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A legalidade realista no direito

administrativo sancionador
Sanções podem não ser aplicadas de acordo com a
experiência prática
Por Alice Voronoff e Juliana Bonacorsi de Palma*
30/03/2023 11h10  Atualizado há 3 horas

Símbolo da Justiça em frente ao Supremo Tribunal Federal, em


Brasília Cristiano Mariz
A legalidade é sem dúvida um dos princípios mais badalados e
controversos nas prosas jurídicas. Não que se duvide de sua
importância para o Estado Democrático de Direito. Mas em alguns
campos, seu sentido e alcance ainda estão sujeitos a um enorme grau
de incompreensão. Este artigo busca justamente provocar reflexões
sobre o sentido da legalidade no direito administrativo sancionador.
Em uma pergunta: a experiência prática pode trazer alguma ordem de
limitação ao poder de o Estado punir? E nada melhor do que fazê-lo a
partir de problemas hipotéticos, numa espécie de convite ao leitor para
que teste suas convicções. A eles.
Problema n. 1: caso do cachorro no parque. Na cidade Feliz, há um
belo parque municipal no qual uma placa avisa: “Proibida a entrada de
animais. Infração sujeita a multa administrativa”. Felícia se mudou
para a cidade Feliz há cerca de 3 anos e passou a morar em um
apartamento com vista para o parque. Desde então, observa que
muitas pessoas frequentam o parque com seus bichinhos de estimação
e, curiosa, resolveu perguntar aos usuários se já haviam sido multados.
Todos responderam negativamente e frisaram que isso jamais
ocorreria porque a cidade Feliz seria historicamente um lugar amigo
dos animais. Mais segura, Felícia comprou um cãozinho e resolveu
passear com o novo amigo no parque. Qual não foi a surpresa quando,
alguns dias depois, recebeu uma notificação de infração para que
pagasse multa por desobedecer à proibição constante da lei municipal
de ordenação dos parques urbanos. Pergunta-se: é legítimo o auto de
infração lavrado contra Felícia?
 Paulo Freitas Ribeiro: A (in)eficiência das alternativas
punitivistas no combate a organizações criminosas
Problema n. 2: caso da mudança de interpretação. A empresa Eficiente
celebrou contrato de PPP com o município Moralidade, na modalidade
de concessão administrativa, para construir e administrar determinado
hospital municipal. De acordo com o contrato, a concessionária está
sujeita à aplicação de multa sempre que for constatada fila de espera
para internações com 10 ou mais pacientes por pelo menos 3 vezes no
mesmo mês. Diz o contrato, contudo, que a penalidade deixará de ser
aplicada nos casos de aumentos de demanda gerados por surtos virais
classificados como graves. Assim foi que, no ano de 2010, verificado
o gatilho contratual por conta de um surto de gripe, a empresa
Eficiente deixou de ser punida com base na cláusula de exceção
prevista no contrato. Em 2015, deflagrado novo gatilho de demanda
em razão de um surto de gastroenterite, a empresa mais uma vez
invocou a exceção contratual e não foi sancionada. Mas em 2020,
após um aumento exponencial da demanda hospitalar em razão de
novo surto de gripe, o pedido de aplicação da exceção foi rejeitado.
Segundo o ente municipal, o conceito de “surto viral grave” seria
indeterminado e, por isso, passível de reinterpretação no tempo. Logo,
à luz do conhecimento científico mais recente, haveria elementos para
se retirar a gripe da categoria de virose grave. No máximo, de
gravidade média. Por conseguinte, se imporia a aplicação da
penalidade contratual.
Problema n. 3: caso do prefeito expansivo. No município da Alegria,
Seu João montou uma pequena lanchonete para incrementar a renda
familiar. Ele sabia que, de acordo com as normas de ocupação do solo
urbano, não poderia colocar mesas e cadeiras nas calçadas para servir
sua clientela. Mas desde que o prefeito Felicidade assumiu o comando
do Poder Executivo, passou a dizer publicamente que tais regras
seriam contrárias aos interesses da população. Afinal, as mesinhas
expandiriam os espaços de lazer da cidade e todos ganhariam em bem-
estar. Incentivado pelas declarações públicas do prefeito, Seu João
colocou 5 mesinhas em frente à sua lanchonete, como o fizeram outros
comerciantes. Quatro anos depois, contudo, recebeu diversas
autuações da Secretaria Municipal da Ordem Pública pelo
descumprimento flagrante da legislação vigente. Perplexo, Seu João
procurou o ex-prefeito para resolver esse absurdo, mas não teve
sucesso. Segundo Felicidade, as regras seriam válidas e nunca teriam
sido revogadas ou anuladas, apesar de considerá-las de mau gosto.
São três casos que podem ser resolvidos à luz da legalidade. Mas
dependendo do sentido que se atribua ao princípio, as respostas serão
diametralmente opostas.
 Carlos Ari Sundfeld: Direito Administrativo na era das
instabilidades institucionais
No sentido formal, de uma legalidade positivada, é possível defender
que Felícia, a empresa Eficiente e Seu João devem ser sancionados.
Trata-se da aplicação da legislação tomada como uma fotografia: a
imagem estática daquilo que consta dos códigos. A isso se poderia
adicionar um argumento de autoridade: a natureza vinculada da
atividade sancionatória da Administração Pública. Descumprida a
regra formal, cabe ao administrador aplicar a consequência prevista no
comando jurídico, sob pena de prevaricar. Isso, frise-se,
independentemente de comparações com casos ou momentos diversos.
Já se o leitor trilhar pela legalidade material — i.e., a legalidade
enquanto juridicidade, como vinculação ao ordenamento jurídico,
incluindo a normatividade constitucional —, é possível defender que
Felícia, a empresa Eficiente e Seu João não podem ser sancionados.
Nos três casos, porque o comportamento da Administração Pública
não pode ser ignorado. Como num filme, ele importa. Mais do que
isso, ele integra o sentido de legalidade. No primeiro caso, a omissão
da prefeitura por um tempo considerável criou em Felícia a percepção
de que entrar com animaizinhos no parque era a regra na cidade Feliz,
e não o contrário. Como ela poderia pensar de modo diverso, se ao
longo de pelo menos três anos todos os seus vizinhos e frequentadores
levaram seus cães, gatos e bichinhos ao parque? No segundo caso, a
empresa Eficiente tinha exemplos de situações pretéritas vivenciadas
ao longo da execução contratual em que o Poder Concedente
claramente manifestou seu entendimento a propósito dos surtos virais,
incluindo os de gripe. Poderia ela ser surpreendida com a sanção em
situação análoga, sob o pretexto de aplicação de um entendimento até
então jamais externalizado pela Administração Pública? No terceiro
caso, as declarações públicas do chefe do Poder Executivo, seguidas
do apoio das autoridades à ocupação das calçadas, gerou em Seu João
a convicção de que a proibição teria sido superada. Pode-se afirmar
que ele agiu de má-fé, com a intenção de descumprir as regras de
ocupação do espaço urbano?
Enfim, a questão é saber se há resposta certa a cada um desses
problemas, ou se a beleza do Direito consiste justamente na
pluralidade de raciocínios legítimos que possam ser desenvolvidos. A
nosso ver, há resposta certa: apenas o sentido material de legalidade
resolve legitimamente tais casos. É que não há legalidade possível
sem previsibilidade. O poder de punir da Administração Pública
pressupõe que os particulares conheçam com clareza as condutas que
lhe são vedadas ou exigidas. E isso não se verifica nas três situações
hipotéticas analisadas. Seja pelo costume de o Poder Público tolerar o
descumprimento da lei, na primeira delas; pela mudança de
interpretação, na segunda; pelas declarações públicas de cunho
orientativo, na terceira. A verdade é que Felícia, a empresa Eficiente e
Seu João foram legitimamente induzidos a acreditar que se
comportavam em conformidade com o ordenamento jurídico.
 Gilmar Mendes: Liberdade de expressão, redes sociais e
democracia
Apenas o sentido material da legalidade considera a realidade. E há
muitas formas de a Administração Pública — a maior intérprete do
Direito — modificar o mundo dos fatos: práticas, costumes,
precedentes, orientações, tolerâncias, decisões, atos de execução
material, omissões etc. Leis, decretos e regulamentos são documentos
com textos escritos. Sem se conectarem com a realidade, nada são. A
norma jurídica é a interpretação que se confere ao texto normativo
diante de uma situação concreta, que também compreende as várias
expressões da Administração Pública.
Ao levar seu cachorro ao parque, Felícia cumpriu com a norma de
admitir cachorros no parque fruto da tolerância das autoridades
públicas, embora o texto legal os proibisse. A empresa Eficiente
cumpriu com a norma de compreender “surto viral grave” conforme
decisões pretéritas do Poder Público. Seu João cumpriu à risca as
orientações do ex-prefeito Feliz, chefe do Poder Executivo e com
hierarquia na interpretação normativa. Esses são todos exemplos
de conformidade. Por isso afirmar com tanta ênfase que a legalidade
formal não foi recepcionada no Direito Administrativo Sancionador,
apesar de esta ideia ainda ser forte na cultura jurídica brasileira,
levando ao exercício sistemático do poder sancionador de modo
ilegítimo e teratológico.
Em rigor, os casos hipotéticos acima sequer são difíceis. Há
problemas um tanto mais complexos com os quais se preocupar no
direito. Otimizemos nossas energias.
*Alice Voronoff é procuradora do Estado do Rio de Janeiro e
advogada. Mestre e doutora em direito público pela UERJ. Diretora
acadêmica da Instituto de Direito Administrativo Sancionador
Brasileiro (IDASAN).
**Juliana Bonacorsi de Palma é professora da FGV Direito SP.
Coordenadora do Grupo Público da FGV Direito SP. Mestre e
doutora pela Faculdade de Direito da USP. Master of Laws pela Yale
Law School.

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