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Fajardo, in memoriam 02/11/2022 14:13
FAJARDO, IN MEMORIAM
Vida e obra de um bovino espermático
A
o meio-dia do último 18 de fevereiro, numa fazenda a duas horas de São
José do Rio Preto, estado de São Paulo, falecia um touro. Seu nome era
Fajardo – Fajardo da GB, para ser mais preciso. Tinha 16 anos recém-
completados. Dali a minutos, a notícia correria o país.
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Três dias antes da exposição que elegeria o melhor novilho, Galera resolveu
vistoriar os espécimes que trouxera para a feira. Foi quando bateu o olho em
Fajardo, um bovino sem expressão marcante, ainda distante dos mil quilos.
Levado apenas pela intuição, Galera pediu ao tratador que levantasse o animal,
para que pudesse analisar sua anca, sua musculatura e o diâmetro do seu saco
escrotal – pré-requisitos básicos em um touro de qualidade. Gostou do que viu, e
soube que o animal estava à venda. Só faltava juntar o dinheiro: 10 mil dólares.
“Ninguém imaginava que isso fosse acontecer. O Fajardo já tinha sido premiado
numa outra exposição, mas coisa pequena”, lembrou Demétrio. A faixa caía feito
uma bomba no projeto de Galera. “De repente, fazendeiro que nunca tinha visto
o Fajardo estava oferecendo três vezes mais do que o Helder.” Aflito, Galera
procurou Inoel Ramos da Silva, que ainda detinha os direitos sobre o animal, na
esperança de que palavra dada era palavra empenhada. Ao ouvir que o trato
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continuava de pé, prometeu: “Seu Inoel, se esse bicho virar um grande campeão,
eu volto aqui para doar as primeiras doses de sêmen ao senhor.” No ano
seguinte, com o touro já condecorado pela Associação de Criadores de Nelore do
Brasil com o galardão de Melhor Macho Jovem, Galera cumpriu a palavra:
reencontrou Inoel trazendo, em mãos, o sêmen prometido.
F
ajardo era da raça mais populosa do Brasil, a Nelore, perfazendo dois
terços dos 195 milhões de bois em atividade no país. A história da
linhagem remonta a 1878, quando Manoel Lemgruber, um industrial em
viagem à Alemanha, se interessou por quatro bovinos expostos no zoológico de
Hamburgo. Ao saber que eram originários da Índia, Lemgruber intuiu que, em
razão da semelhança climática entre os dois países, os animais talvez pudessem
se adaptar ao Brasil. Resolveu trazê-los.
Até então, a pecuária nacional caminhava a passos lentos. A maior parte dos bois
datava da colonização portuguesa e era uma mistura de animais africanos e
europeus. “Como ainda nem existia vermífugo ou antibiótico, eles pegavam
todos os tipos de doença”, diz o fazendeiro Paulo Lemgruber, sobrinho-neto do
pioneiro Manoel. “Não sobreviviam por mais de um ano.”
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“O Karvadi era tão conhecido que, na época, toda repartição pública da Índia
tinha uma foto dele e outra do primeiro-ministro”, contou – repetindo o que
talvez seja uma lenda urbana – Marco Aurélio Colete, representante de vendas da
Central VR, onde o touro indiano viveu após chegar ao Brasil. Somado à beleza e
à fertilidade, Karvadi foi o bovino certo no lugar certo. Em 1968, seu proprietário,
Torres Homem Rodrigues da Cunha, inaugurou uma das primeiras centrais de
inseminação artificial do Brasil. Enquanto a maioria dos touros continuava
fecundando in natura, Karvadi entrou para o modelo fordista. Em pouco tempo, o
sêmen do touro era vendido em todo o Brasil – e a linhagem Nelore tomava a
dianteira das outras. A raça, segundo Colete, se divide entre “antes e depois do
Karvadi. Noventa por cento do rebanho de hoje tem sangue dele”. Fajardo era
seu tataraneto.
ASCENSÃO
D
e acordo com uma instrução normativa do Ministério da Agricultura,
Pecuária e Abastecimento, touros em coleta de sêmen são obrigados a
viver em centrais. A Associação Brasileira de Inseminação Artificial tem,
hoje, dezesseis delas na sua lista de associados, nas quais se abrigam cerca de 600
touros.
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À época, com 5 anos de idade e 1 162 quilos, Fajardo já era um touro de renome.
Em 1994, sagrara-se grande campeão da Expoinel de Uberaba, uma das principais
feiras pecuárias do país. Em 1997, em razão da qualidade de seus filhos,
conquistara o título de Melhor Reprodutor Nelore pelo ranking da Associação
dos Criadores Nelore Brasil. “O Fajardo foi a primeira contratação de peso que
fizemos quando a Holland [grupo internacional de aprimoramento genético] se juntou
a nós no Brasil”, diz Ricardo Abreu, gerente de produto corte Zebu da CRV
Lagoa.
Antes de ser contratado pela Lagoa, Fajardo passou dois anos produzindo sêmen
na central ABS Pecplan, em Uberaba. “No dia em que ele ganhou a Expoinel,
recebemos uma chuva de convites. Ele foi direto da exposição para o trabalho”,
contou Ricardo Demétrio, o cunhado de Helder Galera. Lá, sob os cuidados do
veterinário Fernando Vilela Vieira, Fajardo ganhou a maior parte dos seus
prêmios: “Foi aqui que ele chegou a mil quilos. Foi aqui que ele foi eleito o
melhor reprodutor. Foi aqui que ele foi projetado no mercado. E por causa de
pouca coisa, o proprietário o levou para outra central. É muita ganância”,
lamentou Vieira, por telefone. Taxativo, negou-se a descrever o período em que
Fajardo viveu na sua central: “Tenho animais muito superiores. O mundo
caminha. Não falo sobre touro da concorrência.”
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Como vizinhos, tinha os touros Enlevo (segundo Ricardo Abreu, “o animal mais
bonito daqui”), Xangô (“Touro jovem, que está virando uma marca”) e Ranchi
(cuja “cota” de 50% – ou seja, metade de cada pata, chifre e gota de sêmen – foi
vendida no ano passado por 1 milhão de reais). “O Fajardão ficava na Oscar
Freire da Lagoa”, relembra.
S
êmen, como vinho, tende a encarecer à medida que o touro envelhece. Há
duas razões. A primeira, de ordem biológica: quando a idade do animal
avança, a produção de esperma diminui – a redução da oferta encarece o
produto. A segunda, de ordem especulativa: quanto mais idoso, maior a chance
de o bovino ter filhos e netos premiados. Cada medalha que a prole recebe
reverte em voto de confiança no patriarca. Em 2008, Fajardo foi considerado o
quinto melhor reprodutor da raça. Poderia ter passado o ano sem fazer outra
coisa senão pastar, pois o esforço não foi dele, mas de suas laureadas netas
Brazlandia, Espanhola e Mary. O grande campeão de 2008 foi o touro Bitello da
SS, com 160 filhos premiados. Ele está morto desde 2005.
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I
nstalado na CRV Lagoa, Fajardo deu início à rotina que seguiria pelo resto
da vida. Duas vezes por semana – terça e sexta-feira –, era despertado às seis
da manhã pelo tratador Luís Eduardo Miguel. Ainda sonolento, o touro era
banhado com água e xampu neutro da marca Ouro Fino. Recebia também uma
lavagem prepucial, para evitar impurezas no esperma. Em seguida, Miguel o
conduzia pelo cabresto até um piquete circular, onde Fajardo era aguardado por
duas vacas que se revezavam para excitá-lo. Enquanto uma das fêmeas
descansava, deitada sob a copa de uma árvore, a outra era obrigada a se colocar
de costas para ele, oferecendo-lhe as partes íntimas. Ao contrário do bovino
médio, que se entrelaça apenas com vacas no cio, Fajardo – assim como seus
companheiros de faina – era capaz de se estimular em condições assim tão
adversas. “Touro de central é condicionado a isso”, explica Ricardo Abreu.
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Na flor da idade, cada tubo de ensaio preenchido por Fajardo continha até 500
doses de sêmen, vendidas a 350 reais a unidade – preço fixado desde 2005.
Multiplicando, uma única ejaculação podia valer 175 mil reais.
Q
uando chegou à CRV Lagoa, em 1998, Fajardo vendia seu sêmen a 20
reais. Os quatro anos seguintes foram de árduo trabalho e lhe valeram o
prêmio Palheta de Ouro, concedido aos touros que atingem a produção
de 250 mil doses. “Foi um grande orgulho, como ver um filho ou um sobrinho
sendo condecorado”, relembra Lúcia Helena. O prestígio, no entanto, pouco
contribuiu para o benefício dos dividendos: a dose passara a custar 28 reais,
aumento discreto em termos pecuários. O pulo do gato, por assim dizer, ocorreu
em 2003. O sêmen, que começara o ano sendo comercializado a 30 reais, já valia
quase o dobro em dezembro. Em 2004, o crescimento foi exponencial: pulou de 50
para 140 reais. As crias de Fajardo haviam provado que o pai era um reprodutor
estupendo.
Em agosto de 2005, a dose de Fajardo atingiu o piso atual: 350 reais. Em pouco
mais de dois anos, o esperma tivera um aumento de quase 1 200%. A pecuária
nacional vivia seu primeiro boom. “O ano de 2003 foi a época áurea do Nelore”,
disse Ricardo Abreu. João Gilberto Bento, da Associação Brasileira dos Criadores
de Zebu, concorda: “Foi o início da migração de empresários, artistas e
industriais para esse ramo. Marcou o começo da revolução na reprodução.”
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QUEDA
E
m novembro de 2007, Fajardo completou seu décimo quinto ano de
existência – idade excepcional para touros, que vivem em média treze
anos. A comemoração, transmitida pelo Canal do Boi, contou com a
presença de vinte funcionários da CRV Lagoa, que, sentados numa pequena
arquibancada, cantaram parabéns enquanto o aniversariante se regalava com um
bolo de feno. “Fajardo!”, “Valeu, Fajardo!”, “Viva”, gritaram alguns mais
exaltados. Animada, a veterinária Lúcia Helena Rodrigues homenageou os donos
do animal: “À família Galera, parabéns por esse filho maravilhoso, que também é
nosso filho.” Em seguida, enfatizou que, mesmo em idade avançada, “ele ainda
vem duas vezes por semana à área de coleta, mantendo a rotina de sempre”.
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No ano passado, Fajardo perdeu seu maior trunfo: a qualidade do sêmen. “Ele
não conseguia mais atingir o padrão mínimo de espermatozóides viáveis, mas,
como a saúde fisiológica depende da rotina, não mudamos o dia-a-dia dele. Do
contrário, me sentiria como aquelas pessoas que abandonam o velho na cadeira,
esperando que ele morra”, contou Lúcia Helena. Fajardo se aposentava com mais
um galardão. Chegara ao teto da sua capacidade espermática: 480 mil doses,
recorde nacional.
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A sala principal exibe quatro troféus recebidos por Fajardo, entre eles o da
Expoinel 1994, que o revelou para o mundo. Na parede, há um imponente retrato
a óleo do touro, de 1 metro por 2, pintado pela holandesa Marleen Felius,
especializada em portraits bovinos e caprinos. Ao lado, uma série de fotografias
registra as etapas da vida de Fajardo. Ricardo Demétrio, cunhado de Helder,
aponta para uma imagem de quando ele ainda era novilho e acabara de ser
adquirido pela família Galera. “Mudou tudo. Dessa imagem, só sobraram as duas
árvores do fundo. O resto virou a sede”, contou. Nos últimos quinze anos, a
fazenda passou de oito para 64 baias. Hoje, Galera possui quinze touros
espalhados em três centrais de inseminação.
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pernas, sem fazer barulho nenhum.” Nunes correu para chamar o veterinário,
que nada pôde fazer.
POST MORTEM
À
s três da tarde, o telefone de Fernando Chiavenato tocou em Curitiba.
Depois de ouvir a notícia, Chiavenato pegou fita métrica e bisturi, e partiu
em direção ao aeroporto. Após nove horas, dois vôos e um translado,
chegava à Fazenda Eldorado. Como o trabalho requeresse urgência, varou a noite
medindo e retalhando Fajardo. Às quatro da madrugada, conseguiu o que queria:
a pele do touro, para empalhá-lo.
De acordo com a central Lagoa, Fajardo ainda tem 20 mil doses de sêmen
armazenadas. Ao preço atual, valem 7 milhões de reais, sem descontar o imposto
de renda.
___________________
A versão impressa da revista dizia “quase divisa entre São Paulo e Mato Grosso”, quando
na verdade, se trata da divisa entre os estados de São Paulo e Mato Grosso do Sul.
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Roberto Kaz
Foi repórter da piauí
piauí. É autor do Livro dos Bichos, pela Companhia
das Letras
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