por cento. Em 2020, todos os africanos terão um telemóvel e cerca de
metade, um smartphone. Enquanto o mundo se debate com as questões
do desenvolvimento sustentável, os países africanos têm oportunidades
reais de desenvolver economias resilientes ao carbono. O potencial dos
seus recursos energéticos renováveis é enorme. África está bem­‑dotada
de depósitos de gás natural, que permanecem em larga escala inexplo‑
rados; possui mais de 350 GW de potência hídrica; mais de 100 GW de
energia eólica; 10 000 GW de energia solar; e 15 GW de energia geo‑
térmica (IEA, 2014). Há um grande optimismo quando à possibilidade
de o continente tirar partido do potencial da «internet das coisas» para
transformar os seus sistemas produtivos.
Contudo, o  impacto africano sobre a economia mundial ainda
não se faz verdadeiramente sentir, e  há uma razão simples para isso.
O notável desempenho económico no seu todo não espoletou o tipo de
transformação capaz de criar emprego produtivo suficiente, de melho‑
rar as condições de vida e de lidar de forma adequada com os desafios
da desigualdade. Mais recentemente, o sucesso do crescimento africano
demonstrou ser vulnerável à volatilidade dos preços das mercadorias,
assim como à fragilidade da procura e da percepção.
Estas insuficiências têm estado ligadas a um investimento e cresci‑
mento limitados no que concerne às economias internas de muitos paí‑
ses africanos. Estes devem, por conseguinte, manter o seu processo de
transformação de forma a criar empregos e a aumentar os rendimentos
e a riqueza. Efectivamente, é esta a agenda que domina actualmente os
discursos dos líderes locais, o que se traduz numa clara tomada de cons‑
ciência daquilo que não aconteceu, conforme demonstrado pela baixa
produtividade da agricultura, pela contracção do valor acrescentado da
indústria, pela parca redução da pobreza e pela falta de empregos e de
políticas de inclusão. Os países africanos encontram­‑se numa encruzi‑
lhada com muitas probabilidades a seu favor, especialmente as megaten‑
dências ao nível das alterações demográficas, tecnológicas e ambientais,

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além da rápida urbanização. A abundância do continente em recursos


naturais — cerca de 12 por cento das reservas de petróleo mundais,
40 por cento do ouro e 80 a 90 por cento dos metais do grupo do crómio
e da platina — pode ser usada para estimular a industrialização dinâmica
susceptível de conduzir a uma transformação estrutural. A diversificação
e a industrialização, incluindo a industrialização verde, desempenham
um papel crucial, não só para as economias nacionais, mas também para
os espaços geográficos, accionistas, grupos sociais e comunidades que
irão beneficiar das alterações trazidas pela industrialização. Os exemplos
da Etiópia e da Tanzânia — o estabelecimento de clusters industriais e o
reforço da coordenação entre transformação urbana e desenvolvimento
industrial — demonstram que as políticas e as actividades económicas
podem ter um impacto positivo nas geografias económicas multiescala‑
res africanas, inclusivamente nas infra­‑estruturas locais, como os portos
(UN­‑Habitat, 2014; Léautier et al., 2015).
Contudo, é preciso confrontar e alterar a narrativa negativa. E isso
não pode ser levado a cabo sem uma mudança da mentalidade colectiva
africana. Não é preciso dizer que, para atingir tal objectivo, é essencial
que os africanos assumam o protagonismo, assumindo e liderando o
processo de transformação. Um complexo de percepção deturpada faz
com que a transformação estrutural se torne excessivamente difícil. Por
conseguinte, temos de tentar promover as ricas e múltiplas narrativas
da experiência africana passada e presente. Se esta tentativa sair gorada,
permanecerão as atitudes negativas e depreciativas perante África, pre‑
dominantemente escritas e ditadas por outros, mas, por vezes, surpreen‑
dentemente, também por africanos.

PARA ALÉM DAS ABORDAGENS ESTRUTURALISTAS


DO DESENVOLVIMENTO DE ÁFRICA

Quando se discute as questões do desenvolvimento em África, tem sido


notado, e  bem, que não basta simplesmente sublinhar a natureza om‑
nipresente do fracasso, da malnutrição, da doença, dos estados preda‑
tórios e da guerra (Rutten et al., 2008). Temos também de reconhecer
que vários aspectos importantes das vidas de milhões de pessoas comuns
se transformaram ao longo das últimas cinco décadas. Por conseguinte,

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torna­‑se crucial que a análise seja ancorada em investigação empírica,


a qual deve incluir factores locais, regionais e/ou nacionais nos diferentes
países africanos, assim como uma visão pan­‑africana mais abrangente.
Temos também de considerar perspectivas analíticas diferentes, que te‑
nham em conta a heterogeneidade da pobreza e dos défices nos proces‑
sos de desenvolvimento da África subsaariana, de forma a confrontar
as ideias, os conceitos e os pressupostos subjacentes às políticas contra
a pobreza. É  importante encorajar os decisores políticos a escolherem
receitas políticas que sejam capazes de tirar as pessoas da pobreza.
Nos anos mais recentes, instituições como a Comissão Económica
das Nações Unidas para a África (ECA, 2013; 2014a; 2015a) e o Banco
Africano de Desenvolvimento (AfDB, 2014) promoveram com reno‑
vado vigor a centralidade de um «estado desenvolvimentista» e de um
«regionalismo desenvolvimentista» como base para a transformação do
continente. Mkandawire (2001) também defendeu que um estado desen‑
volvimentista era uma possibilidade real em África. Parte do renovado
interesse no «desenvolvimentismo» reflecte esta realidade: as explicações
convencionais para os frágeis desempenhos económicos em África não
costumam dedicar a devida atenção aos verdadeiros mecanismos causais
do crescimento, do declínio e da estagnação. Várias economias africanas
conheceram picos de investimento após as suas independências, mas,
em contraste com as economias do leste asiático, cuja industrialização é
mais recente, não foram ancoradas num círculo virtuoso de crescimento
que envolvesse o aumento complementar das poupanças e das expor‑
tações, bem como a necessária criação de emprego. Ao desmantelarem
o desenvolvimento mediado pelo estado sem porem em marcha alter‑
nativas viáveis, os programas de ajustamento estrutural fracassaram na
resposta aos constrangimentos estruturais que impedem o aumento da
produtividade na agricultura e na economia no seu sentido mais alarga‑
do (Akyüz e Gore, 2001). A noção de estado desenvolvimentista deriva
da noção não neoclássica da economia que reconhece explicitamente o
possível fracasso do mecanismo de mercado na optimização dos resul‑
tados económicos e do desenvolvimento em sentido abrangente. Assim,
a intervenção do estado pode tornar­‑se necessária em pelo menos três
instâncias: a) onde os mercados sejam inexistentes e se torne necessária
a criação dos mesmos; b) onde os mercados fracassem na optimização
de resultados, devido a factores como assimetria informativa ou com‑

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portamentos anti­‑trust por parte de empresas em busca de lucros; e c)


onde exista a atribuição de papéis através dos quais os retornos sociais
dos investimentos sejam mais elevados do que os lucros privados, le‑
vando assim as empresas privadas a evitar comprometer­‑se em sectores
de fornecimento de «bens públicos». Nestes três casos, o estado tem a
capacidade de tomar decisões estratégicas que libertem as dinâmicas do
mercado, instituindo mecanismos regulatórios e outros incentivos (Ka‑
rarach, 1997). O estado compromete­‑se desta forma no lançamento de
políticas e programas de desenvolvimento da produção (IADB, 2014).
O estado desenvolvimentista é simultaneamente ideológico e estrutu‑
ral na sua natureza (Mkandawire, 2001). Em termos ideológicos, a razão
de ser do estado é concentrar­‑se no desenvolvimento e na transformação
como objectivos primordiais, interpretados como crescimento virtuoso,
industrialização, criação de emprego, etc. Estruturalmente, o estado tem de
demonstrar capacidade para planear e executar estes objectivos de desen‑
volvimento e de transformação, independentemente das forças sociais que
possam contrariar tais esforços. O estado precisa, por conseguinte, de ter
a capacidade de mobilizar os recursos financeiros e humanos, e também
as coligações políticas e sociais, necessários ao desenvolvimento. No que
diz respeito às coligações, isto implica navegar pelas diversas dinâmicas
da economia política e maximizar os resultados do desenvolvimento pla‑
neado, investindo, por exemplo, nas infra­‑estruturas e capacidades neces‑
sárias. No essencial, é importante reconhecer a complexidade das oportu‑
nidades, assim como dos desafios do desenvolvimento, e o facto de estes
se encontrarem num estado de transição (Rucipero, 2001; Kararach et al.,
2012). Por causa desta complexidade, assim como de problemas relaciona‑
dos com o protagonismo local, Hart (2001) defendeu a necessidade de re‑
visitar os pressupostos e as aplicações das políticas e das práticas de desen‑
volvimento. Diawara (2000) analisa a natureza essencial do conhecimento
local na formação das dinâmicas, assim como do protagonismo local no
desenvolvimento. Embora as características estruturais sejam passíveis de
circunscrever o desenvolvimento, elas só parcialmente dão forma à sua
trajectória. Torna­‑se assim útil adoptar uma visão «pós­‑estruturalista» do
desenvolvimento e compreender as implicações não só do conhecimento
local integrado, mas também do protagonismo africano. Por exemplo, as
dimensões cultural e política que dizem respeito à idade e ao género dos
grupos considerados condicionam a forma como o «desenvolvimento» é

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levado a cabo, quer por governos, quer por parceiros de desenvolvimento.


Ainda que a crítica pós­‑estruturalista do desenvolvimento seja justificável,
é necessário dar­‑lhe um toque de economia política. Este ponto de vista
adicional permite que os especialistas em desenvolvimento não se tornem
os únicos cernes de análise, mas que esta também inclua actores como os
pequenos agricultores. Qualquer abordagem que tenha por objectivo com‑
preender o desenvolvimento africano e desafios relacionados e que ignore
os papéis dos agentes locais em favor de grandes actores como o Banco
Mundial está a passar ao lado da realidade do desenvolvimento como ac‑
tividade homogénea. Para pôr de parte excessos teóricos estéreis, temos de
levar em conta os papéis dos diferentes actores na sociedade e considerar
a forma como cada um define a sua própria realidade de desenvolvimento.
É importante ter uma visão pós­‑estruturalista do desenvolvimento africa‑
no, porque as actuais narrativas alimentam tanto as percepções deturpadas
quanto uma exuberância indesejada. A narrativa do «despertar africano»
confere um significado distorcido e estreito ao desenvolvimento, definido
como crescimento do PIB e dos activos corporativos, sem prestar a devida
atenção às questões da inclusão social, principalmente no que diz respeito
à expansão de uma economia vertical (Fioramonti, 2016). Pillay (2016)
aponta três razões pelas quais a narrativa actual é enganadora. Em primei‑
ro lugar, como foi sugerido por Morten Jerven (2013), os picos de cres‑
cimento de África partem geralmente de uma base muito baixa, se nos
fiarmos nas medições. Em segundo lugar, a maior parte deste crescimento
tem origem nos sectores de extracção e nos enclaves, e não considera as
perdas líquidas para o continente devidas à exploração do seu crude por
empresas estrangeiras. Em terceiro lugar, o desenvolvimento definido de
forma limitada pelos juros obtidos pelos investidores raramente se traduz
em benefícios e numa melhoria na qualidade de vida das pessoas comuns.
A realidade no terreno é, por conseguinte, muito diferente e sus‑
tentada por forças que procuram aumentar a marginalização de África
na moderna divisão do trabalho. Neste aspecto, a narrativa do «desper‑
tar africano» é sobretudo um apelo aos investidores e às multinacionais,
motivados pela perspectiva de lucro e com pouca consideração pelos im‑
perativos do desenvolvimento africano (Landsberg, 2018).
Existe, portanto, uma necessidade ainda maior de promover o pro‑
tagonismo africano. Em vez de se deixar atolar na exuberância da nar‑
rativa do «despertar africano», África deve tentar erguer­‑se através das

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suas próprias iniciativas e esforços. África tem de derrotar a «maldição


de Berlim», o legado do colonialismo que gerou uma mentalidade que
dá mais valor às instituições e ao conhecimento não­‑local e que também
premeia mais o estado­‑«nação» e a soberania, ao mesmo tempo que pre‑
judica a evolução das ideologias locais e dos sistemas de crenças que são
cruciais para resolver problemas locais (Adebajo, 2010). É  importante
compreender as «circunstâncias» e os «esforços» que definem a evolução
da desigualdade, da pobreza e do subdesenvolvimento, tanto ao nível
individual quanto ao nível dos diferentes países africanos, de forma a
garantir que levamos os debates sobre transformação para além das mu‑
danças estruturais e sectoriais estáticas.

O DESAFIO DA IMAGEM DE MARCA DO CONTINENTE


E O OBJECTIVO DESTE LIVRO

África é actualmente um continente com algumas das melhores oportu‑


nidades de investimento de alto retorno e de desenvolvimento socioe‑
conómico rápido, mas sustentável. África é muito grande, mas a sua
narrativa, o seu potencial e, em certos casos, a sua realidade são delibe‑
radamente subavaliados e corrompidos, o que se altera quando os dados
de crescimento são conhecidos. Por exemplo, a recente reindexação do
PIB do Gana, da Nigéria e do Quénia atraiu muitas atenções, porque
as economias destes países se expandiram consideravelmente de um dia
para o outro (World Economics, 2016). Isto levanta a questão de saber
se existem outras economias africanas que tenham o seu PIB sistemati‑
camente subavaliado. E qual será a dimensão exacta dessa subavaliação?
Um estudo conduzido pela World Economics (2016) sobre uma amostra
de exercícios recentemente reindexados de 15 países africanos sugere um
aumento médio de 3,24 por cento do PIB por cada ano passado sobre a
reindexação de cada um dos países considerados. A média de anos passa‑
dos sobre a mais recente reindexação dos países africanos é de 9,2. Con‑
siderando o aumento médio anual de 3,24 por cento e multiplicando­‑o
pelo número de anos passados desde a sua última reindexação, ficamos
com uma estimativa do quanto o PIB de cada país africano poderá estar
subavaliado. Estes cálculos sugerem que, no seu conjunto, o PIB de Áfri‑
ca poderá estar subavaliado em aproximadamente 21,5 por cento.

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Porém, se o continente tem indubitavelmente um enorme potencial,


enorme é também o desafio que se coloca aos líderes africanos numa al‑
tura em que os países se preparam para ocupar o seu lugar na futura eco‑
nomia global. Eles terão de transformar as suas economias num contexto
de clima mundial adverso, no qual os padrões de industrialização mu‑
daram, caracterizando­‑se por negociações comerciais pouco amigáveis,
direitos de propriedade intelectual complexos, espaço político diminuí‑
do e estruturas internas fracturadas. Apesar de o crescimento na área das
novas tecnologias, como a internet, apresentar oportunidades no cam‑
po da administração pública electrónica e no fornecimento de serviços,
está também eivado de ameaças, como o terrorismo, a ciberinsegurança,
a manipulação de dados macro e as fake news. Em consequência de todos
estes factores, o protagonismo africano está constantemente a ser amea‑
çado por forças fracturantes ao nível interno e mundial.
As eleições de 2017 no Quénia suscitaram preocupações relativas à
utilização de plataformas electrónicas na gestão dos processos eleitorais
e à forma como o autoritarismo eleitoral é perpetuado (a tendência para
as eleições serem manipuladas com vista a reforçar os regimes vigentes).
Da mesma forma, o surgimento de governos populistas, como o de Do‑
nald Trump nos Estados Unidos, aponta para um futuro relativamente
proteccionista com o qual o continente terá de se confrontar (Hanson
et al., 2017). Há ainda outros problemas ligados aos estupefacientes, ao
crime organizado e ao tráfico de seres humanos, assim como extremis‑
tas religiosos como o grupo Boko Haram. Há quem argumente que o
regionalismo desenvolvimentista é a melhor opção para o continente
africano. Este deveria definir as prioridades de desenvolvimento ade‑
quadas e implementá­‑las num mundo globalizado, precário e cada vez
mais incerto. Se as questões da transformação devem ser abordadas de
forma séria, as soluções não podem ser dissociadas dos próprios elemen‑
tos que procuram prejudicar o tremendo potencial de transformação do
continente. Neste volume iremos preocupar­‑nos sobretudo com a forma
como África poderá potenciar os seus diversos activos de «desenvol‑
vimento», incluindo a geografia, a economia e a demografia, de modo
a obter uma transformação estrutural eficaz. Os  nossos argumentos
baseiam­‑se na premissa de que muitas das receitas políticas que foram
impostas aos países africanos a partir do exterior, como os programas de
ajustamento estrutural dos anos 1980 e 1990 e os planos estratégicos de

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redução da pobreza que se lhes seguiram, pouco fizeram para transfor‑


mar o continente, em grande parte porque foram concebidos e aplicados
num contexto inadequado. Com demasiada frequência, estas recomen‑
dações políticas convencionais concentram­‑se em modelos de tamanho
único e nos negócios do costume (business as usual), que não acomo‑
dam as diversas realidades africanas, em rápida mudança, além de não
darem espaço ao protagonismo local. Este volume é, pois, uma reflexão
abrangente tanto sobre a promessa quanto sobre a falácia da narrativa do
«despertar africano» e sugere trajectórias práticas e necessárias para o
desenvolvimento sustentável de África.

NOTAS

1 O insuficiente conhecimento geográfico do território da região e o resto do mundo.


2 Para visões contrastantes da influência da geografia no desenvolvimento económico, ver
Jared Diamond (1997) e Acemoglu et al. (2001).
3 Índice que mede a concentração de exportações dos países individuais.
4 Por exemplo, o governo dos Estados Unidos paga actualmente cerca de 25 mil milhões
de dólares em dinheiro aos agricultores e proprietários agrícolas.
5 As projecções das Nações Unidas sobre população estimam para 2050 uma mão­‑de­
‑obra de mil milhões de africanos, o que representa um aumento de 12 para 23 por cento
da proporção do continente em relação à mão­‑de­‑obra mundial; em comparação, na Chi‑
na serão cerca de 212 milhões e um pouco menos de mil milhões na Índia.
6 As projecções da percentagem de africanos a viver em áreas urbanas indicam um cres‑
cimento de 36 por cento em 2010 para 56 por cento em 2050.

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MUDANÇA ESTRUTURAL EM ÁFRICA
foi composto em caracteres Minion Pro e impresso
em papel Super Snowbright de 80 g, pela
Rainho & Neves, em Julho
de 2022.

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