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Rio de Janeiro
2020
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TRAJETÓRIA DA CONSTRUÇÃO [LEVAR A CABO]:
UMA ABORDAGEM CONSTRUCIONISTA BASEDADA NO USO
Rio de Janeiro
2020
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Ao meu pai, Joaquim Stein (in memoriam), dedico esta tese.
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AGRADECIMENTOS
Este trabalho teve as suas primeiras linhas rascunhadas em 2015, no meu último ano de
Mestrado, quando, com o auxílio da Profa. Conceição Paiva, na época professora visitante do
Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos da UFES, redigi o anteprojeto de
pesquisa submetido na seleção para o Doutorado em Linguística da UFRJ. Portanto, a essa
querida professora, que aceitou me orientar nesta empreitada, dirijo os meus primeiros
agradecimentos. Não só pela generosidade, como também pela dedicação e competência que
demonstrou em todos os momentos nos quais tive a oportunidade de aprender com ela. Para
mim, é uma honra ter sido seu orientando!
Também quero agradecer imensamente aos professores que compuseram a minha banca
de defesa. Cada um contribuiu de um jeito para o aperfeiçoamento deste trabalho e, por isso,
considero importante mencionar algumas (das muitas) contribuições recebidas. Evidentemente,
os equívocos e limitações que permaneceram no texto são de minha inteira responsabilidade.
Professores Diego Leite e Karen Alonso, obrigado pelas contribuições valiosas tanto no
exame de qualificação quanto na defesa da tese. Em especial, agradeço pelos direcionamentos
do exame de qualificação, que me ajudaram a dar um novo desenho ao trabalho, de modo a
reduzir-lhe o escopo para, então, descrever, com mais profundidade, um número menor de
construções com o verbo levar.
Agradeço também aos professores Ivo do Rosário (UFF) e Marcos Wiedemer (UERJ).
Ao Prof. Ivo quero agradecer pela leitura atenta do texto e pelos comentários, sempre muito
lúcidos e gentis, durante a arguição. Quanto ao Prof. Marcos, agradeço, de modo particular,
pela leitura minuciosa dos gráficos e tabelas − leitura esta que me abriu os olhos para problemas
que eu ainda não havia identificado até a cerimônia de defesa.
Além disso, também agradeço ao Prof. Diogo Pinheiro, que presidiu a defesa de maneira
leve e descontraída − mas, ao mesmo tempo, com toda a seriedade que a cerimônia requer.
Muito obrigado pela presteza! Professoras Christina Abreu Gomes (UFRJ) e Lúcia Helena
Rocha (UFES), obrigado terem aceitado ser membros suplentes da banca.
Por fim, registro o meu muito obrigado àqueles que contribuíram menos diretamente
para a realização da pesquisa, mas que, ainda assim, foram fundamentais durante todo o
processo: professores do PósLing/UFRJ; companheiros da pós; minha mãe; Profa. Edenize;
Bárbara Brum e Priscilla Gevigi; Lorran e Luíza. A todos, o meu muito obrigado!
Esta pesquisa foi financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq), por meio de bolsa de incentivo à pesquisa.
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A linguagem [...] é uma inesgotável riqueza de múltiplos valores. A linguagem é
inseparável do homem e segue-o em todos os seus atos. A linguagem é o instrumento
graças ao qual o homem modela seus pensamentos, seus sentimentos, suas emoções,
seus esforços, sua vontade e seus atos, o instrumento graças ao qual ele inf luencia e é
influenciado, a base última e mais profunda da sociedade humana. Mas é também
recurso último e indispensável do homem, seu refúgio nas horas solitárias em que o
espírito luta contra a existência, e quando o conflito se resolve no monólogo do po eta
e na meditação do pensador. Antes mesmo do primeiro despertar da nossa
consciência, as palavras já ressoavam à nossa volta, prontas para envolver os
primeiros germes frágeis do nosso pensamento e a nos acompanhar inseparavelmente
através da vida, desde as mais humildes ocupações da vida cotidiana até os momentos
mais sublimes e mais íntimos dos quais a vida de todos os dias retira, graças às
lembranças encarnadas pela linguagem, força e calor. A linguagem não é um simples
acompanhante, mas sim um fio profundamente tecido na trama do pensamento: para
o indivíduo, ela é tesouro da memória e a consciência vigilante transmitida de pai para
filho. Para o bem e para o mal, a fala é a marca da personalidade, da terra natal e da
nação, o título de nobreza da hum anidade. O desenvolvimento da linguagem está tão
inextricavelmente ligado ao da personalidade de cada indivíduo, da terra natal, da
nação, da humanidade, da própria vida, que é possível indagar-se se ela não passa de
um simples reflexo ou se ela não é tudo isso: a própria fonte de desenvolvimento
dessas coisas.
(HJELMSLEV, 1975 apud: FIORIN, 2013, p. 14)
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STEIN, Allan Costa. Trajetória da construção [LEVAR A CABO]: uma abordagem
construcionista baseada no uso. Rio de Janeiro: 2020. Tese (Doutorado em Linguística).
Programa de Pós-Graduação em Linguística, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio
de Janeiro.
RESUMO
Com base na perspectiva da Gramática de Construções Baseada no Uso, esta tese propõe uma
análise diacrônica das construções ativa e passiva com [LEVAR A CABO], a partir de um
levantamento em textos escritos, representativos dos diferentes períodos do português e de
diversos gêneros textuais, disponíveis no banco de dados do Corpus do Português (DAVIES;
FERREIRA, 2006). Uma hipótese de partida deste estudo é que [LEVAR A CABO] constitui
um padrão construcional por direito próprio e, portanto, apresenta propriedades tanto estruturais
como semânticas que independem dos itens lexicais com os quais se funde. Assim, com o
intuito de identificar as propriedades mais relevantes desta construção e de que maneira tais
propriedades se estabeleceram ao longo do tempo e interagem entre si, as ocorrências atestadas
foram analisadas a partir de diversas variáveis. São considerados aspectos referentes ao estado
de coisas como um todo, tais como valor semântico (‘concluir/realizar’), presença/ausência de
modalizadores ou qualificadores da situação; bem como as propriedades sintático-semânticas
dos dois participantes envolvidos na cena (indutor e afetado/efetuado). A análise permite
depreender que a construção ativa ([Sn1 LEVAR A CABO Sn2 ]) e a construção passiva ([Sn
(aux.) LEVAR PP A CABO (SPrep)]) instauram a mesma cena básica, mas se distinguem
especialmente quanto à perspectivação da cena, dado que a ativa focaliza o indutor do processo,
ao passo que a passiva destaca o participante afetado/efetuado e coloca o indutor em segundo
plano. A análise apresenta, ainda, evidências de que a construção [LEVAR A CABO], cuja
atestação remonta ao século XVII, se liga, por elo de instância, ao esquema
causativo/resultativo [Sn1 VCAUSA Sn2 VEFEITO] e, deste modo, se relaciona também, num nível
mais alto, à Construção de Movimento Causado. Além disso, [LEVAR A CABO] se prende,
por link de subparte, à construção semiesquemática [A(O) CABO DE SN], que, originalmente
associada ao domínio do espaço, permite o desenvolvimento de significados ligados ao domínio
do tempo.
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STEIN, Allan Costa. Trajectory of the construction [LEVAR A CABO]: a usage-based
constructionist approach. Rio de Janeiro: 2020. Ph.D. Thesis (Linguistics). Graduate Program
in Linguistics, School of Languages, Federal University of Rio de Janeiro.
ABSTRACT
Based on the Usage-Based Construction Grammar approach, this thesis proposes a diachronic
analysis of the active and passive constructions with [LEVAR A CABO], based on a survey in
written texts, representative of the different periods of Portuguese and of different textual
genres, available in the textual database of Corpus do Português (DAVIES; FERREIRA, 2006).
A starting hypothesis of this study is that [LEVAR A CABO] constitutes a constructional
pattern in its own right and, therefore, has both structural and semantic properties that are
independent of the lexical items with which it merges. Thus, in order to identify the most
relevant properties of this construction and how these properties were established over time and
interact with each other, the attested occurrences were analyzed using several variables. Aspects
related to the state of affairs as a whole are considered, such as semantic value (‘to conclude’/
‘to accomplish’); presence/absence of modalizers or qualifiers of the situation as well as the
syntactic-semantic properties of the two participants involved in the scene (inducer and
affected/effected). The analysis shows that the active construction [NP1 LEVAR A CABO
NP2 ] and the passive construction [NP (aux.) LEVAR PP A CABO (PP)] establish the same
basic scene, but are distinguished especially in terms of the perspective of the scene, as the
active construction focuses on the inducer of the process, whereas the passive construction
highlights the affected/effected and puts the inducer in the background. The analysis also
presents evidence that the construction [LEVAR A CABO], whose attestation dates back to the
17th century, is connected, by instance link, to the causative/resultative scheme [NP 1 VCAUSE
NP2 V EFFECT] and, therefore, is also related to the Caused-Motion Construction at a higher level.
In addition, [LEVAR A CABO] is also linked, via subpart link, to the semi-schematic
construction [A(O) CABO DE NP], which, originally associated with the space domain, allows
the development of meanings related to the time domain.
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LISTA DE FIGURAS (POR CAPÍTULO)
Capítulo 2
Fundamentação teórica
Figura 1- A estrutura simbólica de uma construção, de acordo com Croft (2001) ........... 28
Figura 2- Dimensões das construções ............................................................................. 31
Figura 3- Microconstrução causativa com levar ............................................................. 34
Figura 4- Link de herança metafórica entre a CMC e a Construção Causativa ................ 36
Capítulo 3
Construções com o verbo levar
Figura 1- Evento de movimento causado ........................................................................ 46
Figura 2- Graus de gramaticalidade dos diferentes usos de levar .................................... 54
Capítulo 4
Amostra e procedimentos metodológicos
Figura 1- Interface do sítio eletrônico do Corpus do Português (versão 2008) ................ 61
Figura 2- Resultado da busca para a forma “lev* * a cabo” ............................................. 63
Capítulo 5
Ativas e Passivas com [LEVAR A CABO]
Figura 1- Alinhamento semântico e estrutural das construções ativa e passiva com
[LEVAR A CABO] ........................................................................................ 66
Figura 2- Construção [LEVAR A CABO] passiva (com e sem auxiliar) ...................... 71
Capítulo 6
A construção ativa [Sn1 LEVAR A CABO Sn2 ]
Figura 1- Organização dos elementos da Classe C ........................................................ 100
Capítulo 8
Relações de herança da construção [LEVAR A CABO]
Figura 1- Relação simbólica entre ativas e passivas com [LEVAR A CABO] ............. 123
Figura 2- Relação de herança entre [LEVAR A CABO] e a construção causativa ....... 125
Figura 3- Rede da construção passiva [Sn1 (aux.) LEVAR PP A CABO (SPrep)] .......... 125
Figura 4- Relação entre [LEVAR A CABO] e a construção causativa .......................... 128
Figura 5- Da CMC à construção [LEVAR A CABO] ................................................... 129
Figura 6- Rede da construção [PREP CABO DE SN] ........................................... ....... 133
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LISTA DE QUADROS, TABELAS E GRÁFICOS (POR CAPÍTULO)
Capítulo 4
Amostra e procedimentos metodológicos
Tabela 1- Número de palavras, por período (Corpus do Português) ............................... 60
Quadro 1- Grupos de fatores adotados na análise de [LEVAR A CABO] ....................... 64
Capítulo 5
Ativas e Passivas com [LEVAR A CABO]
Tabela 1- Distribuição das construções ativa e passiva com [LEVAR A CABO] ....... 73
Gráfico 1- Distribuição das ocorrências quanto ao tipo de estrutura ............................ 73
Gráfico 2- Distribuição das passivas quanto à presença/ausência de auxiliar .............. 74
Capítulo 6
A construção ativa [Sn1 LEVAR A CABO Sn2 ]
Tabela 1- Valor semântico da construção ................................................................... 79
Tabela 2- Elementos qualificadores do estado de coisas ............................................ 81
Tabela 3- Ocorrência de modalizadores ..................................................................... 82
Tabela 4- Realização/expressão do sujeito ................................................................. 85
Tabela 5- Número e pessoa do sujeito ........................................................................ 86
Tabela 6- Animacidade do sujeito .............................................................................. 89
Tabela 7- Papel temático do sujeito ............................................................................ 90
Tabela 8- Definitude do objeto direto ......................................................................... 92
Tabela 9- Traço semântico concreto ou abstrato do objeto direto ............................... 93
Tabela 10- Referentes concretos .................................................................................. 96
Tabela 11- Referentes que designam ação ou processo ................................................ 98
Tabela 12- Referentes que designam processos mentais .............................................. 99
Tabela 13- Nominalizações em -ção ............................................................................ 101
Tabela 14- Distribuição dos núcleos de SN2 por classe ................................................ 102
Capítulo 7
A construção passiva [Sn (aux.) LEVAR PP A CABO (SPrep)]
Tabela 1-
Valor semântico da construção ..................................................................... 106
Tabela 2-
Tipo de participação do participante-sujeito ................................................. 108
Tabela 3-
Definitude do sujeito .................................................................................... 109
Tabela 4-
Traço semântico concreto ou abstrato do sujeito .......................................... 110
Tabela 5-
Referentes concretos .................................................................................... 112
Tabela 6-
Referentes abstratos ..................................................................................... 113
Tabela 7-
Nominalizações em -ção .............................................................................. 114
Tabela 8-
Tipo semântico do sujeito ............................................................................. 114
Tabela 9-
Realização/apagamento do SPrep................................................................. 116
Tabela 10- Definitude do SN introduzido pela preposição ............................................. 118
Tabela 11- Papel temático e individuação do SN indutor ............................................... 120
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Capítulo 8
Relações de herança da construção [LEVAR A CABO]
Quadro 1- Principais mais salientes de [LEVAR A CABO] no séc. XX ...................... 122
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LISTA DE ABREVIATURAS
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SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 15
2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA ............................................................................ 20
2.1 BASES (SÓCIO)COGNITIVAS DA LINGUAGEM HUMANA ......................... 20
2.2 GRAMÁTICA DE CONSTRUÇÕES BASEADA NO USO ................................ 27
2.3 RELAÇÕES ENTRE CONSTRUÇÕES ............................................................... 33
3 CONSTRUÇÕES COM O VERBO LEVAR ........................................................... 38
3.1 MULTIFUNCIONALIDADE DE LEVAR ............................................................ 39
3.2 USOS DE LEVAR SOB UMA PERSPECTIVA CONSTRUCIONISTA .............. 48
4 AMOSTRA E PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ................................... 59
4.1 CARACTERIZAÇÃO DA AMOSTRA ................................................................ 59
4.2 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ........................................................... 59
5 ATIVAS E PASSIVAS COM [LEVAR A CABO] ................................................... 65
5.1 DISTRIBUIÇÃO E CONTEXTOS INICIAIS DA CONSTRUÇÃO
[LEVAR A CABO] ................................................................................................ 73
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1. INTRODUÇÃO
Em (1), o verbo levar relaciona duas entidades discretas X e Y, que interagem de tal
modo que a ação de X (Horlando) resulta na transferência de Y (amostras [do peixe]) para um
ponto espacial Z (casa [de Horlando]). Trata-se, portanto, de uma instância da Construção de
Movimento Causado (CMC), codificando de forma clara o frame ‘X causa Y mover-se para Z’.
Nesse exemplo, a preposição para relaciona os termos amostras e casa, estabelecendo entre
eles uma relação espacial, haja vista que o segundo elemento serve de ponto de referência para
o primeiro e funciona como o alvo de um movimento no eixo horizontal. Embora o valor
semântico de “localização no espaço” seja bastante evidente nesse caso, também é possível
associar à preposição para uma leitura de finalidade – leitura esta bem menos perceptível com
a preposição até, por exemplo, que também poderia ocorrer nessa frase (cf. Haroldo levou as
amostras até a sua casa).
Além de expressar “movimento causado”, um significado mais central, o verbo levar é
convocado frequentemente para muitas outras construções, a exemplo das construções de
verbo-suporte; da construção causativa/resultativa; da construção indicativa de tempo
dispendido; e de diversos outros padrões, com graus diferenciados de idiomaticidade. A
depender do significado construcional, o verbo levar pode ocorrer com objeto integrado, como
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em levar a vida; com ou sem SPrep obrigatório (cf. levar um susto vs. levar em conta); com
SPrep encabeçado por diferentes preposições (cf. levar a sério vs. levar na cara); etc.
Nesta tese, embora sejam discutidas brevemente propriedades referentes a vários
padrões construcionais envolvendo o verbo levar (cf. cap. 3), nos concentraremos, de maneira
mais específica, na construção [[LEVAR A CABO] ↔ [‘concluir/ realizar’]], nas estruturas
ativa e passiva analítica. Tais usos são ilustrados nos exemplos de (2) a (4):
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a) Em que medida a construção [LEVAR A CABO] se relaciona com os usos mais
prototípicos do verbo levar, relacionados à noção de “movimento causado”?
b) As estruturas ativa e passiva com [LEVAR A CABO] devem ser tratadas como
construções distintas? Se sim, como elas se inter-relacionam?
c) É possível explicar o processo de formação e expansão de [LEVAR A CABO] a
partir dos mesmos princípios gerais que controlam a formação e expansão de
construções mais regulares e produtivas, como a CMC e/ou a construção resultativa?
Uma hipótese central deste estudo é que ativas e passivas com [LEVAR A CABO]
constituem padrões constitucionais distintos, dotados de especificidades sintáticas que
espelham assimetrias no nível pragmático, como diferenças de foco, e que codificam diferentes
funções sintáticas. Além disso, acreditamos que [LEVAR A CABO] se relaciona com outras
construções mais gerais do português, herdando propriedades da CMC por meio da construção
causativa, que é um outro padrão construcional produtivo com levar (cf. PEREIRA, 2018).
Ademais, [LEVAR A CABO] herda também propriedades da construção [A(O) CABO DE Sn],
indicadora de coordenadas espaciais e temporais.
Para verificar as hipóteses que norteiam este estudo, realizamos uma análise minuciosa
de dados atestados entre os sécs. XIII e XX, levantados no banco de dados do Corpus do
Português (DAVES; FERREIRA, 2006). Uma vez que o trabalho se propõe a descrever o
funcionamento de [LEVAR A CABO] de uma forma mais integrada, são considerados tanto
traços semânticos como estruturais dessa construção. Assim, as ocorrências foram analisadas
em função de variáveis relativas ao estado de coisas como um todo (ausência/presença de
modalizadores ou sinalizadores do grau de dificuldade da tarefa realizada) e de variáveis
relativas aos traços sintáticos e semânticos do indutor e do participante afetado/efetuado, como
papel temático, definitude, tipo de núcleo do Sn-afetado etc. Além disso, analisamos também o
item lexical que indica o constituinte afetado.
Todas essas informações introdutórias serão retomadas em um ou mais pontos deste
trabalho, que está estruturado da seguinte forma. No capítulo 2, apresentamos os principais
pressupostos teóricos, a fim de explicitar as diretrizes adotadas no estudo. No capítulo 3,
discorremos acerca da multifuncionalidade de levar, destacando os limites explicativos de
abordagens lexicalistas para diferentes construções com esse verbo. No capítulo 4,
caracterizamos o corpus e descrevemos os procedimentos metodológicos adotados na análise
dos dados. No capítulo 5, justificamos a nossa opção por considerar as ativas e passivas com
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[LEVAR A CABO] como construções distintas. Nos capítulos 6 e 7, analisamos a construção
[LEVAR A CABO] em sua forma ativa e passiva, respectivamente, considerando as diversas
propriedades de cada participante. No capítulo 8, discutimos as relações de herança que
[LEVAR A CABO] estabelece com outras construções do português, especialmente com a
construções causativa e [A(O) CABO DE SN]. Por fim, no capítulo 9, apresentamos as
conclusões autorizadas pela análise, destacando as principais contribuições deste estudo.
Seguem-se as referências bibliográficas.
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2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Os Modelos Baseados no Uso (MBU) – uma perspectiva teórica que tem encontrado
ampla aplicação ao estudo da forma de organização da gramática e da mudança linguística,
inclusive no português – resultam da associação de princípios e pressupostos teórico-
metodológicos provenientes de diferentes áreas da Linguística, notadamente da corrente
funcionalista praticada na Costa Oeste dos Estados Unidos a partir da década de 1970, da
Linguística Cognitiva e da Linguística de Corpus.
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Embora apresentem diferenças de foco e metodologia, as abordagens reunidas sob o
rótulo de MBU compartilham algumas concepções e pressupostos básicos, dentre os quais
destacamos a concepção de gramática como um sistema emergente e sensível às pressões do
uso, integrado a outras habilidades e domínios cognitivos, mais gerais, como memória e
atenção, dos quais não pode ser segregado (BARLOW; KEMMER, 2000; GIVÓN, 2007;
BYBEE, 2010, 2012; TOMASELLO, 2019; dentre outros). Sendo assim, dado que a linguagem
não constitui um dispositivo mental autônomo e definível em termos de princípios e regras
específicos e geneticamente determinados, o foco do analista recai naturalmente sobre as
habilidades cognitivas mais gerais que permitem ao indivíduo construir indutivamente o próprio
sistema linguístico, a partir dos dados a que tem acesso no discurso.
Langacker (1987, 2008), por exemplo, minimiza de modo significativo o papel de
estruturas linguísticas inatas no processo de aquisição, produção e compreensão de linguagem.
Em sua proposta, assim como na proposta de Bybee (2006, 2010), a gramática é concebida
como o resultado da organização cognitiva das experiências do falante com a língua e, assim,
relaciona-se intimamente com instâncias de uso, ou seja, enunciados concretos a partir dos
quais o sistema se abstratiza. Visto que as experiências dos falantes são múltiplas e variáveis,
o sistema linguístico é necessariamente dinâmico, susceptível de variação e mudança. Nos
termos de Diessel:
1 No original: “Challenging the widespread assumption that linguistic structure is built from a predefined set of
innate linguistic concepts, usage-based linguists conceive language as a dynamic network in which the various
aspects of a language user’s linguistic knowledge are constantly restructured and reorganized under the continuous
pressure of performance.” (DIESSEL, 2015, p. 2).
21
específicos. Por outro lado, o estabelecimento a priori de processos específicos não contribui
em nada para descobrir como as capacidades de domínio geral interagem com a língua.
Partindo dessa perspectiva, Bybee defende a atuação dos mecanismos de categorização,
chunking, analogia, associação transmodal e memória rica na modelagem dos sistemas
linguísticos, no processamento e na forma como as línguas evoluem através do tempo.
Discorremos, a seguir, acerca de cada um desses mecanismos.
Categorização é o processo cognitivo responsável pelo agrupamento de entidades que,
embora não sejam idênticas, compartilham similaridades e são reconhecidas como pertencentes
à mesma classe. De acordo com Cuenca; Hilferty (2011, p. 32), a categorização consiste em
um processo básico do qual nos valemos para representar o mundo por meio dos procedimentos
de generalização e discriminação, entendendo-se por generalização a capacidade de ignorar as
diferenças entre entidades e agrupá-las por similaridade, e por discriminação a capacidade de
focalizar os traços diferenciais de duas ou mais entidades, de modo a não confundi-las entre si.
Diferentemente do modelo clássico de categorização 2 , a perspectiva baseada no uso
concebe as categorias linguísticas e conceptuais como fluidas, gradientes e variáveis, já que
elas são sensíveis às nossas experiências no mundo. Abbot-Smith; Tomasello (2006), por
exemplo, propõem que o processo de expansão categorial estaria baseado, pelo menos
inicialmente, na comparação de um elemento a ser categorizado com uma série prévia de
exemplares já estabelecidos na categoria. Os autores propõem também que as categorias
linguísticas exibem efeitos prototípicos, mas, em contraste com a teoria dos protótipos de
Rosch (1973), argumentam que exemplares específicos, sobretudo os mais frequentes, podem
influenciar o processo de categorização, mesmo depois que generalizações de alto nível são
formadas.
De acordo com Aarts (2007, p. 49), a gradiência, aqui concebida como uma propriedade
fundamental das categorias linguísticas, pode ser subsectiva (intracategorial) ou intersectiva
(intercategorial). Tendo em vista o estudo desenvolvido por Paz e Silva (2009), pode-se dizer
que o próprio verbo levar ilustra bastante bem a gradiência intersectiva, uma vez que, atuando
em diferentes construções, pode exercer papéis sintáticos distintos – como verbo predicador,
verbo-suporte, operador temporal, dentre outros.
2 No modelo clássico de categorização, os membros de uma categoria apresentam igual estatuto e, assim, podem
ser definidos a partir de uma série de condições necessárias e suficientes. Disto decorre que as categorias clássicas,
sejam linguísticas ou conceptuais, apresentam fronteiras muito bem delimitadas. De acordo com Aarts (2007, p.
11-14), esta concepção estrita de categorização, de base aristotélica, influenciou filósofos como Frege, um dos
fundadores da lógica moderna. Para este filósofo, o pertencimento de uma entidade a uma categoria X é questão
de tudo-ou-nada.
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Além disso, ainda de acordo com Paz e Silva (op. cit.), o verbo levar, na condição de
predicador, participa de duas subclasses semânticas: (i) predicador pleno, em que assume o
valor prototípico de ‘movimento causado’ e (ii) predicador não pleno, em que não se alinha à
“estrutura argumental prevista na configuração de Vpredicador pleno” e pode apresentar
equivalência em relação a outro verbo predicador pleno, como quando assume o significado de
‘roubar, furtar’ (cf. Os assaltantes levaram todo o dinheiro do aposentado). Entendemos que
este último fenômeno constituiria um caso de gradiência subsectiva.
Na perspectiva dos MBU, o conhecimento linguístico emerge de um sistema de
armazenagem altamente sensível às particularidades de cada ocorrência e à distribuição
estatística das formas da língua (cf. BYBEE, 2003, 2010, 2015; GOMES; BENAYON;
VIEIRA, 2006). Assim, Bybee (2010) propõe que a categorização está diretamente associada
ao que ela denomina memória rica, isto é, a capacidade de construir representações detalhadas
e redundantes da experiência, as quais potencialmente incorporam todos os aspectos do
contexto linguístico, físico e social percebidos pelo falante. Nos termos de Chandler (2009):
Para Bybee (2010, p. 9), “todas as variantes são representadas na memória como feixes
de exemplares que podem ser usados de forma intercambiável. Esses feixes podem mudar
gradualmente, representando as mudanças que a língua sofre à medida que é usada.”4 Ainda de
acordo com a autora, a categorização é sensível à frequência das formas, de modo que
exemplares menos frequentes são menos reforçados e possuem menor autonomia, pois são mais
3
No original: “Such models imply that our brain stores a va st and constantly increasing inventory of memories
for individual episodes of experience, including linguistic experiences, that it employs some procedure for
comparing the features of new input to those remembered exemplars, and that it then has some basis for choosing
one or more of those exemplars over others as the model for an an alogical response (...) Since the brain does not
necessarily know ahead of time what information in an experience might be useful later for predicting behavior, it
simply records the episode in as much sensory detail as is available.” (CHANDLER, 2009, p. 100).
4 No original: “In an exemplar model, all variants are represented in memory as exemplar clusters. Such clusters
can change gradually, representing the changes that language undergoes as it is used” (BYBEE, 2010, p. 9).
23
dependentes em relação à sua classe. Por outro lado, exemplares de alta frequência são menos
dependentes de sua classe, são mais reforçados e podem adquirir efeito de protótipo (BYBEE,
2010). Essa perspectiva é perfeitamente compatível com a de Langacker (1987), para quem o
acúmulo de um conjunto de exemplos na memória é um pré-requisito para a generalização.
O processo de analogia, por seu turno, consiste no uso produtivo de padrões/esquemas
já internalizados, por meio da extensão desses padrões a novos elementos, com os quais
apresentem algum tipo de similaridade (BYBEE, 2010). Podemos citar, como casos resultantes
de um processo de analogia, a formação do composto lista branca, espelhado em seu antônimo
lista negra, e a formação de derivados como aguaréu (‘muita água’), claramente associado a
fogaréu (‘fogo muito alto’) (GONÇALVES, 2012, p. 172).
A princípio, em todos os casos de analogia, é possível identificar a existência de um
padrão-fonte parcialmente esquemático e de um construto derivado, resultante da combinação
desse padrão com um novo elemento. De acordo com Traugott; Trousdale (2013, p. 56-58), a
analogia (ou ‘analogização’), enquanto mecanismo de mudança, pressupõe o estabelecimento
de relações associativas entre construções diferentes e ocorre quando novas correspondências
de forma e significado são efetivamente geradas (op. cit., 38).
O mecanismo de chunking, ou rotinização, nos termos de Diessel (2017), é responsável
pela formação de estruturas complexas, a partir do empacotamento de formas independentes
que são usadas frequentemente lado a lado ou em sequências fixas, e que podem ganhar
autonomia, sendo processadas como unidades independentes. Quando duas ou mais unidades
aparecem juntas com frequência suficiente, todo o conjunto se torna mais previsível, de tal
modo que, com o tempo, ele pode ser acessado de maneira automática, tanto na produção quanto
no processamento. Uma vez automatizado, um chunk pode perder em composicionalidade e em
analisabilidade, isto é, passa a assumir significado próprio, independente das partes que o
constituem, e tem suas fronteiras internas diluídas.
Segundo Bybee, a formação de novos chunks se explica pela Hipótese da Fusão Linear,
segundo a qual “itens que são usados juntos se fundem”5 (BYBEE, 2002, p. 112). Este princípio
se aplica bastante bem à construção [LEVAR A CABO], porque, embora ela ainda retenha certo
grau de analisabilidade morfossintática, é acessada em bloco − motivo pelo qual a substituição
da preposição é impossível nesse contexto (cf. *levar para cabo). Também não são possíveis
certas operações como, por exemplo, pluralização (cf. *levar aos cabos) ou topicalização do
SPrep (cf. *A cabo, ele levou a empreitada).
5 No original: “items that are used together fuse together” (BYBEE, 2002, p. 112).
24
Já o mecanismo de associação transmodal consiste na representação integrada de
elementos que co-ocorrem frequentemente na experiência, mesmo que tais elementos não
apresentem qualquer relação intrínseca entre si. Do ponto de vista linguístico, o processo estaria
na base da associação simbólica entre forma e significado, central para o próprio conceito de
construção (cf. seção 2.2). O caráter pejorativo de [LEVAR VANTAGEM], por exemplo,
evidenciado em frases como Quando um leva vantagem, todos perdem, não pode ser
depreendido apenas com base nas propriedades semânticas dos elementos que integram essa
construção; antes, decorre dos contextos nos quais ela é usada, já que normalmente se insere
em situações comunicativas onde os indivíduos se beneficiam indevidamente de algo.
Tendo em vista o que foi discutido até este ponto, é importante destacar o papel da
frequência no modo de organização do sistema linguístico. Um pressuposto central dos MBU
é o de que os efeitos da frequência influenciam não apenas a categorização, mas também a
emergência, regularização/manutenção e mudança dos sistemas linguísticos. Divjak (2012, p.
2), por exemplo, define a gramática (enquanto conhecimento internalizado) como um sistema
probabilístico forjado no próprio discurso. O autor assume que “o que aprendemos é uma
gramática probabilística ancorada mais na nossa experiência linguística do que no uso de
gatilhos contextuais para estabelecer parâmetros que especificam um conjunto fixo de
propriedades mutuamente exclusivas.”6 (DIVJAK, 2012, p. 2).
Diessel; Hilpert (2016), ao discorrerem acerca dos efeitos da frequência na gramática,
assumem, com base em diferentes estudos, que a frequência tem impacto direto sobre todos os
aspectos da língua, desde o nível fonético-fonológico até o nível semântico-pragmático. Mais
especificamente, eles argumentam que a frequência de uso das formas linguísticas contribui
para a formação não apenas de expressões fixas como também de constituintes sintáticos,
normalmente considerados construtos teóricos primitivos. Além disso, segundo esses autores,
até o planejamento e a produção das sentenças seriam sensíveis aos efeitos da frequência, já
que a construção de sentidos do texto se baseia, em grande medida, na experiência dos falantes
com formas linguísticas particulares já armazenadas.
De acordo com Bybee (2002), duas formas de frequência atuam na organização da
língua e sua evolução: a frequência de tipo (frequência type) e a frequência de ocorrência
(frequência token). A frequência type diz respeito à produtividade do padrão, que, a depender
do grau de esquematicidade que apresenta, pode recrutar um número maior ou menor de itens
6 No original: “[…] what we learn is a probabilistic grammar grounder in our language experience rather than
using environmental triggers to set parameters specifying a fixed set of mutually exclusive linguistic proprieties.”
(DIVJAK, 2012, p. 2).
25
lexicais para os seus slots. Para ilustrar esse conceito, tomemos a construção semiesquemática
[Sn1 LEVAR JEITO SPrep]. Considerando que o núcleo do SPrep dessa construção admite as
preposições de, para e com, pode-se dizer que essas três possibilidades integram a frequência
type do referido slot.
Já a frequência token é aferida a partir do total de instâncias do padrão num dado
corpus. Assim, embora a construção [Sn1 LEVAR JEITO SPrep] apresente três possibilidades
de preenchimento do núcleo do Sprep (frequência type), o estudo desenvolvido por Paiva; Stein
(2019) constata que, nos dados do Corpus do Português (MARK; FERREIRA, 2006), a
microconstrução com a preposição para é a que possui maior frequência token, pois apareceu
mais vezes nos dados.
Em suma, pode-se dizer que os MBU reafirmam o compromisso cognitivista de
caracterizar explicitamente o conhecimento gramatical dos falantes, a partir das instâncias de
uso. Para isso, assume que essa caracterização deve ser feita dentro de uma perspectiva que
integre à análise da estrutura linguística fatores de ordem funcional, privilegiando, assim, o
exame da correlação sistemática entre forma e função nas línguas naturais (NEVES, 1994;
1997).
Nos parágrafos anteriores, enfatizamos algumas das principais capacidades cognitivas
de domínio geral que se mostram atuantes no uso da língua. Mas é importante destacar também
que os aspectos sócio-históricos e pragmáticos que envolvem as nossas interações diárias
devem ser igualmente investigados numa análise empírica dos sistemas linguísticos que se
pretenda descritivamente adequada.
Oliveira (2015) destaca que, nos últimos anos, tem crescido o interesse dos MBU por
uma análise mais refinada dos fatores contextuais que envolvem o emprego de uma determinada
forma linguística. A autora explica que, nessa abordagem, o termo “contexto” engloba tanto
marcas estruturais quanto marcas cognitivas e sociohistóricas, tal como o definem Traugott;
Trousdale (2013):
7
No original: “By ‘context’ we mean linguistic co-text broadly construed as linguistic environment,
including syntax, morphology, phonology, semantics, pragmatic inference, mode (written/spoken), and
sometimes wider discourse and sociolinguistic contexts.” (TRAUGOTT; TROUSDALE, 2013, p. 196)
26
A importância do contexto físico e social para a representação, manutenção e mudança
do sistema linguístico também é destacada em diferentes trabalhos de Tomasello (cf.
TOMASELLO, 2003, 2008; 2019). Para esse autor, a linguagem decorre, dentre outros fatores,
da maturação de componentes biológicos que permitem ao indivíduo identificar padrões
linguístico presentes no input. Para Tomasello, a língua “só funciona como funciona” porque
os interlocutores concordam relativamente aos papéis que podem assumir na interação, ao
potencial semiótico do sistema linguístico e ao fato de serem capazes de alterar os estados
mentais de seus parceiros, a partir do que falam e do modo como falam. Esse processo depende,
efetivamente, de pistas presentes tanto no cotexto linguístico quanto no contexto pragmático
mais amplo.
Como lembra Diessel (2015, p. 2), “os modelos baseados no uso repousam sobre
assunções particulares acerca da natureza dos elementos gramaticais e da organização geral do
sistema linguístico”8 . Nesse sentido, uma integração entre pressupostos dos MBU e uma
perspectiva construcionista da gramática, principalmente um modelo cognitivista como o de
Goldberg (1995, 2003, 2006), tem se revelado eficaz para a compreensão tanto da natureza
quanto da dinamicidade da língua − uma questão que desenvolvemos a seguir.
Numa visão construcionista da gramática baseada no uso, tal como a que adotamos nesta
tese, o sistema linguístico do falante pode ser compreendido, em sua totalidade, como uma
ampla rede de construções interligadas. Como destacado por Diessel (2015, p. 296), dois
princípios mais gerais constituem as bases de uma perspectiva construcionista da gramática.
São eles:
1- A estrutura linguística [como um todo] pode ser analisada em termos de signos
complexos, isto é, construções9 ;
8 No original: “the usage-based model rests on particular assumptions about the nature of grammatical elements
and the overall organization of the grammatical system” (DIESSEL, 2015, p. 2).
9 No original: “linguistic structure can be analyzed in terms of complex signs, i.e., constructions, combining a
specific structural pattern with a particular function or meaning” (HILPERT, 201 4, p. 296).
27
2- Todos os signos linguísticos estão conectados uns com os outros por vários tipos de
links, de tal forma que a gramática (ou a língua, em geral) pode ser vista como uma
rede dinâmica de signos interconectados10 .
A perspectiva da GCBU entende que dominar uma língua significa saber manipular
construções de modo interacionalmente satisfatório, já que tais entidades também carregam
consigo, de maneira mais ou menos marcada, um conjunto de informações extralinguísticas
detalhadas, tais como os contextos em que elas são habitualmente utilizadas e o modo como os
membros da comunidade de fala as avaliam (GOLDBERG, 1995, 2006; BYBEE, 2010;
TRAUGOTT; TROUSDALE, 2013; HILPERT, 2014).
O esquema a seguir, retomado de Croft (2001), deixa clara a conjugação dos
componentes semântico e pragmático nas construções linguísticas:
Figura 1 − A estrutura simbólica de uma construção, de acordo com Croft (2001, p. 18)
10 No original: “all linguistic signs (i.e., lexical signs and grammatical signs) are connected with each other by
various types of links so that grammar (or language in general) can be seen as a dynamic network of interconnected
signs.” (HILPERT, 2014, p. 296).
28
As construções compreendem também estruturas semânticas que refletem cenas básicas
da experiência humana e, deste modo, podem sofrer alterações por conta de mudanças
relacionadas aos eventos que representam. Com base na premissa de que todos os aspectos do
conhecimento linguístico emergem do uso, Fillmore (1985) argumenta que as construções da
língua funcionam como pistas para a construção do significado, na medida em que remetem a
estados de coisas (isto é, entidades, ações, eventos etc.) que só podem ser devidamente
interpretados em referência a quadros conceptuais mais amplos ou esquemáticos, d entro dos
quais ganham coerência (cf. CROFT; CRUISE, 2001, p. 7-39).
Deste modo, o significado da construção levar um soco, por exemplo, pressupõe
minimamente a ativação de um script associado a uma cena mais geral de agressão física, que,
por sua vez, mobiliza duas entidades discretas (agressor e agredido), com papéis específicos.
Além disso, a própria ideia de ‘levar um soco’ depende da concepção prévia de braço (parte do
corpo humano), como um domínio a partir do qual soco é interpretado; assim, o fundamento
conceptual para a distinção entre essa expressão e levar um chute estaria no fato de ambas terem
seu significado estabelecido a partir de domínios diferentes. O mesmo também se aplica à
construção [LEVAR A CABO], pois, como será discutido nos capítulos 6 e 7, as construções
ativa e passiva que com ela interagem atuam fundamentalmente no sentido de orientar a
perspectiva do falante quanto à relação entre os participantes envolvidos.
Para Goldberg (1995, 2006) e Croft (2001), o conceito de construção, entendida como
um pareamento entre forma e significado, é basilar para a teoria, pois captura tanto as
regularidades quanto os aspectos idiossincráticos observados na língua. No entanto, como
discute Hilpert (2015), uma definição precisa de construção não é muito simples. Em Goldberg
(1995), encontramos que:
11 No original: “C is a CONSTRUCTION iff C is a form-meaning pair such that some aspect of Fi or Some aspect
of Si is not strictly predictable from C’s component parts or from other previously established constructions.”
(GOLDBERG, 1995, p.4)
29
da microconstrução causativa [Sn1 LEVAR Sn2 A Nom./S], em que a contribuição holística do
significado construcional se sobrepõe à contribuição individual dos itens componentes. No
entanto, a autora revisita essa definição em trabalho posterior (GOLDBERG, 2006) e inclui, no
rol das construções, também aquelas unidades mais composicionais que, apresentando
“frequência suficiente”, se estabeleceram na língua como modos convencionalizados de
interação social.
O conceito de construção está sustentado no Princípio da não sinonímia, definido por
Goldberg (1995) nos seguintes termos:
Como será discutido nos capítulos 6 e 7, é com base nesses corolários que optamos por
analisar separadamente as construções ativa e passiva com [LEVAR A CABO]. Além disso,
conforme já mencionado, diante da quantidade expressiva − na verdade, quase absoluta − de
dados na voz ativa e na voz passiva analítica em nosso corpus, resolvemos incorporar ao objeto
de estudo propriedades herdadas dos esquemas ativo e passivo que lhes são subjacentes −
esquemas estes que, em virtude de sua natureza altamente abstrata, só se manifestam de modo
indireto, por meio de instâncias de uso específicas, tais como aquelas com [LEVAR A CABO]
analisadas neste trabalho.
Para Goldberg (2012, p. 28), o conhecimento linguístico inclui tanto o domínio de itens
específicos quanto de generalizações, com variados níveis de esquematicidade (LANGACKER,
1988; BARLOW; KEMMER, 2000; TOMASELLO, 1999; BYBEE; EDDINGTON, 2006;
12 No original: “The Principle of No Synonymy: If two constructions are syntactically distinct, they must b
semantically or pragmatically distinct Pragmatic aspects of constructions involve particulars of information
structure, including topic and focus, and additionally stylistic aspects of the construction such as register.”
Corollary A: If two constructions are syntactically distinct and S(emantically)-synonymous, then they must not be
P(ragmatically)-synonymous. Corollary B: If two constructions are syntactically distinct and P-synonymous, then
they must not be S-synonymous.” (GOLDBERG, 1995, p. 67).
30
GOLDBERG, 2006). Mesmo as expressões fixas ou pré-fabricadas refletem propriedades mais
gerais, herdadas dos padrões esquemáticos de que se desprenderam, via processos de
construcionalização.
Tal perspectiva acarreta algumas implicações interessantes para uma teoria sobre os
sistemas linguísticos, como a rejeição a uma separação rígida entre léxico e gramática, que,
longe de constituírem categorias discretas, distribuem-se ao longo de um continuum que
envolve dimensões variadas, como tamanho, especificidade fonológica e tipo de conceito. Essas
variáveis são ilustradas a seguir, na figura 2:
(2) Pedrinho sambou [isto é, jogou violentamente] o tênis na sua irmã mais nova.
32
solução mais adequada é postular a existência de um padrão simbólico subjacente, que carrega
significado próprio e apresenta restrições quanto ao tipo de material a ser recrutado para cada
um dos seus slots. Portanto, em vez de regras gramaticais, o que relaciona os constituintes da
sentença, especificando, inclusive, seus papéis sintáticos e semânticos, são as próprias
construções envolvidas. Os padrões mais gerais da língua se estabelecem, portanto, a partir da
materialidade do discurso (LANGACKER, 2008; GOLDBERG, 2006; DIESSEL, 2004) e
resultam das diferentes formas de ligação (links) entre as construções, como será focalizado na
seção seguinte.
13No original: “if linguistic structure consists of signs it is a plausible hypothesis that grammar is organized in the
same way as the mental lexicon, which is commonly characterized as a network of related signs or symbols (...)”
(DIESSEL, 2015, p. 32).
33
No caso específico de [LEVAR A CABO], entendemos que essa construção estabelece
herança múltipla com outros padrões do português, como será destacado no capítulo 8.
Aplicando a perspectiva construcionista ao estudo da mudança linguística, Traugott;
Trousdale (2008, 2013) apresentam uma proposta mais detalhada da possível relação vertical
entre construções com diferentes graus de abstração. No nível menos esquemático, estariam as
microconstruções, ou seja, item specific types (TRAUGOTT, 2019), que licenciam os
construtos atestados nos eventos de fala. Microconstruções estão relacionadas a subesquemas,
ou seja, categorias intermediárias quanto ao grau de esquematicidade, que capturam
generalizações de forma e significado extraídas de todos os nós que dominam, ou seja, de
diferentes microconstruções. Por sua vez, subesquemas ligam-se a esquemas mais abstratos,
que refletem aspectos mais básicos da experiência humana.
Para ilustrar os níveis apresentados, vamos tomar como exemplo a construção causativa
[Sn1 LEVAR Sn2 A Nom/V]. Ela indica que um participante indutor (Sn1 ) impele o outro
participante (Sn2 ) a assumir um novo estado (Nom) ou fazer alguma coisa (V). Com base em
Pereira (2018)14 , essa microconstrução participa de um esquema mais abstrato, cuja
estruturação sintático-semântica [[Sn1 V Causa Sn2 Nom/V Efeito ] ↔ [‘causação’]] contempla
outros verbos ditos causativos, tais como fazer e obrigar, conforme representado a seguir:
14O estudo trata das propriedades de diferentes construções causativas, dentre elas a construção causativa com o
verbo levar.
34
(Nom/V). Essa hierarquização pressupõe, portanto, que a microconstrução causativa com levar
herda propriedades semânticas e/ou sintáticas do esquema pelo qual é licenciada.
Como discutido por Traugott (2019), essa representação numa hierarquia de três níveis
pode ser discutida se considerarmos que o grau de generalidade dos esquemas pode variar. De
acordo com a autora, “não existe uma série fixa de níveis hierárquicos” 15 . Em grande parte, o
número de níveis esquemáticos em uma relação taxonômica depende da interpretação do
linguista e do nível de abstração pressuposto.
Teixeira; Rosário (2016) propõem a inclusão de mais um nível à hierarquia
construcional de Traugott; Trousdale (2013): o domínio funcional, que, diferentemente dos
demais, não possuiria uma formalização específica.
Goldberg (1995) propõe, ainda, que as construções se inter-relacionam por outros tipos
de links: polissemia, herança metafórica, subparte e instância. Os links polissêmicos são
responsáveis pelo estabelecimento de elos semânticos entre um esquema mais básico e suas
extensões de sentido. O esquema bitransitivo, por exemplo, está associado a um conjunto de
subesquemas correlatos, os quais recrutam certas classes de verbos que, associados às suas
respectivas microconstruções, expressam diferentes tipos de transferência. Verbos como dar e
entregar se associam à construção bitransitiva para indicar um evento de transferência
prototípico; por outro lado, verbos como oferecer compõem outro subesquema, mais periférico,
pois, neste último caso, a transferência está condicionada à aceitação do elemento-tema por
parte da entidade-alvo. Subesquemas correlacionados por elos de polissemia precisam
compartilhar as propriedades (morfo)sintáticas e semânticas básicas do nível mais esquemático
e transferi-las às suas microconstruções.
Os links de herança metafórica associam duas construções distintas e independentes,
cujos significados se inter-relacionam por extensão metafórica. O link metafórico pode ser
exemplificado pela relação entre a CMC e a Construção Causativa − ligação defendida por
Goldberg (1995) e retomada da figura 4:
O esquema acima procura dar conta da relação entre um exemplo como João levou o
filho à escola e casos como O comportamento do filho levou o pai à loucura. Além de
divergirem em relação aos sentidos que veiculam, estas construções também apresentam
diferenças no plano morfossintático. Na construção de movimento causado, levar é um verbo
pleno, ao passo que em levar à loucura seria um verbo-suporte, que entra na composição de um
predicado complexo. No entanto, os dois usos de levar se relacionam com base em uma
metáfora mais geral, segundo a qual “mudança de estado” é conceptualizada como “mudança
no espaço”. Retomando os termos de Pereira (2016, p. 56), “enquanto nas Construções de
Movimento Causado ocorre transferência física de um tema de um ponto X para um ponto Y,
o alvo, nas construções resultativas, uma característica resultante do subevento, é atribuído ao
tema”.
Links de subpartes relacionam construções independentes que preservam apenas uma
parte dos esquemas que lhes serviram de base. A construção de movimento intransitiva, por
exemplo, é uma subparte da CMC: ambas indicam movimento, mas apenas nesta última há
objeto direto (cf.: A menina tombou da moto vs. A moto derrubou a menina no chão). Outro
exemplo é a construção [[LEVAR NA CARA] ↔ [apanhar]], descrita da seguinte forma em
Paiva; Stein (2019, p. 173):
36
o chunk [LEVAR NA CARA] (‘apanhar’) poderia ser considerado uma
subparte da construção de verbo-suporte [Sn1 LEVAR-SN 2 (SPrep)],
uma vez que, naquela unidade, o objeto integrado ao verbo não é
realizado e o significado, mais restrito, é inteiramente não
composicional, como em: Os meninos não saíram mais de casa depois
do assalto, com medo de levar na cara. (PAIVA; STEIN, 2019, p. 173)
Por fim, os links de instância conectam uma construção mais específica, que possua ao
menos um slot especificado, a outra construção, mais esquemática. Conforme veremos no
capítulo 3, as diversas construções substantivas constituídas com o verbo levar poderiam ser
consideradas, em algum nível, instâncias da CMC.
Como vimos acima, a perspectiva construcional enfatiza, sobretudo, as relações
verticais entre as construções de uma língua. No entanto, Diessel (2015) destaca a importância
também dos links horizontais, dos links sintáticos e dos links lexicais, na arquitetura das redes
linguísticas.
Os links horizontais são estabelecidos entre construções situadas num mesmo nível de
abstração/esquematicidade. Esse tipo de elo relacionaria, por exemplo, as construções levar um
soco e levar um susto, ambas inteiramente especificadas.
Segundo o autor, pode-se pressupor que os links sintáticos dão conta das relações entre
construções e categorias sintáticas, e entre partes das construções. Partindo do pressuposto já
defendido por Croft (2001, p. 45-46) de que “construções − não categorias − e relações são as
unidades básicas, primitivas, da representação sintática”16 , Diessel sustenta que as categoriais
sintáticas emergem de construções, através da experiência com as instâncias da língua; ou seja,
categorias morfológicas ou sintáticas são generalizações de partes recorrentes no discurso.
Links lexicais, por fim, dizem respeito à ligação entre construções e expressões lexicais
específicas, como é o caso do item cabo na construção [LEVAR A CABO]. No capítulo 3, ao
discorrer sobre os diferentes usos de levar identificados no nosso corpus, retomaremos algumas
dessas relações.
16 No original. “’Constructions, not categories and relations, are the basic, primitive units of syntactic
representation.” (CROFT, 2001, p. 45-46).
37
3. CONSTRUÇÕES COM O VERBO LEVAR
Tanto nos dicionários quanto nas gramáticas tradicionais, a tendência tem sido
classificar o verbo levar como um verbo de predicação variável, cujo estatuto supostamente só
pode ser definido de modo adequado a partir da análise do contexto (KURY, 2000, p. 43). Sob
determinados aspectos, isso sugere uma certa intuição dos gramáticos e lexicógrafos acerca da
gradiência semântica e morfossintática dessa forma verbal. De fato, o verbo de movimento
levar participa da composição de um grande número de construções, esquemáticas e
substantivas, com diferentes graus de produtividade, conforme já demonstraram diversos
autores (cf. PAIVA; STEIN, 2019; PAZ E SILVA, 2009; SMARSARO; PACHECO, 2014;
SMARSARO; RODRIGUES, 2015; entre outros).
Sendo assim, uma questão que se coloca é a seguinte: qual a fonte dessa diversidade de
usos com levar, o próprio item lexical ou sua interação com determinadas construções mais
esquemáticas? Ao longo deste capítulo, assumimos que uma abordagem baseada na interação
do item lexical com outros tipos de construções, isto é, uma abordagem construcionista, é
preferível em relação a uma proposta de cunho lexicalista17 , pelo menos no que diz respeito à
rede de construções com levar.
Conforme dissemos anteriormente, embora o presente trabalho se concentre no estudo
de uma construção específica com levar, a retomada da multifuncionalidade desse item lexical
se justifica por várias razões. A principal delas, que decorre dos princípios teóricos adotados
neste estudo (cf. capítulo 2), diz respeito a uma discussão sobre a relação da construção
[LEVAR A CABO] com outras construções, e sua integração numa rede linguística mais ampla.
Sendo assim, neste capítulo, discorremos acerca da gradiência de levar, focalizando sua
polissemia e multifuncionalidade categorial, com o objetivo de mostrar que os seus diferentes
usos podem ser melhor entendidos em um arcabouço teórico construcionista, que permite
esclarecer a relação entre diferentes microconstruções com levar e padrões mais esquemáticos
do português.
O capítulo está organizado conforme segue. Em primeiro lugar (seção 3.1), focalizamos
a polissemia de levar, tomando como base o tratamento conferido aos diferentes usos dessa
17 Neste trabalho, estamos classificando como “lexicalistas” aquelas propostas que atribuem a os próprios itens
lexicais propriedades que, em abordagens construcionistas, são conferidas aos esquemas com os quais esses itens
lexicais supostamente interagem. Para exemplificar, a abordagem lexicalista assume que a estruturação básica de
uma sentença como João levou os filhos para a escola decorre de propriedades inerentes ao próprio verbo levar,
que estaria associado, no léxico mental, a um conjunto de traços sintáticos, semânticos e fonológicos específicos,
acessados em diferentes momentos, durante a forma ção da sentença.
38
forma verbal em dois dicionários de referência do português − Dicionário Houaiss e Dicionário
Gramatical de Verbos (DGV). Destacamos, em especial, as limitações de uma abordagem de
cunho lexicalista, ou seja, centrada no item lexical. Além disso, mostramos as principais
conclusões de trabalhos anteriores acerca de algumas construções com levar, mais comumente
orientados por uma perspectiva da gramaticalização. Na seção 3.2, retomamos as questões
levantadas na seção 3.1, sob um ponto de vista construcionista, e discutimos outros padrões de
uso identificados em amostras diversas do português, avançando numa proposta da sua
organização em rede.
A relação de usos retomada acima, ainda que apenas ilustrativa, indica que o
procedimento adotado pelos autores baseia-se na hipótese de que os diferentes empregos do
verbo levar não necessariamente interagem entre si, o que pode ser explicado pela perspectiva
adotada, que, concebendo o verbo como centro estruturador da sentença, se concentra mais nas
propriedades do item lexical. Contudo, diversas similaridades sintático-semânticas podem ser
identificadas entre os diferentes usos apresentados e, assim, generalizações importantes podem
ser capturadas quando lançamos o olhar para além do nível da palavra. A título de ilustração,
considerem-se os exemplos em (1) e (2):
40
A simples relação dos significados proposta pelo Dicionário Houaiss não estabelece
qualquer relação direta entre estes usos, de tal modo que os inclui em acepções inteiramente
distintas − a sentença (1) está na acepção 2, ao passo que a sentença (2) corresponde somente à
acepção 22. Contudo, tendo em vista que ambas as sentenças compartilham a mesma estrutura
sintática ([Sn1 V Sn2 SPrep]) e veiculam o significado de ‘movimento causado’, entendemos
que elas representam diferentes subesquemas da CMC, divergindo apenas quanto ao grau de
abstratização conferido ao evento codificado.
Além disso, o Houaiss registra, ainda, 4 construções substantivas, ali caracterizadas
como “sintagmas locucionais” ou “frases feitas”, tal como se segue:
LEVAR:
[...] levar a bem 1 aprovar, consentir 2 tomar no bom sentido; não se
ofender com; gostar.
levar adiante procurar realizar; pôr em execução (p.e., levar adiante
uma ideia).
levar a mal aborrecer-se, ofender-se (p.e., o senador levou a mal as
declarações do colega de bancada).
deixar-se levar 1 deixar-se influenciar ou iludir (p.e., deixou-se levar
pela conversa do vendedor) 2 deixar-se vencer, ser derrotado por (p.e.,
deixando-se levar pela gula, comeu todos os bombons) [...].
(HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 1749)
19 As notas gramaticais, que fazem parte da definição do verbete, constituem “informações estritamente
gramaticais” que, antecedidas de símbolo específico, “Segue[m]-se imediatamente ao campo das locuções e
antecede[m] o da etimologia”. (HOUAISS; VILLAR, 200 1, p. XXXVI).
41
Valências, o DGV não classifica os verbos a partir da tradicional distinção entre transitivos e
intransitivos; mas toma por base as classes semânticas de verbos (verbos de ação, processo,
ação-processo e estado) para especificar a configuração sintática e o papel semântico dos
argumentos. Para levar, o dicionário relaciona 34 acepções distintas, reproduzidas a seguir, na
íntegra, com os exemplos do autor:
42
15 transportar: O joão-de-barro é um passarinho de nada. Como deve
ser penoso para ele o esforço de levar no bico, por dias e dias a fio,
pedacinhos de barro e pedacinhos de capim (G)
16 roubar: Ninguém leva o meu cachorro! (ANA)
17 fazer desaparecer: Diz que o rio levou também um doutor, um padre
e um soldado (GT)
18 adquirir; comprar: as roupas de inverno femininas estão sendo
vendidas pela metade do preço em algumas lojas. É possível levar um
blazer de lã, importado, por 200 reais (VEJ); mas desejaria levar aquele
vestido vermelho que vi ontem na Quinta Avenida (PRE) [Compl: nome
humano]
19 fazer passar desta vida para a outra: também houve Donatello, o que
a morte levou ainda menino (DM) ** [Processo] [Compl: nome
abstrato+predicativo]
20 passar a ter: Levei o nome de vagabundo desde cedo (DM) [Compl:
nome abstrato] 21 suportar; sofrer: é humilhante um homem como eu
levar pisa de mulher (DM); Não queria levar uma pancada de chuva
daquelas (R)
22 passar: Seu Edevair leva a vida nessa rotina modesta (VEJ); Ao velho
pai, Mauro nunca pode atribuir a idéia de que os filhos ousassem levar
uma existência diferente da dele (AV) [Compl: nome concreto não-
animado]
23 durar; gastar: Leva muito tempo para descer a ladeira (CH); O
processo da reforma começou a correr e levou dois anos e meio (ALF)
24 transportar: o vento não estava soprando no rumo de levar o cheiro
deles ao faro dos cachorros (COB); hoje a balsa leva homens menos
curvados (CLT)
25 ganhar; receber: Garrincha entusiasmou-se com um pequeno rádio de
pilha. Bebeto leva um Lexus (VEJ)
26 lucrar: Desse total, Pitangui leva uma fatia de cerca de 93.000 reais
(VEJ) [deixar+@] [±Compl: por+nome abstrato]
27 influenciar; dominar: Tanto mais quanto sua mãe se deixou levar por
esses protestos (SEN); ele não se deixava levar por pressões editoriais
(VEJ) [Compl: para+nome abstrato]
28 arrastar: deixara-se levar para aquela situação de provar que era
homem (AF) ** [Estado] [Compl1: nome abstrato. Compl2: de lugar]
29 ter; conservar: voltando para casa, Bentinho levava [as lembranças
de] Alice na cabeça (CAN); [Zinho] leva no peito o título de
tetracampeão (VEJ) [Compl: nome abstrato]
30 ser portador; ter: Aqui estou na praça que leva o nome desse grande
defensor das liberdades democráticas (ME-O)
31 ter: E que fim levou a herança, seu Teles? (LA); Seu Nicanor, que cor
leva mesmo a penitência? (CL) [Compl: nome concreto não-animado]
32 conter: O feijão doce de leite de coco (...) não levava quase sal (CF);
levam selo os documentos importantes (CC [Compl de direção]
33 ser o caminho para: A nova estrada, com 142 km, leva a praias e rios
de água cristalina (VEJ); A rota mais bonita leva à Pedra Azul (VEJ)
34 dar acesso: Uma escadinha de madeira levava ao cadafalso (TSL);
talvez houvesse uma pequena saída que (...) levasse ao local onde
43
deveria estar padre Lucas (DM)) [Ática: ordem alfabética] [...]
(BORBA, 1990)
Cada uma das 22 possibilidades de uso relacionadas acima pode, de fato, ser considerada
uma construção distinta, substantiva ou semiesquemática; contudo, algumas delas parecem
estabelecer vínculos mais estreitos entre si. Esse seria o caso, por exemplo, de levar pau, levar
um banho e levar vantagem, que pertencem a um grupo mais amplo de construções com os
chamados verbo-suporte. Outro exemplo são os pares levar em conta e levar em consideração,
que poderiam ser incluídos numa moldura mais esquemática, que abstrai sobre os elementos
introduzidos pela preposição em, como será discutido na seção seguinte.
Em seu uso mais prototípico, retomado em (3), a seguir, o verbo levar codifica uma cena
de deslocamento no espaço, realizando, de forma bastante clara, a configuração sintático-
semântica da Construção de Movimento Causado, qual seja: [[Sn1 V Sn2 SPrep] ↔ [‘X causa
Y mover-se para Z’]]. Como visto, essa configuração envolve, obrigatoriamente, três
participantes: Sn-Sujeito no papel de agentivo, Sn-Objeto no papel de tema e SPrep-Oblíquo
no papel de locativo/alvo20 :
20Isso se considerarmos, tal como lembra Inácio (1996), que um SPrep com papel temático de Origem pode
ocorrer, em contextos específicos, na construção de movimento causado, como em Alice levou o livro da biblioteca
para a secretaria. Ressaltamos, contudo, que a especificação desse constituinte ocorre em contextos mais restritos,
como quando o local de origem não é conhecido do ouvinte ou quando ele é enfat izado pelo falante.
45
(3) Em um jantar de luxo, houve uma disputa entre dous convidados
sobre uma qualidade de peixe que viera à mesa. Um dizia que era
garoupa; o outro que era bijupirá. Não houve meio de concordarem.
Horlando foi chamado para árbitro. Levou amostras para casa.
Mandou tirar fotografias, fez que desenhassem estampas elucidativas,
escreveu um relatório de duzentas páginas, e concluiu que não era nem
garoupa, nem bijupirá, mas cação. (Séc. XX, Corpus do Português,
19:Fic:Br:Barreto:Bruz…)
A sentença destacada apresenta levar acompanhado dos três participantes com os quais
obrigatoriamente se relaciona para compor uma cena típica de deslocamento no espaço. O
sujeito (Sn1 ) não tem realização fonética porque está facilmente acessível na frase precedente,
onde cumpre a mesma função sintática e é referido por Horlando.
Cumpre destacar, ainda, com relação ao exemplo (3), que todas as entidades envolvidas
na cena são concretas. O deslocamento, portanto, ocorre no plano físico. De acordo com a
caracterização de Goldberg (1995), na CMC, é o sujeito que causa um evento de movimento
do referente representado pelo complemento direto, e o SPrep indica o ponto final de uma
trajetória que ocorre na linha do tempo, como representado na figura a seguir, proposta por
Kodama (2004):
46
Se em (3) levar instaura uma cena de movimento físico, vários outros exemplos,
possivelmente dele derivados, constituem projeções metafóricas estabelecidas no âmbito da
própria CMC, tal como se observa abaixo:
(5) Alguns anos antes, após uma árdua batalha para convencer dona
Iraci de que não era sua intenção interná-la (“Então por que é que você
está querendo me levar no médico de loucos”), tiveram uma primeira
e única entrevista com um terapeuta familiar. (Séc. XX, Corpus do
Português, 19:Fic:Br:Amaral:Amigos)
Em (4), o SPrep é ambíguo, pois o SN que o integra pode ser interpretado como alvo ou
como beneficiário no processo. Uma leitura possível é a de que essa ocorrência constitui um
uso metafórico da CMC, em que o domínio do espaço é tomado como ponto de partida para a
representação de um movimento fictício, no qual o sujeito sem mantém como a causa de um
processo mais abstrato. No caso em tela, esse processo não necessariamente demanda mudança
de lugar; antes, remete à provisão financeira do indutor para com o alvo da cena, sinalizando
uma mudança no estado deste último participante. Tal interpretação é reforçada pelo sentido
que o SN o leite assume na frase, onde equivale a ‘sustento’.
Já em (5), o referente do sujeito é apresentado como uma espécie de “partícipe moral”,
atuando no sentido de persuadir dona Iraci (humano; intencional) a ir ao médico em busca de
tratamento, sem necessariamente estabelecer qualquer contato físico com ela para isso. Nesse
caso, o deslocamento de X em direção a Y ocorre graças à influência psicológica que uma
entidade externa, indutora, exerce sobre o participante que se move.
Um aspecto a destacar diz respeito à possibilidade de passivização do verbo levar na
CMC, como exemplificam os trechos em (6) e (7):
47
(7) Só em 1787 surgiu a primeira cadeira edificada especificamente
para esse fim. Foi instalada no térreo do sobrado em que
funcionava a Câmara, local onde se reuniam os vereadores sob a
presidência do juiz. Os presos eram levados para o andar
superior, descendo por alçapões para as celas, numa das quais, sem
abertura para o exterior, ficavam os que tinham cometido delitos
mais graves e aqueles que seria submetidos a torturas. (Carcereiros,
2012)
Como ressaltado na seção anterior, uma abordagem dos usos de levar mais centrada no
item lexical baseia-se no pressuposto de que os arranjos que envolvem o verbo em suas
diferentes realizações constituem epifenômenos. Assim, embora Paz e Silva (2009) destaque a
importância do contexto no processo de gramaticalização de levar, o foco de seu trabalho está
no item lexical.
O problema dessa abordagem está em deixar subentendida a ideia de que cada uma das
acepções de levar projetaria, por si só, um feixe de propriedades morfossintáticas e semânticas
específicas responsáveis por definir a organização geral da sentença. Tal proposta leva a crer
48
que determinados contextos fazem emergir um potencial do lexema que até então não havia
sido acionado, mas que, pela força do uso, foi incorporado ao sistema linguístico.
Tal perspectiva pode parecer plausível para usos distintos nos quais é possível
identificar fortes correspondências semânticas entre dois empregos do mesmo item, de modo
que um seja interpretado como extensão de sentido do outro. O fato, porém, é que essa
proposição perde em consistência diante de sentenças como Maria sambou um copo na cara de
Pedro, em que o verbo sambar, equivalente a ‘lançar/arremessar em direção a’, não exibe
qualquer similaridade semântica com seu emprego prototípico, em que indica alguma coisa
como ‘movimentar-se ao som de samba’ (cf. Maria sambou a noite toda com Pedro).
Partindo da hipótese de que os diferentes usos de levar emergiram em situações
comunicativas específicas e que, portanto, pelo menos inicialmente, eles supostamente exibem
propriedades que só podem ser acessadas em contexto, os aspectos pragmáticos que envolvem
as diferentes usos de levar devem ser considerados tanto na representação sincrônica quanto na
descrição dos processos de mudança que acometeram essas construções.
Nesse sentido, Stein; Rocha; Amorim (2012), partindo da análise de ocorrências do
verbo levar em textos publicitários, se opõem abertamente ao modo como os gramáticos
tradicionais lidam com o problema da transitividade, e sugerem que os dispositivos discursivo-
pragmáticos motivadores da estruturação sintática não podem ser depreendidos com base
apenas na análise do material linguístico. Disto decorre que qualquer abordagem
descontextualizada deixaria de lado aspectos importantes relacionados ao funcionamento da
linguagem.
Podemos afirmar que muitos dos diferentes usos discutidos até então podem ser
caracterizados como instâncias de construções gramaticais por direito próprio. Nos termos de
Goldberg (1995), “padrões frasais não são determinados pelos verbos sozinhos” 21 . Sendo assim,
particularidades sintático-semânticas observadas em determinados usos de um verbo não
decorrem da sua capacidade de projetar especificações que atuem no nível da sentença; mas
resultam da esquematização de sequências específicas de elementos que culminam numa
determinada conceptualização da cena.
É preciso destacar, neste ponto, que a possibilidade de duas construções se fundirem
resulta da interação de diferentes fatores (inclusive, fatores extralinguísticos), e constitui uma
variável gradiente. No entanto, o processo não acontece de modo aleatório, mas obedece a
21 No original: “phrasal patterns are not determined by verbs alone” (GOLDBERG, 1995, p. XX)
49
restrições mais gerais que se devem à própria natureza simbólica da linguagem, tal como
previsto pelo Princípio da Coerência Semântica:
Ao discorrer acerca da aplicação desse princípio à CMC, Boas (2003, p. 19) observa
que:
[…] o movimento causado é limitado quanto aos verbos ou itens
lexicais com que pode fundir-se. Deste modo, as abordagens
construcionais fazem uso de restrições semânticas que explicam por que
certos verbos não podem se fundir com a construção. Restrições que
operam sobre a construção determinam se a construção e os itens
lexicais são semanticamente compatíveis, provendo, assim, uma
explanação acerca de por que certas sentenças não são observadas em
inglês, ou por que certos verbos parecem estranhos no contextos da
construção.23 (BOAS, 2003, p. 99)
22 No original: “The Semantic Coherence Principle: Only roles which are semantically compatible can be fused.
Two roles r1 and r2 are semantically compatible if either r1 ca n be construed as an instance of r2, or r2 can be
construed as an instance of r1. For example, the kicker participant of the kick frame may be fused with the agent
role of the ditransitive construction because the kicker role ca n be construed as an instance of the agent role.”
(GOLDBERG, 1995, p. 50).
23 No original: “[…] caused motion is limited as to the verbs or lexical items with which it can merge. Thus,
constructional approaches make use of semantic constraints to explain why certain verbs cannot merge with the
construction. Constraints on the construction determine if the construction and the lexical items are semantically
compatible, thus providing an explanation as to why certain sentences are not observed in the English language,
or why certain verbs sound odd in the context of the construction.” (BOAS, 2003, p. 99).
24 No original: “The Correspondence Principle: Each participant role that is lexically profiled and expressed must
be fused with a profiled argument role of the construction. […] If a verb has three profiled participant roles, then
one of them may be fused with a nonprofiled argument role of a construction.” (Goldberg, 1995, p. 50).
50
Na já mencionada frase Maria sambou um copo na cara de Pedro, podemos perceber a
atuação dos dois princípios referidos acima. Por um lado, há respeito ao Princípio da Coerência
Semântica, pois o único participante prototipicamente associado a sambar (o “sambador”) pode
ser interpretado como uma instância do argumento no papel de agente da CMC. Por outro lado,
a CMC associa ao verbo sambar dois argumentos extras, que, nesse novo estado de coisas,
exercem as funções de tema (Sn2 ) e alvo (SPrep) da construção esquemática.
Dadas as restrições impostas por esses princípios, construções podem, inclusive,
“forçar” um verbo a assumir certas propriedades sintático-semânticas, como pode ser observado
com levar nos exemplos em (8) e (9), que permitem discutir a natureza de predicador dessa
forma verbal:
Embora levar ainda possa ser considerado um predicador nos exemplos em (8) e (9), a
construção indica um deslocamento que não ocorre no plano físico; trata-se de um uso
metafórico da CMC, baseado numa transferência de domínios em que relações no espaço são
cooptadas para representar relações no mundo psicológico. Trata-se de uma forma de
conceptualização em que mudança de estado é equiparada a mudança de lugar. Esse
deslizamento semântico só foi possível graças às propriedades do participante alvo, que remete
a uma entidade abstrata, como desespero em (8), ou a ações praticadas por Sn2 como resposta
a um estímulo externo (cf. 9).
Além disso, o surgimento do novo significado parece estar associado ao esvaziamento
do valor espacial da preposição a (‘ponto de chegada’), que introduz o SPrep em ambos os
casos. Nos exemplos em questão, não é possível substituir a por outra preposição, como para
ou em (*leva a vítima para/em as portas do desespero). Além disso, em (8) e (9), o verbo levar
se aproxima do sentido de ‘causar, provocar’ e, portanto, participa da composição de uma
estrutura causativa.
51
Usos de levar como os exemplificados em (8) e (9) já foram focalizados por diferentes
autores. Paz e Silva (2009, p. 138) afirma que, nesse emprego, o verbo desempenha a função
de semiauxiliar causativo, oscilando entre as categorias de verbo predicador e verbo auxiliar.
Por seu turno, Pereira (2018), que também atribui a essa forma verbal uma leitura causativa,
destaca a alta frequência desse verbo em seu corpus, afirmando que ele participa da composição
de uma cena em que o resultado desejado pelo referente do sujeito é alcançado, assim como os
verbos obrigar e causar.
Um outro esquema construcional bastante produtivo com o verbo levar é o esquema de
verbos-suporte, exemplificado de (10) a (12):
25 De acordo com os autores, os verbos desse tipo podem ser retirados da frase, mediante transformações sintáticas
aplicadas à estrutura subjacente, sem que o sentido associado a todo o chunk se perca. O que está na base dessa
proposta é a ideia de que, nos predicados complexos, a forma nominalizada que acompanha o verbo é o princip al
elemento responsável pela predicação, e o verbo desempenha funções gramaticais, atuando como suporte de
marcas de número e pessoa, tempo e modo etc.
52
Na base da análise das autoras, está o pressuposto de que, nos predicados complexos, a
forma nominalizada que acompanha o verbo é o principal responsável pela predicação. De fato,
num exemplo como (13), é todo o complexo [V Sn] que determina o papel temático do sujeito
João. No caso, verbo e nome formam um chunk com significado próprio. No nível conceptual,
ambos os slots são esquemáticos, podendo ser preenchidos por uma ampla gama de diferentes
itens lexicais, inclusive levar (cf.: O turista levou/tomou/ganhou socos/empurrões/um tapa/uma
facada (...) do assaltante); mas algumas dessas construções, como levar tiro, são tão frequentes
na língua que parecem já ter sido alçadas ao estatuto de construções independentes.
Embora esse teste efetivamente funcione para grande parte das expressões com verbos-
suporte, ele deve ser encarado com cautela, porque é possível que algumas ocorrências não
apresentem exatamente a mesma resposta. Como lembram Ilari; Basso (2014, p. 107), as
construções de verbo-suporte tipo se distribuem “ao longo de um continuum em que
encontramos desde casos de verdadeiras ‘frases feitas’ altamente estereotipadas até construções
com um molde morfossintático bem definido, que permanece aberto a um preenchimento
extremamente variado”. Sendo assim, o teste aplicado pelas autores pode ser considerado um
bom artifício didático para a identificação de casos mais prototípicos de expressões com verbos-
suporte; contudo, não deve servir como critério definidor da categoria.
Um outro estudo que se destaca é o de Paz e Silva (2009). A partir de uma análise dos
diferentes usos de levar em textos publicados entre 1995 e 2009 em jornais do Rio de Janeiro,
a autora apresenta uma análise mais integrada da polifuncionalid ade desse verbo. Tomando
como base princípios do modelo da gramaticalização, a autora (op. cit., p. 149) conclui que os
diferentes usos de levar se distribuem ao longo de um continuum de maior lexicalidade para
maior gramaticalidade, tal como demonstrado na figura 2:26
26É necessário destacar que, em alguns casos, a autora reúne, na mesma categoria, empregos de levar claramente
associados a padrões construcionais distintos, sem enfatizar essa diferença. Na seção destinada aos usos de levar
como predicador não pleno, foram listadas ocorrências como “Os bandidos levaram o equipamento de reportagem”
(= ‘roubar’) (p. 94) e “a polícia civil [...] acusou petistas de levarem armas a bóias-frias grevistas em Leme” (=
‘dar/doar’) (p. 103). Tais exemplos, no entanto, vinculam-se aos padrões transitivo e bitransitivo, respectivamente.
53
Figura 2 − Graus de gramaticalidade dos diferentes usos de levar
Fonte: adaptado de Paz e Silva (2009, p. 149)
Observa-se, de acordo com o esquema proposto, que a CMC também é concebida como
o emprego mais prototípico do verbo levar. De acordo com a autora, os casos de verbo-suporte
e semiauxiliar causativo são os que apresentam estágios de gramaticalização mais avançados.
Entre os dois extremos do cline, estão localizados casos intermediários e a categoria dos
operadores temporais, integrantes do que poderíamos classificar como “construção indicativa
de tempo dispendido” (cf. Eu levei o dia inteiro para resolver um problema no banco).
Um ponto interessante a destacar é o que a autora descreve como “comportamento
híbrido”, ilustrado em (14):
Nesse exemplo, o verbo levar pode ser interpretado como um predicador não pleno, em
que “a dependência induz à prostituição” (emprego causativo); ou como um verbo-suporte,
condição em que a “dependência o prostitui”. A propósito, tal exemplo ilustra um caso de
54
gradiência subsectiva, ou intercategorial (cf. capítulo 2). De nossa parte, entendemos que pode
ser interessante analisar esse caso como uma instância do esquema causativo.
Além das construções destacadas até este ponto, um levantamento em dados de fala e
escrita do português indica, ainda, a participação de levar em diversas outras construções
semiesquemáticas, vinculadas a padrões mais gerais, como é o caso de [LEVAR JEITO]. Esta
última construção é exemplificada a seguir, nos dados de (15) a (17):
(16) Grávida, Sabrina Sato mostra que leva jeito com criança em
festa. (Séc. XXI, Portal R7.com, de 21/07/2018)
(17) “Não tiro reis nem ponho reis; com quem venho, venho”. Porém,
olhai, senhor compadre Quevedo, confesso-vos que esse toledano
Garcilaso foi suave e que, para os escuros tempos em que madrugou,
acendeu ûa nova luz de que recebesse claridade o vosso edioma; mas,
se [se] vai a falar verdade, não a tenho por marca de tantos aqui-del-reis
como sobre ele levantaram Francisco Sanchez Brocense em suas notas
e Hernando de Herrera em seus comentos. [Quevedo:] levais jeito de
duvidar a esse mesmo Herrera o cognomento de “divino”, pelo qual é
chamado da antiguidade! [Bocalino] Essa demanda lhe ponha Platão,
que para mim me basta conhecer que o divino Herrera foi um clerigo
muito humano ou muito desumano poeta, em quem se não acha verso
algum onde se não descalavre ûa nau da Índia de Portugal ou ûa maona
de Florenca, se chocarem com ele. (Sec. XVII, Corpus do Português,
FMM:Hospital)
De acordo com o estudo de Paiva; Stein (2019), os exemplos acima podem ser
representados pela estrutura [Sn LEVAR JEITO SPrep], que se associa ao significado ‘X está
relacionado a Y’. O tipo de relação estabelecida entre essas duas entidades pode variar em
função das restrições impostas pelo elemento que encabeça o SPrep. De acordo com os autores,
esse esquema mais amplo, que admite as preposições de, para e com, generaliza sobre cinco
microconstruções distintas, as quais se relacionam pelo valor modal/avaliativo que possuem:
55
• [[Sn1 levar jeito de Sn2 ] ↔ [‘X parece/pode possuir o atributo Y’]] (p.e., Aquele
homem leva jeito de oriental)
• [[Sn1 levar jeito de S] ↔ [‘X pode desencadear a ação Y’]] (p.e., Ele leva jeito de fazer
faculdade de Filosofia)
• [[Sn1 levar jeito para Sn2 ] ↔ [‘X tem a capacidade Y’]] (p.e., Luíza leva jeito pra
psicóloga)
• [[Sn1 levar jeito para S] ↔ [‘X tem capacidade para fazer Y’]] (p.e., Ela não leva jeito
para estudar medicina, pois não aguenta nem ver sangue!)
• [[Sn1 levar jeito com Sn2 ] ↔ [‘X tem habilidade com Y’]] (p.e., A Priscilla leva muito
jeito com adolescentes)
(18) Assalto eu já tive, mas não assim assalto de coisa, tendeu? Eu fui
assim assaltado duas vezes na Central, né? Inclusive uma vez
levaram meus documento e poco dinhero que eu tinha, tendeu? E
a segunda vez também levaram meus documentos, levaram meus
documento e não levaram o dinhero porque o dinhero eu tinha
escondido. Mas fora disso não. (Séc. XX, Amostra Censo 2000,
T16Car)
(19) Você está sendo roubado duas vezes: O ladrão levou o dinheiro,
ele vem come tua comida. Quer dizer que então, é melhor você perder
só o dinheiro. O ladrão é a parte mais fácil. Se você encontrar com
ele, você pode prender, você pode fazer tudo. E o polícia? (Séc. XX,
Amostra Censo 1980, C09Seb)
Nos exemplos acima, levar assume o significado de ‘roubar, furtar’. Assim, associa-se
a um sujeito no papel de agente e a um objeto direto no papel de tema, compondo uma cena
onde X toma posse indevidamente de algo que pertence a Y. Diferentemente da CMC, o ponto
final do movimento, normalmente representado por sintagma preposicional, é dispensável, já
que o foco não está no local para onde o assaltante se dirige com o produto roubado, mas sim
na consequência imediata do roubo sobre a relação de posse até então mantida entre a vítima e
o objeto que lhe fora roubado.
56
Considerando que o objeto roubado pode variar, podemos entender que tais ocorrências
constituem instâncias de uma padrão construcional mais amplo [[Sn1 LEVAR Sn2 [SPrep]] ↔
[‘X roubar Y (de Z)’]], possivelmente vinculado ao esquema transitivo por meio de um
subesquema mais básico, estabelecido a partir de tipos de verbos específicos. A nossa hipótese
é que, nos exemplos de (18) a (20), o verbo levar foi cooptado para atuar como sinônimo de
roubar devido à implicação de afastamento (em relação a um ponto) que seu uso como verbo
de movimento evoca. Trata-se de um processo de expansão categorial por correspondência
semântica com exemplares prévios da categoria.
Destacamos também o uso produtivo que levar apresenta na já mencionada construção
indicativa de tempo dispendido, que possui a seguinte configuração estrutural: [Sn1 V Sn2 (X)],
em que X pode ser uma oração reduzida de gerúndio ou um SPrep (com preposição
introduzindo tipicamente uma oração). O slot V é preenchido por itens lexicais como demorar,
gastar e levar, todos com aspecto durativo. De maneira geral, o padrão indica “o tempo que
uma entidade X despendeu numa atividade Y”. Os exemplos a seguir ilustram essa construção:
Em (24), a sequência levar em conta constitui, sob certos aspectos, uma expressão pré-
fabricada, muito próxima de uma construção substantiva, ou lexical, nos termos de Traugott;
Trousdale (2013), equivalente a “considerar’. Constitui um chunk caracterizado por forte perda
da identificabilidade das suas partes componentes. No entanto, apesar da opacidade, [LEVAR
EM CONTA] e [LEVAR EM CONSIDERAÇÃO] podem ser consideradas microconstruções
de um padrão mais esquemático: [LEVAR EM Sn], que generaliza sobre os nominais
introduzidos pela preposição em. Ambas as microconstruções codificam processos mentais.
Um exemplo similar ao de [LEVAR EM CONTA] e [LEVAR EM CONSIDERAÇÃO]
é, justamente, a construção [LEVAR A CABO]. Como se pode pressupor, essas três
construções, que, assim caracterizadas, equivalem a verbos transitivos indicadores de diferentes
tipos de processos, podem ser consideradas como microconstruções específicas, licenciadas por
um esquema mais abstrato, possivelmente polissêmico e altamente produtivo na língua, qual
seja: [LEVAR SPrep].
Após caracterizar os principais usos de levar em diferentes amostras de fala e escrita do
português e de dialogar com alguns estudos que trataram de diferentes aspectos relativos à
multifuncionalidade desse verbo, no próximo capítulo, vamos discorrer acerca da amostra de
textos escritos usados para a análise das construções ativa e passiva com [LEVAR A CABO],
bem como também vamos discorrer acerca da metodologia adotada.
58
4. AMOSTRA E PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
O nosso estudo acerca da construção [LEVAR A CABO] baseia-se num corpus bastante
expressivo. Os textos são representativos do português escrito, em suas variedades brasileira e
europeia, e, de acordo com a periodização proposta por Mattos e Silva (2007)27 , cobrem todos
os períodos da história da língua, indo do séc. XIII até o séc. XX. Todas as ocorrências foram
extraídas do banco de dados do Corpus do Português (DAVIES; FERREIRA, 2006), sobre o
qual discorremos a seguir.
O Corpus do Português é um banco de dados de larga extensão, que reúne textos do
português brasileiro e europeu, organizados em seções. Nessa base de dados, apenas 5% dos
dados − 2,3 milhões de palavras − correspondem a textos orais, que não entraram nas rodadas.
Para a realização do nosso estudo, o levantamento foi realizado na seção denominada
Gênero/Histórico, que reúne 57 mil textos e totaliza mais de 45 milhões de palavras. Os textos
dessa seção foram organizados tendo em vista a data em que foram escritos, e os períodos de
tempo foram controlados quanto ao número de palavras, como mostramos na tabela 1:
27 De acordo com a periodização proposta em Mattos e Silva (2007), a história da língua portuguesa pode ser
dividida nos seguintes períodos: período arcaico ou medieval (sécs. XIII-XVIa), período clássico (sécs. XVIb-
XVIII) e período moderno/contemporâneo (sécs. XIX-XXI).
59
Período Número de palavras
XVIII-XVIII 15 milhões
XIX 10 milhões
XX 20 milhões
Tabela 1 – Número de palavras, por período (Corpus do Português)
Além disso, a fórmula “lev* a cabo” também possibilita o rastreio de instâncias onde o
argumento interno de [LEVAR A CABO] ou é nulo (cf. 3), ou é representado por clítico
posposto ao verbo, formando com ele uma única palavra fonológica (cf. 4):
28 Cada asterisco corresponde a um único item lexical e, assim, a localização de ocorrências como levar a reunião
a cabo ocorre mediante a fórmula “levar * * a cabo”, em que o primeiro asterisco representa o item a e o segundo
asterisco representa o item reunião. Nas nossas buscas, inserimos no máximo 4 asteriscos entre o levar e a cabo.
62
(3) Quem foi maior, Alexandre ou César? indagação histórica difícil
evidentemente de levar a cabo sem o auxílio da trena. (Séc. XIX,
Corpus do Português, 18:Pompéia:Ateneu)
De acordo com os objetivos deste estudo, após o levantamento dos dados, procedemos
a uma ampla e profunda análise das construções ativa e passiva com [LEVAR A CABO], de
modo a identificar suas primeiras ocorrências, principais propriedades e trajetória de expansão
ao longo do tempo. As ocorrências foram analisad as segundo os grupos de fatores especificados
no quadro 1, a seguir:
63
COMPONENTE CONSTRUÇÃO ATIVA
1. Valor semântico (‘concluir’ versus ‘realizar’)
Estado de coisas 2. Presença/ausência de elementos qualificadores
3. Ocorrência de modalizadores
1. Realização sintática
Sn-Sujeito 2. Propriedades de número e pessoa
(indutor) 3. Animacidade
3. Papel temático
1. Definitude
Sn-Complemento
2. Traço semântico concreto ou abstrato
(afetado/efetuado)
3- Item lexical
COMPONENTE CONSTRUÇÃO PASSIVA
1. Valor semântico (‘concluir’ versus ‘realizar’)
Estado de coisas
2. Presença versus ausência de verbo auxiliar
1. Afetação (afetado/efetuado)
Sn-Sujeito 2. Definitude
(afetado/efetuado) 3. Traço semântico concreto/abstrato
4. Item lexical
1. Realização versus não realização
SPrep
2. Definitude do SN introduzido pela preposição
(indutor)
3. Papel temático e animacidade
Quadro 1 - Grupos de Fatores adotados para a análise da construção [LEVAR A CABO]
64
5 ATIVAS E PASSIVAS COM [LEVAR A CABO]
(2) A ofensiva russa foi levada a cabo com o pretexto de acabar com
as acções bélicas dos islamitas tchetchenos no Daguestão. (Séc.
XX, Corpus do Português, 19Ac:Pt:Enc)
29 Borba (1996) distingue quatro classes sintático-semânticas de verbos: verbos de ação, verbos de processo,
verbos de ação-processo e verbos de estado” (p. 57).
65
ou seja, realizado em sua completude. Tal estado de coisas tem sua origem num
causador/indutor, que pode ou não ser colocado em cena pelo falante. Na construção ativa, o
causador/indutor é obrigatório; na passiva, ele pode ser demovido, o que ocorre em contextos
discursivo e/ou pragmáticos específicos.
Neste estudo, as ocorrências com [LEVAR A CABO] na voz ativa são consideradas
instâncias do esquema mais geral [Sn1 LEVAR A CABO Sn2 ]. Por outro lado, [LEVAR A
CABO] passivo constitui o esquema construcional [Sn (aux.) LEVAR pp A CABO (SPrep)].
Além de compartilharem alguns aspectos formais, essas construções compartilham
propriedades semânticas importantes, tal como ilustrado a seguir:
Figura 1 − Alinhamento semântico-estrutural das construções ativa e passiva com [LEVAR A CABO]
A opção por analisar ativas e passivas com [LEVAR A CABO] como construções
distintas, embora formal e semanticamente muito próximas, baseia-se em pressupostos da
Gramática de Construções Baseada no Uso. Neste ponto, ressaltamos a nossa concordância com
o que Croft (2001) define como Princípio do Contraste, construto fortemente associado ao
Princípio da não sinonímia de Goldberg (1995), já discutido no capitulo 2. Nos termos de Croft:
A construção ativa é considerada uma construção não marcada tanto do ponto de vista
estrutural, já que é menos complexa morfossintaticamente, quanto do ponto de vista discursivo,
ocorrendo em contextos nos quais o foco recai sobre o sujeito da sentença. Deste modo, nos
próximos parágrafos, vamos caracterizar mais adequadamente a construção passiva,
30Original: “Principle of Contrast: if two grammatical structures occur in the same language to describe the ‘same’
experience, they will differ in their conceptualization of the experience in accordance with the difference in the
two structures.” (CROFT, 2001, p. 111)
66
demonstrando as suas propriedades básicas, em termos gerais. Essas propriedades, que se
estendem às ocorrências passivas como um todo, serão retomadas de modo mais aprofundado
nos próximos capítulos, a partir de ocorrências específicas com [LEVAR A CABO].
Em geral, a construção passiva envolve verbos de ação ou de ação-processo. Contudo,
como destaca Camacho (2006, p. 170), não está excluída a possibilidade de passivização de
outras classes verbais. Segundo o autor, “a passiva manifesta-se também com predicados de
posição, que não envolvem dinamicidade, mas são semanticamente marcados pelo traço [+
controlado]”, como levar em conta (p.e., O pedido do advogado não foi levado em conta na
decisão do juiz), e predicadores “que pressupõem o posicionamento físico de um ser
controlador” (p. 170), a exemplo do verbo manter (p.e., Todos os celulares deverão ser
desligados e mantidos na mochila durante a prova). Além disso, prossegue o autor, a
construção passiva também pode envolver predicados de processo que, caracterizados pelos
traços [+ dinâmico, − controlado], implicam “[...] a atuação involuntária dos participantes,
afastando-se, portanto, do evento transitivo prototípico” (op. cit. p. 171). É isso o que se observa
na frase A data da prova foi lembrada pelo professor.
Como reconhecido por diversos autores (SAID ALI, 1966, p. 95; KENNER; DRYER,
2007; CASTILHO, 2010, p. 134-137; DUARTE, 2013, p. 432-445, dentre outros), uma
especificidade da construção passiva é a possibilidade de que um dos participantes – no caso o
argumento externo – não seja perfilado na construção, diferentemente do que ocorre nas ativas,
onde tal participante desempenha o papel sintático de sujeito e, portanto, é obrigatório. Além
disso, o agente da passiva, quando realizado, é codificado por termo acessório – um constituinte
oblíquo.
Segundo Vieira; Santos; Kropt (2019), a demoção do participante indutor na construção
passiva caracteriza-se como um processo gradiente, não binário, que apresenta as seguintes
possibilidades: (i) demoção do agente para uma posição sintática mais baixa, (ii) supressão, não
preenchimento ou suspensão do agente, e (iii) circunstanciação, que diz respeito à identificação
do participante indutor por meio de pistas externas ao SPrep31 .
Um outro aspecto a destacar é que, embora a grade temática normalmente associada à
construção passiva atribua ao sujeito o papel de paciente, muitos casos se distanciam dessa
31Um dos exemplos de indicação do agente através de circunstanciação citado pelas autoras é: “a penicilina FOI
CLASSIFICADA jornalisticamente como ‘remédio maravilho’, ‘remédio milagroso’, ‘droga maravilhosa’ [...]”
(VIEIRA; SANTOS; KROPT, 2019, p. 168), em que o advérbio jornalisticamente indica o “classificador”, na
cena em questão.
67
caraterização das gramáticas tradicionais. Um exemplo é apresentado em (3), a seguir, onde o
sujeito destacado é mais propriamente concebido como uma meta a ser alcançada:
(4) Verifica-se, portanto, que até a Grécia, nação que ainda há relativamente
pouco tempo não estava numa posição favorável em relação ao nosso
país no que diz respeito aos índices de desenvolvimento económico, ao
rendimento “per capita”, ao PIB e PNB, sobrelevou A lusitana pátria,
remetendo-a para o último lugar. Mesmo a Turquia [...] apresenta
índices de desenvolvimento superiores a
Portugal. O estudo sobre a situação nada brilhante do nosso país foi
levado a cabo - convirá referir - por um organismo afecto à própria
comunidade. Mas... será novidade para os portugueses este “honroso”
lugar na cauda da Europa Comunitária do nosso (des)contentamento?
(Séc. XX, Corpus do Português, 19N:Pt:Jornal)
Nesse trecho, o estudo é apresentado como uma situação perfectiva e que já foi
concluída, o que é favorecido pela flexão do verbo auxiliar ir (no passado perfeito) que
acompanha levar no particípio. Mas essa interpretação perfectiva independe do tempo verbal
expresso pelo auxiliar, como se observa em O estudo será levado a cabo em até 2 anos, onde a
realização/conclusão da atividade é concebida como um evento completo (com início, meio e
fim), ainda que nenhuma de suas etapas tenha sido efetivamente iniciada.
Embora a gradação categorial dos particípios não constitua o nosso objetivo central,
algumas considerações sobre a natureza dessa forma se fazem necessárias. O particípio passado
constitui uma classe difusa de elementos que, a depender das construções em que ocorrem,
podem apresentar variação de significado e/ou estatuto gramatical. Azeredo (2010), ao discorrer
sobre as relações entre particípios e adjetivos em português, propõe que os particípios
68
apresentam gradiência categorial, podendo assumir diferentes estatutos. Ele diz que, na
formação de tempos compostos, seguindo mais prototipicamente os auxiliares ter e haver, o
particípio é indiscutivelmente uma forma verbal (p.e., Antes de a prova começar, eu tinha
pedido autorização para ir ao banheiro). Por outro lado, em homem cansado, o elemento em
negrito possui um papel similar ao de adjetivo, concordando com o núcleo a que se adjunge em
gênero e número. Entre esses dois extremos, por fim, estariam as construções passivas analíticas
mais prototípicas, com verbo auxiliar.
No entanto, Duarte (2010) propõe uma classificação mais detalhada dos particípios,
distinguindo três subclasses: particípios eventivos, resultativos e estativos. Os particípios
eventivos caracterizam-se por apresentarem componente agentivo, tal como em A investigação
foi levada a cabo pela Polícia Federal em dezembro. Eles se distinguem dos particípios
resultativos pelo fato de, nestes últimos, não haver componente agentivo (p.e., O aluno ficou
calado depois do esporro da professora). Os particípios estativos, por sua vez, não apresentam
componente eventivo (p.e., A resposta do gabarito oficial está correta). Essa classificação é
feita com base no tipo de evento representado.
A gradiência da forma de particípio passado adquire importância crucial na organização
e interpretação de ocorrências de passiva sem o auxiliar, como nos exemplos (5) e (6):
69
ocorrência foi reproduzida em (7), a seguir. No caso, o autor discorre sobre as habilidades de
guerra da Infantaria do Sul de modo apaixonado, narrando o estrago causado por ela a uma
tropa inimiga:
Exemplos como (5), (6) e (7) são mais frequentemente analisados como uma espécie de
“estrutura oracional reduzida”, equivalente à construção passiva prototípica, que apresenta
verbo auxiliar seguido de particípio passado (cf. PERES; MÓIA, 1995 apud WLODEC, 2003,
p. 49). No entanto, para outros autores, como Perini (2008), a passiva sem o auxiliar se aproxima
de uma estrutura relativa estativa.
Entendemos que a ausência do verbo auxiliar faz com que seja mais estreita a ligação
entre o núcleo nominal e o verbo no particípio passado, permitindo que a forma participal seja
analisada como um adjunto adnominal, equivalente ao que Duarte (2003, p. 376) classifica
como adjetivo qualificativo − ou seja, que exprime “qualidades, estados, modos de ser de
entidades denotadas pelos nomes”. De acordo com essa intepretação, [LEVAR A CABO], em
(7), participaria da composição de um SN onde modifica o núcleo empresa.
Numa perspectiva construcionista, podemos pressupor que, de fato, as ocorrências com
auxiliar e as ocorrências sem auxiliar constituem construções distintas, licenciadas pelo
esquema mais geral [Sn1 (aux.) LEVAR PP A CABO (SPrep)]. Elas se relacionam entre si pela
função que desempenham, o que pode ser esquematizado como na figura 2:
70
Figura 2 − Construção [LEVAR A CABO] passiva (com e sem auxiliar)
Um dos pontos mais relevantes com relação à construção passiva diz respeito às suas
particularidades discursivas e funcionais. A esse propósito, Givón (2009, p. 45-60), em estudo
voltado especificamente para a tipologia diacrônica das cláusulas passivas, argumenta que um
tratamento adequado para essas estruturas não deve se prender apenas às suas propriedades
morfossintáticas e relacionais; antes disso, requer uma definição funcional do domínio
sintaticamente codificado (cf. também GIVÓN, 2012 [1977], p. 271-304).
Goldberg (1995) ressalta que a construção passiva se insere no grupo das construções
que fornecem uma estrutura informacional alternativa. De acordo com Keenan; Dryer (2007),
do ponto de vista pragmático, as passivas caracterizam-se por topicalizar (i.e., ‘dirigir a atenção
para’) um participante que não é apresentado como tópico nas ativas correspondentes,
semelhantemente ao que ocorre com o que esses autores chamam de topicalização e de
deslocamento à esquerda35 . A consequência desse processo é uma mudança de perspectivação
da cena codificada: na construção passiva, a ação é vista a partir da perspectiva do
paciente/meta, enquanto, na construção ativa, ela é vista do ponto de vista do indutor. Essa
diferença reflete bastante bem a perspectiva de Ellis (2003), segundo a qual:
35 Keenan; Dryer (2007, p. 325-326) apresentam, como exemplo de topicalização, a sentença “Beans I like”
(‘Feijão, eu gosto) e, como exemplo de deslocamento à esquerda, a sentença “As for the President, congressmen
don’t respect him any more” (‘Quanto ao presidente, os congressistas não o respeitam mais’). Observe que, em
ambos os casos, diferentemente do que ocorre com a passiva básica (analítica), a estrutura argumental e a
morfologia do verbo não sofrem qualquer alteração.
71
De acordo com a definição de multifuncionalidade da voz verbal proposta por Givón
(1981, 1994), Camacho (2006) argumenta que a construção passiva envolve três domínios
funcionais. São eles:
Além dos pontos destacados, diversos estudos tipológicos têm mostrado que as línguas
diferem significativamente quanto ao modo de expressar passivização, havendo, inclusive,
línguas a que faltam construções gramaticais voltadas para esse propósito (cf. VELLUPILAI,
2012; KEENAN; DRYER, 2007; GIVÓN, 2012; dentre outros). Essa é mais uma evidência de
que a construção passiva deve receber um tratamento à parte, ou seja, não deve figurar à sombra
da sentença ativa, como se fosse mero produto de processos de alternância 36 – isto, se quisermos
conferir à análise um caráter mais abrangente e em conformidade com realidade dos fatos
linguísticos.
Castilho (2010) sintetiza bastante bem esse posicionamento, afirmando, a partir do
trabalho de Blasco (1987), “que a ocorrência da voz passiva é favorecida quando se tira uma
conclusão de uma sentenças ativa” (CASTILHO, 2010, p. 437); portanto, usamos a voz passiva
por motivações encontradas no discurso, não na sentença. De acordo com o autor:
Até este ponto, nos dedicamos a uma caracterização mais geral da construção passiva,
independentemente de qualquer item lexical particular. Essas propriedades serão retomadas e
36 No Brasil, esta posição é defendida explicitamente, por exemplo, por Pinheiro (2015, p. 179), em capítulo
inteiramente dedicado à apresentação da chamada Sintaxe construcionista .
72
analisadas mais detalhadamente nos próximos capítulos. Por ora, vamos apresentar, na seção
seguinte, os contextos iniciais e a distribuição geral dos dados, tomando como base o tipo de
estrutura (se ativa ou passiva) em que [LEVAR A CABO] ocorre.
A primeira ocorrência com [LEVAR A CABO] foi atestada no século XVII, na estrutura
ativa; mas sua expansão parece ocorrer apenas a partir do século XIX. A ausência de dados no
século XVIII, apesar do tamanho da amostra considerada, dificulta uma análise mais detalhada
da trajetória de [LEVAR A CABO]. Mesmo assim, alguns aspectos podem ser destacados.
Ressaltamos, em primeiro lugar, a frequência expressiva da construção ativa em relação
à construção passiva, tanto no século XIX quanto no século XX, como se pode observar no
gráfico 1:
Gráfico 1 − Distribuição das ocorrências quanto ao tipo de estrutura (sécs. XIX e XX)
27
73
Gráfico 2 − Distribuição das passivas com [LEVAR A CABO] quanto ao traço ausência/presença de auxiliar
(8) Se Deus quiser que assim seja, Ele dará saúde. Por agora quisera ver
se posso levar a cabo esta obra que, para que seja obra, é necessário
saia a tempo ou antes do tempo. Agora me retirei a Vila Franca por
ordem dos médicos, e espero ter mais horas, de que prometo a V. S.ª
que não perderei nenhuma das que puder aproveitar sem risco. (Séc.
XVII, Corpus do Português, 16:Vieira:Cartas)
75
Também merecem destaque, no exemplo em (8), os traços semânticos do complemento
de [LEVAR A CABO] e o contexto mais amplo em que essa construção se insere. No caso, o
complemento obra é usado com seu sentido mais abstrato, remetendo para o trabalho de
evangelização realizado pelo jesuíta. As características semânticas do complemento interno,
como mostraremos no capítulo 6, desempenham um papel relevante na expansão da construção
[LEVAR A CABO].
Por fim, note-se que, na primeira ocorrência, [LEVAR A CABO] se associa a um
contexto fortemente marcado pela modalização, explícita na forma indicativa de capacidade ou
possibilidade (posso). A modalização do contexto é fortalecida pela forma verbal quisera.
Conjuntamente, essas duas formas sinalizam que o estado de coisas codificado constitui uma
possibilidade, não um fato concluído, e demanda esforços que o evangelista não está certo de
possuir.
Tendo em vista que, neste capítulo, discutimos as propriedades básicas das construções
ativa e passiva; nos próximos dois capítulos, vamos focalizar cada uma dessas estruturas
separadamente, começando com a construção ativa.
76
6 A CONSTRUÇÃO ATIVA [SN 1 LEVAR A CABO SN 2 ]
(2) Uma Fundação com sede em Lisboa [...] está a tentar levar a cabo
uma colónia de férias, para jovens com mais de 12 anos, na Praia do
Osso da Baleia, na fronteira do concelho de Pombal com o da
Figueira da Foz. (Séc. XX, Corpus do Português, 19N:Pt:Leira)
77
diz respeito à tentativa empreendida pela fundação, e não ao resultado de [LEVAR A CABO]
em si.
Outro aspecto a considerar é que [LEVAR A CABO] nem sempre assume,
necessariamente, o significado de ‘concluir’. Em alguns contextos, essa construção apresenta
um valor semântico mais próximo de ‘realizar’37 . Conforme ilustram os exemplos em (3) e (4),
é o contexto do enunciado, ou seja, a situação comunicativa mais ampla que determina o valor
semântico efetivamente acionado pela construção:
(3) Se Deus quiser que assim seja, Ele dará saúde. Por agora quisera ver
se posso levar a cabo esta obra que, para que seja obra, é necessário
saia a tempo ou antes do tempo. Agora me retirei a Vila Franca por
ordem dos médicos, e espero ter mais horas, de que prometo a V. S.ª
que não perderei nenhuma das que puder aproveitar sem risco. (Séc.
XVII, Corpus do Português, 16:Vieira:Cartas)
(4) Faz hoje mesmo quarenta e dois anos que, mais cedo do que estas
horas, vieste ter comigo aqui a casa. Tinhas pouco mais ou menos a
idade que hoje tem teu filho Ângelo. Meu pai
saíra; julgámos nós ambos boa a ocasião de levar a cabo um
projecto que havia muito tempo trazíamos na cabeça. Crescia a um
canto do muro, além, à beira do poço, uma pequena faia que ali não
podia durar muito tempo; meu pai todos os dias a ameaçava com a
enxada e a custo a tínhamos defendido. Resolvemos transplantá-
la. (Séc. XIX, Corpus do Português, 18:Dinis:Morgadinha)
37 De acordo com o Dicionário Houaiss (HOUAISS; VILLAR, 2001), o verbete concluir apresenta, dentre outras,
a seguinte acepção, que nos interessa mais de perto: “fazer chegar ao fim; terminar; acabar (p.e., ‘concluir um
curso’)”. Já realizar não apresenta a mesma leitura terminativa, mas possui a seguinte acepção, dentre outras:
“fazer que tenha ou ter existência concreta (p.e., ‘ele realizou o velho sonho de viver em Paris’)”. (Os exemplos
foram reproduzidos do autor).
78
analisadas apresentam ambiguidade, como a ocorrência em (5), onde não é possível definir com
precisão o significado de [LEVAR A CABO]:
VALOR
XVII XIX XX
SEMÂNTICO
‘Concluir’ 1 = 100% 7 = 23% 3 = 1%
‘Realizar’ -- 22 = 71% 199 = 98%
ambiguidade -- 2 = 6% 2 = 1%
Total 1 31 202
Tabela 1 − Valor semântico da construção
79
De acordo com os resultados da tabela 1, a única ocorrência de [LEVAR A CABO]
atestada no séc. XVII apresenta o valor semântico de ‘concluir’. Pode-se dizer que esse
significado é mais composicional, uma vez que permite recuperar com mais facilidade a
contribuição semântica do item cabo (cf. capítulo 8). Contudo, no séc. XIX, [LEVAR A CABO]
passa a ocorrer mais frequentemente com o valor semântico de ‘realizar’ (22 tokens = 71%),
apresentando apenas 2 ocorrências ambíguas (6%) e 7 ocorrências com o valor semântico de
‘concluir’ (23%). Por fim, no séc. XX, a porcentagem de ocorrências com o valor semântico de
‘realizar’ aumenta significativamente, chegando à marca dos 98% (199 tokens). Já os dados
com o significado de ‘concluir’ e os ambíguos correspondem, cada qual, a apenas 1% das
ocorrências do último período, sendo que os dados com o valor de ‘concluir’ apresentam
frequência token 3 e os dados ambíguos, frequência token 2.
Esses resultados indicam que, com o passar do tempo, a construção [LEVAR A CABO]
expandiu seus contextos de uso, já que o sentido de realizar uma tarefa é menos específico do
que o de concluir uma tarefa em curso. Portanto, temos aqui indícios de um processo de redução
da composicionalidade semântica, que se processou na medida em que os construtos com o
valor semântico de ‘realizar’ passaram a ocorrer mais frequentemente. Além disso, também
parece contribuir para a predominância do valor semântico de ‘realizar’ o fato de SN 2 remeter,
em geral, a atividades que demandam certo grau de planejamento por parte dos executores (p.e.,
proposta, projeto e campanha), como será discutido mais à frente, ainda neste capítulo.
Conforme já destacado, aspectos contextuais mais amplos ligados à forma como o
estado de coisas é codificado/apresentado parecem ser importantes para entender a emergência
da construção [LEVAR A CABO]. Acreditamos que a avaliação do locutor acerca da
complexidade da situação, bem como a presença de elementos modalizadores no contexto em
que se insere o enunciado com [LEVAR A CABO], permite compreender melhor a expansão
dessa construção.
Por “avaliação do estado de coisas”, entendemos a inserção de elementos explícitos que
caracterizam o grau de dificuldade do evento, em especial adjetivos qualificativos ligados ao
complemento direto ou adjuntos adverbiais que sinalizam a dificuldade ou a extensão temporal
exigida. Os exemplos de (6) a (8) ilustram essas possibilidades:
80
(6) Quando caracterizei o meu projecto de «mudança tranquila», pretendi
enfatizar uma visão reformista de sociedade, aplicando-a à autarquia
leiriense. Se alguma coisa sempre caracterizou o PSD foi a recusa,
tanto numa perspectiva doutrinária como no domínio d a acção
prática, da via revolucionária. Mas a tranquilidade a que me refiro
pressupõe firmeza, mais do que diálogo permanente (tão do agrado
de alguns) e capacidade de decidir, mesmo se incomodando
interesses instalados ou
parasitários. Esta tranquilidade é irma gémea da mudança que
pretendo levar a cabo na actividade camarária. (Séc. XX, Corpus
do Português, 19N:Pt:Leira)
(7) Era uma obra muito complicada e seriam precisos alguns meses
para a levar a cabo, o que faria de toda aquela área um autêntico
pandemónio. (Séc. XX, Corpus do Português, 19Or:Pt:Intrv:Pub)
81
Os resultados da tabela 3 sinalizam que, dentre as estratégias de avaliação consideradas,
os indicadores de extensão temporal constituem a única de que os falantes se valeram em todos
os períodos. Embora a frequência token de ocorrências com indicadores de extensão temporal
seja muito aproximada nos três séculos, o fato é que, com o passar do tempo, essa alternativa
se tornou cada vez menos representativa em relação ao universo de dados disponíveis. Por outro
lado, também é notável a alta frequência de adjetivos ou advérbios avaliativos a partir do séc.
XIX, quando eles ocorreram em 49% dos dados (15 tokens), período em que 41% dos dados
(13 tokens) ocorreram sem qualquer elemento avaliativo explícito. No séc. XX, embora ainda
seja alto o índice de adjetivos e advérbios avaliativos (54 tokens = 27%), mais de dois terços
das ocorrências (71%) podem ser consideradas como menos marcadas, pois não apresentam
marcação explícita relativamente ao grau de dificuldade do evento codificado por [LEVAR A
CABO].
Destacamos aqui a redução no índice de elementos avaliativos ao longo do tempo. Esse
fenômeno parece indicar o relaxamento de uma restrição inicial de [LEVAR A CABO], que
gradativamente expandiu seus contextos de uso, na medida em que incorporou o significado de
‘realizar’ (cf. tabela 2) e diminuiu sua co-ocorrência com expressões qualitativas. Esse
relaxamento das restrições contextuais pode ser observado também no que diz respeito à
presença/ausência de elementos modalizadores, um outro aspecto importante para a
compreensão da trajetória de [LEVAR A CABO]. Exemplos de contextos marcados pela
presença de modalizadores, mais frequentemente verbos ou advérbios, são apresentados a
seguir, em (9) e (10):
82
Os elementos destacados apresentam leitura modal, situando-se no domínio da
possibilidade. No primeiro caso (9), sobressai a modalidade interna ao falante; já no segundo
caso (10), a leitura epistêmica é mais evidente. Também é possível identificar várias ocorrências
sem modalização explícita, tal como (11):
Com o passar do tempo, a frequência token das ocorrências com modalização explícita
aumentou, saindo de 1 token no séc. XVII para 13 tokens no séc. XIX e 22 tokens no séc. XX.
Contudo, tendo em vista o total de ocorrências de cada período, pode-se dizer que essa
estratégia passou a ser usada com uma proporção cada vez menor pelos falantes, que
empregaram-na em apenas 11% dos dados no séc. XX (22 tokens) – período em que os
contextos sem modalização explícita chegaram a 179 tokens (89%). Isso possivelmente reflete
a já referida perda de restrições originalmente associadas a [LEVAR A CABO].
Apresentadas as principais propriedades semânticas e discursivas mais gerais da
construção [LEVAR A CABO] na voz ativa, vamos proceder, nas próximas seções, a uma
análise mais atomística, focalizando as características do sujeito (SN 1 ) e do complemento direto
(SN 2 ). A análise desses constituintes se faz necessária para mapearmos a trajetória de
desenvolvimento de [LEVAR A CABO] e para verificarmos de que maneira essa construção
se relaciona com construções mais esquemáticas do português, a exemplo da CMC e da
Construção Resultativa.
83
6.2 Propriedades do Sujeito
(14) Assim juro aqui, onde a nossa cidade foi desonrada e insultada,
diante da santa imagem que nos ouve... aqui onde está o melhor do
meu coração, e onde eu quisera ter mil vidas para asselar com elas a
minha fé e o meu juramento - juro que hei-de levar a cabo esta
empresa, desafrontar os nossos vizinhos e amigos, vingar a nossa
injuria e restituir a liberdade ao povo oprimido. (Séc. XIX, Corpus
do Português, 18:Garrett:Arco)
84
De maneira geral, a omissão do sujeito se deve à tendência dos falantes de desativarem
partes da construção cujo conteúdo possa ser facilmente acessado pelos interlocutores. Esse
acesso pode ser viabilizado pela retomada de conhecimentos prévios ou por meio de pistas
presentes no próprio enunciado. Em (13), o que explica a ausência do sujeito é a alta
acessibilidade do seu referente, sublinhado no período anterior. Já em (14), a identificação do
sujeito decorre das marcas de número e pessoa presentes no verbo auxiliar.
A interpretação dos índices de sujeitos nulos requer bastante cautela, por duas razões
principais. Em primeiro lugar, relembramos que a amostra aqui analisada se constitui de textos
produzidos tanto em português brasileiro quanto em português europeu, variedades que
apresentam tendências distintas quanto à expressão do sujeito pronominal (DUARTE, 2012;
2018). Além disso, é significativo o número de ocorrências em que [LEVAR A CABO] está
encaixado numa oração matriz, caracterizando-se, portanto, pelo uso de forma verbal não finita
e, consequentemente, com sujeito nulo.
c) Pronome relativo:
d) Sujeito oracional:
85
REALIZAÇÃO DO SUJEITO SÉC. XVII SÉC. XIX SÉC. XX
Categoria Vazia 1 = 100% 23 = 74% 121 = 60%
SN pleno -- 5 = 16% 61 = 30%
Pronome relativo -- -- 8 = 4%
Sujeito oracional -- 3 = 10% 12 = | 6%
Total 1 31 202
Tabela 4 – Realização/expressão do sujeito
Destaca-se, em primeiro lugar, o alto índice de sujeitos nulos, ou seja, constituintes que
fazem parte da estruturação da sentença, mas não têm realização fonológica. Esse tipo de sujeito
aumentou sua frequência token em 5 vezes, entre os sécs. XIX e XX, quando ocorreu 121 vezes
(60% dos dados do período). Contudo, destaca-se mais ainda o aumento significativo no
número de ocorrências com sujeito pleno, que saltou de apenas 5 tokens no séc. XIX para 61
tokens no séc. XX, um aumento de 12 vezes. Por sua vez, a taxa de frequência de sujeitos
oracionais apresentou uma leve flutuação nos dois últimos períodos (3 para 12 tokens), ao passo
que os pronomes relativos começam a ocorrer na função de sujeito somente no séc. XX. Tudo
isso indica que, com o passar do tempo, a categoria SN 1 da construção ativa com [LEVAR A
CABO] se expandiu, passando a recrutar categorias sintáticas que não ocorriam ali inicialmente .
Além da configuração morfossintática do sujeito associado à construção ativa com
[LEVAR A CABO], também analisamos as propriedades de número e pessoa desse
constituinte. A tabela 538 apresenta os resultados dessa análise:
38A tabela 5 apresenta um número menor de ocorrências justamente porque foram desconsiderados todos os casos
em que [LEVAR A CABO] ocorre como sujeito oracional.
86
externo é capaz de realizar. Chama a atenção também o aumento no número de ocorrências com
sujeitos de 1.ª pessoa do singular e, sobretudo, 3.ª pessoa do plural, entre os sécs. XIX e XX.
Por fim, sujeitos na 1.ª pessoa do singular e na 1.ª do plural apresentaram exatamente o mesmo
número de tokens nos sécs. XIX e XX (1 token cada).
Duas outras propriedades se mostraram muito importantes para a caracterização do
sujeito de [LEVAR A CABO]. São elas os traços de animacidade e papel temático. Quanto à
animacidade, foram atestadas as seguintes possibilidades:
a) Animado humano:
(17) O mais importante fundador desta escola foi William Le Baron
Jenney, que levou a cabo o primeiro edifício alto com estrutura de
aço, o Home Life Insurance Building. (Séc. XX, Corpus do
Português: 19Ac:Pt:Enc)
b) Coletivo humano:
(18) Todo esse contexto levou a Espanha a uma crise constitucional
sem precedentes em sua história e logo ficou claro que a esquerda
seria vitoriosa frente àquela caótica situação. Por isso, a monarquia,
a burguesia, a aristocracia, o clero, o exército e os grandes
proprietários de terras uniram-se em torno de um
objetivo: impedir a ascensão esquerdista. Para tanto, levaram a
cabo, secretamente, um golpe militar, cujo objetivo era manter
formalmente a monarquia e instalar na Espanha uma ditadura.
Assim foi feito e, em 1923, o general Miguel Primo de Rivera
assumia a chefia do governo golpista. (Séc. XX, Corpus do
Português, 19Ac:Br:Enc)
87
d) Evento/situação:
(20) A saudade é vista como vivência capaz de levar a cabo a
recuperação e evocação do que já se perdeu (infância) ou mesmo
do que, em vida, não é experienciável. (Séc. XX, Corpus do
Português, 19Ac:Pt:Enc)
Por outro lado, coletivos humanos, como em (22), descrevem categorias organizadas a
partir de traços sociais específicos, de tal modo que as propriedades da classe sobressaem em
detrimento das especificidades dos indivíduos que a constituem:
Podemos dizer, portanto, que sujeitos humanos individuados tendem a ser mais
referenciais do que sujeitos coletivos humanos, que normalmente designam instituições
governamentais, categorias profissionais, grupos religiosos etc. Disto decorre que as cenas que
envolvem sujeitos humanos apresentam maior grau de agentividade e controle, visto que a
responsabilidade por um determinado estado de coisas é definida com maior precisão.
Já os referentes concretos não animados, como em (19), desempenham função
meramente instrumental, e ocorrem em contextos onde os verdadeiros agentes não aparecem.
Muito possivelmente, trata-se de uma relação metonímica estabelecida entre o agente e o
instrumento do qual se vale para desempenhar uma tarefa.
88
Por fim, sujeitos eventivos, a exemplo de (20), descrevem situações abstratas que o
falante concebe como sendo a causa do novo estado atribuído a SN 2 . Nesse caso, o falante
estabelece uma relação de causa-efeito entre um evento e o que acontece com o participante
afetado/efetuado.
Na tabela 6, apresentamos a distribuição dos dados em relação ao parâmetro
animacidade do sujeito:
Tanto no século XIX quanto no século XX, predominam, de forma mais saliente,
sujeitos humanos individuados. Contudo, destacam-se também os sujeitos coletivos humanos,
que apresentaram o maior crescimento da categoria em termos de frequência token, entre os
sécs. XIX e XX. Destacamos também que os sujeitos eventivos só começam a aparecer no séc.
XX, embora de modo tímido (7 tokens), indicando um possível processo de expansão sintática.
Por sua vez, o índice de sujeitos concretos ficou estável nos dois últimos períodos.
O traço de animacidade do sujeito está fortemente vinculado ao papel temático que lhe
é atribuído. Contudo, isso não significa que todos os sujeitos animados vão receber o mesmo
papel temático. O sujeito da construção ativa com [LEVAR A CABO] pode desempenhar os
seguintes papéis:
a) Agente:
(23) O arqueólogo inglês Flinders Petrie foi o primeiro arqueólogo
a levar a cabo pesquisas arqueológicas sistemáticas e de carácter
científico (1880), a quem se seguiram outros investigadores. (Séc.
XX, Corpus do Português, 19Ac:Pt:Enc)
b) Instrumento:
(24) Os satélites da Orbiting Astronomical Observatory (OAO)
forneceram muita informação sobre a emissão cósmica ultravioleta.
O OAO-1, lançado em 1966, falhou após três dias em órbita; no
entanto, o OAO-2, colocado em órbita em 1968, operou durante
quatro anos, mais três anos do que o tempo previsto, e levou
89
a cabo as primeiras observações ultravioletas de uma supernova e
também de Úrano. (Séc. XX, Corpus do Português: 19Ac:Pt:Enc)
c) Fonte:
(25) Entretanto, um novo grupo, constituído parcialmente por antigos
colaboradores de A Águia, juntou-se para editar a revista Seara Nova
(1921), que pretendia marcar uma intervenção efectiva na vida
portuguesa que o saudosismo não conseguia levar a cabo. (Séc.
XX, Corpus do Português, 19Ac:Pt:Enc)
Embora o papel temático de Agente seja o mais comum nos sécs. XIX e XX, a
frequência token de sujeitos Fonte ou Instrumento cresceu proporcionalmente mais nesse
período (algo em torno de 11 vezes).
Como já vimos, o papel temático de agente aplica-se a entidades animadas e que detêm
o controle da ação, como em (26):
Os sujeitos agentivos representam apenas uma subparte dos sujeitos causativos, que
compreendem tanto seres animados quanto inanimados. Por sua vez, sujeitos Fonte ou
Instrumento indicam a origem ou ponto de partida de um evento, sobre o qual não têm controle.
O exemplo (27) ilustra essa situação. No caso, a expressão destacada opera basicamente no
sentido de viabilizar a realização de um conjunto específico de tarefas:
90
(27) A construção da linha férrea do porto da Beira à fronteira inglesa,
as estradas, telégrafos, melhoramentos dos portos, saneamento de
pântanos, etc., todos os compromissos civilizadores a realizar em
obediência ao convénio anglo-português, de tal maneira exigem
milhões ao erário público que as receitas do País
amontoadas não dariam para levar a cabo, dentro do curto prazo
que o convénio fixa, tão extraordinários empreendimentos. (Séc.
XIX, Corpus do Português: 18:Almeida:Gatos5)
Ao longo desta seção, procuramos demonstrar que uma análise detalhada das principais
propriedades do objeto direto da construção [SN 1 LEVAR A CABO SN 2 ] permite depreender
aspectos relevantes acerca da trajetória de expansão dessa unidade. Ressaltamos, sobretudo, a
importância dos traços gramaticais de definitude e número, assim como o componente
semântico concreto ou abstrato de SN2 .
O controle do traço de definitude do objeto justifica-se na medida em que esse parâmetro
está diretamente associado à transitividade da sentença e, assim, permite conceber mais
claramente o modo como se dá a execução/transferência de uma ação (cf. HOPPER;
THOMPSON, 1980). Complementos individuados sinalizam maior grau de afetação do que
complementos coletivos ou abstratos; consequentemente, caracterizam também maior
completude da ação. Portanto, uma análise detalhada dos tipos de complemento que
predominam na construção ativa com [LEVAR A CABO] pode revelar aspectos interessantes
acerca do evento representado por essa unidade construcional.
A caracterização das ocorrências em relação ao traço de definitude do objeto direto tem
base morfológica e semântica, e considerou o artigo, pronome ou outro elemento dêitico que
contribui para a delimitação da extensão semântica do núcleo nominal. As seguintes
possibilidades foram identificadas nos dados:
a) definido singular:
(28) Indo de encontro ao objectivo principal da Associação de
Voleibol [...], o Clube de Montanhismo vai levar a cabo, de 19 a 27
de Julho, a acção "Iniciação no Montanhismo". Um acampamento
de Verão em Vila Soeiro, futuro Centro de Apoio ao Montanhismo.
(Séc. XX, Corpus do Português, 19N:Pt:Beira)
91
b) definido plural:
(29) O piloto de ensaio alemão Thomas Reiter, de 36 anos, foi
seleccionado por a Agência Espacial Europeia ESA para participar
em a próxima missão euro-russa Euromir 95, que terá lugar em
Agosto próximo. O seu substituto, que estará preparado para tomar o
seu lugar em caso de problema, será o físico sueco Christer
Fuglesang. Reiter irá levar a cabo, juntamente com os seus colegas
russos Iuri Gidsenko e Serguei Avdeiev, 40 experiências científicas.
(Séc. XX, Corpus do Português, 19N:Pt:Público)
c) indefinido singular:
(30) As pesquisas apontavam esmagadora vitória de Corazón, mas
Marcos levou a cabo uma flagorosa fraude eleitoral e proclamou-
se o vencedor... (Séc. XX, Corpus do Português, 19Ac:Br:Enc)
d) indefinido plural:
(31) A islamização imposta tem ameaçado a sua identidade cultural e
milhares de nubas morreram com a guerra civil do Sudão. Este povo
constrói campos em socalcos nas encostas das montanhas Nuba, a
oeste do Nilo Branco. No final dos anos 80 e princípio dos anos 90,
o exército levou a cabo vários massacres, com «desaparecimentos »
forçados e execuções sumárias. (Séc. XX, Corpus do Português,
19Ac:Br:Enc)
e) Genérico:
(32) Tão logo as hostilidades dissiparam-se, os franceses passaram
a investir em sua frota e levaram a cabo expedições colonizadoras.
A Coroa partiu em direção à América e apoderou-se da Terra Nova e
do Canadá, fundando a cidade de Quebec, seu primeiro núcleo
metropolitano, em 1608. Entretanto, grande parte das áreas
americanas já haviam sido tomadas por espanhóis, portugueses e
ingleses, sobrando apenas algumas regiões de pouco interesse
econômico. (Séc. XX, Corpus do Português, 19Ac:Br:Enc)
92
DEFINITUDE SÉC. SÉC. SÉC.
DO SN 2 XVII XIX XX
Definido singular 1 = 100% 25 = 81% 74 = 37%
Definido plural -- 3 = 10% 33 = 16%
Indefinido singular -- 1 = 3% 52 = 26%
Indefinido plural -- -- 9 = 4%
Genérico -- 2 = 7% 34 = 17%
Total 1 31 202
Tabela 8- Definitude do objeto direto
O único tipo de objeto que ocorre em todos os períodos é o tipo definido singular.
Embora ele seja o mais frequente nos sécs. XIX e XX, destacamos que os objetos indefinidos
e no singular, seguidos dos genéricos, são os que exibiram maior aumento de frequência token.
Os objetos dos tipos definido plural também aumentaram a sua frequência, porém de modo
mais discreto. Além disso, apenas no séc. XX aparecem ocorrências com objetos indefinidos e
no plural. Trata-se, portanto, de um possível processo de expansão morfossintática da
construção ativa com [LEVAR A CABO].
Uma restrição importante no que diz respeito à construção [LEVAR A CABO] na
estrutura ativa é a impossibilidade de complementos objetos diretos que codificam referentes
animados. Essa restrição pode ser atribuída ao significado construcional como um todo, que
aparentemente se vincula a complementos que possam ser afetados em sua totalidade.
Excluídos, portanto, os referente animados, os elementos que nucleiam o complemento direto
podem ser:
a) nomes concretos:
(33) Aquilo é bonito, e acabou-se. No soneto, como os fizeram
Petrarca ou Santa Teresa, Du Bellay ou Shakespeare, a liga em que
se aprisiona a essência de poesia é sutil e engenhosamente intelectual.
Todos os bons sonetos são obras-primas de engenho discursivo,
tocadas de um raio de poesia. Puzzle, envernizado de sonho. Gaiolas
dialéticas nas quais, pelo menos, parecem revolutear penugens do
pássaro que fugiu, - o tal pássaro fantástico da poesia verdadeira.
Engenho, eis o que me tem faltado para levar a cabo a minha obra-
prima. Também tem faltado oportunidade. (Séc. XX, Corpus do
Português, 19:Fic:Br:Amaral:Memorial)
b) nomes abstratos:
(34) Na qualidade de presidente republicano, levou a cabo uma
política liberal de reconstrução do sul. (Séc. XX, Corpus do
Português, 19Ac:Pt:Enc)
93
c) nominalizações:
(35) Cada vez mais fortes, os movimentos revolucionários, ainda que
levassem a cabo disputas entre si, organizavam-se e tornavam
iminentes ações duradouras. (Séc. XX, Corpus do Português,
19Ac:Br:Enc)
95
GRUPO A
ITEM LEXICAL39 SÉC. XVII SÉC. XIX SÉC. XX TOTAL
exposição (de pinturas) -- 1 -- 1
figura -- 1 -- 1
conferência (‘tipo de evento’) -- 1 -- 1
obra -- 1 5 6
golpe -- -- 9 9
ataque -- -- 5 5
guerra -- -- 2 2
reforma -- -- 5 5
estudo -- -- 5 5
programa -- -- 6 6
campanha -- -- 6 6
atividade -- -- 2 2
assalto -- -- 1 1
trabalho -- -- 4 4
tarefa -- -- 2 2
teste -- -- 3 3
luta -- -- 1 1
pesquisa -- -- 2 2
ato -- -- 1 1
experiência -- -- 5 5
negócio -- -- 1 1
carreira -- -- 1 1
fraude -- -- 1 1
intento -- -- 1 1
esforço -- -- 1 1
processo -- -- 1 1
treino -- -- 1 1
colônia -- -- 1 1
política -- -- 3 3
reivindicativa -- -- 1 1
recolha -- -- 2 1
Cruzada -- -- 1 1
obra-prima (soneto) -- -- 1 1
dia (D) -- -- 1 1
entremez (‘história de teatro’) -- -- 1 1
independência -- -- 1 1
atrocidade -- -- 1 1
massacre -- -- 2 2
inquérito -- -- 2 2
aspecto -- -- 1 1
moção (‘documento’) -- -- 1 1
edifício -- -- 1 1
voo -- -- 1 1
purga -- -- 1 1
função -- -- 1 1
quimiossíntese -- -- 1 1
Total (45) -- 4 95 99
Tabela 10 – Referentes concretos
39 Aqui e nas demais tabelas, os itens lexicais foram grafados de acordo com a ortografia oficial e m vigor no Brasil,
e não exatamente como nos textos de onde foram extraídos.
96
De acordo com os dados da tabela 10, no séc. XIX, era baixo o índice de objetos diretos
associados a referentes concretos. Nesse período, foram atestadas apenas 4 tokens, quais sejam:
exposição, figura, conferência e obra, todos remetendo ao resultado de uma atividade
complexa.
No séc. XX, a frequência de itens lexicais associados a referentes concretos no slot SN2
cresceu significativamente, passando de 4 para 95 tokens − um crescimento de quase 20 vezes.
Apenas obra se fez presente nos sécs. XIX e XX, tendo aumentado a sua frequência token nesse
período (de 1 para 5 tokens). Por outro lado, o item golpe é atestado pela primeira vez no séc.
XX, quando apresenta a maior frequência token da categoria (9 tokens).
Um aspecto relevante, e particularmente saliente nos casos em que o núcleo de SN2
descreve referentes concretos, é o fato de a construção [Sn1 LEVAR A CABO Sn2 ] representar
situações télicas e durativas – ou seja, situações que apresentam uma fase de transição óbvia
entre o início e o final, que é bem delimitado. É o que se observa no exemplo (36):
(36) Explico-o como uma prova de granel, das várias tentativas que
Deus houvesse feito, antes de levar a cabo a figura ratona de D.
Quixote. Tinha o Criador, supomos, num alguidar, vários narizes,
bôcas, olhos, cabeleiras postiças e crepes para barbas. E noutro, pés
e mãos, de vários tamanhos [...] umbigos, troncos, figadeiras, e tôdas
as complementares miüdezas da fressura. Distraidamente, o
Altissimo começou então uma estatueta de fantasia, com os primeiros
acessórios que lhe vieram à mão, nos alguidares. Pronta a figura, o
Criador sorriu-se - Está pândega! - pôs-lhe um bigode e pêra velhas
do Sr. Conde de S. Januario, deu-lhe um nariz em que El-Rei D.
Fernando já não fazia gôsto, e, com uma palmadinha nas costas,
empurrou-a jovialmente para a vida. (Séc. XIX, Corpus do
Português, 18:Almeida:Gatos2)
97
GRUPO B
ITEM LEXICAL SÉC. XVII SÉC. XIX SÉC. XX TOTAL
obra 1 -- -- 1
empresa -- 6 -- 6
empreendimento -- 1 -- 1
cometimento -- 1 -- 1
ação -- -- 8 8
massacre -- -- 2 2
matança -- -- 1 1
missão -- -- 1 1
iniciativa -- -- 1 1
tentativa -- -- 1 1
proeza -- -- 1 1
disputa -- -- 1 1
função -- -- 1 1
reforma (‘mudança’) -- -- 1 1
mudança -- -- 1 1
processamento -- -- 1 1
sondagem -- -- 1 1
análise -- -- 1 1
Total = 18 1 8 22 31
Tabela 11 - Referentes que designam ação ou processo
No séc. XIX, foram atestados apenas 3 itens (types) que designam ação ou processo; são
eles: empresa, o item de maior recorrência (6 tokens), empreendimento e cometimento, cada
qual com apenas 1 token. Já no século XX, a produtividade da construção aumentou
significativamente, uma vez que o núcleo do objeto direto se estendeu a 14 novos itens lexicais,
ou seja, um aumento de 11 vezes. Esse ganho de produtividade se traduz no crescimento da
frequência token da construção com nomes denotativos do resultado de ações/processos.
Conforme demonstrado na tabela 11, o item obra (com um sentido mais abstrato) foi o
primeiro a ocorrer como objeto direto da construção ativa com [LEVAR A CABO], já no séc.
XVII. Numa primeira interpretação, poderíamos dizer que esse item teria desempenhado um
papel importante na emergência e consolidação do padrão construcional como um todo; no
entanto, ele não ocorreu nos outros períodos com o mesmo sentido, cedendo espaço, no séc.
XIX, para empresa (‘empreendimento’). Considerando que obra e empresa compartilham
diversas propriedades semânticas, sobretudo por descreverem situações que implicam
planejamento prévio e intencionalidade, uma hipótese possível é a de que a inserção de empresa
como complemento direto se deu por analogia a obra.
98
Os constituintes do Grupo C particularizam-se por descreverem processos mentais, ou
seja, situações caracterizadoras de estados internos dos indivíduos. A relação dos 14 itens
lexicais que partilham essa propriedade é apresentada na tabela 12:
CLASSE C
ITEM LEXICAL SÉC. XVII SÉC. XIX SÉC. XX TOTAL
ambição -- 1 -- 1
drama -- 1 -- 1
doidice -- 1 -- 1
suplício -- 1 -- 1
projeto -- -- 12 12
propósito -- 1 1 2
intento -- 1 2 3
programa -- -- 12 12
objetivo -- -- 1 1
decisão -- -- 1 1
fantasia -- -- 1 1
plano -- -- 3 3
proposta -- -- 2 2
promessa -- -- 1 1
Total (14) -- 6 36 42
Tabela 12 – Referentes que designam processos mentais
Podemos constatar que sintagmas nominais cujos núcleos remetem a processos mentais
já ocorriam como objeto direto no séc. XIX, embora com baixos índices de frequência type e
token (6 itens lexicais distintos, cada qual com apenas 1 ocorrência). Os itens identificados
foram: ambição, drama, doidice, suplício, propósito e intento. No séc. XX, por outro lado,
foram registrados 10 itens lexicais, sendo 8 deles inéditos, já que intento e propósito se
repetiram. Destacam-se, nesse grupo, pelo grau de representatividade, os itens projeto e
programa, que apresentaram 12% de frequência token cada. A frequência token da categoria
aumentou, portanto, em 6 vezes, entre os sécs. XIX e XX.
É interessante destacar também que muitos dos itens relacionados na tabela 12 (como
projeto, propósito, intento, plano e objetivo) remetem a eventos idealizados, cuja realização
não é possível garantir. Eles têm como ponto comum o fato de demandarem uma organização
prévia por parte do executor.
Merece atenção particular o item promessa, que ocorreu uma única vez, e no séc. XX.
Semanticamente, ele está mais próximo de proposta do que de projeto ou programa, os mais
frequentes da categoria. Tal como proposta, o item promessa pressupõe a existência de agentes
moralmente engajados na consecução de algo prometido a outrem, concebido como Meta/Alvo;
99
contudo, a realização daquilo que é proposto/prometido não necessariamente se concretizará.
Esta implicação não está presente nos demais membros da categoria, que, no entanto, também
projetam a concretização do estado de coisas para o futuro.
Situação semelhante é observada em doidice, drama e suplício, que foram atestados no
séc. XIX, embora com apenas 1 token cada. Tais elementos descrevem situações que envolvem
estados habituais ou recorrentes de desordem, conflito ou perturbação mental; mas este traço
também não é compartilhado por todos os membros da Classe C.
Tais aspectos podem ser interpretados em termos do que Bybee (2010) chama de
“analogia local”. Assim, em vez de se expandir a partir dos itens mais frequentes, a categoria
passou a recrutar novos elementos com base em propriedades (sobretudo, semânticas) que tais
elementos compartilham com exemplares previamente estabelecidos na categoria.
Considerando essas analogias mais localizadas, os membros reunidos na categoria C
poderiam ser dispostos num continuum, organizado em função dos seguintes pontos focais:
‘estado interno, ‘planejamento’ e ‘comprometimento’, tal como na figura 1:
GRUPO D
ITEM LEXICAL SÉC. XVII SÉC. XIX SÉC. XX TOTAL
exposição -- 1 -- 1
indignação -- 1 -- 1
maquinação -- 1 -- 1
indagação -- 1 -- 1
operação -- 1 3 4
(re)construção -- -- 2 2
observação -- -- 3 3
revogação -- -- 1 1
dissecação -- -- 1 1
reparação -- -- 1 1
conversação -- -- 1 1
negociação -- -- 2 2
reestruturação -- -- 1 1
resolução -- -- 1 1
agressão -- -- 1 1
repressão -- -- 1 1
renovação -- -- 1 1
regeneração -- -- 2 2
reabilitação -- -- 1 1
recuperação -- -- 1 1
transição -- -- 1 1
investigação -- -- 7 7
adoção -- -- 1 1
alteração -- -- 1 1
declaração -- -- 1 1
liquefação -- -- 1 1
expedição -- -- 1 1
coleção -- -- 1 1
revolução -- -- 2 2
edição -- -- 1 1
Total (30) -- 5 40 45
Tabela 13 – Nominalizações em -ção
A tabela reúne formas derivadas com o sufixo -ção, as quais diferem entre si por
apresentarem sentidos ligeiramente diferente, que se afastam em maior ou menor grau das
propriedades típicas das nominalizações. Como mostram Santos; Figueiredo (2018, p. 174-
199), sob o rótulo de nominalização, as formas derivadas com o acréscimo do sufixo -ção
101
podem indicar evento, resultado ou entidade. As formações que descrevem eventos/resultados
são formações deverbais constituídas a partir da adjunção do sufixo -ção a uma base verbal e,
por consequência, requerem argumento interno com papel temático semelhante ao do
argumento interno do verbo de base. Além disso, manifestam, de forma transparente, os traços
aspectuais de duração e telicidade, que contribuem para a interpretação do item lexical
resultante da combinação entre V-ção. Constituem, portanto, verdadeiras nominalizações.
Por outro lado, as formações em -ção que descrevem entidades não selecionam
argumento, são modificadas apenas por adjuntos adnominais e não exibem traços de
dinamicidade, duração e telicidade (op. cit., p. 177).
Destaca-se, na tabela 13, a predominância de itens lexicais que expressam evento, tais
como indagação, reparação e renovação. Seguem-se as formações que indicam entidade, a
exemplo de exposição e coleção, e, por fim, as que indicam resultado, como liquefação e
resolução. Há também itens com leitura ambígua, como é o caso de adoção e indagação.
O ponto mais importante a destacar no que respeita às nominalizações é o aumento
expressivo na produtividade desse grupo de itens lexicais, que, do século XIX para o século
XX, aumentou em 8 vezes a sua frequência token (de 8 para 40).
A comparação resumida da frequência token de cada uma das quatro classes
consideradas até aqui fornece evidências favoráveis a uma hipótese de expansão mais
semanticamente localizada da construção ativa com [LEVAR A CABO], entre os séculos XIX
e XX. É o que demonstra a tabela 14:
103
7. A CONSTRUÇÃO PASSIVA [SN1 (aux.) LEVAR PP A CABO (SPrep)]
Assim como na construção ativa, a construção passiva [SN 1 (aux.) LEVARPP A CABO
(SPrep)] pode assumir os significados básicos de ‘concluir’ e ‘realizar’, a depender do contexto
em que se insere, como exemplificam (1) e (2):
(1) O estudo sobre a situação nada brilhante do nosso país foi levado a
cabo por um organismo afecto à própria comunidade. (Séc. XX,
Corpus do Português, 19N:Pt:Jornal)
Usos como esse atribuem certo protagonismo ao indutor da cena, muito embora este
participante não desempenhe função tópica na construção passiva. De fato, o participante mais
proeminente é o sujeito, que codifica a entidade afetada/efetuada; contudo, essa entidade
afetada/efetuada participa de um estado de coisas cuja realização requer alto grau de
engajamento por parte do executor, durante todas as etapas do processo. Tal particularidade
pode explicar a razão pela qual quase todas as ocorrências com o significado básico de
‘instaurar’ apresentam SPrep expresso.
Esses valores semânticos todos podem se manifestar tanto nas construções passivas com
verbo auxiliar (prototípicas) quanto nas construções passivas sem verbo auxiliar. Na tabela 1,
apresentamos a distribuição das ocorrências da construção passiva com [LEVAR A CABO] de
acordo com o valor semântico da construção:
105
VALOR
SÉC. XIX SÉC. XX
SEMÂNTICO
Realizar 1 = 100% 66 = 59%
Concluir -- 5 = 4%
Instaurar -- 27 = 24%
Ambíguo -- 15 = 13%
Total 1 113
Tabela 1 - Valor semântico da construção passiva com [LEVAR A CABO]
Ainda assim, nos dados passivos mantém-se a inferência de que a atividade atribuída ao
participante indutor é complexa e/ou de difícil consecução.
106
7.2 PROPRIEDADES DO SN-SUJEITO
Nesse exemplo, o termo plantação corresponde a uma entidade concreta. Essa entidade
teve seu estado físico alterado entre dois estágios de tempo t1 e t2 , devido à ação de um agente
externo. Os dois referentes que correspondem ao papel semântico de agente são identificados
por meio de diferentes pistas: Ustler é associado a essa função graças às informações do
contexto precedente, ao passo que Jaime é apresentado como agente por circunstancialização
(VIERA; SANTOS; KROPF, 2009).
É possível identificar também, nos nossos dados, diversas ocorrências em que o sujeito
não passa por uma transformação, mas recebe o papel temático de meta, como em (6):
107
Aqui, a “generalização de os novos currículos” é mais adequadamente interpretada
como uma meta a ser alcançada, constituindo um participante potencialmente efetuado (e não
meramente afetado); ou seja, um participante que passa a existir por um fator externo.
A tabela 2 distribui as ocorrências com base no modo como a ação do indutor da cena
se impõe sobre participante representado pelo sujeito passivo:
Os resultados da tabela 2 indicam que, na maioria das vezes, a construção passiva com
[LEVAR A CABO] ocorre com sujeito efetuado, que apresentou frequência de 69% no séc. XX
(78 tokens). Assim, parece confirmar-se a hipótese de que a construção passiva com [LEVAR
A CABO] tende a ocorrer mais frequentemente com sintagmas nominais que descrevem o
resultado de uma ação atribuída ao participante indutor.
Além disso, o SN-Sujeito também admite certa flexibilidade no que se refere ao traço
de definitude. A análise dos dados permitiu a identificação das seguintes possibilidades:
a) Definido singular:
(7) Foucault nasceu e foi educado em Paris e tornou-se físico do
Observatório de Paris em 1855. Até
1847, o seu trabalho científico foi levado a cabo em colaboração
com Armand Fizeau, com quem tirou as primeiras fotografias
detalhadas da superfície do Sol em 1845. (Séc. XX, Corpus do
Português, 19Ac:Pt:Enc)
b) Indefinido singular
(8) Uma das primeiras experiências gravitacionais foi levada a cabo
por Nevil Maskelyne, em 1774, e envolvia a medida da atracção do
Monte Schiehallion (Escócia) sobre um peso de chumbo. (Séc. XX,
Corpus do Português, 19Ac:Pt:Enc)
108
A distribuição dos dados quanto ao traço definitude do sujeito é apresentada a seguir:
a) Nome concreto:
(9) Uma das primeiras experiências gravitacionais foi levada a cabo
por Nevil Maskelyne, em 1774, e envolvia a medida da atracção do
Monte Schiehallion (Escócia) sobre um peso de chumbo. (Séc. XX,
Corpus do Português, 19Ac:Pt:Enc)
109
b) Nome abstrato:
(10) _terrorismo_ Crime que consiste na prática de crimes contra a vida,
integridade física ou liberdade das pessoas, segurança de transportes e
comunicações, de sabotagem, ou que implique o emprego de explosivos
ou meios incendiários, com o intuito de prejudicar a integridade e a
independência nacionais, impedir ou subverter o funcionamento das
instituições do Estado, condicionar a acção das autoridades públicas, ou
intimidar parte ou toda a população. Este tipo de violência sistemática,
levada a cabo na prossecução de objectivos políticos, ideológicos ou
religiosos, é frequentemente organizada por pequenos grupos de
guerrilha ou grupos militares independentistas, como forma de
pressionar as autoridades. (Séc. XX, Corpus do Português,
19Ac:Pt:Enc)
c) Nominalização:
(11) _neo-racionalismo_ Movimento estético que teve origem em
Itália, nos anos 60, rejeitando as preocupações funcionalistas e
tecnológicas do modernismo, advogando uma abordagem racionalista
do design. Desenvolveu-se à luz de
uma reavaliação despreconceituada da obra de Giuseppe Terragni,
levada a cabo por Aldo Rossi. (Séc. XX, Corpus do Português,
19Ac:Pt:Enc)
No séc. XX, 75 tokens (66% dos dados) apresentaram sujeitos encabeçados por nomes
concretos. Destacaram-se também, nesse período, as nominalizações, com 27 tokens (24%), e
os nomes abstratos (eventivos), que ocorreram 11 vezes (10%). Considerando que o único dado
do séc. XIX apresentou sujeito concreto, temos, nos resultados da tabela 4, indícios de um
processo de expansão da categoria do sujeito passivo de [LEVAR A CABO].
Além disso, como já demostramos no estudo do objeto direto da construção ativa (cf.
capítulo 6, seção 6.3), uma análise mais fina dos itens lexicais que ocorrem como núcleos do
SN que descreve o participante afetado/efetuado permite depreender mais precisamente a
110
expansão desse slot. Assim, os itens lexicais que funcionam como núcleos do sujeito passivo
também foram agrupados de acordo com suas propriedades semânticas. A análise viabilizou o
estabelecimento dos seguintes grupos: Grupo A (referentes concretos), Grupo B (referentes
abstratos e processos mentais) e Grupo C (nominalizações com o sufixo -ção). Nas tabelas a
seguir, relacionamos todos os membros desses grupos, já discutidos no capítulo anterior.
A tabela 5 reúne os núcleos nominais com referentes concretos:
111
ITEM LEXICAL SÉC. XIX SÉC. XX TOTAL
empresa 1 -- 1
trabalho -- 7 7
tentativa -- 8 8
ação -- 4 4
estudo -- 3 3
golpe -- 3 3
pesquisa -- 2 2
inquérito -- 2 2
missão -- 2 2
campanha -- 2 2
reforma -- 2 2
regulamento -- 2 2
política -- 3 3
transferência -- 2 2
ato -- 1 1
tarefa -- 1 1
carreira -- 1 1
comércio -- 1 1
protesto -- 1 1
6º open de parapente -- 1 1
Jihad -- 1 1
crise -- 1 1
processo -- 1 1
situação -- 1 1
ofensiva -- 1 1
técnica -- 1 1
movimento -- 1 1
feito -- 1 1
massacre -- 1 1
guerra -- 1 1
atentado -- 1 1
insurreição -- 1 1
violência -- 1 1
extermínio -- 1 1
experiência -- 1 1
travessia -- 1 1
travessia -- 1 1
referendo -- 1 1
empreendimento -- 1 1
fortalecimento -- 1 1
amostragem -- 1 1
revolta -- 1 1
combate -- 1 1
sondagem -- 1 1
nascimento -- 1 1
ataque -- 1 1
limpeza -- 1 1
bloqueio -- 1 1
Total = 49 1 75 76
Tabela 5 – Sujeitos com referentes concretos
112
O Grupo A é o que apresenta o maior número de itens lexicais distintos (49). Neste
conjunto, destaca-se a frequência do item tentativa, que apresentou 8 tokens. Assim como o
elemento mais frequente deste grupo na voz ativa (golpe), o item tentativa descreve um
processo planejado, não pontual e que demanda algum esforço por parte do executor.
Como demostra a tabela 6, o Grupo B, que reúne núcleos abstratos, inclusive os que
descrevem processos mentais, compreende um número significativamente mais reduzido de
itens lexicais distintos e, portanto, apresenta uma frequência type menor. Destacam-se, nessa
categoria, os nomes eventivos:
GRUPO B
Item lexical Séc. XIX Séc. XX Total
esforço -- 1 1
isso (anáfora) (‘processo’) -- 1 1
questão (cf. questão política) -- 1 1
repúdio -- 1 1
raciocínio -- 1 1
ideia -- 1 1
promessa -- 1 1
esforço -- 1 1
programa -- 1 1
política -- 1 1
feito (‘grande realização’) -- 1 1
Total = 11 -- 11 11
Tabela 6 – Referentes abstratos
A tabela 6 indica que, embora a frequência type do Grupo B seja relativamente alta (11),
nenhum item lexical se destaca. Assim como observado com o objeto direto da voz ativa (cf.
cap. 6, tabela 9, p. 94), referentes abstratos tendem a ocorrer poucas vezes na função de
participante afetado/efetuado.
Por fim, a tabela 7 apresenta todas as nominalizações com o sufixo -ção, que ocorreram
como núcleo do sujeito da construção passiva:
113
Item lexical Séc. XIX Séc. XX Total
(re)avaliação -- 2 2
execução -- 2 2
anexação -- 1 1
organização -- 1 1
irrigação -- 1 1
publicação -- 1 1
nacionalização -- 1 1
generalização -- 1 1
plantação -- 1 1
introdução -- 1 1
desflorestação -- 1 1
votação -- 1 1
discriminação -- 1 1
perseguição -- 1 1
matematização -- 1 1
investigação -- 1 1
regionalização -- 1 1
revolução -- 1 1
intervenção -- 1 1
coordenação -- 1 1
administração -- 1 1
seleção -- 1 1
coletivização -- 1 1
abstenção -- 1 1
(auto)informação -- 1 1
Total = 25 -- 27 27
Tabela 7 – Nominalizações em -ção
Os dados indicam que, embora o Grupo C apresente uma grande quantidade de itens
lexicais distintos (25), cada um desse itens ocorreu, em média, uma única vez. Não há, portanto,
um type que se destaque em relação aos demais em termos de frequência token, como ocorre
no Grupo A.
Esses três grupos − referentes concretos (Grupo A), referentes abstratos / processos
mentais (Grupo B) e nominalizações com –(ç)ão (Grupo C) − foram organizados na tabela a
seguir, em função de sua frequência de uso:
114
Em suma, os resultados da tabela 8 reiteram algumas tendências observadas no estudo
do complemento direto da construção ativa (cf. tabela 14, p. 106), que remete ao mesmo papel
participante. Assim, os itens do Grupo A (referentes concretos), que apresentam índice de 46%
na construção ativa, ocorrem em 67% dos casos na voz passiva. Os itens do Grupo B (eventos
e processos mentais), que têm representativid ade de apenas 26% na voz ativa (séc. XX),
ocorreram em 9% dos casos na voz passiva. Por outro lado, com relação ao Grupo C
(nominalizações), não identificamos diferenças relativamente à construção ativa, pois, em
ambos os casos, as nominalizações com -ção ocorrem em 25% dos casos, em média.
115
Além disso, nos referidos exemplos, tal como propõe Castilho (2010, p. 473), as
sentenças passivas ocorrem em contextos onde o participante afetado/efetuado já é conhecido
dos interlocutores, tendo sido apresentado anteriormente no próprio texto.
Deste modo, a demoção do agente na construção passiva não implica que o participante
indutor não possa ser recuperado/acessado em menor ou maior grau a depender das informações
disponíveis no enunciado ou de inferências autorizadas por outros constituintes, como
circunstanciais de modo ou tempo (cf. VIEIRA; SANTOS; KROPF, 2019). O exemplo (14)
ilustra bastante bem essa possibilidade:
(14) Com efeito, até 1984, a SBN era uma sociedade técnica científica.
A partir desse ano, alguns nefrologistas-empresários de diálise
perceberam a necessidade de introduzir um componente sindical dentro
dela, com o objetivo de melhor negociar com o INPS os preços do
procedimento, já que o governo era o comprador único desses serviços.
A legitimação técnica dessa filosofia passou pela criação
do Departamento de Defesa Profissional, pela primeira reforma do
Estatuto (que foi levada a cabo na minha gestão) etc. A SBN tornava-
se assim uma sociedade híbrida (científica e sindical). (Séc. XX, Corpus
do Português, 19Or:Br:Intrv:Web)
Embora não haja agente da passiva, o circunstancial de tempo “na minha gestão”
permite entender que o responsável pela “reforma do Estatuto” foi o próprio enunciador, que,
à época do ocorrido, era o gestor da “sociedade técnica científica”.
A tabela 9 apresenta a distribuição dos dados tendo em vista a variável
“realização/apagamento do SPrep”:
a) Definido singular:
(15) O Ceará foi pioneiro em dois momentos históricos importantes do
Brasil: foi a primeira província a adotar a liberdade aos escravos e
uma das primeiras a reconhecer a República no Brasil. Mais
modernamente, o Estado do Ceará obtém atenção nacional em virtude
da atuação do ex-governador Ciro
Gomes. Mantendo as diretrizes da política levada a cabo pelo seu
antecessor, Tasso Jereissati, ele consegue reduzir para trinta e dois
por cento a taxa de mortalidade infantil (o que lhe garante um
prêmio da UNICEF) e mantém o Ceará com o maior nível de
crescimento entre todos os Estados brasileiros. (Séc. XX, Corpus
do Português, 19Ac:Br:Enc)
b) Definido plural:
(16) Sousa Franco, num discurso em que fez um balanço optimista ao
trabalho levado a cabo
pelos organismos do Ministério responsáveis pelo combate à fraude e
evasão fiscais, disse ainda que o Imposto de Selo (cuja eliminação tinha
sido prometida pelo último Governo de Cavaco Silva) «é fundamental
para cobrir operações que facilmente aproveitam as novas formas de
expressão e circulação da riqueza para fugir aos impostos». (Séc. XX,
Corpus do Português, 19Ac:Pt:Expr)
c) Indefinido singular
(17) Carteira de aplicações financeiras representadas por unidades de
participação, que resultam do investimento de capitais privados.
Normalmente, traduzem um investimento diversificado, de forma a
atenuar o risco, sendo
a administração levada a cabo por uma sociedade gestora, que de
posse do dinheiro dos investidores decide como aplicá-lo. (Séc. XX,
Corpus do Português, 19Ac:Pt:Enc)
117
d) Genérico
(18) A tarefa de compilar a maioria das farmacopeias é levada a
cabo por especialistas de medicina, química e de farmácia. (Séc. XX,
Corpus do Português, 19Ac:Pt:Enc)
118
(20) Uma cadeia de 37 vulcões, com quase quatro mil metros de altura
e formada há vários milhões de anos, foi descoberta em o Pacífico
Sul, em o âmbito de uma campanha de investigação franco-alemã
levada a cabo por o navio oceanográfico alemão Sonne. (Séc. XX,
Corpus do Português, 19N:Pt:Público)
d) Instrumento:
(24) Uma cadeia de 37 vulcões, com quase quatro mil metros de
altura e formada há vários milhões de anos, foi descoberta em o
119
Pacífico Sul, em o âmbito de uma campanha de investigação franco-
alemã levada a cabo por o navio oceanográfico alemão Sonne. (Séc.
XX, Corpus do Português, 19Ac:Br:Enc)
120
8 RELAÇÕES DE HERANÇA DA CONSTRUÇÃO [LEVAR A CABO]
Uma das hipóteses centrais desta tese é a de que as construções ativas e passivas com
[LEVAR A CABO] constituem padrões construcionais distintos, particularizados, dentre outros
aspectos, pelo tipo de enquadre que impõem à cena e pelos contextos pragmático-discursivos
onde ocorrem. Com o objetivo de melhor respaldar a discussão dessa hipótese, retomamos, a
seguir, as principais características de tais construções:
121
PROPRIEDADE CONSTRUÇÃO ATIVA CONSTRUÇÃO PASSIVA
Valor semântico Realizar = 98% Realizar = 59%
Elemento qualificadores do --
Ausência = 71%
estado de coisas
Contexto de modalização Sem modalização = 89% --
Realização sintática do Categoria vazia = 60% SPrep realizado = 73%
participante indutor
Papel temático do Agente = 94% Agente = 90%
participante indutor
Definitude do participante Definido singular = 37% Definido singular = 81%
afetado/efetuado
Traço semântico
concreto/abstrato do Nome concreto = 52% Nome concreto = 66%
participante afetado/efetuado
Quadro 1 − Propriedades mais salientes de [LEVAR A CABO], no séc. XX
O quadro foi organizado em função dos dados do séc. XX, que corresponde ao período
de maior produtividade da construção [LEVAR A CABO], tanto na estrutura ativa quanto na
passiva. Além disso, são apresentadas apenas as propriedades e resultados mais relevantes para
a discussão aqui empreendida.
Os resultados indicam diversas propriedades compartilhadas pelas construções ativas e
passivas com [LEVAR A CABO]. Um primeiro aspecto consiste no fato de ambas favorecerem
a expressão do valor semântico de ‘realizar’, embora isso seja muito mais saliente para a
construção ativa. Além disso, ativas e passivas também convergem quanto à preferência por
indutores agentivos, que, nos dois casos, alcançaram a marca de 90% de representatividade.
Além disso, ambas as construções tendem a recrutar referentes definidos e individuados para
funcionar como participante afetado/efetuado na cena.
A despeito dessas similaridades, ativas e passivas distinguem-se na conceptualização da
cena, nos contextos em que ocorrem e, portanto, na própria estruturação morfossintática, que é
sensível às funções que lhes são atribuídas pelos falantes. Por fim, embora [LEVAR A CABO]
normalmente codifique situações complexas e/ou de d ifícil consecução, os dispositivos
utilizados para expressar essa propriedades variam a depender da construção de voz envolvida,
já que as ativas aparentemente mobilizam muito mais adjetivos e advérbios qualificadores do
que as passivas, que expressam essa noção por meio da natureza do próprio sujeito ou pela
natureza do participante indutor (SPrep).
Se, por um lado, essas propriedades permitem depreender que as ocorrências ativas e
passivas com [LEVAR A CABO] participam de esquemas construcionais distintos; por outro
122
lado, parece evidente que essas construções se inter-relacionam num nível mais abstrato da rede
linguística, o que captura o fato de ambas potencialmente aludirem ao mesmo estado de coisas.
A figura 1, a seguir, procura representar as principais propriedades compartilhadas por essas
construções, bem como sua associação num nível mais esquemático (onde são apresentados
apenas os traços mais básicos identificados em ambas as construções):
De acordo com a figura 1, o nível mais alto captura todas as correspondências relevantes
entre as construções ativas e passivas com [LEVAR A CABO], tanto no polo da forma quanto
no polo do significado. O esquema formaliza a hipótese de que o frame de [[LEVAR A CABO]
↔ [‘concluir/realizar’]] pode ser instanciado de diversas maneiras pelo falante, o qual tem à
sua disposição certas construções, que relacionam papéis participantes a posições sintáticas
específicas. A título de exemplificação, consideremos o exemplo (1):
Nesse caso, o participante ao qual pode ser atribuído o papel de agente assume a
condição de sujeito (SN1 ) da construção ativa, funcionando como indutor no processo. Este
123
processo também envolve um outro participante (SN 2 ), afetado/efetuado, no papel sintático de
complemento direto. Tal participante corresponde à entidade-alvo.
Ocorre que [LEVAR A CABO] também pode ter os seus papéis participantes perfilados
de outra maneira, como se dá na estrutura passiva, em que a entidade afetada assume uma
função tópica proeminente, e o indutor é topicamente rebaixado. O exemplo (2), que apresenta
uma instância da construção passiva com [LEVAR A CABO], ilustra essas propriedades:
124
Figura 2 − Relação de herança entre [LEVAR A CABO] e a construção causativa com levar
A distinção entre dois tipos de construções passivas com [LEVAR A CABO] − isto é,
dois subesquemas, um com e outro sem verbo auxiliar − justifica-se por diferentes razões,
dentre as quais destacamos o fato de que, a depender do tipo de estrutura, a função sintática de
[LEVAR A CABO] varia.
126
Para além dessas diferenças, as microconstruções da figura 3 também compartilham
similaridades importantes, o que evidencia que elas estão todas ligadas a um mesmo esquema
básico. Em síntese, as seguintes propriedades unem tais microconstruções: (i) atribuição de
topicidade ao argumento interno de [LEVAR A CABO]; (ii) possibilidade de supressão do
SPrep indutor e (iii) queda no grau de transitividade da sentença, em comparação com uma
sentença ativa correspondente (cf. GIVÓN, 1981; CAMACHO, 2006).
Tomando esses aspectos como ponto de partida, examinamos mais detalhadamente a
hipótese de que diferentes propriedades da construção [LEVAR A CABO] foram herdadas da
construção causativa, que também recruta o verbo levar para o slot V, como já demonstrado no
capítulo 3.
40 Nesses pares, as primeiras alternativas são “menos marcadas” em relação às segundas correspondentes.
127
Figura 4 – Relações entre [LEVAR A CABO] e a Construção Causativa
129
7.3 RELAÇÃO ENTRE [LEVAR A CABO] E A CONSTRUÇÃO [PREP CABO DE SN]
130
Tendo em vista a importância dos itens lexicais que preenchem posições especificadas
de uma construção, alguns comentários sobre a etimologia da palavra cabo podem se mostrar
reveladores. Observações interessantes a esse respeito encontram-se em Viaro (2014, p. 196),
segundo quem a forma cabo está associada historicamente a (pelo menos) dois vocábulos
homônimos, presentes no português desde seus primórdios. O primeiro desses vocábulos, que
vamos chamar de CABO-1, provém do étimo latino capŭlum [capŭlum > caboo > cabo] e já
era originalmente polissêmico, apresentando as seguintes acepções: CABO-1a ‘corda’ (donde
cabo de aço e cabo do acelerador, por extensão metafórica) e CABO-1b ‘extremidade’ (daí,
cabo de vassoura e cabo de panela). No dizer do Viaro (op. cit, p. 196), “a ideia comum a
ambas as acepções deriva do radical cap- ‘pegar’ (cf. latim capěre)”.
O segundo homônimo associado à palavra cabo, que também funciona como base para
a expressão de significados mais abstratos, é CABO-2, derivado do étimo latino caput ‘cabeça’.
Este significado encontra-se parcialmente disponível ainda hoje na expressão adverbial de cabo
a rabo. Já em cabo do exército, o significado de ‘patente militar’ teria se estabelecido por
projeção metafórica, dada a concepção de cabeça como “objeto proeminente”. Por fim, a
acepção de cabo como ‘ponta ou porção do continente que avança mar adentro’, atualizada em
Cabo Verde, seria motivada pelas propriedades físicas do referente de ‘cabeça’, concebido,
nessa perspectiva, como ‘objeto redondo’.
Já no séc. XIII, a forma cabo, precedida de preposição, era amplamente utilizada em
contextos sintáticos específicos, para localizar entidades e eventos/situações nos eixos do
espaço e do tempo. As ocorrências de (6) a (8) ilustram esses usos:
(6) Dest avëo gran miragre, per com' a mi foi mostrado, a hûa moller
que era 1 dun castelo que chamado é Roenas, que en termio d'
Alvarrazin é poblado, en cima dûa gran pena, ben en cabo da
montanna. (Séc. XIII, Corpus do Português, Mettman:CantigasSM2)
(7) e fficou ally com ella. A cabo de tres dias conheçeo Eufrosina
que sse chamava Esmerado que sse chegava o dia do seu
acabamento. (Séc. XIII, Corpus do Português, CIPM:VidaSantos)
131
Nos exemplos de (6) a (8), o SPrep onde se encaixa a forma cabo manifesta relativa
produtividade, podendo ocorrer com diferentes preposições e participando de constituintes que
cumprem papéis sintáticos e semânticos diferentes41 . Em (6) e (7), as expressões destacadas,
que funcionam como circunstanciais de lugar e tempo, operam sobre toda a predicação; já em
(8), a expressão incide apenas sobre o núcleo nominal terra, atuando como um adjunto
adnominal.
Além disso, nessas ocorrências, a forma cabo pode ser substituída por término ou final
sem que isso provoque qualquer alteração semântica relevante – cf.: “bem no final da
montanha”42 , para (6); “ao final de três dias”, para (7); e “terra do fim do mundo”, para (8). Por
outro lado, essa paráfrase parece não ser possível em certos casos, como (9) e (10):
No primeiro caso, uma substituição da palavra cabo pela palavra fim torna “o presidente
da Câmara [Krus Abecassis]” responsável pela interrupção, e não mais pela manutenção, de
um dado modelo político considerado polêmico. Já em (10), os esquemas políticos podem ser
41 De acordo com levantamento realizado no sítio eletrônico do Corpus do Português (MARK; FERREIRA, 2006),
entre os sécs. XIII e XVII, as preposições que mais ocorreram com a forma cabo, para expressar as noções de
tempo e lugar, foram: A, ATÉ (atees, ataa, etc.), DE e EM.
42 Isto se entendermos que o ponto final da montanha também é o seu ponto mais alto.
132
adequadamente interpretados como uma meta a ser alcançada, de modo que a substituição de
“levar a cabo” por “levar ao fim” mudaria o sentido da frase.
Considerando o que foi destacado até este ponto, desde o séc. XIII – e, portanto, antes
do surgimento da construção [SN 1 LEVAR A CABO SN2 ] com os significados de
concluir/realizar –, a forma lexical cabo participa de um esquema construcional mais amplo,
aqui representado pela estrutura [PREP cabo de SN]. Esse esquema se prende às noções de
‘espaço’ e ‘tempo’ e nele a forma cabo ainda preserva certa autonomia semântico-gramatical.
Sendo assim, entendemos que a frequência mais acentuada de ocorrências com o significado de
‘concluir’, nos séc. XIX, pode ser tomada como um indício de que, inicialmente, a construção
[LEVAR A CABO] apresentava um grau mais acentuado de composicionalidade, que foi
diminuindo ao longo do tempo, na medida em que o significado de base da forma cabo (‘final’)
foi se desgastando no contexto dessa construção.
Com base nessas informações, apresentamos a rede construção de PREP cabo de SN],
na figura 2, a seguir:
133
deste padrão foi possível a partir de construções preexistentes, envolvendo a ação de processos
como chunking, crescente esquematização e, ao que tudo indica, aumento de produtividade.
A seguir, são apresentadas as conclusões deste estudo, destacando suas contribuições
mais relevantes e aspectos que ainda demandam mais reflexão.
134
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta tese foi desenvolvida com o objetivo central de identificar o processo de formação
e expansão das construções ativas e passivas com [LEVAR A CABO]. No presente capítulo,
destacamos as principais conclusões obtidas e, em seguida, discorremos acerca de algumas
questões que ainda estão em aberto e que podem, portanto, ser retomadas em trabalhos futuros.
Conforme destacado em diferentes pontos desta tese, uma hipótese de partida adotada é
a de que as construções ativa e passiva com [LEVAR A CABO] constituem dois padrões
construcionais distintos, que, no entanto, se inter-relacionam num padrão mais abstrato, tendo
em vista as correspondências sintático-semânticas que compartilham. Ambas configuram um
estado de coisas concebido como complexo e/ou de difícil consecução, em que a
conclusão/realização de uma atividade X é concebida como resultado da ação de Y. Como
vimos nos resultados referentes ao séc. XX, ativas e passivas divergem no que diz respeito aos
significados básicos que expressam, uma vez que a construção passiva, diferentemente da
construção ativa, também apresenta o valor semântico de ‘executar’, além dos valores
semânticos de ‘concluir’ e ‘realizar’ (além dos casos ambíguos), expressos também pela
estrutura não marcada.
Diacronicamente, foi possível atestar indícios de que a construção ativa com [LEVAR
A CABO] ocorre há mais tempo e com frequência mais expressiva na língua do que a
construção passiva. Sem dúvida, isso se relaciona ao fato de que a passiva é uma estrutura “mais
marcada”, tanto do ponto de vista formal quanto do ponto de vista discursivo. Além de
apresentar uma configuração morfossintática mais complexa, a passiva tende a ocorrer em
contextos mais restritos, em que o locutor pretende colocar em primeiro plano o participante
afetado/efetuado. Embora a ausência de dados principalmente para o século XVIII imponha
cautela, a distribuição das construções ao longo dos períodos pode ser tomada como evidência
de que a construção ativa com [LEVAR A CABO] teria se estabelecido na língua antes da
construção passiva e, assim, motivado algumas de suas propriedades.
A construção passiva [Sn1 (aux.) LEVAR PP A CABO (SPrep)] caracteriza-se como um
padrão construcional que pode ser definido a partir de dois subesquemas que se distinguem
quanto à presença/ausência de verbo auxiliar. Esses subesquemas diferem, dentre outros
aspectos, pelo grau de estreiteza da relação semântica estabelecida entre [LEVAR A CABO] e
o participante afetado/efetuado e também pelas relações estruturais que esses componentes
contraem, já que, na microconstrução com auxiliar, o participante afetado/efetuado funciona
135
como sujeito sintático de [LEVAR A CABO], ao passo que, na microconstrução sem o auxiliar,
ocorre como núcleo de uma expressão nominal e é modificado por [LEVAR A CABO], no
papel de adjunto adnominal
Uma outra hipótese central deste estudo diz respeito à relação entre [LEVAR A CABO]
e outras construções do português. Os resultados discutidos sugerem que a construção ativa
[Sn1 LEVAR A CABO Sn2 ], atestada pela primeira vez no séc. XVII, estabelece relações de
herança com a construção causativa [Sn1 LEVAR Sn2 NOM/S], para o qual o verbo levar é
licenciado, e com a construção semiesquemática [A(O) CABO DE X], configurando, assim,
um caso do que Goldberg (1995) considera como herança múltipla. Tendo em vista a proposta
teórica de que a construção causativa apresenta um elo de herança metafórica com a CMC, é
possível relacionar [LEVAR A CABO] a este padrão mais esquemático e, assim, contribuir
para uma análise mais integrada dessas três possibilidades de uso do verbo levar.
Podemos pressupor, portanto, que, embora as construções ativa e passiva compartilhem
o mesmo significado referencial, elas teriam se estabelecido na língua em períodos diferentes,
e em resposta a pressões comunicativas específicas. Tais fatos podem ser tomados como
evidência para a postulação de dois padrões construcionais distintos, que se inter-relacionam
por representar a mesma cena básica da experiência a partir de perspectivas variadas.
Tudo indica que a construção [LEVAR A CABO] se estabeleceu na língua a partir da
reanálise de instâncias específicas da construção causativa com levar e que, com o tempo, se
expandiu de modo a, por exemplo, recrutar participantes com papéis sintáticos distintos. A forte
coesão entre os componentes da construção deixa clara a operação de um processo de chunking,
associado a um processo de recategorização que permite a associação entre uma nova forma a
um novo significado.
Além disso, também é notável a importância do que Tomasello (2003, 2019) classifica
como “intencionalidade compartilhada” para o estabelecimento de inferências convidadas
(TRAUGOTT; DASHER, 2004), que favorecem a negociação de sentidos realizada entre os
interlocutores durante o ato comunicativo e viabilizam a convencionalização de informações
disponíveis, a princípio, apenas no domínio pragmático. O processo de expansão das categorias
associadas ao participante afetado/efetuado (tanto na estrutura ativa como na passiva),
conforme ressaltado nos capítulos 6 e 7, ocorreu, em grande medida, por meio de analogias
mais locais, que pressupõem a ativação de informações do próprio contexto comunicativo, as
quais podem se cristalizar pela força do uso.
136
Embora diversos aspectos da construção [LEVAR A CABO] tenham sido discutidos
detalhadamente nesta tese, é importante destacar que algumas questões ainda continuam em
aberto, mesmo porque só podem ser adequadamente respondidas a partir de estudos adicionais.
Em primeiro lugar, é necessário destacar que o estabelecimento de um quadro mais completo
dos diferentes usos de levar − em perspectiva construcionista − pressupõe outros trabalhos que
analisem de que modo esse verbo é sancionado em outras construções mais esquemáticas, como
é o caso, por exemplo, do padrão construcional [LEVAR JEITO], focalizado em Paiva; Stein
(2019). Além disso, pressupõe também pressupõe a análise da relação de [LEVAR A CABO]
com outras estruturas que não investigamos aqui, tais como as clivadas e a passiva sintética
(com pronome se).
Além disso, para refinar ainda mais a descrição, faz-se necessária uma análise
comparativa do uso de [LEVAR A CABO] em amostras mais controladas das modalidades
falada e escrita, representativas do português brasileiro e do português europeu. Destaque-se
também que a possível influência de particularidades de diferentes gêneros textuais constitui
uma outra via de exploração dos contextos que teriam permitido a emergência das construções
com [LEVAR A CABO]. Por fim, urge salientar que a não inclusão do fator variedade do
português − se português brasileiro ou português europeu − certamente obscureceu algumas
propriedades que, no entanto, poderão ser melhor investigadas em estudos futuros.
137
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