Você está na página 1de 16

DIREITO PENAL

TEORIA GERAL DA PENA

Teoria das janelas quebradas, abolicionismo penal


e justiça restaurativa

1. Introdução

Caro(a) leitor(a), nesta unidade de aprendizagem estudaremos algumas


perspectivas distintas sobre o fenômeno da imposição da sanção penal: as
teorias das janelas quebradas e do abolicionismo penal; e as propostas de
justiça restaurativa. É importante percebermos que todos os tópicos
abordados guardam uma correlação estreita com a política criminal e com
os seus desdobramentos, e, assim sendo, norteiam o sistema jurídico e toda a
complexa fenomenologia penal em uma ou em outra direção.

Nós perceberemos que esta unidade de aprendizagem dirá respeito,


sobretudo, a alguns específicos, discursos sobre a questão criminal e
sobre a legitimidade (ou ausência de legitimidade para os adeptos do
abolicionismo), sendo o motivo pelo qual se recomenda que o estudo seja
feito de maneira integrada com as investigações sobre as teorias
legitimadoras da pena, sobretudo com o fim de se fazerem algumas análises
comparativas e para uma compreensão global do problema.

O estudo será, portanto, permeado por uma forte interdisciplinaridade entre


diversos aspectos dos saberes penais, como o direito penal (nos referimos à
dogmática penal, ou seja, ao sistema de imputação de responsabilidade ao
agente do injusto), a criminologia e a legitimação da reação punitiva face ao
delito.

Curso Ênfase © 2022 1


2. A teoria das janelas quebradas

Cuida-se de uma tese de política criminal (alguns autores a referenciam como


uma tese criminológica) desenvolvida nos Estados Unidos da América por
psicólogos daquela nacionalidade, estruturada a partir de um experimento
produzido, que consistiu na seguinte atividade: 

Dois automóveis idênticos foram abandonados em bairros diferentes do


Estado de Nova York, um bairro “nobre” e outro em uma das periferias da
localidade. Observou-se que o veículo abandonado no lugar mais pobre foi
rapidamente depredado, bem como a maioria de suas peças com valor
econômico havia sido subtraída, e as sem valor, destruídas. Quanto ao
abandonado no bairro “nobre”, nada havia acontecido no mesmo período de
tempo.

O experimento prosseguiu, então, com a destruição das janelas do veículo


abandonado no bairro nobre, e a isso se seguiu um resultado muito próximo
daquele que se obteve com o automóvel abandonado na periferia: o carro
havia sido progressivamente depredado e suas peças subtraídas e/ou
destruídas. 

Foi com base nesse experimento que James Q. Wilson e George Kelling, da
Escola de Chicago, afirmaram que o problema da prática dos crimes não
estava necessariamente na pobreza, mas, em verdade, na dinâmica
social, sobretudo na falta da consciência de uma ordem estabelecida e válida
para dirigir as condutas dos membros de uma determinada sociedade. Essa
postura teórica foi analogicamente utilizada para afirmar, por exemplo, que, se
as janelas de um automóvel forem quebradas e não forem imediatamente
reparadas, a tendência social é que as pessoas também se sintam
estimuladas a depredar o automóvel. Tem-se a lógica da teoria das janelas
quebradas (eventualmente referenciada como broken windows theory, na
nomenclatura original) na seguinte afirmação: a desordem gera a desordem.

Assim, por exemplo, também se afirmou que se determinado sujeito destrói


sozinho e isoladamente as janelas de um prédio, em se não as reparando
imediatamente, a tendência é que, algum tempo depois, outras janelas
também sejam destruídas, até que, por fim, nada restará hígido do prédio.
Esse fenômeno se daria em razão de uma suposta crença a ser criada no

Curso Ênfase © 2022 2


intrapsíquico das pessoas, no sentido de que, naquela localidade, inexiste
autoridade e ordem.

A teoria foi, então, utilizada como um argumento para recrudescer a tutela


penal, fazendo uma política criminal autoritária de repressão a todo e qualquer
delito, por menor que fosse, independentemente de sua gravidade em
concreto e do resultado mais ou menos socialmente intolerável, em um
assomo de prevenção geral da pena. A conclusão teórica da teoria das
janelas quebradas, portanto, era no sentido de que mais delitos (e também
mais graves) estariam presentes nas regiões onde mais desordem houvesse.
Em outras palavras, quanto mais repressão penal para reforçar a existência
de uma ordem social (“ordem coercitivamente imposta”, portanto), menos
delitos.

Os problemas da teoria foram diversos, sobretudo os seguintes:

• Redução do fenômeno criminal, extremamente complexo e multidisciplinar, à existência ou


inexistência de um “sentimento de ordem social”.
• Confusão entre correlação e causalidade.
• Indemonstrabilidade científica da eficácia da teoria da prevenção geral.

Atenção!

A teoria das janelas quebradas fundamentou, nos Estados Unidos, a


chamada política de tolerância zero, que tinha como cerne a
punição severa de toda e qualquer incivilidade (majoritariamente
penal, embora eventualmente também de natureza extrapenal,
como a falta de urbanidade nas ruas, a proliferação de sujeira nos
logradouros públicos, o consumo desregrado de bebidas alcoólicas
etc.) ou transgressão à lei, sob a justificativa de que pequenos focos
de desordem tenderiam a, progressivamente, evoluírem para a
ocorrência de crimes de altíssima gravidade, até que a situação se
tornasse insustentável. Buscava-se, assim, evitar a eclosão de
processos dinâmicos incontroláveis de criminalidade.

Alguns estudos apontam que houve, de fato, uma redução


significativa dos índices de criminalidade em Nova York com a
política de tolerância zero, embora parcela da literatura questione a
conclusão, tomando-a por demasiadamente simplificada e

Curso Ênfase © 2022 3


atribuindo-a não somente ao recrudescimento da tutela penal dos
comportamentos sociais, mas, também, a um estado de bem-estar
social fortalecido e a medidas econômicas de peso.

3. Abolicionismo penal

Diferentemente dos modelos de tolerância zero, que fundamentam uma


expansão descomedida do braço punitivo do Estado, os modelos
abolicionistas pregam a sua derrubada completa ou parcial; repentina ou
progressiva. Cuida-se, portanto, de uma plêiade de teorias deslegitimadoras
da pena e, por isso, não enxergam função positiva no fenômeno da
imposição da sanção criminal, ou, se eventualmente enxergando, as tem
por desproporcionalmente custosas face aos seus prejuízos sociais,
coletivos e individuais.

É possível mencionar, como já se deixou antever, a existência de “diversos


abolicionismos penais”, alguns mais moderados, que buscarão uma
redução do âmbito de abrangência do poder punitivo, legitimando-o,
eventualmente, por uma política de direito penal mínimo; e outros mais
radicais, que proporão a extinção completa dos sistemas de controle penal
formal dos cidadãos pelo Estado. 

Os discursos deslegitimadores da pena se fundamentam em perspectivas


criminológicas e de política criminal e, por via de consequência, tendem a ser
discursos do ser, discursos do empírico (diferentemente dos discursos
legitimadores da pena, que tendem a ser discursos do dever-ser, discursos
do normativo). 

É Luigi Ferrajoli (2002, p. 201) quem subscreve a heterogeneidade e


complexidade das posturas abolicionistas, tratando-as como uma plêiade
enorme de teorias e posições ético-culturais cujo núcleo é a deslegitimação
da intervenção punitiva do Estado sobre os cidadãos.

Os pressupostos filosóficos e as perspectivas políticas de tais


orientações são os mais diversos e vão desde o mito criado no
século XVIII do “bom selvagem” e da ultrapassada e feliz sociedade

Curso Ênfase © 2022 4


primitiva sem direito, até as configurações anárquicas e marxistas-
leninistas do “homem novo” e da perfeita sociedade sem Estado;
das doutrinas apologéticas da deviança e da sociedade desregrada
e livremente violenta àquelas renovadoras do final da deviança e da
sociedade perfeitamente autorregulamentada e pacificada.

É possível sistematizar:

3.1. O abolicionismo radical de Max Stirner

Cuida-se de uma postura política absolutamente deslegitimadora de


qualquer controle penal, invalidando também outras hipóteses de controle
social. Não representam, atualmente, uma parte considerável da doutrina,
ante sua completa inviabilidade de aplicação na complexidade da sociedade
atual.

Muito Importante!
--
Essa teoria não somente deslegitima o direito penal e a imposição
da sanção criminal, mas também todas as proibições e os
mecanismos de coerção, sejam eles formais, sejam eles
informais. Assim, há um completo esvaziamento de legitimidade
das regras jurídicas e das regras morais. Não raras vezes no âmbito
dos autores expoentes desse pensamento propõe-se, portanto, não
somente a abolição dos mecanismos de coerção penal, mas do
próprio sistema de controle social das individualidades.

Curso Ênfase © 2022 5


..

3.2. Teorias híbridas

Consubstanciam um segundo grupo abolicionista de teorias, mais difundidas


pela literatura. Geralmente, limitam-se a advogar tese no sentido da
supressão da pena enquanto medida jurídica válida de imposição de coerção
e de aflição ou da abolição do próprio direito penal como sistema estruturado
de coerção formal. Sem, entretanto, propor a abolição de qualquer
sistema de controle social, como a postura radical do individualismo
anárquico de Max Stirner.

Contrariamente à postura amoral individualista e egoísta da filosofia de


Stirner, tais doutrinas, além de serem marcadamente moralistas e de
solidariedade, são claramente influenciadas por uma referência de tipo
jusnaturalista, qual seja uma moral superior que deveria regulamentar
diretamente a futura sociedade. Escritores liberais e anárquicos como
Godwin, Bakunin, Kropotkin, Molinari e Malatesta não valorizam, como Stirner,
a transgressão enquanto expressão normal e fisiológica do homem,
justificando-a, quando muito, como um momento de rebelião e como sinal e
efeito de causas sociais patológicas, razão pela qual contestam a pena, vez
que inutilmente constritiva ou puramente funcional à defesa dos contingentes
interesses dominantes, vislumbrando-lhe, como substitutivos, formas de
controle não jurídicas, mas sim morais e/ou sociais, tais como, “o olho
público”, a “força invisível” da “educação moral”, a solidariedade terapêutica, a
difusão social da vigilância e do controle, a “pressão da opinião pública”.

A ambas – posto que se colocam ao lado daquele em desfavor de quem se


dirige o poder político punitivo, o mais frágil, portanto − deve ser reconhecido
o mérito, sobretudo, de proporcionar a expansão da criminologia crítica como
um instrumento de controle da legitimação das penas e de explicação da
complexa fenomenologia antropológica, social, política, econômica e cultural
do crime.

O mesmo Luigi Ferrajoli (2002, p. 203), embora também reconheça os méritos


citados às terias abolicionistas, em seu desfavor teceu críticas severas,
apontando, em suma, que a maioria delas fundamenta-se em duas

Curso Ênfase © 2022 6


concepções utópicas: (i) uma sociedade selvagem, sem qualquer ordem,
abandonada à lei natural do mais forte; ou (ii) uma sociedade perfeitamente
autorregulada, pacificada e sem conflitos.

4. A crítica materialista/dialética da pena de Juarez


Cirino dos Santos

Juarez Cirino dos Santos, partindo de autores clássicos da criminologia


crítica, funda as bases de sua teoria deslegitimadora a partir da premissa de
que a teoria materialista/dialética da pena pretende revelar a real
natureza da sanção criminal nas sociedades contemporâneas
capitalistas: o que chama de retribuição equivalente.

Essa retribuição equivalente – a que chega por uma explicação política da


pena – não se confundiria com a legitimação da retribuição pelo pecado, pela
expiação do mal injusto do crime pelo mal justo da pena etc, mas, em
verdade, se consubstanciaria em uma forma de equivalência jurídica
fundada nas relações de produção das sociedades contemporâneas
baseadas nas relações entre trabalho assalariado e domínio dos meios de
produção.

O autor (2018, p. 465), de maneira introdutória ao pensamento materialista,


com fundamento em Karl Marx, Michel Foucault, Georg Rusche e Otto
Kirchheimer, bem como em Alessandro Baratta, Melossi e Pavarini, nos
ensina que direito e Estado não se podem compreender por si sós, mas
somente pelas relações da vida da sociedade, cuja anatomia é
representada pela economia política

Nessa perspectiva, dizemos que a pena (bem como todo o microssistema


normativo de direito penal) corresponderá a um instrumento a favor de um
macrossistema social específico. É de Rusche e Kirchheimer (2003, p. 5) a
célebre construção segundo a qual a cada sistema de produção
corresponderá um sistema de punição adequado.

Atenção!

Curso Ênfase © 2022 7


É nesse contexto, então, que devemos, a partir da crítica
materialista da pena, realizar uma distinção entre objetivos reais e
objetivos falaciosos da pena.

Os objetivos reais estarão, nessa perspectiva, consubstanciados


na manutenção, no fortalecimento e na expansão de uma
determinada configuração macrossocial de comunidade política – a
das comunidades capitalistas.

Os objetivos falaciosos, entretanto, dirão respeito aos discursos


legitimadores da pena (os discursos de prevenção de novos
delitos, retribuição de culpabilidade, proteção de bens jurídicos
caros a toda a comunidade etc.).

5. O modelo negativo/agnóstico de Nilo Batista e Zaffaroni

Partindo de uma dicotomia entre Estado de direito e Estado de polícia, dois


modelos ideais que coexistem em relação de exclusão recíproca, Eugenio
Raúl Zaffaroni e Nilo Batista resgatarão as lições de Tobias Barreto e
conceberão a pena como um ato de poder político.

O Estado de polícia se caracteriza como um modelo estatal autoritário, de


imposição de poder vertical e de confisco dos conflitos sociais. Se
apresenta, ainda, como um modelo de distribuição de justiça substancialista
de grupos ou classes sociais. É, ainda, reconhecido pela prevalência das
justificativas retributivistas e prevencionistas da pena como um instrumento de
imposição da vontade hegemônica da classe social que ocupa as posições
centrais de poder na sociedade.

O Estado de direito, entretanto, se caracteriza como um modelo de


distribuição de poder horizontal/democrático, representativo de um
sistema de solução pacífica dos conflitos sociais, levada a cabo por regras
democráticas protetivas de direitos fundamentais e liberdades públicas dos
indivíduos e, ainda, com pretensões de limitação do poder político
punitivo do modelo de Estado de polícia.

Curso Ênfase © 2022 8


5.1. A pena como um conceito negativo

Para os autores mencionados, um dos grandes problemas do enfrentamento


da teoria da pena é a sua conceituação e o seu horizonte teórico de
abrangência. Partindo dos pressupostos delineados acima, o ponto de partida
substancial é que a pena é uma espécie de coerção, mas uma coerção que
não impede lesões em curso – veja-se que a pena só pode ser
legitimamente executada após o trânsito em julgado de uma sentença penal
condenatória, quando a lesão ao bem jurídico já foi consumada desde há
muito e que tampouco repara um dano já causado.

Assim, cuida-se de um conceito negativo de pena por duas razões:

1) Não se concebe qualquer função positiva à sanção criminal.

2) Seu núcleo se obtem por exclusão (não é uma reparação nem é uma
coerção administrativa direta).

5.2. A função agnóstica

Os autores mencionados atribuem, ainda, à sua teoria, um caráter agnóstico


quanto à função da pena, renunciando à sua cognição, sem deixar de
mencionar, entretanto, que a repressão penal se exerce majoritariamente por
meio de um processo de criminalização seletivo baseado em estereótipos
(que, inclusive, concederá ao sistema de imputação de responsabilidade
penal – ou, seja, ao direito penal enquanto dogmática, uma função
contrasseletiva, de filtrar a seletividade). Em verdade, apontam que, como
um ato de poder político que é, a pena pode desempenhar uma plêiade
enorme de funções reais. 

Atenção!

Toda a perspectiva teórica atribuída à teoria negativa/agnóstica da


pena, portanto, será direcionada a partir de um objetivo de
contenção do poder político punitivo e de filtro de seletividade,
estando o direito penal na categoria de um autêntico provedor de
segurança jurídica, norteando, portanto, a própria dogmática penal
da teoria do fato punível no sentido da repressão do autoritarismo
do estado de polícia.

Curso Ênfase © 2022 9


6. As críticas dos modelos deslegitimadores da pena aos modelos
legitimadores

Uma vez estabelecido que as teorias deslegitimadoras da pena não enxergam


funções positivas na sanção criminal, ou, em que pese enxergarem,
percebem maiores prejuízos do que benefícios na sua imposição; e uma vez
estabelecido que essas teorias se fundamentam a partir de um discurso
crítico, um discurso empírico, um discurso do ser (que visa observar o
fenômeno da pena não a partir do que ela deve fazer, como dizem as teorias
legitimadoras, mas do que ela efetivamente faz) sobre a questão, é possível
que sistematizemos as principais objeções dessas posturas teóricas às
posturas legitimadoras da pena.

• Críticas à teoria absoluta da pena: 


◦ Primeira crítica: a natureza expiatória ou compensatória da pena criminal seria
incompatível com o Estado democrático de direito, já que os seus fundamentos estão
arraigados em concepções divinas ou vingativas de punição.

“Não é democrático porque no Estado Democrático de Direito: (a) o poder é


exercido em nome do povo – e não em nome de Deus −, e (b) o Direito Penal
tem por objetivo proteger bens jurídicos – e não realizar vinganças.”
(SANTOS, 2018, p. 451).

◦ Segunda crítica: a teoria absoluta da pena seria eminentemente alheia a critérios


científicos, porque a retribuição do fato punível pressuporia um dado que se mostra
cientificamente indemonstrável: a existência de um livre arbítrio apreciável pelos
sentidos ou por metodologia confiável. 

◦ Terceira crítica: é impossível se trabalhar com um princípio de proporcionalidade das


penas apto a justificar a teoria retributivista pela completa falta de critérios indexadores
do que seria, de fato, uma reação jurídica proporcional ao fato punível praticado pelo
agente.

• Críticas à teoria preventiva especial negativa da pena:


◦ Primeira crítica: tratar-se-ia de uma função incompatível com o Estado democrático de
direito, posto não ser papel de um modelo estatal comprometido com a tutela de
garantias e direitos fundamentais promover a neutralização dos sujeitos; além disso, a

Curso Ênfase © 2022 10


função neutralizadora da pena seria a que mais é afetada pelo fenômeno da
seletividade penal.

• Críticas à teoria preventiva especial positiva da pena:


◦ Primeira crítica: há, na pena, a privação de inúmeros direitos que não seriam,
formalmente, atingidos pela privação da liberdade, notadamente o de sua autonomia
moral. Nesse sentido, o Estado não tem legitimidade para ‘’corrigir moralmente um
sujeito’’.

◦ Segunda crítica: haveria uma manifesta incompatibilidade entre um ideal de


ressocialização ou reinserção do apenado por meio da privação da sua própria
liberdade, configurando-se um verdadeiro paradoxo: ensinar a viver em liberdade
privando desta. Nessa perspectiva, é preciso ressaltar a falência da pena de prisão e os
índices enormes de reincidências, que demonstram a baixíssima eficácia da assim
denominada pela criminologia prevenção terciária, fazendo com que se caracterize o
cárcere como um fator de maior propensão à prática de novos delitos, um autêntico
fator criminógeno ou produtor de criminalização.

• Críticas à teoria preventiva geral negativa:


◦ Primeira crítica: destaca a inutilidade da ameaça penal para inibir comportamentos
delitivos. Uma análise estatística histórica demonstrará, por exemplo, que o
recrudescimento penal legislativo não corresponde, necessariamente, a uma
diminuição nos índices de prática de crimes.

◦ Segunda crítica: tal como a teoria absoluta, também pressupõe um sujeito moralmente
autônomo para decidir entre a prática ou a abstenção do fato punível, incorrendo no
mesmo ponto falho: a pressuposição da existência de um cientificamente
indemonstrável livre arbítrio.

◦ Terceira crítica: a falta de um critério limitador minimamente seguro para que se trace
o arquétipo de balizamentos mínimos da pena transformaria a ameaça de coerção
penal em verdadeiro terrorismo estatal. Além disso, ter-se-ia um problema de
transcendência indevida da pena, porque se puniria muito mais severamente um
sujeito concreto em razão de outros sujeitos – para intimidar a coletividade.

• Críticas à teoria preventiva geral positiva:


◦ Primeira crítica: a prevenção geral positiva teria seu fundamento em propostas de
mundo irreais, que não correspondem, portanto, à realidade. A doutrina crítica aponta,
nesse sentido, que os efeitos de fidelidade jurídica, de pacificação social, de
confiança na norma etc. não se podem compreender senão como uma utopia.
• Críticas às teorias híbridas: costuma-se apontar que, dentre os discursos legitimadores da
pena, as teorias mistas são as mais problemáticas, e isso porque se, por um lado, podem

Curso Ênfase © 2022 11


eventualmente conciliar os benefícios tanto da prevenção quanto da reprovação de
culpabilidade (retribuição), trazem, em um mesmo modelo teórico, ambos os problemas. Uma
postura crítica apontará, a partir de ideais de política criminal, que as teorias híbridas
mostram-se como potencialmente autoritárias, posto que legitimam a pena em qualquer caso:
se inexiste, na hipótese concreta, o fundamento da teoria absoluta (retribuição), legitima-se a
incidência da punição pela prevenção; se, ao contrário, não estiverem presentes os
fundamentos da teoria relativa preventivista (necessidade de evitação de delitos futuros),
justifica-se a sanção pelo caráter retribucionista. Dessa maneira, essas teorias acabam
deixando ao puro arbítrio discricionário dos agentes do sistema de justiça criminal o manejo
desregrado do poder político punitivo.

7. Abolicionismo e minimalismo

O minimalismo penal, fenômeno atrelado de maneira umbilical às premissas


do direito penal liberal, teve como grande mérito a legitimação restrita do
poder punitivo. Justifica-se-o, a partir da teoria do direito penal mínimo,
somente para a solução de conflitos sociais de alta magnitude, devendo incidir
apenas em fatos muito graves, aqueles nos quais, conforme Eugenio Raúl
Zaffaroni e Nilo Batista (2003, p. 128), houvesse a possibilidade de
comprometimento de interesses gerais e/ou aqueles nos quais, em não
havendo a intervenção penal do Estado, surgiria o risco de uma vingança
privada ilimitada e desproporcional. 

Efetivamente, entretanto, o minimalismo penal acaba discutindo o


abolicionismo em termos muitos próximos.

Atenção!

O(a) caro(a) leitor(a) deve estar atento para o fato de que, nas
provas de concursos, muitas vezes tende a haver um reducionismo
da matéria, e em não raros momentos o abolicionismo penal é
retratado como uma proposta de abandono completo das
estruturas de controle do direito penal enquanto o minimalismo
penal é retratado como uma proposta de limitação do poder
punitivo, embora não defenda o seu radical e completo
abandono.

Curso Ênfase © 2022 12


8. A justiça restaurativa

É preciso mencionar, por fim, a existência de propostas restaurativas de


solução dos conflitos sociais, nos quais há a prevalência da mitigação dos
efeitos danosos do delito para os envolvidos sobre a punição, que, como
mencionamos no contexto da teoria negativa/agnóstica da pena, não possui
como um de seus objetivos a reparação ou a restituição. É atribuída a Albert
Eglash (Restitution in criminal justice, 1977) a introdução dos
delineamentos centrais da justiça restaurativa.

Através dessa perspectiva teórica, busca-se construir um modelo


consensual de pacificação dos conflitos sociais, que envolva a vítima, o
agressor e, eventualmente, outros membros da comunidade que possam ter
sido atingidos pela prática do fato. Há, assim, uma mudança substancial de
paradigma, e o delito passa a ser visto não mais como um problema
repressivo do Estado, mas como um conflito social a ser reparado entre os
seus atores.

Essa mudança de paradigmas, portanto, altera o foco de atenção da punição


para a reparação. Como um modelo penal alternativo, é caracterizado pelo
resgate da vítima no direito penal, e, portanto, é influenciado pelos
trabalhos desenvolvidos pela vitimologia e pela criminologia em geral.

A literatura costuma apontar, de regra, alguns princípios próprios da justiçar


restaurativa: 

• Princípio da informalidade
• princípio da voluntariedade
• princípio do sigilo
• princípio da oportunidade
• princípio da neutralidade.

Podem-se, ainda, apontar inúmeros outros princípios, objetivos e/ou


características desse modelo. Todos eles são cumulativos e não excludentes,
bem como se encontram dispostos em um rol meramente exemplificativo, e
devem ser considerados como um norte, uma bússola para a adequada

Curso Ênfase © 2022 13


solução pacífica e consensual dos conflitos causados, e não como categorias
rígidas e classificatórias:

• Plena informação dirigida às partes do processo de composição sobre as práticas


restaurativas anteriormente à efetiva participação e os procedimentos nos quais serão
envoltos os sujeitos.
• Autonomia absoluta, consentida e informada das partes para a participação nas práticas
restaurativas em todas as suas fases e em todos os seus possíveis procedimentos.
• Respeito mútuo entre os envolvidos.
• Corresponsabilidade ativa dos participantes.
• Atenção à pessoa ou às pessoas em desfavor de quem se produziu o dano, com o
atendimento prioritário de suas necessidades, dialogando-se, entretanto, com as
possibilidades reais da pessoa causadora do prejuízo.
• Atenção plena às diferenças socioeconômicas e culturais entre os participantes.
• Atenção plena às peculiaridades socioculturais e ao pluralismo cultural.
• Garantia e efetivação do direito à dignidade dos participantes.
• Promoção de relações equânimes e não hierarquizadas entre os envolvidos, possibilitando
sua participação horizontal e jamais vertical em todas as fases e procedimentos da
restauração.
• Facilitação por equipe multidisciplinar devidamente capacitada nas diversas espécies de
procedimentos restaurativos.
• Observância dos princípios aplicáveis como garantia (como o da legalidade, da culpabilidade,
da intranscendência, da humanidade, da proporcionalidade etc.) no que toca ao direito
material discutido.
• Interação com o Sistema de justiça, tanto criminal quanto de competências não criminais.
• Integração com a rede de assistência social em todos os níveis de governo da Federação.
• Direito assegurado à confidencialidade do teor de todas as informações referentes ao
processo restaurativo.
• Monitoramento e avaliação contínua das práticas na perspectiva do interesse dos usuários
internos e externos.

A Resolução nº 225/2016 do CNJ, no seu art. 2º, prevê como princípios da


justiça restaurativa “a corresponsabilidade, a reparação dos danos, o
atendimento às necessidades de todos os envolvidos, a informalidade, a
voluntariedade, a imparcialidade, a participação, o empoderamento, a
consensualidade, a confidencialidade, a celeridade e a urbanidade.”

Curso Ênfase © 2022 14


No âmbito do direito penal brasileiro, podemos citar, como medidas tendentes
a realizar, ainda que modestamente, os ideais desse modelo alternativo de
pacificação de conflitos sociais, os seguintes institutos:

• A possibilidade de fixação de valor mínimo de indenização civil em favor da vítima, pelo


magistrado criminal, na sentença penal condenatória (art. 387, IV, do
Código de Processo Penal − CPP).
• A possibilidade de realização da denominada composição civil dos danos nas hipóteses
admitidas pelos arts. 72 e seguintes da Lei nº 9.099/1995.

Atenção!

Além desses exemplos, o acordo de não persecução penal,


introduzido pelo “pacote anticrime” (Lei nº 13.964/2019), também
tem sido utilizado como medida de justiça restaurativa, como
exemplo ao ser imposta como condição a participação do acusado
em programas de justiça restaurativa. Neste sentido, o Código de
Processo Penal assim autoriza:

Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado


confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal
sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4
(quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não
persecução penal, desde que necessário e suficiente para
reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições
ajustadas cumulativa e alternativamente: (...)

V – cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo


Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a
infração penal imputada.

Curso Ênfase © 2022 15


“Obra coletiva do Curso Ênfase produzida a partir da análise
estatística de incidência dos temas em provas de concursos
públicos. A autoria dos e-booksnão se atribui aos professores de
videoaulas e podcasts. Todos os direitos reservados.”

Obra coletiva do Curso Ênfase produzida a partir da análise estatística de incidência dos temas
em provas de concursos públicos.
A autoria dos e-books não se atribui aos professores de videoaulas e podcasts.
Todos os direitos reservados.

Curso Ênfase © 2022 16

Você também pode gostar