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Com 2.

500 vítimas em 2022,


Brasil chega a 60 mil
resgatados da escravidão
Por Leonardo Sakamoto | 24/01/23

Ano foi marcado pelo resgate de uma


trabalhadora após 72 anos escravizada pela
mesma família, o caso de exploração mais longevo
desde que o país iniciou o combate a esse crime;
mais de 80% dos resgatados se declararam negros






Operação resgata 34 pessoas de condições análogas à escravidão em fazenda de café
em MG (Imagem: Sérgio Carvalho/Inspeção do Trabalho)

O Brasil encontrou 2.575 pessoas em situação análoga à de


escravo em 2022, maior número desde os 2.808
trabalhadores de 2013, segundo informações do Ministério
do Trabalho e Emprego. Com isso, o país atinge 60.251
trabalhadores resgatados desde a criação dos grupos
especiais de fiscalização móvel, base do sistema de combate
à escravidão no país, em maio de 1995. Nesses 28 anos, R$
127 milhões foram pagos a eles em salários e valores
devidos.
Celebra-se, no próximo sábado (28), o Dia Nacional de
Combate ao Trabalho Escravo, que também marca o
aniversário da Chacina de Unaí, quando funcionários do
Ministério do Trabalho foram executados durante uma
fiscalização rural em 2004.
Ao todo, foram 462 operações para verificar denúncias em
todo o país. Elas não flagraram o crime apenas em Alagoas,
no Amapá e no Amazonas. Minas Gerais foi o estado com
mais operações de combate ao trabalho escravo, com 117
empregadores fiscalizados e o maior número de resgatados:
1.070. Desde 2013, o estado lidera em número de flagrados
em situação de escravidão contemporânea.
Neste ano, Minas também ficou com o maior resgate
individual de trabalhadores, no município de Varjão de
Minas, com 273 no corte de cana. O recorde histórico ainda
está na mão da usina Pagrisa, em Ulianópolis (PA), com um
resgate de 1064 resgatados em 2007.
Goiás (49) e Bahia (32) vêm logo atrás na quantidade de
fiscalizações, mas Goiás ficou em segundo lugar (271) em
número de vítimas, seguido por Piauí (180), Rio Grande do
Sul (156) e São Paulo (146).
Os 2.575 resgatados receberam R$ 8,19 milhões em salários
e verbas rescisórias. Mais de R$ 2,8 milhões foram
recuperados para o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço
(FGTS).
As operações são coordenadas pela Inspeção do Trabalho
em parceria com o Ministério Público do Trabalho, a Polícia
Federal, a Polícia Rodoviária Federal, o Ministério Público
Federal e a Defensoria Pública da União, entre outras
instituições. Ou por equipes ligadas às Superintendências
Regionais do Trabalho nos estados, que também contam
com o apoio das Polícias Civil, Militar e Ambiental.
“O resgate tem por finalidade fazer cessar a violação de
direitos, reparar os danos causados no âmbito da relação de
trabalho e promover o devido encaminhamento das vítimas
para serem acolhidas pela assistência social”, afirmou à
coluna o auditor fiscal do trabalho Maurício Krepsky, chefe
da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho
Escravo (Detrae) do Ministério do Trabalho e Emprego.

Mais de 80% dos


resgatados se
declararam negros
Dos resgatados, 92% eram homens, 29% tinham entre 30 e
39 anos, 51% residiam no Nordeste e 58% nasceram na
região. Quanto à escolaridade, 23% declararam não ter
completado o 5º ano do ensino fundamental, 20% haviam
cursado do 6º ao 9º ano incompletos e 7% eram analfabetos.
No total, 83% se autodeclararam negros, 15% brancos e 2%
indígenas.
Três indígenas Guarani-Kaiowá de 23, 20 e 14 anos foram
resgatados de condições análogas às de escravo em uma
área de produção de eucalipto em Ponta Porã (MS), em 19
de abril do ano passado, Dia dos Povos Indígenas. Contando
com pouca comida, eles caçavam passarinhos para matar a
fome quando foram encontrados.
Os três estavam alojados em um barraco de lona, usando
espumas e colchões velhos para dormir sobre o chão de
terra. Usavam um brejo para tomar banho e uma cacimba
para retirar água a fim de cozinhar e beber. A comida era
descontada do pagamento, o que é ilegal. No momento da
fiscalização, havia pouca à disposição, então os jovens se
alimentavam com passarinhos que eles mesmos caçaram.
Dos resgatados, 148 eram migrantes de outros países, o que
representa o dobro em relação a 2021, sendo 101
paraguaios, 14 venezuelanos, 25 bolivianos, quatro haitianos
e quatro argentinos.
No ano passado, 35 crianças e adolescentes foram
submetidos ao trabalho análogo ao de escravo. Desses, dez
tinha menos de 16 anos e 25 possuíam entre 16 e 18 anos
no momento do resgate. O cultivo de café foi a atividade em
que mais crianças e adolescentes foram resgatados, com
24% das vítimas.
Mas escravidão contemporânea também foi flagrada junto a
menores de 18 anos em atividades esportivas, produção
florestal, cultivo de arroz, cultivo de coco-da-baía, criação de
bovinos, fabricação de produtos de madeira, produção de
carvão vegetal, cultivo de soja e confecção de roupas.
O cultivo da cana-de-açúcar foi a atividade com maior
número de resgatados em 2022, segundo dados do
Ministério do Trabalho e Emprego, com 362 vítimas. Na
sequência, aparece atividades de apoio à agricultura (273),
produção de carvão vegetal (212), cultivo de alho (171), de
café (168), de maçã (126), a extração e britamento de pedras
(115), criação de bovinos (110), cultivo de soja (108), extração
de madeira (102) e construção civil (68).
Do total de resgatados, 87% estavam em atividades rurais.

Alojamento de trabalhadores indígenas resgatados em situação análoga à escravidão


em Ponta Porã, Mato Grosso do Sul, em abril de 2022 (Imagem: Superintendência
Regional do Trabalho do MS)

Trabalhadora foi
resgatada após 72 anos
escravizada pela
mesma família
A Inspeção do Trabalho vem registrando um aumento de
casos de trabalho escravo doméstico nos últimos anos. Em
2022, foram 30 vítimas em 15 unidades da federação, sendo
dez apenas na Bahia.
O caso mais emblemático foi o de uma mulher de 84 anos
resgatada de condições análogas às de escravo, em março,
após 72 anos trabalhando como empregada doméstica para
três gerações de uma mesma família no Rio de Janeiro.
Nesse período, ela cuidou da casa e de seus moradores,
todos os dias, sem receber salário, segundo a fiscalização.
De acordo com dados do Ministério do Trabalho, essa é a
mais longa duração de exploração de uma pessoa em
escravidão contemporânea desde que o Brasil criou o
sistema de fiscalização para enfrentar esse crime.
Quando a trabalhadora, que é negra, passou a atuar para a
família, a Lei Áurea (1888) tinha apenas 62 anos, o
presidente era Eurico Gaspar Dutra e o Rio, a capital do país.
De acordo com a fiscalização, seus pais trabalhavam em
uma fazenda no interior do estado que pertencia à família
Mattos Maia. Aos 12 anos, ela se mudou para a residência
do casal proprietário para realizar serviços domésticos.
Quando faleceram, migrou para a casa da filha deles, onde
manteve suas atividades, incluindo o cuidado com as
crianças.
Ao ser resgatada, atuava como cuidadora da empregadora,
apesar de ambas terem idade semelhante. Ao todo, serviu
três gerações da família, uma vez que, na residência na Zona
Norte da cidade, também reside o neto dos patrões
originais. Os empregadores foram procurados época do
resgate pela coluna, mas não responderam os pedidos por
um posicionamento.
“Em razão da grande repercussão do resgate da
trabalhadora doméstica Madalena Gordiano no final de
2020 em Patos de Minas, o número de denúncias
aumentou”, afirmou o auditor fiscal Maurício Krepsky.

Chacina de Unaí
completa 19 anos sem
cumprimento de pena
dos mandantes
O 28 de janeiro foi escolhido como Dia Nacional de Combate
ao Trabalho Escravo para marcar o aniversário da Chacina
de Unaí, quando os auditores fiscais do trabalho
Erastóstenes de Almeida Gonçalves, João Batista Soares
Lage e Nelson José da Silva e o motorista Ailton Pereira de
Oliveira foram executados em uma fiscalização de rotina no
Noroeste de Minas Gerais em 2004.
Os irmãos Antério e Norberto Mânica, grandes produtores
de feijão, foram apontados como os mandantes do crime
pela Polícia Federal. Entre ida e vindas, julgamentos e
anulações, eles foram condenados. Porém, aguardam
recursos em liberdade.
O inquérito entregue pela Polícia Federal à Justiça sobre a
chacina de Unaí afirmou que a motivação do crime foi o
incômodo provocado pelas insistentes multas impostas
pelos auditores à família de fazendeiros, sendo que o
auditor-fiscal do trabalho Nelson José da Silva era o alvo
principal. Ele já havia aplicado cerca de R$ 2 milhões em
infrações a fazendas da família Mânica por descumprimento
de leis trabalhistas.
O motorista Oliveira, mesmo baleado, conseguiu fugir do
local com o carro e foi socorrido. Levado até o Hospital de
Base de Brasília, Oliveira não resistiu e faleceu. Antes de
morrer, descreveu uma emboscada: um automóvel teria
parado o carro da equipe e homens fortemente armados
teriam descido e fuzilado os fiscais. Os auditores fiscais
morreram na hora.
Trabalho escravo hoje
no Brasil
A Lei Áurea aboliu a escravidão formal em maio de 1888, o
que significou que o Estado brasileiro não mais reconhece
que alguém seja dono de outra pessoa. Persistiram,
contudo, situações que transformam pessoas em
instrumentos descartáveis de trabalho, negando a elas sua
liberdade e dignidade.
Desde a década de 1940, o Código Penal Brasileiro prevê a
punição a esse crime. A essas formas dá-se o nome de
trabalho escravo contemporâneo, escravidão
contemporânea, condições análogas às de escravo.
De acordo com o artigo 149 do Código Penal, quatro
elementos podem definir escravidão contemporânea por
aqui: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito
de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a
dívidas, muitas vezes fraudulentas), condições degradantes
(trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco
a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador
ao completo esgotamento dado à intensidade da
exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).
Como denunciar
Denúncias de trabalho escravo podem ser feitas de forma
sigilosa no Sistema Ipê, sistema lançado em 2020 pela
Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério do
Trabalho e Emprego em parceria com a Organização
Internacional do Trabalho (OIT). Em 2022, 1.654 foram
enviadas pelo sistema. Denúncias também podem ser feitas
através do Ministério Público do Trabalho, unidades da
Polícia Federal, sindicatos de trabalhadores, escritórios da
Comissão Pastoral da Terra, entre outros locais.
Dados oficiais sobre o combate ao trabalho escravo estão
disponíveis no Radar do Trabalho Escravo da SIT.

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