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ISABELA MOURÃO
LAIS MONTEIRO
LARISSA HECKERT
REBECA LIMA
INTRODUÇÃO
PRINCÍPIOS E PRESSUPOSTOS
O GGAM parte, então, do pressuposto de que cada usuário possui uma relação única
e particular com o uso de medicamentos, sendo preciso então aproximá-lo cada vez mais dos
profissionais que encontram-se envolvidos em seu processo terapêutico para que, através
dessa relação, possa pensar, também de maneira singular, as melhores formas de tratamento.
Assim sendo, este passa a estabelecer-se a partir de uma dinâmica ancorada na construção
coletiva, no diálogo e no compartilhamento de experiências.
No que diz respeito à prática do grupo em si, os moderadores têm um papel
fundamental. Estes apresentam a função de facilitar a escuta sobre o tratamento, agora a partir
de uma nova perspectiva — a dos usuários, e, dessa forma, precisam proporcionar
acolhimento às experiências compartilhadas, por mais diversas e difíceis de compreender que
sejam. Nesse papel de condução do grupo, estarão se deparando com questões de cunho
clínico mas também ético e político, propiciando a possibilidade de se pensar novas maneiras
de conexão com a saúde. Além disso, conforme foi estudado no decorrer de toda essa
disciplina, precisarão criar estratégias para produzir um ambiente seguro e de confiança,
apoiando o grupo na produção de sua autonomia e no desenvolvimento da gestão
compartilhada (cogestão) de seus tratamentos. Chegamos aqui aos princípios chaves da GAM
(GESTÃO AUTÔNOMA DA MEDICAÇÃO, 2014).
A autonomia é pensada não como um conceito que define ser sozinho ou
independente de tudo e de todos, mas sim como um processo relacional, como um estar com,
entendendo que só é possível desenvolver tal característica a partir do momento em que a
gestão do tratamento é compartilhada por todos os que encontram-se envolvidos no mesmo.
Há uma corresponsabilidade dos pacientes e, dessa forma, fala-se então de uma cogestão, de
um manuseio conjunto, onde a melhor forma de tomar decisões sobre determinado tratamento
é levando em consideração não só a experiência médica, mas também a experiência adquirida
pelo próprio usuário em sua relação com os medicamentos. A proposta é de que a partir do
ampliamento de visões sobre o tratamento, se amplie também as possibilidades de cuidado
com o usuário. É importante frisar que a ideia do GAM em momento algum é de se colocar
como mais uma forma de tratamento dos transtornos mentais, e que este não deve ser atrelado
à eficácia dos mesmos. O seu intuito é de potencializar os usuários para que sejam sujeitos
ativos em seus processos terapêuticos (GESTÃO AUTÔNOMA DA MEDICAÇÃO, 2014).
Retornando às questões referentes às práticas do grupo em si, faz-se necessário que
antes de dar início ao grupo propriamente dito, seja feita uma espécie de sensibilização com
todos os que estarão envolvidos nesse projeto, visando ambientá-los com a proposta do
GGAM e esclarecer possíveis dúvidas, deixando em aberto a participação ou não no grupo.
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Além disso, é nesse primeiro momento que serão definidas as regras de funcionamento do
grupo, também em conjunto — o que já começa a criar um sentimento de participação ativa e
pertencimento nos usuários. Indica-se que a mediação seja realizada em duplas e que ao final
de cada intervenção estas façam uma avaliação do que foi vivenciado. Indica-se também que
haja um apoio externo para esses moderadores, para que possam compartilhar seus
sentimentos com relação ao grupo, trocar experiências, indicar estudos e assim, desempenhar
tal função de forma cada vez melhor. (GESTÃO AUTÔNOMA DA MEDICAÇÃO, 2014).
Para fins de direcionamento, é utilizado o Guia GAM, entretanto, é de suma
importância salientar que, uma vez que se entende a realidade como sendo algo que foge às
prescrições, este não se apresenta como uma receita de bolo a ser cegamente seguida, mas sim
como um material de apoio para a construção de estratégias específicas para cada realidade
em que o Grupo GAM for implementado.
O Guia GAM foi traduzido e adaptado para a realidade brasileira nos anos de 2009 e
2010, através deste ajuste foi possível contextualizar o GGAM para compreender a Reforma
Psiquiátrica, o SUS e incluir os direitos dos usuários de serviços de saúde e de saúde mental
vigentes no Brasil. Desta maneira, os usuários brasileiros manifestaram o desejo de um
diálogo maior com as equipes de saúde para que eles possam entender melhor o
funcionamento de seus medicamentos e poder participar da gestão dos mesmos (GESTÃO
AUTÔNOMA DA MEDICAÇÃO, 2014).
Nesta remodelação, foi necessário alterar a segunda parte do guia canadense, pois esta
entende que a melhor forma de tratamento seria diminuir ou parar com o uso dos
medicamentos, porém, no Brasil, os usuários não reivindicaram tal pauta. Além disso, os
usuários brasileiros compreendiam o acesso aos medicamentos como um direito fundamental,
no entanto, existia uma certa dificuldade na disponibilidade de determinados medicamentos
na rede de atenção à saúde. A diminuição e retirada do medicamento no Brasil não é uma
proposta impossível, mas para que ela ocorra é necessário que a equipe de saúde, a família e o
usuário cheguem em um consenso sobre esta possibilidade. A gestão autônoma do
medicamento é sobre isso, uma possibilidade do usuário e da família, que entendem como o
medicamento funciona na prática, conversem sobre seus desejos relacionados à medicação
com os médicos. Assim, a decisão de aumentar, trocar, diminuir ou retirar a medicação vai ser
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compartilhada, ou seja, todos esses atores vão poder dialogar e compartilhar saberes para que
a melhor decisão seja tomada (GESTÃO AUTÔNOMA DA MEDICAÇÃO, 2014).
Para que os ajustes acima pudessem ser feitos foi fundamental um grupo de
intervenção, assim, depois que o guia foi traduzido, os pesquisadores de Campinas-SP, Rio de
Janeiro-RJ e Novo Hamburgo-RS realizaram uma pesquisa com grupos que buscava incluir
sugestões e fazer alterações no guia para introduzi-lo na realidade brasileira. Estes grupos
contavam com a participação de sete a nove usuários, além dos pesquisadores, residentes e
trabalhadores dos CAPS. Os critérios para a participação dos usuários nos grupos eram ser
portador de transtorno mental grave, estar fazendo uso de psicofármacos há mais de um ano e
manifestar vontade de participar do grupo, assim como assinar o termo de consentimento livre
e esclarecido.
Os participantes desses grupos de intervenção (GIs) receberam, cada um, um
exemplar do GGAM, e para a realização da leitura foram realizadas dinâmicas e discussões. A
partir disso foram feitas críticas e sugestões de alterações do texto ou em seu modo de uso
para que a elaboração final do GGAM-BR contemplasse as experiências dos usuários
brasileiros (CAMPOS ET AL, 2012). A proposta é que os grupos de intervenção que utilizam
o GGAM-BR possibilitem que os usuários dos dispositivos de saúde expressem o saber
próprio sobre sua experiência e exerçam autonomia e responsabilidade na gestão de seu
próprio tratamento medicamentoso.
Nesse sentido, pode-se perceber que os pacientes, ou seja, o público-alvo do Guia de
Gestão Autônoma de Medicação participaram de forma ativa de sua elaboração. Dessa forma,
estabeleceu-se uma ação não verticalizada, que reforça a hierarquização dos saberes. A
experiência do GGAM-BR vai de encontro com a ideia apresentada por Bernardes et al
(2017), no que tange a desconstrução da dicotomia entre sujeito e objeto em pesquisas. Os
autores salientam que “eles não são entidades separadas, nem autônomas. Ao contrário, eles
se produzem em suas relações cotidianas, nas construções de conhecimentos sobre si e sobre o
mundo. Conhecimentos que se produzem em processo dialógico e, portanto, coletivo e
compartilhado.” (BERNARDES ET AL, 2017, p. 873).
Através dos grupos de intervenção (GIs) e dos grupos focais antes (GF0) e depois
(GF1) dos GIs, foi possível partilhar as experiências dos participantes do projeto em relação
ao tema do uso de medicação. Nesse sentido, é pertinente expor como a participação nos
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
À luz das exposições, pode-se perceber a importância do Grupo GAM como estratégia
de intervenção para a quebra da hegemonia do saber psiquiátrico, promovendo a
transversalidade, assim como uma postura ativa por parte dos usuários. É importante ressaltar
que isso não significa a desvalorização do saber médico em prol de que o indivíduo tome as
próprias decisões em relação ao medicamento. A postura ativa do usuário não significa
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negligência à opinião profissional, mas sim, a consideração dos sujeitos como parte essencial
do processo terapêutico, de forma que este seja ouvido e tenha consciência de seu próprio
tratamento.
Através de tantas “vozes” que possuíram espaço de fala durante a condução do projeto
GGAM-BR, foi possível, segundo os autores, perceber que todos os participantes se
mostraram mais apossados de seus direitos na condução do processo de cuidado em saúde
mental. Nesse sentido:
O GGAM mostrou-se potente para instituir espaços de fala a respeito da medicação,
chamando a atenção da equipe e dos gestores sobre a importância desse tema, cujo
enfrentamento não se restringe à clínica, mas tem consequências éticas e políticas.
Fez reafirmar os direitos dos usuários, trazendo sua discussão à tona entre usuários,
suas famílias e equipes. E, ainda, imprimiu, na relação com o usuário, uma
abordagem dinâmica, plasticamente adaptada ao momento singular da vida de cada
um (CAMPOS ET AL, 2012, p. 977).
Portanto, é indiscutível que o GGAM não se trata apenas de uma ferramenta técnica,
com etapas engessadas. Ao contrário, trata-se de um instrumento de caráter relacional,
abrangente, construído de forma colaborativa e coletiva, que leva em consideração o
dispositivo de saúde mental como um serviço complexo e multifacetado.
Ainda é importante ressaltar que, antes da implantação dos grupos de intervenção nos
CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) estudados, o estudo constatou a manutenção de
estigmas tais quais a “irracionalidade dos pacientes graves”, constatou também a falta de
informação dos usuários em relação ao tratamento, assim como a falta de qualificação dos
profissionais para promoção do diálogo (CAMPOS ET AL, 2012). O que nos mostra que,
apesar dos avanços promovidos pela Reforma Psiquiátrica, valores manicomiais permanecem
enraizados. O GGAM ainda não é uma realidade em todo o território brasileiro, assim como a
equidade, a descentralização, a universalidade, a participação social e os demais valores
apregoados pelo SUS (Sistema Único de Saúde) ainda não alcançaram sua plenitude. A luta
antimanicomial ainda persistirá enquanto a imposição do saber médico e a desvalorização do
sujeito que adoece estiverem presentes na sociedade e, consequentemente, nas instituições.
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REFERÊNCIAS
BECHELLI, Luiz Paulo de C.; SANTOS, Manoel Antônio dos. Psicoterapia de grupo: como
surgiu e evoluiu. Rev. Latino-Am. Enfermagem, Ribeirão Preto , v. 12, n. 2, p. 242-249,
Abr. 2004 . Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?
script=sci_arttext&pid=S0104-11692004000200014&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 13
Abr. 2021. https://doi.org/10.1590/S0104-11692004000200014.
CAMPOS, Rosana Teresa Onocko et al. Adaptação multicêntrica do guia para a gestão
autônoma da medicação. Interface-Comunicação, Saúde, Educação, v. 16, p. 967-980,
2012. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-
32832012000400009&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 07 abr 2021. Epub Nov 30, 2012.
https://doi.org/10.1590/S1414-32832012005000040.