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Os portugueses e os novos riscos

Book · January 2007

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5 authors, including:

Maria Eduarda Gonçalves Ana Delicado


ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa University of Lisbon
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Cristiana Bastos Hélder Raposo


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Ana Delicado* Análise Social, vol. XLII (184), 2007, 687-718

Maria Eduarda Gonçalves**

Os portugueses e os novos riscos:


resultados de um inquérito

INTRODUÇÃO

As sociedades contemporâneas têm sido caracterizadas em função da


omnipresença do risco. Dos problemas sociais, como a toxicodependência e
o desemprego, às aplicações financeiras, das catástrofes naturais aos aciden-
tes rodoviários, dos impactos ambientais à insegurança dos sistemas infor-
máticos, a noção de risco é regularmente invocada como indicadora de
preocupação e justificadora de acção.
Se bem que o paradigma tecnocrático tenda a reduzir o risco a uma
questão de verificação ou medida científica (existência ou não existência do
risco, probabilidade da sua ocorrência, efeitos prováveis), a actual consciên-
cia e activismo sociais perante o risco, em especial o risco ambiental e de
saúde pública, têm gerado um clima favorável ao questionamento desse
paradigma. A recorrência dos casos de mobilização dos cidadãos contra
actividades, tecnologias ou produtos em razão dos danos que são susceptí-
veis de provocar torna claro que a aceitabilidade do risco é uma questão
essencialmente política. Reconhece-se, do mesmo passo, a importância de
uma participação informada dos cidadãos na gestão do risco. Ao paradigma
tecnocrático tende, assim, a suceder o paradigma democrático. Aceitando
embora a indispensabilidade do recurso à ciência e à técnica para a análise
e avaliação do risco, este paradigma é sensível ao modo como a sociedade
percepciona o risco e age em relação a ele.

* Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.


** Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa. 687
Ana Delicado, Maria Eduarda Gonçalves

Com base na abundante bibliografia hoje existente no domínio da sociologia


do risco (que será referida ao longo do texto) foi definido um conjunto de
temas-chave para a análise das práticas e representações do público/sociedade
face, em especial, ao risco ambiental e de saúde. Estes temas nortearam a
concepção do inquérito, de cujos resultados se dá conta neste artigo1:
a) A percepção do risco — estando a percepção dos riscos associada às
suas características, natureza e contexto espácio-temporal, qual será
o mais saliente na percepção do público: o risco «novo» (das socie-
dades da modernidade avançada) ou o risco «tradicional» (das socie-
dades tradicionais ou mesmo industriais); o risco de causas naturais
ou o risco de causas humanas/tecnológicas; o risco global e distante
ou o risco localizado e próximo; o risco com efeitos ambientais ou o
risco com efeitos sobre a saúde pública?
b) A avaliação do risco — sendo diversos e por vezes antagónicos os
discursos sobre o risco (existência ou não existência, dramatização ou
minimização) por parte de diferentes actores (cientistas, Estado, em-
presas, associações, meios de comunicação social), que confiança o
público mostra nas diferentes fontes de informação e de avaliação do
risco?
c) A gestão do risco — sendo a gestão dos riscos da competência do
aparelho burocrático-administrativo, na óptica do público, quem deve-
rá intervir ou ser consultado na gestão de riscos e na tomada de
decisões; como é que o público avalia a gestão do risco efectuada nos
últimos anos em Portugal?
d) A participação — num país onde a sociedade civil é tradicionalmente
pouco activa e o aparelho burocrático-administrativo «centralizado,
hierarquizado e secretista» (Gonçalves, 2002, p. 205), qual o grau de
envolvimento e participação dos cidadãos em matéria de risco, o que
fazem ou estão dispostos a fazer para intervirem na sua gestão?

Paralelamente, o questionário pretendeu testar um conjunto de hipóteses:

a) A de que as representações do risco variam segundo as caracterís-


ticas do próprio risco, a informação detida pelos indivíduos, a sua
confiança em determinados agentes e as características sociais dos
indivíduos;
b) A de que os comportamentos em face do risco variam segundo as
representações do risco, as características do risco, a informação detida
pelos indivíduos, a sua confiança em determinados agentes e as ca-
racterísticas sociais dos indivíduos.

O inquérito2 teve um carácter eminentemente exploratório. Os dados


688 obtidos foram sujeitos a um tratamento estatístico uni e bivariado, sendo
Os portugueses e os novos riscos: resultados de um inquérito

apenas apresentados os cruzamentos que se revelaram estatisticamente sig-


nificativos3.

OS MAIORES RECEIOS: OS RISCOS DISTANTES, CRÓNICOS


E INCONTROLÁVEIS

Se para os cientistas e os decisores políticos o risco tende a ser


perspectivado, essencialmente, como uma questão de mensuração de proba-
bilidades e de avaliação de factores, para as populações a reacção ao risco
exprime-se muitas vezes em preocupação, ansiedade ou receio. Diversos tipos
de risco são percepcionados de forma distinta, provocando diferentes atitudes
e comportamentos. No âmbito do estudo procurou-se, em primeiro lugar,
aferir quais os riscos que mais preocupam a população portuguesa e, entre
estes, a importância relativa atribuída aos riscos ambientais (gráfico n.º 1).
Constata-se que o risco considerado mais preocupante, mencionado por
24% dos respondentes (resposta livre), é a violência. Esta inclui tanto a
insegurança de proximidade (assaltos, agressões e homicídios) quanto os
fenómenos mais longínquos da guerra e do terrorismo (o que poderá ser
atribuído aos acontecimentos mundiais desde Setembro de 2001). Em segun-
do lugar (21% dos respondentes), foram apontados os riscos ambientais, o
que é indicativo da centralidade desta problemática nas preocupações da
população. Em terceiro lugar, cerca de 16% dos inquiridos referiram os
acidentes, especialmente os de viação. Todos os riscos mencionados são
involuntários, no sentido em que escapam ao controlo dos indivíduos (que
têm reduzidas possibilidades de agirem para os evitarem), aumentando a sua
sensação de vulnerabilidade (Schmidt et al., 2004, p. 199).

Risco que mais o preocupa actualmente


(em percentagem)
[GRÁFICO N.º 1]
Outras respostas
2%
2
Riscos naturais Violência
Toxicodependênc
Toxicodependência 5
5% 24
24%
8ia
8% Doenças
10%
10

Riscos socio-
Riscos sócio-
-económicos
-económicos Riscos ambientais
14%
14 21
21%
Acidentes
16%
16 689
Ana Delicado, Maria Eduarda Gonçalves

É ainda de destacar a referência pelos inquiridos a alguns riscos especial-


mente em evidência no momento em que o inquérito foi realizado. É o caso
do desemprego, mencionado por 4% dos inquiridos (num período em que
as taxas de desemprego atingiram valores elevados), e dos riscos envolvendo
crianças, referidos por igual percentagem de respondentes (podendo dever-
-se à forte atenção pública devotada ao caso Casa Pia). Admitimos que a
escolha deste leque de problemas possa ter sido influenciada pela cobertura
mediática que estes riscos têm recebido (Douglas, 1985, p. 65; Peretti-
-Watel, 2001, p. 23; Theys, 1987, p. 24).
Verifica-se ainda que todos os riscos mencionados pelos inquiridos se
caracterizam por serem riscos externos, que escapam à sua capacidade de
controlo, mesmo que, probabilisticamente, sejam mais perigosos os compor-
tamentos que resultam de escolhas individuais, como fumar, conduzir sob o
efeito do álcool ou ter uma alimentação desregrada (Peretti-Watel, 2001, p. 29;
Gregory e Miller, 1998, p. 167; Theys, 1987, p. 19; Wilkinson 2001, p. 8;
Jasanoff, 1986, p. 38; Duclos, 1987, pp. 39-40; Lima, 1999, p. 170).
Ainda no domínio do risco em geral, foi perguntado aos inquiridos se
consideravam que o risco tem vindo a aumentar ou a diminuir e qual a
tendência que previam para o futuro (gráfico n.º 2). Constatou-se que a
maioria dos respondentes entende que os riscos têm vindo a agravar-se
(84%) e que esta tendência se manterá no futuro (71%). Só 11% dos
inquiridos consideram que os riscos tenderão a diminuir. Estes dados são
consonantes com os resultados obtidos no inquérito «Os Portugueses e
o Ambiente», realizado em 1997 pelo Observa (Schmidt et al., 2000,
p. 58), assim como com outros estudos internacionais (Slovic et al., 2002b,
p. 139).
Efectuada esta apreciação genérica do risco, foi pedido aos inquiridos que
nomeassem o risco ambiental ou de saúde pública que mais temem (resposta
livre) (gráfico n.º 3). Verificou-se que o risco mais referido é a poluição
(53% dos inquiridos), sendo especificamente nomeada a poluição dos rios e
dos mares (12% dos inquiridos) e a poluição do ar (7% dos inquiridos).
Respostas semelhantes foram identificadas em estudos anteriores (Schmidt
et al., 2000, p. 64, e 2004a, p. 91; Lima, 2004, p. 157). Os incêndios foram
destacados por 14% dos inquiridos, o que se pode dever ao momento de
realização do inquérito (início do Verão). É ainda de salientar que 10% dos
respondentes mencionaram riscos ambientais globais, como a destruição da
camada de ozono e as alterações climáticas.
Outro dado relevante foi a percentagem de não-respostas (14%) e, apesar
de relativamente baixa, a percentagem de inquiridos que declararam não estar
preocupados com nenhum risco ambiental em particular (5%). Tal poderá
690 dever-se a falta de informação ou mesmo de interesse pelo tema.
Os portugueses e os novos riscos: resultados de um inquérito

Tendência de evolução dos riscos


(em percentagem)
[GRÁFICO N.º 2]

100

90

80

70

60

50

40

30

20

10

0
Tendência actual Tendência futura

Aumentar Manter
..... Diminuir ..... NS/NR

N = 702.

A percepção do risco é condicionada pelas respectivas características: há


riscos cuja carga simbólica, mais do que a probabilidade efectiva da sua
concretização ou os seus potenciais efeitos, os torna especialmente temidos;
outros riscos merecerão maior atenção dos meios de comunicação social;
outros terão relevância especial para certas populações. Elencado um con-
junto de riscos ambientais ou de saúde pública de carácter global, solicitou-
-se aos inquiridos que lhes atribuíssem um grau de gravidade (gráfico n.º 4).
Perguntou-se, em seguida, o nível de preocupação suscitado por um conjun-
to de riscos que afectam Portugal (gráfico n.º 5).
Estes dados permitem constatar que a disponibilidade e a qualidade da
água para consumo constituem a principal preocupação dos inquiridos, quer
a nível global, quer nacional. Este é um risco do quotidiano, que afecta
directamente os indivíduos, sem distinção de classe social ou nível de 691
Ana Delicado, Maria Eduarda Gonçalves

instrução, e que escapa à sua capacidade de controlo ou prevenção. No pólo


oposto, o dos riscos percepcionados como menos graves, são de destacar
as catástrofes naturais. Terramotos, secas e inundações são considerados
fenómenos ou pouco prováveis ou de consequências pouco ameaçadoras.

Risco ambiental mais preocupante


(em percentagem)
[GRÁFICO N.º 3]
Destruição
da camada ozono
7
Incêndios
14 T ratamento de lixos
6
Contaminação
Nenhum alimentar
5 3

Alterações climáticas
3

Outros Água potável


15 3

Catástrofes naturais
2

Outras respostas
4

Poluição
53

N = 601.

O nuclear é o exemplo por excelência de «novo risco», representando


uma tecnologia fortemente estigmatizada (Beck, 1992, p. 27; van Loon,
2002, p. 25; Mays e Poumadere, 1996, p. 149; Kunreuther e Slovic, 2001,
pp. 331-352). O risco nuclear assume um perfil «espectacular e único»,
sendo encarado ao mesmo tempo como «involuntário, diferido, desconheci-
do, incontrolável, não familiar, potencialmente catastrófico, temido e grave
(certamente fatal)» (Slovic et al., 2002a, p. 117). De acordo com o presente
inquérito, 75% dos inquiridos consideraram muito grave a eventualidade de
um acidente nuclear e 57% afirmaram-se muito preocupados com os efeitos
sobre Portugal de um acidente numa central nuclear num país próximo.
Estes dados convergem com os de estudos anteriores, como o inquérito
relativo às atitudes sociais dos portugueses realizado pelo Instituto de Ciên-
692 cias Sociais em 2000 (Lima, 2004, p. 157).
Os portugueses e os novos riscos: resultados de um inquérito

Gravidade atribuída a riscos globais


[GRÁFICO N.º 4]

Escassez de água potável

Acidente nuclear

Destruição da camada de
ozono

Contaminação alimentar

Aparecimento de novas
doenças

Catástrofes naturais

Alterações climáticas

Esgotamento de recursos

Clonagem

2,90 3,00 3,10 3,20 3,30 3,40 3,50 3,60 3,70 3,80 3,90

1 = nada grave; 4 = muito grave.

N = 702.

Em Portugal assumem especial destaque dois tipos de riscos: os incên-


dios florestais e a poluição. Os primeiros, mencionados por 69% dos inqui-
ridos como muito preocupantes, poderão ter sido amplificados por efeitos
sazonais, acima mencionados. Já a poluição, nas suas várias manifestações
e associada ao tema paralelo dos resíduos, poderá ser um risco mais central
e constante na percepção do risco ambiental.
No que respeita aos riscos globais, a destruição da camada de ozono
surge entre os mais temidos (72% dos inquiridos consideraram-na muito
grave), embora as alterações climáticas, em geral, sejam consideradas muito
graves apenas por 40% dos inquiridos. Esta aparente contradição poderá
dever-se à elevada exposição mediática do problema do ozono e à consciên-
cia das suas consequências directas sobre a saúde. No que respeita à ma-
nipulação genética, apenas 33% dos inquiridos a consideram um risco muito
grave (de realçar também que a taxa de não-resposta nesta alínea foi de
20%). Auscultados sobre o seu grau de preocupação com alimentos conten-
do organismos geneticamente modificados, apenas 46% se declararam muito
preocupados (esta alínea teve uma taxa de não-resposta de 9%). 693
Ana Delicado, Maria Eduarda Gonçalves

Preocupação com riscos em Portugal


[GRÁFICO N.º 5]

Contaminação da água
da torneira
Incêndios florestais
Contaminação dos
alimentos
Doenças pela poluição
do ar
Acidente numa central
nuclear
Contaminação por
resíduos industriais
Acidente industrial

Marés negras

Cheias

Terramotos

2,60 2,80 3,00 3,20 3,40 3,60 3,80

1 = nada preocupado; 4 = muito preocupado.


N = 702.

Foi, assim, possível detectar algumas grandes tendências na percepção


do risco, classificando-o segundo tipologias duais: novo risco e risco tradi-
cional; risco crónico e risco agudo; risco de proximidade e risco global
(gráfico n.º 6).
Verifica-se, em primeiro lugar, que o «risco tradicional»4 (que é sobre-
tudo um risco natural, mesmo que actualmente agravado pela acção humana)
gera uma preocupação menor do que o «novo risco»5. Esta diferença sus-
tentar-se-á, por um lado, na familiaridade com alguns riscos naturais (a me-
mória transmitida ao longo de gerações de cheias, secas, terramotos), por
outro lado, na reacção negativa suscitada pela agência humana aos «novos
riscos», que provoca a indignação moral e a atribuição de culpa, e, por outro
lado ainda, nas próprias características destes riscos (Duclos, 1987, p. 41;
Douglas, 1985, pp. 34 e 92; Lagadec, 1981, p. 17; Jasanoff, 1986, p. 38).
Os «novos riscos» têm sido objecto de estudo de uma ampla e variada
bibliografia internacional, relativamente consensual quanto à sua caracteriza-
ção (v., a título de exemplo, Beck, 1992, p. 19, e 1999, p. 19, van Loon,
2002, p. 21, Giddens, 2000, p. 35, Lidskog, 2000, p. 201, Peretti-Watel,
2001, p. 36, Lagadec, 1981, p. 63, Theys, 1987, p. 19, Douglas, 1985,
694 p. 92, e Slovic et al., 2002, p. 141). Os «novos riscos» estão associados
Os portugueses e os novos riscos: resultados de um inquérito

aos modos de produção da riqueza na «modernidade avançada», sendo de-


sencadeados em muitos casos pela aplicação de tecnologia. Caracterizam-se
por serem geralmente invisíveis à percepção humana, embora as suas con-
sequências adquiram uma forte «visibilidade» nos media, e de difícil conten-
ção no tempo e no espaço, existindo normalmente um desfasamento espácio-
-temporal entre as acções e os seus impactos, com efeito, por vezes, apenas
sobre futuras gerações. Os «novos riscos» escapam ao controlo dos Estados
(transcendem fronteiras, são indeterminados e incertos, com efeitos difíceis
de antecipar, prevenir e resolver). Alguns são de baixa probabilidade (por
exemplo, o acidente nuclear de larga escala), mas de efeitos potencialmente
catastróficos, susceptíveis de afectarem toda a humanidade e as diferentes
formas de vida animal e vegetal, produzindo consequências impremeditadas,
desconhecidas, incalculáveis e irreversíveis.

Ansiedade perante os riscos


[GRÁFICO N.º 6]

Novos riscos

Riscos tradicionais

Riscos agudos

Riscos crónicos

Riscos de proximidade

Riscos globais

3,2 3,25 3,3 3,35 3,4 3,45 3,5 3,55 3,6


1 = nada preocupado; 4 = muito preocupado.
N = 702.

Outra distinção é a que separa os riscos «crónicos»6 (com uma acção


continuada ou a longo prazo) dos riscos «agudos»7 (com uma probabilidade
mais baixa mas efeitos catastróficos imediatos). Os riscos agudos tendem a
ser considerados mais graves, podendo ter um «valor de sinal», ou seja,
indicar uma probabilidade de recorrência ou o falhanço dos sistemas de 695
Ana Delicado, Maria Eduarda Gonçalves

controlo (Slovic et al, 2002, p. 150). Contrariando os resultados de outros


estudos (Douglas, 1985, p. 21; Theys, 1987, p. 19; Duclos, 1987, pp. 39-
-40; Slovic et al., 2002b, p. 150), não são, porém, os eventos mais raros mas
com maior potencial catastrófico que mais preocupam os inquiridos no pre-
sente inquérito. Visto que praticamente não há memória de uma ocorrência de
grande magnitude deste tipo em Portugal (excepção feita ao terramoto de
1755), é compreensível que os riscos «agudos» gerem menor preocupação.
Os riscos ambientais e de saúde pública podem também destacar-se pelo
alcance dos seus efeitos. Se alguns produzem consequências à escala pla-
netária, outros afectam sobretudo alguns países ou regiões. Verificou-se que
os inquiridos revelam um grau de preocupação em relação aos riscos globais8
bastante superior ao relativo a riscos de proximidade9. A explicação poderá
ser o desconhecimento, aliado à ausência de controlo dos riscos globais.
Haverá uma relação de maior familiaridade e até de habituação aos riscos
mais próximos, assim como de identidade com o lugar que «está directa-
mente associado à percepção de qualidade ambiental» (Lima, 2005, p. 236).
Este menosprezo dos riscos de proximidade, denominado por alguns autores
como «hiperopia ambiental» (Lima e Castro, 2005, p. 23), poderá também
estar relacionado com a percepção de uma certa imunidade de Portugal aos
riscos que afectam países mais industrializados. De facto, tendo-se pergun-
tado a opinião dos inquiridos sobre a situação de Portugal por comparação
com outros países europeus, 42% afirmaram que Portugal estava menos
exposto aos riscos, 39% igualmente exposto e apenas 13% consideraram
que estava mais exposto (6% afirmaram não saber). Estes dados reflectem
achados de estudos anteriores (Schmidt et al., 2000, p. 37, e 2004a, p. 79)
e podem ajudar a compreender as baixas taxas de participação no activismo
ambiental (Lima e Castro, 2005, pp. 25-26), como adiante se verá.
Sintomáticas da minimização dos riscos de proximidade são também as
respostas à questão sobre riscos na localidade (gráfico n.º 7). Apenas 37%
dos inquiridos afirmaram existirem na localidade da sua residência riscos
ambientais ou de saúde pública que os preocupassem e, entre estes, 8% não
os conseguiram identificar. Os riscos identificados foram maioritariamente
riscos «crónicos» ou «novos riscos» (poluição, resíduos industriais ou ur-
banos).
Estes dados permitem constatar que a poluição, nas suas várias manifes-
tações, incluindo os resíduos, constitui o risco central na preocupação com
o ambiente local. É de destacar, por um lado, a maior preocupação gerada
pela poluição da água doce e do ar, fenómenos disseminados pelo território
nacional (nem todos os inquiridos residem perto da costa para serem afec-
tados pela poluição marítima, nem todos residem em zonas rurais para es-
tarem sensibilizados para o problema da contaminação dos solos) e cujo
696 efeito sobre a saúde das populações é mais directo.
Os portugueses e os novos riscos: resultados de um inquérito

Riscos identificados na localidade


(em percentagem)
[GRÁFICO N.º 7]

Poluição da água doce 29,0

Poluição do ar 24,7

Incêndios florestais 20,0

Resíduos industriais 10,6

Poluição dos solos 9,7

Resíduos urbanos 9,5

Contaminação da água da torneira 7,0

Praias sujas 5,9

Poluição sonora 5,3

Problemas urbanos 2,6

Fábricas/minas 2,6

Acidentes industriais 2,5

Inundações/cheias 2,5

Contaminação alimentar 2,1

Marés negras 1,9

Terramotos 1,5

Surtos de doenças 1,3

Risco nuclear 0,8

Transformações nas zonas rurais 0,8

Seca 0,7

Cabos de alta tensão 0,5

N = 261. Erosão da costa 0,1

NS/NR 8,1%

N = 261.

Menos referidos, embora com efeitos directos sobre o quotidiano das


populações, são riscos como a contaminação da água da rede pública e a 697
Ana Delicado, Maria Eduarda Gonçalves

contaminação alimentar. Verificou-se que alguns tipos de riscos alimentares


são mais temidos do que outros (gráfico n.º 8).

Preocupação com riscos alimentares


[GRÁFICO N.º 8]

Hormonas em
animais para
alimentação
m
Lacticínios de gado
com brucelose

Alimentos com
OGM

Peixe com mercúrio

Frutas com
pesticidas

Marisco
contaminado

Frangos comm
nitrofuranos

Doença das vacas


loucas

3,10 3,15 3,20 3,25 3,30 3,35 3,40 3,45 3,50


0
1 = nada preocupado; 4 = muito preocupado.
N = 702.

Constatou-se ainda que os riscos alimentares que maior preocupação geram


são riscos de natureza eminentemente «moderna»: as hormonas introduzidas
na alimentação do gado, os organismos geneticamente modificados (ainda que
este item tenha atingido os valores de não-resposta mais elevados — 9%) e
a contaminação do peixe por metais pesados, consequências, num caso, da
aplicação da tecnologia à criação animal e, no outro, da poluição. Um dos
riscos considerados mais preocupantes, a brucelose, é, no entanto, «tradicio-
nal», ou seja, atribuível à falta de pasteurização. Riscos mais mediáticos, como
a doença das vacas loucas ou os nitrofuranos, parecem gerar, no momento da
realização do inquérito, uma menor preocupação, porventura em virtude de
terem deixado as primeiras páginas dos jornais.
Analisadas de forma geral as percepções dos portugueses perante os
riscos ambientais e de saúde pública, interessará agora examinar as atitudes
698 e práticas que delas decorrem.
Os portugueses e os novos riscos: resultados de um inquérito

AS ATITUDES E AS PRÁTICAS: INDIFERENÇA,


PASSIVIDADE, REACÇÃO

Perante situações de risco, os cidadãos socorrem-se efectivamente de


várias formas de intervenção, que vão do protesto e da pressão sobre os
decisores ao evitamento e boicote de produtos e indústrias. A fim de promo-
verem uma maior aceitabilidade social do risco, entidades públicas e privadas
têm vindo a instituir novas estruturas e procedimentos de avaliação, gestão e
comunicação do risco conducentes nalguns casos a formas de negociação e
concertação social e de partilha de responsabilidades entre o Estado e os
cidadãos. Constituem exemplos as audiências públicas no âmbito dos proce-
dimentos de avaliação de impacto ambiental, a mediação, a participação de
cidadãos em comissões de aconselhamento e em conferências de consenso
(Peretti-Watel, 2001, pp. 43-44; Nelkin, 1995, p. 455; Gonçalves, 1999).
Não obstante as audiências públicas nos procedimentos de avaliação de
impacto ambiental e a crescente cobertura mediática dos problemas ambien-
tais em Portugal, apenas cerca de metade dos inquiridos (55%) afirmaram
ter o hábito de procurar informação sobre os riscos que afectam o país ou
a sua localidade.
Aos inquiridos que declararam procurar informação foi perguntado por
que meios o faziam. O veículo de informação mencionado pela maioria dos
inquiridos (86%) foi os meios de comunicação social e, entre estes, sobre-
tudo, a televisão, o que revela uma atitude passiva, de recepção, e não activa,
de procura deliberada de informação, semelhante à detectada em inquéritos
anteriores relativos a informação sobre a ciência (Costa et al., 2002, pp. 86-
-88) e sobre o ambiente (Gil Nave et al., 2000, p. 112; Schmidt et al., 2004a,
p. 121). Seguem-se o recurso a amigos e vizinhos (8%) e a procura de
informação na Internet (8%). Já o contacto directo com entidades responsá-
veis é quase residual: médico de família (4%), autoridades públicas (3%),
associações ambientalistas (1%) ou de consumidores (0,6%) e empresas
(0,4%).
À fracção da amostra que declarou não ter o hábito de procurar infor-
mação sobre riscos ambientais e de saúde pública foram perguntados os
motivos (gráfico n.º 9).
O argumento mais frequentemente invocado foi a falta de tempo ou de
oportunidade. Seguiu-se-lhe a incapacidade de procurar informação e, de-
pois, o desinteresse por estes temas e a ausência de um risco que gere
preocupação. Outras razões menos frequentemente invocadas foram a indo-
lência, o sentimento de impotência e o receio ou limitações do próprio (idade,
isolamento).
Escapando os riscos ambientais e de saúde pública, por norma, ao con-
trolo dos indivíduos, é frequente assistir-se a manifestações e acções de 699
Ana Delicado, Maria Eduarda Gonçalves

protesto visando pressionar os decisores e os gestores do risco (Beck, 1999,


p. 42; Giddens, 2000, p. 41). Perguntou-se, assim, à amostra deste inquérito
se já havia participado numa acção para protestar ou tentar evitar um risco
ambiental ou para a saúde pública (gráfico n.º 10). A taxa de participação em
acções de protesto ronda apenas os 10%. Estes valores são conformes às
baixas taxas de participação política em acções que extravasam os actos
eleitorais, bem como de adesão a associações que se registam em Portugal
(Cabral, 2000), e igualmente às baixas taxas de participação ambiental
verificadas em inquéritos anteriores (Valadas de Lima e Guerra, 2004b,
pp. 120 e 123; Garcia et al., 2000, p. 157; Gil Nave e Fonseca, 2004, p. 270).
O referido défice de participação cívica pode ser interpretado com base num
conjunto de factores: uma democracia tardia, uma cultura cívica incipiente,
a própria constituição da estrutura social (participação em correlação positiva
com a classe social e o nível de escolaridade), uma fraca mobilização
cognitiva e baixa exposição aos media (Cabral, 2000).

Razões para a não procura de informação


(em percentagem)
[GRÁFICO N.º 9]

Não tenho tempo/ 39,9


oportunidade

Não sei como me


15,4
informar

Não me interessam
12,3
estes assuntos
Não há nenhum
risco que me 11,9
preocupe

Tenho preguiça 6,5

Não posso fazer


nada para o 6,0
resolver

Tenho receio 2,5


destes assuntos

Limitações físicas/ 2,1


sociais

NS/NR 9,5

700 N = 317.
Os portugueses e os novos riscos: resultados de um inquérito

Tendo sido indagada a forma de participação em que os inquiridos haviam


estado envolvidos (gráfico n.º 10), verificou-se que a que obteve maior
adesão foi a manifestação pública. Em segundo lugar, vem a assinatura de
petições e, em terceiro lugar, a presença em reuniões com autoridades locais.

Acções em que participou para protestar sobre um risco


(em percentagem)
[GRÁFICO N.º 10]

Participar numa manifestação 36,3

Assinar uma petição/abaixo-assinado 22,6

Reunião na câmara municipal/JF 19,1

Actividade profissional 7,4

Acções de sensibilização 5,1

Acções de limpeza/reciclagem 3,9

Fazer uma denúncia às autoridades 2,4


públicas
Aderir a uma associação 2,3
ambientalista
Fazer uma denúncia aos meios de 1,6
comunicação

Bloquear uma estrada 1,6

Boicotar um produto ou empresa 1,4

Dar dinheiro a uma associação 0,5


ambientalista

NS/NR 9,7

N = 67.

Aos respondentes que não declararam qualquer participação foram ques-


tionadas as razões dessa opção (gráfico n.º 11). Os constrangimentos exter-
nos surgem como factores dominantes: não lhes ter sido dada oportunidade,
não disporem de informação suficiente, não terem sido convidados. Em
Portugal estão, de facto, ainda fracamente institucionalizadas e divulgadas as
formas de participação do público na tomada de decisões sobre o risco. 701
Ana Delicado, Maria Eduarda Gonçalves

Razões para a não participação


(em percentagem)
[GRÁFICO N.º 11]

Não tive oportunidade 38,5

Não tenho tempo 23,7

Não tenho informação suficiente 9,6


Nunca houve um risco que me
9,0
preocupasse
Não concordo com essas formas
5,1
de acção
Nunca fui convidado 5,0
Não acredito que possa resolver o 3,6
problema
Tenho preguiça 3,2

Limitações sociais 2,8

Não é uma pessoa activista 2,2

NS/NR 6,3

N = 635.

No entanto, são também reconhecidas as limitações dos próprios inqui-


ridos: não ter tempo, não se preocupar com estes problemas, não concordar
com as formas de acção praticadas ou não as achar eficazes. Quando o
público se sente dependente e privado de poder, tende a construir raciona-
lizações e narrativas que normalizam essa dependência e falta de agência,
mecanismos para viver com o inexplicável e o incontrolável: negar o risco,
afirmar confiança nas autoridades, apatia (Wynne, 1996).
Em matéria de risco, um recurso ao alcance dos consumidores é o boicote
de produtos, especialmente manifesto no que respeita a produtos alimentares:
53% dos inquiridos afirmaram ter modificado os seus hábitos alimentares
devido à possibilidade de contrair doenças. De acordo com os resultados do
inquérito, a alteração das práticas de consumo alimentar parece ter sido sus-
citada pelos casos mais mediáticos, como a doença das vacas loucas ou as
suspeitas de contaminação dos frangos e outras aves com nitrofuranos (grá-
fico n.º 12). Curiosamente, estes não são os riscos alimentares com os quais
os inquiridos se declaram mais preocupados (v. acima). Acresce que poucos
inquiridos parecem ter desenvolvido comportamentos de prevenção associados
aos riscos que consideram mais graves, como a brucelose contraída a partir
do consumo de lacticínios ou a contaminação do peixe com metais pesados.
As principais recomendações das autoridades de saúde pública, por exemplo,
702 variar a alimentação, colhem poucos adeptos (7%). Convém, porém, notar
Os portugueses e os novos riscos: resultados de um inquérito

que algumas destas práticas de consumo são socialmente restritivas, aten-


dendo aos seus custos económicos: são os casos da alimentação vegetariana,
da aquisição de peixe ou de produtos da agricultura biológica10.

Forma de alteração dos hábitos alimentares


(em percentagem)
[GRÁFICO N.º 12]

Deixei de comer carne de vaca 38,2

Deixei de comer frango/aves 35,4

Diminuí o consumo de carne de 33,3


vaca
Diminuí o consumo de frango/ 32,4
aves
Passei a comer mais frutas e 9,2
legumes
Passei a escolher a origem/ 8,1
certificação
Diminuí o consumo de outros 7,6
produtos

Tento variar mais a alimentação 7,0

Deixei de comer outros produtos 6,6

Passei a comer apenas comida 4,1


vegetariana

Mudei de fornecedor 4,1

Passei a comprar produtos de 3,5


agricultura biológica

Passei a comer mais peixe 1,2

Alterações na forma de cozinhar 0,3


os alimentos

NS/NR 1,7

GESTÃO DO RISCO, INFORMAÇÃO E PARTICIPAÇÃO:


A IMPORTÂNCIA DA CONFIANÇA DO PÚBLICO

As percepções e os comportamentos do público perante o risco são


fortemente influenciados pela sua apreciação da forma como o risco é avalia- 703
Ana Delicado, Maria Eduarda Gonçalves

do e gerido pelas entidades competentes. As questões da confiança e da


credibilidade adquirem, assim, uma importância central.
A credibilidade das instituições e a confiança nelas depositada variam, desde
logo, consoante a natureza da própria instituição (governo, indústria, grupos
ambientalistas/de consumidores), sendo condicionadas por factores como a
capacidade técnica (no que respeita aos peritos), a abertura e a honestidade (no
que respeita às autoridades públicas) e a preocupação e cuidado demonstrados
(no que respeita às empresas) (Covello e Peters, 1996, p. 35; Wynne, 2002).
A confiança em indústrias perigosas, por exemplo, depende da existência de
mecanismos de controlo pelo Estado sobre as empresas e da disponibilidade
destas para fornecerem informação fiável (Gonçalves, 2003). Se o público
tiver vivido uma experiência anterior de ocultação da informação por parte
destas entidades, tenderá a depositar nelas menor confiança.
No presente inquérito solicitou-se aos inquiridos que fizessem uma ava-
liação da sua confiança na informação fornecida por diversos agentes (grá-
fico n.º 13). Os resultados indicam que são os médicos que granjeiam mais
confiança do público, seguidos pelos cientistas. As associações ambientalis-
tas ou de consumidores suscitam também níveis elevados de confiança. No
que respeita às autoridades políticas, as organizações supranacionais (União
Europeia) são de longe as que apresentam um nível mais elevado de credibi-
lidade, seguidas pelas autoridades locais. A administração central e as empresas
são os agentes em quem é depositada menor confiança. Estes dados conver-
gem, em larga medida, com os de estudos anteriores (Schmidt et al., 2000,
pp. 49 e 89; Nave et al., 2000, p. 132; Nave e Fonseca, 2004, p. 302).
Perguntou-se ainda aos inquiridos qual a importância por eles atribuída à
participação nos processos decisórios das populações, das empresas, das
associações ambientalistas e de consumidores, dos peritos científicos e dos
autarcas locais.
Constatou-se, em primeiro lugar, a prevalência do desejo de participação
das próprias populações, tanto as directamente afectadas como a população em
geral, se bem que também seja reconhecido um lugar de destaque na tomada
de decisão aos cientistas e às associações de defesa do ambiente e dos con-
sumidores. Mais uma vez, menor relevo foi dado às autoridades políticas e às
empresas. Resultados idênticos foram alcançados por Nave e Fonseca (2004,
p. 302) no inquérito «Os Portugueses e o Ambiente» de 2000.
A reivindicação pelos cidadãos de uma maior participação na gestão do
risco poderá estar associada ao recente declínio da confiança pública na
infalibilidade e neutralidade dos peritos, acentuado pela sucessão de contro-
vérsias científicas que se tornaram conhecidas na esfera pública (Beck,
1998, pp. 13-14, e 1999, p. 61; Cozzens e Woodhouse, 1995, p. 544;
Jasanoff, 1986, p. 10; Martin e Richards, 1995, p. 507; Gonçalves, 1999 e
704 2003; Nunes e Matias, 2003; Lima, 2005, p. 231).
Os portugueses e os novos riscos: resultados de um inquérito

Confiança na informação sobre o risco fornecida por diversos agentes

[GRÁFICO N.º 13]

Profissionais de
saúde/médicos

Cientistas/peritos

Associações
ambiente/consumo

a
União Europeia

Jornalistas

Autarquias locais

Estado

Empresas/indústrias

2,00 2,20 2,40 2,60 2,80 3,00 3,20 3,40


1 = nenhuma confiança; 4 = muita confiança.
N = 702.

Considerando que a ciência desempenha um papel fundamental como


instrumento de avaliação do risco e de suporte à sua gestão e que as atitudes
da população perante a ciência condicionam o modo como percebem e
agem perante o risco, solicitou-se aos inquiridos que exprimissem o seu grau
de concordância com um conjunto de proposições sobre a relação entre a
ciência e o risco. Verificou-se que as opiniões favoráveis à ciência são
apenas ligeiramente superiores às negativas: por um lado, 55% dos inquiridos
consideraram que os benefícios da ciência são maiores do que os riscos que
provoca e 61% que a ciência conseguirá dar resposta ao risco tecnológico;
por outro lado, 62% dos inquiridos concordaram que a ciência e a tecnologia
são responsáveis pelo aumento dos riscos e 43% consideraram que o pro-
gresso científico não compensa os riscos. Estes dados parecem contradizer
os valores atrás mencionados sobre a confiança na informação fornecida pelos
cientistas (80% dos inquiridos manifestaram muita ou alguma confiança) e na
importância do seu envolvimento na tomada de decisão sobre o risco (88% 705
Ana Delicado, Maria Eduarda Gonçalves

consideraram-no muito importante ou importante). Esta ambivalência perante


a ciência tem vindo, efectivamente, a ser detectada em vários outros inqué-
ritos e estudos (Castro, 2004; Valadas de Lima e Guerra, 2004a, p. 15 ;
Costa el al., 2002, p. 124; OCT, 1998 e 2000; Lima, 1999).
Agentes a consultar na tomada de decisões sobre o risco
[GRÁFICO N.º 14]

Populações afectadas

Associações
ambientalistas

População em geral

Cientistas

Associações
de consumidores

Autarcas locais

Empresas

2,60 2,80 3,00 3,20 3,40 3,60 3,80

1 = nada importante; 4 = muito importante.


N = 702.

No entanto, o sentimento de dependência em relação à perícia técnica


ficou patente nas respostas à pergunta sobre qual deveria ser a acção das
autoridades perante uma actividade ou produto relativamente ao qual subsista
incerteza sobre se representa um risco: 53% dos inquiridos afirmaram que
se deveriam pedir mais estudos e, entretanto, proibir essa actividade ou
produto. Um quarto dos inquiridos entendeu que se deveria simplesmente
proibir a actividade ou produto e apenas 10% admitiram autorizar a activi-
dade ou produto, com mais estudos (7%) ou não (3%). Pode dizer-se que
predomina uma atitude favorável à precaução.
Várias questões permitem aferir que os níveis de confiança no Estado e
nas empresas são relativamente baixos. Para além dos valores registados nos
gráficos n.os 13 e 14, foram formuladas algumas questões relativas à doença
706 das vacas loucas, que permitiram apurar que 67% dos inquiridos concordam
Os portugueses e os novos riscos: resultados de um inquérito

com a afirmação segundo a qual as autoridades tentaram esconder o proble-


ma, que 86% apontam que o risco foi agravado pela falta de fiscalização do
Estado e que 82% acham que o risco se agravou porque os produtores de
gado e de farinhas tentaram contornar a fiscalização. Estes dados parecem
reflectir a «antipatia pelo sector industrial» (Schmidt et al., 2000, p. 90),
bem como a insatisfação com o desempenho do Estado, detectadas em
estudos anteriores (Gil Nave e Fonseca, 2004, p. 280).
Esta desconfiança pode ser explicada por vários factores. De acordo com
as teorias prevalentes sobre a sociedade de risco, este está na origem da
politização do processo de produção industrial e da necessidade de reorga-
nização das formas tradicionais de exercício do poder e da autoridade. Em
face do risco, há necessidade de uma intervenção do Estado, que se mate-
rializa na regulação da actividade industrial apoiada em formas de
autoritarismo científico e burocrático (Beck, 1992, p. 79). A gestão do risco
compete aos decisores político-administrativos e consiste no processo de
apreciação e ponderação das diferentes acções possíveis e de selecção da
opção mais apropriada (Moatti e Lochard, 1987, p. 75; Beck, 1999, p. 4;
Adam e van Loon, 2000, p. 13). O discurso político sobre o risco recorre
com frequência a estratégias que projectam sentimentos de segurança: a
ocultação dos factos, rotinas de negação (uso do intervalo entre impacto
latente e conhecimento desse impacto para ocultar ou distorcer dados,
mobilização de contra-argumentos, elevação dos níveis de permissividade,
ênfase nos erros humanos e não nos erros de sistema — Beck, 1998, pp. 18-
-19, e 2000, p. 222), a asserção da calculabilidade dos riscos por especialistas
(Giddens, 2000, p. 38; Nelkin, 1995, p. 455; Lagadec, 1981, p. 138).
Como indica o gráfico n.º 13, tal como o Estado e as empresas, também
os media não atingem níveis elevados de confiança pública, apesar de, como
se viu, os meios de comunicação social constituírem a principal fonte de
informação dos indivíduos sobre o risco. As próprias características dos
riscos ambientais e de saúde pública (efeito sobre a vida quotidiana, po-
tencial de ameaça) tornam-nos um tema de notícia privilegiado pelos jorna-
listas. A amplificação ou a minimização de um risco na opinião pública
dependem, com efeito, fortemente do tratamento que lhe é conferido pelos
media (Slovic, 2002, p. 192; Schmidt, 2003; Douglas, 1985, p. 65; Peretti-
-Watel, 2001, p. 23; Theys, 1987, p. 24). Os media fazem, desfazem, selec-
cionam e reconstroem as situações de catástrofe, operam uma triagem entre
o banal e o espectacular, ocultando alguns riscos e amplificando outros. Con-
sequentemente, a percepção do risco tende a ser mais acentuada em eventos
dramáticos que recebem mais atenção dos media (saliência) e a atenção
mediática pode ainda gerar reacções na população para além do grupo de
pessoas efectivamente afectado pelo risco. Na opinião de alguns peritos, os
media são responsáveis pela promoção de «crenças irracionais» que conduzem 707
Ana Delicado, Maria Eduarda Gonçalves

o público a pressionar os poderes para que adoptem medidas reguladoras


excessivas. A atenção dedicada a riscos «mediatizados» diminui, inclusive, a
atenção prestada a riscos «reais» (Peretti-Watel, 2001, p. 22; Slovic, 2002,
p. 192): «Os mass media são acusados de estimularem, de forma irresponsá-
vel, os receios irracionais de um público ignorante» (Mendes, 2003, p. 41).
No entanto, as opiniões dos inquiridos também se dividiram quanto à
forma como os meios de comunicação social abordam a temática do risco
(gráfico n.º 15).

Opinião sobre a forma como os media apresentam o risco


(em percentagem)
[GRÁFICO N.º 15]

Depende
Depende dos
dos Não
Nãosabe/não
sabe/não
orgãos
órgãos de
de responde
responde
informação
informação 66
33
Depende
Dependedosdos
casos/tipo
casos/tipo de
de
risco
risco
6
6
Alarmista
Alarmista
43
43
Insuficiente
Insuficiente
1616

Adequada
Adequada
26
26
N = 702.

O público parece então partilhar os receios dos cientistas quanto à exac-


tidão das notícias sobre risco: 43% dos inquiridos classificaram a abordagem
mediática como alarmista, 26% consideram-na adequada e 16% insuficiente.
A opinião de que diferentes media produzem diferentes discursos sobre o
risco é expressa tão-só por 3% dos inquiridos. Quanto à doença das vacas
loucas, 58% dos inquiridos concordam com a afirmação de que os meios de
708 comunicação social exageraram a dimensão do risco.
Os portugueses e os novos riscos: resultados de um inquérito

DESIGUALDADES SOCIAIS: REPERCUSSÕES SOBRE AS PERCEPÇÕES


E AS PRÁTICAS PERANTE O RISCO

Nas secções precedentes foram analisadas as percepções, as atitudes e os


comportamentos perante o risco por parte da população em geral. Uma
análise complementar revelará, porém, que essas percepções, atitudes e
comportamentos não são uniformemente distribuídos na estrutura social.
O inquérito mostra que variáveis como o género, a idade, a escolaridade, a
situação laboral e o rendimento influem no modo como os indivíduos se
relacionam com o risco.
Em primeiro lugar, é notório que a ansiedade perante o risco ambiental11
é mais severa nos grupos sociais mais vulneráveis: mulheres, mais idosos,
menos escolarizados, fora do mercado de trabalho (desempregados, domés-
ticas, reformados) e de mais baixos rendimentos (gráfico n.º 16). Idênticos
resultados foram identificados no inquérito às atitudes sociais dos portugue-
ses de 2000 (Lima, 2004, p. 163) e em estudos internacionais (Lima, 2005,
p. 225). Aqueles serão também os indivíduos com menor acesso à informa-
ção, com maior dificuldade em descodificá-la, cujas escolhas são mais limi-
tadas e cuja capacidade de agir de forma a evitar um risco (seja mudar de
residência para se afastar de uma fábrica poluente, seja comprar produtos
alimentares provenientes da agricultura biológica para evitar consumir
pesticidas, seja pagar cuidados de saúde preventivos) se encontra mais
condicionada. Este grupo também se revelou menos optimista em relação à
evolução futura dos riscos: são ainda mais numerosos os respondentes que
pensam que os riscos tenderão a aumentar. A percepção agravada do risco
pelas mulheres poderá explicar-se não só pela conjugação com os outros
factores sócio-demográficos (mais velhas, menos escolarizadas, domésti-
cas), mas também pelo seu papel na protecção e prestação de cuidados à
família.
Quando se consideram os diferentes tipos de risco, a variação das per-
cepções segundo as características sociográficas dos respondentes é ainda
mais polarizada. Os grupos mais desfavorecidos revelam um maior receio do
risco tradicional, enquanto os «novos riscos» foram considerados mais gra-
ves pelos inquiridos que terminaram o ensino básico e que exercem profis-
sões liberais, científicas ou técnicas, o que leva a supor que a sua avaliação
possa requerer algumas competências escolares e meios de acesso e de
compreensão da informação. Os estratos sociais mais vulneráveis conferem
uma maior importância aos riscos agudos, aos grandes acidentes e catástro-
fes, que tendem a receber um maior destaque dos media mais populares,
como a televisão generalista e os tablóides. Por outro lado, devido, possivel-
mente, a uma maior familiaridade com a noção de probabilidade, os menos
preocupados com estes eventos raros foram os estudantes, os que concluí- 709
Ana Delicado, Maria Eduarda Gonçalves

Ansiedade perante os riscos ambientais e de saúde pública


[GRÁFICO N.º 16]

Homens
M ulheres

18 a 24 anos
25 a 34 anos
35 a 44 anos
45 a 54 anos
55 a 64 anos
65 e mais anos

Nenhum
Ensino primário
Ensino básico
Ensino secundário
Ensino superior

Estudante
Exerce profissão
Reformado/inc
Doméstica
Desempregado

Profis. lib., científ., técn.


Q. médios e superiores
Empregados comércio e serviços
Trabalhadores manuais

Até 500 euros


501 a 1000 euros
1001 a 2000 euros
2001 a 3000 euros
M ais de 3000 euros

3,20 3,25 3,30 3,35 3,40 3,45 3,50 3,55 3,60

1 = pouco preocupado; 4 = muito preocupado.


710 N = 702.
Os portugueses e os novos riscos: resultados de um inquérito

ram o ensino superior e os profissionais liberais ou científico-técnicos.


Também no que respeita à esfera de alcance do risco, o risco de proximi-
dade tende a ser considerado mais preocupante pelas mulheres, pelos mais
idosos, pelos menos escolarizados e de rendimentos mais baixos, que terão
menos meios de os evitarem. Os riscos globais, que escapam ao controlo
individual, sem diferenciação social, geram uma inquietação mais acentuada
e praticamente generalizada.
A preocupação com alguns riscos particulares também regista diferenças
significativas segundo os grupos sociais. Questões como a destruição da camada
de ozono e o esgotamento de recursos naturais preocupam mais os jovens e
escolarizados, provavelmente mais esclarecidos sobre a sua gravidade e
consequências. Os mais idosos e menos escolarizados revelam maior preocupa-
ção com o surgimento de novas doenças e com a clonagem e a manipulação
genética, podendo o receio em relação a estas estar associado ao desconheci-
mento e à imagem negativa transmitida pelos media. Como esperado, tendo em
conta os papéis sociais usualmente desempenhados, são as mulheres que regis-
tam índices mais altos de preocupação com os riscos alimentares.
As assimetrias sociais foram também notórias quanto aos comportamen-
tos de resposta ao risco. O hábito de procurar informação é mais frequente
nos indivíduos mais escolarizados, que exercem profissões científicas e
técnicas e dispõem de rendimento mais elevado (gráfico n.º 17). Dados
idênticos decorrem dos inquéritos já referidos realizados pelo Observa (Nave
et al., 2000, p. 117; Nave e Fonseca, 2004, p. 242). Entre os que afirmam
procurar informação sobre risco, também os meios de acesso à informação
são socialmente diversificados. Se o recurso aos media é generalizado, o
contacto com amigos e vizinhos mostra-se mais frequente nas mulheres e
nos inactivos e o recurso à Internet é típico dos mais jovens, mais escola-
rizados e com um rendimento mais elevado. Os indivíduos que não procu-
ram informação sobre o risco mobilizam diferentes argumentos para o jus-
tificarem: os mais jovens, os que atingiram um nível de escolaridade básico,
os activos e os desempregados afirmam mais frequentemente ter falta de
tempo ou de oportunidade para procurar essa informação. A incapacidade de
procurar informação, que está associada à carência de recursos escolares e
materiais, é característica dos mais velhos, menos escolarizados, reformados
e de mais baixo rendimento.
Também os índices de participação em acções de protesto variam em
função das características dos indivíduos (gráfico n.º 18). Este valor é
ligeiramente mais elevado no caso dos homens, dos escalões etários inter-
médios, dos estudantes e desempregados e dos profissionais liberais e cien-
tífico-técnicos — o que é conforme a estudos anteriores (Garcia et al.,
2000, p. 162; Gil Nave e Fonseca, 2004, p. 270). As mais baixas taxas de
participação são atingidas pelas mulheres, pelos mais idosos, pelos reforma-
dos e domésticas e pelos trabalhadores manuais. 711
Ana Delicado, Maria Eduarda Gonçalves

Hábito de procurar informação sobre risco


(em percentagem)
[GRÁFICO N.º 17]

Nenhum 47,3

Ensino primário 43,8

Ensino básico 57,8

Ensino secundário 67,0

Ensino superior 75,9

Quadros médios e superiores 43,8

Prof. liberais, cient., técn., art. 82,7

Empregados comércio e serviços 60,0

Trabalhadores manuais 45,3

Até 500 euros 47,9

501 a 1000 euros 55,6

1001 a 2000 euros 60,0

2001 a 3000 euros 76,9

Mais de 3000 euros 68,2

N = 702.

No que respeita à confiança nos agentes, também foi observada alguma


variação em função de variáveis sócio-demográficas. O grupo dos mais
velhos, menos escolarizados e de mais baixo rendimento revelou conferir
mais importância à participação das populações e maior confiança nos meios
712 de comunicação social (o que poderá indiciar uma menor capacidade de
Os portugueses e os novos riscos: resultados de um inquérito

escolha das fontes de informação). Os inquiridos mais jovens, mais escola-


rizados e exercendo profissões liberais, científicas e técnicas, manifestaram
uma maior confiança nas associações ambientalistas ou de consumidores e
na ciência (o que revelará porventura maior familiaridade com o discurso
científico).
Participação em actos de protesto perante um risco
(em percentagem)

[GRÁFICO N.º 18]

Homens 14,2

Mulheres 6,0

18 a 24 anos 14,6

25 a 34 anos 11,1

35 a 44 anos 5,4

45 a 54 anos 17,9

55 a 64 anos 5,7

65 e mais anos 7,1

Desempregado 15,4

Estudante 15,1

Exerce profissão 10,5

Reformado/incapacitado 8,6

Doméstico(a) 2,1

Prof. liberais, cient., técn., art. 17,3

Empregados comércio e serviços 11,6

Trabalhadores manuais 6,0

Quadros médios e superiores 3,1

N = 702.

CONCLUSÕES

O presente inquérito, não obstante a sua natureza exploratória, permitiu


obter resultados interessantes, que poderão abrir caminho no futuro a outros
estudos. 713
Ana Delicado, Maria Eduarda Gonçalves

Antes de mais, confirmou-se a centralidade do risco ambiental na percep-


ção contemporânea do risco em Portugal. Num contexto em que a noção de
risco é invocada nas mais diversas situações, os problemas ambientais estão
entre os mais imediatamente mencionados. Se os níveis de preocupação com
o ambiente e a saúde pública são, em geral, elevados, alguns dos riscos que
os afectam são especialmente temidos: os que detêm um carácter tecnoló-
gico, crónico e global.
Apesar da gravidade atribuída a estes tipos de risco, foi detectada uma
passividade generalizada em face deles. Pouco mais de metade dos inquiridos
procuram informação sobre estas matérias e, quando o fazem, esta chega-
-lhes por via dos meios de comunicação social e, sobretudo, da televisão.
A participação em acções de protesto regista taxas muito baixas. Os inqui-
ridos manifestam, contudo, a vontade de que sejam proporcionadas oportu-
nidades de participação à população nos processos de gestão do risco.
É clara, de acordo com este inquérito, a fraca confiança pública nos
gestores do risco — Estado e empresas. Já em relação à ciência, as atitudes
são ambivalentes: a elevada confiança nos peritos é acompanhada de receios
quanto às consequências do desenvolvimento científico. A relação com os
media é, ao mesmo tempo, de dependência e desconfiança: as populações
precisam deles para acederem à informação, mas exprimem reservas quanto
à exactidão da informação.
Por fim, observa-se que a diferentes estratos sociais correspondem per-
cepções e comportamentos distintos. A sociedade portuguesa aparece, nesta
como noutras matérias, dividida por um fosso causado por desigualdades
sociais de base. Uma camada, mais reduzida, de indivíduos mais jovens,
escolarizados e afluentes revela maior preocupação com os riscos da «mo-
dernidade avançada», mas também uma maior capacidade para obter infor-
mação, descodificá-la e intervir para limitar os riscos. Outra camada, mais
numerosa, formada por indivíduos mais idosos, menos escolarizados, fora
do mercado de trabalho e com menos rendimentos, exprime uma maior
ansiedade perante o risco, inclusivamente o risco tradicional, acompanhada
de menos informação, menor participação, menor capacidade de reivindicar
e de defender os seus interesses.
Os dados deste inquérito alertam para aspectos de relevância para os
gestores do risco, quer públicos, quer privados. Um maior conhecimento do
modo como o público percepciona o risco pode permitir antecipar eventuais
reacções de contestação e desenvolver iniciativas para as evitar ou atenuar.
A vontade de participar nos processos de tomada de decisão expressa pelos
inquiridos chama a atenção para a necessidade de um mais amplo envolvi-
mento das populações na gestão do risco. Os elevados níveis de desconfian-
ça podem ser combatidos por meio de uma gestão de risco mais transparen-
714 te, dialogada e atenta às preocupações e aspirações das populações.
Os portugueses e os novos riscos: resultados de um inquérito

Este inquérito pretende ser um contributo de natureza quantitativa para uma


área onde são já frequentes os estudos qualitativos. Deixa, no entanto, em aberto
várias questões, que carecem de investigação mais aprofundada e do recurso a
metodologias complementares, designadamente estudos de caso. Por exemplo,
a aceitabilidade de um risco depende, presume-se, da contrapartida em termos
de benefícios sociais e económicos proporcionados aos indivíduos ou popula-
ções. Ora, esta presunção só pode ser testada à luz de um contexto concreto.
Também a questão de saber em que medida as percepções e comportamentos
perante o risco são função da sujeição a ameaças concretas e imediatas implicaria
analisar essas percepções e comportamentos em populações distintas, por exem-
plo, uma residente junto de projectadas incineradoras de resíduos e outra sujeita
a níveis médios de risco. A sociologia do risco é, pois, um campo de investi-
gação fértil e pertinente que carece de estudos mais numerosos e diversificados.

NOTAS

1
O inquérito foi realizado em 2003, no âmbito do estudo «Novos riscos, tecnologia e
ambiente» do programa OBSERVA — Ambiente, Sociedade e Opinião Pública, que incluiu
ainda três estudos sobre os casos da co-incineração, da doença das vacas loucas e do urânio
empobrecido nos Balcãs. O relatório integral do inquérito pode ser consultado no seguinte
endereço na Internet: http://observa.iscte.pt/v2/docs/03%20Relatorio%20Inquirito.pdf. Agra-
decemos a colaboração, na preparação e análise deste inquérito, de João Ferreira de Almeida,
Cristiana Bastos, Gil Nave, Luísa Schmidt, Hélder Raposo e Mafalda Domingues.
2
A aplicação telefónica do inquérito por questionário foi realizada em Junho de 2003
pela empresa Metris a uma amostra de 700 indivíduos residentes em Portugal continental, em
lares com telefone. 57% dos inquiridos são mulheres, 26% com idades compreendidas entre
18 e 34, 45% entre 35 e 65 e 30% mais de 64 anos. 5% do inquiridos não completaram
qualquer grau de escolaridade, 43% completaram o ensino básico, 24% o ensino secundário
e 27% o ensino superior (a sobrerrepresentação dos grupos mais escolarizados foi equilibrada
com um ponderador). 32% dos inquiridos residem no Norte do país, 31% no Centro, 28%
em Lisboa e Vale do Tejo, 4% no Alentejo e 5% no Algarve.
3
Foram utilizados os seguintes testes estatísticos, considerando-se um nível de significân-
cia inferior ou igual a 0,05: testes de independência (quiquadrado) e medidas de associação (Phi,
V de Cramer) para as variáveis nominais; testes à diferença de médias (análise de variância
ANOVA e T-test) para as variáveis ordinais ou contínuas.
4
Este indicador compósito foi construído com base na média aritmética das respostas às
questões relativas a catástrofes naturais, esgotamento de recursos, escassez de água potável,
terramotos, cheias e incêndios (alfa de Cronbach = 0,7).
5
Este indicador compósito foi construído com base na média aritmética das respostas às
questões relativas a acidentes nucleares, à destruição da camada de ozono, à contaminação
alimentar, a novas doenças, a alterações climáticas, à clonagem, a marés negras, a resíduos
industriais, a acidentes industriais, a doenças causadas pela poluição (alfa de Cronbach = 0,8).
6
Este indicador compósito foi construído com base na média aritmética das respostas às
questões relativas a alterações climáticas, escassez de água potável, destruição da camada de
ozono, contaminação alimentar, clonagem, novas doenças, esgotamento de recursos, conta-
minação por resíduos industriais, contaminação da água da torneira, doenças causadas pela
poluição do ar (alfa de Cronbach = 0,8).
7
Este indicador compósito foi construído com base na média aritmética das respostas às
questões relativas a catástrofes naturais, acidentes nucleares, terramotos, cheias, incêndios
florestais, marés negras, acidentes industriais (alfa de Cronbach = 0,8). 715
Ana Delicado, Maria Eduarda Gonçalves
8
Este indicador compósito foi construído com base na média aritmética das respostas às
questões referidas no gráfico n.º 4 (alfa de Cronbach = 0,8).
9
Este indicador compósito foi construído com base na média aritmética das respostas às
questões referidas no gráfico n.º 5 (alfa de Cronbach = 0,9).
10
A equipa do OBSERVA detectou no inquérito «Os Portugueses e o Ambiente II»,
realizado em 2000, uma predisposição generalizada para consumir produtos de agricultura
biológica (70% dos inquiridos) que não tinha correspondência nas práticas quotidianas (apenas
36% declararam já alguma vez ter consumido estes produtos) (Schmidt et al., 2004, p. 205).
11
Indicador construído com base na média das respostas sobre o grau de preocupação com
o conjunto de riscos globais e nacionais acima mencionado (alfa de Cronbach = 0,9).

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