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O NEOLIBERALISMO RELIGIOSO E

ARISTOCRÁTICO DE VON MISES

Resumo
tese de endida no artigo é de que o neoliberalismo de von
Mises undamenta-se em uma iloso ia de inspiração religiosa
A e aristo ráti a. De ende-se que a teoria de von Mises ontém
um omprometimento om uma ontologia de dois mundos, inspirada
pela iloso ia de Tomás de Aquino. Tal ontologia de natureza religiosa
ganha aráter se ular om o argumento aristo ráti o, presente em sua
teoria da história, sua visão da demo ra ia e do un ionamento dos
mer ados. Con lui-se que o neoliberalismo de von Mises baseia-se em
argumentos da reação eudal à as ensão do apitalismo, om o im de
preservar e justi i ar este último.

Palavras-chave: von Mises; neoliberalismo; religião; aristo ra ia.

Classi icação JEL: B25; B11; B00.

Abstract
This paper de ends that von Mises’ neoliberalism is grounded on a
ANDRÉ GUIMARÃES religious and aristo rati philosophy. It is maintained that von Mises’
AUGUSTO theory in ludes a ommitment with an ontology o two worlds,
Pro essor do Departamento
de E onomia da Universidade inspired by Thomas Aquinas. This religious ontology be ame se ular
Federal Fluminense e pesqui- through the aristo rati argument omprised in von Mises theory
sador do Nú leo Interdis i-
plinar de Estudos e Pesquisas o history, politi al theory and his on eption o markets. In the
sobre Marx e o Marxismo
(NIEP-Marx/UFF). on lusion it is indi ated that von Mises’ neoliberalism is based on the
allegations made by the eudal rea tion to the en ontrada de orma mais a abada nos ir uitos
raise o apitalism, but to support and justi y dos autodenominados libertários ameri anos,
the last. organizados em torno do von Mises Institute.
Keywords: von Mises, neoliberalism, religion, A sagrada aliança do neoliberalismo ganhou
aristo ra y. visibilidade re entemente no Brasil em mani-
estações de rua, mas é en ontrada nos últimos
tempos, de orma otidiana, na imprensa, em
pregações religiosas e no dis urso de vários
O neoliberalismo muitas vezes é identi i ado políti os. A questão que move o artigo é se tal
om o onjunto de políti as estabele idas a par- aliança, aparentemente in oerente, en ontra
tir dos anos 1980 nos governos Reagan e Tha- sentido e undamentação na ideologia neolibe-
t her e di undidas nas dé adas seguintes. Ou- ral em sua orrente austría a.
tras vezes, o neoliberalismo, omo orrente de É na obra de Ludwig von Mises que a expressão
pensamento, é identi i ado omo tendo origem mais pura dos undamentos da argumentação
na undação da So iedade de Mont Pèlerin, em neoliberal pode ser en ontrada.1 O lançamento
1947. Reunindo nomes omo Hayek, von Mises, do Liberalismo de von Mises em alemão em 1927
Karl Popper e Milton Friedman, a So iedade de e em inglês em 1962 assinala o nas imento da
Mont Pèlerin era o think tank do qual sairiam ideologia – termo que o próprio von Mises usa
os prin ípios que undamentariam as políti as para de inir o liberalismo (von Mises, 1985, p.
e onômi as nos anos 1980. 192) – neoliberal. No livro, von Mises propõe
O ponto de partida deste artigo é a onstatação uma renovação do liberalismo, unhando o
de um alinhamento ideológi o e políti o entre termo “neoliberalismo” em distinção ao “antigo
o undamentalismo religioso, a apologia neoli- liberalismo” (ibidem, p. 27).
beral da so iedade de mer ado e as de esas de O artigo não tratará dos argumentos de nature-
ormas aristo ráti as de governo – da monar- za estritamente e onômi a do neoliberalismo,
quia à ditadura as ista das elites. Essa “sagrada mas de seus pressupostos. A tese de endida no
aliança”, visível no apoio de Hayek e Friedman artigo é de que o neoliberalismo de von Mises
à ditadura de Pino het e na en í li a Cente- undamenta-se em uma argumentação anti-ilu-
simus Annus (1991) de João Paulo II, pode ser minista de natureza religiosa e aristo ráti a.

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1. Praxeologia e comprometimentos Os ins são tidos omo irredutíveis e não são
ontológicos passíveis de análise. Como iên ia subjetivista,
Para ompreender o neoliberalismo de von Mi- não aberia à praxeologia pronun iar-se sobre
ses, é ne essário partir da estrutura de sua argu- os melhores ins. Os ins seriam resultado de
mentação. Tal estrutura pode ser ompreendida uma es olha, um exer í io da vontade autode-
a partir dos es ritos epistemológi os do autor, terminada. A úni a apli ação práti a da pra-
nos quais este visa, por um lado, undamentar xeologia seria a de re omendar os meios mais
a apologia da propriedade privada dos meios de adequados para a obtenção dos ins (ibidem, p.
produção e, por outro, ata ar o materialismo, 34).
espe ialmente o marxismo. A despeito das a irmações ategóri as de von
O dualismo metodológi o é de endido por von Mises, suas on lusões in eridas do on eito
Mises (von Mises, 2007, p. 1), distinguindo entre de ação e as justi i ativas para o seu aráter a
as iên ias ísi as, que lidam om a matéria, e priori estão longe de serem “ laras e evidentes”.
as iên ias humanas. Essas últimas são deri- Primeiramente, as on lusões que von Mises
vadas de uma iên ia geral da ação humana, a alegadamente retira do on eito geral de ação
praxeologia. As proposições bási as da praxe- não estão ontidas ne essariamente neste. Em
ologia “ante edem qualquer de inição real ou segundo lugar, o aráter a priori dessas premis-
nominal. São ategorias inais, impossíveis de sas apresenta vários problemas, se tomado em
serem analisadas” (von Mises, 1990, p. 51); “Não termos puramente epistemológi os.
estão sujeitas a veri i ação om base na experi- O on eito de ação apresentado pelo e ono-
ên ia e nos atos” (ibidem, p. 48) nem “derivam mista austría o não é su i iente para se deri-
da experiên ia” (ibidem). var sua de esa do liberalismo, por exemplo. A
A praxeologia é puramente dedutiva; as on lu- de inição da ação omo um omportamento em
sões já estão ontidas nas premissas. As in erên- que os homens usam meios para atingir ins
ias da praxeologia são tautológi as e analíti as não ontém a on lusão de que a propriedade
e “Sua unção é tornar laro e evidente o que privada dos meios de produção organizada pelo
antes era obs uro e des onhe ido” (ibidem, p. mer ado e sem nenhuma inter erên ia oletiva é
56). Sua premissa é o on eito de ação. Segundo a úni a on iguração possível para o desenvolvi-
von Mises, a ação é um omportamento pro- mento da ivilização.
positado, que se ara teriza pelo “emprego de Em toda ação, a bus a dos ins realiza-se por
meios para atingir ins” (ibidem, p. 22). meio de atos em que se utilizam meios que

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não dependem dos ins dos agentes, in luindo igual apa idade de utilizar os meios. Além dis-
a ação dos outros agentes (Kotarbinsky, 1983, so, a irma que os homens têm um im último
p. 6). Para se hegar à on lusão neoliberal de em omum em todas as suas ações. Mas esse
von Mises é ne essária uma hipótese adi ional im omum é a eli idade, entendida tauto-
sobre a interação de agentes, e pressupor que as logi amente omo a satis ação de um desejo.
ações não são on litantes. Tais hipóteses não Ou seja, é meramente ormal, sem onteúdo
estão ontidas na premissa do on eito ormal de inido.
de ação.
Sendo os ins substantivamente desiguais e
Uma orma de se hegar à oordenação dos ins livremente determinados pelas vontades dos
de di erentes indivíduos, partindo do mesmo indivíduos, nada impede que a realização dos
on eito de ação, é pressupor um im último ins de alguns seja obstá ulo para a realização
que seja omum a todos os indivíduos. Mas isso dos ins de outros. Isso pode o orrer quando
não impede que di erentes indivíduos bus- os trabalhadores bus am aumento de salários
quem esse mesmo im om meios on litantes. e os apitalistas bus am diminuir os salários
Portanto, é pre iso o pressuposto adi ional de omo meio de aumentar ou manter os lu ros,
que só há uma úni a maneira de bus ar o im ou quando vários indivíduos desejam o mesmo
último omum a todos e que todos podem azer bem que não está disponível para todos.
igual uso desses meios. Isso signi i aria a irmar
Nesses asos, von Mises tem que in luir a pre-
que os homens são igualmente dotados das mes-
missa de uma ordem espontânea que tornaria
mas apa idades. A esse pressuposto pode ser
ompatíveis, no longo prazo, as ações movidas
dado onteúdo substantivo om a igual apa i-
pelas vontades autodeterminadas. A ordem
dade de maximização e per eito onhe imento,
espontânea não está ontida no on eito ormal
embora isso não seja ne essário.
de ação e só é possível a realização de todos os
Esses pressupostos adi ionais ao on eito ins após uma longa travessia em que é ne es-
ormal de ação não estão presentes no argumen- sário azer “sa ri í ios”. Nessa travessia, alguns,
to neoliberal de von Mises. O autor nega que de facto, nun a terão seus desejos realizados.
os homens sejam maximizadores apazes de Adi ionalmente, é ne essário in luir premissas
onhe er ante ipadamente o resultado de suas substantivas sobre a e onomia para se on luir
ações. Assim, os homens não teriam a ra iona- que a divisão do trabalho e a propriedade priva-
lidade per eita que levaria ao melhor uso dos da dos meios de produção levam a essa ordem
meios e à onse ução dos ins. De orma geral, espontânea.
von Mises pressupõe que os homens não têm

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Pode se exempli i ar a ne essidade de premissas rias para que este ganhe onteúdo; em outros
adi ionais ao on eito ormal de ação para se termos, requer pressupostos que não são apenas
hegar às on lusões neoliberais de von Mises lógi os, mas pressupostos ontológi os, sobre a
om o debate sobre o ál ulo so ialista, onde os onstituição da realidade. O mesmo on eito
dois lados partiam do mesmo on eito ormal ormal de ação om onteúdos derivados de
de ação. O prin ipal opositor de von Mises no pressupostos ontológi os di erentes leva a on-
debate, Os ar Lange, a irmava que o so ialismo lusões di erentes e até mesmo opostas.
era “uma tentativa de apli ar o prin ípio da A ne essidade de pressupostos ontológi os na
ra ionalidade e onômi a não somente a uma praxeologia de von Mises pode ser observa-
questão ou empresa parti ular, mas à e onomia da também em sua de esa do aráter a priori
na ional omo um todo” (Lange, 1983, p. 364). do seu on eito de ação. Von Mises de ende o
De a ordo om Lange, os instrumentos da método a priori na iên ia da ação humana a
praxeologia apli ada, omo a pesquisa opera- partir do onhe ido problema da indução. Tal
ional e a teoria da programação, são instru- problema onsiste na impossibilidade de se reti-
mentos de planejamento que visam o melhor rar generalizações de aráter universal a partir
uso dos meios para atingir os ins. Seu objetivo do onhe imento empíri o, posto que este nun-
é a e i iên ia no uso dos meios. No so ialismo, a esgota todas as instân ias do universal.
a irma Lange, estes instrumentos são apli ados Invo ando Kant, von Mises a irma que todo o-
à e onomia na ional (ibidem, p. 367). Partindo nhe imento é ondi ionado por ategorias que
do on eito ormal de ação e adi ionando a este ante edem a experiên ia, ategorias a priori
a existên ia de ins últimos omuns a todos (von Mises, 1962, p. 12). Aqui von Mises re orre
os homens e a igual apa idade de utilizar os à “regularidade na su essão de eventos” omo
meios sob a hipótese da maximização, Os ar ategoria a priori ne essária para toda teoria.
Lange deriva o planejamento so ialista. A estrutura lógi a imutável da mente humana
Não é objeto desse artigo retomar o debate do seria uma regularidade pressuposta para a pra-
ál ulo so ialista. O ponto entral aqui é de que xeologia (ibidem, p. 16).
a impossibilidade de derivar apenas as on lu- O apelo de von Mises a Kant é enganoso. Como
sões neoliberais do on eito ormal de ação não argumenta Barota (1996), os on eitos a priori
é o resultado de uma in onsistên ia lógi a no de Kant re erem-se às ondições epistemoló-
argumento de von Mises. O on eito ormal de gi as para a realização da iên ia. Con eitos a
ação requer determinadas ondições ne essá- priori são trans endentais e distintos dos ientí-

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i os. Em termos kantianos, uma teoria ien- Como distinguir a lógi a da ação em relação
tí i a explanatória não pode ser deduzida de à lógi a do omportamento automáti o ou da
on eitos a priori, mas deve in luir elementos natureza, se não por meio da experiên ia? Von
a posteriori retirados da experiên ia. Assim, as Mises a irma que essas ategorias são ruto da
mesmas ategorias a priori podem resultar em “re lexão sobre a essên ia da ação” (ibidem, p.
teorias ientí i as di erentes (ibidem, p. 59). Do 58). Se por tal re lexão az-se re erên ia à in-
ponto de vista kantiano, von Mises on lagra as trospe ção, esta se onstitui a partir de uma
ondições para a iên ia om a própria iên ia experiên ia subjetiva. Sendo subjetiva, sua
ao dar a ação o status de ategoria a priori. realidade deve ser validada intersubjetivamente.
A validade intersubjetiva de experiên ias sub-
O aráter a priori do on eito de ação em von
jetivas, por sua vez, impli a uma experiên ia
Mises também não é de ensável om base na
objetiva omum. Como von Mises nega atego-
lógi a pura em termos kantianos. As ategorias
ri amente que a realidade dos a priori se unde
lógi as kantianas – quantidade, qualidade,
em qualquer experiên ia, é plausível supor que
relação, modalidade – seriam puramente inte-
a ategoria da ação de von Mises seja in erida a
le tuais, sem qualquer re erên ia à experiên ia
partir de ompromissos ontológi os implí itos
(Young, 1992, p. 101-103). Essas ategorias dizem
que são expli itados na seção seguinte.
respeito à orma do pensamento sobre qualquer
oisa e não ao seu onteúdo (ibidem, p. 105-106),
sendo válidos para qualquer iên ia indepen- 2. Ontologia finalista e de dois mundos
dente de seu objeto. Von Mises de ende que os A prin ípio pode-se negar a existên ia de om-
on eitos a priori da praxeologia – inalidade, prometimentos ontológi os na praxeologia de
meios, vontade, razão – não se re erem ao “ on- von Mises, alegando que este apresenta apenas
teúdo material” das ações, mas apenas à sua argumentos sobre omo onhe emos o mundo,
orma. Contudo, ao ontrário das ategorias ló- argumentos de natureza epistemológi a. Von
gi as kantianas, eles não se re erem à orma do Mises adota um argumento éti o, apontando
pensamento sobre qualquer oisa, mas à orma para a limitação de nosso onhe imento sobre a
da ação enquanto distinta de outras oisas. Von origem das ideias (ibidem, p. 29-30).
Mises é laro ao distinguir a ação, por exemplo,
O argumento éti o sobre a origem das ideias,
de um omportamento automáti o (von Mises,
no entanto, não impede von Mises de a irmar
1990, p. 33).
que estas “são geradas por algum pro esso des-
onhe ido no orpo humano” (von Mises, 2007,

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p. 97). Deste modo, ele admite que a mente duos, o que Kotarbinsky (1983, p. 11) denominou
depende do orpo humano, algo material, para de “ação absoluta”. Desta orma, as inalida-
existir. Mas os pensamentos e ideias produzidos des da ação são produtos puros da mente dos
pela “estrutura lógi a da mente” são “intangí- indivíduos. O eti ismo metodológi o garante
veis e imateriais” (ibidem, p. 95) e a “Mente ou apenas uma negação sobre a origem e o un io-
razão é posta em ontraste om a matéria” (von namento dos ins, mas não justi i a a a irma-
Mises, 1962, p. 11). ção de von Mises. Esta só pode ser justi i ada
assumindo-se o ompromisso ontológi o de que
Com uma justi i ativa epistemológi a, von
a ação é um produto apenas da mente “intangí-
Mises assume omprometimentos de aráter on-
vel” e “imaterial”. Isso i a laro quando a irma
tológi o.2 Apesar de admitir que a mente atua a
que mesmo a satis ação de ne essidades biológi-
partir de pro essos materiais gerados no orpo,
as e a preservação da vida são um resultado da
om a justi i ativa do eti ismo epistemológi o
es olha (von Mises, 1990, p. 31).
ompromete-se ontologi amente om uma subs-
tân ia imaterial e intangível, a mente. Em sua Mas se a ação é “o omportamento total do
argumentação, a mente un iona independente homem” (ibidem, p. 22), ela não pode se resumir
de qualquer restrição material objetiva provinda à es olha de um im. Aqui pode se argumentar
do ambiente ísi o e so ial. Sua teoria da ação que os atores distintos da mente “imaterial”
é a mais explí ita expressão desse omprometi- teriam e eito ausal na onse ução dos ins
mento ontológi o. através da bus a dos meios. Em outros termos,
se os onstrangimentos materiais estão ausentes
Embora von Mises não a irme nada sobre o
na “ação absoluta”, eles estão presentes nos atos
onteúdo dos ins visados pela ação, a irma
pelos quais essa ação se e etiva. Desta orma, o
algo sobre sua ausa: “O que az alguém sentir-
re onhe imento de ausalidades materiais seria
-se des on ortável, ou menos des on ortável, é
um ondi ionante da ação e, portanto, parte de
estabele ido a partir de ritérios de orrentes de
sua expli ação.
sua própria vontade e julgamento, de sua ava-
liação pessoal e subjetiva” (von Mises, 1990, p. No entanto, von Mises a irma que o re onhe i-
24). A ação não passa de uma “mani estação da mento orreto de uma relação ausal supõe que
vontade” e, portanto, da es olha in ondi ionada os ins oram atingidos (ibidem, p. 36). Não só se
dos ins (ibidem, p. 23). trata de um “ ír ulo vi ioso”, omo von Mises
admite, mas a própria ausalidade é entendida
A ação tal omo ormulada por von Mises on-
omo um “a priori” (von Mises, 1962, p. 20).
siste nos atos que dependem apenas dos indiví-

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Deste modo, a ausalidade é um produto da Mises de ende, ainda, que toda mudança se
estrutura lógi a da mente humana. origina de uma ausa e, onsequentemente, que
a onduta humana é dirigida pela ausalidade
Von Mises ompromete-se om uma ontologia
(ibidem, p. 177). No aso da ação humana, no
de “dois mundos di erentes” e na qual “nenhu-
entanto, essa ausa é a vontade, algo subjetivo
ma ponte liga esses dois mundos” (von Mises,
que não possui ausas. Admitindo que tudo se
1990, p. 29). Para esse e onomista, a ação hu-
origina de uma ausa, a vontade só pode ser
mana é homogênea om a razão e é um pro-
ausa de si mesma. A vontade é a ausa primei-
duto desta (ibidem, p. 58). A razão, por sua vez,
ra, o motor não movido da ação humana.
pare e se identi i ar om a estrutura lógi a da
mente humana. Como a ação é tomada omo Deste modo, von Mises reduz toda ausalidade
sendo idênti a à razão, a praxeologia unda-se no que se re ere ao mundo humano às inalida-
na razão pensando a razão. O aráter a priori des dos agentes. Nos termos das quatro ausas
das premissas da praxeologia é ontologi amen- aristotéli as, a ausa material da ação, aquilo
te justi i ado por sua origem em um “mundo de que ela é eita, é a estrutura lógi a da mente,
di erente” do mundo material dos sentidos, o uma substân ia imaterial. O que dá a orma
mundo da mente imaterial. espe í i a de uma ação sua ausa ormal, nos
termos de Aristóteles, é o im determinado que
Para von Mises, não é possível estabele er
ela bus a, e este é es olhido de a ordo om a
qualquer tipo de relação ausal na direção do
vontade autodeterminada dos agentes. O que
mundo da matéria para o mundo da mente,
gera a ação, sua ausa e i iente, são as inalida-
embora, omo será visto adiante, ele viola esse
des dos agentes; do mesmo modo, as mudanças
pressuposto em pelo menos uma o asião. Mas a
no mundo material são ausadas pelas inalida-
direção ontrária é admitida. Von Mises a irma
des dos agentes. Ao admitir que a ausalidade
ategori amente, e de orma não ondi iona-
é um produto da mente humana, ao olo ar a
da pelo estado de nosso onhe imento, que as
ausa material das ações em uma substân ia
ideias e pensamentos “produzem mudanças nas
imaterial e ao on lagrar as outras ausas om a
oisas tangíveis e materiais” (von Mises, 2007,
ausa inal, von Mises assume um ompromis-
p. 96).
so ontológi o om um mundo humano regido
Von Mises, de facto, atribui um valor ontológi o
ex lusivamente pela teleologia.
maior à teleologia em relação à ausalidade. O
A ordem espontânea é também um tipo de
autor admite que teleologia é uma espé ie de
teleologia transposta da mente dos indivíduos
ausa, que ele designa omo “ ausa inal”. Von

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para a so iedade omo um todo. Tal teleologia teoria da história pode ser resumida em sua
re ere-se primeiramente à riação de uma ordem a irmação de que “Não há nada para a história
so ial a partir de ideias dos indivíduos, de suas além das ideias das pessoas e as inalidades que
inalidades. Em diversos momentos, von Mises elas pro uravam motivadas por essas ideias”
admite que a ordem so ial é riada de a ordo (von Mises, 2007, p. 161). Assim, a história per-
om as inalidades, senão de todos os indivídu- ten e ao mundo imaterial da mente humana.
os – e não poderia sê-lo, pois não existem ins
Mas von Mises admite algo que pare e pe uliar
omuns –, pelo menos de alguns indivíduos.
perante suas a irmações de que as inalidades
Em alguns momentos, von Mises é dúbio ao
são ausadas uni amente pela vontade não
supor que essa inalidade pode visar algo ainda
ausada dos indivíduos. Admitindo que todo
por vir; em outros, visa manter o que já existe.
indivíduo nas e em so iedade, este é “imbuído”
O omprometimento ontológi o de von Mises
om “ideias preexistentes”, que ele pode modi-
om uma teleologia so ial pode ser observado
i ar ou não, e “suas ações são guiadas por ideo-
em sua teoria da história.
logias que ele adquiriu através de seu ambiente”
(ibidem, p. 160)
3. A teoria da história de von Mises Isso signi i aria admitir que as inalidades dos
Perten endo ao ampo da ação humana, a his- indivíduos não se originam de sua vontade in-
tória não estaria sujeita ao mesmo método das ondi ionada, mas são ausadas por ideologias
iên ias naturais, segundo von Mises. Não seria preexistentes. Sendo a es olha ausada, ela não
possível, portanto, extrair leis gerais a partir da pode ser a ausa primeira e a pessoa não tem
observação de atos históri os. Mais do que isso, “liberdade para azer o que quer” (von Mises,
sendo a história um produto da mente humana, 2009, p. 27). Desta orma, seria admitida a exis-
os homens “estão livres para re orrer a interpre- tên ia de uma ausa so ial para as ideias dos
tações bastante arbitrárias” (von Mises, 1990, indivíduos. Por outro lado, se as ideologias “são
p. 47-48) quando se trata de eventos históri os. produtos da mente humana” (von Mises, 2007,
Assim, só é admissível uma história que seja p. 160), isso impli aria em admitir a existên ia
in erida dos a priori praxeológi os. de uma “mente humana” a ima dos indivíduos
Mais do que a oerên ia om seu método a prio- humanos.
ri, mesmo quando em desa ordo om as evidên- Von Mises apresenta uma solução para esses
ias históri as, a teoria da história de von Mises problemas mantendo-se oerente om sua pra-
revela seus omprometimentos ontológi os. Sua xeologia. Em lugar de apelar para uma mente

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a ima dos indivíduos ou para uma ausa so ial a ordem espontânea gerada pelo mer ado é o
objetiva da ideologia, von Mises admite que a resultado de uma “divisão mentalmente al ula-
origem de uma ideia só pode estar em outras da do trabalho entre os vários empresários” (von
ideias. Mas isso levaria ao regresso in inito e o Mises, 2009, p. 39). Deste modo, a teleologia
ponto de hegada dessa ausação de ideias por so ial reproduz a inalidade de alguns indiví-
ideias é a mente de um indivíduo ou de alguns duos, os empresários. A ausa inal da história
indivíduos (ibidem). A ideia surgida na mente é onstituída pelos ins que alguns indivíduos
de um indivíduo se torna a eitável por outros e bus am. No aso do apitalismo, trata-se dos
assim se trans orma em ideologia. (ibidem) ins bus ados pelos empresários omo ausa
inal da reprodução e onômi a.
A ausação das ideologias pelas ideias de um
indivíduo restringe a liberdade entendida omo Poder-se-ia alegar que a ordem espontânea da
o exer í io da vontade sem onstrangimentos. história não é teleológi a, mas sim um pro esso
Alguns indivíduos têm sua ação guiada por ide- evolu ionário análogo ao da evolução biológi a.
ologia preexistente e que não é produto da sua Mas não só as evidên ias textuais negam tal
es olha. Mas se a liberdade da ação é entendida analogia, omo isso in luiria von Mises na ide-
omo exer í io de uma vontade autodetermina- ologia à qual dedi ou toda sua vida a ombater,
da, nem todos os indivíduos são livres. o materialismo. Quando trata das origens das
ideias, von Mises rejeita expli itamente as ana-
As a irmações de von Mises levam à proposição
logias biológi as do ontágio propostas pelas
de uma teleologia na história. Se são as ideo-
expli ações materialistas omo uma “ ompa-
logias que guiam as ações dos indivíduos, se
ração super i ial e que não expli a nada” (von
na história não há nada além dessas ideias e se
Mises, 2007, p. 99).
as ideologias originam-se da mente de um ou
alguns indivíduos, são as inalidades destes que Fi a por expli ar o motivo de algumas ideias
determinam a história. Assim, o apitalismo surgirem em alguns indivíduos e não em outros
teria sido um produto teleológi o da mente dos e omo elas são a eitas se trans ormando em
e onomistas e “o que é omumente hamado de ideologia. A expli ação da a eitação e da origem
‘revolução industrial’ oi o resultado da revo- das ideias leva a um outro elemento undamen-
lução ideológi a e etuada pelas doutrinas dos tal na ontologia de von Mises: a desigualdade
e onomistas” (von Mises, 1990, p. 14). natural dos homens e a superioridade de uns
em relação aos outros. Trata-se aqui do argu-
O mesmo tipo de teleologia so ial está presen-
mento aristo ráti o que será tratado de orma
te no debate sobre o ál ulo so ialista. Aqui

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mais detalhada adiante. Tal argumento supõe para provar outras verdades” (Aquino, 1947 p. 8).
que alguns são naturalmente predestinados a Segundo Tomás de Aquino, “Os prin ípios de
terem ideias ven edoras e outros a a eitá-las. qualquer iên ia ou são autoevidentes em si ou
redutíveis às on lusões de uma iên ia supe-
Assim, von Mises tem um omprometimento
rior” (ibidem).
ontológi o om a existên ia de dois mundos,
om a existên ia de uma substân ia imaterial, Os prin ípios da argumentação são autoevi-
om uma teleologia so ial e om a predestina- dentes, signi i ando que “seu onhe imento
ção dos indivíduos. Con orme argumentaremos é naturalmente implantado em nós” (ibidem,
na próxima seção, as raízes desses omprometi- p. 12). Aquino argumenta que algo pode ser
mentos ontológi os podem ser en ontradas em autoevidente em si ou em si e para nós. Uma
uma ontologia de origem religiosa. proposição é autoevidente para todos “quando”,
sendo seus termos onhe idos, imediatamente

4. Crítica ao materialismo e ontologia


se “ onhe em”, ou quando nelas “algo se predi a

religiosa
de si mesmo, omo homem é homem, ou se o
predi ado delas está in luído na de inição do
Os omprometimentos ontológi os de von
sujeito, omo homem é animal” (Aquino, 1990,
Mises têm origem e natureza religiosa, e suas
p. 34) ou, de outra orma, “quando o predi ado
raízes podem ser en ontradas na iloso ia aris-
está in luído na essên ia do sujeito” (Aquino,
totéli a reinterpretada em termos religiosos por
1947, p. 13).
Tomás de Aquino. Tal proximidade é bastante
plausível, uma vez que o ensino no Império Mas uma proposição pode ser autoevidente em
Austro-húngaro era dirigido pela Igreja Cató- si, mas não para nós quando “não sabemos o
li a, undamentando-se na iloso ia tomista. signi i ado e o sujeito da preposição” (ibidem, p.
(Hülsmann, 2002, p. li) 12). Quando a essên ia que se predi a do sujei-
to é des onhe ida, é “ne essário demonstrar a
A praxeologia de von Mises atende a todos os
preposição por algo que é onhe ido por nós”
ritérios da iên ia no sentido estrito (scientia
(ibidem, p. 13) uma vez que, argumenta Aqui-
scire simpliciter) de Tomás de Aquino. Para
no itando Boé io “Existem alguns on eitos
Aquino a scientia é o onhe imento ompleto
mentais que são autoevidentes somente para os
e erto da verdade de algo. (Ma Donald, 1993,
instruídos” (ibidem, p. 13)
p. 162) Como na praxeologia de von Mises, a
scientia “não argumenta para provar seus prin- O aráter autoevidente das premissas, ou
ípios, mas argumenta a partir dos prin ípios prin ípios primeiros da argumentação, as torna

96
irre utáveis e não passiveis de prova. Assim, Aqui se trata das iên ias a priori – a matemá-
argumenta Aquino, para onhe er as verdades ti a e a lógi a. Já a meta ísi a, lida om oisas
autoevidentes “não é ne essário um es orço de “que podem existir sem a matéria, omo o orre
investigação” (Aquino, 1990, p. 34) e “Ninguém laramente om oisas imateriais” (ibidem).
pode admitir mentalmente o oposto do que é
Von Mises admite que as iên ias naturais se
autoevidente” (Aquino, 1947, p. 12).
utilizam da experiên ia, mas o mesmo seria
A undamentação dada por Aquino ao ará- impossível para as iên ias do homem. Assim,
ter autoevidente dos prin ípios primeiros é a as premissas da praxeologia “São omo a lógi a
mesma dada por von Mises ao aráter a priori e a matemáti a aprioristas” (von Mises, p. 48),
das premissas da praxeologia. Tais premissas o que impli aria um ompromisso ontológi o
são resultados de uma “re lexão sobre a essên- om a mente omo algo que se situa omo uma
ia da ação” (von Mises, 1990, p. 58). O sentido “matéria inteligível omum”, distinta da “maté-
da re lexão pode ser entendido omo um ato ria sensível”.
puramente mental sem re erente nas ações
A praxeologia de von Mises também está próxi-
realmente existentes. Sendo essa “essên ia da
ma dos argumentos de Tomás de Aquino sobre
ação” independente dos atos pelos quais qual-
a alma. Aquino re onhe ia a existên ia de seres
quer ação realmente existe, sua undamentação
orpóreos e seres espirituais (Aquino, 1947, p.
é meta ísi a.3
342) e de substân ias intele tivas separadas das
A scientia tomista depende da natureza do que substân ias orpóreas (Aquino, 2008, p. 26-27),
é onhe ido. No aso das oisas naturais, a ma- analogamente à divisão entre o mundo material
téria az parte de usa própria de inição (Aquino, e o da mente imaterial em von Mises. Como a
1947, p. 573) e seu onhe imento depende da mente em von Mises, a alma humana em Aqui-
“matéria sensível em omum” (ibidem, p. 575), no é uma substân ia in orpórea: “É ne essário
embora não da individual. Trata-se aqui da “ i- dizer que aquilo que é o prin ípio da atividade
loso ia da natureza”, ujos prin ípios primeiros intele tual, aquilo que hamamos da alma hu-
devem ser obtidos indutivamente a partir dos mana, é um prin ípio in orpóreo e subsistente”
sentidos. Os objetos matemáti os, por sua vez. (Aquino, 1947, p. 482).
“podem ser abstraídos pelo intele to da matéria
Mas o homem não é um ser puramente espi-
sensível”, “podem ser onsiderados à parte das
ritual em Aquino. Para Aquino o homem “é
qualidades sensíveis”, mas não podem ser abs-
omposto de uma substân ia orpórea e outra
traídos da “matéria inteligível omum” (ibidem).
espiritual”, orpo e alma, sendo assim um “ser

REVISTA DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE ECONOMIA POLÍTICA 97


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limítro e” entre as oisas materiais e as pura- do bem de Tomás de Aquino, pois, para este,
mente espirituais. As teses praxeológi as de von “porque o bem é de vários tipos”, “a vontade
Mises sobre a mente humana que un iona em não é determinada ne essariamente por um”
um orpo mas não depende dele em nenhum e a apa idade da vontade “não é submetida a
sentido ausal levam a in erir a presença de uma qualquer bem individual” (ibidem, p. 550). Se os
noção do homem omo um ser omposto de bens são de vários tipos e o que é desejado é o
duas substân ias separadas, omo em Aquino. bem, por de inição, pode se in erir a on lusão
de que a inalidade da ação é indeterminada.
A praxeologia de von Mises poderia ser remetida
diretamente à éti a aristotéli a. Von Mises, da Também om relação à vontade autodetermi-
mesma orma que Aristóteles e Aquino, a irma nada, von Mises se aproxima de Aquino. A
que o im último do homem é a eli idade. Mas vontade é autodeterminada em Aquino, omo
Aristóteles dá um sentido éti o à eli idade em von Mises, pelo menos em suas primeiras
omo im último que todos os seres humanos de- obras (Kretzman, 1993, p. 147). Nas obras pos-
veriam bus ar e analisa o sentido do termo eli i- teriores, Aquino a irma que a vontade move a
dade para in erir dele um onteúdo determinado ação em direção ao im que é determinado pelo
omo bem omum (Ma Inerny, 1993, p. 200). intele to. Assim a vontade é determinada pelo
intele to apenas omo ausa inal, mas não
Para Aquino a eli idade é identi i ada om
omo ausa e i iente (Aquino, 1990, p. 132). No
o bem e deus é o bem supremo. Se o im é o
entanto, no argumento de Aquino, resta uma
objeto da vontade, o im tem o aspe to de um
vontade indeterminada, pois quer a si mesmo e
desejo, e todas as oisas desejam o bem (Aqui-
a todas as oisas (ibidem, p. 133-135), que se iden-
no, 1947, p. 32), este é im último de todas as
ti i a om a própria essên ia do volente (ibidem,
ações. Para Aquino, deus é o bem último e a
p. 132-133) e que não tem nenhuma ausa ora
eli idade plena só pode ser obtida quando o
de si (ibidem, p. 147): a vontade divina. Pode-se
homem olo a deus omo im último.
in erir que, sob esse aspe to, a ação humana na
Aqui von Mises di ere tanto de Aristóteles omo praxeologia de von Mises é ormalmente idênti-
de Aquino, pois a eli idade é de inida subjeti- a à ação divina em Aquino.
vamente pelos indivíduos, ou seja, é in ormal e
De modo geral, a expli ação de von Mises para
indeterminada. Mas em um ponto pelo menos
as trans ormações na so iedade são análogas à
ela se aproxima mais da éti a tomista do que
riação divina. O intele to puramente imaterial
da aristotéli a. Primeiramente, sem o elemento
é, para von Mises, a ausa e i iente e inal das
teológi o, a eli idade de von Mises se aproxima

98
oisas existentes no mundo humano, e as ina- ele não ex lui que suas ideias neoliberais açam
lidades da ação humana são riadas ex nihilo (a os outros mais elizes.
partir do nada) omo no ato da riação divina.
As ideias das quais von Mises magnanimamen-
A vontade humana é a ausa inal não ausada
te pretende libertar os homens são as ideias do
do mundo humano, um análogo da vontade
materialismo. Von Mises entende por materia-
divina.
lismo uma ontologia que atribui as origens de
Ademais, ao a irmar que as premissas da praxe- todas as ara terísti as humanas a pro essos
ologia são in ontestáveis lógi a e empiri amen- ísi os e biológi os (von Mises, 2007, p. 94). A
te, von Mises dá a ela o mesmo status da ver- partir dessa de inição estreita, o materialismo é
dade revelada por Deus. Causaria espanto em identi i ado om o isi alismo e om o me ani-
qualquer pessoa apaz de um ra io ínio lógi o ismo. Esse último se re ere não só à analogia
mínimo a alá ia ontida no argumento de que do homem om a máquina, mas ao determinis-
tal teoria possa se pro lamar “a ima de disputas mo ausal estendido da natureza ao homem.
de partidos e a ções”, quando ela mesma se
Von Mises só re onhe e a ausalidade de tipo
onstitui omo uma a ção, ou “indi erente aos
me âni o: ele rejeita expli itamente a ausali-
on litos de todas as es olas de dogmatismo”
dade probabilísti a (von Mises, 1962, p. 93); não
(ibidem, p. 43), quando ela mesma pro lama seu
onsidera a dialéti a de Marx, atribuindo a ele
dogmatismo.
o estrito me ani ismo; e des onhe e a ausali-
A motivação explí ita de von Mises para a dade omplexa do materialismo emergentista
ormulação da praxeologia e para o argumento que se desenvolveu nos últimos anos.
liberal deduzido a partir dela é a evidên ia mais
O alvo imediato do ataque ao materialismo é
orte de sua onte religiosa. Em sua ruzada
obviamente o marxismo. Mas von Mises vai
pelo neoliberalismo, von Mises a irma que
mais longe em sua ruzada ontra o materia-
a libertação das pessoas da “doutrinação” do
lismo, atingindo o positivismo e o Iluminismo.
marxismo e do “progressivismo” será de idida
Todos são tidos omo essen ialmente o mesmo
“pelas questões undamentais da epistemologia
materialismo. Desta orma, o materialismo que
e teoria do onhe imento” (von Mises, 1990a, p.
von Mises ata a pode ser lassi i ado omo um
206). Note-se de passagem que isso ontradiz a
espantalho.
a irmação de von Mises de que “Ninguém tem
Sendo o materialismo uma ontologia, sua
ondições de determinar o que aria alguém
ontraposição deveria ser eita no mesmo plano
mais eliz” (von Mises, 1990, p. 24), uma vez que
ontológi o. Von Mises não o az expli itamen-

REVISTA DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE ECONOMIA POLÍTICA 99


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te, apresentando o eti ismo epistemológi o das inalidades, os atos pelos quais a ação se
omo ontraponto ao materialismo. Segundo realiza devem ontar om ausas e i ientes
ele o materialismo oi in apaz de expli ar omo de natureza externa à mente dos indivíduos,
eventos materiais produzem eventos mentais. A independente de tais ausas serem onhe idas.
possibilidade de o problema ser o determinismo Portanto, von Mises só pode se ontrapor ao
me âni o e não o materialismo não é aventada que ele entende por ontologia materialista ado-
em nenhum momento por von Mises, uma vez tando o omprometimento om uma ontologia
que identi i a super i ialmente os dois. não materialista, de origem religiosa. Isso se
eviden ia na posição que assume na disputa
Seu eti ismo epistemológi o levaria logi a-
entre materialismo e religião.
mente à on lusão de que se não podemos
alar omo ausas materiais levam a eventos Von Mises a irma que a ontologiamaterialista
mentais, também não poderíamos alar que surgiu omo uma ontraposição à ontologia
eventos mentais não têm ausas materiais. Mas religiosa dos dois mundos (von Mises, 2007, p.
von Mises não tem o hábito de se alar sobre 99). Nesse ponto, von Mises assume laramente
o que ele mesmo a irma não poder ser dito. o partido da religião ontra o materialismo:
Admitindo que não sabemos o que az a mente “[…] é impossível para o ra io ínio a priori
operar, não há nenhuma razão para admitir a e para as iên ias naturais re utar de orma
separação entre o “ orpo material” e a “mente onvin ente os re inados dogmas religiosos.
intangível”. O próprio eti ismo epistemológi o […] ríti as elaboradas não a etam o nú leo da
põe em suspeita essa separação, posto que ela é é” (ibidem, p. 100). Em seguida, a irma que a
“realizada pela própria mente” (ibidem, p. 11). Se popularidade do materialismo se deveu a moti-
não sabemos as ausas da operação da mente, vações políti as, de orrentes do envolvimento
também não sabemos se a separação é real. Ou da Igreja om a aristo ra ia do antigo regime. É
seja, o eti ismo epistemológi o não justi i a o uma hipótese bastante plausível, portanto, que
realismo dos pressupostos apriorísti os da ação. von Mises tenha re orrido aos re eridos dogmas
para se ontrapor ao materialismo.
Por outro lado, a ação exe utada por um orpo
material em um mundo em que há oisas ma- Mas os omprometimentos ontológi os de natu-
teriais e outros homens om orpo e mente se reza religiosa de von Mises não podem ganhar
rela ionando em so iedade não pode ser atribu- um aráter mundano sem o argumento aristo-
ída apenas à mente e à vontade dos indivíduos. ráti o. Uma ontologia religiosa que pres inde
Mesmo admitindo o eti ismo sobre as origens de um Ser absoluto sobrenatural torna-se viável

100
omo ontologia so ial se é admitida a existên- de von Mises, uma vez que as di erenças entre
ia de seres superiores no mundo terreno da indivíduos ou grupos humanos não impli a
so iedade. O argumento aristo ráti o é o ponto ne essariamente a superioridade in toto de uns
undamental dos omprometimentos ontológi- sobre outros. Para deduzir a suposta superiori-
os de von Mises. dade das di erenças, von Mises in lui um juízo
de valor implí ito.

5. O argumento aristocrático Não é possível in erir essa desigualdade do on-


Von Mises admite que o liberalismo lássi o eito ormal de ação de von Mises. Além disso,
undava-se na igualdade natural de todos os ao ontrário de Smith, von Mises não apresenta
homens; as desigualdades seriam ruto das evidên ias empíri as apazes de omprovar sua
ondições so iais. Esse argumento do liberalis- a irmação. Sendo uma di erença natural, isso
mo lássi o en ontra-se em Adam Smith, por seria violar seus prin ípios, pois se re ere ao
exemplo. Ao tratar da divisão do trabalho, Smi- mundo da matéria. Se há desigualdade natural
th admite que todos os homens têm as mesmas em apa idades mentais, isso signi i aria admi-
apa idades e que não há di erença natural en- tir um e eito ausal da matéria sobre a mente
tre um ilóso o e um arregador. Smith re orre imaterial.
à omparação entre pessoas antes e depois da A aparente ontradição entre a negação ab-
idade de trabalhar e entre países om divisão do soluta do materialismo e a expli ação das
trabalho pou o desenvolvida e mais desenvolvi- di erenças naturais dos homens om base em
da para validar sua a irmação de que as di eren- “ atos biológi os” pode ser entendida omo um
ças de apa idades são ausadas pela divisão do resultado de omprometimentos ontológi os de
trabalho (Smith, 1985, p. 483). natureza religiosa sem uma teologia. Sem uma
Von Mises a irma que os homens são natural- teologia, não se pode apelar para a providên-
mente desiguais e que, mesmo entre irmãos, há ia divina para justi i ar a existên ia de uma
desigualdade de apa idades ísi as e mentais predestinação dos indivíduos. Tal predestinação
(von Mises, 1985, p. 27). A irma também o ará- é in ompatível também om a pro lamação da
ter hierárqui o dessa di erença, senten iando livre es olha movida pela vontade não ausada.
que a partir da desigualdade natural, “Podemos Assim, resta apenas a violação de um prin ípio
– sem nenhum juízo de valor – distinguir entre epistemológi o para manter um ompromisso
homens superiores e in eriores” (von Mises, ontológi o.
1990a, p. 21). Note-se a alá ia no argumento

REVISTA DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE ECONOMIA POLÍTICA 101


44 / junho 2016 – setembro 2016
Von Mises mobiliza expli itamente o argu- “mais bem-su edidas que outras na bus a das
mento da ausa biológi a em sua de esa da inalidades de todos os homens” (ibidem, p. 333).
desigualdade natural dos homens (von Mises, Deste modo, von Mises a irma que “a moder-
2007, p. 327-328). Deste modo, a irma sobre os na ivilização é um eito dos homens bran os”
indivíduos que “as apa idades mentais que (ibidem, p. 334). Cabe assinalar que esse é mais
ir uns revem as poten ialidades de seus atos um aspe to do aráter teleológi o da teoria da
mentais e de sua personalidade” são herdadas história de von Mises.
de seus pais, e que “há uma orrelação entre a
Mas von Mises sustenta que a teoria “ra ial”
estrutura orporal e as ara terísti as mentais”
biológi a e a superioridade da “raça bran a” no
(ibidem). Von Mises undamenta a di erença en-
atual momento da história não justi i am as
tre “o gênio e o idiota” nos “ atos da biologia e
doutrinas políti as ra istas (ibidem). Não have-
da história” (ibidem, p. 331). Mas, omo veremos
ria, segundo ele, omo garantir que a suposta
a seguir, “os atos da biologia” são des artados
superioridade da “raça bran a” permane erá
pelo autor austría o om base no eti ismo
no uturo, pois isso só seria garantido por uma
epistemológi o.
des oberta biológi a “de ara terísti as anatô-
Para justi i ar om os “ atos da biologia” a di- mi as dos membros das raças não- au asianas
erença natural dos homens, von Mises assume que ontivessem naturalmente suas a uldades
uma teoria biológi a das “raças”. A irma que mentais”, o que segundo ele não teria a onte i-
“a espé ie humana é subdividida em grupos do até aquele momento (ibidem, p. 336).
ra iais om distintas araterísti as biológi as
Von Mises, no entanto, a irma que não é seu
hereditárias. A experiên ia históri a não impe-
objeto na dis ussão da história “a análise dos
de o pressuposto de que alguns grupos ra iais
problemas ontroversos da pureza ra ial e da
são mais bem-dotados que outras raças para
mis igenação”, nem “investigar os méritos do
on eber ideias mais sensatas” (ibidem, p. 161).
programa políti o do ra ismo” (ibidem). Dessa
Von Mises assevera que é possível on eber que orma, embora assumindo o ra ismo biológi o
determinadas “raças” possam al ançar o nível omo um dado a priori, posto que não al ado
ultural de outras pelo pro esso de evolução em qualquer evidên ia além de a irmações va-
biológi a (ibidem). Mas a evolução biológi a das gas, von Mises livra-se de ter que undamentar
“raças” dar-se-ia em uma direção pré-determi- sua teoria da história na biologia.
nada para o nível al ançado pelas “raças” que
Apesar de des artar as políti as ra istas omo
produziram “ideias mais sensatas” e que oram
onsequên ia de sua teoria da história, ao admi-

102
tir o ra ismo biológi o omo ponto de partida, sua destruição e se omprazem no orgulho
von Mises a irma, no mínimo, a ompatibili- extravagante de sua ivilização” (ibidem, p. 332).
dade de sua teoria da história om as políti as Tais a irmações de von Mises, em que pese sua
ra istas. Se a teoria da história de von Mises re usa em se pronun iar sobre políti as ra istas,
não deve se pronun iar sobre tais pressupostos não deixam de ser uma de esa implí ita de tais
biológi os, se o mundo da mente humana é políti as.
separado do mundo material no qual se in-
O ra ismo é apenas a a eta mais repugnante do
luem os atos biológi os e se, de a ordo om
argumento aristo ráti o de von Mises. A de esa
von Mises, a história a irma a “superioridade da
das di erenças naturais e da superioridade de
raça bran a”, resta apenas uma teoria ra ista da
alguns em relação a outros estende-se da relação
história no autor. Livre dos atos biológi os, os
entre as supostas “raças” para a relação entre
“ atos da história”, segundo von Mises, orro-
governantes e governados na políti a e entre
boram que “até o momento” se estabele eu a
indivíduos na e onomia.
“superioridade da raça bran a”.
Segundo von Mises, a de esa Iluminista da
Ao olo ar de orma éti a o argumento do
demo ra ia baseava-se na de esa da superio-
ra ismo biológi o e ao mesmo tempo a irmar
ridade intele tual e moral do povo rente aos
a superioridade de uma suposta “raça” sobre
monar as e à aristo ra ia. (von Mises, 1985, p.
as outras na história, a re utação da teoria das
42) Von Mises vê na de esa da demo ra ia pelo
raças pela biologia – algo já estabele ido hoje –
liberalismo antigo um equívo o, pois “o povo
não levaria à negação de políti as ra istas. Sob
é a soma de todos os idadãos individuais; e se
esse aspe to, o ra ismo ontido na teoria de von
alguns indivíduos não são inteligentes e nobres,
Mises revela-se ainda mais pro undo e perni io-
então todos juntos também não o são” (ibidem).
so que o ra ismo biológi o. O ra ismo ultural,
Com base nisso, von Mises de ende a demo ra-
ara terísti o da extrema direita ontemporâ-
ia omo “o governo dos melhores”, ainda que
nea, é uma on lusão implí ita no argumento
os melhores aqui sejam aqueles apazes de on-
de von Mises.4
ven er os outros de que são quali i ados para
A manutenção da ivilização apitalista, que governar. (ibidem, p. 42-43)
seria um eito da “raça bran a” segundo von
Outra di erença apontada por von Mises entre
Mises, impli aria políti as ra istas que on-
o liberalismo lássi o e o neoliberalismo é a
tivessem os “não- au asianos” que “odeiam e
on epção da evolução históri a. O liberalismo
desprezam o homem bran o”, que “planejam
lássi o a reditava em uma evolução progressi-

REVISTA DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE ECONOMIA POLÍTICA 103


44 / junho 2016 – setembro 2016
va, iluminada pela razão e pelo onhe imento, melhores. Tal tare a inglória das pobres elites
que levaria a so iedade a se on ormar aos prin- estaria sempre adada ao ra asso pela ignorân-
ípios do liberalismo, supostamente naturais e ia “natural” das massas. A demo ra ia políti a
derivados da razão. (ibidem, p. 157) O liberalis- liberal nun a é uma demo ra ia per eita em um
mo lássi o de endia essa progressão da apli a- argumento aristo ráti o. A demo ra ia per eita
ção de seus prin ípios om base na igualdade para as elites deve ser bus ada em outro lugar e
natural das apa idades intele tuais de todos. não na políti a. É na e onomia neoliberal que o
(ibidem) governo dos supostamente melhores poderia se
dar sem amarras.
Aqui o argumento da desigualdade natural é
mobilizado por von Mises para ontrapor-se ao Von Mises de ende a desigualdade da pro-
argumento do liberalismo lássi o, a irmando priedade omo a úni a orma de aumentar o
que “as massas are em da apa idade de pen- produto e o bem-estar material. Deste modo, a
sar logi amente” (ibidem). Von Mises a res enta manutenção da propriedade privada não repre-
que o programa do liberalismo não poderia sentaria a manutenção de um privilégio, argu-
se realizar por uma evolução natural, porque menta von Mises, mas “uma instituição so ial
mesmo que a sua suposta ra ionalidade osse para o bem e o bene í io de todos, mesmo que
re onhe ida, “os ganhos momentâneos” de or- esta seja espe ialmente agradável e vantajosa
rentes de “vantagens espe iais” pare eriam mais para alguns” (ibidem, p. 30). Ou seja, a desi-
importantes que os “ganhos maiores e duradou- gualdade bene i iaria a todos, mas bene i iaria
ros que devem ser adiados” (ibidem). Von Mises mais alguns do que outros. Sendo natural, essa
atribui isso à alta de “ orça de vontade”, que, desigualdade não onstituiria um privilégio,
ao lado da “in apa idade intele tual da maioria mas uma predestinação.
das pessoas” (ibidem), as impediria de suporta-
A mesma lógi a de argumentação se dá em
rem o “sa ri í io provisório que toda ação so ial
relação à desigualdade na distribuição da renda.
demanda” (ibidem, p. 158).
Novamente, o argumento é subordinado à
Claro está que se alguns são naturalmente mais e i iên ia e onômi a, entendida no sentido de
apazes que outros, alguns são predestinados propor ionar o res imento do produto (ibidem,
a governar. Mas a demo ra ia políti a liberal p. 31). Von Mises vai mais longe nesse ponto, ao
é um in ômodo para o argumento aristo ráti- de ender o onsumo de luxo omo um indutor
o. Os “melhores” devem onven er as massas de inovações te nológi as e, portanto, do res i-
“intele tualmente in apazes” de que são os mento e onômi o (ibidem, p. 32). Deste modo,

104
von Mises está mais próximo de Malthus na natural, não pode ser atribuída ao mérito, mas
de esa da ne essidade e onômi a da aristo ra- a uma predestinação. Em segundo lugar, os em-
ia e distante das advertên ias do liberal Adam preendedores pare em ugir do on eito ormal
Smith ontra a prodigalidade dos ri os. de ação omo livre exer í io da vontade, pois
suas vontades são determinadas pelo públi o,
De a ordo om von Mises, a origem da de-
identi i ado por von Mises om os onsumido-
sigualdade e onômi a está na desigualdade
res. Assim, von Mises, em um arti í io de retóri-
natural. Alguns se bene i iam mais da proprie-
a, olo a aparentemente os empreendedores
dade privada que outros, têm uma renda maior
não omo homens que exer em a sua vontade
que outros e onsomem bens de luxo por serem
autodeterminada, mas omo subordinados a
naturalmente mais apa itados que outros. São
um mestre, à massa dos onsumidores. (von
predestinados pela natureza a serem proprie-
Mises, 1990a, p. 22)
tários e ri os. O argumento de von Mises om
relação à origem natural da desigualdade e o- Os arti í ios de retóri a para a apologia do
nômi a, no entanto, é o ultado pela aparente neoliberalismo não são apazes de o ultar o
de esa da soberania do onsumidor. argumento aristo ráti o de von Mises. Apa-
rentemente, uma e onomia de mer ado seria
Von Mises a irma que na e onomia de mer ado
uma demo ra ia governada pelas massas. A
são os onsumidores que sele ionam os ven e-
demo ra ia de mer ado, a irma von Mises, é
dores no mer ado. Os lu ros “derivam sempre
“aquela em que ada entavo signi i a um voto”
de uma orreta previsão da situação utura”
(ibidem, p. 81). Como os empreendedores que
(von Mises, 1990, p. 928-929); portanto aqueles
detêm a propriedade dos meios de produção e
que onseguem se manter omo proprietários
têm uma renda maior também são onsumido-
são os naturalmente mais bem-dotados em suas
res, a retóri a da soberania do onsumidor é a
apa idades mentais. Mas estes estariam subor-
retóri a de um populismo elitista.5 Aqueles que
dinados à vontade dos onsumidores. Von Mises
são predestinados por sua maior apa idade na-
a irma que “é o onsumidor que az algumas
tural de ante ipar os desejos dos onsumidores
pessoas ri as e outras pobres” (von Mises, 1990a,
têm um “voto” de maior peso na “demo ra ia
p. 50), e os que obtêm lu ros são os que “estão
do mer ado”. A demo ra ia do mer ado é uma
em ondições de atender as ne essidades mais
demo ra ia aristo ráti a, um oximoro.
urgentes do públi o” (von Mises, 1990, p. 927).
O populismo elitista de von Mises no que se
Tal apa idade de “atender as ne essidades” do
re ere à “demo ra ia do mer ado” é expli itado
públi o, sendo oriunda de uma desigualdade

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quando on rontado om a a irmação de que duos que ompõem as elites só pode se dar no
“as massas are em da apa idade de pensar restrito limite dos naturalmente predestinados
logi amente” (von Mises, 1985, p. 157). Sendo o- a azer parte da elite.
erente om os argumentos de von Mises, omo
Com o argumento da ir ulação das elites, von
os onsumidores são a massa da e onomia,
Mises avança o argumento do aráter merito-
estes are eriam de tal apa idade e, portanto,
ráti o do apitalismo. Cada um só pode “ ul-
uma e onomia de mer ado em que os onsumi-
par a si mesmo” se não hega à elite. (ibidem, p.
dores são os mestres seria irra ional. O argu-
35) Mas sendo as apa idades humanas natu-
mento aristo ráti o da superioridade natural
ralmente di erentes e hierárqui as, segundo o
das elites, portanto, deve “ orrigir” a soberania
próprio autor, ninguém poderia ulpar a si mes-
das massas. Von Mises a irma que os “ onsu-
mo pelas dotações que a natureza lhe deu. O
midores omo seres humanos são dados ao
argumento merito ráti o só ganha oerên ia se
erro” (von Mises, 1990a, p. 28) e “é dever da elite
or tido omo uma “lição” das elites superiores
induzi-los a alterar seu modo de vida ‘volunta-
sobre o “modo de vida” das massas in eriores,
riamente’” (ibidem).
isto é, a a eitação “voluntariamente induzida”
Mais a elite e onômi a é ormada pelos em- de sua ondição material in erior.
preendedores, ujo voto no mer ado tem maior
O argumento aristo ráti o dá sentido a pontos
peso. Assim, quem deve ensinar as massas dos
aparentemente obs uros da teoria da história de
onsumidores qual deve ser o modo de vida or-
von Mises. As “boas ideias” tornam-se ideolo-
reto são os empreendedores – ou seja, os api-
gia quando a elite predestinada pela natureza
talistas. Obviamente, a vontade das massas dos
umpre o seu dever de “induzir as massas a
onsumidores nesse aso não é autodetermina-
alterar voluntariamente seu modo de vida” (von
da, mas induzida. Sua liberdade é a liberdade
Mises, 1990a, p. 28). Embora von Mises a irme
de ser manipulado pelas elites. Não há dúvida
uma raiz biológi a para a superioridade na-
sobre quem é o “mestre” e “soberano” na e ono-
tural das elites, não é um me anismo análogo
mia de mer ado.
ao biológi o que de ine o aminho da história.
Von Mises mobiliza aqui o argumento de Pareto O me anismo que expli a o desenvolvimento
de que no apitalismo as elites estão em on- históri o para von Mises é de natureza religiosa
tínua mudança. (von Mises, 2009, p. 34) No e aristo ráti a. Sem uma teologia não é mais o
entanto, se as desigualdades de apa idades Ser espiritual superior que guia a história na
são naturais, a mudança ontínua dos indiví- direção de inida por sua vontade, mas a elite

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omposta pelos homens naturalmente “superio- ler Engelbert Doll uss, han eler da Áustria
res” que o azem. em 1933, após se aliar à Itália então governada
pelo partido as ista de Mussolini, dissolver o
A teoria ormal da ação ganha assim um
parlamento e governar om bases em leis emer-
onteúdo pre iso e de inido om o argumento
gen iais; ou seja, após estabele er uma ditadura
aristo ráti o de von Mises. A vontade da elite
temporária de elite.
predestinada é autodeterminada. As massas de-
vem se ontentar em mudar seu modo de vida
“voluntariamente” induzidos pela elite; aso 6. Considerações finais: o neoliberalis-
as massas persistam na ignorân ia, só resta às mo como reação
elites induzirem oer itivamente a mudança em Demonstrou-se nesse artigo que o neoliberalis-
seu modo de vida. Um omportamento voluntá- mo de von Mises undamenta-se em uma onto-
rio induzido não é um omportamento auto- logia religiosa e em argumentos aristo ráti os.
determinado, mas a vontade das massas tem Pode pare er estranho a usão do liberalismo
omo ausa a vontade das elites. No liberalismo om o pensamento religioso e aristo ráti o. No
de von Mises, apenas as elites têm sua vontade plano ideológi o, o liberalismo ombateu o pen-
autodeterminada, apenas elas são livres. Sua samento aristo ráti o e religioso durante o alvo-
de esa da liberdade é a de esa da liberdade de re er do pleno desenvolvimento do apitalismo
alguns induzirem a vontade de outros, pela no sé ulo XVIII, a despeito das di erenças que
oerção ísi a quando ne essário. se possam observar entre a ideologia e a práti a.
O argumento aristo ráti o de von Mises é om- É pre iso assinalar que o neoliberalismo de von
pletamente ompatível om uma ditadura de Mises é orientado pela obsessiva ruzada ontra
elite, mesmo que essa deva se manter somente tudo que ele identi i ava omo so ialismo. O
durante o “tempo ne essário” para mudar o “tudo” que identi i a, de facto, omo so ialis-
pensamento “das massas” (von Mises, 1985, p. mo é qualquer oisa que seja minimamente
45). Cabe observar que a de esa que von Mises avorável aos trabalhadores, mesmo dentro dos
az de uma “ditadura temporária de elite” não mar os do apitalismo e da demo ra ia liberal.
é apenas teóri a. Em 1934, von Mises tornou- A natureza da ameaça ao apitalismo mudou, já
-se membro da Frente Patriótica austría a, om não é mais o lero e a nobreza, mas os trabalha-
a arteira número 28632 (Hülsmann, 2007, p. dores ou, omo denomina von Mises, “a massa”.
677, n. 149). A Frente Patrióti a oi estabele ida Pode se entender isso a partir da natureza polí-
omo partido úni o da Áustria pelo han e- ti a da ontraposição de von Mises ao materia-

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lismo. Já no período iluminista, o materialismo também na “teologia da prosperidade” pente-
ontinha elementos perigosos para a manuten- ostal. Ademais, o neoliberalismo é de endido
ção da ordem apitalista; mas omo ele omba- om um ervor religioso que deixa seus adeptos
tia o “Ancién Regime”, ainda era a eitável. Von imunes à ontestação empíri a e à argumenta-
Mises a irma que o materialismo se sustentou ção lógi a.
a partir de meados do sé ulo XIX por motivos
Da mesma orma, a de esa da igualdade natural
políti os. Essa observação não é meramente
dos homens já não serve mais à manutenção do
asual; na verdade, o materialismo tornou-se
apitalismo. No sé ulo XVIII, os de ensores do
perigoso para a manutenção da ordem apitalis-
apitalismo tinham na nobreza que se via omo
ta a partir do momento que se tornou materia-
naturalmente superior aos “ omuns” um ini-
lismo históri o. A partir daí, qualquer mate-
migo a ser ombatido. Agora, são os “ omuns”,
rialismo deve ser ombatido pelos partidários
isto é, os trabalhadores, que representam a
da ordem – e von Mises é um de seus maiores
maior ameaça à manutenção do apitalismo.
a i ionados.
A nova aristo ra ia já não é mais a nobreza
Para ombater o materialismo, os neoliberais proprietária de terras, mas os empreendedores –
bus am undamentos na ideologia da reação leia-se os apitalistas –, a suposta “raça” bran a
eudal à as ensão do apitalismo. A ideologia de e os intele tuais neoliberais.
natureza religiosa, qualquer que seja a deno-
A oposição ideológi a entre a demo ra ia
minação desta, umpre um papel undamen-
liberal e o absolutismo trans orma-se em uma
tal na ruzada neoliberal. A religião não só é
bizarra síntese na demo ra ia aristo ráti a,
poten ialmente apaz de induzir uma mudança
no populismo elitista. A igualdade natural é
“voluntária” no omportamento das massas,
substituída pela suposta superioridade e pela
omo mobiliza argumentos justi i ados apenas
predestinação natural da nova aristo ra ia. O
pelo sentimento da é, “irre utáveis pela evidên-
argumento aristo ráti o serve às autodenomi-
ia empíri a”. Visto sob esse prisma, é possível
nadas elites para induzir os trabalhadores a se
entender que a de esa radi al do neoliberalismo
on ormarem voluntariamente om sua ondi-
venha a ompanhada não simplesmente da tole-
ção. Se o éu das elites não é al ançado pelas
rân ia religiosa de Voltaire, mas do undamen-
massas terrenas, restaria a essas a autodepre ia-
talismo religioso de Joseph de Maistre.6 Mas se
ção induzida.
trata não apenas de uma aliança, onsagrada na
en í li a Centesimus Annus (1991) de João Paulo
II, mas de uma verdadeira usão en ontrada

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Bibliografia ________. Theory and history. An interpretation o so ial
and e onomi evolution. Auburn: Ludwig von Mises Institu-
AQUINO, Tomás de. O ente e a essência. Covilhã: LusoSo ia te, 2007.
Press, 2008.
________. Ação humana: um tratado de E onomia. Rio
AQUINO, Tomás de. Suma contra os gentios. São Lourenço de de Janeiro: Instituto Liberal, 1990.
Brides: Es ola Superior de Teologia; Porto Alegre: Livraria
Sulina Editora, 1990. ________. Economic freedom and interventionism. An
anthology o arti les and essays. GRAVIES, B. (ed.). Indiana-
AQUINO, Tomás de. Summa theologica. Digital edition, Publi
Domain. Disponível em: <http://www. el.org/ el/aquinas/
polis: Liberty Fund, 1990a.
summa.html>. Benziger: Bros Edition, 1947. ________. Liberalism. In the lassi al tradition. San
Fran is o: Cobden Press, 1985.
BAROTA, P. “A neo-kantian ritique o von Mises’s Epistemo-
logy”, Economics and Philosophy, vol. 12, n. 1, Abril 1996. ________. The ultimate foundation of economic method.
Prin enton: D. Van Nostrand, 1962.
ECO, U. Ur-Fascism. New York Review o books, 22 de junho
de 1995. YOUNG, M. “Fun tions o though and the syntheses o intui-
tions”. In: GUYER, P. Cambridge companion to Kant. Cambrid-
HÜLSMANN. J. G. “Introdu tion”. In: VON MISES, L. Episte- ge: Cambridge University Press, 1992.
mological problems of economics. Auburn: von Mises Institute,
2002.

Notas
________. Mises The Last Knight of Liberalism. Auburn:
von Mises Institute, 2007.
1. A primeira obra de von Mises que visa a re onstrução
KOTARBINSKY, T. “The goal o an a t and the task o the e renovação do Liberalismo é “Liberalismus” publi ado em
agent”. In: GARSPARSKY, W. & PSZCZOLOWSKI, T. (eds). Alemão em 1927. Os argumentos re erentes à teoria do onhe-
Praxeological studies. Polish Contributions to the S ien e o imento e a praxeologia ainda não estavam elaborados nessa
E i ient A tion. Boston: Dreidel, 1983. primeira obra e oram desenvolvidos no livro “Nationalekono-
mie”, es rito entre 1934 e 1939 e publi ado em alemão em 1940.
KRETZMAN, N. “Philosophy o mind”. In: KRETZMAN, N.
Uma versão modi i ada desse livro apare e em inglês em 1949
& STUMP, E. Cambridge companion to Aquinas. Cambridge:
no livro Human action, mas a substân ia dos argumentos são
Cambridge University Press, 1993. mantidos. Em obras posteriores, omo em Theory and history
(1957) e The ultimate foundation of economic science (1962), von
LANGE, O. “The importan e o praxiology or politi al e o-
Mises apli a e desenvolve para questões espe i i as o onteú-
nomy”. In: KRETZMAN, N. & STUMP, E. Cambridge compa-
do dos argumentos ontido em Human action. A apli ação e
nion to Aquinas. Cambridge: Cambridge University Press, 1993.
desenvolvimento dos argumentos de Human a tion apare em
MAC DONALD, S. “Theory o Knowledge”. In: KRETZMAN, também na série de palestras pro eridas em 1958 na Argentina
N. & STUMP, E. Cambridge companion to Aquinas. Cambridge: e posteriormente publi as sob o título de “As seis lições”.
Cambridge University Press, 1993.
Pode-se a irmar, portanto, que os elementos mais substan iais
MACIERNY, R. “Ethi s”. In: KRETZMAN, N. & STUMP, da onstituição do neoliberalismo de von Mises deram-se no
E. Cambridge companion to Aquinas. Cambridge: Cambridge período entre guerras. Embora haja reelaborações, apli ações
University Press, 1993. e desenvolvimentos em obras posteriores a esse período seus
argumentos metodológi os, sua de esa do liberalismo e o
NEW YORK TIMES. “Rand Paul’s Mixed Inheritan e”, 25 argumento aristo ráti o permane em omo uma onstante.
de janeiro de 2014. Disponível em: <http://www.nytimes. Muitos argumentos são repetidos em várias obras, muitas ve-
om/2014/01/26/us/politi s/rand-pauls-mixed-inheritan e. zes literalmente, outras om adições ou omissões. A ríti a ao
html?_r=0>. A essado em: 24/09/2015. otimismo do “velho liberalismo” em relação às massas ontida
em “Liberalismo” de 1927, por exemplo, reapare e modi i ado
SMITH, A. “Le tures on jurispruden e” In: Glasgow editon em alguns detalhes em todas as edições de “Ação humana”. Do
of the works and correspondence, Vol. 5. Indianapolis: Liberty mesmo modo, os argumentos sobre a praxeologia e a história
Fund, 1982. ontidos em “Ação humana” reapare em desenvolvidos mas
não substan ialmente modi i ados em “Theory and history” e
VON MISES, L. As seis lições. São Paulo: Instituto Ludwig von em “The ultimate foundation of economic science”.
Mises Brasil, 2009.

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2. Qualquer a irmação de natureza epistemológi a, isso é 6. Joseph de Maistre (1753-1821), jurista nas ido no reino de
sobre omo onhe emos algo, supõe um omprometimento Savóia. Foi um eroz oponente do Iluminismo e da revolução
ontológi o, isto é, uma a irmação sobre o que onhe emos. ran esa, apologista do ristianismo e re erên ia do pensamen-
Mesmo o eti ismo epistemológi o, ao asseverar que nada to onservador. Há pelo menos uma re erên ia elogiosa de von
podemos a irmar sobre o que onhe emos independente Mises a de Maistre e outros autores anti-iluministas: “ oram
do próprio ato de onhe er, az uma a irmação sobre o que pensadores omo Burke e Haller, Bonald e de Maistre que ha-
onhe emos. maram a atenção para o problema que os liberais não haviam
per ebido. Foram eles que souberam avaliar o pensamento
3. Te ni amente a meta ísi a é entendida omo a iên ia das massas mais realisti amente do que seus adversários” (von
das ategorias, que ompreende a ontologia – a iên ia do ser Mises, 1990, p. 1177)
enquanto ser – omo um de seus ramos. Mas se a partir de
Kant a ontologia é entendida em sua relação om a episte-
mologia omo se re erindo ao que onhe emos, é possível
azer uma distinção em relação ao que se assevera sobre o que
onhe emos. Em uma ontologia realista o que onhe emos é o
existente. Em uma ontologia realista a irma-se que onhe e-
mos aquilo que o existente é – sua essên ia ou quididade – e
que somente é algo, ou seja, têm uma essên ia, aquilo que
existe. Essên ia e existên ia não existem em dois mundos
separados, trata-se de uma ontologia da imanên ia. Já a meta-
ísi a assevera que podemos onhe er a essên ia independente
da existên ia. Assim a irma Aquino: “E etivamente posso
on eber o que é o homem ou a ênix e apesar disso ignorar
se existem entre as oisas da natureza. Logo é evidente que o
ser se distingue da essên ia ou da quididade, ex eto se existir
alguma oisa uja quididade seja o ser” (Aquino, 2008, p. 30)
Deste modo, a irma-se uma ontologia de dois mundos, um
re erente às essên ias, meta ísi o – aqui signi i ando além do
existente, trans endente – e outro o mundo existente.

4. Em que pese as muitas mediações entre as práti as e a ir-


mações de adeptos da teoria de um autor, é possível ilustrar
a ompatibilidade entre as teorias de von Mises e o ra ismo
om a postura de seus di usores ontemporâneos, reunidos
no von Mises Institute dos EUA. Lee Ro kwell Jr., um dos
undadores do von Mises Institute, exalta a resistên ia dos es-
tados do sul dos EUA à legislação dos direitos ivis, e Murray
Rothbard, outro undador do von Mises Institute, aprovou o
“populismo de direita” de David Duke, membro da Klu Klux
Klan e um dos maiores de ensores da “suprema ia bran a” nos
EUA (New York Times, 25 de janeiro de 2014).

5. Trata-se aqui de uma analogia om o populismo de elite


ara terísti o do as ismo universal, de a ordo om Umberto
E o. Tal analogia é relevante, pois se de ende nesse artigo
que o neoliberalismo é uma ideologia aristo ráti a, da mesma
orma que o as ismo, de a ordo om a ara terização de
E o. Segundo a retóri a do populismo de elite, qualquer um
poderia azer parte da elite, mas para haver elite deve haver
“in eriores” e a parti ipação no grupo de elite baseia-se no
“desprezo pelo mais ra o”, re orçando um sentido do elitismo
de massas. (E o, 1995, p. 7)

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