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O DIREITO DA MULHER E DA INFÂNCIA COMO DIREITOS FUNDAMENTAIS


SOB A PERSPECTIVA DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

THE RIGHT OF WOMEN AND CHILDREN AS A FUNDAMENTAL RIGHTS FROM THE


PERSPECTIVE OF THE FEDERAL CONSTITUTION

EL DERECHO DE LA MUJER Y DE LA INFANCIA COMO DERECHOS


FUNDAMENTALES BAJO LA PERSPECTIVA DE LA CONSTITUCIÓN FEDERAL

Leslie Ayumi Ikeno1

Alexandre Coutinho Pagliarini2

Resumo: A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5839, ajuizada pela Confederação


Nacional dos Trabalhadores Metalúrgicos, teve por escopo questionar o condicionamento
posto ao afastamento da empregada gestante ou lactante de atividades consideradas
insalubres, elencado pela expressão “quando apresentar atestado de saúde emitido por médico
de confiança da mulher, que recomende o afastamento” do art. 394-A, II e III, da
Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), introduzida pela Reforma Trabalhista. Em
extensos e complexos votos, os ministros da Corte, por maioria, vencido o Ministro Marco
Aurélio, acordaram em confirmar a medida cautelar e julgaram procedente o pedido
formulado para declarar a inconstitucionalidade da expressão questionada, nos termos do voto
do Ministro Alexandre de Moraes. Esta produção pretende analisar, do ponto de perspectiva
histórico e do conteúdo de documentos oficiais do país, os motivos pelos quais os ministros
da Corte entenderam ser inconstitucional o dispositivo da norma posta em questionamento na
ADI 5839. Com o intuito de munir o leitor de informações para a compreensão e análise da
questão levada ao Supremo, o trabalho aborda brevemente os importantes eventos e avanços
em períodos relevantes da história na construção dos Direitos Fundamentais, com foco na
estruturação dos direitos da mulher e da criança na sociedade.

Palavras-chave: ADI 5829. Direitos Fundamentais. Direitos da mulher e da criança.

Abstract: The Direct Action of Unconstitutionality (ADI) 5839, filed by the National
Confederation of Metallurgical Workers, had the scope to question the conditioning placed
on the removal of pregnant or lactating employees from activities considered unhealthy,
listed by the expression "when presenting a health certificate issued by a woman's trusted
physician, which recommends removal" of art. 394-A, II and III, Consolidation of Labor
Laws (CLT), introduced by the Labor Reform. In extensive and complex votes, the ministers
of the Court, by majority, defeated Minister Marco Aurelio, agreed to confirm the
precautionary measure and upheld the request formulated to declare the unconstitutionality
of the expression questioned, in accordance with the vote of Minister Alexandre de Moraes.
This production intends to analyze, from the historical perspective and the content of official
documents of the country, the reasons why the Ministers of the Court understood to be
unconstitutional the provision of the standard put into question in ADI 5839. In order to
provide the reader of information for the understanding and analysis of the issue brought to
the Supreme, the paper briefly addresses the important events and advances in relevant
periods of history in the construction of Fundamental Rights, focusing on the structuring of
women's and children's rights in society.

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Key words: ADI 5839. Fundamental Rights. Women's and children's rights.

Resumen: La Acción Directa de Inconstitucionalidad (ADI) 5839, interpuesta por la


Confederación Nacional de Trabajadores Metalúrgicos, tenía el alcance de cuestionar el
condicionamiento impuesto al retiro de las empleadas embarazadas o lactantes de
actividades consideradas insalubres con la expresión "al presentar un certificado de salud
emitido por el médico de confianza de una mujer, que recomienda la remoción" del art. 394-
A, II y III, Consolidación de las Leyes Laborales (CLT), introducida por la Reforma Laboral.
En extensas y complejas votaciones, los ministros de la Corte, por mayoría, derrotaron al
ministro Marco Aurelio, acordaron confirmar la medida cautelar y acogieron la solicitud
formulada para declarar la inconstitucionalidad de la expresión cuestionada, de
conformidad con el voto del ministro Alexandre de Moraes. Esta producción pretende
analizar, desde la perspectiva histórica y el contenido de los documentos oficiales del país,
las razones por las cuales los Ministros de la Corte entendieron como inconstitucional la
disposición de la norma puesta en cuestión en la ADI 5839. Con el fin de proporcionar al
lector información para la comprensión y el análisis del tema llevado al Supremo, el
documento aborda brevemente los acontecimientos y avances importantes en períodos
relevantes de la historia en la construcción de los Derechos Fundamentales, centrándose en
la estructuración de los derechos de las mujeres y de los niños en la sociedad.

Palabras-clave: ADI 5839. Derechos Fundamentales. Derechos de las mujeres y de los niños.

Sumário. 1. Escorço do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5839. 2.


Síntese histórica dos direitos fundamentais e a posição da mulher e da criança nesses cenários.
3. Síntese histórica das constituições brasileiras e a posição da mulher e da infância nesses
cenários. 3.1. Direitos da mulher e da infância na Constituição Federal de 1988. 4. Análise do
conflito de direitos a partir dos votos proferidos na ADI 5839. 5. Conclusões. 6. Referências.

Summary. 1. Synthesis of the judgment of ADI 5839. 2. Historical synthesis of fundamental


rights and the position of women and children in this scenario. 3. Historical synthesis of
Brazilian constitutions and the position of women and children in this scenario. 3.1 Women’s
and children’s rights in the Brazilian Federal Constitution of 1988. 4. Analysis of the conflict
of rights based on the votes cast in ADI 5839. 5. Conclusions. 6. References.

Sumário. 1. Síntesis del juzgamiento de la ADI 5839. 2. Síntesis histórica de los derechos
fundamentales y la posición de las mujeres y la infancia en este escenario. 3. Los derechos de
la mujer y de la infancia en la Constitución Federal brasileña de 1988. 4. Análisis del
conflicto de derechos a partir de los votos emitidos en la ADI 5839. 5. Conclusiones. 6.
Referencias.

1 ESCORÇO DO JULGAMENTO DA AÇÃO DIRETA DE


INCONSTITUCIONALIDADE (ADI) 5839

A Ação Direta de Inconstitucionalidade 5839, ajuizada pela Confederação Nacional


dos Trabalhadores Metalúrgicos, teve por escopo questionar o condicionamento posto ao
afastamento da empregada de atividades consideradas insalubres - em grau médio ou mínimo
durante a gestação e em qualquer grau durante a lactação - elencado pela expressão “quando
apresentar atestado de saúde emitido por médico de confiança da mulher, que recomende o
3

afastamento” do art. 394-A, II e III,1 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT),


introduzido pelo art. 1º da Lei 13.467/20172 que tratou da Reforma Trabalhista.

O argumento utilizado para respaldar a demanda foi o de que a norma mencionada


vulneraria dispositivos constitucionais sobre a proteção à maternidade, à gestante, ao
nascituro e ao recém-nascido; violaria a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do
trabalho e o objetivo fundamental da República de erradicar a pobreza e de reduzir as
desigualdades sociais e regionais; desprestigiaria a valorização do trabalho humano e não
asseguraria a existência digna; afrontaria a ordem social brasileira e o primado do trabalho,
bem-estar e justiça sociais; vulneraria o direito ao meio ambiente do trabalho equilibrado e
violaria o princípio da proibição do retrocesso social.

Em extensos e complexos votos, os ministros da Corte, por maioria, vencido o


Ministro Marco Aurélio, acordaram em confirmar a medida cautelar e julgaram procedente o
pedido formulado para declarar a inconstitucionalidade da expressão questionada, nos termos
do voto do Ministro Alexandre de Moraes.

Em suma, os julgadores entenderam ser inconstitucional a questão demandada por esta


condicionar a efetividade de direitos sociais que são consagrados constitucionalmente como
uma das espécies de direitos fundamentais e como fundamentos do Estado Democrático e que
devem, obrigatoriamente, ser observados em um Estado Social de Direito (art. 1º, IV, CF).
Além disso, segundo os magistrados, a Constituição proclama importantes direitos em seu art.
6º, dentre eles a proteção à maternidade, considerada a razão para inúmeros outros direitos
sociais instrumentais, como à licença-gestante e à segurança no emprego, o direito de
proteção do mercado de trabalho da mulher - através de incentivos específicos - e de redução
dos riscos inerentes ao trabalho - por meio de normas de saúde, higiene e segurança.

Por derradeiro, entenderam os ministros que a proteção contra a exposição da gestante


e lactante a atividades insalubres se revela um importante direito social instrumental protetivo
da mulher e da criança, de modo a salvaguardar os direitos sociais da mulher e a efetivar a

1
Art. 394-A. Sem prejuízo de sua remuneração, nesta incluído o valor do adicional de insalubridade, a
empregada deverá ser afastada de: (Redação dada pela Lei nº 13.467, de 2017) II - atividades consideradas
insalubres em grau médio ou mínimo, quando apresentar atestado de saúde, emitido por médico de confiança da
mulher, que recomende o afastamento durante a gestação; (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017) (Vide ADIN
5938) III - atividades consideradas insalubres em qualquer grau, quando apresentar atestado de saúde, emitido
por médico de confiança da mulher, que recomende o afastamento durante a lactação. (Incluído pela Lei nº
13.467, de 2017) (Vide ADIN 5938).
2
Art. 1 o A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de
1943, passa a vigorar com as seguintes alterações.
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integral proteção ao recém-nascido, possibilitando seu pleno desenvolvimento, de maneira


harmônica, segura e sem riscos decorrentes da exposição a ambiente insalubre. E, ainda, por
se tratar as proteções à maternidade e à criança de direitos irrenunciáveis, não podem ser
afastados pelo desconhecimento, impossibilidade ou pela própria negligência da gestante ou
lactante em apresentar atestado médico, sob pena de prejudicá-la e prejudicar o recém-
nascido.

2 SÍNTESE HISTÓRICA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E A POSIÇÃO


DA MULHER E DA CRIANÇA NOS RESPECTIVOS CENÁRIOS

“No cenário da história universal, já se perdem ao longe, com as


tonalidades esmaecidas, pelo implacável perpassar das décadas, as
opressões sem tréguas, exercidas sobre a mulher, sobre suas atividades e
suas manifestações intelectuais.”1

Quando se fala em Direitos Fundamentais, seja de seu âmbito conceitual, de sua


formação histórica, de suas funções ou, ainda, dos motivos pelos quais se concretiza a sua
importância, tem-se um vasto arsenal de informações, pontos de perspectivas - históricas,
jurídicas, políticas, sociológicas, filosóficas etc. - e ensaios sobre a temática. Certo que há um
consenso acerca do tema, em que pese a sua complexidade, esta breve menção histórica se
limitará a expor - e não esgotará todo o instituto dos Direitos Fundamentais - elementos
contributivos para a compreensão desta produção.

Partiremos da perspectiva na qual se tem os direitos fundamentais como ponto


essencial em decorrência de sua capacidade exponencial quando inserida no contexto dos
Estados de direito modernos. Pode-se dizer, assim, que os direitos fundamentais são
elementares constitutivos do Estado constitucional democrático. Ou, ainda, que entre os
direitos fundamentais e a ideia de liberdade democrática desenvolveu-se uma relação
simbiótica, da qual o rompimento conduziria ao abandono do Estado constitucional
democrático.

Nesse sentido, numa visão hodierna, a positivação em série dos direitos fundamentais
é um fenômeno da modernidade, de modo que esses direitos nascem com o próprio Direito
Constitucional escrito no século XVIII, e que, antes disso, o que havia eram movimentos
efêmeros, declarações e/ou normas jurídicas à parte.2 Em suma, Constituição e direitos

1
RUSSOMANO, Rosah. A mulher na constituição brasileira e o sistema dos países americanos. Porto Alegre:
Tip. Santo Antonio do Pão dos Pobres, 1955.
2
PAGLIARINI, Alexandre. Direito Constitucional: primeiras linhas. Curitiba: InterSaberes, 2022.
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fundamentais são contemporâneos. A interpretação da expressão destes, a partir deste


momento, deverá ser tida tal qual.

Dito isso, para traçar um panorama geral do que comporta o instituto dos Direitos
Fundamentais na sociedade atual e o que engloba a proteção à mulher e à criança, é necessário
destacar que essas estruturas foram se concretizando - e ainda continuam a se concretizar, tal
como se fez na questão julgada pelo STF - ao longo da história, desde o início da formação da
vida em comunidade e da interação entre indivíduos, através de lutas e reivindicações
incessantes, de forma que cada conquista somada - essas que hoje constam no rol catalogado
dos direitos fundamentais - se deram em virtude de sua necessidade em determinado cenário
histórico.

Quando das primeiras formações de comunidades com estruturas mais complexas, na


Antiguidade, os direitos reconhecidos eram válidos restritamente a algumas pessoas. Nesse
sentido, àquela época, onde havia nítida organização social em castas e, ademais, assentada
em uma estrutura escravocrata, na Roma, por exemplo, somente eram considerados cidadãos
– aqueles com capacidade política - os homens livres e, ainda assim, com ressalvas. Já na
Grécia Antiga, eram considerados cidadãos os homens com mais de 21 anos, que fossem
atenienses e filhos de pais atenienses.

Esse cenário, transportado para a realidade da mulher, se restringia ainda mais, pois
estas não eram autorizadas a ter acesso à escrita e eram impedidas de participar de debates
políticos da sociedade. Notadamente, essa marginalização imposta à mulher na construção da
sociedade se traduzia em uma visão patriarcal de que seu papel era o de constituir família -
destaque para o ponto em que, muitas vezes, eram vendidas sem direito de escolha para se
casarem e, mais grave, a depender de sua posição econômica e social, eram escravizadas ou
submetidas à prostituição - e de ser responsável pelas atribuições domésticas, apenas.

Sob esta perspectiva:

“Em verdade, a situação peculiar ao tempo do primitivismo das cavernas,


embora abrandada, prolongou-se através dos séculos, longa e
dolorosamente. Àquela época, o homem, armado do sílex, saía à procura do
alimento e à perseguição do inimigo. Sua companheira, porém, permanecia,
no silêncio do anonimato, a aguardar seu retorno. Sua situação secundária
persistiu, nas fases da agricultura e da pecuária. Apesar das
transformações tecidas, pela própria evolução, aos tempos lendários da
Grécia antiga, não havia, ainda, uma paridade de posições, pois que a
mulher, em regra, não se aproximava, sequer, das abstrações filosóficas,
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nem se imiscuía nos problemas nacionais, competindo apenas às livres


cortesãs as incursões nos domínios dos estudos. Também nos anos dos
esplendores de Roma, jamais pôde, porque lhe barraram o caminho e
porque suas próprias condições culturais não a favoreciam, emprestar suas
forças à soberba estruturação do Direito. E, em plena Idade Média,
permaneceu enclausurada e distante das pugnas gloriosas e idealistas”. 1

Por outro lado, na esfera das crianças e dos adolescentes, o que se tem do período é
uma ausência importante de atenção e proteção. Exemplo disso é o trabalho infantil comum
na época ou, ainda, a militarização de meninos a partir de seus sete anos, em Esparta. Em
síntese, pode-se registrar que o olhar voltado com atenção para a criança e para o adolescente
tem seus primeiros passos na modernidade, o que será abordado com mais profundidade
adiante.

Avançando no período histórico, nota-se a contribuição para a mudança de perspectiva


quanto à posição do homem advinda do Cristianismo, de modo que a cultura passa a colocar o
homem num comparativo à imagem de Deus. Embora o período tenha introduzido no enredo
da história o pensamento da dignidade da pessoa, a ideia de liberdade pessoal e o
reconhecimento da capacidade humana à autodeterminação e ao princípio da igualdade de
toda pessoa perante Deus, essas ideias restringiam sua aplicabilidade ao homem adulto livre.
De lado outro, as mulheres sofreram muitas perseguições no que ficou conhecido como a
Inquisição2; isto é, a influência da Igreja na sociedade - que pregava uma “tendência natural”
da mulher a se tornar bruxa - fazia com que todo e qualquer comportamento que divergisse do
que era determinado fosse tido como inaceitável, e isso ocorria quando parteiras e
curandeiras, por exemplo, faziam seu trabalho e eram automaticamente taxadas de bruxas,
sendo, muitas delas, torturadas e queimadas vivas.

Por derradeiro, destacam-se duas das mais relevantes declarações de direitos da Idade
Média, a Magna Charta Libertatum do ano de 1215 e o Tubinger Vertrag do ano de 1514, as
quais, ressalta-se, tratavam apenas de liberdades corporativas e privilégios de algumas classes.
No contexto do gênero, houve um pequeno avanço, pois nesse período, na França, há registros
de que mulheres administravam propriedades como senhoras feudais, o que, até então, não era
permitido. Com a ressalva de que esse domínio de propriedade se dava diante da autorização
de homens, pois a mulher não tinha direitos políticos ou de participação na sociedade, pode-se
1
RUSSOMANO, Rosah. A mulher na constituição brasileira e o sistema dos países americanos. Porto Alegre:
Tip. Santo Antonio do Pão dos Pobres, 1955.
2
No século XIII, a Igreja criou o Tribunal do Santo Ofício – que ficou conhecido como Inquisição – para
impedir que pessoas desvirtuadas dos ensinamentos cristãos deixassem de seguir a instituição. Para tanto,
utilizou-se de variados mecanismos de perseguição e punição. Os suspeitos, compostos majoritariamente por
mulheres, eram presos e considerados culpados até provarem sua inocência.
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dizer que, se bem os direitos subjetivos e liberdades para toda pessoa humana não estavam
garantidos - aliás, longe disso -, o Cristianismo e as declarações da Idade Média contribuíram
para que fosse desenvolvida a ideia dos direitos fundamentais.

Foi na Idade Moderna que as remadas dos blocos históricos anteriores encontraram
eco e passaram a ver seus esforços se materializarem na prática, com a positivação de direitos
em declarações nacionais. Não obstante, no âmbito do gênero, as reivindicações das mulheres
passaram a ganhar robustez apenas anos mais tarde, mormente com a Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão na França. Nas palavras de Rosah Russomano:

“Foi então que, nos horizontes da História, despontou a aurora promissora


da Idade Moderna, que haveria de imprimir radicais transformações ao
panorama e que haveria de trazer, em seu seio, a causa eficiente e principal
da emancipação da mulher”.1

O que aponta a autora, nessa linha, é que, com o advento da era da máquina e da fase
industrial, houve um clamor pela colaboração da mulher, e esta, transpondo fronteiras do lar,
invadiu as fábricas e foi além, ingressou nas escolas primárias, nas secundárias e nas
superiores em busca do alicerce imprescindível para a sua efetiva libertação. Além disso, o
período de guerras sucessivas e a ida dos homens para o campo de batalha cooperaram para
que o valor da mulher não mais fosse subestimado, de tal modo que, nos escritórios, nas
indústrias, no comércio, nas escolas e nas cátedras superiores, as mulheres, na ausência dos
homens, tiveram a oportunidade de substituí-los. E assim o fez, como complementa
Russomano:

“A mulher, pois, em plena Idade Moderna, ergueu os pulsos e rompeu as


algemas que, há largos séculos, lhe coarctavam a amplitude de movimentos.
Encetou sua jornada de libertação, fez reconhecível o seu valor, destruiu os
argumentos reacionários à sua capacidade e teve, enfim, a chancela a
algumas de suas reivindicações, pelas garantias que lhe concedeu a maioria
dos legisladores, cristalizando disposições incisivas sobre suas
possibilidades.”2

A reivindicação dos direitos das mulheres, então, passou a ganhar robustez no


contexto da Declaração da França, no período da Revolução Francesa 3. Em suma, a revolução
em si não resultou em nenhum direito especificamente para a mulher - aliás, o documento
1
RUSSOMANO, Rosah. A mulher na constituição brasileira e o sistema dos países americanos. Porto Alegre:
Tip. Santo Antonio do Pão dos Pobres, 1955.
2
RUSSOMANO, Rosah. A mulher na constituição brasileira e o sistema dos países americanos. Porto Alegre:
Tip. Santo Antonio do Pão dos Pobres, 1955.
3
As mulheres tiveram nesse período exórdio protagonismo. Protestaram contra a escassez de alimentos,
marcharam contra o poder real, lutaram para conseguir alimento, produziram ataduras para o esforço de guerra e
atuaram nos campos de batalha.
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promulgado excluía a mulher da categoria de “cidadãs” -, e foi justamente esse cenário que
gerou efeitos para que, em Londres, no ano de 1792, Mary Wollstonecraft publicasse sua obra
“Reivindicação dos Direitos da Mulher”1, como uma resposta à Constituição Francesa
elaborada em 1791.

Além de Wollstonecraft, a francesa Olympe de Gouges também marcou o período


com suas ideias. Muito influenciada pelos ideais iluministas, Gouges foi responsável por

1
Ao Sr. Talleyrand-Périgord, antigo bispo de Autun
Prezado senhor,
Tendo lido com grande prazer um escrito que o senhor publicou recentemente, dedico-lhe este volume – a
primeira dedicatória que já escrevi – para induzi-lo a uma leitura atenta e porque acredito que o senhor me
entenderá, o que não suponho ocorrer com muitos dos que se consideram homens de espírito, os quais talvez
venham a ridicularizar os argumentos que não puderem rebater. Mas, senhor, o respeito que tenho por seu
entendimento vai ainda mais longe, tão longe que confio que não deixará meu trabalho de lado apenas por
concluir apressadamente que estou errada, já que não compartilha da mesma opinião que eu sobre o assunto. E,
perdão pela franqueza, mas devo observar que o senhor tratou o tema de maneira superficial demais,
contentando-se em considerá-lo como sempre foi feito, quando os direitos do homem, por não aludirem aos da
mulher, eram rebaixados como quiméricos. Por essa razão, agora recorro ao senhor a fim de avaliar o que
proponho a respeito dos direitos da mulher e da educação pública; e o faço com um tom firme de amor à
humanidade, porque meus argumentos, senhor, são ditados por um espírito desinteressado – eu advogo por meu
sexo, não por mim mesma. Há muito tempo considero a independência a grande bênção da vida, a base de toda
virtude; e tal independência quero garanti-la sempre, pela contenção de minhas necessidades, ainda que eu vá
viver em uma terra deserta. É, então, um afeto por todo o gênero humano que faz minha pena escrever
rapidamente para apoiar o que acredito ser a causa da virtude; e a mesma razão me leva a desejar de modo
sincero ver a mulher em uma posição a partir da qual avance, em vez de ser refreada, para o progresso desses
gloriosos princípios que dão substância à moralidade. De fato, minha opinião sobre os direitos e deveres da
mulher brota com tanta naturalidade de tais princípios fundamentais que me parece quase impossível que
algumas das mentes abertas, responsáveis por dar forma a sua admirável constituição, não concordem comigo.
Existe na França, sem dúvida, uma difusão mais ampla do conhecimento do que em qualquer parte do mundo
europeu, o que atribuo em grande medida à natureza das relações sociais há muito existentes entre os sexos. É
verdade – expresso meus sentimentos com liberdade – que na França a própria essência da sensualidade tem sido
extraída para regalar os voluptuosos, e uma espécie de luxúria sentimental tem prevalecido, o que, associado ao
sistema de má-fé ensinado por todo o teor de seu governo político e civil, conferiu um tipo sinistro de sagacidade
ao caráter francês, apropriadamente chamado de finesse; disso flui de maneira natural um refinamento de modos
que fere a substância, ao banir a sinceridade da sociedade. E a modéstia – a feição mais bela da virtude! – tem
sido até mais grosseiramente insultada na França do que na Inglaterra, a ponto de suas mulheres tratarem como
pudica aquela atenção à decência, observada de modo instintivo pelos brutos. Maneiras e moral são tão ligadas
que têm sido frequentemente confundidas; mas, ainda que as primeiras devessem ser apenas o reflexo natural da
última, quando causas diversas produzem maneiras artificiais e corruptas, adquiridas muito cedo, “moralidade”
torna-se uma palavra sem sentido. A reserva pessoal e o respeito sagrado pelo asseio e pela delicadeza na vida
doméstica, que as mulheres francesas quase desprezam, são os pilares graciosos da modéstia; mas, longe de
desdenhá-los, se a chama pura do patriotismo tocou seu coração, elas devem se esforçar para melhorar o senso
moral de seus concidadãos, ensinando os homens não apenas a respeitar a modéstia nas mulheres, mas também a
adquiri-la eles mesmos, como o único caminho para merecer-lhes a estima. Na luta pelos direitos da mulher, meu
principal argumento baseia-se neste simples princípio: se a mulher não for preparada pela educação para se
tornar a companheira do homem, ela interromperá o progresso do conhecimento e da virtude; pois a verdade
deve ser comum a todos ou será ineficaz no que diz respeito a sua influência na conduta geral. Como se pode
esperar de uma mulher que ela colabore, se nem ao menos sabe por que deve ser virtuosa? A não ser que a
liberdade fortaleça sua razão, até que ela compreenda seu dever e veja de que maneira este está associado ao seu
bem real. Se as crianças têm de ser educadas para entender o verdadeiro princípio do patriotismo, suas mães
devem ser patriotas; e o amor à humanidade, do qual surge naturalmente uma série de virtudes, só pode nascer
caso seja considerado o interesse moral e civil da humanidade; mas, hoje, a educação e a situação da mulher
deixam-na fora de tais indagações. Nesta obra, formulo muitos argumentos que me parecem conclusivos para
demonstrar que a noção prevalecente a respeito do caráter sexual subverteu a moralidade e sustento que, a fim de
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publicar na França a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã 1, em 1791, no período da


Revolução Francesa, como uma contraproposta à Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão. Em síntese, a contraproposta exigia que as mulheres e homens tivessem igualdade
de direitos em relação à propriedade privada, aos cargos públicos, à herança e à educação.

No que diz respeito às crianças e aos adolescentes, é também a partir da modernidade


que a concepção social sofre mudanças e passa a enxergar crianças e adolescentes como um
grupo à parte; isto é, a infância passa a ser vista como um momento da vida com
tornar mais perfeitos a mente e o corpo humanos, a castidade deve predominar de modo mais universal; e essa
castidade nunca será respeitada no mundo masculino até que a pessoa da mulher deixe, por assim dizer, de ser
idolatrada, quando um pouco de bom senso e de virtude embelezarem-na com os grandiosos traços da beleza
mental ou a interessante simplicidade do afeto. Considere tais observações, senhor, de maneira desapaixonada,
pois um lampejo dessa verdade pareceu surgir a sua frente quando observou “que ver metade da raça humana
excluída pela outra metade de toda participação no governo era um fenômeno político impossível de explicar de
acordo com princípios abstratos”. Se é assim, em que se apoia sua constituição? Se os direitos abstratos do
homem sustentarão o debate e a explanação, os da mulher, por analogia, não serão submetidos à mesma análise,
embora uma opinião diferente prevaleça neste país, baseada nos muitos argumentos que o senhor utiliza para
justificar a opressão da mulher – a prescrição. Considere – dirijo-me ao senhor enquanto legislador – se, no
momento em que os homens lutam por sua liberdade e pelo direito de julgar por si mesmos sua própria
felicidade, não é inconsistente e injusto subjugar as mulheres, ainda que o senhor creia firmemente estar agindo
da melhor maneira para lhes promover bem-estar. Quem fez do homem o juiz exclusivo, se a mulher compartilha
com ele o dom da razão? Esse é o tipo de argumentação dos tiranos de qualquer espécie, do fraco rei ao fraco pai
de família; estão todos ávidos por esmagar a razão, no entanto sempre afirmam usurpar seu trono somente para
ser úteis. Não agem vocês de maneira similar quando forçam todas as mulheres, ao negar-lhes os direitos civis e
políticos, a permanecer confinadas na família, tateando no escuro? Porque certamente o senhor não afirmará que
um dever não fundado na razão seja uma obrigação. Se esse é, de fato, o destino das mulheres, os argumentos
podem ser tirados da razão e, assim, magnificamente sustentados; quanto mais conhecimento as mulheres
adquirirem, mais elas se prenderão a seu dever – compreendendo-o –, pois, a menos que o entendam, a menos
que sua moral seja fixada no mesmo princípio imutável que a dos homens, nenhuma autoridade conseguirá
forçá-las a cumpri-lo de maneira virtuosa. Elas podem ser escravas convenientes, mas a escravidão terá seu
efeito constante, degradando o senhor e o abjeto dependente. Mas, se as mulheres devem ser excluídas, sem voz,
da participação dos direitos naturais da humanidade, prove antes, para afastar a acusação de injustiça e
inconsistência, que elas são desprovidas de razão; de outro modo, essa falha em sua NOVA CONSTITUIÇÃO
sempre mostrará que o homem deve de alguma forma agir como um tirano, e a tirania, quando mostra sua face
despudorada em qualquer parte da sociedade, sempre solapa a moralidade. Tenho afirmado e mostrado
repetidamente o que me parecem ser argumentos irrefutáveis, derivados da realidade, a fim de provar minha
asserção de que as mulheres não podem ser confinadas à força aos afazeres domésticos; pois, por mais que sejam
ignorantes, elas intervirão em assuntos mais importantes, negligenciando os deveres privados apenas para
perturbar com truques astutos os planos ordenados da razão, que se elevam acima de seu entendimento. Além
disso, enquanto elas forem preparadas somente para adquirir dotes pessoais, os homens procurarão o prazer na
variedade, e maridos infiéis farão esposas infiéis; tais seres ignorantes, de fato, serão bastante desculpáveis
quando, não tendo sido ensinados a respeitar o bem público nem sendo considerados merecedores de quaisquer
direitos civis, tentarem fazer justiça por si mesmos, mediante a retaliação. Aberta, assim, na sociedade a caixa
dos males, o que preservará a virtude privada, a única segurança da liberdade pública e da felicidade universal?
Deixe, então, que se elimine qualquer coerção estabelecida na sociedade e, prevalecendo a lei comum da
gravidade, os sexos ocuparão seus devidos lugares. E, agora que leis mais equitativas estão formando seus
cidadãos, o casamento pode se tornar mais sagrado: os jovens podem escolher esposas por motivos de afeto, e as
donzelas podem permitir que o amor tome o lugar da vaidade. O pai de família não irá, assim, debilitar sua
constituição nem degradar seus sentimentos visitando uma prostituta, tampouco esquecerá, ao obedecer ao
chamado do desejo, o propósito para o qual foi criado. E, quando o bom senso e a modéstia garantirem a
amizade de seu esposo, a mãe não negligenciará seus filhos para praticar as artes do coquetismo. Mas, até que os
homens se tornem atentos aos deveres de pais, é inútil esperar que as mulheres passem no quarto das crianças
aquele tempo que elas, “com a sabedoria de sua geração” [b] , preferem passar diante do espelho; porque tal
exercício de astúcia é apenas um instinto natural que lhes permite obter de forma indireta um pouco daquele
poder do qual são injustamente excluídas; pois, se não for permitido às mulheres desfrutar de direitos legítimos,
10

características singulares. No entanto, ainda na Idade Moderna, era comum que crianças e
adolescentes trabalhassem em condições degradantes e exaustivas, com remunerações
ínfimas.

Pode-se dizer, então, que a atenção voltada para esse núcleo da sociedade tem seus
primeiros episódios fáticos na contemporaneidade, mormente com a Constituição de 1919 da
Organização Internacional do Trabalho, a qual inseriu em seu preâmbulo a proteção às
crianças.1 Além disso, também em 1919, foi fundada a organização não governamental
(ONG) “Save the Children”, que tinha por objetivo auxiliar órfãos da Primeira Guerra
Mundial e que foi responsável pela elaboração da Declaração dos Direitos da Criança de
Genebra adotada pela Liga das Nações em 1924, de forma a representar o surgimento dos
direitos das crianças e dos adolescentes.

No contexto da contemporaneidade, é de se destacar um marco dos direitos


fundamentais - e, desta vez, em um documento que alcançava toda a espécie humana - no
cenário pós-guerras, em que houve severa violação em massa dos direitos humanos, fundou-
se a Organização das Nações Unidas (ONU) e houve a publicação da Declaração Universal
dos Direitos Humanos. A partir da Declaração é que se tem uma mudança de perspectiva
mundial em relação aos direitos humanos, porquanto prevê que todos os povos, sem exceção,
devem ter a sua dignidade e seus direitos fundamentais garantidos. Com isso, na questão que
elas tornarão viciosos não só os homens, mas elas mesmas, a fim de obter privilégios ilícitos. Desejo, senhor,
suscitar na França algumas investigações desse tipo; e, se estas levarem à confirmação de meus princípios,
quando sua constituição for revisada, pode ser que os Direitos da Mulher sejam respeitados, caso seja
plenamente provado que a razão exige esse respeito e clama em voz alta por JUSTIÇA para metade da raça
humana. Respeitosamente, M. W.
1
Preâmbulo: Mães, filhas, irmãs, mulheres representantes da nação reivindicam constituir-se em uma assembléia
nacional. Considerando que a ignorância, o menosprezo e a ofensa aos direitos da mulher são as únicas causas
das desgraças públicas e da corrupção no governo, resolvem expor em uma declaração solene, os direitos
naturais, inalienáveis e sagrados da mulher. Assim, que esta declaração possa lembrar sempre, a todos os
membros do corpo social seus direitos e seus deveres; que, para gozar de confiança, ao ser comparado com o fim
de toda e qualquer instituição política, os atos de poder de homens e de mulheres devem ser inteiramente
respeitados; e, que, para serem fundamentadas, doravante, em princípios simples e incontestáveis, as
reivindicações das cidadãs devem sempre respeitar a constituição, os bons costumes e o bem estar geral.
1
Preâmbulo: "Considerando que a paz para ser universal e duradoura deve assentar sobre a justiça social;
Considerando que existem condições de trabalho que implicam, para grande número de indivíduos, miséria e
privações, e que o descontentamento que daí decorre põe em perigo a paz e a harmonia universais, e
considerando que é urgente melhorar essas condições no que se refere, por exemplo, à regulamentação das horas
de trabalho, à fixação de uma duração máxima do dia e da semana de trabalho, ao recrutamento da mão-de-obra,
à luta contra o desemprego, à garantia de um salário que assegure condições de existência convenientes, à
proteção dos trabalhadores contra as moléstias graves ou profissionais e os acidentes do trabalho, à proteção das
crianças, dos adolescentes e das mulheres, às pensões de velhice e de invalidez, à defesa dos interesses dos
trabalhadores empregados no estrangeiro, à afirmação do princípio "para igual trabalho, mesmo salário", à
afirmação do princípio de liberdade sindical, à organização do ensino profissional e técnico, e outras medidas
análogas; Considerando que a não adoção por qualquer nação de um regime de trabalho realmente humano cria
obstáculos aos esforços das outras nações desejosas de melhorar a sorte dos trabalhadores nos seus próprios
territórios. (...)
11

nos contempla, no art. 25 da Declaração 2, as crianças são citadas de maneira explícita, de


modo que o dispositivo determina o direito à assistência especial às mães e às crianças e a
proteção social de todas as crianças.

Certo é que houve um alcance e uma alteração da concepção social em relação aos
direitos humanos, no entanto, seria ainda necessária a publicação de inúmeros outros
documentos, a fim de afirmar e reafirmar questões que, de forma genérica, foram tratadas na
Declaração da ONU. Neste ponto, destacam-se duas declarações aprovadas pela ONU nos
anos seguintes: a Declaração dos Direitos das Crianças, de 1959, que reconheceu a criança e o
adolescente como sujeitos de direitos e representou grande avanço nas garantias
internacionais destes, e, ainda, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra a Mulher (CEDAW), de 1979, que determinou que os Estados membros
da ONU deveriam tomar medidas para promover a igualdade de gênero e combater as
violações dos direitos das mulheres, a fim de eliminar a discriminação e práticas baseadas na
ideia de inferioridade de gênero.

Para encerrarmos esta breve abordagem da história dos direitos fundamentais,


passamos a compendiar as conquistas mencionadas no que fora classificado por Karel Vasak
primeiramente e, após, por Paulo Bonavides, de “gerações de direitos fundamentais”.
Destaca-se, de antemão, a relação existente entre os direitos consolidados e os contextos nos
quais se consolidaram, porquanto é a partir da necessidade de modificações que se tem em
cada período da história – intervenção estatal na vida do indivíduo x liberdade individual;
desigualdade social x políticas públicas estatais; desenvolvimento global x autodeterminação
dos povos – que se reivindicam direitos para sanar o ambiente que se encontra em
desconformidade. Nesse sentido, existem, a princípio, três gerações de direitos fundamentais
classificados através de um perfil histórico-temporal traçado.

Os direitos de “primeira geração” são aqueles responsáveis por inaugurar, no fim do


século XVIII e início do século XIX, o constitucionalismo ocidental e encerram a integração
de direitos civis e políticos clássicos, especialmente nos que concernem ao valor de liberdade
– direitos à vida, à liberdade religiosa e de crença, de locomoção, de reunião, de associação, à
2
Artigo 25
1. Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde, bem-estar,
inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis e direito à
segurança em caso de desemprego, doença invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de
subsistência em circunstâncias fora de seu controle.
2. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro
ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção social.
12

propriedade, à participação política, à inviolabilidade de domicílio e ao segredo de


correspondência. Além disso, vale dizer, esses direitos apresentam-se como aqueles dos
indivíduos e que são oponíveis, sobretudo, ao Estado, ao passo que exigem deste uma
abstenção, e não uma ação ou prestação estatal, possuindo, portanto, caráter negativo.

Já os direitos de “segunda geração” enfatizam o direito de igualdade – material – entre


os homens. São aqueles ligados aos direitos econômico, social e cultural ou, ainda,
denominados “direitos do bem-estar”. Esses, por outro lado, exigem do Estado uma atuação
positiva, um fazer, de modo que dependem da implementação de políticas públicas estatais
para sua efetivação; são prestações sociais como saúde, educação, trabalho, habitação,
previdência e assistência social.

Por fim, no contexto de desenvolvimento dos países – de forma desigual – surge, no


final do século XX, os direitos de “terceira geração”, que introduzem a noção de fraternidade
ou solidariedade e englobam, principalmente, os direitos ao desenvolvimento, ao progresso,
ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, à autodeterminação dos povos, à propriedade
sobre o patrimônio comum da humanidade, à qualidade de vida, os direitos do consumidor e
da infância e da juventude. São direitos que se ocupam da proteção de direitos atribuídos a
todas as formações sociais e buscam tutelar os interesses de titularidade coletiva, que dizem
respeito ao gênero humano.

3 SÍNTESE HISTÓRICA DAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS E A


POSIÇÃO DA MULHER E DA INFÂNCIA NOS RESPECTIVOS CENÁRIOS

Passaremos, neste item, a analisar de que forma a Constituição Federal de 1988 inseriu
em seu corpo os direitos fundamentais. Todavia, antes, serão abordados brevemente pontos
relevantes das constituições que a antecederam, de modo a traçar a evolução dos documentos
constitutivos do país e de que forma os direitos fundamentais - com destaque para os direitos
da mulher e da criança - foram recepcionados no âmbito interno.

O Brasil passou por oito documentos constituintes ao longo de sua história. Há


doutrinadores que afirmem, ainda, que, se bem o documento de 1967 tenha mantido, sob o
aspecto formal, a condição jurídica do Estado Democrático de Direito, “essa locução não
passava de uma quimera”,1 vez que previa uma exacerbação dos poderes ao Presidente da
República e inúmeras hipóteses de suspensão dos direitos individuais. Ou, também, como os
1
MASSON, Nathalia. Manual de Direito Constitucional. Ed. JusPodivm, 2019.
13

autores Fernando Whitaker da Cunha e Francisco Campos2, que negam a existência jurídica
da Carta de 1937, porquanto tinha sua vigência condicionada a um plebiscito (art. 187)2, o que
nunca ocorrera. Não obstante as razoáveis ponderações citadas, consideraremos os
documentos como tais a fim de analisarmos os seus textos e contextos.

Em 1822, com a proclamação da independência realizada pelo Imperador Dom Pedro


I, o Brasil se deparou com a necessidade de formalizar, em um documento originário, sua
organização enquanto Estado soberano e independente. Em 1824, portanto, foi outorgada por
Dom Pedro I a Constituição do Império, cujo conteúdo sofreu grande influência dos ideais
liberais da época, possuindo como essência a superação do Estado absolutista pela luta da
liberdade e da ampliação da participação política. Nesse sentido, apesar de a Constituição de
1822, formalmente, possuir características incisivas advindas dos ideais liberais, na prática,
não era o que encerrava, o que se tinha era um governo autoritário e com fortes nuances
absolutistas.

Além disso, como mencionado, o cerne da Constituição do Império não eram os


direitos fundamentais, o que se confirma quando se tem como últimos título e artigo as
disposições gerais e garantias dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros e o rol de
direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros, respectivamente. No que diz respeito à
desigualdade de gênero, a Constituição de 1824 considerava “cidadão” somente o gênero
masculino3, e o que se tinha era uma proibição da possibilidade de a mulher votar e ser eleita,
assim como a proibição de esta ser funcionária pública; já as crianças, sequer eram
mencionadas na Carta.

Não obstante a omissão da Carta Imperial quanto à infância, em 1854 foi publicado o
Decreto nº 1.331-A, que regulamentava a reforma do ensino primário e secundário, embora
não admitisse a matrícula e frequência nas escolas de “meninos” que padecessem de doenças
contagiosas, os que não tivessem sido vacinados e os escravos.4 Já em 1871, foi publicada a
Lei do Ventre Livre, que determinava que os filhos de mulheres escravizadas não seriam
igualmente escravizados.

1
Francisco Campos foi um dos autores protagonistas da Constituição de 1937.
2
Art. 187 - Esta Constituição entrará em vigor na sua data e será submetida ao plebiscito nacional na forma
regulada em decreto do Presidente da República.
3
Não se menciona nada em relação às mulheres na Constituição de 1824. Apenas os homens brancos que
tivessem propriedades eram considerados cidadão, sendo excluídos os escravizados, as escravizadas e as
mulheres livres dos detentores de direitos políticos da época.
4
Art. 69. Não serão admittidos á matricula, nem poderão frequentar as escolas: § 1º Os meninos que padecerem
molestias contagiosas. § 2º Os que não tiverem sido vaccinados. § 3º Os escravos.
14

Com os crescentes movimentos republicanos e com a criação do Partido Republicano


em 1870, houve uma deflagração do processo político que resultou num golpe de Estado,
comandado pelo Marechal Deodoro da Fonseca, e em 15 de novembro de 1889, por meio da
edição do Decreto nº 1,1 fora proclamada a República no país. Juntamente com o novo cenário
que se apresentava surgiu a primeira Constituição republicana, promulgada em 1891, que
seguiu o modelo constitucional norte-americano, sendo inspirada nos ideais republicanos e
liberais.

Com isso, apesar das inovações institucionais trazidas pelo documento republicano, o
cenário que se tinha era o de convivência com uma cultura política conservadora e autoritária,
de modo que, novamente, se bem os direitos fundamentais - aqui, os direitos da primeira
geração, catalogados no artigo 72 - existissem em sua estrutura formal, ficavam prejudicados
na prática. Ademais, com as mudanças de descentralização advindas da Constituição de 1891,
que passou a magistratura ao domínio dos Estados e deixou o poder para as oligarquias, houve
uma regressão do sistema de garantias das liberdades individuais introduzidas pelo Império.

Adiante, num cenário de modificações no âmbito da estrutura produtiva do país, que


passou a ser mais industrial que agrícola, e com a Crise de 29 2, surgiu um forte anseio
reformista interno, dando origem à Revolução de 1930 e, posteriormente, à Revolução
Constitucionalista de 1932. Convocada, por conseguinte, a Assembleia Constituinte de 1933,
a Constituição democrática fora promulgada pelo então Presidente Getúlio Vargas em 1934 e,
com ela, fora instituído um constitucionalismo social, com traços inspirados na Constituição
de Weimar3, de 1919.

A Carta democrática de 1934 foi o primeiro documento constitucional do país a dispor


sobre os direitos sociais - aqueles direitos de segunda geração -, introduzindo-os num título
que se referia à ordem econômica e social e representou um importante marco jurídico na
transição de uma democracia liberal notadamente individualista para uma democracia de
essência social, voltada para a proteção das necessidades básicas dos indivíduos. O que se
destaca da Constituição de 1934 - e o que aqui nos interessa -, é a inovação trazida quanto à
1
DECRETO Nº 1, DE 15 DE NOVEMBRO DE 1889 Proclama provisoriamente e decreta como forma de
governo da Nação Brasileira a República Federativa, e estabelece as normas pelas quais se devem reger os
Estados Federais.
2
A Crise de 29, também conhecida como Grande Depressão, foi um capítulo da história marcado por uma forte
recessão econômica que atingiu o capitalismo global no final da década de 1920.
3
A Constituição de Weimar de 1919 é referência por ter influenciado fortemente a evolução das instituições
políticas em todo o Ocidente. Sua estrutura era marcada pelo dualismo: uma constituição que tinha por objetivo a
organização do Estado, de um lado, e a declaração dos direitos e deveres fundamentais, incluindo os de conteúdo
social, de outro.
15

consagração do princípio da igualdade entre os sexos, impondo normas que proibiam a


diferença de salários entre os gêneros para o mesmo trabalho, definia regras de proteção social
para o trabalho - como a proibição do trabalho de mulheres em ambientes insalubres e a
garantia de assistência médica à gestante e descanso antes e depois do parto, através da
Previdência Social.

Em que pese as inovações introduzidas no constitucionalismo pátrio pela Carta de


1934, o documento vigorou por tenros três anos, o que impediu que os direitos nela dispostos
fossem colocados em prática. A interrupção do documento se deu pelo golpe de Estado
aplicado por Getúlio Vargas, em 10 de novembro de 1937, aproveitando-se do cenário que se
apresentava, marcado pelas inquietudes ideológicas nazifascistas e comunistas - nos contextos
interno e externo - e sob o pretexto de preservar, então, a ordem interna do país. Instalou-se,
portanto, o denominado “Estado Novo” e com ele uma Constituição que concedia amplos
poderes ao Presidente da República, de caráter autoritário, e determinava uma série de
repressões às liberdades. Em suma, a Constituição de 1937 foi ditatória na forma, no conteúdo
e na aplicação, com integral desrespeito aos direitos do homem, especialmente os
concernentes às relações políticas.1

Por último, destaca-se que, se bem o período do Estado Novo fora um regime
ditatorial e recheado de violações contra as liberdades individuais, a Constituição de 1937
determinou ser competência da União a regulamentação de normas fundamentais de defesa e
de proteção da saúde, especialmente da saúde da criança, e instituiu o voto para as mulheres.
Além disso, algumas ações do governo foram convergentes com a grande massa de
trabalhadores, como a criação da Consolidação das Leis do Trabalho em 1943.

No período seguinte, chamado de “Redemocratização”, inaugurou-se uma nova


Constituição, esta que foi inspirada na Constituição de 1934, até mesmo no que diz respeito
aos direitos fundamentais, e promulgada em 18 de setembro de 1946. Além do
restabelecimento dos direitos contidos na Carta de 1934, um ponto a se destacar da
Constituição de 1946, e que nos interessa neste ponto, é o texto do artigo 157 e incisos, 2 ao
1
DA SILVA, Afonso. Direito Constitucional positivo, p. 169.
2
Art 157 - A legislação do trabalho e a da previdência social obedecerão nos seguintes preceitos, além de outros
que visem a melhoria da condição dos trabalhadores: I - salário mínimo capaz de satisfazer, conforme as
condições de cada região, as necessidades normais do trabalhador e de sua família; II - proibição de diferença de
salário para um mesmo trabalho por motivo de idade, sexo, nacionalidade ou estado civil; III - salário do
trabalho noturno superior ao do diurno; IV - participação obrigatória e direta do trabalhador nos lucros da
empresa, nos termos e pela forma que a lei determinar; V - duração diária do trabalho não excedente a oito horas,
exceto nos casos e condições previstos em lei; VI - repouso semanal remunerado, preferentemente aos domingos
e, no limite das exigências técnicas das empresas, nos feriados civis e religiosos, de acordo com a tradição local;
16

propor que a legislação do trabalho e previdência social deveriam observar, além de outros, a
proibição de diferença de salário para um mesmo trabalho; higiene e segurança do trabalho; a
proibição de trabalho em indústrias insalubres a mulheres e menores de 18 anos; o direito da
gestante a descanso antes e depois do parto, sem prejuízo do emprego nem salário; assistência
sanitária, inclusive hospitalar e médica preventiva ao trabalhador e à gestante; e previdência,
mediante contribuição da União, do empregado e do empregador, em favor da maternidade.

Em 1964 o país sofreu um golpe de Estado promovido pelos militares, sob o pretexto
de zelar pela defesa da nação de ameaças comunistas e prezar pelo interesse comum dos
brasileiros. O período da ditadura militar, como típico dos regimes ditatoriais, suspendeu a
garantia dos direitos fundamentais, assim como o regime constitucional. Nesse sentido, a fim
de velar a ilegalidade do golpe, a Constituição de 1947 foi mantida, em seu aspecto formal,
vigente. No entanto, a Carta já não produzia seus efeitos na prática, uma vez que os “Atos
Institucionais” (AI) encerravam a suspensão da Lei Maior quando conviesse ao “interesse da
paz e da honra nacional”.1

A nova Constituição fora imposta ao Congresso, que aprovou o texto sob pressão e
repressão, e o documento passou a ter vigência em 1967, dando ênfase nas questões de
segurança nacional e centralizando o poder na União, e esta, nas mãos do Poder Executivo.
Ainda, considera-se que o ato praticado pelo Congresso fora uma mera homologação
congressual, de tal sorte que, em termos técnicos, a Carta de 1967 deve ser compreendida
como outorgada, ainda que com o ‘beneplácito’ do Legislativo. 2 Por derradeiro, no campo dos
avanços que aqui nos envolve, a aposentadoria da mulher, aos trinta anos de trabalho, com
salário integral, se apresenta de forma isolada.

VII - férias anuais remuneradas; VIII - higiene e segurança do trabalho; IX - proibição de trabalho a menores de
quatorze anos; em indústrias insalubres, a mulheres e a menores, de dezoito anos; e de trabalho noturno a
menores de dezoito anos, respeitadas, em qualquer caso, as condições estabelecidas em lei e as exceções
admitidas pelo Juiz competente; X - direito da gestante a descanso antes e depois do parto, sem prejuízo do
emprego nem do salário; XI - fixação das percentagens de empregados brasileiros nos serviços públicos dados
em concessão e nos estabelecimentos de determinados ramos do comércio e da indústria; XII - estabilidade, na
empresa ou na exploração rural, e indenização ao trabalhador despedido, nos casos e nas condições que a lei
estatuir; XIII - reconhecimento das convenções coletivas de trabalho; XIV - assistência sanitária, inclusive
hospitalar e médica preventiva, ao trabalhador e à gestante; XV - assistência aos desempregados; XVI -
previdência, mediante contribuição da União, do empregador e do empregado, em favor da maternidade e contra
as conseqüências da doença, da velhice, da invalidez e da morte; XVII - obrigatoriedade da instituição do seguro
pelo empregador contra os acidentes do trabalho.
1
Art. 10 - No interesse da paz e da honra nacional, e sem as limitações previstas na Constituição, os
Comandantes-em-Chefe, que editam o presente Ato, poderão suspender os direitos políticos pelo prazo de dez
(10) anos e cassar mandatos legislativos federais, estaduais e municipais, excluída a apreciação judicial desses
atos.
2
BARROSO, Luis Roberto. 2010, p. 35-37 apud SARLET, 2018, p. 251.
17

Inaugura-se, com o AI nº 5 em 1968,1 um período ainda mais violento do regime


militar, de forma que o ato produziu mudanças profundas na Carta de 1967 e, em 1969, com a
EC nº 1,2 utilizada como mecanismo para outorga de um novo texto constitucional, foram
introduzidas mudanças significativas para o sistema constitucional. Destacam-se: a
centralização do poder e o autoritarismo; o fortalecimento da figura do Presidente da
República; a ampliação das hipóteses de suspensão de direitos políticos; e a possibilidade de
pena de morte, prisão perpétua e banimento, na forma da lei. Por derradeiro, quanto aos
direitos fundamentais, não houve alterações de relevância.

Após o devasso período de ditadura militar no Brasil, o país passou por uma “abertura
democrática”, entre 1978 e 1985, e teve seu ponto relevante, no que concerne ao levante da
democracia, em 1984, com as “Diretas Já” - embora o movimento não tenha conseguido fazer
com que a Emenda Constitucional3 que previa as eleições diretas para Presidente da
República fosse aprovada pelo Congresso Nacional. Em que pese a negativa, as eleições
diretas em todos os níveis vieram com a Constituição de 1988.

Ainda em 1984, aqueles defensores das “Diretas Já” venceram as eleições indiretas
para Presidente da República, elegendo Tancredo Neves para Presidente e José Sarney como
Vice-presidente. Com o falecimento de Tancredo Neves antes de sua posse, assumiu José
Sarney como primeiro Presidente civil após 20 anos de ditadura, dando início a um novo ciclo
da história política no Brasil, a Nova República, e com ela a necessidade de se elaborar uma
nova Constituição e, dessa vez, democrática.

Com essa intenção, houve a convocação, através da EC nº 26, de uma Assembleia


Nacional Constituinte, a qual desempenhou seus trabalhos de 01 de fevereiro de 1987 a 05 de
outubro de 1988 - data da promulgação e publicação da Constituição Federal de 1988. A
Assembleia Nacional Constituinte intencionou criar uma Carta Nacional democrática e esteve
sob a liderança do Presidente Ulysses Guimarães, que atribuiu à Carta o título de
“Constituição Cidadã”.

1
ATO INSTITUCIONAL Nº 5, DE 13 DE DEZEMBRO DE 1968. São mantidas a Constituição de 24 de janeiro
de 1967 e as Constituições Estaduais; O Presidente da República poderá decretar a intervenção nos estados e
municípios, sem as limitações previstas na Constituição, suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos
pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais, e dá outras providências.
2
EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 1, DE 17 DE OUTUBRO DE 1969. Edita o novo texto da Constituição
Federal de 24 de janeiro de 1967.
3
PROPOSTA DE EMENDA À CONSTITUIÇÃO N.º 5, DE 1983. Dispõe sobre a eleição direta pra Presidente
e Vice-Presidente da República.
18

Nesse sentido, o que se extrai da “Constituição Cidadã” é uma sistematização atual e


inovadora, de modo tal que o Título I é reservado aos princípios fundamentais e o Título II
aos direitos e garantias fundamentais. Pode-se dizer, ainda, que a Constituição de 1988 teve
seu cerne focalizado nos direitos fundamentais e que se trata de uma Carta sem parâmetros no
Direito Constitucional comparado1, ou seja, a Constituição vigente hoje no país é a que tem o
maior e mais generoso rol de direitos humanos entre todas as outras constituições do mundo.

A Constituição de 1988 inova quando insere em seu corpo, mesmo que de forma
dispersa, direitos de terceira geração, aqueles considerados os de solidariedade ou fraternidade
- direito a um meio ambiente equilibrado, a uma saudável qualidade de vida, ao progresso, à
paz, à autodeterminação dos povos, entre outros direitos difusos. Além disso, foi a primeira
vez que o constituinte inseriu os direitos fundamentais como cláusula pétrea.

3.1 DIREITOS DA MULHER E DA INFÂNCIA NA CONSTITUIÇÃO


FEDERAL DE 1988

A Carta Magna de 1988 representou, de modo geral, significativo avanço na esfera da


garantia de direitos de primeira, segunda e terceira gerações de forma universal. No entanto,
há de se enfatizar a grande conquista que consignou no campo dos direitos das mulheres e das
crianças brasileiras.

De início, a disposição do art. 5º, inciso I, que preceitua que homens e mulheres são
iguais em direitos e obrigações, na atualidade, parece ser algo trivial, no entanto, naquele
momento, em que se construía a nova constituinte, o que se registrou é que, perante a
sociedade, o Estado, no campo do trabalho, no âmbito doméstico, nas atribuições familiares,
na política, entre homens e mulheres, haverá plena igualdade jurídica.

Há, no cenário da construção da nova constituinte, ainda, um recorte da história


inolvidável, que há de se tomar nota, pois, novamente, frisa que em cada passo significativo
que a sociedade dava, a luta por direitos não era passível de se deixar à míngua. Em 1985 foi
criado o Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres (CNMD), sob a presidência de
Jacqueline Pitanguy, que uniu mulheres de variados setores da sociedade a fim de fomentar o
debate sobre quais direitos deveriam ser contemplados pela nova Constituição. O Conselho
recebeu milhares de cartas e telegramas de mulheres que, através delas, enviaram propostas
que gostariam de ver no documento oficial do país. A partir dessas propostas, foi criada a
1
PAGLIARINI, Alexandre. Direito Constitucional: primeiras linhas. Curitiba: InterSaberes, 2022.
19

Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes, um documento que orientou o trabalho dos
constituintes, entregue ao então presidente da Assembleia Constituinte de 1985, Ulysses
Guimarães.

Uma das maiores marcas contributivas da Constituição de 1988 à mulher se perfaz na


estrutura de seu texto, que serviu de base para a criação de legislações específicas para o
combate à violência de gênero. Além disso, as contribuições no campo da liberdade
reprodutiva, da liberdade familiar - pois até então vigorava o Estatuto da Mulher Casada, que
submetia a mulher à autorização do marido para poder trabalhar, 1 por exemplo -, da garantia
de direitos à maternidade - a licença maternidade, que até então era de 84 dias, passou a ser de
4 meses, instituindo-se também a licença paternidade -, da garantia de direito à titularidade de
terra para as mulheres rurais e da garantia de direito à mulher presidiária de amamentar os
filhos também são marcas da Constituição de 1988 que contribuíram para a população
feminina.

No mesmo sentido, a Carta Maior também contribuiu para que a criança e o


adolescente fossem colocados na sociedade sob outra perspectiva. Do mesmo modo que o
corpo de seu texto serviu de base para a criação de legislações que visam à proteção da
mulher, também possibilitou e foi utilizado como base para a criação do Estatuto da Criança e
do Adolescente (ECA). Ademais, no que tange à importância dada à criança e ao adolescente
pelo constituinte, quando se tem em vista o artigo 227, não há dúvidas de que foi a de
absoluta prioridade:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao


adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao
respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a
salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade
e opressão.

4 ANÁLISE DO CONFLITO DE DIREITOS A PARTIR DOS VOTOS


PROFERIDOS NA ADI 5839

O Ministro Alexandre de Moraes, relator da ADI 5839, expressou um profundo e


completo voto e, já desde o início, antecipou sua posição quanto à análise, afirmando que

1
Art. 242. A mulher não pode, sem autorização do marido: I - praticar os atos que êste não poderia sem
consentimento da mulher; II - Alienar ou gravar de ônus real, os imóveis de seu domínio particular, qualquer que
seja o regime dos bens; III - Alienar os seus direitos reais sôbre imóveis de outrem; IV - Contrair obrigações que
possam importar em alheação de bens do casal.
20

assistia razão à autora e que, portanto, ao seu ver, tratava-se de norma inconstitucional aquela
impugnada, porquanto diminuía a tutela de direitos sociais indisponíveis.

Argumentou o relator que a proteção da mulher grávida ou lactante caracteriza-se


como importante direito social instrumental protetivo da mulher e da criança, pois a razão
dessas normas não é apenas salvaguardar direitos sociais da mulher, mas também a de efetivar
a integral proteção ao recém-nascido consagrada, com absoluta prioridade, no art. 227 da
Constituição, inclusive como dever da sociedade e do empregador.

A questão cuidava, portanto, segundo o ministro, de um direito de dupla titularidade.


Isto é, de um lado, a proteção à maternidade e, de outro, a integral proteção à criança, que são
direitos irrenunciáveis e não podem ser afastados pelo desconhecimento, impossibilidade ou a
própria negligência da gestante ou lactante em apresentar atestado médico, sob pena de
prejudicá-la e prejudicar o recém-nascido.

Ainda, fundamentou Alexandre de Moraes que a previsão do afastamento automático


da mulher gestante no ambiente insalubre apenas quando este apresentar grau máximo
contraria a jurisprudência da própria Corte, quando, em decisões em regime de repercussão
geral, fixou as seguintes teses: “A incidência da estabilidade prevista no art. 10, inciso II, do
ADCT, somente exige a anterioridade da gravidez à dispensa sem justa causa,
independentemente de prévio conhecimento ou comprovação” e “É constitucional a
remarcação do teste de aptidão física de candidata que esteja grávida à época de sua
realização, independentemente da previsão expressa em edital do concurso público”.

Seguindo em sua fundamentação, o ministro asseverou que a inconstitucionalidade da


norma se dava pelo fato de que permitia a exposição de empregadas grávidas e lactantes a
condições insalubres de trabalho e que, por força do texto impugnado, seria ônus desta a
comprovação dessa circunstância, o que desfavoreceria a plena proteção do interesse
constitucionalmente protegido, porquanto sujeita a trabalhadora a maior embaraço para o
exercício de seus direitos. E, nesse sentido, adicionou que o argumento de que a declaração de
inconstitucionalidade poderia acarretar retração da participação da mulher no mercado de
trabalho não procede, pois eventuais discriminações devem ser punidas nos termos da lei e,
ademais, o próprio texto da lei impõe a proteção ao mercado de trabalho da mulher através de
incentivos específicos, inserto no art. 7º, XX, CF.
21

O ministro Edson Fachin, ao proferir seu voto e contextualizar a demanda, remarcou


que a luta pela igualdade de gênero, que é marca indelével na Constituição de 1988, é também
fruto de um longo processo histórico de reconhecimento de direitos às mulheres em igualdade
de condições do modo como esses direitos foram reconhecidos aos homens, e citou o primeiro
inciso do art. 5º da CF, “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos
desta Constituição”.

Além disso, Edson Fachin apontou que a demanda posta merece um olhar voltado
para a posição da mulher na sociedade e no mercado de trabalho e justificou que os impactos
da legislação impugnada são diretamente relacionados com a autonomia das escolhas da
mulher e das suas necessidades impostas pela condição de gestante ou nutridora de recém-
nascido. E, nessa toada, afirmou que os argumentos apresentados pela Advocacia Pública - ao
asseverar que a hipótese consiste em opção legislativa que, adequadamente, estimula a
igualdade no momento de admissão dos trabalhadores - neutralizam a prática discriminatória
em razão do sexo.

Isto é, segundo o ministro, o legislador, ao estabelecer a possibilidade de a mulher


gestante ou lactante trabalhar em locais insalubres, não atuou, no exercício de sua
competência constitucionalmente estabelecida, de forma adequada, pois impor à mulher
gestante ou lactante o ônus de comprovar a inexistência de risco à saúde dela e da criança, por
meio de laudo de médico da sua confiança, não coibiria, como era seu dever, a discriminação
por ela sofrida no competitivo mercado de trabalho. Tampouco estimularia a igualdade entre
os trabalhadores - homens e mulheres - no competitivo mercado de trabalho, porque não há
correspondência entre a condição imposta às mulheres e o fim protetivo supostamente
almejado; ao contrário, a imposição de mais esse ônus à mulher acabaria por reforçar a
discriminação, visto que transferiria para a mulher, na condição de mulher, gestante ou
lactante, a escolha de permanecer, ou não, no trabalho em condições adversas.

A norma impugnada caracterizou-se flagrantemente inconstitucional, pois contrariava


o postulado da igualdade, estabelecendo critérios que reforçariam a vulnerabilidade da
mulher, ao invés de atenuá-la, de acordo com Edson Fachin. Ademais, para o ministro, se a
legislação impugnada almejava uma política pública que oferecesse às mulheres gestantes e
lactantes autonomia para a escolha pela permanência nos locais insalubres, falhou, pois a
escolha é pré-estabelecida por limites da condição de gestante e lactante, que impõe proteção,
22

não apenas à mulher como sujeito de direitos dotada de auto-determinação, mas também ao
nascituro e à criança recém-nascida.

A ministra Rosa Weber proferiu um íntegro e extenso voto - do qual foram utilizadas
inúmeras informações de relevância para a confecção deste documento -, de modo tal que
traçou considerações históricas acerca da escalada de conquistas dos direitos da mulher,
mormente em relação ao ambiente de trabalho, e da proteção à infância nas cartas normativas
que orientam as diretrizes do país.

Ponderou a ministra sobre o deslocamento do núcleo do Direito do Trabalho - pois até


então estava positivado na legislação infraconstitucional -, quando passou a ostentar
envergadura constitucional, a partir da Constituição de 1988, de forma que esta erigiu a
dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho em fundamentos da República
Federativa do Brasil e reconheceu os direitos fundamentais sociais - dentre eles, o direito ao
trabalho, juntamente com os direitos assegurados como patamar mínimo aos trabalhadores.

Lembrou ainda Rosa Weber que a Reforma Trabalhista, no tema sensível da proteção
da maternidade e da infância, deve ser apreciada de forma fiel aos princípios informadores do
segmento jurídico centrado no trabalho humano. E afirmou que, diante da dinâmica da vida,
do fenômeno da globalização dos incessantes avanços tecnológicos contemporâneos, se faz
necessário atualizar e aperfeiçoar a legislação trabalhista e adequá-la às novas realidades
decorrentes da automação. Para Weber, é pressuposto de toda reforma o amplo debate prévio,
a maturação de ideias, a formação de possíveis consensos, considerados e sopesados os
diferentes enfoques e as perspectivas dos distintos atores envolvidos, de forma a produzir ora
o ampliar do foco, ora o aguçar das lentes de observação, visando sempre ao aperfeiçoamento
dos institutos e das regras vigorantes.

No que diz respeito à relação de emprego, segundo Rosa Weber, a maternidade


representa para a trabalhadora-mãe um período de maior vulnerabilidade, em decorrência das
contingências próprias de conciliação dos projetos de vida pessoal, familiar e de trabalho. Por
isso, na perspectiva axiológica de valorização da maternidade em sua função social, os
direitos fundamentais do trabalhador elencados no art. 7º da CF - por exemplo, a licença à
gestante sem prejuízo do emprego e do salário e a redução dos riscos inerentes ao trabalho -,
como também a estabilidade da gestante garantida no art. 10 do ADCT, impõem limites à
23

liberdade de organização e administração do empregador, de modo a concretizar, para a


empregada-mãe, merecida segurança no exercício do direito ao equilíbrio entre seus projetos.

Por derradeiro, a ministra afirmou que a alteração, promovida pela norma questionada,
implicaria inegável retrocesso social, por revogar a norma proibitória de trabalho por parte da
empregada gestante e lactante, introduzida no sistema normativo trabalhista pela Lei nº
13.287/2016, além de diminuir o valor do direito fundamental à saúde da mãe trabalhadora,
porquanto transfere ao próprio sujeito tutelado a responsabilidade pela conveniência do
afastamento do trabalho. Isto é, na definição do ministro Celso de Mello citada pela ministra,
o princípio do não retrocesso social obsta o desmantelamento das conquistas normativas já
alcançadas em determinado contexto social e traduz-se em dimensão negativa dos direitos
sociais, em que é vedada a supressão ou redução dos patamares de sua concretização sem que
sejam implementadas políticas compensatórias.

O ministro Luiz Fux, por sua vez, acompanhou o relator no sentido de que as
atividades consideradas insalubres realizadas por empregadas gestantes ou lactantes, mesmo
que não apresentem atestado de saúde emitido por médico de sua confiança que recomende o
afastamento durante a gestação, são inconstitucionais, por violarem a proteção à família, à
igualdade de gênero, aos valores sociais do trabalho e à saúde.

Nesse sentido, o ministro Fux pontuou individualmente cada razão pela qual
fundamentou seu entendimento. Acerca da inconstitucionalidade da norma por violação à
proteção à família, asseverou que esta é a base da sociedade e tem proteção especial do Estado
e, mais especificamente, está inserto no art. 6º - proteção à maternidade: impede que a
gravidez ou a amamentação sejam motivos para fundamentar qualquer ato contrário ao
interesse da mulher (principalmente quando o ato lhe impõe grave prejuízo) -, e no art. 226,
§7º - direito ao planejamento familiar: o desenvolvimento da família deve ser decisão
exclusiva de seus próprios membros, sem a interferência externa e, portanto, por força desse
direito, não se pode admitir qualquer ingerência alheia com vistas a restringir ou condicionar
o planejamento familiar. Ainda nesse ponto, o ministro acentuou que, ao condicionar o
afastamento à apresentação de atestado de saúde emitido por médico de confiança da mulher
que recomende o afastamento durante a gestação ou a lactação, a norma impugnada impõe o
ônus de proteção à saúde da mulher e da criança às mulheres trabalhadoras.
24

Sobre a inconstitucionalidade por violação à igualdade de gênero, relembrou Fux que


a Constituição Federal de 1988 representou um marco contra a discriminação de gênero, tanto
no ambiente familiar quanto no laboral. Isto é, o art. 3º, IV, alçou a objetivo fundamental da
República a promoção do bem de todos, sem preconceito de sexo. E, para corroborar com sua
exposição, o ministro citou precedentes da Corte que acompanham a legislação nacional e a
jurisprudência, como a declaração de constitucionalidade de dispositivos da Lei Maria da
Penha e o julgamento que permitiu a remarcação do teste de aptidão física por candidatas
gestantes em concursos públicos.

Ademais, esclareceu Luiz Fux que, consentâneo com o ideário de igualdade material
da mulher e promoção de sua liberdade de escolha profissional, a proteção à trabalhadora
gestante e lactante assegura a autonomia existencial para fins reprodutivos e acrescentou:
diante das elevadas taxas de desemprego, que atingem ainda mais diretamente a mulher no
mercado de trabalho, inexiste, muitas vezes, planejamento familiar capaz de conciliar os
interesses profissionais e maternais e, por isso, a “escolha” majoritariamente impõe às
mulheres o sacrifício de sua carreira, o que acarreta em direta perpetuação de desigualdade de
gênero. Desse modo, para o ministro, sequer se cogite de que a norma estabelece uma
alternativa; o cinismo dessa falsa liberdade oculta o enraizamento da discriminação social que
recai sobre a mulher e, ainda que se tratasse de direitos disponíveis - o que para o julgador
evidentemente não era o que ocorria na hipótese -, a escolha da trabalhadora de apresentar
atestado ao empregador, a fim de afastar-se dos fatores insalubres, não se dissocia das amarras
socialmente construídas do dever de maternidade, da proteção do nascituro, da
responsabilidade pela harmonia familiar, que recaem, segundo o ministro,
desproporcionalmente sobre a mulher.

Noutro ponto, acerca da inconstitucionalidade da norma por violação aos valores


sociais do trabalho, Fux enrobusteceu seu entendimento abordando pesquisas nacionais, como
PNAD e IPEA que, segundo, as mulheres brasileiras ganham, em média, 76% da remuneração
masculina, sendo que mulheres negras recebem ainda menos, 43%, e mulheres com 12 anos
ou mais de estudo ganham, em média, 68% do que homens com a mesma escolaridade. Nesse
sentido, esclareceu o ministro que, naquele caso, deveria-se estimar se a supressão da parte
final dos dispositivos impugnados teria o condão de promover uma maior proteção aos
valores constitucionais que fundamentam a inconstitucionalidade - da isonomia, proteção à
família, maternidade, saúde e valores do trabalho - em comparação a sua manutenção. E
25

acrescentou: de um lado, as normas impugnadas desfavorecem a plena proteção dos interesses


constitucionalmente protegidos, porquanto sujeitam a trabalhadora a maior embaraço para o
exercício de seus direitos e, do outro, enquanto medida legal protetiva direcionada ao âmbito
privado, seria necessário avaliar se o empregador, mais influenciado pelos incentivos
econômicos, poderia contornar a determinação legal com uma resposta ainda mais
discriminatória.

Por derradeiro, argumentou Luiz Fux acerca da inconstitucionalidade da norma por


violação à saúde (art. 6º, CF) e entendeu que não se revelaria proporcional nem razoável
exigir que a trabalhadora colocasse, de forma irresponsável, a vida do bebê em risco através
da exposição a fatores externos incompatíveis com a fase gestacional e de amamentação.
Naquela hipótese, segundo o ministro, a trabalhadora poderia, na busca de manter seu
emprego no médio prazo e uma vez verificada a gestação, preferir se submeter a fatores de
risco e não apresentar atestado médico. Nesse sentido, finalmente, pontuou que o interesse de
que a grávida avance na gestação com êxito exorbita os limites individuais da genitora e que a
maternidade representa direito de dupla titularidade, sendo garantido à criança a sua
irrenunciabilidade.

5 CONCLUSÕES

Ao abordar brevemente o caminho percorrido pela humanidade, com um olhar voltado


para os núcleos sociais correspondentes à mulher e à infância, para que se chegasse à
configuração atual dos direitos fundamentais, intencionou-se munir o leitor de informações
para compreender que as dinâmicas dessas conquistas se formaram a partir de cenários em
que parte da sociedade estava desconforme com os direitos que lhe eram garantidos - ou que
não lhe eram garantidos - e atuavam em busca de mudanças.

No quadro interno brasileiro, essa evolução não se deu - e não se dá - de forma


distinta. Desde a Constituição do Império, a história do país foi marcada por movimentos de
reivindicação e por demandas que tinham por finalidade a garantia de direitos fundamentais.
O resultado dessas investidas se traduz no documento constitutivo do país, a Constituição
Federal de 1988, que, como mencionado, hoje comporta a constituição que garante o maior e
mais completo rol de direitos humanos no mundo. Esse mesmo documento constitutivo tem
por preceito fundamental a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a garantia do
desenvolvimento nacional; a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das
26

desigualdades sociais e regionais; e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de


origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

A Carta Maior atribuiu ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a sua guarda, e a


competência para processar e julgar, dentre outros, matérias pertinentes ao questionamento da
(in)constitucionalidade das leis ou atos normativos federais. Isto é, é da alçada do STF
garantir que o conteúdo constante da Constituição seja observado, conforme o comando, e
que, uma vez não observada sua disposição, deverá ser levado à Corte Suprema para que este,
através da atribuição que lhe é conferida, declare a possibilidade da existência e aplicação de
respectiva norma questionada.

O que se extrai da análise dos votos dos ministros da Corte, no julgamento da ADI
5839, ao decidirem acerca da constitucionalidade da norma questionada - que impunha à
mulher trabalhadora gestante ou lactante o ônus de comprovar a necessidade de seu
afastamento do trabalho em ambiente insalubre, através de atestado confeccionado por
médico de sua confiança -, é uma grande valoração das lutas por direitos imprimidas ao longo
da história; é o reconhecimento de que a busca por mudanças e avanços na garantia de direitos
da mulher e da infância é registro intocável na Constituição brasileira; e que a vedação ao
retrocesso do direito adquirido é inegociável, notadamente quando, para tanto, foi necessária a
existência de inúmeros tratados, convenções, documentos e cartas oficiais, criados a partir de
muita luta e persistência.

Aquela mesma dinâmica que se intencionou demonstrar ao longo desta produção se


perpetua juntamente com a existência da sociedade. Em outras palavras, enquanto houver
interações humanas, a atualização e aperfeiçoamento de normas e leis serão sempre
necessárias, de modo a se adequarem ao desenvolvimento do corpo social, aos novos cenários
que surgem a partir dessa evolução, tendo constantemente o precípuo da proteção ao direito
adquirido, da garantia da dignidade da pessoa humana, da igualdade sem distinções, da
proteção ao trabalho, à maternidade e à infância.

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