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O

Sorriso do Flamingo
Reflexões sobre história natural



Stephen Jay Gould














Tradução
LUÍS CARLOS BORGES























Martins Fontes
São Paulo 2004

Título original: THE FLAMINGO’S SMILE.
Copyright © 1985 by Stephen Jay Gould.
Copyright © 1990, Livraria Martins Fontes Editora Ltda., São Paulo, para a presente edição.

1ª edição
setembro de 1990
2ª edição
março de 2004

Tradução
LUÍS CARLOS BORGES

Revisão técnica
Zysman Neiman
Preparação do original
Pier Luigi Cabra
Revisões gráficas
Elaine Maria dos Santos
Maria Corina Rocha
Silvana Cobucci Leite
Produção gráfica
Geraldo Alves
Composição
Antonio José da Cruz Pereira Oswaldo Voivodic


Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CEP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Gould,
Stephen Jay, 1941- .
O sorriso do flamingo : reflexões sobre história natural / Stephen Jay Gould ; [tradução
Luís Carlos Borges]. - 2a ed. - São Paulo : Martins Fontes, 2004.

Título original: The flamingo’s smile Bibliografia.
ISBN 85-336-1964-2

1. Evolução - História 2. Evolução - Obras de divulgação 3. História natural - Obras de
divulgação 4. Seleção natural - História I. Título.

04-1306 CDD-508

Índices para catálogo sistemático: 1. História natural: Ciências 508

Todos os direitos desta edição para o Brasil reservados à Livraria Martins Fontes Editora Ltda.
Rua Conselheiro Ramalho, 330/340 01325-000 São Paulo SP Brasil Tel (11)3241.3677 Fax (11) 3105.6867
e-mail: info@martinsfontes.com.br http://www.martinsfontes.com.br



Para Deb por tudo
Índice


Prólogo

1. ZOONOMIA (E EXCEÇÕES)

1. O sorriso do flamingo
2. Só restaram suas asas

3. Sexo e tamanho
4. Convivendo com ligações

5. Um paradoxo muito engenhoso



2. TEORIA E PERCEPÇÃO
6. O umbigo de Adão
7. O congelamento de Noé
8. Falsa premissa, boa ciência 9. Na falta de uma metáfora

3. A IMPORTÂNCIA DA TAXONOMIA 10. De vespas e WASPs

11. Opus 100


12. A igualdade humana é um fato contingente da história

13. A regra de cinco



4. TENDÊNCIAS E O SEU SIGNIFICADO

14. Perdendo a forma


15. Morte e transfiguração

16. Reduzindo enigmas


16. Reduzindo enigmas

5. POLÍTICA E PROGRESSO
17. Apresentando um macaco

18. Preso pela grande cadeia


19. A Vénus hotentote

20. A filha de Carrie Buck


21. O patrimônio (e o matrimônio) de Cingapura

6. DARWINIANA
22. O ombro esquerdo de Hannah West e a origem da seleção natural 23. Darwin em alto-mar — e
as virtudes do porto

24. Um caminho curto para o milho



7. A VIDA AQUI E EM OUTROS LUGARES
25. Justamente no meio

26. Mente e supermente


27. O programa SETI e a sabedoria de Case Sengés 8. EXTINÇÃO E CONTINUIDADE
28. Sexo, drogas, desastres e a extinção dos dinossauros.

29. Continuidade
30. A dança cósmica de Sivã

Bibliografia
Prólogo


Num dos vitrais medievais da catedral de Canterbury, um anjo surge diante
dos sábios adormecidos e os adverte para que voltem diretamente para casa e
não retornem a Herodes. Abaixo, o evento correspondente do Antigo Testamento
ensina que cada momento da vida de Jesus reencena um trecho do passado e que
Deus colocou significado no tempo — Lot volta-se, e sua esposa se transforma
numa coluna de sal (o vidro branco forma um contraste surpreendente com as
cores cintilantes que a rodeiam). O tema comum de ambos os incidentes: não
olhe para trás.
O sorriso do flamingo é o meu quarto volume de ensaios publicados nas
colunas mensais da Natural History Magazine, ele também contém a minha
centésima contribuição para um gênero que certa vez considerei o mais efêmero
e o mais impossível de se manter. Assim, vou quebrar a injunção de Lot, ter
esperanças de um destino mais agradável e correr o olhar pelos volumes
anteriores.
Certa marca de uísque muitas vezes enfeita as contracapas do New Yorker
com a sua afirmação de que Mac-qualquer coisa (e os da sua raça) vem
praticando o tento de caber no mesmo campo desde 1367, uns anos a mais ou a
menos. “Algumas coisas nunca mudam”, diz a legenda. Seria melhor que
algumas coisas mudassem (por mais difícil que isso seja sob o equilíbrio
pontuado), ainda que apenas para diminuir o tédio, mas temas fundamentais
(assim como um blend bem-sucedido) deveriam se regozijar na persistência. Se
os meus volumes funcionam, afinal, eles devem sua reputação à coerência
fornecida pelo tema comum da teoria da evolução. Tenho uma vantagem
maravilhosa entre os ensaístas, porque nenhum outro tema abrange tão
belamente as particularidades que fascinam e as generalidades que instruem.
A evolução é uma dentre a meia-dúzia de ideias avassaladoras que a ciência
desenvolveu para subverter esperanças e suposições passadas, e para esclarecer
os nossos pensamentos presentes. A evolução também é mais pessoal que o
quantum ou que o movimento relativo da Terra e do Sol; ela vai diretamente ao
encontro das questões da genealogia que tanto nos fascinam — como e quando
surgimos, quais são as nossas relações biológicas com outras criaturas? E a
evolução construiu todas essas criaturas numa variedade atordoante — uma
fonte inesgotável de prazer (embora não o motivo para a sua existência!), para
não falar de ensaios. Tendo em mente mapear as modificações dentro dessa
persistência, reli os prefácios dos meus outros livros e encontrei o tema
coordenador, vinculado às épocas de composição, de cada um deles. Rever SINE
Darwin (Darwin e os grandes enigmas da vida, Martins Fontes, 1987), na condição de primeira
tentativa, apresentava os elementos básicos da evolução como visão de mundo
abrangente com implicações para um mundo político (de anos imediatamente
subsequentes à guerra do Vietnã), que tratava a diversidade humana de modo
mais generoso. The Pandas Tumba (O polegar da panda, Martins Fontes, 1989) focalizava
uma série de debates (sobre taxas e resultados) surgidos entre evolucionistas
profissionais que conferiram uma vigor e uma amplitude renovada a “essa visão
da vida”. Bens Teto and. Hores Toes nasceu à sombra de um brutalismo
ressurgente — a chamada “ciência da criação”, tal como pregada por Falwell e
companhia — e exigiu uma leve defesa da veracidade e da humanidade da
evolução.
O sorriso do flamingo tem um tipo de gatilho diferente — uma descoberta
específica com implicações sucessivas. Agora, para usar um jargão da área,
parece “altamente provável” que um asteroide errante ou uma chuva de cometas
tenha provocado a grande extinção do cretáceo (o dobre de finados dos
dinossauros e, na razão inversa, o intróito da nossa evolução). Além disso, tais
reestruturações quintessencialmente fortuitas e episódicas da vida ocorreram
várias vezes, talvez até mesmo num ciclo regular de cerca de 25-30 milhões de
anos. As particularidades são notáveis (trocadilho intencional, acho), mas as
implicações gerais são ainda mais arrebatadoras, e coincidem belamente com os
temas persistentes que infestam todas as minhas colunas — o significado do
padrão na história da vida (em parte aleatório e, de qualquer modo, não
destinado ou voltado para nós); as implicações sociais dos ataques científicos
contra preconceitos profundos do pensamento ocidental (os meus quatro
cavaleiros favoritos, progresso, determinismo, gradualismo e adaptacionismo —
todos severamente questionados pela teoria do impacto nas extinções em massa).
No centro, coloca-se o único tema que transcende a própria evolução em
generalidade — a natureza da história. O sorriso do flamingo é sobre a história e
sobre o que significa dizer que a vida é o produto de um passado contingente,
não o resultado inevitável e previsível de leis simples, atemporais, da natureza.
O capricho e o significado são dois dos meus temas não tão contraditórios.
Tudo isso soa terrivelmente tendencioso e pode levar os leitores a temer que
o prazer potencial tenha sido sacrificado num altar inchado de importância
imaginária (meus volumes tornaram-se cada vez maiores sem que mudasse o
número de ensaios — uma tendência mais regular que o declínio, por mim
mapeado, das médias de rebatidas do ensaio 14, e um sinal de advertência contra
problemas iminentes caso haja continuidade além de um limite alcançado,
suponho, por esta coleção). Minha salvação potencial em face do egoísmo,
confesso, deve continuar sendo um compromisso inflexível de tratar da
generalidade apenas quando ela surge das pequenas coisas que nos arrebatam e
abrem os nossos olhos com um “ah” — enquanto os ataques diretos, abstratos,
eruditos, contra as generalidades geralmente as tornam nebulosas. Mesmo o meu
ensaio mais grandiloquente (não o melhor — o de número 29, sobre a própria
continuidade) — surgiu como uma glosa a respeito de uma pequena observação:
a mescla de sagrado e profano na iconografia do Palácio de Pio IV no Vaticano.
Coloquei os meus ensaios sobre inversões e fronteiras no começo porque
eles ilustram melhor esse estilo de deixar que a generalidade flua das
particularidades — três ensaios sobre inversões de expectativas generalizadas
(flamingos que se alimentam de cabeça para baixo; fêmeas de insetos que
supostamente comem os parceiros após a cópula; flores e moluscos machos que
viram fêmeas e, às vezes, reinvertem o processo); e dois sobre continuidades e o
problema das fronteiras na natureza (as caravelas são indivíduos ou colônias, os
irmãos siameses são uma ou duas pessoas). Cada ensaio é ao mesmo tempo uma
única argumentação longa e uma união de particularidades.
Na maior parte da Europa, a comunicação da ciência a um público geral foi
considerada como parte do humanismo, como uma tradição intelectual honrosa
vinda de Galileu, que escreveu em italiano para levar a ciência além dos limites
do latim da Igreja e das universidades, até Thomas Henry Huxley, um estilista
literário tão bom quanto muitos grandes romancistas vitorianos, até J. B. S.
Haldane e Peter Medawar, na nossa época. Nos Estados Unidos, essa digna
atividade foi seriamente confundida com os piores aspectos do jornalismo, e
“popularização” tornou-se, em certos círculos, sinônimo de ruim, simplista,
trivial, barato e adulterado. Eu sigo uma regra fundamental na composição
destes ensaios — nada de concessões. Tornarei a linguagem acessível definindo
ou eliminando o jargão; não simplificarei conceitos.
Posso apresentar todos os tipos de justificações morais pretensiosas para essa
abordagem (e realmente acredito em todas), mas o motivo básico é simples e
pessoal. Escrevo estes ensaios sobretudo para auxiliar meu propósito de aprender
e compreender o mais possível sobre a natureza no pouco tempo que me cabe.
Se eu fizer o jogo do livro didático ou da TV, de destilar o que já se sabe, ou
eliminar a sutileza até tornar tudo acessível no sentido vulgar (nenhum retorno
exigido dos consumidores), então de que me serve isso tudo?
Todos estes ensaios estão fundamentados nas fontes originais, nas suas
linguagens originais: nenhum deles é repetição direta de textos e outros sumários
conhecidos. (A propagação do erro através da infindável transferência de livro
didático para livro didático é uma história perturbadora e divertida por direito
próprio — uma fonte de defeitos herdados quase mais persistente que os defeitos
inatos da genética.) Os meus erros são os meus erros.
Sob essa perspectiva, se classificam estes ensaios em três categorias. A
maioria deles compõe-se de exercícios de erudição pessoal. Alguns atingem
novas interpretações (pelo menos para mim): acho que a minha leitura de Tyson
como um adepto conservador da cadeia do ser e não como um pioneiro inovador
da evolução esclarece as disparidades entre o seu texto e as análises costumeiras
(ensaio 17); descobri que o primeiro enunciado de Wells da seleção natural não
se harmoniza tanto com a versão posterior de Darwin como afirmou a maior
parte dos comentadores (ensaio 22); embora a vida anterior de Kinsey como
taxonomista de vespas não tenha sido ocultada, não acho que sua ligação
intelectual íntima com as suas pesquisas de sexualidade tenha sido
adequadamente investigada (ensaio 10 — suspeito de que esse tratamento exigia
um taxonomista profissional trabalhando a partir das vespas, não um psicólogo
partindo do sentido contrário). Outros ensaios representam descobertas de
diversos tipos baseadas em dados novos. Pode não ficar claro em vista do tom
jocoso do ensaio, mas há mais trabalho (do tipo tabulatório mudo — um tipo de
prazer perverso e entorpecedor em si mesmo) escondido na minha tabela de
médias baixas de rebatidas ao longo do tempo (ensaio 14) do que nas análises
requintadas exibidas nas minhas dissertações técnicas sobre caracóis terrestres.
(Cada um dos meus volumes contém um ensaio em relevo mais baixo — a
alometria de catedrais em Darwin e os grandes enigmas da vida, a neotenia de
Mickey Mouse em O polegar do panda, as barras de Hershey em Hen’s Teeth
and Horse’s Toes, a extinção das médias de .400 do beisebol neste livro. Muitas
vezes insisto na seriedade desses trabalhos, e falo sério — embora eu vá ficar
absolutamente arrasado se o leitor não rir. Quase me arrependo da ilustração
escolhida, a história das médias de rebatidas, no ensaio 14, porque o seu tema
geral — um apelo para que se leve em consideração sistemas em vez de partes
abstratas — devia ser parte do divertimento, e não perder-se nele.) Numa
segunda categoria, relato as descobertas ou interpretações de amigos e colegas,
mas encaixo-as num tema pessoal. Uso a teoria de Iltis sobre a origem do milho
(ensaio 24) para ilustrar o conceito evolutivo muitíssimo difícil e importante da
homologia; a descoberta do animal conodonte (ensaio 16) torna-se um pretexto
para discutir o que pode ser o padrão fundamental (mas mal avaliado) da história
da vida — a redução na diversidade de modelos morfológicos, com expansão
nítida entre os sobreviventes.
A terceira categoria coloca temas gerais que precisam ser arejados, mas
busca particularidades caprichosas e incomuns para a sua ilustração. Os ensaios
4 e 5 são um experimento — o mesmo, com ilustrações radicalmente diferentes.
Discuto o reducionismo através da vida trágica de E. E. Just (ensaio 25) e a
numerologia de taxonomias pré-darwinianas antiquadas (ensaio 13). Tempero a
natureza da ciência com algumas ideias engraçadas sobre dinossauros (ensaio
28) e um apelo em favor do sr. Gosse (ensaio 6), que afirmou que, assim como
Deus criou animais com fezes nos intestinos, também criou a Terra com
coprólitos (excremento fóssil) nos seus estratos.
Também espero que o ordenamento dos ensaios em categorias auxilie o meu
propósito maior enfatizando, por meio da justaposição, os temas expressados nos
ensaios tomados separadamente. Ao fazer três declarações sobre a cadeia do ser
(17-19), tento demonstrar como o inevitável assentamento da ciência na cultura
atua como uma restrição (ao defender o preconceito não confirmado como
conhecimento certificado, com trágicas consequências para vidas individuais —
ensaio 19 sobre a Vénus hotentote), e como um estímulo produtivo para uma
nova descoberta que, em troca, pode influenciar a cultura (a cadeia do ser levou
Tyson a alguns dados notáveis sobre a anatomia dos chimpanzés — ensaio 17).
A minha profissão incorpora um tema ainda mais inclusivo que a evolução
— a natureza e o significado da história. A história emprega a evolução para
estruturar os eventos biológicos no tempo. A história subverte o estereótipo da
ciência como um empreendimento preciso, desalmado, que priva a singularidade
de qualquer complexidade e reduz tudo a experimentos de laboratório
atemporais, repetíveis e controlados. As ciências históricas são diferentes, não
menores. Os seus métodos são comparativos, nem sempre experimentais; elas
explicam, mas geralmente não tentam prever; elas reconhecem o capricho
irredutível que a história acarreta, e aceitam o poder limitado das presentes
circunstâncias para impor ou inferir soluções ótimas; a rainha entre as suas
disciplinas é a taxonomia, a Gata Borralheira das ciências. Enquanto escrevia
Hen’s Teeth and Horse’s Toes, presenciei com um prazer quase distanciado
como a história lentamente surgia na vanguarda das minhas preocupações. Ela se
espalhou por este volume como um transposon (Tipo de gene de um DNA que tem a
capacidade de “saltar” de um cromossomo para outro dentro da célula. -N.R.T.). O sorriso do
flamingo (como o polegar do panda) é a sua sinédoque — uma estrutura
caprichosa, imposta por um passado distante, e amalgamada a partir de partes
disponíveis.
O ensaio 12, sobre fatos contingentes versus fatos necessários, pode ser o
meu pronunciamento direto sobre a história, mas esse assunto perpassa o volume
inteiro. Ponderei por um bom tempo sobre o meu centésimo ensaio, pois achava
que ele deveria exprimir a essência dos meus esforços. Escrevi sobre a
importância da taxonomia, tal como aplicada aos caracóis terrestres das índias
Ocidentais que servem como foco da minha pesquisa técnica em biologia. A
taxonomia, a mais subestimada de todas as ciências, é a pedra fundamental das
disciplinas históricas. A Parte 3 celebra a taxonomia em várias roupagens.
Outros ensaios também discutem os métodos da história — o ensaio 24 sobre a
homologia como guia para a determinação da ascendência; os ensaios 4 e 5
sobre o significado das fronteiras num mundo de continuidades.
Várias seções tratam dos padrões que a história produz por meio do seu
processo autorizado, a evolução — a Parte 4 sobre tendências na história da vida
(e de alguns sistemas menores); a Parte 8 sobre as extinções como sendo muito
mais que uma força negativa; a Parte 7 sobre a vida aqui na Terra, e as previsões
que a história permite sobre a vida em outros lugares (mais uma vez, receio, os
limites da contingência em vez dos planos para o E.T.). Por fim, se a história tem
importância e a ciência não pode ser reduzida a experimentação automática,
então a interação da ciência com a cultura e a personalidade não é um mero
estorvo, mas um incentivo à criatividade e uma chave para a compreensão. A
Parte 5 trata da interação em temas da evolução humana. A Parte 2 prega o
respeito por bons cientistas que foram mal compreendidos ou ridicularizados
pela abordagem arrogante que considerava a história apenas como um
repositório de erros e, desse modo, uma fonte de instrução moral. Confesso uma
afeição particular pelo ensaio 5 e o seu tema picante.
Se o asteroide dos Alvarez foi o estímulo externo para a coesão, este livro
tem também um tema interno. Não é exatamente um segredo o fato de que passei
esses últimos anos lutando contra o câncer. Minha doença foi diagnosticada
apenas uma semana após o último volume ter ido para a impressão. Este livro se
torna, portanto, uma espécie de roman à def (completo, espero) para uma
odisseia pessoal. O ensaio 19, “A Vénus hotentote”, foi o primeiro texto que
escrevi na condição de membro desse enorme clube involuntário — e considero
a sua última linha o meu touché. Quando organizados segundo sua ordem de
publicação na Natural History, estes ensaios poderão traçar uma viagem
emocional (embora eu prefira não empreender a análise). Direi apenas que
alguns ensaios são secos no seu estilo exegético de comentário sobre textos
históricos individuais (pois não pude chegar às bibliotecas para as minhas
costumeiras divagações, e, várias noites, um belo e velho livro foi o que me deu
alívio), ao passo que outros são completamente barrocos na sua miscelânea de
detalhes (a minha simples alegria de ser capaz outra vez).
Não me atrevo nem a tentar expressar minha gratidão aos que me apoiaram
ao longo de tudo isso; não há palavras para isso em língua alguma. Mas àqueles
que me conhecem apenas através destes ensaios, aos que tomaram o seu tempo
para dizer que estavam preocupados, a minha gratidão especial; isso teve real
importância. Durante esse tempo, eu repisava várias coisas — que eu tinha de
ver os meus filhos crescerem, que seria perverso ter chegado tão perto do fim do
milênio e perdê-lo. Espero que não vá parecer piegas agradecer também à
natureza — no contexto da penosa regularidade destes ensaios. Ninguém tem
melhor sorte do que a que eles me oferecem; todo mês é uma nova aventura —
em aprendizado e expressão. Eu só poderia dizer com a mais firme resolução:
“Ainda não, Senhor, ainda não.” Nem mesmo em cem vidas eu conseguiria
dominar todo esse tesouro, mas simplesmente tenho de dar uma olhada em mais
alguns daqueles belos pedregulhos.










1. Zoonomia (e exceções)



1. O sorriso do flamingo


Buffalo Bill desempenhou o seu papel específico na redução da população de
bisões americanos, estimada em sessenta milhões de cabeças, para a quase
extinção. Em 1867, sob os termos de um contrato para fornecimento de comida
aos trabalhadores das estradas de ferro, ele e seus homens mataram 4.280
animais em apenas oito meses. O massacre pode ter sido indiscriminado, mas a
carne obtida não foi desperdiçada. Outros espoliadores de nossa herança natural
mataram bisões com um desenfreamento ainda maior, removendo apenas a
língua (considerada uma esplêndida iguaria em certos círculos), e deixando o
resto da carcaça a apodrecer.
As línguas já haviam figurado antes nos tristes anais da rapacidade humana.
Os primeiros exemplos datam daqueles infames episódios de glutonaria
gastronômica — as orgias dos imperadores romanos. O sr. Stanley, o “general
moderno” de Gilbert Sullivan, podia “citar cm versos elegíacos todos os crimes
de Heliogábalo” (isso antes de demonstrar suas habilidades para se apropriar de
uma rima através do domínio de “peculiaridades parabólicas” no estudo de
seções cônicas) (“The Major General’s Song”, da opereta The Pirates of Penzance, de W. S. Gilbert e
A. S. Sullivan.- N.T.). Entre outros crimes, o licencioso imperador adolescente
cometia o de presidir banquetes onde figuravam com destaque pratos cheios de
línguas de flamingo. Suetônio relata que o imperador Vitélio servia uma
gigantesca mistura chamada “escudo de Minerva”, feita de fígados de peixe-
papagaio, cérebros de pavão e faisão, tripas de lampreia e línguas de flamingo,
sendo todos os ingredientes “trazidos em grandes navios de guerra, de lugares
tão longínquos quanto o mar de Cárpato e os estreitos espanhóis”.
Lampreias e peixes-papagaio (apesar de não desprovidos de beleza)
raramente suscitaram grande compaixão. Mas os flamingos, essas elegantes aves
de cor vermelho brilhante (como proclama seu nome - Proveniente talvez do latim
Flamma [chama, fogo] com o sufixo germânico ingl., segundo Antenor Nascentes.- N.T), inspiraram
apoio ardoroso, dos poetas da Roma antiga aos modernos preservacionistas.
Num de seus mais pungentes dísticos, Marcial criticou duramente seus
imperadores (por volta de 80 a.C.), ao especular sobre a possibilidade de um
destino diferente, houvesse a língua do flamingo sido dotada, não simplesmente
de sabor agradável, mas de melodia, como a do rouxinol:

Dat mihi penna rubens nomen; sed língua gulosis
Nostra sapit: quid, si garrula língua foret?
(Minha asa vermelha me dá o nome; mas os epicuristas consideram saborosa
a minha língua. Mas, e se minha língua pudesse cantar?)

A maioria dos pássaros tem línguas magras e pontudas, certamente indignas
de um imperador, mesmo em grandes quantidades. O flamingo, para seu
posterior e imprevisto infortúnio, adquiriu ao longo da evolução uma língua
grande, macia e carnuda. Por quê?
Os flamingos desenvolveram um método extraordinariamente raro de
alimentação, único entre as aves e adotado por bem poucos dentre os outros
vertebrados. Seus bicos são providos de numerosas fileiras complexas de
lamelas córneas — filtros que funcionam como as barbatanas das baleias
gigantes. Os flamingos são errônea e comumente retratados como residentes
típicos de luxuriantes ilhas tropicais — algo divertido de se ver enquanto se bebe
rum e coca-cola na varanda do cassino. Na verdade, eles vivem num dos habitats
mais inóspitos do mundo — os lagos rasos e hipersalinos. Poucas criaturas são
capazes de tolerar as condições ambientais incomuns desses desertos salinos. As
que conseguem se desenvolver podem, na ausência de competidores, multiplicar
em muito suas populações. Os lagos hipersalinos, portanto, oferecem aos
predadores condições ideais para a evolução de uma estratégia de alimentação
por filtragem — poucos tipos de presas potenciais, disponíveis em grandes
quantidades e de tamanho essencialmente uniforme. O Phoenicopterus ruber, o
maior flamingo (de espécie mais comum em nossos jardins zoológicos e nas
áreas de preservação das Bahamas e de Bonaire), filtra, predominantemente,
presas de dimensões em torno de uma polegada — pequenos moluscos,
crustáceos e larvas de insetos, por exemplo. Mas o Phoeniconaias minar, o
flamingo menor, possui filtros tão densos e eficazes que são capazes até mesmo
de reter células de cianofíceas e diatomáceas de 0,02 a 0,1 mm de diâmetro.
Os flamingos fazem com que a água passe através de seus filtros de duas
maneiras (tal como documentado por Penelope M. Jenkin em seu artigo clássico
de 1957): balançando a cabeça para a frente e para trás, eles permitem que a
água flua passivamente, ou então, pelo sistema mais comum e eficaz, que
inspirou os glutões romanos pelo bombeamento ativo sustentado por uma língua
grande e forte. A língua preenche um grande canal no bico inferior. Move-se
rapidamente para a frente e para trás, com uma frequência de até quatro vezes
por segundo, trazendo a água através dos filtros com o movimento para trás e
expelindo-a com o movimento para a frente. A superfície da língua está munida
de numerosos dentículos que raspam o alimento recolhido nos filtros
(exatamente como as baleias recolhem o krill de suas barbatanas).
A vasta literatura sobre a alimentação dos flamingos sempre ressaltou esses
singulares filtros — e com frequência negligenciou outra característica,
intimamente relacionada ao tema, igualmente notável e longamente considerada
pelos grandes naturalistas. Os flamingos alimentam-se de cabeça para baixo.
Eles se postam na água rasa, abaixam a cabeça até o nível dos pés, ajustando
sutilmente a posição da cabeça pelo alongamento ou acentuação da curva em “S”
do pescoço. Esse movimento naturalmente inverte a posição normal da cabeça,
e, desse modo, os bicos têm seus papéis convencionais trocados durante a
alimentação. O bico anatomicamente superior do flamingo fica para baixo e
passa a servir, funcionalmente, como uma mandíbula inferior. O bico
anatomicamente inferior fica para cima, na posição assumida pelos bicos
superiores de quase todas as outras aves.
Com esta curiosa inversão, afinal chegamos ao tema do presente ensaio: esse
comportamento incomum resultou em mudanças de forma? E, em caso
afirmativo, quais foram elas e como se deram? A teoria de Darwin, na condição
de postulado sobre a adaptação a circunstâncias ambientais imediatas (não um
progresso geral ou uma direção global), prevê que a forma deve seguir a função
a fim de estabelecer uma boa adaptação a estilos peculiares de vida. Em resumo,
poderíamos suspeitar que o bico superior do flamingo, agindo funcionalmente
como uma mandíbula inferior, evoluiria até se aproximar, ou mesmo imitar, a
forma usual da mandíbula inferior de uma ave (e vice-versa no caso do bico
anatomicamente inferior e funcionalmente superior). Tal modificação terá
ocorrido?
A natureza abriga um enorme séquito de excentricidades, tão especiais que
dificilmente sabemos o que prever. Neste caso, porém, nos deparamos com uma
inversão precisa de anatomia e função usual — o que nos leva a uma expectativa
definida: quando o comportamento presente entra em conflito com a anatomia
convencional, os animais com características invertidas deveriam reorientar a
forma de seus corpos para uma nova função.


Podemos começar dispensando as costumeiras pontificações (mas só por
alguns instantes) e olhar uma figura. Se essa figura lhe provoca uma vaga
sensação de familiaridade e um leve estranhamento, sua percepção é aguda.
Ainda assim, acompanhe minha exposição.
A princípio julgamos ver um cisne com um longo pescoço e um largo
sorriso. Mas, olhe com mais cuidado, pois os detalhes traem esse animal
impossível. A boca se abre acima dos olhos. As plumas estão voltadas na
direção errada. E, onde estão suas pernas? Vou mostrar-lhes, a seguir, o famoso
original em sua posição correta (e com as pernas de volta) — o flamingo de
Birds of America de J. J. Audubon, que certamente figurará em qualquer relação
de ilustrações mais famosas da história natural.
Esse radical deslocamento perceptual, de cisne feliz para altivo flamingo,
traz à lembrança qualquer um dos vários itens-padrão do arsenal de ilusões de
óptica da psicologia — particularmente o da jovem dama bem-vestida, com o
rosto voltado, que se transforma na velha megera de perfil. Na verdade, qualquer
desenho bem-executado de um flamingo, quando visto de cabeça para baixo,
produz o mesmo efeito surpreendente (verifiquei todos os retratos historicamente
importantes) — e por um motivo óbvio. As mandíbulas evoluíram para se
adaptarem à sua função invertida. A mandíbula superior do flamingo de fato se
parece com o bico inferior de uma ave típica, e, portanto, vemos o flamingo de
cabeça para baixo, não como um absurdo, mas apenas como uma ave parecida
com o cisne, ligeiramente estranha.
As alterações morfológicas vão muito além das modificações da forma
exterior responsáveis por essa mudança perceptual tão surpreendente, de
flamingo ereto para “cisne” invertido. Note-se, porém, primeiro a curva peculiar
do próprio bico. O bico do flamingo projeta-se do seu rosto, mas faz então um
desvio angular abrupto, produzindo a acentuada corcova que se parece com um
cocho (e que funciona como tal) quando invertida durante a alimentação. Alguns
povos do Oriente próximo chamam os flamingos de “camelos do mar”, não
porque o bico curvo lembre a corcova do camelo, mas porque ele imita a curva
de nariz que confere uma errônea (porém inabalável) impressão de arrogância a
ambos os animais (ver meu ensaio sobre a história de Mickey Mouse e as
mensagens transmitidas casualmente pelos traços faciais dos animais — ensaio 9
de O polegar do panda). Virada de cabeça para baixo, a curvatura torna-se um
sorriso, e um “cisne” sorridente substitui o flamingo arrogante.


Os bicos estão minuciosamente adaptados a seus papéis invertidos, e não
simplesmente curvados no ponto médio com vistas a uma reorientação
adequada. Em primeiro lugar, os tamanhos relativos foram rearranjados para
complementar os formatos. O bico superior é pequeno e raso, e o inferior,
profundo e maciço. (Na maioria das aves, o bico inferior, menor, move-se para
cima e para baixo contra o bico superior, maior.) Em segundo lugar, o bico
inferior do flamingo (funcionalmente superior durante a alimentação) evoluiu até
adquirir uma rigidez incomum. Os ossos de cada metade (ou ramus no jargão
técnico) são firmemente fundidos, e os próprios rami são, por sua vez, soldados
um ao outro. O bico inferior é maciço e bem fixado. A língua é disposta
longitudinalmente numa cavidade profunda da mandíbula inferior. (Lembre-se
de que a alimentação por filtragem serve como tema coordenador de todas essas
mudanças — a postura de cabeça para baixo para a alimentação, a decorrente
alteração do formato e do tamanho dos bicos e a língua gorda que quase selou o
destino do flamingo.) Em terceiro lugar, na maioria das espécies de flamingo, a
mandíbula superior, de tamanho menor, encaixa-se em um receptáculo inferior,
de tamanho maior, numa inversão da convenção usual — a mandíbula inferior,
com movimento para cima, encaixando-se em um bico superior de tamanho
maior.
Essas mudanças complexas e coordenadas formam um quadro convincente,
mas deixam de lado uma peça, reconhecida como sendo a chave para as
peculiaridades do flamingo desde que Menipo, quase trezentos anos antes do
apelo de Marcial, registrou a primeira especulação ainda preservada sobre o
assunto: os movimentos também são invertidos para combinar com a inversão da
forma?
Na maioria das aves (e dos mamíferos, inclusive nós mesmos), a mandíbula
superior se funde ao crânio; os atos de mastigar, morder e gritar fazem com que
a mandíbula inferior se mova contra esse suporte fixo. Se a postura alimentar
invertida converteu a mandíbula superior do flamingo numa mandíbula inferior
funcional em tamanho e forma, então devemos supor que, ao contrário de toda a
praxe anatômica, esse bico superior se move para cima e para baixo contra uma
mandíbula inferior rígida. O flamingo, em resumo, deveria alimentar-se
erguendo e baixando sua mandíbula superior.
Fazendo justiça à clareza de pensamento dos nossos melhores naturalistas,
notei com prazer em minhas leituras que esta questão central vem sendo
considerada fundamental há mais de dois mil anos — por cientistas de diversas
culturas e ao longo de todas as vicissitudes de teoria e prática que têm marcado a
história da biologia. Georges Buffon, o maior de todos os naturalistas sinópticos,
iniciou seu ensaio sobre flamingos, de meados do século XVIII, admitindo a
fama de sua coloração vermelha, mas, ao mesmo tempo, sustentando que o
estranho formato de seu bico constituía um problema de interesse ainda maior:
“Essa cor flamejante não é o único traço notável exibido por essa ave. Seu bico
tem um formato extraordinário, a parte superior sendo achatada e fortemente
curvada em sua porção central, e a inferior densa e bem assentada, como uma
grande colher.” Em resumo, usando a sua adorável língua, “une figure d’un beau
bizarre et d’une forme distinguée”. Então, remontando a questão até Menipo,
Buffon estabeleceu o primum desideratum dos estudos sobre flamingos —
“saber se, neste bico singular, é (como disseram muitos naturalistas) a parte
superior que se move, ao passo que a inferior mantém-se fixa e imóvel”.


O primeiro comentário amplo e explícito fora oferecido em 1681 por
Nehemiah Grew, o grande naturalista inglês (conhecido principalmente por seus
pioneiros estudos microscópicos de plantas). Ao catalogar as coleções da Royal
Society — no seu Musaeum Regalis Societatis, or a catalogue and description of
the natural and artificial rarities belonging to the Royal Society and preserved
at Gresham College, whereunto is subjoyned the comparative anatomy
ofstomachs and guts [Musaeum Regalis Societatis, ou catálogo e descrição das
raridades naturais e artificiais pertencentes à Royal Society e preservadas no
Gresham College, ao qual se acha apensa a anatomia comparativa dos estômagos
e intestinos] —, ele encontrou um único flamingo (ver figura) e declarou:
“Aquilo no qual ele se mostra mais notável é no bico.” Grew achava que as
singularidades do bico seriam explicadas caso a porção superior se movesse
apoiada contra uma mandíbula inferior estacionária. Ele afirmava que a “forma e
o tamanho grande do bico superior (o qual, neste caso, ao contrário do que
ocorre com todas as aves que vi, é mais fino e bem menor que o inferior)
indicam que ele é mais apropriado para o movimento e para realizar o contato, e
o inferior, para recebê-lo”.


A questão não foi inteiramente solucionada até que-Jenkin publicasse seu
abrangente trabalho em 1957 — confirmando com dados sólidos as suspeitas e o
bom julgamento de Menipo, Grew e Buffon. Na verdade, os flamingos (assim
como várias outras aves) desenvolveram uma articulação esférica altamente
móvel entre as mandíbulas superior e inferior. Os bicos, por conseguinte, têm
maior mobilidade, e cada um deles pode se mover de modo independente. No
alisamento de plumas com o bico, tanto a mandíbula' superior quanto a inferior,
podem ser abertas e operadas uma contra a outra. Mas na alimentação, a
mandíbula superior em geral se abaixa e se ergue apoiada contra uma mandíbula
inferior estacionária — exatamente como os grandes naturalistas sempre haviam
suposto.
A reviravolta do flamingo é completa e abrangente — quanto à forma e ao
movimento. As formas são subvertidas pela inclinação, os tamanhos trocados, o
encaixe invertido e a sustentação deslocada. A ação também é invertida. Uma
inversão particular de comportamento engendrou uma complexa inversão na
forma. A evolução como adaptação a modos particulares de vida — na visão de
Darwin — ganha força a partir de um teste extremo imposto por uma forma de
vida de cabeça para baixo.
Mas os flamingos são apenas um exemplo divertido ou simbolizam uma
generalidade? O que dizer de outras criaturas que vivem de cabeça para baixo?
Consideremos outro animal de águas rasas das índias Ocidentais, a medusa
invertida, Cassiopea xamachana (a heterodoxa denominação da espécie é uma
menção ao nome dado pelos nativos americanos à ilha da Jamaica).
A Cassiopea é uma água-viva não convencional em vários aspectos. Ela não
desenvolve tentáculos marginais nem boca central. Em vez disso, oito “braços
orais” (assim chamados porque cada um deles contém uma boca) carnudos e
complexamente ramificados emergem de um talo central curto e robusto, ligado
ao costumeiro guarda-chuva das águas-vivas, só que com uma diferença (ver a
figura — uma reprodução da clássica litografia da monografia de Mayer, de
1910, Medusae of the World). Os braços orais estão repletos de células algáceas
simbióticas, um possível impulso adaptativo para a elaborada ramificação (com
o fim de fornecer superfícies captadoras de luz aos sim-biontes
fotossintetizantes). Cada braço oral abriga cerca de quarenta vesículas orais —
sacos ocos conectados com os canais alimentares e contendo nas pontas bolsas
de nematocistos, ou células urticantes. As vesículas disparam seus nematocistos
contra as presas (em geral pequenos crustáceos) em filamentos de muco; os
filamentos com as vítimas grudadas e paralisadas são depois puxados para as
bocas orais. (Sim, também achei engraçada, assim como alguns de vocês, a
redundante expressão “boca oral” — o equivalente zoológico de torta de pizza
ou corrente AC. Esta expressão desajeitada é o resultado infeliz de uma decisão
anterior de designar os apêndices como “braços orais” — um equivalente
reduzido de “bocas dos braços orais”).
A anatomia incomum da Cassiopea combina com sua orientação e seu estilo
de vida não convencionais. As águas-vivas comuns, providas de autorrespeito,
nadam ativamente com seus guarda-chuvas para cima e os braços e tentáculos
para baixo. A Cassiopea permanece estacionada no fundo de poços rasos e
regiões costeiras — de cabeça para baixo. O topo de seu guarda-chuva se abraça
ao sedimento, e os braços orais ondulam por cima, esperando que pequenos
crustáceos adentrem sua órbita. Os navegadores de Fort Jefferson, nas Tortugas,
onde a Cassiopea guarnecia as docas, chamavam-nas de “bolos de musgo”.
(Como a Cassiopea é capaz de dar uma ferroada bem dolorida, e, já que os
marinheiros em geral “apimentam” sua linguagem de mo do a que ela se adapte
à qualidade do estímulo, fico imaginando como eles realmente as chamavam.
Contudo, o sr. H. F. Perkins, ao escrever em 1908 sobre a anatomia da
Cassiopea, preferiu não nos contar.)


O guarda-chuva da Cassiopea lembra a mandíbula do flamingo em sua
adaptação à vida invertida. A superfície superior do guarda-chuva mostra-se
suavemente convexa nas águas-vivas comuns, como exige a eficiência
hidrodinâmica. Mas a superfície superior do guarda-chuva da Cassiopea (a
superfície funcionalmente inferior na vida de cabeça para baixo) é
acentuadamente côncava — bem apropriada para servir como um dispositivo de
ventosa para pegar e segurar o substrato.
A Cassiopea realizou uma segunda e intrigante modificação para a sua
insólita vida invertida. A maioria das águas-vivas move-se na água contraindo
anéis de músculos concêntricos que circundam a porção exterior do guarda-
chuva. Na Cassiopea, um desses anéis musculares foi erguido e acentuado,
formando uma faixa circular contínua que rodeia a concavidade interna. Este aro
erguido opera juntamente com a superfície côncava para formar uma eficaz
ventosa que mantém a “cabeça” da água-viva em sua posição apropriada no
fundo. (A Cassiopea ainda consegue nadar de maneira convencional, embora o
faça de modo débil e ineficaz. Se for desalojada do fundo, ela se vira e nada por
meio de pulsações durante alguns instantes antes de voltar a fixar a “cabeça” no
fundo.) Alguns cientistas também sugeriram que as contrações pulsatórias dos
músculos concêntricos, em geral usados para nadar, servem para outras
importantes funções na posição fixa e invertida da Cassiopea — manter a
ligação com o substrato pressionando o animal para baixo e mover correntes de
água com presas potenciais na direção dos braços orais. Mas estas proposições
razoáveis não foram testadas de forma adequada.
Assim, os flamingos e a Cassiopea — dois animais que dificilmente
poderiam ser mais diferentes em modelo anatômico e história evolucionária —
compartilham a característica comum da alimentação de cabeça para baixo.
Como mensagem geral dentre as particularidades, ambos remodelaram a
anatomia convencional para fazer frente ao estilo de vida invertido. O bico
superior do flamingo mudou radicalmente — em tamanho, formato e movimento
— para parecer e funcionar como o bico inferior da maioria das aves. O ápice
estrutural do guarda-chuva da Cassiopea inverteu o seu formato para funcionar
adequadamente como um “pé ecológico”.
A adaptação tem um poder maravilhoso de alterar um projeto anatômico,
amplamente difundido e estável entre milhares de espécies, para responder às
exigências invertidas de um estilo de vida ímpar adotado por uma ou algumas
poucas formas aberrantes. No entanto, não devemos concluir que a adaptação
darwiniana ao meio ambiente local possui poder irrestrito para modelar formatos
teoricamente ótimos para todas as situações. A seleção natural, como processo
histórico, só pode trabalhar com o material disponível — nestes casos, os
modelos anatômicos convencionais desenvolvidos para a vida comum. As
imperfeições e soluções excêntricas resultantes, construídas a partir de partes
disponíveis, registram um processo que se desdobra no tempo a partir de
antecedentes inadequados, não a obra de um arquiteto perfeito trabalhando ab
nihilo. A Cassiopea elege uma faixa de músculos comumente usada para nadar e
forma um aro saliente que agarra o substrato. Os flamingos curvam o bico numa
curiosa corcova como a única solução topológica para uma nova orientação.
Estas adaptações à vida de cabeça para baixo não são apenas fatos divertidos.
Elas nos ajudam a compreender a solução para um dilema maior, e clássico, na
teoria da evolução (daí minha decisão de uni-los neste ensaio). Podemos
compreender facilmente como os flamingos e a Cassiopea funcionam; suas
características incomuns de fato os tornam adaptados para as suas vidas não
convencionais. Mas como surgem estas estruturas bizarras se a evolução tem de
avançar através de etapas intermediárias (ninguém irá sugerir com seriedade que
o primeiro protoflamingo virou a cabeça para baixo e depois gerou descendentes
com um conjunto completo de adaptações complexas à vida invertida).
Nos anos pré-darwinianos do começo do século XIX, quando a teoria da
evolução era novidade, e quando os primeiros expoentes de uma ideia tão radical
estavam tentando formular as suas implicações, surgiram duas escolas que
conduziram a um debate interessante (e em boa parte esquecido) que durou até
que Darwin resolvesse a polêmica. Ambos os lados admitiam o bom ajuste que
em geral existe entre forma e função — adaptação no sentido estático, não-
histórico. Os estruturalistas, como Etienne Geoffroy Saint-Hilaire argumentavam
que a forma deve mudar primeiro e depois encontrar uma função. Os
funcionalistas, como Jean Baptiste Lamarck, sustentavam que os organismos
devem primeiro adotar um modo de vida diferente para acionar algum tipo de
pressão para uma forma subsequentemente alterada.
A natureza desta “pressão” inspirou outro debate famoso (e mais lembrado,
se bem que não mais importante). Lamarck afirmava que os organismos reagiam
criativamente às necessidades impostas pelo meio ambiente e depois transmitiam
as mudanças resultantes diretamente para a prole — a “herança de caracteres
adquiridos” no jargão costumeiro. Darwin argumentava que o meio ambiente
não impunha as exigências adaptativas de imediato. Em vez disso, os
organismos que, por sorte, variavam em direções melhor ajustadas ao meio
ambiente local, através de um processo de seleção natural, deixavam uma
descendência sobrevivente maior.
Como Darwin venceu esta discussão sobre a natureza das informações que o
meio ambiente passa para o organismo, Lamarck foi eclipsado e, ainda hoje,
apesar dos vários esforços dos historiadores para corrigir o equívoco, sofre de
uma reputação imposta de perdedor, que não deve ter nenhuma de suas ideias
levadas a sério.
Mas Lamarck tinha a resposta certa (a mesma que Darwin) para a disputa
maior entre estruturalistas e funcionalistas. (Ele apenas propôs o mecanismo
errado para explicar como o meio ambiente transmite suas mensagens aos
organismos.) A solução estruturalista de Geoffroy propõe um óbvio dilema. Se a
estrutura muda primeiro, de acordo com desconhecidas “leis de forma”, e depois
encontra o meio ambiente mais adequado para o seu estado alterado, como pode
surgir a adaptação precisa? Poderíamos admitir que algumas mudanças básicas e
gerais tendem a preceder algum significado ou vantagem funcional — um
animal poderia, por exemplo, tornar-se maior e depois explorar as vantagens
inerentes a um tamanho maior. Mas como acreditar seriamente que algo tão
complexo, tão variado e tão profundamente adaptado a uma ecologia incomum
como o bico do flamingo poderia surgir antes do fato e sem relação com a sua
serventia — permitindo que apenas mais tarde o flamingo descobrisse como
aquele bico funcionava tão bem de cabeça para baixo?
A solução funcionalista de Lamarck reveste-se de uma simplicidade refinada
atualmente aceita por quase todos os evolucionistas (mas que costuma ser
atribuída a Darwin, que também a defendia. Por mais que eu admire Darwin,
quero fazer um apelo para que este princípio básico seja reconhecido como
contribuição principal de Lamarck. Ele não surge como uma nota de rodapé
eventual na Philosophie zoologique de Lamarck, de 1809, mas como um tema
central de seu livro. Lamarck sabia muito bem sobre o que estava argumentando
e por quê). Lamarck simplesmente reconhecia que a mudança de comportamento
deve preceder a alteração da forma. Um organismo entra em um novo ambiente
com a sua antiga forma, adaptada para outros estilos de vida. A inovação
comportamental estabelece uma discordância entre função nova e forma herdada
— um ímpeto para a mudança (por meio de reação criativa e herança direta para
Lamarck, por meio de seleção natural para Darwin). O protoflamingo primeiro
inverte o seu bico normal — e ele não funciona muito bem. A proto-Cassiopea
fica de cabeça para baixo, mas o seu guarda-chuva convexo não agarra o
substrato. Lamarck escreveu:

Não é nem a forma do corpo, nem a das suas partes, que dá origem aos
hábitos dos animais e ao seu modo de vida; mas, pelo contrário, foram os
hábitos, o modo de vida, e todas as outras influências do meio ambiente que
modelaram ao longo do tempo o formato do corpo e das partes dos animais.

A evidência direta da solução de Lamarck não pode surgir de adaptações tão
“completas” quanto o bico do flamingo ou o guarda-chuva da Cassiopea —
embora, mesmo neste caso, a inferência se torne verdadeiramente irresistível
(afinal, por que deveriam os flamingos, de modo exclusivo entre as aves,
desenvolver um bico tão peculiar, se não para explorar o ambiente incomum que
escolheram?). Devemos surpreender o processo em seus estágios iniciais —
encontrando animais invertidos que já alteraram o seu comportamento, mas não
a sua forma.
Os silurídeos africanos da família Mochokidae incluem várias espécies que
caracteristicamente nadam de barriga para cima (ver G. Sterba, na bibliografia).
O comportamento já se modificou radicalmente, e em alguns casos dispomos até
mesmo de bons palpites quanto aos gatilhos que detonaram o processo. (O
Synodontis nigriventris, por exemplo, come algas raspando o lado inferior das
folhas de plantas aquáticas.) Mas a forma mudou pouco, isso quando mudou.
Algumas poucas espécies inverteram o costumeiro padrão de coloração
mimética própria de peixes que nadam perto da superfície. As barrigas claras da
maioria dos peixes, vistas contra o sol, os tornam invisíveis aos predadores que
olham de baixo. Mas o S. nigriventris, como dá a entender o seu nome (barriga
preta), é escuro no lado anatomicamente inferior, e claro no lado estruturalmente
superior. Como este peixe nada de barriga para cima, o lado claro fica para
baixo, como de costume. No entanto, a não ser por esta mudança de cor, a
maioria dos Mochokidae invertidos tem a mesma aparência que os seus parentes
que nadam com a barriga para baixo. O tamanho, o formato e a posição das
nadadeiras não mudaram. O detonador do processo (supostamente recente) é
comportamental. Teremos de esperar para ver quais mudanças ainda podem
ocorrer.
Como questão final, os leitores podem reconhecer a validade de minha
argumentação, mas rejeitar os exemplos como triviais ou periféricos. Todos
amamos os flamingos, e a Cassiopea estimula o nosso interesse (o nosso corpo
também, se nos metermos com ela). Os Mochokidae são divertidos nos aquários.
Mas é possível ver a forma de vida invertida como algo mais que um cantinho
engraçado da história natural? Todos os meus exemplos são as adaptações
acabadas de umas poucas espécies; a vida invertida pode levar a algo
fundamental e amplo?
Como importante ilustração tirada da história (embora a ideia seja, quase
com certeza, incorreta), o modo de vida invertido certa vez arrebatou a atenção
como especulação fundamental sobre a origem dos vertebrados — a teoria do
“verme que se virou”, por assim dizer. Os anelídeos e os artrópodes, os mais
complexos dos invertebrados segmentados, desenvolvem cordões nervosos
ventrais (no lado de baixo); o esôfago penetra nos cordões nervosos e liga uma
boca ainda mais ventral a um canal alimentar central (intestino) localizado acima
dos cordões nervosos. Nos vertebrados o cordão nervoso principal está disposto
longitudinalmente em posição dorsal (no lado de cima), e o canal alimentar,
inclusive boca e esôfago, localiza-se inteiramente no lado de baixo.
Estes dois modelos anatômicos parecem inteiramente incompatíveis e não
relacionados. Não obstante, e ironicamente no contexto do contraste que fiz
entre a opinião estrutural e a funcional, o maior de todos os estruturalistas, o
próprio Geoffroy Saint-Hilaire, notou que um anelídeo virado de barriga para
cima fica um bocado parecido com um vertebrado — pois o cordão nervoso
ventral torna-se então dorsal e fica acima do canal alimentar. Resolvendo um
problema, surgem outros: a boca agora se abre no lado de cima do verme
invertido. Geoffroy sugeriu, como uma solução ad hoc, que exige demais da
credulidade, que a antiga boca e o esôfago que penetra no nervo simplesmente
desapareceram, e que uma abertura de todo nova (a boca de vertebrado)
desenvolveu-se abaixo do cordão nervoso, ligando-se diretamente ao canal
alimentar, e não mais penetrando no sistema nervoso. (Tantas outras diferenças
incomodam a comparação — por exemplo, a falta de qualquer estrutura nos
anelídeos que lembre a notocorda ou as fendas branquiais dos vertebrados,
disparidades fundamentais no desenvolvimento embriológico dos dois grupos —
que a teoria do verme nunca impôs assentimento geral, embora tenha se mantido
por quase um século como uma controvérsia fundamental).
Geoffroy nunca pretendeu que sua comparação de vertebrado com verme
invertido fosse uma especulação evolucionária, mas apenas uma comparação
estrutural para escorar a sua notável teoria de que todos os animais compartilham
de um plano arquitetônico comum. (Ele também sustentava que os segmentos do
esqueleto externo de um inseto correspondiam às nossas vértebras internas — e
que os insetos viviam literalmente dentro das próprias vértebras. Esta
comparação implicava a conclusão adicional e assombrosa, francamente
defendida por Geoffroy, de que as pernas dos insetos são costelas de vertebrado.)
Geoffroy também expôs a sua comparação como uma hipótese funcional
sobre a adaptação — ele não sustentava (como Lamarck poderia ter feito) que o
comportamento inovador de um verme (de virar-se de barriga para cima) havia
detonado uma pressão adaptativa para uma remodelação anatômica. Muito pelo
contrário. Como estruturalista, ele afirmava que ventre e dorso são termos de
invenção humana sem nenhum sentido, usados para descrever uma orientação
superficial também desprovida de sentido para aquilo que realmente importa —
leis estruturais abstratas de forma e caminhos de modificação permitidos.
Hoje, rejeitamos a especulação de Geoffroy junto com a sua abordagem de
forma e função. O modo de vida invertido confirma a asserção de Lamarck de
que a mudança substancial na morfologia surge em geral como consequência de
gatilhos comportamentais. O famoso lema do século XIV, daquela arrogante
instituição — o New College — de Oxford, parece incorporar uma verdade
essencial tanto sobre a história quanto sobre a conduta: os modos fazem o
homem.
2. Só restaram suas asas



A prosa convencional da ciência do século XX é curta e seca. Mas nossos
antecessores vitorianos, talvez em harmonia com os enfeites vistosos do exterior
de suas casas e as prateleiras de quinquilharias dentro delas, deleitavam-se com
o detalhe e o vagar. Considere-se, por exemplo, esta descrição longa (mas muito
interessante) de amor e morte no louva-a-deus, publicada por L. O. Howard em
1886:

Alguns dias depois, levei um macho de Mantis carolina a um amigo que
vinha mantendo uma fêmea solitária como mascote. Colocados os dois no
mesmo frasco, o macho, alarmado, procurou escapar. Em poucos minutos, a
fêmea conseguiu agarrá-lo. Primeiro, ela lhe arrancou parte do tarso dianteiro
esquerdo e devorou-lhe a tíbia e o fêmur. Em seguida, roeu-lhe o olho
esquerdo. Feito isto, o macho pareceu dar-se conta da proximidade de um
indivíduo do sexo oposto e pôs-se a fazer vãs tentativas de acasalamento. Em
seguida, a fêmea comeu-lhe a perna dianteira direita e depois decapitou-o
inteiramente, devorando-lhe a cabeça e pondo-se a morder-lhe o tórax. Só
parou para descansar depois de ter comido todo o tórax do macho, exceto 3
mm. Durante todo esse tempo, o macho havia persistido em suas vãs
tentativas de ganhar acesso às válvulas da fêmea, o que conseguiu neste
momento, quando ela voluntariamente posicionou as válvulas por sobre o
macho, tendo então lugar a união. Ela permaneceu imóvel durante quatro
horas, e os restos do macho apresentaram sinais ocasionais de vida, com o
movimento de um ou outro dos tarsos restantes, durante três horas. Na
manhã seguinte, ela se livrara completamente do cônjuge, e nada havia
restado dele, além de suas asas.

Apresento esta passagem não apenas por causa do seu estilo, mas sobretudo
por sua substância — já que ela representa o primeiro relato que conheço de um
favorito insuperado dentre os fatos curiosos da natureza. Nós todos já ouvimos
falar de alguns animais que conseguem sobreviver depois de terem amputadas
grandes porções de seus corpos, mas os imaginamos nesse estado tão limitado
apenas vivendo mal e mal, não com as suas habilidades melhoradas. Nosso
chavão, “ficar de um lado para o outro como um frango com a cabeça cortada”
(Tradução literal da expressão idiomática. Estar como um frango com a cabeça cortada significa estar
confuso - N.T.), sublinha a sensata suposição de que uma redução na anatomia
acarreta necessariamente uma capacidade reduzida. No entanto, os machos do
louva-a-deus decapitados por uma parceira voraz não apenas continuam o ato de
corte e cópula, mas efetivamente atuam com mais persistência e êxito.
Quero, como de costume, discutir a mensagem maior por trás desta suprema
esquisitice, mas o tratamento adequado exige uma longa digressão, de volta ao
próprio Darwin. Portanto, seja paciente comigo e, por fim, voltaremos aos louva-
a-deus e a muito mais daquilo que a literatura biológica chama “canibalismo
sexual’’.
A Descendência do homem é, sem dúvida, o livro mais mal compreendido de
Darwin. Muitas pessoas supõem que ele representa a tentativa de Darwin de
encaixar os fatos da evolução humana na sua perspectiva evolucionária. Mas não
existiam quaisquer fatos inequívocos quando ele o publicou em 1871, pois, além
do homem de Neanderthal (uma raça de nossa própria espécie, não um ancestral
ou alguma forma de “elo perdido”), nenhum fóssil humano seria descoberto até a
década de 1890. Mais exatamente, a Descendência do homem é um amplo ensaio
sobre a íntima relação biológica entre os humanos, os grandes símios e os
possíveis modos de nossa evolução física e mental a partir desta ascendência
comum. Darwin, entretanto, abominava a especulação; ele nunca escreveu um
tratado puramente teórico. Mesmo a Origem das espécies é um compêndio de
fatos que apontam para uma conclusão convincente. Ele nunca teria escrito um
relato não corroborado de como isso poderia ter ocorrido, não importa o quanto
ansiasse por estender a sua perspectiva evolucionária àquilo que ele certa vez
chamou de “a própria cidadela” — a mente humana.
A chave para a Descendência do homem é a sua situação de prefácio
relativamente breve para um grande trabalho em dois volumes, A descendência
do homem e a seleção em relação ao sexo; Darwin conseguia tecer admiráveis e
amplas tapeçarias sobre temas centrais — tanto que muitas vezes os seus leitores
perdem o ponto central no meio de todo o entrelaçamento. Mas todos os seus
livros são soluções de enigmas específicos; o resto, apesar do brilhantismo, é
superestrutura. O livro a respeito dos recifes de coral é sobre a inferência
histórica a partir de resultados contemporâneos; o livro das orquídeas é sobre a
adaptação imperfeita baseada em partes disponíveis; o livro das minhocas é
sobre grandes efeitos acumulados por meio de pequenas mudanças sucessivas
(ver o ensaio 9 em Hen’s Teeth and Horse’s Toes). Mas porque adorava as
minúcias, Darwin conta mais do que você quer saber sobre como os insetos
fertilizam as orquídeas e como as minhocas puxam objetos para dentro de suas
tocas — e você facilmente perde o âmago da questão, o paradoxo, o germe de
um problema que deu início à edificação inteira.
A Descendência do homem é um prefácio para um tal problema. Em 1871,
doze anos após a Origem das espécies, Darwin não precisava mais convencer as
pessoas de boa vontade e flexibilidade mental de que a evolução havia ocorrido;
essa batalha fora vencida. Mas como a evolução funciona, que tipo de mundo
habitamos, e como podemos saber? A mensagem radical de Darwin achava-se na
sua asserção de que as belezas e a harmonia da natureza são todas subprodutos
de um processo primário chamado seleção natural: os organismos lutam para
conseguir maior sucesso reprodutivo pessoal — no jargão moderno, lutam para
transmitir mais dos seus genes às futuras gerações (já que não podem preservar
os seus corpos) — e isso é tudo. Nada de leis supremas sobre o bem das espécies
ou dos ecossistemas, nenhum regulador sábio e vigilante nos céus — apenas
organismos lutando.
Mas como podemos saber que o mundo é regulado pela seleção natural e não
por algum outro princípio evolucionário? A resposta de Darwin é brilhante,
paradoxal e geralmente mal compreendida. Não fundamente o seu argumento,
aconselha ele, no que poderia ser a expressão mais refinada de seleção — as
belas adaptações, projetadas do melhor modo possível, dos organismos aos seus
ambientes: a perfeição aerodinâmica da asa de um pássaro ou a beleza
hidrodinâmica de um marlim. Pois o modelo anatômico bom é a expectativa da
maior parte das teorias evolucionárias (aliás, também do criacionismo). Não há
nada distintamente darwiniano na perfeição. Em vez disso, procure pelas
singularidades e imperfeições que só ocorrem se a seleção baseada no sucesso
reprodutivo dos indivíduos — e não em algum outro mecanismo evolucionário
— traçar o caminho da evolução.
A maior classe de tais singularidades inclui aquelas estruturas e hábitos que
visivelmente comprometem o bom modelo anatômico dos organismos (e o
sucesso final das espécies) mas que, de modo igualmente óbvio, aumentam a
habilidade reprodutiva dos indivíduos que as têm como atributo. (Meus
exemplos favoritos são as plumas da cauda dos pavões e os enormes e
embaraçosos chifres dos alces gigantes (Megaloceros hibernicus, grande mamífero
artiodáctilo extinto, cujos fósseis foram encontrados na Irlanda, na Dinamarca, na Itália e na Sibéria. A
galhada do animal chegava a medir três metros e meio de ponta a ponta - N.T.), ambas adaptações
na luta dos machos para conseguirem acesso às fêmeas ou serem aceitos por elas
mas que, sem dúvida, não contribuem para uma boa adaptação no sentido
biomecânico). Nosso mundo está repleto de formatos e comportamentos
peculiares que seriam desprovidos de sentido, se não funcionassem apenas para
promover a vitória no grande jogo de acasalamento e reprodução. Nenhum outro
mundo, a não ser o de Darwin, encheria a natureza de tais curiosidades que
estorvam a boa adaptação, mas que trazem sucesso naquilo que realmente
importa no universo de Darwin — transmitir mais genes às gerações futuras.
Darwin percebeu que a seleção natural no seu sentido usual — adaptação
progressiva a ambientes em mudança — não explicaria esta grande classe de
características desenvolvidas ao longo da evolução para assegurar benefícios
puramente reprodutivos para os indivíduos. Portanto, ele batizou um processo
paralelo, a seleção sexual, para explicar esta evidência crucial. Ele argumentava
que a seleção sexual poderia operar por meio de combate entre machos ou então
escolha da parte das fêmeas: no primeiro caso, para produzir armas e
instrumentos de exibição de porte exagerado; no segundo caso, para encorajar o
desenvolvimento desses adornos e atitudes elaboradas que chamam a atenção e
induzem a aceitação (o rouxinol não canta para o nosso deleite).
Os humanos entram na história neste ponto. Por que Darwin escolheu o seu
longo e detalhado tratado sobre seleção sexual para abrigar o seu prefácio, bem
menor, sobre a Descendência do homem? Mais uma vez a resposta se acha no
fascínio de Darwin por enigmas específicos e pela contribuição dada pela
resolução desses enigmas para a solução da questão maior. A Descendência do
homem tem sua base em um problema particular de variação racional humana;
não é um tratado pomposo e sem sentido sobre generalidades. Nós podemos,
argumenta Darwin, compreender algumas diferenças raciais, a cor da pele, por
exemplo, como adaptações convencionais ao meio ambiente (a pele de cor
escura foi desenvolvida, por diversas vezes, de modo independente, e sempre em
climas tropicais). Mas com certeza não podemos afirmar que todas as pequenas e
sutis diferenças entre as pessoas — variações menores, mas estáveis em feitio e
forma, de narizes e orelhas ou de textura do cabelo — têm sua origem naquilo
que o meio ambiente ordena. Argumentar, por meio de fabulações engenhosas,
que cada nuance insignificante de modelo anatômico é realmente uma
configuração ótima para circunstâncias locais seria fazer uma caricatura vulgar
da seleção natural (embora alguns devotos fanáticos continuem a promover este
parecer. Certa vez, um proeminente evolucionista sugeriu-me seriamente que as
línguas eslavas são cheias de consoantes porque é melhor que as bocas fiquem
fechadas em climas frios, ao passo que o havaiano tem pouca coisa além de
vogais porque o ar saudável das ilhas oceânicas deve ser sorvido e saboreado).
Como foi, então, se não pela seleção natural comum, que se originaram estas
pequenas e sutis, mas generalizadas diferenças raciais?
Darwin propôs — e acho que ele está, em boa parte, certo — que diferentes
padrões de beleza surgem por motivos caprichosos entre os vários e antigamente
isolados grupos de humanos que habitam os extremos do nosso mundo. Essas
diferenças — uma inclinação de nariz aqui, pernas mais magras ali, um
encrespamento de cabelo acolá — são então acumuladas e intensificadas pela
seleção sexual, já que os indivíduos acidentalmente dotados com características
favorecidas são mais procurados e, portanto, melhor sucedidos na reprodução.
Olhe para a organização da Descendência do homem e você perceberá que é
este argumento, não as generalidades, que constitui o foco do livro. O livro
começa com um panorama geral de umas 250 páginas, todas apontando para um
capítulo final sobre as raças humanas e uma apresentação do paradoxo central na
última página.

Até agora tivemos frustradas todas as nossas tentativas de explicar as
diferenças entre as raças do homem; mas resta uma agência importante, a
saber, a Seleção Sexual, que parece ter atuado poderosamente sobre o
homem, assim como sobre vários outros animais... Para expor este tema de
modo apropriado, julguei necessário passar em revista o reino animal inteiro.

Darwin tem agora o ponto de apoio para o verdadeiro cerne de seu livro, e
ele gasta mais do dobro do espaço, as quinhentas páginas seguintes, num relato
minucioso da seleção sexual em grupo após grupo de organismos. Finalmente,
nos três capítulos finais, ele volta à variação racial humana e completa a sua
solução do paradoxo atribuindo nossas diferenças primariamente à seleção
sexual.
A seleção sexual foi às vezes considerada como um contraste ou conflito
com a seleção natural, mas tal interpretação distorce o parecer de Darwin. A
seleção sexual é a mais refinada confirmação que temos de seu princípio central,
o de que a luta dos indivíduos pelo sucesso reprodutivo dirige a evolução — uma
noção que a seleção natural não confirma adequadamente porque os seus
produtos também são os resultados de outras teorias evolucionárias (e também,
no que diz respeito à modelagem anatômica ótima, do próprio criacionismo). A
prova de que o nosso mundo é darwiniano encontra-se no grande conjunto de
adaptações que surgem apenas porque aumentam o sucesso reprodutivo mas
que, quanto ao mais, estorvam os organismos e prejudicam as espécies. Se pode
suplantar com tanta frequência outros níveis e formas de vantagem, a seleção
darwiniana para o sucesso reprodutivo deve ser extraordinariamente poderosa.
Podemos agora retomar ao repasto de sangue do louva-a-deus durante o
acasalamento. Certa vez, W. H. Auden, demonstrando uma grande compreensão
de nossas vidas, escreveu que o amor e a morte são os únicos temas dignos da
atenção da literatura. Eles são realmente os focos do mundo de Darwin, um
universo de luta pela sobrevivência e pela continuidade. Mas devem eles ser
associados? À primeira vista, nada parece mais absurdo, mais em desarmonia
com qualquer noção de ordem ou vantagem, que o sacrifício da vida por uma
cópula. No mundo de Darwin, um macho não deve sobreviver para se acasalar
outra vez? Não necessariamente, caso esteja destinado a uma vida curta e, de
qualquer modo, com pouca probabilidade de se acasalar de novo, e caso os seus
“preciosos fluidos corpóreos” (para citar a linha imortal do Dr. Fantástico)
venham a fazer uma grande diferença na nutrição dos ovos fertilizados por seu
esperma dentro da sua antiga parceira e atual executora.
Afinal, o seu corpo é apenas bagagem darwiniana. Ele não pode ser
transmitido à geração seguinte; o seu patrimônio jaz, de modo absolutamente
literal, no DNA do seu esperma. Assim, o canibalismo sexual deveria ser um
exemplo principal da razão pela qual vivemos num mundo darwiniano — uma
curiosidade clássica, um aparente absurdo, tornado sensato pela proposição de
que a evolução diz respeito fundamentalmente à luta entre organismos pela
continuidade genética. Mas os indícios são satisfatórios? (E agora devo preveni-
los — já que este pode vir a ser o mais intrincado ensaio que já escrevi — de que
este argumento perfeitamente razoável a favor do darwinismo tem atualmente,
pela minha avaliação, bem pouco fundamento. No entanto, uma interpretação
alternativa, por um motivo diferente, afirma algo ainda mais fundamental sobre
o darwinismo e sobre a natureza da própria história. Francamente, enquanto
estou no confessionário, devo admitir que iniciei a pesquisa para este ensaio
convencido de que um argumento tão adorável e sensato a favor da seleção
sexual provaria ser válido, e me vi bastante surpreso com a escassez de indícios.
Eu também me recuso terminantemente a evitar um tema porque ele é difícil. O
mundo não é simples, e uma restrição dos escritos de caráter geral a fatos nítidos
e sem controvérsia transmite uma falsa impressão de como a ciência opera e de
como funciona o nosso mundo.)
Um número recente do American Naturalist, uma das três principais
publicações de biologia evolucionária dos Estados Unidos, publicou um artigo
de R. E. Buskirk, C. Frohlich e K. G. Ross, “A seleção natural do canibalismo
sexual” (ver Bibliografia). Eles desenvolvem um modelo matemático para
demonstrar que o sacrifício voluntário da vida a uma parceira fecundada será
darwinianamente vantajoso para o macho caso ele tenha pouca expectativa de
acasalamento subsequente e caso o valor alimentar do seu corpo venha a fazer
uma diferença substancial no desenvolvimento e na criação bem-sucedidos da
sua prole. O modelo faz sentido, mas a natureza irá corroborá-lo apenas se
pudermos demonstrar que tais machos promovem ativamente a sua própria
destruição. Caso eles tentem fugir como desesperados depois do acasalamento e
ocasionalmente sejam apanhados e comidos por uma fêmea voraz, então não
poderemos afirmar que a seleção sexual promoveu diretamente esta estratégia de
sacrifício final em benefício da continuidade genética.
Buskirk, Frohlich e Ross são francos ao afirmar que o canibalismo sexual é
não apenas raro em geral, como também muito menos comum quanto outros
estilos de consumo de parentes próximos (como irmão por irmão ou mãe pela
prole; ver ensaio 10 em Darwin e os grandes enigmas da vida [Ever Since
Darwin] e ensaio 6 em O polegar do panda [The Panda’s Thumb], Existem
exemplos documentados apenas para artrópodes (insetos e semelhantes), e
apenas umas trinta espécies foram implicadas (embora o fenômeno possa ser
bastante comum entre aranhas). Eles citam três exemplos como os melhores
casos.
1. O louva-a-deus fêmea (Mantis religiosa e várias espécies aparentadas)
ataca qualquer coisa que se mova e seja menor que ela. Como os machos são
menores que as fêmeas em quase todos os insetos, e como o acasalamento exige
proximidade, o louva-a-deus macho tornase um alvo principal. Em sua
dissertação clássica de 1935 (ver Bibliografia), K. Roeder escreve: “Todos os
relatos concordam quanto à ferocidade da fêmea e à sua tendência para capturar
e devorar o macho em qualquer tempo, seja durante a corte, seja após a cópula...
A fêmea pode agarrar e comer o macho como o faria com qualquer outro
inseto.”
O macho, portanto, acerca-se do acasalamento exatamente como diz a
resposta daquela velha e terrível piada sobre como os porcos-espinhos fazem o
negócio: com muito cuidado. Ele se aproxima vagarosamente, tentando a todo
custo manter-se fora da linha de visão da fêmea. Se a fêmea se volta em sua
direção, ele se imobiliza — pois os louva-a-deus ignoram qualquer coisa que não
se mova. Roeder escreve: “Tão extrema é essa imobilidade, que se o macho
estiver erguendo uma perna quando primeiro perceber a fêmea, ele a manterá
suspensa no ar durante algum tempo, e muitas posições curiosas podem ser
observadas.” Assim, o macho continua a se aproximar como uma criança
participando daquele jogo de rua, a “batatinha frita” — avançando quando a sua
adversária e parceira potencial desvia os olhos, imobilizando-se imediatamente
quando ela olha ao redor (embora o castigo por algum movimento percebido seja
a morte, e não um retorno à linha de partida). Se o macho conseguir se esgueirar
até uma distância de onde possa alcançá-la com um pulo, ele dá um salto
decisivo para cima da fêmea. Se errar vira comida de louva-a-deus; se acertar
consegue o summum bonum darwiniano de representação potencial na geração
seguinte. Após o acasalamento, ele se deixa cair para tão longe quanto possível e
trata de se safar correndo.
Até aqui, a história não parece muito um conto de conspiração ativa do
macho pela sua própria morte — a exigência, lembrem-se, por favor, necessária
ao argumento de que os machos são diretamente selecionados para o
canibalismo sexual. Talvez os machos estejam simplesmente fazendo o diabo
para escapar, mas nem sempre o consigam. O ponto forte do argumento é
inerente àquela grande curiosidade mencionada no início deste ensaio: os
machos decapitados têm desempenho sexual melhor que o de seus irmãos
intactos. Roeder até mesmo descobriu o fundamento neurológico para esta
situação peculiar. Boa parte do comportamento dos insetos é “prefixado”, bem
diferente da flexibilidade de nossas ações (e um motivo básico pelo qual os
modelos sociobiológicos para formigas funcionam tão mal para os humanos). Os
movimentos copulatórios são controlados por nervos do último gânglio
abdominal (perto da extremidade posterior). Uma vez que executar esses
movimentos copulatórios continuamente seria inconciliável com o
funcionamento normal dos machos (além de indecoroso), eles são suprimidos
por centros inibidores localizados no gânglio subesofagiano (perto da cabeça).
Quando uma fêmea come a cabeça de seu parceiro, ela ingere o gânglio
subesofagiano, e, assim, nada resta que possa inibir os movimentos copulatórios.
O que sobra do macho atua agora como uma máquina de acasalamento de
funcionamento ininterrupto. Ele tenta cobrir qualquer coisa — um lápis, por
exemplo — que apenas vagamente possua o tamanho e o formato apropriados.
Com alguma frequência, ele encontra a fêmea e consegue fazer de sua morte
vindoura a antítese darwiniana daquilo que Sócrates chamava “um estado de
nada”.
2. Uma viúva-negra faminta também é uma formidável máquina de comer, e
os machos têm de ser muito prudentes durante a corte.
Ao entrar na teia de uma fêmea, o macho dá tapinhas e puxões nos fios de
seda. Se a fêmea ataca, o macho bate em retirada rapidamente ou sai voando
suspenso no seu próprio fio. Se a fêmea não reage, o macho se aproxima devagar
e cautelosamente, e corta, afinal, a teia da fêmea em vários pontos estratégicos,
reduzindo desse modo as suas chances de fuga ou ataque. Muitas vezes, o macho
lança vários fios de seda ao redor da fêmea, formando o que é chamado,
inevitavelmente, acho eu, de o “véu de noiva”. Os fios não são fortes, e a fêmea,
de tamanho maior, certamente poderia rompê-los, mas ela em geral não o faz, e a
cópula, como gostam de dizer na literatura técnica, “tem então lugar”. O macho,
favorecido com órgãos duplos para a transferência de espermatozoides, insere
um palpo, e depois, se não for atacado pela fêmea, insere o outro. Fêmeas
famintas podem então devorar os seus parceiros, concretizando a expressão de
duplo sentido de uma consumação a ser fervorosamente desejada.
O argumento a favor da seleção direta do canibalismo sexual reside em dois
fenômenos intrigantes da corte. Primeiro, a ponta do palpo do macho geralmente
se parte durante a cópula e permanece dentro da fêmea. Os machos, tornados
assim incompletos, podem não ser capazes de se acasalar de novo; se for este o
caso, eles se tornam nulidades darwinianas, próprios para serem eliminados.
(Uma especulação interessante identifica esta ponta quebrada como uma “tampa
de acasalamento” selecionada para impedir a entrada subsequente do esperma de
algum outro macho. Tais cintos naturais de castidade post factum são comuns, e
de construção variada no mundo dos insetos, e dariam um tema interessante para
um futuro ensaio sobre, o mesmo problema, o de por que a seleção identifica o
nosso mundo evolucionário como darwiniano). Segundo, os machos demonstram
bem menos sofreguidão e prudência para dar o fora depois do fato do que
demonstraram ao se aproximar. K. Ross e R. L. Smith escrevem (ver
Bibliografia): “Os machos que conseguiram executar a inseminação deixaram-se
ficar nas proximidades de suas parceiras ou então se afastaram calmamente. Este
comportamento estava em nítido contraste com a cautela inicial de aproximação
e das estratégias de fuga, características dos machos antes da inseminação.”
3. As fêmeas do escorpião do deserto Paruroctonus mesaensis são
extremamente vorazes e comem qualquer coisa pequena o suficiente que possam
detectar. “Qualquer objeto móvel, dentro da amplitude de tamanho apropriada, é
atacado sem discriminação.” (G. A. Polis e R. D. Farley, ver Bibliografia.)
Como os machos são menores que as fêmeas, eles se tornam alvos excelentes,
sendo consumidos com avidez. Essa voracidade indiscriminada representa um
problema considerável para o acasalamento, o qual, como de costume, requer
uma certa intimidade espacial. Os machos desenvolveram, portanto, um
elaborado ritual de acasalamento, em parte para suprimir o apetite normal da
fêmea.
O macho inicia uma série de movimentos de agarrar e apalpar com as suas
quelíceras (pinças menores), e depois prende aquela (pinça maior) da fêmea com
a sua e executa a celebrada promenade à deux, uma “dança” recíproca e
simétrica, bonitinha como qualquer coisa que você possa ver no Arthur Murray.
Esses escorpiões não inseminam as fêmeas diretamente, inserindo um pênis,
mas, mais exatamente, depositam um espermatóforo (um pacote de esperma) que
a fêmea deve colocar dentro do corpo. Assim, o macho conduz a fêmea na
promenade até encontrar um local adequado. Ele deposita o espermatóforo, em
geral sobre um galhinho ou graveto, depois golpeia a fêmea ou até mesmo lhe dá
uma ferroada, desvencilha-se e corre para salvar a vida. Se a fortuna lhe sorrir, a
fêmea permitirá que ele fuja e dará devida atenção à tarefa de inserção do
espermatóforo. Mas, em dois casos, dentre mais de vinte, Polis e Farley
observaram a fêmea empenhada em devorar o parceiro, enquanto o
espermatóforo permanecia sobre um graveto próximo, provavelmente para
ingestão posterior através de um orifício diferente.
Que evidências, então, estes casos fornecem a favor da seleção do
canibalismo sexual entre machos? Para sua continuidade genética, os machos
oferecem ativamente os seus próprios corpos (ou se submetem passivamente à
destruição) em benefício do cuidado e da alimentação dos ovos fertilizados?
Nestes casos, encontro poucos indícios convincentes para tal fenômeno, e me
pergunto se ele existe mesmo — embora o argumento viesse a fornecer uma
excelente explanação de uma curiosidade que não faz muito sentido a menos que
o mundo evolucionário trabalhe em prol do sucesso reprodutivo dos indivíduos,
como afirma o darwinismo.
A história do escorpião, apesar de sua menção entre os melhores casos, não
fornece evidência alguma. Ao ler Polis e Farley, percebo apenas que os machos
fazem o possível para escapar após a cópula e que o conseguem na grande
maioria dos casos (apenas dois fracassaram). Na verdade, o seu comportamento
de acasalamento, tanto antes quanto depois, parece ter como intuito evitar a
destruição, não cortejá-la. Primeiro, eles desativam os instintos agressivos das
fêmeas através de marchas e toques. Depois, ele bate e foge. Que uns poucos
fracassem e sejam devorados apenas reflete as inevitáveis possibilidades de
acidente de qualquer jogo perigoso.
As viúvas-negras e os louva-a-deus têm mais a oferecer à teoria de seleção
direta, confirmando a destruição entre machos. As aranhas parecem tão
cautelosas quanto os escorpiões antes, mas bem apáticas depois, fazendo poucas
tentativas, quando o fazem, para escapar da teia da fêmea. Além disso, se a
tampa de acasalamento que eles deixam na fêmea lhes impede qualquer
transmissão futura de herança, então eles serviram plenamente ao seu propósito
darwiniano. Quanto aos louva-a-deus, o desempenho melhor de um macho sem
cabeça poderia indicar que sexo e morte foram ativamente relacionados pela
seleção. No entanto, em ambos os casos, outras observações tornam mais que
ambígua qualquer evidência a favor da seleção ativa nos machos.
Na condição de problema maior tanto para os louva-a-deus quanto para as
aranhas, não temos nenhuma evidência satisfatória sobre a frequência do
canibalismo sexual. Se ele ocorresse sempre ou pelo menos com frequência, e se
o macho nitidamente não resistisse e deixasse acontecer, então eu me
convenceria de que este fenômeno aceitável existe. Mas se ele ocorre raramente
e representa um simples fracasso de fuga, então ele é um subproduto de outros
fenômenos, não um traço selecionado em si. Não tenho como encontrar dados
sobre a porcentagem de machos devorados após o acasalamento na natureza ou
mesmo nas condições insatisfatórias e artificiais de um laboratório.
Quanto aos louva-a-deus, não encontro nenhum indício de cumplicidade do
macho para a sua própria destruição. Os machos são cautelosos antes e ansiosos
para fugir depois. Mas a fêmea é grande e voraz; ela não faz qualquer distinção
entre um louva-a-deus menor e qualquer outra presa que se mova. Quanto ao
fato curioso do melhor desempenho em machos decapitados, simplesmente não
sei o que dizer. Poderia ser uma adaptação direta para a combinação de sexo e
morte, mas, na ausência de indícios, outras interpretações fazem tanto sentido
quanto esta. O comportamento prefixado deve ser programado de alguma
maneira. Talvez o sistema de inibição por meio de um gânglio na cabeça e de
ativação por um perto da cauda tenha se desenvolvido em uma linhagem
ancestral bem antes que o canibalismo sexual surgisse entre os louva-a-deus.
Talvez ele já existisse quando as fêmeas desenvolveram seu apetite
indiscriminado. Ele seria então eleito, não ativamente selecionado, para o seu
papel útil no canibalismo sexual. Afinal, o mesmo sistema age também nas
fêmeas, embora o seu comportamento não sirva a nenhuma função evolucionária
conhecida. Decapitem um louva-a-deus fêmea, e o comportamento sexual,
inclusive a postura de ovos, também será desencadeado. Caso alguém queira
argumentar dizendo que o sistema deve ter sido desenvolvido ativamente porque
a fêmea tende a comer primeiro a parte do macho que desencadeia a sexualidade,
ofereço como réplica um bocadinho de biologia em seu aspecto mais elementar:
as cabeças ficam na frente e são a primeira coisa que a fêmea vê quando o
macho se aproxima.
A história da viúva-negra também é frágil. Os machos podem não tentar
fugir após o acasalamento, mas será que isso é uma adaptação ativa em prol de
sua morte ou uma reação automática à verdadeira adaptação — a quebra do
órgão sexual e a deposição de uma tampa de acasalamento na fêmea (pois tal
ferimento poderia enfraquecer o macho e explicar a sua subsequente
prostração)? Além disso, os machos de viúva-negra são minúsculos em
comparação com as suas parceiras — apenas uns 2% do peso da fêmea. Uma
refeição tão pequena vai fazer muita diferença? Por fim, e mais importante, qual
a frequência com que a fêmea come esta refeição disponível? Se ela sempre
comesse o macho exaurido após o acasalamento, eu ficaria mais convencido.
Mas alguns estudos indicam que o canibalismo sexual pode ser raro, ainda que
nitidamente disponível como opção para as fêmeas. Curiosamente, vários artigos
relatam que os machos muitas vezes ficam na teia da fêmea até morrer, com
frequência por duas semanas ou mais, e que as fêmeas os deixam em paz. Ross e
Smith, por exemplo, observaram apenas um caso de canibalismo sexual e
escreveram: “Dos machos observados que conseguiram inseminar uma fêmea,
apenas um foi comido pela parceira imediatamente após o acasalamento.
Contudo, vários foram posteriormente encontrados mortos nas teias de suas
parceiras.”
Por que, então, diante dessa perturbadora falta de evidências, a nossa
literatura está repleta de comentários sobre o óbvio bom senso evolucionário do
canibalismo sexual? Por exemplo: “Sob algumas condições, a seleção deveria
favorecer o consumo dos machos pelas suas parceiras. A sua probabilidade de
ser vítima de canibalismo deveria ser diretamente proporcional à expectativa
futura de reprodução do macho.” Ou, “machos bem-sucedidos serviriam melhor
os seus interesses biológicos apresentando-se a suas parceiras como uma
refeição pós-nupcial”.
Neste hiato entre esperança razoável e evidência concreta, vemo-nos face a
face com um preconceito típico do darwinismo moderno. A teoria darwiniana
diz respeito fundamentalmente à seleção natural. Não contesto esta ênfase, mas
creio que, ao tentarmos atribuir todas as formas e comportamentos significativos
à sua ação direta, tornamo-nos excessivamente ardorosos quanto ao poder e ao
alcance da seleção. Neste jogo darwiniano, nenhum prêmio é mais doce do que
uma interpretação selecionista bem-sucedida para fenômenos que parecem
desprovidos de sentido para nossa intuição. Se a seleção rege o nosso mundo,
como um macho poderia se tornar um repasto de sangue após o acasalamento?
Porque, desse modo, em certas circunstâncias, ele aumenta o seu sucesso
reprodutivo, respondem os nossos devotados selecionistas.
No entanto, outro princípio evolucionário fundamental, se bem que muitas
vezes esquecido, em geral intervém e impede qualquer adaptação ótima entre
organismo e ambiente imediato — os estranhos, tortuosos e irresistíveis
caminhos da história. Os organismos não são pedaços de massa diante de um
ambiente que os modela ou então bolas diante do taco de bilhar da seleção
natural. As suas formas e comportamentos herdados impõem limitações e fazem
recuar; eles não podem ser transformados rapidamente num novo ótimo absoluto
toda vez que o ambiente muda.
Toda mudança adaptativa traz consigo uma série de consequências, algumas,
por sorte, eleitas para uma vantagem posterior, outras não. Algumas fêmeas
grandes desenvolvem uma voracidade indiscriminada por motivos próprios, e
alguns machos sofrem as consequências, apesar de sua corrida para fugir.
Modelos desenvolvidos por um motivo (ou por nenhum motivo) têm outras
consequências, algumas delas eventualmente úteis. Machos de louva-a-deus
podem se tornar maravilhas sem cabeça; machos de viúva-negra permanecem na
teia da fêmea. Ambos os comportamentos podem ser úteis, mas não temos
nenhuma evidência de que algum deles tenha surgido através de seleção ativa em
prol do sacrifício do macho. O canibalismo sexual com cumplicidade ativa do
macho deveria ser favorecido em vários grupos (pois é comum encontrar
condições de oportunidade limitadas ao período após o acasalamento e de
comida útil), mas ele raramente chegou a ser desenvolvido, se é que o foi.
Perguntem por que não o vemos onde ele deveria ocorrer; não fiquem
simplesmente maravilhados com a sabedoria da seleção em uns poucos casos
possíveis. A história muitas vezes impossibilita a oportunidade útil; o caminho
da explicação não é sempre esse. As fêmeas podem não ser suficientemente
vorazes, ou podem ser menores que os machos, ou tão limitadas em flexibilidade
comportamental a ponto de não conseguirem desenvolver um sistema capaz de
suprimir uma inibição geral contra o canibalismo só após o acasalamento e só
para com o macho.
Nosso mundo não é um mundo absolutamente ótimo, minuciosamente
regulado por forças de seleção onipotentes. Ele é uma massa caprichosa de
imperfeições, funcionando razoavelmente bem (muitas vezes de modo
admirável); um conjunto de adaptações de uso temporário, construído com
partes curiosas, tornadas disponíveis por histórias passadas, em diferentes
contextos. Darwin, que era um arguto estudioso da história e não apenas um
devoto da seleção, compreendia este princípio como a prova principal da própria
evolução. Um mundo adaptado de modo absolutamente ótimo a meios ambientes
presentes é um mundo sem história, e um mundo sem história poderia ter sido
criado tal como o encontramos. A história faz diferença; ela frustra a perfeição e
prova que a vida atual transformou o seu próprio passado. Em sua famosa
dissertação sobre as idades do homem — “O mundo todo é um palco” — Jaques,
em Asyou like it, discorre sobre “esta estranha história cheia de acontecimentos”.
Que se respeite o passado e se informe o presente.

Pós-escrito

À luz de minhas dúvidas sempre crescentes sobre a existência do
canibalismo sexual (apesar da sua plausibilidade na teoria) — como ficou
patente na própria odisseia pessoal do presente ensaio — fiquei deliciado com
um relatório do encontro anual de 1984 da Sociedade de Neurociência. E. Liske,
da Alemanha Ocidental, e W. J. Davis, da Universidade da Califórnia, em Santa
Cruz, filmaram e analisaram o comportamento de acasalamento de dúzias de
louva-a-deus chineses. Nenhuma fêmea decapitou ou comeu um macho. Em vez
disso, a análise de quadro por quadro revelou uma série complexa de
comportamentos, aparentemente destinados (pelo menos em parte) à supressão
da voracidade natural das fêmeas. O comportamento masculino inclui fixação
visual, oscilação das antenas, aproximação vagarosa, a flexão repetida do
abdômen, e finalmente um salto sobre o dorso da fêmea. Liske e Davis sugerem
que os relatos anteriores de decapitação podem representar o comportamento
aberrante de espécimes cativos (embora o canibalismo possa ainda ser o
comportamento normal em outras variedades ou espécies, que não as estudadas
por Liske e Davis. Dada a propensão da natureza pela diversidade, não existe
algo que se possa chamar de o louva-a-deus). De qualquer forma, estou ainda
mais convencido de que o canibalismo sexual é um fenômeno sem exemplos
provados, e que os motivos para a sua raridade (ou inexistência) constituem um
tema bem mais interessante (e um deslocamento apropriado de ênfase) que
aquele que primeiro inspirou a minha pesquisa para o ensaio — motivos mesmo
para a suposta (e agora dúbia) existência.
Eu afirmo com frequência que o melhor teste para as lendas é o grau com
que elas se infiltram na cultura popular. Em Sherlock Holmes and the Spider
Woman (1944) — um dos inumeráveis, e no entanto maravilhosos, anacronismos
Rathbone-Bruce, que atiram Holmes contra Hitler e inimigos sortidos —,
Holmes desmascara um entomologista poseur (e assassino do verdadeiro
cientista) detectando várias falácias sutis de sua linguagem. O impostor chama
terrários de ‘ ‘jaulas de vidro”, mas ele realmente se trai é quando fala de viúvas-
negras: “Disseram-me que elas comem os seus parceiros.” Holmes responde:
“Você disse que lhe contaram que as viúvas-negras comem os seus parceiros.
Qualquer cientista saberia disso. ” Vou ficar esperando pela próxima atualização
(quem anda interpretando Charlie Chan ultimamente?).

3. Sexo e tamanho


Quando eu tinha oito anos e colecionava conchas em Rockaway Beach,
adotei uma abordagem funcional mas não-lineana de taxonomia, classificando as
minhas presas como “normais”, “incomuns” e “extraordinárias”. Minha favorita
era o crepidópode comum, embora ele se enquadrasse na categoria dos normais
devido à sua ubiquidade. Eu adorava a sua amplitude de formatos e cores, e a
bolsa inferior que servia de abrigo para o animal. Meu encanto transformou-se
em fascinação alguns anos depois, quando eu entrava na puberdade e começava,
ao mesmo tempo, a estudar um pouco de taxonomia lineana. Aprendi o seu
nome correto, Crepidula fornicata — um estímulo garantido para a curiosidade.
Como fora o próprio Lineu quem batizara essa espécie particular, fiquei
assombrado diante da libido desenfreada do pai da taxonomia.
Ao tomar conhecimento dos hábitos da C. fornicata, fiquei convencido de
que encontrara a chave para o seu curioso nome. Pois o crepidópode forma
amontoados, os menores empilhados sobre os maiores, que muitas vezes reúnem
uma dúzia de conchas ou mais. Os animais menores do topo são invariavelmente
machos, e os maiores que servem de suporte em baixo são sempre fêmeas. E
caso você suspeite que os machos do ápice poderiam estar restritos a uma vida
de homossexualidade compulsória em virtude de sua separação da primeira
fêmea grande, não tema. O pênis do macho é bem maior que o seu corpo inteiro
e pode se esgueirar facilmente por entre alguns machos para alcançar as fêmeas.
Crepidula fornicata mesmo; um amontoado erótico.
Então, para completar a desapontadora histórica, descobri que o nome nada
tinha a ver com sexo. Lineu descrevera a espécie a partir de exemplares isolados
em gavetas de museus; ele nada sabia sobre o seu hábito peculiar de se
amontoarem umas sobre as outras. Fornix significa “arco” em latim, e Lineu
escolheu o nome levando em consideração o seu formato levemente abobadado
(Descobri depois que a história não é tão desapontadora e unidirecional [do significado ostensivo para a
coincidência] quanto eu concluíra ao escrever o ensaio. A história linguística oferece uma explicação de
formação regressiva de palavra, de arcos morfológicos para sexo. 'Em A Browser’s Dictionary [Harper
and Row, 1980]), John Ciardi relata: “... porque os romanos usavam... arcos de tijolos nas partes
subterrâneas de grandes construções, e porque os pobres e as prostitutas de Roma viviam em tais
subterrâneos... os primeiros autores cristãos produziram o verbo fornicari, frequentar prostíbulos. As
prostitutas de Pompéia trabalhavam em cubículos de pedra similares).

Finalmente, alguns anos depois, o desapontamento cedeu lugar a um
interesse renovado, quando soube dos detalhes da sexualidade da Crepidula e
julguei a história mais intrigante do que nunca, mesmo depois do nome
convidativo. A Crepidula é um animal que muda de sexo naturalmente, um
hermafrodita sequencial no nosso jargão. Os jovens pequenos atingem a
maturidade primeiro como machos e depois, à medida que vão crescendo,
tornam-se fêmeas. Os animais intermediários no meio do amontoado de
Crepidula estão geralmente no processo de mudança de macho para fêmea.
O sistema funciona ordenamente para todos os elementos envolvidos. A C.
fornicata tende a habitar áreas relativamente lamacentas, mas tem de encontrar
um substrato sólido para se fixar. O membro fundador de um amontoado adere a
uma rocha ou concha velha. Elaine Hoagland, num exaustivo estudo das
mudanças de sexo da Crepidula (ver Bibliografia), observou que estes
fundadores podem então atrair ativamente larvas planctônicas à medida que elas
se metamorfoseiam e começam a descer — presumivelmente por meio de algum
chamariz químico, ou feromônio. Ela colocou seis recipientes com substratos
apropriados de rochas e conchas: três já ocupados por Crepidulas adultas e três
sem o molusco vivo. Os recipientes que continham adultos atraíram 722 jovens,
enquanto apenas 232 desceram sobre território não-ocupado. O membro
fundador cresce e torna-se fêmea dentro de pouco tempo, enquanto o jovem de
cima torna-se automaticamente um macho. A união permanece estável durante
algum tempo, mas por fim o macho cresce e se transforma em fêmea. O par de
fêmeas pode então atrair outras Crepidulas, que se tornam machos bem
abastecidos. O amontoado cresce, sempre mantendo um amplo número e
coeficiente de machos e fêmeas.
Este curioso sistema fornece um exemplo particularmente interessante de um
fenômeno geral na natureza. A mudança de sexo pode ocorrer em uma ou em
outra direção (ou em ambas) durante o crescimento, de macho para fêmea ou de
fêmea para macho. Ambos os fenômenos ocorrem, mas o padrão da Crepidula,
de macho primeiro e fêmea depois, chamado protandria (ou macho primeiro) é
decididamente o mais comum. (As criaturas que são primeiro fêmeas e depois
machos são protogínicas, ou fêmea primeiro.) A protandria parece representar o
caminho preponderante de mudança de sexo, sendo a protoginia um fenômeno
mais raro desenvolvido sob circunstâncias especiais (mas não particularmente
incomuns). Por que deve ser assim?
A resposta mexe com um de nossos velhos preconceitos e extrapolações
falsas que estendemos a toda a natureza a partir dos animais que conhecemos
melhor, nós mesmos e outros mamíferos. Pensamos nos machos como grandes e
fortes, nas fêmeas como menores e mais fracas, quando o padrão inverso
prevalece em toda a natureza — os machos são geralmente menores que as
fêmeas, e por bons motivos, a despeito dos humanos e da maioria dos outros
mamíferos. O espermatozoide é pequeno e barato, facilmente produzido em
grandes quantidades por criaturas pequenas. Um espermatozoide é pouco mais
que um núcleo de DNA nu com um sistema de distribuição. Por outro lado, os
óvulos têm de ser maiores, já que fornecem o citoplasma (todo o resto da célula)
com mitocôndrias (ou usinas de energia), cloroplastos (para fotossintetizadores),
e todas as outras partes de que um zigoto precisa para iniciar o processo de
crescimento embrionário. Além disso, os óvulos em geral fornecem a substância
nutriente inicial, ou comida para o embrião em desenvolvimento. Por fim, as
fêmeas geralmente executam as tarefas de cuidado básico, retendo os ovos
dentro do corpo durante algum tempo ou guardando-os após a postura. Por todos
esses motivos, na maioria das espécies animais, as fêmeas são maiores que os
machos.
Esse sistema pode ser suplantado quando os machos desenvolvem uma
forma de competição com outros machos em que o tamanho grande é favorecido
na obtenção de contato sexual com as fêmeas. Essas formas de competição são
destrutivas em termos de conceitos teóricos tais como “o bem da espécie”. Mas o
darwinismo diz respeito à luta de organismos individuais para transmitirem mais
de seus genes às gerações futuras. A melhor indicação de que nosso mundo é
darwiniano reside nos casos de evolução destinada unicamente à vantagem
individual — como quando os machos se tornam maiores porque têm de
competir como indivíduos, em batalha ou em exibição sexual, para ganhar
acesso às fêmeas.
Esta forma de competição geralmente exige um grau razoável de
inteligência, já que tais ações complexas implicam repertórios comportamentais
flexíveis e amplos. Assim, existe a tendência para encontrarmos o padrão
incomum ou inverso, de machos maiores, nas chamadas criaturas superiores,
com cérebros consideráveis. Esta correlação de complexidade e poder mental
provavelmente explica por que, de todos os grupos com um grande número de
hermafroditas sequenciais, apenas os vertebrados desenvolveram a protoginia
como padrão mais comum do que a protandria. Quando olhamos a história
natural da maioria dos peixes protogínicos, percebemos que os imperativos
comportamentais baseados na competição macho-macho condicionaram o
padrão de fêmea primeiro, com mudança posterior para machos maiores.
Douglas Y. Shapiro, por exemplo, estudou a inversão de sexo no Anthias
squamipinnis, um peixe tropical marinho de águas rasas, que habita recifes de
coral em grupos sociais estáveis de mais ou menos oito fêmeas para um macho
(ver Bibliografia). A competição entre machos para guardar e manter os seus
grupos pode ser intensa. A remoção de um macho induz uma fêmea a mudar de
sexo, e esta transição inclui uma série de características úteis à manutenção da
custódia de várias fêmeas: a mudança para coloração mais vistosa, espinhas das
nadadeiras maiores, flâmulas da nadadeira caudal mais elaboradas e tamanho
maior.
A distribuição da protandria e da protoginia oferece uma ilustração ainda
melhor da preferência da natureza por fêmeas maiores que a simples
documentação de machos permanentemente menores em insetos e peixes.
Machos e fêmeas permanentes representam sistemas estáticos que podem manter
a sua relação de tamanho por uma série de outros motivos. Mas quando
descobrimos que a mudança ativa de sexo em geral ocorre de macho para fêmea,
devemos buscar algum motivo direto fundamentado nas vantagens gerais do
tamanho maior das fêmeas.
Poderíamos buscar uma ilustração ainda melhor, uma que os animais,
infelizmente, devido ao seu modo de crescimento, não têm como oferecer. Em
termos ideais, gostaríamos de encontrar uma criatura que muda de sexo em
qualquer direção, mas que se torna fêmea quando fica maior e macho quando
fica menor. Podemos ter esperanças de encontrar tal caso ideal na natureza, a
confirmação de um princípio geral em uma única criatura? (Enquanto formos
obrigados a defender o princípio usando como exemplo várias criaturas, seremos
perseguidos pela inquietante possibilidade de termos entendido tudo errado —
que a protoginia é dominante nos peixes não porque eles são avançados no que
diz respeito ao comportamento e ilustram o princípio de Darwin da competição
individual, mas em virtude de alguma propriedade desconhecida e peculiar da
condição de peixe. Porém, se formos capazes de encontrar ambos os fenômenos
na mesma criatura, uma explanação unificada parece garantida.) Mas, temos
algum direito de esperar da natureza tal exemplo ideal? Afinal, os animais, salvo
exceções bastante raras, nunca diminuem de tamanho e, portanto, não servem.
Um dos primeiros artigos sobre a mudança de sexo na Crepidula, escrito em
1935, terminava com estas palavras: “A transformação sexual na Crepidula,
assim como a metamorfose em outros animais, pode ser acelerada ou retardada
experimentalmente, mas não pode ser revertida.”
A natureza conseguiu de novo — ela sempre consegue. O organismo ideal
foi descoberto. Infelizmente, o tópico geral de minha deplorável e profunda
ignorância é uma planta. As plantas podem sofrer substancial redução de
tamanho, por diversos motivos e sem morrer. Nosso exemplo é um habitante
comum e atraente dos nossos bosques do leste, Arisaema triphyllum, o
“joãozinho-no-púlpito” (Na verdade, a tradução correta de jack-in-the-pulpit, Arisaema Tryphilum,
seria nabo selvagem. A solução “joãozinho-no-púlpito” é uma exigência do texto, como se pode ver a
seguir - N.T.). Os resultados foram recentemente relatados por meu amigo David
Policansky no sóbrio Proceedings of the National Academy of Sciences (ver
Bibliografia). (Confesso que meu interesse anterior por esta planta restringia-se
virtualmente a ficar imaginando se a sua forma plural incluía um joãozinho e
vários púlpitos, como na maioria das palavras, ou vários joãozinhos e um
púlpito, como aqueles velhos terrores da gramática do colegial, os cavalos-vapor
e os navios-escola. Reparei que este assunto deve confundir também outras
pessoas, porque as duas referências que descobri ao trabalho de Policansky
evitam cuidadosamente a questão e, desafiando as regras da gramática, usam o
singular em todos os casos. Eu opto por vários púlpitos, embora saiba que cada
um deles carrega um joãozinho. Ou será que eles são como os louva-a-deus,
afinal? - Um leitor deu a óbvia e elegante sugestão para este dilema de eras — “joãozinhos-em-púlpitos”.
Que estupidez a minha não ter pensado nisso antes).
As flores da maioria das plantas (mas não de todas, absolutamente) contêm
tanto estruturas masculinas quanto femininas. Mas o joãozinho-no-púlpito é uma
coisa ou outra. A parte sexual da flor contém ou anteras, a estrutura sexual do
macho, ou ovários coroados por estigmas. As plantas menores, os machos, têm
uma folha, enquanto as fêmeas, maiores, geralmente desenvolvem duas. Durante
um estudo de três anos nos bosques Eastbrook, em Concord, Massachusetts,
Policansky marcou e registrou 2.038 plantas; 1.224 eram machos com uma
altura média de 336 mm, enquanto as 814 fêmeas tinham por volta de 411 mm.
O chamado modelo de mudança de sexo da “vantagem de tamanho’’ prevê,
para o caso costumeiro de machos maiores, que uma transição de macho para
fêmea deveria ocorrer nos casos em que qualquer aumento adicional de tamanho
passasse a beneficiar mais a fêmea (em termos de produção de sementes) do que
o macho. (Lembre-se de que machos pequenos podem produzir uma
superabundância de espermatozoides, e que, portanto, um tamanho maior
oferece relativamente pouca vantagem, ao passo que o benefício para as fêmeas
pode ser substancial.) Valendo-se de dados sobre o aumento do número de
espermatozoides e de sementes em relação ao tamanho, Policansky calculou que,
na teoria, esta transição deveria ocorrer aos 398 mm no joãozinho-no-púlpito.
Ele então descobriu que, na natureza (ou pelo menos em Concord), 380 mm é a
linha divisória — um resultado bem próximo da teoria. Abaixo desta altura, ele
encontrou mais machos do que fêmeas; acima, mais fêmeas do que machos.
Ele também pôde averiguar diretamente que as plantas macho tendiam a se
transformar em fêmeas à medida que cresciam durante o curso normal de vida.
Além disso, e esta é a observação fundamental, os indivíduos mudavam de
fêmea para macho por ocasião das circunstâncias, mais incomuns, que
ocasionalmente levam uma planta a ficar menor. A diminuição de tamanho
ocorreu por três motivos: quando parte da planta foi comida (quando a
mariazinha quebra o cocoruto, o joãozinho vem depois); quando a planta passou
a ficar na sombra e, consequentemente, teve o crescimento atrofiado; e quando
produzira um número excepcionalmente grande de sementes na estação anterior,
também inibindo desse modo o aumento de tamanho, devido ao desvio da maior
parte da energia para as próprias sementes.
Assim, com a mudança em ambas as direções se conformando ao modelo de
vantagem de tamanho e seguindo o padrão usual da natureza, de machos
menores e fêmeas maiores, o joãozinho-no-púlpito oferece, sozinho, uma
adorável ilustração dos erros de nossas costumeiras, estreitas, percepções e
pressuposições a respeito do tamanho relativo dos sexos — e uma excelente
confirmação de um importante princípio da biologia darwiniana. Ele também
nos ajuda a entender por que, se o homem é a medida de toda as coisas, a
mariazinha precisa de um púlpito mais espaçoso.

4. Convivendo com ligações




La Grande Galerie do Muséum d’histoire naturelle, em Paris, está fechada há
quinze anos. Esse grande espaço, armado em ferro e coberto de vidro, não é mais
completo estruturalmente. Assim como as amplas estações ferroviárias que lhe
serviram de modelo, La Grande Galerie entrou para a história. Além disso, o seu
acervo reflete as ideias e preocupações de outra era, a expansionista e agressiva
era vitoriana, que levava tão a sério, como guia para coleta e exibição, as
palavras do Gênesis (1:22): “Frutificai e multiplicai-vos, e enchei as águas nos
mares; e as aves se multipliquem na Terra.” Se os museus modernos dão ênfase
à intimidade, à boa iluminação, à exposição de bom gosto e às palavras bem
escolhidas, seus predecessores vitorianos julgavam a qualidade pela quantidade,
e apinhavam seus vastos espaços abertos com tantos animais grandes quanto era
possível. No museu de Lord Rotschild em Tring, as zebras empalhadas estão
deitadas, de modo que várias prateleiras podem ser colocadas do chão ao teto.
La Grande Galerie é a vovó deste estilo ultrapassado. Construída em 1889,
intocada desde então, os seus esqueletos e animais empalhados ocupam cada
centímetro disponível. A grande pirâmide central quase chega ao alto teto de
vidro. Um lado é todo de zebras, outro, todo de antílopes; seis girafas coroam o
topo. A poeira se acumulou, a sala está escura e vazia; o silêncio lúgubre
confere-lhe uma majestade sombria.
Sua companheira, La Galerie d’Anatomie Comparée, é menor, bem
iluminada, e ainda está aberta. O estilo é idêntico — filas e mais filas,
intermináveis, prateleiras e mais prateleiras de esqueletos branqueados. Vaguei
pelos corredores, admirando-me diante de uma fila de morsas e cinco prateleiras
superpostas ocupadas por crânios de macacos. Passei então pela estante 106 e
parei de súbito. Ela contém uma exposição secundária que serve como contraste
para a profusão de lustrosos leões ao lado e para lembrar os complacentes
vitorianos de que a natureza, além de generosa, pode ser também caprichosa e
cruel. A estante 106 comporta uma coleção de espécimes teratológicos,
esqueletos de nascimentos deformados e anormais. A maioria deles é de
humanos e representa aquele intrigante e assustador fenômeno do nascimento de
indivíduos ligados, ou parto de irmãos “siameses”. O esqueleto A8597 tem duas
cabeças, três braços e duas pernas; o A8613 tem quatro braços, duas pernas e
duas cabeças que se projetam das pontas de uma coluna vertebral unida; o
A8572 é quase normal, mas um irmão minúsculo, acéfalo, com braços e pernas,
projeta-se de seu peito. Todos são pequenos e é óbvio que morreram por ocasião
do parto ou pouco depois.
Um esqueleto se destaca por causa de seu tamanho consideravelmente maior.
O A8599 é (ou são) — e este é o tema que discutiremos em breve — o de duas
gêmeas com duas cabeças bem formadas e duas partes superiores do corpo com
dois braços cada. Duas colunas vertebrais distintas quase se fundem na base, e
apenas duas pernas, bem formadas, se projetam em baixo. No rótulo está escrito
monstre humain dicéphale, ou “monstro humano de duas cabeças”. Mas A8599
nasceu com vida e sobreviveu por vários meses. As gêmeas foram batizadas e
receberam nomes. O letreiro registra esse detalhe pungente e inclui, sob o
número e a descrição, a simples identificação “Ritta-Christina”.
Meditei muito sobre Ritta-Christina, perguntando-me sobre como teriam sido
sua vida e sua morte. Ainda assim, eu não teria feito a transição, de pensamento
intrigado para ensaio, se não houvesse descoberto, dois dias depois,
absolutamente por acaso, um velho tomo empoeirado numa livraria — o volume
11 de 1833, das Memoirs of the Royal Academy of Sciences. Ele continha uma
longa monografia do grande anatomista francês Etienne Serres: Théorie des
formations e déformations organiques, appliquée à l’anatomie de Ritta-
Christina, et de la duplicité monstrueuse (“Teoria do desenvolvimento e da
deformação orgânicas, aplicada à anatomia de Ritta-Christina, e aos monstros
duplos em geral”).
Quem não compreende a íntima justaposição do vulgar e do erudito tem uma
visão de vida muito refinada ou então muito comparti-mentalizada. A fascinação
abstrata e a visceral são igualmente válidas e não tão distantes quanto se pensa.
Dois dias antes, eu vira alguns escolares diante de Ritta-Christina, boquiabertos,
tomados de espanto e horror, sentimentos logo disfarçados por demonstrações de
humor forçado. Agora eu descobria que o maior anatomista da França dissecara
Ritta-Christina e a usara para fundamentar uma teoria geral de embriologia
orgânica (não apenas humana). Ambos os temas me pareciam igualmente
irresistíveis; na verdade, eu chafurdava neles havia dois dias. As crianças
podiam não ter feito generalizações, mas não tenho dúvidas de que M. Serres,
além de pensar, também engoliu em seco. Comprei o livro.
Ritta e Christina nasceram em 23 de março de 1829, filhas de pais pobres da
Sardenha. Os tempos eram difíceis e a mobilidade social praticamente
impossível em circunstâncias normais. Hoje, os pais seriam objeto de compaixão
e experimentariam apenas a dor; em 1829, pessoas realistas, quaisquer que
fossem os seus sentimentos íntimos, eles devem ter reconhecido que uma tal
criança representava uma fonte de renda potencial e substanciosa que, em outras
circunstâncias, estaria inteiramente fora de seu alcance (Sinto-me tentado a rever esta
sentença e postular uma universalidade que transcende o tempo, à luz de duas histórias publicadas no The
New York Times de 23 de novembro de 1984 — primeiro, que os herdeiros de Barney Clark (o primeiro
homem, agora morto, a receber uma coração artificial) moveram uma ação de U$ 2 milhões contra o
Reader’s Digest pelo rompimento do contrato de publicação de um livro sobre o caso, de autoria da viúva
do sr. Clark; segundo, que os pais de Baby Fae (aquela do transplante do coração de babuíno) venderam os
direitos exclusivos de sua história para a People Magazine). Assim, os pais de Ritta-Christina
juntaram a duras penas algum dinheiro e levaram-na para Paris, com esperanças
de exibi-la a preços exorbitantes. A Vénus hotentote havia provocado protestos
suficientes quinze anos antes (ver ensaio 19), mas, por mais exótica que fosse,
ela era sadia. A sensibilidade pública tinha limites, e as autoridades proibiram
qualquer exibição pública de Ritta e Christina. Mas ela foi exibida em particular,
muitas vezes com demasiada frequência — tanto que morreu, em parte devido à
exposição excessiva, após cinco meses de vida.
Ao descrever Ritta-Christina alternei conscientemente o singular e o plural.
Quando o vulgar e o erudito se encontram, muitas vezes existe uma questão
comum à nossa fascinação conjunta. Uma questão tem sempre predominado
neste caso — a individualidade. Ritta-Christina era uma pessoa ou duas? Essa
questão inspirou os débeis gracejos dos meus horrorizados escolares. Também
motivou a investigação científica de Serres. A mesma questão estava por trás do
fascínio público em 1829. Quando Ritta-Christina morreu, um jornal parisiense
escreveu: “Já é objeto de séria consideração entre os espiritualistas saber se elas
tinham uma alma ou duas.”


Um ou dois? Ao longo de todas as divagações eruditas e de todos os
espetáculos de feira, esta única questão tem sido o foco do nosso fascínio desde
que o fenômeno dos irmãos siameses recebeu o seu nome. Os originais, Eng e
Chang, nasceram de pais chineses, em 1811, num pequeno povoado perto de
Bangkok (a Tailândia era então chamada Sião). Durante o fim da década de 1820
e a década de 1830, eles se exibiram na Europa e nos Estados Unidos e ficaram
bastante ricos. Decidiram morar na Carolina do Norte, onde se casaram aos 44
anos com duas irmãs de origem inglesa e se estabeleceram em dois domicílios
vizinhos, levando uma vida confortável de bem-sucedidos fazendeiros (sim, e
foram até mesmo proprietários de escravos). Eles trocavam de casa em
intervalos de três dias, transpondo de carruagem a distância de uma milha e
meia. Pelos costumes da época, Chang era o chefe inquestionável de seu
domicílio, enquanto Eng dava as ordens chez lui. As uniões foram
inegavelmente prolíficas, já que Chang teve dez filhos e Eng, doze.



Chang e Eng eram seres humanos fisicamente completos, ligados por uma
tira de tecido com três polegadas e um quarto em sua porção mais larga e apenas
uma polegada e cinco oitavos em sua porção mais densa. Cada um possuía uma
série completa de órgãos, da cabeça aos pés. Eles mantinham conversas
independentes com suas visitas e tinham personalidades distintas. Chang era
soturno e melancólico e, por fim, passou a beber; Eng era calmo, contemplativo
e mais alegre. No entanto, mesmo eles, os irmãos siameses mais independentes
da história, nutriam dúvidas íntimas sobre a sua individualidade. Assinavam
todos os documentos jurídicos como “Chang Eng” e falavam frequentemente
sobre seus ambíguos sentimentos de autonomia.
Mas, e Ritta e Christina, cuja independência corpórea não se estendia abaixo
do umbigo? À primeira vista, elas pareciam duas pessoas na parte de cima e
apenas uma na parte de baixo. O velho critério cultural de cabeça e cérebro
poderia ter sugerido uma solução fácil — duas cabeças, duas pessoas. Mas,
como cientista, Serres repelia esta resposta simples, pois havia estudado irmãos
siameses com uma cabeça, dois braços e quatro pernas. Ele pensava que devia
haver uma uniformidade de processo subjacente a ambos os tipos de geminação
e não podia aceitar a solução simplista — uma pessoa se você fechar o zíper até
a cintura partindo da cabeça; duas pessoas se você fechar o zíper até a cintura
partindo dos pés.
Serres lutou com essa grave questão ao longo de trezentas páginas e afinal
concluiu que Ritta e Christina eram duas pessoas. Seus argumentos e estilo
básico pertencem a outra era da história da biologia. Se não por outro motivo,
eles merecem ser relembrados porque poucos exercícios intelectuais podem ser
mais gratificantes que o exame de como sistemas de pensamento radicalmente
diferentes tratam um objeto comum de interesse mútuo. Também acredito que
Serres estava, pelo menos, meio errado.
Serres representava a grande tradição, do início do século XIX, da biologia
romântica, chamada Naturphilosophie (“filosofia da natureza”) na Alemanha e
morfologia transcendental na sua França natal. Se os morfologistas modernos
estudam a forma para determinar relações evolucionárias ou para descobrir
significações adaptativas, Serres e seus colegas perseguiam objetivos
nitidamente diferentes. Eles estavam obcecados pela ideia de que devia existir
alguma lei fundamental, transcendental, subjacente, regulando toda a aparente
diversidade da vida.
Na tradição platônica, essas leis devem existir antes que surjam quaisquer
organismos para obedecer às suas regulamentações. Os organismos são
encarnações acidentais do momento; as leis, simples, reguladoras refletem o
princípio atemporal da ordem universal. A biologia tem como tarefa principal
procurar os padrões subjacentes em meio à diversidade confusa da vida. Em
resumo, os biólogos devem procurar as “leis da forma”.
Serres contribuiu para a tradição transcendental transpondo as suas
considerações para a embriologia. A maioria dos seus colegas havia enfatizado a
forma estática dos adultos buscando padrões subjacentes apenas em produtos
finais. No entanto, os organismos desenvolvem a sua complexidade a partir do
ovo até o adulto. Se as leis da forma regulam a morfologia, então devemos
descobrir os princípios da construção dinâmica, e não simplesmente os das
relações entre criaturas acabadas.
A monografia de Serres sobre Ritta-Christina começa com uma obscura
dissertação de duzentas páginas sobre os princípios da morfologia e a sua
aplicação à embriologia. A menos que se dê uma olhadinha nas instigantes
gravuras do final (que incluem as três figuras reproduzidas no presente ensaio),
não se ouve nada a respeito das famosas gêmeas da Sardenha antes que se fique
com os sentidos entorpecidos por generalidades. Essa organização, em si, reflete
um estilo de ciência radicalmente diferente do nosso. Defendemos uma
perspectiva empírica e gostamos de afirmar que as generalidades surgem do
estudo e do confronto cuidadoso de particularidades. Qualquer embriologista
moderno primeiro discutiria Ritta-Christina e apenas no final arriscaria algumas
conclusões breves e cautelosas. Serres, entretanto, como transcendentalista,
acreditava que as leis da forma existiam antes dos animais que as obedeciam. Se
a abstração precedia a efetividade da natureza, por que não também na
criatividade humana? Pensamento e teoria primeiro, aplicação depois. (Nenhum
dos extremos representa bem a intrincada relação de fato e teoria que regula a
nossa prática efetiva de ciência. Ainda assim, suspeito que a ordem “invertida”
de Serres não é uma distorção da realidade complexa pior que as nossas
modernas preferências estilísticas).
Nas primeiras páginas de sua monografia, Serres tenta reduzir a embriologia
de todos os animais a três leis básicas de “organologia”. Primeiro, pela lei do
desenvolvimento excêntrico, conhecida também como lei da circunferência para
o centro, os órgãos se formam inicialmente na borda do embrião em
desenvolvimento e então migram para o centro. Segundo, pela lei da simetria, os
órgãos que se tornam únicos e centrais nos adultos começam como rudimentos
simétricos duplos em bordas opostas do embrião em desenvolvimento. Terceiro,
pela lei da afinidade, estes rudimentos simétricos são atraídos um pelo outro até
se fundirem no centro para formar um órgão adulto único. (Permitam-me ser
caridoso e dizer simplesmente que essas leis são extensões injustificadas de
padrões que atuam ocasionalmente no desenvolvimento. Serres estava
escrevendo antes do estabelecimento da teoria celular e apenas alguns anos após
a descoberta do óvulo humano por Karl Ernst von Baer. Sua abordagem formal
da morfologia, tão estranha para um mundo que pode avaliar causas celulares e
até mesmo moleculares, ajustava-se ao conhecimento e aos costumes de sua
própria época).


Duzentas páginas depois, quando Serres finalmente discute a dissecção de
Ritta-Christina, compreendemos por que ele dedicou tanto espaço precedente às
três leis primárias de organologia — pois elas fornecem a sua solução para o
grande dilema da individualidade. Ritta e Christina são duas pessoas, embora
imperfeitas, e as leis da forma proclamam a condição delas.
Ninguém contestava o veredito da duplicidade de Ritta e Christina da cintura
para cima; o dilema sempre estivera centrado na bem formada, mas obviamente
única, metade inferior — um ânus, uma abertura genital, duas pernas. Se ela
fosse duas pessoas de cabo a rabo, como a sua metade inferior poderia se
desenvolver tão bem com o formato de uma só? Como as partes incompletas de
duas criaturas separadas puderam se fundir e combinar numa forma
indistinguível da metade inferior de indivíduos tão inequivocamente únicos
como eu e você?
Serres usou suas leis de organologia para apresentar a metade inferior de
Ritta e Christina como o produto conjugado de duas pessoas. Afinal, os órgãos
únicos, harmoniosos, bem-formados, dos indivíduos comuns surgem (pela lei da
simetria) como partes separadas e duplas na borda do embrião, e então se
movem para dentro (pela lei da circunferência para o centro), finalmente
encontrando-se e fundindo-se (pela lei da afinidade) num único órgão central. Se
o nosso coração, estômago e fígado únicos têm início como dois rudimentos
simétricos (na verdade, isso não acontece, mas Serres achava que sim), por que
então deveríamos ver a presença de um órgão único e bem-formado na metade
inferior de Ritta e Christina como um argumento contra a sua construção a partir
das partes misturadas e combinadas de dois indivíduos embrionários? Se as
gêmeas têm apenas um útero, então a metade direita veio de Ritta, a esquerda de
Christina. Os dois rudimentos se formaram nas bordas do embrião, em regiões
inequivocamente atribuídas a Ritta ou a Christina (lei da simetria). Eles se
moveram para o meio (circunferência para o centro) e lá se juntaram (lei da
afinidade) para formar um único órgão.
Serres anunciou orgulhosamente que as suas leis da forma haviam resolvido
o grande dilema em favor da dualidade; “Como poderíamos ter concebido que
cada criança forneceu metade de um órgão comum a ambas, se a lei do
desenvolvimento excêntrico não nos houvesse ensinado que os órgãos únicos
são, em seu estado normal, originalmente duplos.”
Serres não se esquivou às implicações lógicas decididamente peculiares de
sua solução. Ele percebeu que o útero grande possuía ligações adequadas com os
ovários e o canal vaginal, e não via nenhum motivo pelo qual Ritta e Christina
não pudessem ter filhos caso houvessem alcançado a maturidade. (Serres
também encontrou um segundo útero, rudimentar, que não teria funcionado.) Ele
concluiu que o útero grande havia se formado a partir de uma metade de Ritta e
outra de Christina e admitiu que qualquer filho que se desenvolvesse dentro dele
teria duas mães naturais:

Esta disposição dos órgãos genitais de Ritta e Christina demonstra
claramente... que, enquanto tomara medidas para assegurar a vida destas
crianças, a natureza não esquecera a possibilidade de sua reprodução. Ora,
para esta reprodução, a natureza havia combinado tudo, de modo que todos
os prazeres e dores seriam compartilhados... Supondo que ocorresse a
concepção no útero grande, uma única criança teria tido duas mães distintas,
um resultado singular desta vida associada.

Serres então discutiu um par de machos geminados com quatro pernas e uma
única cabeça e optou pela coerência e pelo dualismo: o cérebro único, bem-
formado, compartilhava os pensamentos combinados dos dois.

Existe uma unidade perfeita produzida por duas individualidades distintas.
Existem órgãos sensoriais e hemisférios cerebrais para um único indivíduo,
adaptados para o serviço de dois, já que é evidente que existem dois eus
nesta cabeça única [deux moi dans cette tête unique].

Assim Serres fez uma brava e coerente tentativa de resolver uma questão que
parecia irremediavelmente ambígua. Podemos reconhecer o esforço e apreciar a
excursão pelo parecer diferente de biologia defendido por Serres. Mas devemos
rejeitar a sua conclusão.
Os ovos humanos fertilizados em geral se desenvolvem como indivíduos
únicos. Raramente, as células em divisão se separam em grupos distintos, e dois
embriões se desenvolvem. Esses gêmeos univitelinos (ou idênticos) são cópias-
carbono genéticas. Em certo sentido último, biológico, eles são o mesmo
indivíduo repetido — e a literatura psicológica contém vários testemunhos dos
sentimentos de separação imperfeita compartilhados por gêmeos idênticos. No
entanto, pelo menos no que diz respeito à definição, não experimentamos
dificuldade alguma em identificar gêmeos univitelinos humanos como sendo
inegavelmente personalidades separadas, por causa de dois excelentes motivos:
primeiro, a separação física é a essência da nossa definição vernácula de
individualidade (ver o ensaio seguinte); segundo, as personalidades humanas são
modeladas por ambientes de vida complexos, de modo tão sutil e penetrante (não
importam as desconcertantes similaridades entre gêmeos univitelinos criados em
separado), que cada pessoa segue um caminho absolutamente único.
Com uma raridade tremendamente maior, as células em divisão de um ovo
fertilizado começam a se separar em dois grupos, mas não terminam o processo
— e irmãos ligados (ou siameses) se desenvolvem. Os irmãos ligados abrangem
toda a variedade concebível, que vai de um único indivíduo portando alguns
poucos órgãos rudimentares de um gêmeo imperfeito até indivíduos completos,
unidos superficialmente como Chang e Eng. Ritta e Christina encontram-se
justamente no meio dessa continuidade. Com nosso conhecimento moderno do
desenvolvimento biológico, receio que devemos rejeitar a solução de Serres e
admitir ao contrário que o seu dilema não pode ser respondido.
Nós habitamos um mundo complexo. Algumas fronteiras são nítidas e
permitem distinções claras e definidas. Mas a natureza também inclui algumas
continuidades que não podem ser divididas em duas pilhas inequívocas de sim e
de não. Os biólogos têm rejeitado, como sendo inevitavelmente falhas em
princípio, todas as tentativas dos que são contrários ao aborto de definir um
inequívoco “início da vida”, porque sabemos muito bem que a sequência que vai
da ovulação ou da espermatogênese ao nascimento é uma continuidade
inquebrável — e com certeza ninguém definiria a masturbação como
assassinato. Nossos congressistas podem criar uma ficção jurídica para efeito
estatutário, mas não podem procurar apoio na biologia. Ritta e Christina
encontram-se no meio de outra continuidade inquebrável. Elas são em parte duas
e em parte uma. E esta, sinto dizer, é a não-resposta biológica a essa questão de
séculos.
Se, depois de tanta verborragia, este argumento lhe provoca uma sensação de
vazio, só posso retrucar com a expressão paradoxal que é, tantas vezes, a mais
libertadora resposta para um velho mistério: A pergunta não tem resposta porque
você fez a pergunta errada. A velha questão da individualidade dos irmãos
siameses repousa na pressuposição de que os objetos podem ser classificados em
categorias distintas. Se reconhecermos que nosso mundo está repleto de
continuidades irredutíveis, não mais ficaremos perturbados pela condição
intermediária de Ritta e Christina.
Dante, para infligir-lhes uma punição física à altura de seu crime ideológico,
puniu os cismáticos desmembrando-os no inferno: “Vê quão estropiado ficou
Maomé... E todos os mais que por aqui percebes foram em vida semeadores de
cismas e de escândalos; ora fendidos sofrem penar cruento” (“Inferno”, Canto XXVIII.
Tradução de Hernâni Donato - N.T.).
Tenhamos em apreço as ligações. Assim como Dante fez uma analogia entre
a separação física e a ideológica, talvez possamos aprender, a partir da união
indissolúvel de Ritta e Christina, que nosso mundo intelectual também se
compraz com a continuidade.

5. Um paradoxo muito engenhoso




A abstinência tem seu lado virtuoso, mas tudo tem um limite. Sempre senti
uma pena especial pela pobre Mabel, noiva de Frederic, o pirata aprendiz.
Justamente no limiar da felicidade do casamento, ela descobre que tem de
esperar mais sessenta e três anos para reclamar o seu amado, que terá então
oitenta e quatro anos — e como não podia deixar de acontecer em Gilbert e
Sullivan, ela efetivamente promete esperar.
O Rei Pirata e Ruth, antiga ama e amante repudiada de Frederic, apresentam
o motivo deste extraordinário adiamento. Frederic, tomado injustamente como
aprendiz do bando de piratas, tem vinte e um anos e anseia por liberdade,
respeitabilidade e Mabel. Formalmente, porém, ele está comprometido até seu
vigésimo primeiro aniversário e nasceu em 29 de fevereiro. “Você é um
garotinho de cinco anos”, informa o Rei Pirata, cheio de prazer e expectativa
pelo prolongamento do serviço. Os três personagens principais de The Pirates of
Penzance então analisam as complexidades dessa situação desagradável na
famosa canção do paradoxo:

Quão curiosos são os modos do paradoxo
Do bom senso ele alegremente zomba.

O paradoxo clássico apresenta-nos duas interpretações contraditórias, cada
uma perfeitamente correta em seu próprio contexto. Considere-se os nossos
protótipos ocidentais, os chamados paradoxos de Zeno: A flecha que nunca pode
alcançar o seu alvo porque, a cada instante, ela deve ocupar uma posição fixa; e
Aquiles que nunca consegue alcançar a tartaruga porque tem primeiro de
transpor metade da distância restante, e qualquer espaço, por menor que seja,
sempre pode ser dividido pela metade. Deliciamo-nos com o paradoxo porque
ele agrada tanto o aspecto sublime quanto o estapafúrdio da nossa psique. Rimos
com Frederic, mas sentimos também que nos enigmas de Zeno jaz oculto algo de
profundo sobre a natureza da lógica e da vida.
A biologia também tem o seu paradoxo clássico. Ele se sobressaiu como
questão de interesse maior no século XIX, provavelmente porque os cientistas
então sentiam que era possível encontrar uma solução. Todos os melhores
naturalistas lutaram em vão: Huxley e Agassiz alinharam-se em lados opostos;
Haeckel tentou servir de mediador. O século XX passou ao largo da charada,
provavelmente porque agora percebemos que não existe nenhuma resposta
simples. Ainda assim, se nosso fascínio pelo paradoxo se justifica, a questão
ainda pode nos iluminar o espírito em virtude de sua teimosa intratabilidade.



Os sifonóforos pertencem ao filo Cnidaria (ou Coelenterata). Dois aspectos
da biologia dos cnidários estabelecem o contexto do nosso paradoxo. Primeiro,
muitos cnidários vivem em colônias de indivíduos ligados — nossos recifes
maciços de coral são gigantescos amontoados compostos por vários milhões de
pólipos minúsculos e conjugados. Segundo, o ciclo vital dos cnidários apresenta
uma, assim chamada, alternância de gerações. O pólipo séssil, um cilindro fixo
com uma orla de tentáculos, reproduz-se assexuadamente e gera, por meio de
brotamento, medusas, ou “águas-vivas”, que nadam livremente. A medusa
produz células sexuais que se unem e formam um pólipo. E por aí vai.
Diferentes tipos de cnidários podem enfatizar uma dessas gerações e
suprimir a outra. Dos três grupos cnidários principais, o grupo Scyphozoa (ou
águas-vivas verdadeiras) abandonou os pólipos e enfatizou as medusas, ao passo
que o grupo Anthozoa (ou corais verdadeiros) dispensou as medusas e construiu
recifes de pólipos e de seus esqueletos. No terceiro grupo, o Hydrozoa, muitos
membros mantêm o ciclo completo, com pólipos e medusas distintos. Os
sifonóforos são hidrozoários. A literatura técnica, que geralmente não se destaca
nem pelo seu encanto nem pela falta de rodeios, transcendeu suas costumeiras
limitações neste caso: em meio a uma profusão medonha de termos técnicos
aplicados às outras partes da anatomia cnidária, ela se refere ao estágio polipóide
e ao medusóide de um único ciclo vital como “indivíduos”.
A caravela, com flutuador em cima e tentáculos embaixo, à primeira vista
parece uma água-viva (isto é, uma única medusa). Quando estudada com maior
minúcia, descobrimos que esta arma flutuante é uma colônia de vários
indivíduos, tanto polipóides quanto medusóides. O pneumatóforo, ou flutuador,
é provavelmente uma grande medusa modificada (embora alguns cientistas
achem que ele pode ser um pólipo ainda mais alterado). Os “tentáculos”, apesar
de especializados para os diferentes papéis de captura de comida, digestão e
reprodução, não são simples partes de uma água-viva, mas pólipos modificados
— isto é, cada tentáculo surge como um indivíduo distinto. (Outro sifonóforo
comum, a Velella, literalmente a “pequena vela’’, mas que popularmente
recebeu o adorável nome de “by-the-wind-sailor” [Algo como “marinheiro ao sabor do
vento” - N. T.], provoca ainda mais confusão. Os seus indivíduos são bem poucos e
tão bem coordenados que a colônia parece um simples flutuador rodeado de
tentáculos — em outras palavras, uma simples água-viva. No entanto, o
flutuador é um indivíduo medusóide e cada tentáculo, um indivíduo polipóide.)
[Dei uma aula sobre este ensaio pouco depois da sua publicação e repeti para
meus ávidos alunos a frase fundamental: “Vocês achavam que a caravela era
uma água-viva, mas ela não é.” Mais tarde, durante o semestre, fiquei
horrorizado quando uma aluna me contou que havia perdido uma partida de
Master por ter dado a resposta correta à pergunta: “O que é uma caravela?”
Vocês acreditam que os Sólons da cultura pop proclamaram esta colônia como
sendo uma água-viva? Está lá, no eartãozinho azul, e portanto tem de ser isso.
Mas, ainda assim, ela não é!] Se este grau de divisão de trabalho entre indivíduos
o impressiona, a natureza tem muito mais a oferecer. A Physalia e a Velella são
sifonóforos simples, com relativamente poucos tipos de indivíduos modificados.
Os sifonóforos mais complexos são, sem dúvida, as colônias mais integradas da
natureza. As suas partes revelam-se tão diferenciadas e especializadas, tão
subordinadas à totalidade da colônia, que funcionam mais como órgãos de um
corpo do que como indivíduos de uma colônia.


A maioria dos sifonóforos são criaturas pequenas e transparentes do mar
aberto. Eles flutuam entre o plâncton da superfície ou nadam ativamente, em
geral a baixas profundidades. Sendo carnívoros, capturam pequenos animais
planctônicos em sua rede de tentáculos. Sifonóforos maiores, a Physalia entre
eles, conseguem capturar e devorar peixes de porte considerável; como bem
sabem muitos de nós, para nossa infelicidade, eles podem infligir dolorosas
“queimaduras” em banhistas humanos.
Os sifonóforos complexos contêm uma série impressionante de estruturas
bem diferenciadas. Seus corpos podem ser divididos, grosso modo, em duas
partes: um conjunto superior de bulbos e bombas para locomoção e um conjunto
inferior de tubos e filamentos para alimentação e reprodução. Cada parte contém
uma série de pólipos e medusas diferenciadas.
Considere-se primeiro a variedade de formas e atividades que os indivíduos
polipóides assumem. Encontramos três tipos básicos e uma miríade de
modificações. Os órgãos alimentares, ou sifões (daí o nome do grupo —
sifonóforo significa “portador de sifão”), são estruturas tubulares, cada uma com
um estômago e uma boca em forma de trombeta, que na maioria das vezes
pendem em abundância abaixo dos flutuadores e indivíduos natatórios. Os sifões
são indivíduos polipóides muito pouco modificados, e é fácil compreender a sua
origem como organismos completos. Todos os outros tipos de pólipos (e a
maioria das medusas) são mais altamente alterados e especializados, e, portanto,
mais difíceis de ser ligados à sua personalidade original. Uma segunda ordem de
indivíduos polipóides, os chamados datilozóides (“animais-dedo”, ou que
tocam), capturam e transportam a comida para os sifões. Os datilozóides
compreendem os tentáculos finos e longos, às vezes com mais de quinze metros
de comprimento na Physalia, que carregam os dolorosos nematocistos, ou
células urticantes, e formam uma teia transparente para apanhar as presas. Eles
não conservaram nem a boca, nem o aparelho digestivo, e poderiam ser
facilmente tomados por órgãos em vez de indivíduos, caso não pudéssemos
rastrear sua origem como brotos distintos em crescimento.
Essas partes de captura muitas vezes exibem uma complexidade notável de
forma e função. As células urticantes podem estar concentradas em
protuberâncias, ou “baterias”, às vezes protegidas por uma tampa. Na
Stephanophyes, cada bateria se prolonga num delicado filamento terminal e
contém cerca de 1.700 células urticantes de quatro tipos diferentes. O filamento
terminal laça a presa e dispara as suas poucas células urticantes. Caso essas
células não consigam matar a vítima, o filamento se contrai e carrega a presa
para a extremidade mais distante da própria bateria, onde outra descarga de
células urticantes maiores paralisa a vítima. Se a presa continua a lutar, outra
contração a desloca bateria acima até a extremidade próxima, onde as células
urticantes maiores e mais poderosas finalmente põem fim ao tormento, antes de
mandar a presa vencida para o sifão a fim de ser ingerida.


Jennifer E. Purcell (ver Bibliografia) apresentou recentemente evidências
adicionais de que os indivíduos alimentadores e captores não constituem uma
simples rede passiva, como a teia de uma aranha, mas que desempenham um
papel ativo na obtenção de comida. Ela descobriu que as baterias de células
urticantes de duas espécies funcionam como chamarizes, lembrando, tanto na
forma quanto no movimento, o zooplâncton pequeno que serve de presa para os
animais ingeridos pelos sifonóforos. As baterias da Agalma okeni parecem um
copépode com duas longas antenas; cada uma se contrai de modo independente
em intervalos variáveis de cinco a trinta segundos, criando uma série de
movimentos que simula as arrancadas e o modo de nadar de um cardume de
copépodes (cardume ou seja lá qual for o nome que se dá a um agregado desses
minúsculos artrópodes planctônicos). Para finalizar a história, Purcell abriu os
estômagos da Agalma e encontrou os restos de três criaturas, todas predadoras de
copépodes. As baterias de outra espécie, a Athorybia rosacea, lembram as larvas
planctônicas de peixes. Elas também se contraem rapidamente, imitando os
movimentos de natação e alimentação dos seus modelos.
Os gonozóides, a terceira categoria de indivíduos polipóides, são estruturas
reprodutoras. Trata-se em geral de tubos simples, pequenos, sem boca ou
movimento. Mas deles brotam os indivíduos medusóides, os quais produzem
então células reprodutoras que darão origem à geração seguinte de sifonóforos.
Os indivíduos medusóides de um sifonóforo complexo compreendem quatro
tipos básicos: natatórios, flutuadores, protetores e reprodutores. Os órgãos
natatórios, ou nectóforos, são medusas com modificações mínimas —
basicamente as campânulas natatórias superiores sem os tentáculos inferiores.
Alguns sifonóforos carregam várias fileiras ordenadas de nectóforos; as suas
contrações musculares rítmicas impelem a criatura, muitas vezes em trajetórias
elaboradas, arqueadas. Os flutuadores passivos, ou pneumatóforos, são cheios de
gás (de composição semelhante à do ar comum) e mantêm o sifonóforo na
superfície ou em alguma profundidade intermediária. Sua origem é um objeto de
controvérsia. Tidos durante um bom tempo como indivíduos medusóides
modificados, alguns biólogos agora consideram os pneumatóforos como pólipos
ainda mais elaboradamente transformados. Os dois sifonóforos mais conhecidos,
a Velella e a Physalia, constroem grandes flutuadores mas não possuem nenhum
nectóforo. Movem-se passivamente, portanto, ao sabor dos ventos e correntes,
muitas vezes sendo carregados em grande número para baías e praias.
Os órgãos de cobertura, ou brácteas, são as estruturas mais curiosamente
modificadas de todas. Costumam ser chatas, com o formato de prisma ou folha, e
tão diferentes em forma e função de um indivíduo medusóide que dificilmente
suspeitaríamos de sua origem se não pudéssemos acompanhar seu crescimento e
seu brotamento.
As medusas reprodutoras, ou gonóforos, brotam de indivíduos polipóides, os
gonozóides discutidos anteriormente. Em algumas poucas espécies, os gonóforos
são libertados para flutuar no oceano como objetos independentes. Mas eles não
podem se alimentar e morrem pouco depois de lançarem suas células sexuais. Na
maioria dos sifonóforos, porém, os gonóforos nunca se separam da colônia-mãe
e permanecem grudados a ela como uma espécie de órgão sexual.
O paradoxo dos Siphonophora expressa uma questão que venho evitando, ou
melhor, que venho contornando, ao apresentar essa taxonomia de indivíduos ou
partes. Descrevi as diversas estruturas natatórias, flutuadoras, protetoras,
alimentares, captoras e reprodutoras como indivíduos — isto é, como
organismos polipóides ou medusóides individuais. Usando a história
evolucionária como critério, esta designação é, quase com certeza, correta e
aceita por praticamente todos os biólogos. Pela história, os sifonóforos são
colônias; eles evoluíram a partir de agregados mais simples de organismos
distintos, cada um deles razoavelmente completo e capaz de executar uma série
de funções (como nas modernas colônias de coral). Mas a colônia tornou-se tão
integrada, e os diferentes indivíduos tão especializados em forma e tão
subordinados ao todo, que o agregado inteiro agora funciona como um único
indivíduo, ou superorganismo.




Os indivíduos de um sifonóforo não conservam mais a sua individualidade
num sentido funcional. Estão especializados para uma única tarefa e atuam como
órgãos de uma entidade maior. Não parecem organismos e não poderiam
sobreviver como criaturas separadas. A colônia inteira funciona como um único
ser, e as suas partes (ou indivíduos) movem-se de maneira coordenada. Embora
cada nectóforo (ou campânula natatória) conserve seu próprio sistema nervoso,
um aparelho nervoso comum liga o conjunto inteiro. Os impulsos ao longo desse
caminho regulam as fileiras de nectóforos de uma maneira integrada que permite
que toda a colônia (ou animal) se mova com graça e precisão. Tocando-se o
flutuador da Nanomia em uma ponta, os nectóforos da outra extremidade
contraem-se para remover o animal (ou colônia, se quiserem) do perigo. Os
sifões bombeiam a comida digerida ao longo do tubo comum ao resto da colônia,
mas os sifões vazios também se juntam à peristalse geral, e, como resultado, a
comida chega à colônia (ou organismo) inteira de modo mais eficaz.
Os premeditados parênteses do último parágrafo sublinham o paradoxo
fundamental. Saber se devemos chamar o sifonóforo de colônia ou organismo —
pois ele é uma colônia pela história evolutiva mas, pelas funções atuais, parece
mais um organismo. E o que dizer das partes ou indivíduos? Pela história, trata-
se de entidades individuais modificadas; pela função atual, trata-se de órgãos de
uma entidade maior. O que se deve fazer?
Esta questão alimentou o grande debate dos sifonóforos na história natural
do século XIX. T. H. Huxley estudou sifonóforos durante seu longo período de
aprendizado no mar, a bordo do H. M. S. Rattlesnake (menos famoso que a
aventura de Darwin no Beagle, mas também exemplo do mesmo estilo amplo,
exemplar e, em boa parte, extinto, de treinamento em história natural). Ele
interpretou os sifonóforos como organismos convencionais, as suas partes como
órgãos verdadeiros e não como indivíduos modificados. Huxley usou os
sifonóforos como exemplo principal num famoso ensaio sobre a natureza da
individualidade na biologia.
Louis Agassiz estudou a “caravela-portuguesa” nos litorais de seu país
adotivo, os Estados Unidos (incluí neste ensaio sua bela litografia de Physalia) e
decidiu que os sifonóforos são uma colônia, e a sua integração um sinal da obra
divina.
Ernst Haeckel, artista e naturalista extraordinaire, descreveu os sifonóforos
coletados durante uma das mais famosas expedições científicas de oceanografia,
a viagem do H. M. S. Challenger, 1873-1876. Com seu relato ele publicou uma
série de gravuras (da qual fazem parte todas as outras que ilustram este ensaio),
desde então inigualáveis em beleza (embora um tanto deficientes em precisão, já
que Haeckel muitas vezes acrescentava um toque de simetria mais acentuada em
benefício do efeito artístico). Haeckel também inclui várias gravuras de
sifonóforos no seu Kunstformen der Natur (Formas artísticas na natureza) de
1904 — a grande série de cem litografias, com plantas e animais dispostos de
forma fantasticamente distorcida, com uma simetria ondulante, na melhor
tradição da então reinante art nouveau, tão bem personificada nos quiosques
contemporâneos do metrô de Paris.
A teoria dos sifonóforos de Haeckel exigiria um ensaio inteiro para ser
explicada e explorada, mas ele tentou uma mediação entre Huxley e Agassiz,
considerando essas criaturas em parte como colônias (a teoria poliindividual, em
suas palavras) e em parte como organismos (a teoria poliorgânica). Haeckel
também usou os sifonóforos, como Huxley o fizera, para ilustrar, por meio de
uma dúbia analogia, as suas opiniões sobre a organização apropriada das
sociedades humanas. No seu Über Arbeitsheilung in Natur und Menschenleben
(Sobre a divisão de trabalho na natureza e na vida humana), ele comparou as
colônias simples de outros cnidários com o estilo de vida dos humanos
“primitivos” e a sua divisão limitada de trabalho, aplicada a tarefas repetitivas,
executadas por todos: “Os povos selvagens da natureza, que permaneceram no
nível mais baixo até nossos dias, carecem tanto de cultura quanto de divisão de
trabalho — ou limitam a divisão de trabalho, como a maioria dos animais, às
diferentes tarefas dos dois sexos.” Ele então comparou as colônias complexas de
sifonóforos com os “avanços” que a divisão de trabalho permite nas sociedades
humanas “superiores” — inclusive a guerra moderna, onde instrumentos de
destruição “requerem centenas de mãos humanas, trabalhando de modos e
maneiras diferentes”.
Podemos sugerir agora alguma solução para este velho debate, alguma
mediação possível entre dois critérios legítimos que parecem oferecer resultados
antagônicos — o critério da história sustentando a teoria poliindividual (os
sifonóforos são colônias, e as suas partes são indivíduos) e o critério da função
atual sustentando a teoria poliorgânica (os sifonóforos são organismos, e as suas
partes são órgãos)? Podemos inclinar a balança a favor de um ou de outro
parecer invocando o terceiro grande critério da história natural — crescimento e
forma?
O crescimento e a forma nos fornecem um embarras de richesse ao nos
apresentar evidências a favor e contra ambas as teorias. Como forte ponto a
favor da teoria poliorgânica, os sifonóforos se desenvolvem a partir de um único
óvulo fertilizado. Um sifonóforo começa a vida inequivocamente como um
indivíduo — não deveríamos considerar qualquer desenvolvimento posterior
como uma elaboração deste indivíduo fundador? Além disso, o sifonóforo adulto
age como um objeto distinto. Muitas espécies exibem uma simetria definida e
complexa que governa todas as partes consideradas em conjunto. Algumas
caravelas, por exemplo, surgem em versões destras e canhotas.
Contudo, podemos também citar bons argumentos a favor da teoria
poliindividual. Sabe-se que cada colônia inicia a vida como um óvulo único, mas
então desenvolve uma série de entidades — indivíduos plenos, neste sentido —
por meio de brotamento a partir de um talo comum. Este modo de crescimento é
familiar em muitos agregados convencionalmente considerados como colônias.
Um pé de bambu pode ter sua origem remontada a uma única semente, e, no
entanto, em geral vemos cada caule brotado como um indivíduo.
Além disso, estruturas altamente especializadas às vezes carregam partes
vestigiais que servem de testemunho da sua condição de indivíduos. Na teoria
poliindividual, por exemplo, os nectóforos são medusas que perderam todos os
órgãos alimentares e digestivos, conservando apenas o guarda-chuva das águas-
vivas. Por outro lado, alguns nectóforos desenvolvem tentáculos rudimentares;
existe uma espécie em que os tentáculos conservam até mesmo os ocelos. As
brácteas protetoras são as partes mais modificadas e especializadas dos
sifonóforos, mas as brácteas de duas espécies conservam uma boca vestigial —
uma indicação de que elas surgiram como indivíduos medusóides plenos.
Mais uma vez a questão parece duvidosa. Poderíamos solucionar nosso
paradoxo se o crescimento ocorresse em um dos dois modos — mas a natureza
não é obsequiosa. Se todas as estruturas iniciassem o crescimento como
indivíduos completos, com um conjunto completo de órgãos, e então perdessem
os pedaços desnecessários à medida que se especializassem para as funções de
nadar, proteger ou comer, a teoria poliindividual ganharia um bom impulso. Se
os brotos do talo principal começassem como indivíduos completos e então se
desarticulassem — as partes em forma de campânula tornando-se nectóforos e as
partes tentaculares tornando-se sifões, por exemplo — então a teoria
poliorgânica se afirmaria. Mas a maioria das partes especializadas simplesmente
cresce como as encontramos. Os nectóforos diferenciam-se como nectóforos, as
brácteas como brácteas. Estamos imersos num conflito insolúvel entre critérios
igualmente legítimos: brotos distintos crescem como um indivíduo com partes
especializadas como um órgão. O que dizer, por exemplo, de um gonóforo, a
medusa reprodutora degenerada que brota de um pólipo? Se ela se separa da
colônia, podemos achar melhor considerar o gonóforo como um organismo. Mas
ela não tem boca e não pode se alimentar: deve, portanto, morrer após liberar as
células sexuais. Deveríamos chamar de indivíduo uma máquina reprodutora tão
limitada? E se o gonóforo permanece ligado à colônia, como geralmente faz,
deveríamos considerá-lo como algo mais que um órgão sexual?
Quando uma investigação se torna tão intrincada, somos obrigados a
suspeitar que estamos indo pelo caminho errado. Temos de voltar, mudar as
marchas, e reformular o problema, não perseguir cada nova minúcia de
informação ou nuance de argumento no velho estilo, o tempo todo com a
esperança de que a nossa arredia solução aguarda um item crucial ainda não
descoberto.
Em alguns aspectos, a natureza se nos apresenta como continuidades, não
como objetos distintos com fronteiras nítidas. Uma das muitas continuidades da
natureza parte das colônias, numa ponta, até os organismos, na outra. Mesmo os
termos básicos — organismo e colônia — não têm definições precisas e
inequívocas. Podemos, porém, usar os dois critérios do nosso vernáculo como
guia. Inclinamo-nos a chamar um objeto biológico de organismo se ele não
mantiver nenhuma ligação física permanente com outros, e se as suas partes
forem tão bem integradas que operem apenas em coordenação e para o
funcionamento adequado do todo.
A maioria das criaturas encontra-se perto de uma ponta ou da outra dessa
continuidade, e não temos nenhum problema para defini-las como organismos
ou colônias. As pessoas são organismos — embora todas as criaturas
multicelulares tenham provavelmente surgido como colônias há cerca de um
bilhão de anos. Essa origem é tão distante, e tanta coisa aconteceu desde então,
que não detectamos nenhum sinal dessa condição de colônia em nosso
funcionamento atual. Assim, somos organismos em qualquer acepção sensata do
termo. Os corais construtores de recifes são colônias porque cada pólipo é uma
criatura completa, independente, plenamente funcional por si só, apesar de
ligada a seus semelhantes.
Mas como a natureza construiu uma continuidade que vai da colônia ao
organismo, devemos encontrar ambiguidade no centro. Será impossível dar
nome a alguns casos — devendo-se isso a uma propriedade da natureza e não a
uma imperfeição do conhecimento. Considere-se uma progressão que vai de um
organismo inequívoco até o centro indefinível. As sociedades humanas são feitas
de organismos; cada pessoa é geneticamente distinta e espacialmente separada. E
as formigas? Ainda optamos pela denominação de organismos, embora as
formigas possam submergir sua individualidade em sociedades constituídas de
modo tão rígido que alguns naturalistas se referem a uma colônia de formigas
como um superorganismo.
E os afídios? A nitidez começa a se desfazer. Todos os membros de um
clone de afídios são fêmeas; cada mãe fundadora desenvolve seus filhos dentro
do próprio corpo sem fecundação. Toda a sua prole é geneticamente idêntica. O
clone é um agregado de indivíduos separados ou um corpo evolucionário gigante
com vários milhares de partes separadas, todas idênticas? (Um proeminente
biólogo evolucionário recentemente defendeu este segundo parecer).
E um pé de bambu? Mais difícil ainda. Todos os caules são membros de um
clone; são idênticos geneticamente e ligados a um rizoma subterrâneo comum.
Cada planta acima do chão é um indivíduo ou uma parte? Em geral, ainda
optamos por indivíduos (embora alguns biólogos levantem objeções) porque
cada planta parece quase a mesma coisa e tem um conjunto completo de
estruturas (Como os botânicos enfrentam este dilema com mais frequência que os zoólogos, eles criaram
uma terminologia para esses casos ambíguos — “touceira” para o agregado inteiro e “ramos” para cada
conjunto repetido de partes. Essa nova terminologia não é uma solução, mas apenas um reconhecimento
formal de que a questão não pode ser solucionada com nossos conceitos usuais de individualidade).
Por fim, o que dizer, então, dos sifonóforos? Estamos bem no meio de uma
continuidade, e não podemos oferecer uma resposta clara. Pela história, as partes
de um sifonóforo são indivíduos; pela função atual, órgãos, pelo crescimento,
um pouco de cada coisa. Nossos critérios de separação e operação independente
falharam, mas não podemos rejeitar uma história que ainda está bem diante dos
nossos olhos.
Os sifonóforos não transmitem a mensagem — um tema favorito do
romantismo irracional — de que a natureza nada mais é que um todo gigantesco,
com todas as suas partes intimamente ligadas e interagindo numa harmonia
superior, inefável. A natureza compraz-se com fronteiras e distinções; habitamos
um universo de estruturas. Mas como o nosso universo de estruturas evolui
historicamente, ele nos oferece fronteiras imprecisas, onde um tipo de coisa se
converte gradualmente em outra. Os objetos presentes nessas fronteiras
continuarão a nos confundir e frustrar enquanto persistirmos em seguir velhos
hábitos de pensamento e insistirmos em que todas as partes da natureza sejam
rigidamente classificadas para satisfazer os nossos pobres e sobrecarregados
intelectos.
O paradoxo do sifonóforo tem uma respostazinha, e até que profunda. A
resposta é que fizemos a pergunta errada — uma pergunta que não tem nenhum
significado porque seus pressupostos violam os processos da natureza. Os
sifonóforos são organismos ou colônias? Os dois e nenhum; eles se encontram
no meio de uma continuidade, onde uma coisa se transforma gradualmente em
outra.
O paradoxo do sifonóforo é esclarecedor, não desalentador. Não pode ser
solucionado, mas quando compreendemos por que, compreendemos uma grande
verdade sobre a estrutura da natureza. Os sifonóforos transmitem a mesma
mensagem que aquele velho caso da senhora que vai ao açougue certa manhã de
sexta-feira, procurando um frango grande para a refeição do sábado. O
açougueiro olha no depósito e descobre com pesar que só tem um animal bem
magro. Ele o retira com ostentação e coloca-o na balança. Duas libras. “Muito
pequeno”, diz a senhora. Ele leva embora o animal, finge procurar outro em
meio a uma pilha de alternativas inexistentes, tirando por fim o mesmo frango,
colocando-o na balança, desta vez, dando uma ajudazinha com o polegar. Três
libras. “Ótimo”, diz a senhora. “Vou levar os dois” (O dr. S. I. Joseph contou-me depois
ter visto a mesma senhora mais tarde, naquele mesmo dia, numa barraca de frutas. Ela estava perguntando
pelo preço da toranja. “Duas por trinta e cinco cents”, disseram. “Quanto custa uma?”, ela perguntou.
“Vinte cents”, foi a resposta. “Ótimo”, ela disse: “Vou levar a outra”). Coisas que parecem
separadas muitas vezes são os lados diferentes de uma unidade.




2. Teoria e percepção

6. O umbigo de Adão


A ampla folha da figueira serviu muito bem aos nossos antepassados
artísticos como um escudo botânico contra a exibição indecente de Adão e Eva,
nossos progenitores nus, na primitiva bem-aventurança e na inocência do Éden.
Contudo, em várias pinturas antigas, a folhagem esconde mais do que os órgãos
genitais de Adão; um ramo serpenteante cobre também o seu umbigo. Se o pudor
prescrevia a cobertura genital, um motivo bem diferente — o mistério — punha-
lhe uma planta sobre o ventre. Num debate teológico mais portentoso que a
velha discussão sobre anjos em cabeças de alfinetes, muitos fiéis sinceros
perguntaram a si mesmos se Adão tinha ou não umbigo.
Afinal, ele não nascera de uma mulher e não precisava de nenhum resquício
de seu cordão umbilical inexistente. No entanto, ao criar um protótipo, Deus não
faria o primeiro homem como todos os outros que viriam a seguir? Deus não
iria, em outras palavras, criá-lo com a aparência de preexistência? Na falta de
uma orientação definida para a solução desse embaraçoso problema, e não
querendo incorrer na ira de ninguém, muitos pintores literalmente cercaram e
cobriram o ventre de Adão.
Alguns séculos mais tarde, quando a então nascente ciência da geologia
colhia provas da imensa antiguidade da Terra, alguns defensores da interpretação
literal da Bíblia ressuscitaram essa velha discussão, aplicando-a ao planeta
inteiro. Os estratos geológicos e os fósseis neles sepultados certamente pareciam
representar um registro sequencial de incontáveis anos, mas Deus não criaria a
Terra com a aparência de preexistência? Por que não deveríamos acreditar que
ele criou as camadas geológicas e os fósseis para dar à vida moderna uma ordem
harmoniosa, conferindo-lhe um sensato (ainda que ilusório) passado? Assim
como Deus proporcionou um umbigo a Adão para enfatizar a continuidade nos
homens futuros, ele concedeu a um mundo intacto a aparência de uma história
ordenada. Desse modo, a Terra podia ter apenas alguns milhares de anos, como o
Gênesis afirmava literalmente, e ainda assim conservar o registro de uma história
aparente de eras incontáveis.
Esse argumento, tantas vezes citado como exemplo principal da razão em sua
faceta mais perfeita e preciosamente ridícula, foi apresentado com a maior
seriedade e amplitude pelo naturalista britânico Philip Henry Gosse em 1857.
Gosse homenageou adequadamente o contexto histórico ao escolher o título de
seu volume. Ele lhe deu o nome de Omphalos (umbigo, em grego), em
homenagem a Adão, e acrescentou como subtítulo: Uma tentativa de desatar o
nó geológico.
Como Omphalos é um disparate tão espetacular, os leitores podem perguntar,
justificadamente, por que me proponho a discuti-lo. Faço-o, antes de mais nada,
porque o seu autor era um homem muito sério e fascinante, e não um excêntrico
ou incorrigível insatisfeito. Qualquer paixão honesta merece a nossa atenção,
ainda que apenas pelo mais antigo dos motivos já declarado: o famoso Homo
sum: humani nihil a me alienum puto de Terêncio (sou humano e, portanto, não
indiferente a nada que tenha sido feito por humanos).
Philip Henry Gosse (1810-1888) foi o David Attenborough de sua época, o
melhor popularizador na Grã-Bretanha dos fascínios da natureza. Ele escreveu
uma dúzia de livros sobre plantas e animais, fez várias conferências para
públicos populares e publicou várias dissertações técnicas sobre invertebrados
marinhos. Além disso, numa época que encontrava no forte sentimento religioso
um modo de expressar paixões humanas que não tinham outro escoadouro, ele
era um radical e empenhado fundamentalista da seita dos Irmãos de Plymouth.
Embora a sua História das anémonas marinhas britânicas e outras divagações
sortidas de história natural não sejam mais lidas, Gosse mantém certa
notoriedade como a figura paterna daquela obra clássica de auto-análise e
confissão pessoal, típica do fim da era vitoriana, o maravilhoso relato, de autoria
de seu filho Edmund, da luta de um jovem contra o sufocante extremismo
religioso imposto por um pai atencioso e amado — Father and Son.
Meu segundo motivo para considerar Omphalos invoca o mesmo tema que
envolve tantos desses ensaios sobre as pequenas singularidades da natureza:
exceções realmente provam regras (provam, isto é, no sentido de submeter à
prova ou testar, não de confirmar). Se você quer compreender o que as pessoas
comuns fazem, um dissidente sério irá ensiná-lo mais que dez mil sólidos
cidadãos. Quando entendermos por que Omphalos é tão inaceitável (e, a
propósito, não é pelo motivo que comumente se alega), compreenderemos
melhor como a ciência e a lógica útil procedem. De qualquer modo, como
exercício na antropologia do conhecimento, Omphalos não tem paralelo — pois
a sua incomparável estranheza surgiu na mente de um imperturbável inglês, cujo
caráter geral e cenário cultural podem ser vistos como similares aos nossos, ao
passo que os sistemas exóticos de culturas estrangeiras são terra incógnita tanto
pelo conteúdo quanto pelo contexto.
Para compreender Omphalos, devemos começar com um paradoxo. O
argumento de que as camadas geológicas e os fósseis foram todos criados
simultaneamente com a Terra e que apresentam apenas uma ilusão de tempo
decorrido seria apreciado com mais facilidade se o seu autor fosse um teólogo
urbano, de gabinete, sem qualquer sentimento ou afeição pelas obras da
natureza. Mas como era possível que um naturalista entusiástico, que passara
dias, ou melhor, meses, em excursões geológicas, que estudara fósseis por horas
e horas, aprendendo a distingui-los e memorizando seus nomes, ficasse satisfeito
com a perspectiva de que esses objetos de sua devotada atenção nunca
houvessem existido — que fossem, na verdade, uma espécie de piada grandiosa
perpetrada contra nós pelo Senhor de Tudo?
Philip Henry Gosse foi o melhor naturalista descritivo de seus dias. Seu filho
escreveu: “Como compilador de fatos e organizador de observações, ele não teve
rival naquela época.” O problema encontra-se na costumeira caricatura de
Omphalos como sendo uma afirmação de que Deus, ao modelar a Terra, havia
mentido, de modo consciente e elaborado, para testar a nossa fé ou apenas para
satisfazer algum inescrutável acesso de humor arcano. Gosse, tão
fervorosamente comprometido com seus fósseis e com seu Deus, propôs uma
interpretação conflitante, que nos mandava estudar geologia com diligência e
respeitar todos os seus fatos, muito embora eles não possuíssem existência
alguma no tempo real. Quando entendermos por que um empiricista dedicado
pôde aceitar o argumento de Omphalos (“criação com aparência de
preexistência”), só então poderemos compreender as suas falácias mais
profundas.
Gosse inicia sua argumentação com uma premissa central dúbia. Todos os
processos naturais, declarou ele, movem-se infinitamente num círculo: de ovo
para galinha para ovo, de semente para carvalho para semente.

Esta, então, é a ordem de toda a natureza orgânica. Assim que nos achamos
em alguma parte do curso, vemo-nos correndo numa trilha circular, tão
infinita quanto o curso de um cavalo cego num moinho. ... [Nos moinhos
pré-mecanizados, os cavalos usavam antolhos ou, triste dizer, eram
efetivamente cegados, para que continuassem a andar em círculos e não
tentassem seguir em frente, como tendem a fazer os cavalos que se valem de
orientações visuais.] Esta não é a lei de uma espécie particular, mas de todas:
ela permeia todas as classes de animais, todas as classes de plantas, desde a
majestosa palmeira ao protocolo, desde a mônada ao homem: a vida de todo
ser orgânico está girando num círculo interminável, ao qual não se sabe
como atribuir qualquer início. ... A vaca é uma sequencia tão inevitável do
embrião, quanto o embrião é da vaca.

Quando Deus cria, e Gosse não alimentava a menor dúvida de que todas as
espécies haviam surgido por mando divino, sem nenhuma evolução subsequente,
ele deve surgir (ou “irromper”, como escreveu Gosse) em algum lugar desse
círculo ideal. Seja qual for o lugar em que Deus penetra no círculo (ou “coloca a
hóstia da criação”, como expressou metaforicamente Gosse), seu produto inicial
deve carregar traços de estágios anteriores do círculo, mesmo que esses estágios
não tenham qualquer existência no tempo real. Se Deus escolheu criar humanos
como adultos, seus cabelos e unhas (para não falar de seus umbigos)
testemunham um crescimento anterior que nunca ocorreu. Mesmo que ele decida
nos criar como um simples óvulo fertilizado, essa forma inicial implica o ventre
de uma mãe fantasma e dois progenitores inexistentes para a transmissão do
fruto da herança.

A criação nada mais pode ser que uma série de irrupções em círculos...
Supondo que a irrupção tenha ocorrido na parte do círculo que melhor nos
aprouver, e variando indefinidamente esta condição de acordo com nossa
vontade, não podemos evitar a conclusão de que cada organismo foi desde o
início marcado com os antecedentes de um ser anterior. Mas como a criação
e a história anterior são incompatíveis entre si, como a própria ideia da
criação de um organismo exclui a ideia da preexistência desse organismo ou
de qualquer parte dele, conclui-se que, na medida em que testemunham o
tempo, esses antecedentes são falsos.

Gosse então inventou uma terminologia para contrastar as duas partes de um
círculo antes e depois de um ato de criação. Ele denominou como “procrônico”,
ou ocorrendo fora do tempo, as aparências de preexistência efetivamente
modeladas por Deus no momento da criação, mas que parecem indicar estágios
anteriores no círculo da vida. Os eventos subsequentes, que ocorrem após a
criação, e que se desenrolam no tempo convencional ele chamou de
“diacrônicos”. O umbigo de Adão era procrônico, os 930 anos de sua vida
terrena, diacrônicos.
Gosse dedicou mais de trezentos páginas, mais ou menos 90% de seu texto, a
uma simples lista de exemplos para uma pequena parte de sua argumentação
completa, a seguinte — se as espécies surgem por meio de criação repentina em
qualquer ponto de seu ciclo vital, a sua forma inicial deve apresentar aparências
ilusórias (procrônicas) de preexistência. Permitam-me escolher apenas uma
dentre as suas numerosas ilustrações, para caracterizar seu estilo de
argumentação e apresentar sua prosa gloriosamente floreada. Se Deus criou os
vertebrados como adultos, afirmava Gosse, seus dentes indicam um passado
procrônico nos padrões de uso e substituição.
Gosse leva-nos numa excursão imaginária pela vida, apenas uma hora depois
de sua criação no meio selvagem. Ele se detém no litoral e perscruta as ondas
distantes:

Vejo lá ao longe um... terrível tirano do mar. ... E o medonho tubarão. Quão
furtivamente desliza ele. ... Olhemos dentro de sua boca. ... Não é mesmo
uma coleção aterradora de facas e lancetas? Não é mesmo uma valise de
instrumentos cirúrgicos suficiente para lhe dar arrepios? O que seria a
amputação de sua perna para esta fileira de escalpelos triangulares?

No entanto, os dentes crescem em espirais, um atrás do outro, cada um
esperando por sua vez enquanto os dentes em uso se desgastam e caem:

Segue-se, portanto, que os dentes que agora vemos, eretos e ameaçadores,
são os sucessores de dentes antigos que se foram, e que estiveram dormentes
como os que agora vemos por trás deles. ... Daí, os fenômenos obrigam-nos a
atribuir uma longa existência passada a esse animal, ao qual, no entanto, a
vida foi dada há uma hora.

Caso se tente argumentar que os dentes atualmente em uso são os primeiros
membros da espiral, não implicando predecessor algum, Gosse replica dizendo
que o seu estado de desgaste indica um passado procrônico. Caso se sugira que
esses dentes iniciais poderiam estar incólumes num tubarão recém-criado, Gosse
segue rumo a outro exemplo.

Adiante, para um rio mais largo. Aqui chafurda e se diverte o enorme
hipopótamo. O que podemos dizer de sua dentição?

Todos os hipopótamos adultos modernos possuem caninos e incisivos
profundamente desgastados e lascados, um sinal claro de uso ativo no decorrer
de uma longa vida. Não podemos, porém, assim como dizemos com o nosso
tubarão, argumentar que um hipopótamo recém-criado poderia ter dentes frontais
agudos e intactos? Gosse argumenta, corretamente, que nenhum hipopótamo
conseguiria funcionar de forma adequada com dentes em tal estado. Um
hipopótamo criado adulto deve ter dentes gastos como provas de um passado
procrônico:


As superfícies polidas dos dentes, gastos pela ação mútua, fornecem uma
evidência notável do lapso de tempo. Alguém possivelmente pode objetar. ...
“Que direito você tem de supor que esses dentes estavam gastos no momento
de sua criação, admitindo-se que o animal foi criado adulto. Eles não podiam
estar inteiros?” Eu retruco: Impossível: os dentes do hipopótamo ser-lhe-iam
perfeitamente inúteis, exceto em sua condição desgastada: mais ainda, os
caninos intactos teriam efetivamente impedido que suas mandíbulas se
fechassem, sendo necessário então manter a boca escancarada até que o atrito
fosse feito; bem antes do que, é claro, ele morreria de fome. ... O grau de
atrito é meramente uma questão de tempo. ... Que evidência distinta de ação
passada e, no entanto, no caso de um indivíduo criado, quão ilusória!

Isso poderia se prolongar ao infinito (é o que quase acontece no livro), mas
permitam-me apenas mais um exemplo dentário. Gosse, subindo na trajetória
topográfica de sua viagem imaginária, alcança uma floresta interior e encontra a
Babirussa, o famoso porco asiático com caninos superiores salientes que se
voltam para trás, quase perfurando-lhe o crânio:


Na folhagem cerrada deste bosque de noz-moscada há uma babirrussa;
vamos examiná-la. Aqui está ela, quase submersa em seu tépido lago.
Gentil suíno da presa circular, faça o obséquio de abrir sua boca formosa!

O porco, criado por Deus há apenas uma hora, aquiesce, exibindo desse
modo seus molares gastos e, em particular, os próprios caninos arqueados,
produtos de um crescimento prolongado e contínuo.
Acho esta parte da argumentação de Gosse inteiramente satisfatória como
solução, dentro dos limites de seus pressupostos, para aquele clássico dilema de
raciocínio (comparável em importância aos anjos em cabeças de alfinete e ao
umbigo de Adão): “O que veio primeiro, o ovo ou a galinha?” A resposta de
Gosse: “Qualquer um, à vontade de Deus, com traços procrônicos do outro.”
Mas os argumentos são tão bons apenas quanto às suas premissas, e o inspirado
disparate de Gosse fracassa porque uma suposição alternativa, agora aceita como
indubitavelmente correta, torna a questão irrelevante — ou seja, a própria
evolução. Os círculos de Gosse não giram eternamente; cada ciclo vital remonta
a uma linhagem proveniente de substâncias químicas inorgânicas de um oceano
primitivo. Se os organismos surgiram por meio de atos de criação ab nihilo,
então o argumento de Gosse sobre traços procrônicos deve ser respeitado. Por
outro lado, se os organismos evoluíram até o seu estado atual, Omphalos
descamba para a irrelevância colossal. Gosse compreendeu muito bem esta
ameaça e preferiu enfrentá-la rejeitando-a abruptamente. A evolução,
concordava ele, desacreditava o seu sistema, mas apenas um tolo podia aceitar
tão patente bobagem e idolatria. (Gosse escreveu Omphalos dois anos antes que
Darwin publicasse A origem das espécies).

Se alguém prefere sustentar, como muitos fazem, que as espécies foram
gradualmente trazidas à sua atual maturidade a partir de formas mais
humildes... ele tem toda a liberdade de manter a sua hipótese, mas eu nada
tenho a ver com isso. Estas páginas não o tocarão.

No entanto, Gosse veio então a se defrontar com uma segunda e maior
dificuldade: o argumento procrônico pode funcionar para organismos e seus
ciclos vitais, mas como pode ser aplicado à Terra inteira e aos seus registros
fósseis — porque Gosse pretendia que Omphalos fosse um tratado que
reconciliasse a Terra com a cronologia bíblica, “uma tentativa de desatar o nó
geológico”. Suas afirmações sobre partes procrônicas de organismos têm a
finalidade apenas de apoio colateral para o argumento geológico principal. E a
asserção geológica de Gosse fracassa precisamente porque repousa nessa
analogia tão dúbia com aquilo que ele reconhece (já que lhe deu tão mais
espaço) como um argumento muito mais forte sobre os organismos modernos.
Gosse tentou bravamente estender à Terra inteira as mesmas duas premissas
que faziam com que sua argumentação funcionasse quando aplicada aos
organismos. Mas um mundo relutante rebelou-se contra tal raciocínio forçado e
Omphalos desabou sob o peso de toda a sua ilogicidade. Gosse primeiro tentou
argumentar que todos os processos geológicos, assim como os ciclos vitais
orgânicos, se movem em círculos:

O problema a ser solucionado, então, antes que possamos determinar com
certeza a questão da analogia entre o globo e o organismo, é esta: A história
vital do globo é um círculo? Se é (e existem muitos motivos para que isso
seja provável), então estou certo de que o procronismo deve ter sido evidente
na sua criação, já que não existe nenhum ponto em um círculo que não
implique pontos anteriores.

Gosse, porém, nunca poderia documentar qualquer ciclicidade geológica
inevitável, e a sua argumentação se perde num mar de retórica e alusões bíblicas
tiradas do Eclesiastes: “Todos os rios entram no mar, e o mar nem por isso
transborda; os rios voltam ao mesmo lugar de onde saíram para tornarem a
correr.”
Em segundo lugar, para tornar os fósseis procrônicos, Gosse tinha de
estabelecer uma analogia tão cheia de falhas que faria o mais ardente verificador
mental estremecer — o embrião está para o adulto como o fóssil está para o
organismo moderno. Pode-se admitir que galinhas requeiram ovos anteriores,
mas por que deveria um réptil moderno (especialmente para um
antievolucionista como Gosse) estar necessariamente ligado a um dinossauro
anterior como parte de um ciclo cósmico? Um pitão certamente não implica um
sepultamento inelutável de um Triceratops ilusório em camadas geológicas
procrônicas.
Com este compêndio da argumentação de Gosse, temos condições de
resolver o paradoxo proposto no início. Gosse podia aceitar as camadas
geológicas e os fósseis como ilusórios e ainda assim defender o seu estudo
porque ele não considerava a parte “procrônica” de um ciclo menos “verdadeira”
ou informativa do que o seu segmento diacrônico convencional. Deus decretou
dois tipos de existência — uma construída simultaneamente com a aparência de
tempo transcorrido, a outra progredindo sequencialmente. Ambas combinam-se
harmoni-camente para constituir círculos ininterruptos que, em sua ordem e
majestade, nos dão um discernimento dos pensamentos e planos de Deus.
A parte procrônica não é nem uma piada, nem um teste de fé; ela representa
a obediência de Deus à sua própria lógica, dada a sua decisão de ordenar a
criação em círculos. Como pensamentos na mente de Deus, solidificados em
pedra por meio de criação ab nihilo, as camadas geológicas e os fósseis são tão
verdadeiros como se registrassem os produtos do tempo convencional. Um
geólogo deveria estudá-los com o mesmo cuidado e zelo, pois aprendemos as
leis de Deus tanto a partir de seus objetos procrônicos quanto dos diacrônicos. A
escala temporal geológica não é mais significativa como padrão do que como um
mapa dos pensamentos de Deus.

A aceitação dos princípios apresentados neste volume... não afetaria, no
menor grau que fosse, o estudo da geologia científica. O caráter e a ordem
das camadas geológicas; ... as sucessivas floras e faunas; e todos os outros
fenômenos continuariam a ser fatos. Eles continuariam a ser, como são
agora, objetos legítimos de exame e investigação... Ainda poderíamos falar
da duração inconcebivelmente longa do processo em questão, contanto que o
tempo fosse compreendido como ideal, em vez de efetivo — que a duração
foi projetada na mente de Deus, e não que tenha existido realmente.

Assim, Gosse oferecia Omphalos aos cientistas praticantes como uma
solução útil para conflitos religiosos potenciais, não como um desafio aos seus
processos ou à relevância de suas informações.
Seu filho, Edmund, escreveu sobre as grandes esperanças que Gosse nutria
em relação a Omphalos:

Nunca um livro foi lançado com maiores expectativas de sucesso como este
curioso, este obstinado, este fanático volume. Meu pai viveu numa febre de
suspense, esperando pelo tremendo lançamento. Este seu Omphalos, pensava
ele, poria fim a toda a desordem da especulação científica, arremessaria a
geologia nos braços das Escrituras, faria com que o leão pastasse ao lado do
cordeiro.
No entanto, os leitores receberam Omphalos com descrença, escárnio ou,
pior ainda, com um silêncio de espanto. Edmund Gosse prosseguiu:

Ele o ofereceu, com um gesto apaixonado, a ateus e cristãos, igualmente.
Esta tinha de ser a panacéia universal, este, o sistema de terapêutica
intelectual que não poderia deixar de curar todas as doenças da época. Mas,
ai! Ateus e cristãos, igualmente, olharam, riram e jogaram-no fora.

Embora Gosse se reconciliasse com um Deus capaz de criar um passado
ilusório tão minuciosamente detalhado, tal noção era um anátema para a maioria
de seus compatriotas. Os britânicos são um povo prático, empírico, “uma nação
de lojistas”, na famosa expressão de Adam Smith; eles tendem a respeitar os
fatos da natureza de acordo com o seu significado manifesto e raramente veem
com bons olhos os sistemas complexos, de interpretação não óbvia, tão
populares em boa parte do pensamento europeu. O procronismo era
simplesmente demais para se engolir. O reverendo Charles Kingsley, um líder
intelectual de inquestionável devoção tanto a Deus quanto à ciência, deu voz a
um consenso ao declarar que não podia “renunciar à penosa e lenta conclusão de
vinte e cinco anos de estudo de geologia e crer que Deus escrevera nas rochas
uma enorme e supérflua mentira”.
E assim tem acontecido com o argumento de Omphalos desde então. Gosse
não o inventou, e, desde então, uns poucos criacionistas ressuscitaram-no de
tempos em tempos. Mas a ideia nunca foi bem-vinda ou popular porque viola
nossa noção intuitiva da benevolência divina como sendo livre de qualquer
comportamento desonesto — pois, enquanto Gosse via o brilhantismo divino na
ideia de procronismo, a maioria das pessoas não consegue se livrar da teimosa
sensação de que isso cheira a trapaça, velha e deslavada. Nossos modernos
criacionistas americanos rejeitam-no como imputando a Deus um caráter moral
dúbio e optam, ao contrário, pela noção ainda mais ridícula de que as nossas
milhas de camadas fossilíferas são todas produtos do Dilúvio e que podem,
portanto, ser encaixadas na escala de tempo literal do Gênesis.
Mas o que há de tão desesperadamente errado com Omphalos'? Apenas isto,
realmente (e talvez paradoxalmente): o fato de que não podemos inventar um
modo de descobrir se ele está errado — ou, a propósito, certo. Omphalos é o
exemplo clássico de uma noção absolutamente inaveriguável, pois o mundo será
exatamente o mesmo, em todos os seus intrincados detalhes, quer os fósseis e as
camadas geológicas sejam procrônicas, quer sejam produtos de uma história
extensa. Quando percebermos que Omphalos deve ser rejeitado por causa deste
absurdo metodológico, e não por qualquer inexatidão concreta comprovada,
então compreenderemos a ciência como um modo de saber, e Omphalos servirá
seu propósito de contraste ou estímulo intelectual.
A ciência é um processo para colocar à prova e rejeitar hipóteses, não um
compêndio de certo conhecimento. Afirmações cuja incorreção pode ser provada
encontram-se dentro do seu domínio (como enunciados falsos, é claro, mas
como propostas que vão de encontro às exigências do critério metodológico
primário da averiguabilidade). No entanto, as teorias que não podem ser
averiguadas em princípio não são parte da ciência. A ciência é fazer, não
cogitação engenhosa; rejeitamos Omphalos como inútil, não como errado.
O erro profundo de Gosse estava na sua incapacidade de compreender
plenamente este caráter essencial do raciocínio científico. Ele cavou sua própria
sepultura ao enfatizar continuamente que Omphalos não fazia nenhum diferença
prática — que o mundo seria exatamente o mesmo com um passado procrônico
ou diacrônico. (Gosse achava que esta concessão tornaria seu argumento
aceitável para os geólogos convencionais; ele nunca percebeu que podia apenas
levá-los a rejeitar seu esquema inteiro como irrelevante.) “Não sei”, escreveu
ele, “de uma única conclusão, agora aceita, a que se teria de renunciar, exceto a
da cronologia real.”
Gosse enfatizava que não podemos saber onde Deus pôs sua hóstia da
criação no círculo cósmico porque os objetos procrônicos, criados ab nihilo, se
parecem exatamente com produtos diacrônicos do tempo real. Aos que
argumentavam que os coprólitos (excremento fossilizado) provam a existência
de animais ativos, que se alimentavam num passado geológico real, Gosse
retrucava dizendo que assim como Deus criaria adultos com fezes nos intestinos,
assim também ele colocaria pedaços de merda petrificada nas camadas
geológicas por ele criadas. (Não estou inventando este exemplo para conseguir
efeito cômico; você o encontrará na pág. 353 de Omphalos.) Assim, com estas
palavras, Gosse selou o seu destino e colocou-se fora do domínio da ciência:

Agora, repito novamente, não há diferença imaginável a ser percebida entre
o desenvolvimento procrônico e o diacrônico. Todo argumento pelo qual o
fisiologista pode provar a demonstração de que aquela vaca foi um feto no
útero de sua mãe poderá ser aplicado com a mesma força para demonstrar
que a vaca recém-criada foi um embrião alguns anos antes de sua criação. ...
Não há nada nos fenômenos, e não pode haver, que indique um início ali,
não mais do que acolá, ou, na verdade, em qualquer lugar que seja. O início,
como fato, devo saber por meio de testemunho; não tenho meio algum de
inferi-lo a partir dos fenômenos.

Gosse ficou emocionalmente aniquilado pelo fracasso de Omphalos. Durante
as longas noites do inverno de seu desgosto, no frio de janeiro de 1858, ele
sentava-se perto do fogo com o filho de oito anos, tentando evitar os
pensamentos amargos com a discussão dos horríveis detalhes de assassinatos do
passado e do presente. O jovem Edmund ouviu falar de Mrs. Manning, que
enterrou sua vítima em cal viva e foi enforcada em cetim negro; de Burke e
Hare, os vampiros escoceses, e do “mistério da mala”, uma porção de órgãos
humanos cuidadosamente esquartejados pendurada num pilar da Ponte Waterloo.
Este talvez não tenha sido o tema mais adequado para um rapaz impressionável
(Edmund, de acordo com suas próprias lembranças, ficava “quase petrificado de
horror”), mas, ainda assim, dá-me certo conforto pensar que Philip Henry Gosse,
golpeado pela dor de ter recusada a sua teoria inaveriguável, pôde encontrar
refúgio em algo tão inequivocamente real, tão absolutamente concreto.

Pós-escrito

Soube depois que um de meus escritores favoritos, Jorge Luis Borges,
escreveu um breve e fascinante comentário sobre Omphalos (A criação e P. H.
Gosse” em Other Inquisitions, 1937-1952, publicado em 1964 pela University of
Texas Press, tradução de Ruth L. C. Simms). Borges começa citando várias
referências literárias à ausência de umbigo em nossos progenitores primordiais.
Sir Thomas Browne, como metáfora do pecado original, escreve em Religio
Medici (1642), “o homem sem umbigo ainda vive em mim”; e James Joyce, no
primeiro capítulo de Ulisses (o que não se pode encontrar nesse livro incrível!)
diz: “Heva, nua Eva. Ela não tinha umbigo.” Apreciei em particular o adorável
compêndio e o discernimento da conclusão de Borges (embora discorde de seu
segundo ponto essencial): “Gostaria de enfatizar duas virtudes da tese esquecida
de Gosse. Primeiro, a sua elegância algo monstruosa. Segundo: a sua redução
involuntária de uma criação ab nihilo ao absurdo, a sua demonstração de que o
universo é eterno, como pensavam o Vedanta, Heráclito, Espinoza e os
atomistas.”

7. O congelamento de Noé


Petiscos de um passado distante muitas vezes reaparecem em nossos dias
com uma relevância surpreendente. Afinal, o pensamento e a emoção humana
possuem uma universalidade que transcende o tempo e converte os diversos
estágios da história em teatros que fornecem lições aos atores modernos.
Quero fazer um relato de vinte anos da história da geologia britânica — mais
ou menos de 1820 a 1840. O relato mostra a ciência funcionando do melhor
modo possível. Um dos principais geólogos da Grã-Bretanha propôs uma teoria.
Essa proposição, claramente formulada, tinha raízes (como todas as teorias) na
posição social e na constituição psicológica do seu fundador. Mas também era
fundamentada empiricamente e obviamente podia ser posta à prova. A teoria foi
posta à prova e falhou. Seus dois principais defensores retrataram-se
francamente e mais tarde conduziram um esforço para formular explicações
diferentes e mais adequadas para os fenômenos que haviam inspirado a teoria
original.
Em 1823, o reverendo William Buckland (1784-1856), primeiro geólogo
“oficial” da Universidade de Oxford, publicou um tratado científico com um
título notável, que refletia a tentativa do autor de amalgamar seus dois mundos
profissionais — a religião e a geologia. Ele lhe deu o nome de Religuiae
diluvianae, ou Relíquias do dilúvio. Seu subtítulo indicava o tipo de evidência
que Buckland citaria para fundamentar sua teoria sobre a expressão geológica da
catástrofe de Noé: Observações sobre os restos orgânicos contidos em cavernas,
fissuras e cascalho aluvial, e outros fenômenos geológicos que atestam a ação
de um dilúvio universal. A teoria de Buckland foi testada e rejeitada por
geólogos que eram criacionistas e cientistas genuínos. O dilúvio não tem sido
uma questão entre os geólogos durante o último século e meio.
Os fundamentalistas modernos que se autodenominam “criacionistas
científicos” ressuscitaram Noé e fizeram do dilúvio a peça fundamental do seu
sistema. Na verdade, eles atribuem todas as camadas geológicas que contêm
fósseis à ação desse único evento, ao passo que Buckland, de modo muito mais
sensato, buscava identificar apenas a delgada cobertura não consolidada de terras
pretas e cascalhos como produtos do dilúvio universal. O reconhecimento do
dilúvio como agente geológico primário foi ordenado pela lei da “ciência da
criação” do Arkansas, declarada inconstitucional em janeiro de 1982. Não
conheço melhor ilustração da diferença entre ciência e pseudociência do que a
comparação entre a abordagem racional de Buckland — proposição concreta,
teste e rejeição — e o dogmatismo dos fundamentalistas.
Buckland não foi o primeiro geólogo a propor uma ‘ ‘teoria diluviana”
ligando o dilúvio de Noé aos indícios da geologia, mas a sua nova versão
possuía as virtudes irmãs da sensatez e da averiguabilida-de. A vovó das teorias
diluvianas (a que agora é tão anacronicamente defendida pelos criacionistas)
vinha sendo discutida há vários séculos — a ideia de que um único dilúvio havia
produzido todos, ou quase todos, os estratos geológicos. Essa versão já não tinha
mais credibilidade no tempo de Buckland, e ele a rejeitou num único parágrafo,
escrito em 1836, e que ainda é suficiente para refutar o que a nossa maioria
moralista tentou impingir às crianças do Arkansas:

Alguns tentaram atribuir a formação de todas as rochas estratificadas aos
efeitos do Dilúvio Mosaico; uma opinião que é irreconciliável com a enorme
densidade e as subdivisões quase infinitas dessas camadas, e com as
numerosas e regulares sucessões que elas contêm dos restos de animais e
vegetais, os quais diferem mais e mais amplamente das espécies existentes à
medida que os estratos em que os encontramos são mais velhos ou estão
dispostos a profundidades maiores.

Outros geólogos haviam considerado o Dilúvio como um período de
sublevamento da superfície terrestre. Antigas terras afundaram, enquanto novos
continentes emergiram das profundezas oceânicas — explicando desse modo a
presença de conchas fossilizadas no topo de montanhas. Mas Buckland
reconhecia que a Terra tinha uma história antiga, pontuada esporadicamente
(mas com frequência) por episódios de soerguimento. Ele não precisava de um
dilúvio recente para explicar a topografia terrestre e o conteúdo geológico de
suas montanhas.
O dilúvio de Buckland era um episódio menos acidentado, menos
catastrófico, e muito mais fácil de se acreditar. Ele propunha que as águas
diluvianas haviam se erguido acima dos continentes, já então colocados nas suas
posições atuais, haviam-nos mantido submersos apenas por um breve período —
“um dilúvio universal e passageiro”, nas suas palavras — e deixado como
memorial apenas uma camada superficial de terra preta e cascalho e uma série de
características topográficas talhadas pelas águas ao subirem e descerem.
Reliquiae diluvianae não é um tratado teórico bombástico, pomposo e sem
sentido sobre todos os efeitos e causas do Dilúvio, mas um estudo empírico
específico de cavernas e da fauna a elas associadas. Buckland havia examinado
anteriormente uma caverna em Kirkdale, Yorkshire, e recebera pelos seus
esforços a Medalha Copley da Royal Society. Agora ele estendia seu trabalho a
outras cavernas da Grã-Bretanha e a uma série de cavernas e fissuras na
Alemanha.
Como argumento geral sustentando a importância das cavernas para a
comprovação de um dilúvio recente e passageiro, Buckland afirmava que as
águas em elevação haviam perturbado de tal modo todos os ambientes a céu
aberto que apenas cavernas isoladas preservavam indícios satisfatórios a respeito
da integridade das comunidades antediluvianas.

A violência daquela tremenda convulsão destruiu e remodelou tão
completamente a forma da superfície antediluviana, que é apenas nas
cavernas, que foram protegidas de seus estragos, que podemos ter esperanças
de encontrar indícios intactos dos eventos do período imediatamente anterior.

As cavernas estavam cheias de ossos, aprisionados dentro delas pelas águas
em ascensão. Os ossos pertenciam a espécies então residentes nas áreas locais
(assim, o Dilúvio não fora violento o bastante para misturar faunas numa
mixórdia aleatória pelo mundo todo). Os ossos eram frescos (indicando um
sepultamento recente), cobertos apenas com a lama trazida pelas águas da
inundação ou então com uma leve cobertura proveniente do gotejamento das
cavernas (também indicações de um dilúvio não muito remoto), e pertenciam a
espécies agora extintas mas intimamente relacionadas a formas modernas (as
criaturas menos afortunadas que não haviam encontrado abrigo na arca).
A discussão feita por Buckland da caverna de Kirkdale fornece uma boa
ilustração dos seus métodos e modos de argumentação. Ele encontrou um grande
depósito de ossos fossilizados, partidos em fragmentos angulares, às vezes
enfiados na lama, às vezes incrustados em gotejamentos de calcário da caverna.
Invocando uma símile gastronômica de sua própria época, Buckland descreveu
seu tesouro:

Onde a lama era rasa, e as pilhas de dentes e ossos, consideráveis, partes
destas projetavam-se algumas polegadas acima da superfície da lama e da
sua crosta estalagmítica; e as extremidades superiores dos ossos, projetando-
se no espaço vazio acima, como as pernas de um pombo atravessando a
crosta de uma torta, tinham uma cobertura delgada de gotejamentos
estalagmíticos, ao passo que suas extremidades inferiores não possuíam tal
incrustação, mas simplesmente a lama aderida na qual haviam sido
enterradas.


Buckland usa a maior parte da monografia para provar que Kirkdale era um
covil de hienas, e que os ossos lá presentes haviam sido colhidos e triturados
pelos seus residentes. Ele trabalhou, como todos os bons geólogos, procurando
analogias modernas para efeitos antigos. Aprendeu tudo o que podia sobre
hienas, desde os textos latinos de autores clássicos até observações pessoais de
hienas no jardim zoológico de Exeter. Ele provou que os ossos de Kirkdale
foram triturados e partidos em fragmentos angulares iguais aos produzidos pelas
hienas modernas e descobriu que as curiosas esferas de fragmentos de ossos
dentro das cavernas eram idênticas aos excrementos de seus amigos enjaulados
de Exeter. Ele também descobriu ossos de hienas em abundância dentro da
caverna — todos eles também triturados e partidos — indicando que as hienas
tratam seus mortos do mesmo modo que as presas e a carniça das outras espécies
que constituem sua dieta habitual.
Como Buckland não encontrou ossos incólumes de hienas na caverna
(embora tenha recuperado alguns em depósitos externos), ele formulou a
hipótese de que, quando as águas subiram, as hienas abandonaram a caverna e se
safaram para as colinas:

Caso se pergunte por que não encontramos pelo menos o esqueleto inteiro de
uma ou mais hienas que morreram por último, não deixando atrás de si
nenhum sobrevivente que as devorasse; encontramos uma resposta
satisfatória na circunstância da provável destruição dos últimos indivíduos
pelas águas diluvianas; com a ascensão destas, caso houvesse hienas no
covil, elas teriam debandado e fugido para a segurança das colinas; e, caso
ausentes, elas não poderiam ter retornado de altitudes superiores: que elas
foram extirpadas por esta catástrofe é óbvio, a partir da descoberta de seus
ossos no cascalho aluvial da Inglaterra e da Alemanha.

Os ossos mais comuns de Kirkdale pertenciam a elefantes, rinocerontes e
hienas. Como todos esses animais agora habitam climas tropicais, Buckland
presumiu que o dilúvio havia marcado uma transição rápida para temperaturas
mais frias. (Ele estava inteiramente errado, pois agora sabemos que todas essas
espécies tinham pelos compridos, sendo variantes glaciais de seus parentes
tropicais modernos.) Reliquiae diluvianae distingue-se de modo especial por
evitar qualquer discussão de causas e teorias gerais. Buckland repudiou as velhas
tradições de construção de sistema e especulação, e escreveu, em vez disso, uma
monografia empírica sobre indícios específicos de um dilúvio. Essa tática tornou
seu trabalho averiguável e preparou o terreno para a sua refutação — a atividade
mais saudável que a ciência pode exercer. Ao discutir a suposta queda de
temperatura, Buckland fez a sua única conjectura e então retratou-se
imediatamente, em conformidade com seu objetivo maior:

Qual foi a causa, se foi uma mudança na inclinação do eixo terrestre, ou a
aproximação de um cometa, ou qualquer outra causa ou combinação de
causas puramente astronômicas, é uma questão cuja discussão é estranha ao
presente estudo.

Após discutir Kirkdale e outras cavernas da Inglaterra e da Alemanha,
Buckland prossegue com indícios subsidiários de um dilúvio universal. A última
parte de Reliquiae diluvianae discute duas fontes de corroboração. Em primeiro
lugar, Buckland estudou as terras pretas e cascalhos que cobrem os estratos
sólidos em toda a Europa setentrional e descobriu neles ossos dos mesmos
animais que frequentavam as suas cavernas. Como ele considerava as terras
pretas e cascalhos depósitos diretos do Dilúvio, fósseis similares estabeleciam os
restos das cavernas como relíquias dos últimos dias antes de Noé. Em segundo
lugar, ele sustentou o argumento de que a modelagem das colinas e vales registra
a ação das águas encapeladas.
Ao resumir sua discussão de Kirkdale, Buckland extraiu uma inferência
essencial que plantou as sementes de sua posterior derrota. A teoria diluviana de
Buckland exigia absolutamente duas conclusões para estabelecer o Dilúvio de
Noé como sendo o agente que selara as cavernas e depositara as terras pretas e
cascalhos exteriores. Primeiro, todos os depósitos das cavernas e cascalhos
devem representar material da mesma época. Segundo, cada uma dessas
acumulações deve ser o registro de um único evento, não de uma série de
dilúvios ou outras catástrofes.

Não existe nenhuma alternância entre essa lama e os depósitos de ossos e
estalagmites, como teria ocorrido caso ela houvesse sido produzida por
dilúvios repetidos com frequência; uma vez, e apenas uma, ela parece ter
sido introduzida; e podemos considerar como tendo sido o seu veículo as
águas barrentas da mesma inundação que produziu universalmente o
cascalho e a terra preta aluviais na superfície exterior.

Ao extrair a inferência, Buckland abandonara seu autoproclama-do e
estritamente empírico caminho (um ideal mal colocado que, de qualquer modo,
poucos cientistas imaginativos conseguem de fato executar). Nenhum dado real
sustentava a sua afirmação da contempora-neidade dos depósitos das cavernas e
das terras pretas e cascalhos. Além disso, como suas cavernas estavam
largamente separadas, ele não conseguiu apresentar nenhuma evidência direta de
que os fósseis dentro delas eram todos da mesma época. Na verdade, Buckland
argumentava em ordem inversa — partindo de uma crença anterior para a
conclusão empírica. Ele presumiu que esses depósitos diversos e descontínuos
eram contemporâneos porque acreditava fervorosamente na realidade histórica
do dilúvio de Noé. Contudo, ele também afirmava que podia provar o dilúvio de
Noé a partir somente de evidências empíricas. Ou uma coisa ou outra.
Não obstante, numa conclusão audaciosa e surpreendente, escrita quatro anos
antes, no seu discurso de posse em Oxford, no ano de 1819, Buckland
proclamou:

O grandioso fato de um dilúvio universal num período não muito remoto está
provado com base em fundamentos tão decisivos e incontroversos que,
mesmo que nunca tivéssemos ouvido falar de tal evento nas Escrituras ou em
qualquer outra autoridade, a própria Geologia teria pedido a assistência de
alguma catástrofe do tipo.

Esta famosa citação tem sido frequentemente alvo de zombaria, zombaria
esta baseada na suposição de que Buckland sofria de uma auto-ilusão adiantada,
nascida de suas convicções bíblicas. Não era isso. A declaração, apesar de
vigorosa, não é irracional e reflete uma das supremas ironias de toda a história
da ciência.
Sabemos, em retrospecto, que a Inglaterra e a maior parte da Europa
setentrional foram cobertas diversas vezes, há não muito tempo, por mantos
continentais compactos de gelo. Os indícios que as geleiras deixam — enormes
pedras carregadas para longe de sua origem, cascalhos mal ordenados,
aparentemente atirados em sua presente localização por agentes catastróficos —
são similares aos que poderiam ser produzidos por inundações gigantescas. Na
verdade boa parte da topografia glacial é formada pelas águas do degelo.
Buckland estava, de fato, estudando indícios de glaciação, mas, de modo
absolutamente natural, interpretou seus dados como resultados de inundação. Se
Buckland vivesse na Europa meridional, ou se a ciência da Geologia houvesse
surgido nos trópicos, esta versão sensata da “teoria diluviana” nunca teria
entrado em nossa história. Não podemos culpar Buckland por não contemplar
uma hipótese de uma capa de gelo com uma milha de espessura cobrindo a sua
terra natal. Na década de 1820, com certeza, a ideia de um manto continental de
gelo era absurda e impensável, ao passo que um dilúvio não ia nem contra a
razão, nem contra a experiência. Contudo e mais uma vez em retrospecto,
podemos facilmente perceber por que a teoria de Buckland fracassou no teste
com tanta facilidade. Ele atribuiu os depósitos das cavernas e os cascalhos
externos a um único dilúvio, na verdade, eles foram produzidos por diversos
episódios de glaciação.
Ao longo de toda a década de 1820, a teoria de Buckland foi objeto de
intenso debate na Sociedade Geológica de Londres. Os maiores geólogos da
Grã-Bretanha alinharam-se em lados opostos. Como aliado principal, Buckland
podia contar com sua contraparte de Cambridge e colega teólogo, o reverendo
Adam Sedgwick. Liderando a oposição estavam Charles Lyell, o grande
apóstolo do gradualismo, e o aristocrático Roderick Impey Murchison. O debate
foi agitado, com um vigor igual ao das águas do dilúvio de Buckland, mas,
dentro de dez anos, tanto Buckland quanto Sedgwick haviam se dado por
vencidos.
Duas descobertas primárias forçaram o recuo de Buckland. Primeiro, ele teve
finalmente de admitir que os seus depósitos de terra preta e cascalho não se
encontravam distribuídos pelo mundo todo (como exigiria um “dilúvio
universal”) mas apenas em terras situadas em latitudes setentrionais (refletindo
— embora Buckland ainda não conhecesse o motivo — o alcance limitado das
geleiras que se expandiram a partir das regiões polares).
Segundo, e mais importante, a labuta cotidiana da geologia provou que as
cavernas e os cascalhos de Buckland não se correlacionavam todos, ou não
“combinavam”, como produtos de um único evento no tempo, e que também
vários depósitos eram registros de mais de um episódio de inundação (ou
glaciação, como diríamos hoje). A “correlação” é a atividade básica dos
geólogos que fazem trabalho de campo. Andamos de afloramento para
afloramento; tentamos rastrear os depósitos de uma locação até os estratos
geológicos de outra; averiguamos quais depósitos da nossa primeira locação
combinam (ou se correlacionam no tempo) com conjuntos de estratos geológicos
de outros lugares.
À medida que este trabalho básico prosseguia, os geólogos reconheceram
que os depósitos de cavernas e os cascalhos de Buckland representavam muitos
eventos, não um único dilúvio universal. Esta descoberta não exigia o abandono
das inundações como agentes causais, mas sem dúvida roubava de Noé qualquer
status especial. Se várias inundações haviam ocorrido, então os notáveis indícios
de Buckland não podiam ser atribuídos a nenhum evento bíblico particular.
Além disso, como Buckland não encontrou nenhum osso humano em seus
depósitos (considerando-se que o dilúvio de Noé ocorreu para que fosse
extirpada a gananciosa humanidade), ele por fim concluiu que todos os vários
dilúvios que ele agora reconhecia haviam antecedido o dilúvio de Noé.
Em 1829, após um vigoroso debate na Sociedade Geológica sobre a
dissertação de Conybeare sobre o vale do Tâmisa (William Conybeare era um
membro proeminente do grupo de Buckland), Lyell, triunfante, escreveu para
seu partidário Gideon Mantell:

Murchison e eu lutamos bravamente, e Buckland foi bastante piano. A
dissertação de Conybeare não tem força alguma. Ele admite três dilúvios
antes do dilúvio de Noé! E Buckland acrescenta sabe Deus quantas
catástrofes além dessas, de modo que os fizemos abandonar a crônica de
Moisés completamente.

(Para os leitores que não entendem de música, ressalto que piano quer dizer
“suave” em italiano. O instrumento tem seu nome devido a uma redução do
termo pianoforte que serve para designar um dispositivo capaz de tocar tanto
suavemente, ou piano, quanto fortemente, ou forte.)
O próprio Buckland, baseado nos mesmos fundamentos, admitiu a derrota no
seu importante livro seguinte, de 1836, embora ainda não houvesse reconhecido
a alternativa glacial:

As descobertas feitas desde a publicação desse trabalho [Reliquiae
diluvianae] demonstram que muitos dos animais nele descritos existiram
durante mais de um período geológico anterior à catástrofe pela qual foram
extirpados. Portanto, parece mais provável que o evento em questão tenha
sido o último de várias revoluções geológicas produzidas por violentas
irrupções de água em vez da inundação comparativamente tranquila descrita
na Inspirada Narrativa.

Quando os indícios fracassam, bons cientistas como Buckland não se
limitam simplesmente a admitir a derrota, rastejar para dentro de um buraco e
vestir um cilício. Eles preservam o interesse e lutam para descobrir novas
explicações. Buckland não apenas abandonou sua teoria diluviana quando o
trabalho empírico demonstrou sua falsidade, como acabou por liderar na Grã-
Bretanha o movimento para substituir a água pelo gelo.
Embora o estudo em retrospecto seja injusto para com as figuras históricas,
devo dizer que experimentei uma sensação quase que sinistra enquanto ha
Reliquiae diluvianae à luz do conhecimento posterior sobre a teoria glacial.
Muitos dos enunciados empíricos específicos de Buckland quase gritam para
serem interpretados por mantos de gelo em vez de água. Ele relata
continuamente, por exemplo, que a inundação, tanto na Grã-Bretanha quanto na
América do Norte, deve ter vindo do norte, uma direção óbvia para o avanço do
gelo, mas não para um dilúvio universal de um oceano em ascensão. Ele também
argumenta que blocos de granito trazidos do topo do Monte Branco para
altitudes menores provam que o Dilúvio foi alto o bastante para cobrir todas as
montanhas — enquanto diríamos simplesmente que as geleiras trouxeram as
rochas para baixo.
Louis Agassiz, o geólogo suíço que crescera quase que literalmente entre
geleiras de montanhas, desenvolveu a teoria das eras glaciais durante a década
de 1830. Ele e Buckland tornaram-se grandes amigos e companheiros de
exploração. Buckland foi também um dos primeiros na Inglaterra a se converter
à teoria glacial. Ele leu três dissertações defendendo essa nova interpretação de
seus indícios perante a Sociedade Geológica em 1840 e 1841, e, por fim, até
mesmo persuadiu seu velho adversário Charles Lyell sobre a realidade e a força
dos mantos continentais de gelo. Assim, Buckland não se limitou a abandonar
prontamente a sua teoria diluviana quando ela fracassou no teste; ele também
liderou a busca por novas explicações e alegrou-se com sua descoberta.
Os criacionistas modernos, por outro lado, têm pregado dogmaticamente
uma versão ainda mais ultrapassada e desacreditada da teoria diluviana desde
que G. M. Price a ressuscitou há cinquenta anos. Eles não fazem trabalho de
campo para testar suas asserções (argumentando, ao contrário, por meio da
distorção da obra de geólogos de verdade para obter efeito retórico), e não
mudam um pontinho que seja de sua absurda teoria.
Não posso apresentar maior contraste entre esta moderna pseudociência e o
espírito verdadeiramente científico da retratação de Adam Sedgwick em seu
discurso presidencial perante a Sociedade Geológica de Londres, em 1831. Na
condição de principal partidário de Buckland, ele liderava a luta pela teoria
diluviana; mas, por ocasião do discurso, ele sabia que estivera errado.
Reconheceu também que havia argumentado de modo deficiente num ponto
crítico: ele correlacionara as cavernas e os cascalhos não através de indícios
empíricos, mas através de uma crença bíblica anterior na realidade do Dilúvio.
Como os indícios empíricos provaram ser falsa a sua teoria, ele percebeu essa
deficiência lógicâ e se submeteu a uma autocrítica rigorosa. Em todos os anais
da ciência, não conheço melhor declaração que a retratação franca de Sedgwick,
e quero encerrar este ensaio com suas palavras. Como testemunha no julgamento
criacionista em Arkansas, em dezembro de 1981, também li esta passagem para
os autos da corte, porque senti que ela ilustrava muito bem a diferença entre o
dogmatismo, que não pode mudar, e a verdadeira ciência, praticada, neste
episódio, por pessoas que, por acaso, eram criacionistas. A ironia final, a
mensagem profunda, é simplesmente esta: a teoria diluviana, a peça central do
criacionismo moderno, foi refutada há 150 anos, em boa parte por clérigos
profissionais que também eram geólogos, cientistas exemplares e criacionistas.
O inimigo do saber e da ciência é o irracionalismo, não a religião:

Tendo eu sido um crente, e, naquilo que de melhor podia fazer, um
propagador daquilo que agora considero uma heresia filosófica, e tendo sido,
por mais de uma vez, citado para apoiar opiniões que não mais sustento,
julgo correto, como um de meus últimos atos antes de deixar esta cadeira, ler
publicamente deste modo a minha retratação...
Existe, penso eu, uma grande conclusão negativa, agora incontestavelmente
estabelecida, de que as vastas massas de cascalho aluvial, espalhadas por
quase toda a superfície da Terra, não pertencem a um único período violento
e transitório...
Deveríamos, na verdade, ter-nos detido antes de adotar a teoria diluviana e
atribuir todo o nosso velho cascalho superficial à ação do Dilúvio Mosaico.
... Ao classificar em conjunto formações desconhecidas distantes sob um
único nome; ao dar-lhes uma origem simultânea, e ao determinar a sua data,
não através dos restos orgânicos que havíamos nelas descoberto, mas através
do que esperávamos hipoteticamente descobrir depois; demos mais um
exemplo da paixão com a qual a mente se apega a conclusões gerais e da
presteza com a qual ela abandona a consideração de verdades não
relacionadas.

8. Falsa premissa, boa ciência




Meu voto para o mais arrogante de todos os títulos científicos vai, sem
hesitação, para uma famosa dissertação de 1866 escrita por Lord Kelvin, “A
‘Doutrina da Uniformidade’ em Geologia brevemente refutada”. Nela, o maior
físico da Grã-Bretanha afirmava ter destruído o fundamento de uma profissão
inteira que não era a sua. Kelvin escreveu:

A “Doutrina da Uniformidade” em Geologia, tal como sustentada por vários
dos mais eminentes geólogos britânicos, tem por certo que a superfície e a
crosta superior da Terra têm sido quase iguais ao que são hoje no que diz
respeito à temperatura e a outras qualidades físicas durante milhões e
milhões de anos. No entanto, o calor que, por observação, sabemos que é
conduzido para fora da Terra anualmente é tão grande, que se esta ação
viesse acontecendo, com qualquer aproximação de uniformidade, durante
20.000 milhões de anos, a quantidade de calor perdida pela Terra teria sido
mais ou menos a que aqueceria, a 100°C, uma quantidade de rocha
superficial cem vezes maior que a Terra. (Ver cálculo anexo.) Isso seria mais
do que suficiente para derreter uma massa de rocha superficial de grandeza
igual à da Terra inteira. Nenhuma hipótese de ação química, fluidez interna,
efeitos da pressão em grande profundidade, ou do possível caráter das
substâncias no interior da Terra, com o mínimo vestígio de probabilidade,
pode justificar a suposição de que a crosta terrestre tenha permanecido quase
que como é hoje, enquanto se perde, do todo, ou de qualquer parte da Terra,
uma quantidade tão grande de calor.

Peço desculpas por infligir uma citação tão longa bem no início do ensaio,
mas isso não é um extrato da dissertação de Kelvin. É a dissertação inteira
(menos o cálculo anexo). Num mero parágrafo, Kelvin sentiu que havia minado
inteiramente a própria base da disciplina irmã.
A arrogância de Kelvin foi tão extrema, e o castigo posterior tão espetacular,
que a história de sua dissertação de 1866 e de toda a sua implacável campanha
de quarenta anos a favor da tese de uma Terra jovem, tornou-se a homilia moral
clássica dos nossos livros didáticos de geologia. Mas, cuidado com as homilias
morais convencionais. A probabilidade de serem exatas é quase igual à de
George Washington ter feito com que aquele dólar de prata ricocheteasse na
superfície da água até a outra margem do Rappanhannock.
A história, tal como geralmente contada, é mais ou menos a seguinte. Há
diversos séculos, a geologia definhava sob o jugo do arcebispo Ussher e da sua
cronologia bíblica, que davam apenas alguns milhares de anos à Terra. Essa
restrição temporal deu origem à doutrina não-científica do catastrofismo — a
ideia de que, se toda a história geológica da Terra deve ser comprimida dentro da
cronologia de Moisés, sublevações e paroxismos miraculosos devem caracterizar
essa história. Depois de muita luta, Hutton e Lyell obtiveram uma vitória para a
ciência com a sua ideia alternativa da uniformidade — a afirmação de que os
atuais ritmos de mudança, extrapolados ao longo de tempo ilimitado, podem
explicar toda a nossa história a partir de um ponto de vista científico, por meio
da observação direta dos processos atuais e de seus resultados. A uniformidade,
assim diz a história, repousa em duas proposições; tempo essencialmente
ilimitado (de modo que processos lentos possam alcançar seu efeito cumulativo),
e uma Terra que não altera sua forma e seu estilo de mudança básicos ao longo
de todo esse enorme espaço de tempo. A uniformidade na geologia deu origem à
evolução na biologia, e a revolução científica alastrou-se. Se negamos a
uniformidade, minamos a própria ciência e arremessamos a geologia de volta à
sua era das trevas.
Apesar disso, e talvez de modo inconsciente, Kelvin tentou invalidar esse
triunfo da geologia científica. Argumentando que a Terra teve início como um
corpo liquefeito, e baseando seus cálculos na perda de calor do interior da Terra
(tal como medida, por exemplo, em minas), Kelvin reconheceu que a superfície
sólida da Terra não podia ser muito velha — provavelmente cem milhões de
anos, e, no máximo, quatrocentos milhões de anos (embora mais tarde ele tenha
revisto a estimativa, diminuindo a idade para, possivelmente, apenas vinte
milhões de anos). Com tão pouco tempo para alojar toda a evolução — isso sem
falar na história física das rochas sólidas —, que recurso restava à geologia além
da desacreditada ideia de catástrofes? Kelvin mergulhara a geologia num dilema
inextricável, revestindo-o com todo o prestígio da física quantitativa, rainha das
ciências. Um popular livro didático de geologia (C. W. Barnes, na Bibliografia),
diz, por exemplo:

O tempo geológico, livre das limitações da interpretação literal da Bíblia,
tornara-se ilimitado; os conceitos de mudança uniforme sugeridos
primeiramente por Hutton abrangiam agora o conceito da origem e da
evolução da vida. Kelvin destruiu sozinho, durante certo período, o
pensamento da doutrina da uniformidade e da evolução. O tempo geológico
continuava limitado porque as leis da física o restringiam com tanta força
quanto o literalismo bíblico o fizera.

Por sorte, para uma geologia científica, a argumentação de Kelvin baseava-se
numa premissa falsa — a suposição de que o atual calor da Terra é um resíduo
de seu estado original liquefeito e não uma quantidade constantemente renovada.
Pois, se a Terra continua a gerar calor, então o ritmo atual de perda não pode ser
usado para se inferir uma condição antiga. A verdade, ignorada por Kelvin, é que
a maior parte do calor interno da Terra é constantemente gerada pelo processo de
desintegração radioativa. Por mais refinados que tenham sido os seus cálculos,
eles foram baseados numa premissa falsa, e o argumento de Kelvin desabou com
a descoberta da radioatividade no início do nosso século. Os geólogos deviam ter
confiado nas próprias intuições e não se inclinado diante do falso atrativo da
física. De qualquer modo, a uniformidade finalmente venceu, e a geologia
científica foi restaurada. Este breve episódio nos ensina que devemos confiar nos
dados empíricos cuidadosos de uma profissão e não confiar excessivamente em
intervenções teóricas externas, por melhores que sejam as suas credenciais.
Chega de mitologia heroica. A história verdadeira não é, em absoluto, tão
simples, nem se presta com tanta facilidade a uma interpretação moral evidente.
Antes de mais nada, os argumentos de Kelvin, embora fatalmente defeituosos,
tal como se delineou acima, não eram toscos, nem tão inaceitáveis para os
geólogos como diz a costumeira história. A maioria dos geólogos estava
inclinada a tratá-los como uma reforma genuína de sua profissão, isso até que
Kelvin se deixasse levar por restrições posteriores da sua estimativa original de
cem milhões de anos. A forte oposição de Darwin foi uma campanha pessoal
fundamentada no seu gradualismo extremado, não um consenso. Tanto Wallace
quanto Huxley aceitaram a idade proposta por Kelvin e pronunciaram-na como
sendo compatível com a evolução. Em segundo lugar, a reforma de Kelvin não
mergulhou a geologia num passado não-científico, mas apresentou, mais
exatamente, um relato científico diferente baseado em outro conceito de história
que pode ser mais válido do que a doutrina de uniformidade estrita pregada por
Lyell. A doutrina da uniformidade, tal como advogada por Lyell, era uma teoria
específica de história, e não (como muitas vezes erroneamente se compreende)
um relato geral de como a ciência deve operar. Kelvin atacara um alvo legítimo.

Os argumentos de Kelvin e a reação dos geólogos

Na condição de codescobridor da segunda lei da termodinâmica, Lord Kelvin
baseou seus argumentos a respeito da idade mínima da Terra na dissipação em
forma de calor da energia original do sistema solar. Ele apresentou três asserções
distintas e tentou formar uma estimativa quantitativa única da idade da Terra
buscando concordância entre elas (ver Lord Kelvin and the Age of the Earth, de
Joe Burchfield, fonte da maior parte das informações técnicas aqui relatadas).
Kelvin baseou seu primeiro argumento na idade do Sol. Ele imaginava que o
Sol havia se formado através do agrupamento de massas meteóricas menores. À
medida que esses meteoros se aproximavam devido à atração gravitacional
mútua, a sua energia potencial era transformada em energia cinética, a qual,
quando ocorreu a colisão, foi convertida em calor fazendo com que o Sol
brilhasse. Kelvin achou que podia calcular a energia potencial total de uma
massa de meteoros igual à grandeza do Sol e, a partir disso, obter uma estimativa
do calor original do Sol. Com base nessa estimativa, seria possível calcular uma
idade mínima para o Sol, supondo que ele tenha brilhado com a intensidade atual
desde o início. No entanto, esse cálculo dependia crucialmente de um conjunto
de fatos que Kelvin não podia de fato avaliar — inclusive o número original de
meteoros e a distância original entre estes —, e assim ele nunca se arriscou a
fornecer um número preciso para a idade do Sol. Kelvin decidiu-se por um
número entre cem e quinhentos milhões de anos como estimativa melhor, com
uma aproximação mais provável em direção à cifra menor.
Kelvin baseou seu segundo argumento na idade provável da crosta sólida da
Terra. Ele supunha que a Terra havia se resfriado a partir de um estado
originalmente liquefeito, e que o calor que agora escapava de suas minas
registrava o mesmo processo de resfriamento que fizera com que a crosta se
solidificasse. Se tivesse condições de medir a taxa de perda de calor do interior
da Terra, ele poderia estender seu raciocínio até um tempo em que a Terra deve
ter contido calor suficiente para manter o globo inteiramente liquefeito —
supondo que esse ritmo de dissipação não tenha mudado através do tempo. (Este
é o argumento para a sua “breve” refutação da uniformidade, citada no início do
presente ensaio.) Este argumento parece mais “sólido” do que a primeira
asserção baseada numa hipótese sobre como o Sol se formou. Pelo menos, pode-
se ter esperança de medir diretamente o seu ingrediente principal — a atual
perda de calor da Terra. No entanto, o segundo argumento ainda depende de
várias suposições cruciais e que não podem ser provadas a respeito da
composição da Terra. Para fazer seu cálculo funcionar, Kelvin tinha de tratar a
Terra como um corpo de composição virtualmente uniforme que se solidificara
do centro para fora e que havia sido, no tempo em que sua crosta se formara,
uma esfera sólida de temperatura similar em todas as suas partes. Tais restrições
também impediram a Kelvin atribuir uma idade definida para a solidificação da
crosta terrestre. Ele aventou algo entre cem e quatrocentos milhões de anos, mais
uma vez com uma declarada preferência pela cifra menor.
Kelvin baseou seu terceiro argumento na forma da Terra, de esfe-róide
achatado nos polos. Ele sentia que podia relacionar este grau de diminuição
polar à velocidade da rotação da Terra quando ela se formou num estado
liquefeito favorável ao achatamento. Agora sabemos — e Kelvin também — que
a rotação da Terra tem decrescido continuamente como resultado da fricção das
marés. A Terra girava com mais rapidez quando se formou. Sua forma atual,
portanto, deveria indicar sua idade. Se a Terra se formou há muito tempo,
quando a rotação era bastante rápida, ela hoje deveria ser bem achatada. Se a
Terra não é tão antiga, então ela se formou num ritmo de rotação não muito
diferente do ritmo atual, e o achatamento deveria ser menor. Kelvin sentiu que o
pequeno grau de achatamento efetivo indicava uma idade relativamente jovem
para o planeta. Uma vez mais, e pela terceira vez, Kelvin baseou seu argumento
sobre tantas suposições que não podiam ser provadas (a composição uniforme da
Terra, por exemplo) que ele não pôde calcular uma cifra precisa para a idade da
Terra.
Assim, embora todos os três argumentos possuíssem uma pátina quantitativa,
nenhum era preciso. Todos dependiam de suposições simplificadoras que Kelvin
não podia justificar. Todos, portanto, forneciam apenas vagas estimativas com
amplas margens de erro. Durante a maior parte da campanha de quarenta anos de
Kelvin, ele geralmente citou uma cifra de cem milhões de anos para a idade da
Terra — tempo que, por sinal, revelou-se suficiente para satisfazer quase todos
os geólogos e biólogos.
A enérgica oposição de Darwin a Kelvin está bem documentada, e
comentaristas posteriores concluíram que ele dava voz a um perturbado
consenso. Na verdade, a antipatia de Darwin por Kelvin era idiossincrática e se
baseava no seu forte compromisso pessoal com o gradualismo, tão característico
de sua visão de mundo. Darwin era tão apegado à necessidade virtual de tempo
ilimitado como pré-requisito da evolução por seleção natural que convidava os
leitores a abandonar A origem das espécies caso não pudessem aceitar esta
premissa:
“Aquele que puder ler o grande trabalho de Sir Charles Lyell sobre os
Princípios de geologia, e, ainda assim, não admitir quão incompreensivelmente
vastos foram os períodos passados do tempo, pode fechar agora mesmo o
presente volume.” Darwin comete aqui uma falácia de raciocínio — a confusão
de gradualismo com seleção natural — que caracterizou todo o seu trabalho e
que inspirou a principal crítica de Huxley à Origem: “Você se sobrecarrega com
uma dificuldade desnecessária ao adotar tão irrestritamente 1Satura non facit
saltum [A natureza não prossegue por meio de saltos].” Ainda assim, Darwin
não pode ser de todo culpado, pois Kelvin cometeu o mesmo erro ao afirmar
explicitamente que a pouca idade que dava à Terra lançava graves dúvidas sobre
a seleção natural como mecanismo evolucionário (embora ele não argumentasse
contra a evolução em si). Kelvin escreveu:

As limitações dos períodos geológicos, impostas pela ciência física, não
podem, claro, provar que a hipótese da transmutação das espécies é falsa;
ainda assim, parecem suficientes para provar como sendo falsa a doutrina de
que a transmutação tenha ocorrido através de “descendência com
modificação por meio de seleção natural”.

Assim, Darwin continuou a considerar o cálculo de Kelvin da idade da Terra
como talvez a mais grave objeção à sua teoria. Ele escreveu para Wallace em
1869 dizendo que “as opiniões de Thomson [Lord Kelvin] sobre a idade recente
do mundo foram durante algum tempo um dos meus problemas mais penosos”.
E, em 1871, numa metáfora notável: “Mas então chega Sir W. Thomson como
um espectro odioso.” Embora Darwin geralmente não arredasse pé de suas
convicções e sentisse, no fundo do coração, que devia haver algo de errado com
os cálculos de Kelvin, ele finalmente transigiu na última edição da Origem (em
1872), escrevendo que mudanças mais rápidas na Terra primitiva teriam
acelerado o ritmo da evolução, talvez permitindo todas as mudanças que
observamos dentro do tempo limitado de Kelvin:

É provável, contudo, como Sir William Thompson [síc] insiste, que o
mundo, num período bastante antigo, tenha sido sujeitado a mudanças mais
rápidas e violentas nas suas condições físicas do que as que ocorrem agora; e
tais mudanças teriam tido a tendência de induzir mudanças de ritmo
correspondente nos organismos que então existiam.

A inquietação de Darwin não era compartilhada por seus dois partidários
principais na Inglaterra, Wallace e Eluxley. Wallace não vinculava a ação da
seleção natural à escala glacialmente lenta de Dar-win; ele afirmava
simplesmente que se Kelvin limitava a idade da Terra a cem milhões de anos,
então a seleção natural deve operar em ritmos geralmente mais altos que aqueles
que havíamos imaginado anteriormente. “É dentro desse tempo [os cem milhões
de anos de Kelvin], portanto, que toda a série de mudanças geológicas, a origem
e o desenvolvimento de todas as formas de vida, devem ser comprimidas.” Em
1870, Wallace chegou mesmo a declarar sua satisfação com uma escala temporal
de apenas 24 milhões de anos desde o começo do nosso registro fóssil na
explosão do Cambriano.
Huxley ficou menos perturbado ainda, especialmente porque já havia
afirmado por um bom tempo que a evolução poderia ocorrer por meio de saltos,
assim como pela seleção natural lenta. Huxley sustentava que nossa convicção
sobre a lerdeza da mudança evolucionária fora baseada, em primeiro lugar, numa
lógica falsa e circular. Não temos nenhum indício independente para considerar
lenta a evolução; essa impressão foi apenas uma inferência baseada na
antiguidade supostamente vasta dos estratos fósseis. Se Kelvin agora nos diz que
esses estratos foram depositados num espaço de tempo bem menor, então nossa
estimativa do ritmo evolucionário deve ser revista de modo correspondente.

A biologia toma o seu tempo da geologia. O único motivo que temos para
acreditar no ritmo lento da mudança nas formas vivas é o fato de elas
persistirem ao longo de uma série de depósitos que, a geologia nos informa,
levaram um bom tempo para serem feitos. Se o relógio geológico estiver
errado, tudo o que o naturalista terá de fazer será modificar de modo
correspondente as suas noções sobre a velocidade da mudança.

Os principais geólogos da Grã-Bretanha inclinavam-se a seguir Wallace e
Huxley em vez de Darwin. Eles afirmavam que Kelvin havia prestado um
serviço à geologia ao desafiar a virtual eternidade do mundo de Lyell e, na
perspicaz metáfora de T. C. Chamberlin, ao “restringir os saques imprudentes”
que os geólogos faziam tão irrefletidamente no “banco do tempo”. Apenas num
estágio mais adiantado de sua campanha, quando Kelvin começou a restringir
sua estimativa de uns vagos e confortáveis cem milhões de anos (ou talvez um
bocado mais) para um limite mais rigidamente circunscrito de mais ou menos
vinte milhões de anos, é que os geólogos finalmente se rebelaram. A. Geikie,
que fora um firme defensor de Kelvin, escreveu então:

Os geólogos não tardaram a reconhecer que estavam errados ao supor que
possuíam uma eternidade de tempo passado para a evolução da história
terrestre. Eles reconheceram francamente a validade dos argumentos da
física, que colocam limites mais ou menos definidos à antiguidade da Terra.
Como um todo, eles estiveram dispostos a aceitar a concessão de cem
milhões de anos que Lord Kelvin lhes oferecia para a realização dos longos
ciclos da história geológica. Mas os físicos foram insaciáveis e inexoráveis.
Tão sem remorsos quanto as filhas de Lear, eles cortaram a concessão de
anos em fatias sucessivas até que alguns deles trouxeram a cifra para pouco
menos de dez milhões. Em vão os geólogos protestaram que devia haver uma
falha em algum lugar numa linha de argumentação que tende a ter um
resultado tão inteiramente em desacordo com os fortes indícios a favor de
uma maior antiguidade.

O desafio científico de Kelvin e os significados múltiplos da uniformidade

Como mestre da retórica, Charles Lyell de fato declarou que qualquer um
que desafiasse a sua uniformidade podia ser o arauto de uma reação que
mandaria a geologia de volta à sua era pré-científica de catástrofes. Um
significado da uniformidade realmente defendia a ciência nesse sentido — a
afirmação de que as leis da natureza são constantes no espaço e no tempo, e que
a intervenção miraculosa para suspender essas leis não pode ser aceita como um
agente de mudança geológica. Mas a uniformidade, neste significado
metodológico, já não era mais uma questão no tempo de Kelvin, ou mesmo (pelo
menos em círculos científicos) quando Lyell publicou os seus Princípios de
geologia em 1830. Os catastrofistas científicos (ver ensaio 7) não eram
milagreiros, mas homens que aceitavam plenamente a uniformidade da lei
natural e que procuravam apresentar a história terrestre como um relato de
calamidades naturais ocorrendo de modo infrequente numa Terra antiga.
Mas a uniformidade tinha também um sentido mais restrito, substantivo, para
Lyell. Ele também usava o termo para uma teoria particular da história terrestre
baseada em dois postulados questionáveis: primeiro, que os ritmos de mudança
não variavam muito ao longo do tempo, e que os processos lentos e presentes
podiam, portanto, dar conta de todos os fenômenos geológicos em seu impacto
acumulado; segundo, que a Terra sempre fora mais ou menos igual, e que a sua
história não tinha direção alguma, mas que representava um estado estável de
condições dinamicamente constantes.
Lyell, provavelmente sem consciência, executou um truque de argumentação
engenhoso e inválido. A uniformidade possuía dois significados distintos — um
postulado metodológico sobre leis uniformes, que todos os cientistas tinham de
aceitar a fim de praticar a profissão, e uma asserção substantiva de validade
dúbia sobre a história efetiva da Terra. Ao chamar ambos de uniformidade, e
demonstrando que todos os cientistas eram adeptos da uniformidade no primeiro
sentido, Lyell também dava a entender, engenhosamente, que, para ser um
cientista, era preciso também aceitar a uniformidade no seu significado
substantivo. Assim, desenvolveu-se o mito de que qualquer oposição à
uniformidade só podia ser uma ação retrógrada contra a própria ciência — e
surgiu a impressão de que, se Kelvin estava atacando a “doutrina da
uniformidade” na geologia, ele devia representar as forças da reação.
Na verdade, Kelvin aceitava plenamente a uniformidade de leis e até mesmo
baseou nela os seus cálculos sobre perda de calor. Seu ataque contra a
uniformidade foi dirigido apenas ao aspecto substantivo (e dúbio) da visão de
Lyell. Kelvin apresentou duas queixas contra esse significado substantivo da
uniformidade. Primeiro, sobre a questão dos ritmos. Se a Terra fosse
consideravelmente mais jovem do que Lyell e os adeptos estritos da
uniformidade acreditavam, então os ritmos de mudança modernos, lentos, não
seriam suficientes para a representação de sua história. No começo de sua
história, quando a Terra era mais quente, as causas devem ter sido mais ativas e
intensas. (Esta é a posição de “compromisso” que Darwin finalmente adotou
para explicar os ritmos de mudança mais rápidos no início da história da vida.)
Segundo, sobre a questão da direção. Se a Terra teve início como uma esfera
liquefeita e perdeu calor continuamente através do tempo, então a sua história
possuía um padrão e um caminho de mudança definidos. A Terra não fora
perenemente a mesma, mudando apenas a posição de suas terras e mares numa
dança interminável que não levava a lugar algum. A sua história seguia um
caminho definido, de uma esfera quente, cheia de energia, para um mundo frio,
lânguido, que, por fim, não mais sustentaria vida. Kelvin lutou, dentro de um
contexto científico, por uma história de curta duração, direcional, oposta à visão
de Lyell de um estado estável essencialmente eterno. Nossa visão atual não
representa o triunfo nem de um, nem de outro parecer, mas uma síntese criativa
de ambos. Kelvin estava tão certo e tão errado quanto Lyell.

A radioatividade e a queda de Kelvin

Kelvin estava sem dúvida certo ao rotular como extrema a visão de Lyell de
uma Terra em estado estável, caminhando para lugar algum ao longo de eras
incontáveis. Contudo, nossa escala temporal moderna aproxima-se mais do
conceito de Lyell, sem nenhum limite apreciável, do que dos cem milhões de
anos de Kelvin, com a sua consequente restrição dos ritmos de mudança. A
Terra tem 4,5 bilhões de anos.
Lyell venceu essa rodada de uma batalha complicada porque o argumento de
Kelvin continha uma falha fatal. Neste aspecto, a história, tal como
convencionalmente relatada, tem validade. A argumentação de Kelvin não era
um conjunto inevitável e matematicamente necessário de asserções. Ela
repousava sobre um pressuposto crucial não averiguado, subjacente a todos os
cálculos de Kelvin. Os números de Kelvin sobre perda de calor poderiam medir
a idade da Terra apenas se esse calor representasse uma quantidade original
dissipada gradualmente ao longo do tempo — um relógio batendo num ritmo
estável, de seu reservatório inicial até a exaustão final. Mas suponha-se que seja
constantemente criado calor novo e que a sua radiação atual a partir da Terra não
reflita uma quantidade original, mas um processo moderno de geração. Então o
calor deixa de ser um indicador de idade.
Kelvin reconhecia a natureza contingente de seus cálculos, mas a física de
seu tempo não incluía nenhuma força capaz de gerar calor novo, e ele, portanto,
sentia-se seguro em seu pressuposto. No começo de sua campanha, ao calcular a
idade do Sol, ele admitia sua dependência crucial da inexistência de qualquer
fonte nova de energia, pois declarara seus resultados válidos “a menos que novas
fontes, agora desconhecidas por nós, sejam preparadas no grande depósito da
criação”.
Então, em 1903, Pierre Curie anunciou que os sais de rádio liberavam
constantemente calor novo. A fonte desconhecida fora descoberta. Os primeiros
estudiosos da radioatividade reconheceram prontamente que a maior parte do
calor terrestre deve ser continuamente gerada por desintegração radioativa, não
se tratando simplesmente de uma dissipação de um estado originalmente
liquefeito — e perceberam que a argumentação de Kelvin havia caído por terra.
Em 1904, Ernest Rutherford fez este relato de uma conferência pronunciada na
presença de Lord Kelvin, pronunciando a derrota da campanha de quarenta anos
de Kelvin a favor da ideia de uma Terra jovem:

Eu entrei na sala, que estava na penumbra, localizei imediatamente Lord
Kelvin na platéia e percebi que teria problemas com a última parte do
discurso, que lidava com a idade da Terra, ponto em que minhas opiniões
conflitavam com as dele. Para meu alívio, Kelvin ferrou no sono, mas, assim
que cheguei ao ponto importante, percebi que o velhote se ergueu, abriu o
olho e lançou um olhar maligno sobre mim! Então, tive uma inspiração
súbita e disse que Tord Kelvin limitara a idade da Terra sob a condição de
que não fosse descoberta nenhuma nova fonte de calor. Aquela declaração
profética referia-se ao que estávamos considerando naquela noite: o rádio!

Assim, Kelvin sobreviveu à nova era da radioatividade. Ele nunca admitiu o
erro ou publicou qualquer retratação, mas, na intimidade, admitiu que a
descoberta do rádio invalidava alguns de seus pressupostos.
A descoberta do rádio ressalta uma deliciosa ironia dupla. A radioatividade
não forneceu simplesmente uma nova fonte de calor que destruía a
argumentação de Kelvin; ela forneceu também o relógio que podia medir a idade
da Terra e, afinal, declará-la antiga! Porque os átomos radioativos desintegram-
se num ritmo constante, e a sua dissipação realmente mede a duração do tempo.
Menos de dez anos após a descoberta do calor continuamente gerado no rádio, os
primeiros cálculos de desintegração radioativa já indicavam a idade de algumas
das rochas mais velhas da Terra em bilhões de anos.
Às vezes supomos que a história da ciência é uma simples história de
progresso, avançando inexoravelmente através do acúmulo objetivo de dados
cada vez melhores. Tal parecer encontra-se subjacente às homilias morais que
constroem o nosso relato costumeiro do avanço da ciência — pois Kelvin, neste
contexto, claramente impediu o progresso com um pressuposto falso. Não
devemos nos deixar iludir por histórias tão confortadoras e inadequadas. Kelvin
procedeu fazendo uso da melhor ciência de sua época, e os colegas aceitaram
seus cálculos. Não podemos culpá-lo por não saber que uma nova fonte de calor
seria descoberta. Assim como Maupertuis não dispunha de nenhuma metáfora
para reconhecer que os embriões podiam conter instruções codificadas em vez
de partes pré-formadas (ver ensaio seguinte), a física de Kelvin não continha
contexto algum para uma nova fonte de calor.
O progresso da ciência exige mais do que novos dados; ele necessita de
novas estruturas e contextos. E de onde surgem essas visões de mundo
fundamentalmente novas? Elas não são descobertas simplesmente pela
observação; elas exigem novos modos de pensar. E onde podemos encontrá-las
se os modos antigos nem ao menos incluem as metáforas certas? A natureza do
verdadeiro gênio deve estar na capacidade indefinível de construir esses novos
modos a partir da escuridão aparente. A incerteza e a imprevisibilidade básicas
da ciência devem também residir na dificuldade inerente a tal tarefa.

9. Na falta de uma metáfora




Em 1745, o savant francês Pierre-Louis Moreau de Maupertuis publicou um
livro pequeno, com um tema grande e um título curioso. (As medidas originais
são de apenas 5 1/2 por 3 1/4 polegadas e contém menos de duzentas páginas de
texto, impresso, graças às amplas margens de uma era mais generosa, no espaço
ainda menor de 3 1/4 por 1 3/4 polegadas.) Ele o chamou de Vénus physique —
a “Vénus física”, ou “terrena”, ou, numa tradução mais livre, “amor físico” (em
oposição às dimensões interpretativas, espirituais ou psicológicas desse tema de
séculos). Como o título dá a entender, a obra apresenta um relato abrangente da
história natural da procriação — uma cartilha sobre como os vários animais
fazem a coisa. Ficamos sabendo, por exemplo, a partir do contraste justaposto,
que

o impetuoso touro, orgulhoso de sua força, não se compraz com carícias; ele
se atira imediatamente sobre a novilha; penetra profundamente em suas
ancas e lá esguicha, em grandes jorros, o líquido que a fecundará. A rola,
com ternos chamados, anuncia o seu amor; mil carícias, mil prazeres,
precedem o último prazer.

Descendo ao longo da escala do ser (tal como seu século a concebia),
Maupertuis alcança os caracóis terrestres hermafroditas e discute suas setas.
(Muitos caracóis terrestres desenvolvem uma “flecha” calcária com uma ponta
belamente formada. Nos elaborados rituais que precedem a cópula, o caracol que
atua como macho enfia sua seta repetidamente no musculoso pé do parceiro. A
seta não é parte do pênis, e, além da observação óbvia de que ele desempenha
nenhum papel no estímulo sexual, ainda não sabemos qual é a sua função
precisa). Maupertuis também não tinha uma resposta, mas fez uma analogia
interessante, se bem que despropositada:

Qual é a função deste órgão? Talvez este animal, tão frio e tão lento em todas
as suas operações, tenha a necessidade de ser excitado por essas ferroadas.
Homens arrefecidos pela idade, ou cujos sentidos se enfraqueceram, às vezes
recorrem a meios igualmente violentos a fim de despertarem em si as paixões
do amor. Oh, homem infeliz, que tenta excitar por meio da dor as sensações
que deveriam surgir apenas da voluptuosidade! ... Oh, caracol inocente,
talvez sejas a única criatura para quem esses meios hão são criminosos —
pois, para ti, eles são um efeito da ordem da Natureza. Recebe, então, e dá,
mil vezes, as ferroadas dessas setas que te guarnecem.

Na base da escala, Maupertuis encontrou um problema especial nas hidras,
os parentes de corpo macio, de água doce, dos corais. Maupertuis e seus colegas
consideravam as hidras como formas de transição entre as plantas e os animais
porque elas se reproduzem pelo bro-tamento de novos indivíduos a partir de um
talo progenitor ou então pela regeneração de corpos inteiros a partir de
fragmentos desarticulados do mesmo talo. Maupertuis, em termos nada
ambíguos, identificara o prazer como o fim da natureza no processo de
reprodução:

A natureza tem o mesmo interesse na perpetuação de todas as espécies: ela
inspirou em cada uma o mesmo tema, e esse tema é o prazer. É o prazer que,
na espécie humana, leva a efeito tudo que se lhe antepõe — que, a despeito
de mil obstáculos que se opõem à união de dois corações, de mil tormentos
que devem se seguir, conduz os amantes rumo ao propósito ordenado pela
natureza.

Mas, se o prazer é a ordem da natureza, então como a humilde hidra pode
apreciar a reprodução tendo o talo cortado em pedaços?

O que se deve pensar desse estranho estilo de reprodução, desse princípio
vital estendido a cada pedaço do animal. ... Em outros animais, a natureza
vinculou o prazer ao ato que os multiplica; será possível que a natureza tenha
dotado esta criatura com algum tipo de sensação voluptuosa ao ser cortada
em pedaços?

Talvez estas passagens tenham inspirado a decisão de Maupertuis de publicar
anonimamente, apesar de viver num século tão refrescantemente menos pudico
do que aquele que o seguiu (ao mesmo tempo, suas palavras diretas e
encantadoras também saem favorecidas num contraste com a análise
autoconsciente e perpétua do nosso tempo). Contudo, Vénus physique não é
primariamente um trabalho sobre a história natural do amor, não obstante o valor
dessas seções para a obtenção de publicidade e renome imediato. Ele é, em sua
maior parte, um sofisticado tratado sobre a ciência da embriologia — sobre os
efeitos físicos mais diretos e duradouros do amor. O título, talvez, tenha sido um
chamariz, mas o livro é uma obra-prima.
Maupertuis nasceu na França em 1698. Embora tenha vagado à larga pelas
fronteiras disciplinares impostas por uma era posterior, ele conseguiu reputação
com seu trabalho nas ciências físicas — por sua coragem de introduzir e expor a
obra de Newton numa nação tão fortemente apegada às alternativas de Descartes
e por dirigir uma árdua expedição à Lapônia que confirmou a previsão de
Newton de uma Terra não perfeitamente esférica, mas achatada nos polos. Esta
combinação de zelo e atrevimento valeu-lhe o apoio de Voltaire, e sua estrela
brilhou. Em 1738, Voltaire recomendou a Frederico, o Grande, que Maupertuis
poderia ser o homem certo para dirigir a sua reabilitada Academia de Ciências
de Berlim. Maupertuis aceitou o trabalho e prosperou nele por vários anos. No
entanto, uma série de complicadas intrigas derrubou-o e provocou a ira
imorredoura de Voltaire e a sátira mortífera de sua ácida pena. Maupertuis
acabou por ser perdoado, mas nunca recuperou a saúde e a reputação, morrendo,
arruinado, em 1759.
Como muitos tratados gerais, Vénusphysique teve origem em um problema
específico. Numa cultura com profundas tradições racistas, a cor da pele humana
sempre exerceu uma fascinação perpétua, e nenhum aspecto do tema inspirou
mais interesse do que a descoberta ocasional de indivíduos peculiares que
pareciam romper as fronteiras. O Deus de Jeremias, pessimista a respeito da
redenção entre os que haviam caído à margem da estrada, proclamou: “Pode o
etíope mudar a sua pele, ou o leopardo as suas manchas?” Mas alguns humanos
realmente transgrediam os limites de categorias aparentemente estáveis, levando
algumas pessoas a temer que seus parentes futuros viessem a se extraviar ou
então que o status convencional de valor relativo das próprias categorias pudesse
deixar de ser tão confortavelmente fixo. O ensaio 22 discute uma mulher
caucasiana com grandes trechos de pele melânica que fascinou um médico
londrino em 1813. O caso dela, porém, era raro e irrelevante. Um fenômeno
mais geral, porém, era razoavelmente comum e, assim, ameaçador e fascinante
ao mesmo tempo — ou seja, o albinismo entre negros. O albinismo é bem
conhecido entre a maioria das espécies, ou todas, de vertebrados de pele escura;
os negros albinos, mais pálidos do que qualquer caucasiano, não são raros, e o
traço é herdado em linhagens de família.
Uma criança albina, filha de pais negros, estivera em exposição em Paris, e
os pensamentos e observações de Maupertuis serviram de inspiração para a sua
Vénus physique. O trabalho tem o subtítulo: Dissertation physique à Voccasion
du nègre blanc (“Uma dissertação física inspirada pelo negro branco”). Vénus
physique contém duas partes: a primeira seção, bem mais longa, sobre
embriologia e a história natural do amor, e um trecho final, de 45 páginas sobre a
origem das raças humanas. (Esta segunda seção contém algumas especulações
evo-lucionistas mal formadas e é, em boa parte, responsável pela reputação de
precursor de Darwin a ele atribuída — uma avaliação injusta e anacrônica,
baseada numas poucas passagens fugazes que subtraem Maupertuis das
preocupações de seu tempo. Vénus physique é um tratado sobre embriologia e os
excitantes debates de seu próprio século.)
Essa segunda seção apresenta uma discussão de biogeografia humana e tenta
explicar um padrão falso, reconstruído a partir de relatos não confiáveis de
viajantes — uma crença de que os negros habitavam os trópicos, enquanto as
regiões árticas eram a reserva exclusiva de gigantes e anões. Em resumo,
Maupertuis afirma que as raças brancas, superiores, haviam simplesmente
expulsado todos os monstros e esquisitões das regiões temperadas, mais
favoráveis. Podemos perceber com facilidade como a criança albina inspirou os
pensamentos de Maupertuis para essa segunda seção, mas que influência ela
pode ter exercido sobre o âmago da Vénus physique — a primeira e longa seção
sobre embriologia? A resposta a esta questão fornece uma chave para Vénus
physique e uma avaliação adequada da opinião criativa e incomum de
Maupertuis no grande debate embriológico de sua época.
Em uma das polêmicas mais acaloradas da ciência do século XVIII,
estudiosos do desenvolvimento alinharam-se em ambos os lados de uma antiga
dicotomia que datava do tempo da ciência grega. Aristóteles afirmara que o
desenvolvimento embriológico é, ao mesmo tempo, o maior de todos os
mistérios biológicos e a chave para uma compreensão profunda do organismo —
proposições que continuam tão verdadeiras hoje (pois nossa ignorância ainda é
profunda) como quando o “mestre daqueles que sabem” proclamou-as há mais
de dois mil anos. Os cientistas gregos haviam conjecturado dois tipos gerais de
solução, e seus sucessores do século XVIII continuavam a respeitar as
categorias. Um grupo, os pré-formacionistas, argumentava que a embriologia
deve representar a revelação de uma estrutura preexistente. Um homúnculo
minúsculo deve estar enrolado no ovo ou no esperma. Ele não tem de ser uma
miniatura perfeita do adulto — pois a forma e a posição relativas das partes
podem mudar com o crescimento — mas as estruturas devem todas estar
presentes e ligadas desde o início. Um segundo grupo, que incluía Maupertuis,
os epigeneticistas, argumentava que o aspecto visual do desenvolvimento deve
ser respeitado como verdade literal. O embrião parece diferenciar partes
complexas a partir de uma simplicidade original, e é assim que deve ser na
realidade (os pré-formacionistas, em resposta, afirmavam que os microscópios
contemporâneos eram fracos demais para que se pudesse ver partes pré-formadas
no minúsculo e gelatinoso embrião jovem). Embriologia é adição e
diferenciação, não simplesmente revelação.
Devemos rejeitar o tolo roteiro de mocinho e bandido geralmente aplicado a
essa história em falso retrospecto: ou seja, que os pré-formacionistas, devido ao
preconceito religioso, estavam cegos a qualquer tipo de mudança e, portanto,
impuseram ao ovo ou ao esperma o que não podiam observar — ao passo que os
epigeneticistas eram paladinos da ciência empírica e meramente sustentavam o
que viam em seus microscópios.
Na verdade, os pré-formacionistas sustentavam uma ideia de ciência bem
mais próxima da nossa. Eram mecanicistas que insistiam na ideia de uma causa
material para todos os fenômenos. E estavam encalhados no conhecimento
limitado de seu século. Que alternativa tinham eles? A complexidade
assombrosa de um corpo humano não pode se desenvolver misteriosamente a
partir de um nada informe original; os órgãos, portanto, devem estar presentes
desde o início. A maioria dos epigeneticistas, por outro lado, conformava-se com
uma visão de causalidade que hoje rejeitaríamos como sendo “vitalista” — a
ideia de que uma força externa, imaterial, podia impor uma modelação complexa
a um ovo fertilizado que tinha início apenas com potencial não formado.
Maupertuis era um excêntrico notável nesse grande debate, pois era ao
mesmo tempo um epigeneticista fervoroso e um mecanicista dedicado. Portanto,
ao contrário dos seus colegas epigeneticistas, ele esperava encontrar precursores
materiais de todos os órgãos nos ovos ou no esperma. Mas essas partes não
podiam constituir um homúnculo pré-construído. Deviam estar totalmente
espalhadas e completamente desagregadas. Deviam também existir em uma
quantidade bem maior do que a necessitada pelo embrião (pois, se ovos e
esperma contivessem todos os órgãos certos, e apenas eles, então Maupertuis
poderia ter sido rotulado como um pré-formacionista excêntrico, que defendia a
ideia de um homúnculo desarticulado). O desenvolvimento embriológico,
portanto, deve representar seleção, ordenamento, atração e união criativa desses
órgãos separados, não um simples aumento de estruturas já fixadas quanto a
forma, lugar e número. Mas como as partes desagregadas podiam se juntar, e
como as partes certas podiam ser ordenadas e unidas (ou, ocasionalmente, como
as partes erradas eram incorporadas nos fetos anormais)? A ideia de um
homúnculo pré-formado parecia apresentar menos problemas.
Vários dos argumentos de Maupertuis contra o pré-formacionismo eram as
réplicas convencionais de seu tempo. Contra os o vistas (os que colocavam o
homúnculo no ovo feminino) Maupertuis levantava a costumeira, e sempre
perturbadora, questão do capsulamento. Os ovos dos homúnculos devem conter
outros homúnculos, tremendamente menores, e assim por diante, por incontáveis
gerações de uma pequenez inconcebível. Na verdade, toda a história humana
devia estar pré-figurada nos ovários de Eva.

Ovos destinados a produzir homens contêm apenas um único homem. Mas
um ovo com uma mulher contém não apenas essa mulher, mas também seus
ovários, nos quais outras mulheres, já plenamente formadas, estão encerradas
— a fonte de geração infinita. A matéria pode ser infinitamente dividida; a
forma de um feto que nascerá dentro de mil anos pode ser tão distinta quanto
a daquele que nascerá dentro de nove meses?

E por que, afinal, existem homens? O seu sêmen apenas liberta e inspira um
homúnculo anteriormente sem vida? Era esse, pergunta Maupertuis, o fogo que
Prometeu roubou dos deuses?
Contra os espermaticistas (os que colocavam os homúnculos dentro do
esperma), Maupertuis levantava o problema adicional dos vários milhões de
células expelidos em cada ejaculação. A natureza podia ser tão pródiga e dotar
milhões de células sem uso com homúnculos que nunca viveriam?

Este vermezinho, nadando no fluido seminal, contém uma infinidade de
gerações, de pai para pai. E cada [homúnculo] tem seu fluido seminal,
repleto de animais nadando, tão mais minúsculos quanto ele... E que prodígio
quando consideramos a quantidade e o tamanho ínfimo desses animais. Um
homem calculou que um único lúcio, em uma geração, podia produzir mais
lúcios que o número de homens na Terra, mesmo supondo que toda a Terra
fosse tão densamente povoada quanto a Holanda. ... Tão imensa riqueza, uma
fertilidade tão ilimitada na natureza; não temos aqui uma prodigalidade de
recursos! Não podemos dizer que a perda e o gasto são excessivos!

Maupertuis aventou uma função alternativa e interessantemente incorreta
para os recentemente descobertos “animálculos espermáticos” (spermatick
animalcules), como eram chamados por seus colegas ingleses. Ele imaginava
que eles mexiam e misturavam os fluidos seminais do macho e da fêmea,
juntando desse modo as partes que devem formar o embrião.
Maupertuis, no entanto, acrescentou a esse grande contratempo embriológico
alguns argumentos novos e uma perspectiva surpreendentemente original.
Durante séculos, o campo de debate fora o embrião e os seus processos
observáveis de desenvolvimento. A criatividade verdadeira muitas vezes reside
na reunião de campos anteriormente diversos, no reconhecimento de que
fenômenos aparentemente diversos de outras disciplinas podem oferecer
soluções para velhos dilemas. E assim, afinal, voltamos aos albinos e ao
discernimento criativo de Maupertuis.
Maupertuis foi o primeiro entre os cientistas europeus a rastrear os pedigrees
de traços incomuns através de linhagens de família. Ele reconheceu que esses
resultados, aparentemente sem relação com a embriologia, poderiam solucionar
o grande debate a favor da epigênese. Compilou um pedigree de polidactilia
(dedos a mais) ao longo de três gerações de uma família alemã e provou um fato
fundamental, por um bom tempo sugerido em anedotas e folclore, mas nunca
estabelecido conclusivamente: a herança é transmitida através de linhas
masculinas e femininas; isto é, os dedos a mais poderiam ser herdados tanto dos
pais quanto das mães. Maupertuis reconheceu então que esta característica da
hereditariedade, mais do que qualquer outro aspecto direto da embriologia,
poderia resolver o problema do desenvolvimento; pois, de que maneira seria
possível sustentar o pré-formacionismo se ambos os progenitores podem
contribuir para a forma de sua prole? Se os homúnculos estivessem enrolados
nos ovos ou no esperma, o progenitor não contribuinte não deveria desempenhar
um papel igual na forma de sua prole. E o que dizer dos híbridos que portam
traços característicos de dois progenitores pertencentes a diferentes espécies?
Maupertuis concluiu:

Parece-me que um desses sistemas [a versão ovista ou a espermaticista do
pré-formacionismo] é completamente destruído pela semelhança da criança,
às vezes com o pai, às vezes com a mãe, e pelos animais intermediários
nascidos de progenitores de duas espécies diferentes. ... Como a criança se
assemelha a ambos, creio que devemos concluir que ambos os progenitores
desempenham um papel igual no seu desenvolvimento.

Maupertuis não pôde computar o pedigree da criança albina de pais negros
exibida em Paris. Mas ele sabia que o albinismo fora rastreado ao longo de
linhagens familiares entre negros do Senegal e afirmou que o albinismo, assim
como a polidactilia, ajudava a cavar a sepultura do pré-formacionismo. De
qualquer modo, o “negro branco” inspirou-o a organizar seus pensamentos sobre
o desenvolvimento e a escrever um dos clássicos da ciência do século XVIII.
Os pré-formacionistas tinham uma resposta-padrão para o fenômeno da
herança adquirida dos dois pais. Eles afirmavam que um progenitor carregava o
homúnculo, enquanto o fluido seminal do segundo progenitor o modificava.
Maupertuis ridicularizou esse argumento especialmente tal como aplicado ao
desenvolvimento de mulas a partir de uma égua e um burro:

Se p feto estivesse no verme [espermático] que nada no fluido seminal de seu
pai, por que ele às vezes deveria se assemelhar à sua mãe? Se estivesse
apenas no ovo de sua mãe, que forma ele teria em comum com seu pai? Se o
cavalinho estivesse já formado no ovo de sua mãe, ele desenvolveria orelhas
de burro porque [o fluido seminal de] um asno põe partes do ovo em
movimento?

Apesar da retórica de Maupertuis, a resposta pré-formacionista não era
absurda quando aplicada a traços comuns, continuamente variáveis. O
homúnculo pequeno de um progenitor poderia ser alongado pelo fluido
espermático de um progenitor mais alto; mesmo as orelhas de um cavalo podiam
ser esticadas após o contato com os vigorosos movimentos do sêmen de um
asno. Mas Maupertuis dispunha de um argumento bastante forte para traços
singulares e distintos — a polidactilia e o albinismo, por exemplo. Estas
características pareciam exatamente as mesmas na prole, fossem elas herdadas
de pais ou mães. Era de fato possível acreditar que a herança funcionaria
exatamente do mesmo modo nos traços rigidamente pré-formados num
homúnculo e naqueles causados apenas pelos movimentos no fluido seminal do
progenitor não contribuinte?
Maupertuis também usou o negro branco para formular mais dois
argumentos contra o pré-formacionismo. Em primeiro lugar, ele considerava o
albinismo como um tipo de deformidade e, portanto, análogo a nascimentos
monstruosos (dos irmãos siameses à polidactilia). Tais anomalias fetais
propunham um grande problema para os pré-formacionistas. Se aceitassem a
monstruosidade como plenamente pré-formada, teriam de enfrentar o dilema
teológico de uma divindade incompreensível e malévola capaz de arquitetar tais
infelicidades e programá-las nos ovários de Eva. Se argumentassem (como
geralmente faziam) que as partes a mais indicavam a fusão acidental de dois
homúnculos, não seria forçar demais a imaginação afirmar que uma criança
polidáctila recebeu quase tudo o que tem de um germe e apenas um dedo de
outro? De qualquer modo, tal explicação não serviria para o albinismo. Seria
preciso acreditar que uns poucos homúnculos brancos haviam sido espalhados
no progenitor de pessoas negras. Possível, mas improvável.
Em segundo lugar, Maupertuis argumentou que o pré-formacionismo não
podia explicar facilmente a origem de cores diferentes de pele humana a partir
de um único progenitor:

A primeira mãe deve ter contido ovos de cores diferentes, os quais
carregariam uma série inumerável de ovos da mesma cor... mas que só
seriam chocados no tempo determinado pela Providência para a origem das
pessoas neles contidas. Não seria então impossível que, um dia, a série de
ovos brancos destinados a povoar nossa região viesse a se esgotar e todas as
nações europeias mudassem de cor; assim como também não seria
impossível que a fonte de ovos negros viesse a se exaurir e a Etiópia passasse
a ter só habitantes brancos.

Maupertuis usou com eficácia o negro branco para ordenar seus argumentos
contra o pré-formacionismo, mas o que ele podia oferecer para explicar a sua
peculiar versão de epigênese? Uma vez que se recusava a admitir quaisquer
forças condutoras externas, vitalistas, ele tinha de descobrir uma fonte de ordem
dentro dos próprios fluidos seminais. Como se juntavam todas as partes
desagregadas e por que as partes certas geralmente se unem — tornando desse
modo tão difícil a intromissão de partes a mais e explicando a raridade de
anomalias como a polidactilia? Aqui, Maupertuis chegou a um impasse, apesar
de trabalhar arduamente para resolvê-lo.
Sua melhor sugestão voltava à perspectiva newtoniana, tão importante para
sua visão científica geral. Se a gravidade regulava a atração de objetos físicos,
então um tipo de gravidade devia juntar as partes certas para formar um feto. As
partes dos olhos teriam uma afinidade natural por partes do nariz, partes do nariz
por partes dos dentes, e assim por diante, até que um animal inteiro pudesse ser
construído, exatamente como os ossos secos ganharam vida no deserto de
Ezequiel. Além disso, as partes de olhos maternas e paternas teriam chances
iguais de se juntar ao feto e um embrião completo seria, portanto, um amálgama
de traços de ambos os progenitores.

Por que, se esta força [a gravidade no sentido de atração] existe na natureza,
ela não deveria regular a formação de corpos animais? Se o fluido seminal de
cada progenitor contém partes destinadas a formar o coração, a cabeça, o
intestino, os braços, as pernas, e se cada uma dessas partes tem uma
afinidade maior de união com as partes vizinhas do animal completo do que
com qualquer outra parte, então o feto se construirá sozinho.

Maupertuis sentia que os monstros com partes a mais ofereciam uma
fundamentação especial para a sua teoria gravitacional porque os órgãos
excedentes sempre se formavam no lugar certo. Um dedo extra nunca se projeta
da barriga ou da nuca, mas sempre junto aos outros cinco, provando assim que as
partes do dedo têm uma afinidade maior entre si e pelas regiões vizinhas na mão.
Como adoro participar de batalhas intelectuais, mesmo que apenas
indiretamente, fiquei muito entusiasmado, ao ler Vénusphysique, com a
oportunidade de ver um homem brilhante lutando para explicar o maior mistério
da biologia e tendo pleno conhecimento de que, apesar de todo o esforço
dispendido ao longo de duzentas páginas, não havia conseguido. Maupertuis
sentia que sua teoria gravitacional era fraca, que não estava fundamentada em
nenhum indício concreto e tinha suas raízes mais na analogia do que em
qualquer observação concreta. No entanto, ele tinha de propor algo e não
conseguiu pensar em nada melhor. Afinal, Maupertuis estava firmemente
comprometido com sua perspectiva mecanicista geral e sua teoria específica da
epigênese — e estas posições intelectuais o forçavam a afirmar que devem
existir partículas materiais para a formação do feto nos fluidos seminais de
ambos os progenitores, já que forças vitalistas não podiam conduzir à
diferenciação de estruturas complexas a partir do nada. Ele optou por partes
desagregadas, misturadas no fluido seminal, mas, de algum modo, capazes de se
encontrarem e formarem o embrião. E ele percebeu corretamente a natureza
insatisfatória e improvável de sua teoria.
Hoje diríamos que o discernimento fundamental de Maupertuis estava
correto: a complexidade não pode surgir de um potencial informe; deve existir
algo no ovo e no esperma. Mas agora temos um conceito radicalmente diverso
desse “algo”. Onde Maupertuis não conseguiu pensar em nada além de partes
concretas, descobrimos instruções programadas. Os óvulos e os espermatozoides
não carregam partes, mas apenas instruções codificadas, escritas em DNA, para
dirigir a construção de um embrião adequado.
Não havia, porém, como Maupertuis chegar a essa refinada solução, já que
seu século não dispunha de noções análogas no pensamento e na tecnologia para
imaginar um processo de abstração de órgãos concretos em regras programadas
para a sua construção. Instruções programadas não faziam parte do equipamento
intelectual dos pensadores do século XVIII. As caixas de música apontavam na
direção certa, mas a primeira invenção revolucionária baseada em instruções
programadas, o tear Jacquard, não surgiu até o início do século XIX. Esse
instrumento automático de tecelagem, com instruções em cartões perfurados,
inspirou diretamente a invenção posterior de Hollerith de cartões de dados para
máquinas de censo (mais tarde metamorfoseado no famoso cartão de
computador IBM — não dobre, não enrole, não mutile). Como Maupertuis
poderia imaginar a solução correta do seu dilema — instruções programadas —
num século que nem tinha pianolas, quanto mais programas de computador?
Muitas vezes, pensamos ingenuamente que os dados não descobertos são os
principais empecilhos do progresso intelectual — basta encontrar os fatos certos
e todos os problemas se dissipam. Mas as barreiras muitas vezes são mais
profundas e abstratas no pensamento. Devemos ter acesso à metáfora correta,
não apenas à informação necessária. Os pensadores revolucionários não são,
primariamente, coletores de fatos, mas construtores de novas estruturas
intelectuais. No fim, Maupertuis fracassou porque sua era ainda não
desenvolvera uma metáfora dominante de nossa época — instruções codificadas
como precursoras de complexidade material.




3. A importância da taxonomia

10. De vespas e WASPs




“Ele está proferindo o insulto do século contra nossas mães, esposas, filhas e
irmãs, sob o pretexto de estar oferecendo uma grande contribuição para a
pesquisa científica.” Foi assim que Louis B. Heller, congressista por Nova York,
rotulou o relatório Kinsey sobre o Comportamento sexual da mulher (1953) em
uma carta ao diretor-geral dos Correios, exigindo que o livro fosse banido das
malas postais. O dr. Henry Van Dusen, presidente do Union Theological
Seminary, duvidou dos fatos apresentados por Kinsey, mas proclamou que se,
não obstante, eles fossem verdadeiros, “revelam uma degradação vigente na
moralidade americana que se aproxima da pior decadência do império romano”.
“O mais perturbador”, prosseguiu Van Dusen na sua dura crítica ao relatório
Kinsey, “é a ausência de uma repulsa ética, espontânea, pelas premissas do
estudo.”
No entanto, as premissas pareciam bastante simples. Kinsey havia procurado,
através de extensas entrevistas com mais de 5.000 mulheres, compilar um
registro estatístico do que as pessoas realmente fazem, em vez do que a lei e o
costume dizem que elas deveriam fazer. Ele não emitiu nenhum julgamento —
apenas relatou suas descobertas; no entanto, ele, sem dúvida, descobriu uma
frequência de relações sexuais pré-matrimoniais e extraconjugais que, no
mínimo, perturbava o código cavalheiresco de muitas pessoas ingênuas,
hipócritas ou presunçosamente satisfeitas consigo mesmas — sobretudo os
homens mais velhos no poder.
Alfred C. Kinsey sofreu o infortúnio de publicar seu relatório em 1953,
quando os Estados Unidos viviam o auge da histeria macartista (o relatório
anterior, de 1948, sobre o Comportamento sexual do homem causara sensação,
mas não havia inspirado tamanha calúnia, talvez porque a sociedade sempre
tenha aceitado uma amplitude maior de comportamentos entre os homens, e
porque o clima político dos primeiros anos do pós-guerra tenha sido mais
liberal). Muitos rotularam o relatório Kinsey sobre a sexualidade feminina como
um exercício de comunismo ou, se não diretamente subversivo, enfraquecedor
para a fibra moral americana num grau suficiente para facilitar o acesso (a grafia de
vespa [wasp] é igual à de WASP, abreviatura de White Anglo-Saxon Protestant [Protestante anglo-saxão
branco], usada para se designar a maioria dominante nos Estados Unidos - N.T.) comunista às nossas
perturbadas praias. Uma comissão especial do Congresso, estabelecida para
investigar o uso de fundos da parte de fundações isentas de impostos, repreendeu
a Fundação Rockfeller. A fundação capitulou diante dessas e de outras pressões,
e a principal fonte de patrocínio de Kinsey cessou abruptamente em 1954. A
Comissão Reece emitiu seu relatório majoritário em dezembro de 1954,
acusando algumas fundações de usar verbas isentas de impostos em estudos que
“apoiavam diretamente a subversão”. Os relatórios Kinsey foram citados
explicitamente como indignos da ajuda recebida. Kinsey nunca encontrou uma
fonte alternativa de patrocínio; morreu dois anos depois, sobrecarregado de
trabalho, irritado, e angustiado com a perspectiva de que dados adicionais,
resultantes de anos de pesquisas, talvez nunca viessem a ser publicados (o
financiamento foi renovado mais tarde, mas não a tempo de fazer justiça a
Kinsey pessoalmente).
Kinsey não batalhou a vida inteira pelo esclarecimento sexual. Ele se deixou
levar para o campo da pesquisa sobre a sexualidade quase que por acidente
(embora não sem um interesse anterior). Fora treinado como entomologista e
era, na época da mudança de carreira, um dos mais importantes taxonomistas de
vespas (de seis pernas, não de duas) dos Estados Unidos. Pouco depois da
mudança, ele iniciou uma palestra Phi Beta Kappa na Universidade de Indiana
com estas palavras:

Ocupei-me com a variação individual como fenômeno biológico durante uns
vinte anos de exploração de campo e pesquisa de laboratório. Na avaliação
intensa e extensa de dezenas de milhares de pequenos insetos que vocês
provavelmente nunca viram e nos quais provavelmente não estão
interessados, tentei obter os dados específicos e a quantidade de dados sobre
os quais deve se fundamentar o trabalho científico. Durante os dois últimos
anos, como resultado de uma convergência de interesses, vi-me confrontado
com material sobre variação em certos tipos de comportamento humano.

A maioria das pessoas, ao tomar conhecimento da carreira anterior de
Kinsey, tende a considerar a descoberta com uma surpresa divertida. Que coisa
mais estranha, um homem que mais tarde sacudiria os Estados Unidos ter gasto a
maior parte de sua carreira profissional com a taxonomia de insetos minúsculos.
Certamente não pode haver relação alguma entre duas carreiras tão diversas.
Como escreveu um gaiato na página de rosto da única cópia de Harvard da maior
monografia de Kinsey sobre vespas: “Por que você não escreve sobre algo mais
interessante, Al?”
Quero afirmar, porém, que as vespas e os WASPs de Kinsey estavam
intimamente relacionados pela abordagem intelectual que ele usou para ambos.
E como as vespas precederam os WASPs, a carreira de taxonomista de Kinsey
teve um impacto direto e profundo sobre as suas pesquisas a respeito da
sexualidade. Na verdade, Kinsey empreendeu as suas pesquisas sobre
sexualidade seguindo um “modo de pensamento taxonômico” particular, um
estilo válido de ciência que não se assemelha à maioria dos estereótipos do
empreendimento. O caráter especial da obra de Kinsey — os aspectos que lhe
trouxeram tanta fama e tantos problemas — fluiu diretamente da abordagem
taxonômica que ele aprendera e aperfeiçoara como entomologista.
Além das conclusões específicas que tanto chocaram os Estados Unidos —
basicamente, a grande frequência de coisas que pessoas decentes não fazem,
como homossexualismo, relações sexuais pré-conjugais e extramatrimoniais
entre mulheres, a grande frequência de contato sexual com animais entre homens
criados em fazendas —, Kinsey sacudiu o mundo com seu processo de
abordagem da pesquisa sobre sexualidade. Ele trabalhou com três premissas
básicas, todas diretamente provenientes de sua perspectiva taxonômica. A
primeira, que fundamentaria suas conclusões em amostragens bem maiores do
que as colhidas pbr qualquer pesquisador anterior. Bastava de extrapolações para
toda a humanidade a partir de uma população pequena e homogênea de
universitários. A segunda, sua amostragem seria heterogênea — velhos e jovens,
campo e cidade, pobres e ricos, analfabetos e indivíduos com formação superior.
Assim como as vespas variavam de árvore para árvore, as classes, os sexos e as
gerações podiam diferir amplamente no comportamento sexual. A terceira, ele
não emitiria quaisquer julgamentos, limitando-se apenas a descrever o que as
pessoas faziam.
Kinsey fez o doutorado em entomologia em Harvard, e então aceitou um
posto de professor assistente de zoologia na Universidade de Indiana, onde
permaneceu toda a sua vida. Gastou os primeiros vinte anos de sua carreira num
estudo, conduzido com uma minúcia sem precedentes, sobre a taxonomia, a
evolução e a biogeografia das vespas formadoras de galhas do gênero Cynips.
Essas pequenas vespas põem seus ovos nos tecidos de plantas (geralmente folhas
ou caules de carvalho). Quando as larvas nascem, elas induzem a planta a formar
uma galha ao redor delas, assegurando desse modo proteção e uma fonte de
alimento. As larvas amadurecem dentro das galhas, emergindo por fim como
insetos alados, para reiniciar o processo. Kinsey apresentou seu trabalho sobre o
gênero Cynips numa quantidade de dissertações menores e em duas grandes
monografias, The Gall Wasp Geri us Cynips; A Study in the Origin of Species
(1930) [A vespa das galhas do gênero Cynips: um estudo sobre a origem das
espécies] e The Origin of Higher Categories in Cynips (1936) [A origem de
categorias superiores no gênero Cynips] — ver Bibliografia.
Em 1938, em resposta a pedidos de estudantes, a universidade instituiu um
curso, sem atribuição de créditos, sobre casamento (um eufemismo, acho eu,
para educação sexual). Pediram a Kinsey, que planejara passar o resto da vida
estudando vespas, que servisse como presidente da comissão para regular o
curso e que desse três aulas sobre a biologia do sexo. Kinsey era escrupuloso e
empírico ao extremo. Foi à biblioteca procurar as informações necessárias sobre
a resposta sexual humana — e não conseguiu. Então decidiu que ele mesmo teria
de compilá-las. Começou entrevistanto estudantes, mas logo percebeu que não
estava conseguindo informações representativas da heterogeneidade americana.
Passou a viajar nos finais de semana, colhendo informações em cidades
próximas às suas próprias custas. Desenvolveu um amplo roteiro para as
entrevistas e escreveu as respostas em código a fim de assegurar o anonimato (a
habihdade intuitiva de Kinsey como entrevistador tornou-se lendária). Registrou
uma variação enorme de comportamento sexual entre pessoas de diferentes
condições econômicas, estendendo suas pesquisas a Gary, Chicago, Saint Louis
e a prisões de Indiana. À medida que seu trabalho se tornava mais pú-bbco, as
críticas aumentaram, mas a universidade manteve-se firme em seu apoio ao
direito de saber de Kinsey.
Por fim, com o respaldo da universidade, ele estabeleceu o Instituto de
pesquisa sexual e obteve dinheiro da Fundação Rockfeller para as crescentes
entrevistas e a sua publicação. O trabalho culminou em dois grandes volumes,
Comportamento sexual do homem e Comportamento sexual da mulher, cada um
deles fundamentado em mais de 5.000 entrevistas com americanos brancos dos
mais diversificados antecedentes. (Fiel às suas convicções sobre o caráter
fundamental da variabilidade, Kinsey sabia que não dispunha de dados
suficientes para obter conclusões sobre americanos negros ou para fazer
extrapolações para outras nações e culturas.) Bem antes que surgissem esses
volumes, com muita relutância e tristeza, mas com uma inevitabilidade
progressiva, Kinsey abandonara os estudos sobre vespas que tanto prazer tinham
lhe dado e que haviam estabelecido seus padrões de trabalho científico.
Embora Kinsey tenha limitado seus trabalhos principais sobre vespas a uma
única família, a Cynipidae, seus objetivos eram amplos como a própria história
natural. Ele pensou profundamente sobre a prática e o significado da
classificação e tinha esperanças de reformular os princípios da taxonomia. Em
1927, escreveu:

A partir do nosso trabalho com Cynipidae, em conexão com um estudo da
obra publicada em outros campos da taxonomia, proponho uma tentativa de
formulação da filosofia da taxonomia, da sua utilidade como meio de retratar
e explicar as espécies tal como existem na natureza, e da sua importância na
coordenação e elucidação de dados biológicos.

Kinsey sentiu que poderia alcançar esses objetivos maiores executando um
estudo específico sem precedentes, com uma riqueza tal de detalhes concretos
que os princípios maiores surgiriam do próprio volume de informações. Kinsey
revelou-se um viciado em trabalho antes mesmo que se falasse nisso. Durante
uma viagem de estudos que lhe foi financiada, em 1919-1920, ele percorreu
18.000 milhas (2.500 a pé) em regiões do sul e do oeste dos Estados Unidos, e
coletou por volta de 300.000 espécimes de vespas das galhas. Suas duas viagens
a zonas rurais do México e da América Central foram monumentos ao seu
esforço insaciável. Na monografia de 1936, ele lamentava que, para cada uma
das suas 165 espécies, havia coletado, em média, “apenas” 214 insetos e 755
galhas. Para 51 dessas espécies (grupos variáveis em regiões de topografia
uniforme), ele declarava que não se daria por satisfeito antes de colher um total
geral de 1.530.000 insetos e de 3 a 4 milhões de galhas!
Havia mais do que simples mania de coleta nos desejos expressados por
Kinsey e em seus esforços concretos. Um estatístico moderno poderia muito bem
argumentar que Kinsey tinha uma avaliação inadequada da teoria de
amostragem; na verdade, não é preciso colher tudo. Ainda assim, Kinsey
prosseguiu com sua copiosa coleta porque operava e centrava suas crenças
biológicas sobre um princípio cardeal: a primazia e a irredutibilidade da
variação.
Ironicamente, boa parte da prática taxonômica não havia de todo assimilado
essa mudança fundamental introduzida na biologia pela teoria da evolução.
Muitos taxonomistas ainda viam o mundo como uma série de escaninhos, cada
um abrigando uma espécie. As espécies, neste parecer, deviam ser definidas
pelas suas “essências” — características fundamentais separando-as de todas as
outras. A variação era considerada, na melhor da hipóteses, como um “ruído” —
um tipo de espalhamento acidental ao redor da forma essencial, servindo apenas
para criar confusão na hora de distribuir os escaninhos. A maioria dos
taxonomistas clássicos tratava a variação como um mal necessário e muitas
vezes estabeleciam espécies depois de estudar apenas alguns poucos espécimes.
Os taxonomistas como Kinsey, que compreendiam as implicações plenas da
teoria da evolução, desenvolveram uma atitude radicalmente diversa para com a
variação. Existem ilhas de forma, é claro: os felinos não fluem juntos num mar
de continuidade, mas apresentam-se a nós, mais exatamente, como leões, tigres,
linces, gatos e assim por diante. Ainda assim, embora as espécies possam ser
distintas, elas não possuem nenhuma essência imutável. A variação é a matéria-
prima da mudança evolutiva. Ela representa a realidade fundamental da natureza,
não um acidente sobre uma norma criada. A variação é primária; as essências
são ilusórias. As espécies devem ser definidas como amplitudes de variação
irredutível.
Este modo antiessencialista de pensar tem profundas consequências na nossa
visão básica da realidade. Desde que Platão lançou sombras na parede da
caverna, o essencialismo domina o pensamento ocidental, encorajando-nos a
negligenciar as continuidades e a dividir a realidade num conjunto de categorias
corretas e imutáveis. O essencialismo estabelece critérios de julgamento e valor:
objetos individuais próximos de sua essência são bons; os que se afastam dela
são ruins, quando não irreais.
O pensamento antiessencialista força-nos a ver o mundo de modo diferente.
Devemos aceitar nuanças e continuidades como fundamentais. Perdemos os
critérios de julgamento baseados na comparação com algum ideal: pessoas
baixas, pessoas retardadas, pessoas de outras crenças, cores e religiões são
pessoas em sentido pleno. O taxonomista essencialista cava um punhado de
caramujos fósseis de uma única espécie, tenta abstrair uma essência e classifica
os caramujos por meio de sua correspondência com a média obtida. O
antiessencialista vê algo inteiramente diverso em suas mãos — uma amplitude
de variação irredutível que define a espécie, algumas variantes mais frequentes
do que outras, mas todos caramujos perfeitamente bons. Ernst Mayr, nosso
principal teórico de taxonomia, escreveu larga e aprimoradamente sobre a
diferença entre o essencialismo e a variação como realidade última
(“pensamento em termos de população” [population thinking] na sua
terminologia — ver seu recente livro, The Growth of Biological Thought).
Kinsey, que compreendia tão bem as implicações da teoria da evolução, era
um antiessencialista radical em taxonomia. Sua crença na primazia da variação
incitou um esforço quase frenético para coletar sempre mais espécimes. Sua
crença em continuidades forçou-o a explorar virtualmente cada centímetro
quadrado de território apropriado para as Cynips na América do Norte — pois
sempre que encontrava grandes lacunas, ele tinha fortes suspeitas (em geral
corretas) de que formas intermediárias seriam encontradas em alguma área
geograficamente contígua.
No fim, o antiessencialismo de Kinsey tornou-se quase que excessivamente
radical. Ele estava tão convencido de que as espécies se convertiam
gradualmente em outras, que passou a nomear variantes geográficas
intermediárias legítimas dentro de uma única espécie como entidades separadas,
estabelecendo uma taxonomia intumescida, com nomes completos para variantes
locais transitórias e menores. (Kinsey decidiu que as espécies surgiam por meio
da disseminação nas populações locais de mutações distintas com efeitos
pequenos. Assim, sempre que encontrava uma população local diferindo de
outras por mutações do tipo produzido em animais de laboratório, ele estabelecia
uma nova espécie. Mas as populações locais dentro de uma espécie muitas vezes
estabelecem pequenas mutações sem perder seu vínculo central com o resto da
espécie — a capacidade de se cruzarem entre si.)
Mais importante para a história social americana, Kinsey transportou
integralmente para as suas pesquisas sexuais o antiessencialismo radical de seus
estudos entomológicos. Os vinte anos de Kinsey com as Cynips não podem ser
julgados como uma distração inútil quando comparados com a fonte posterior de
sua fama. Mais exatamente, o trabalho com vespas de Kinsey estabeleceu a
metodologia e os princípios de raciocínio que fizeram dele um pioneiro na
pesquisa da sexualidade.
Não estou simplesmente fazendo inferências eruditas sobre continuidades
que o mestre do antiessencialismo não reconhecia. Kinsey sabia muito bem o
que estava fazendo. Ele não se arrependeu por nenhum momento gasto com
vespas, não só porque ele as adorava, mas também porque o estudo a respeito
delas havia estabelecido os seus conceitos intelectuais. No primeiro capítulo de
seu primeiro tratado sobre o Comportamento sexual do homem, Kinsey incluiu
uma notável seção sobre “a abordagem taxonômica”, com dois subtítulos, “na
biologia”, seguido pela transferência explícita, “nas ciências aplicadas e sociais”.
Kinsey escreveu:

As técnicas desta pesquisa foram taxonômicas, no sentido em que os
biólogos modernos empregam o termo. Ela nasceu da longa experiência do
autor principal com um problema de taxonomia de insetos. A transferência
de material, de insetos para humanos, não é ilógica, pois foi uma
transferência de um método que pode ser aplicado ao estudo de qualquer
população variável.

A amostragem ampla foi a marca registrada da obra de Kinsey. A maioria
dos primeiros estudos sobre o comportamento sexual humano havia ou
confinado o relatório a casos incomuns (a Psychopa-thia Sexualis de Krafft-
Ebings, por exemplo) ou feito generalizações a partir de amostragens pequenas e
homogêneas. Se Kinsey tivera esperanças de obter milhões de vespas e galhas,
ele entrevistaria, pelo menos, vários milhares de pessoas. Ele sabia que precisava
de quantidades assim grandes porque sua perspectiva antiessencialista
proclamava duas verdades sobre a variação, igualmente válidas para vespas e
pessoas — populações aparentemente homogêneas em um lugar (todos os
universitários de Indiana, ou todos os assassinos de Alcatraz) exibiriam uma
enorme amplitude de variação irredutível, e populações locais distintas em
lugares diferentes (mulheres mais velhas da classe média em Illinois, ou rapazes
pobres em Nova York) iriam diferir amplamente em comportamentos sexuais
médios. (Os biólogos referem-se a esses dois tipos de variação como
intrapopulacional [within— population] e interpopulacional [between-
population].) Kinsey decidiu que teria de colher amostras de vários grupos
diferentes e em grandes quantidades dentro de cada grupo. No primeiro
parágrafo de seu tratado sobre os homens ele escreveu:

Trata-se de um levantamento em busca de fatos no qual se tenta descobrir o
que as pessoas fazem no que diz respeito à atividade sexual, e quais fatores
explicam as diferenças de comportamento sexual entre os indivíduos e entre
os vários segmentos da população.

Na seção sobre “a abordagem taxonômica em biologia” ele explicou por que
sua experiência com vespas havia estabelecido seus métodos para humanos:

A taxonomia moderna é o produto de uma consciência crescente entre os
biólogos da singularidade de cada indivíduo, e da grande amplitude de
variação que pode ocorrer em qualquer população de indivíduos. O
taxonomista, portanto, ocupa-se principalmente com a medida da variação.

A crença de Kinsey na primazia da variação e da diversidade tornou-se uma
cruzada. Sua palestra Phi Beta Kappa, “Indivíduos”, tinha como foco a “não-
identidade ilimitada” entre os organismos de qualquer população e criticava
duramente tanto os cientistas biológicos quanto os sociais por tirarem conclusões
gerais a partir de amostragens pequenas e relativamente homogêneas. Por
exemplo:

Um camundongo num labirinto, hoje, é tomado como uma amostra de todos
os indivíduos, de todas as espécies de camundongos sob todos os tipos de
condições, ontem, hoje e amanhã. Meia dúzia de cães, de pedigrees
desconhecidos e raças sem nome, são descritos como “cães” — significando
todos os tipos de cães — se, na verdade, as conclusões não forem explícitas
ou pelo menos implicitamente aplicadas a você, seus primos e a todos os
outros tipos e descrições de humanos... Um famoso químico americano de
colóides estarrece o país com o anúncio de uma nova cura para viciados em
drogas; e só depois que outros laboratórios relatam seu fracasso na obtenção
de resultados similares é que ficamos sabendo que os experimentos originais
foram baseados em meia dúzia de indivíduos.

Como segunda transferência importante do seu antiessencialismo baseado na
entomologia, Kinsey enfatizou repetidamente a impossibilidade de se classificar
a resposta sexual humana colocando as pessoas em categorias rigidamente
definidas. Assim como as suas vespas formavam cadeias de continuidade de uma
espécie para outra, a resposta sexual humana podia ser fluida, mutável e
desprovida de fronteiras rígidas. Da homossexualidade masculina, ele escreveu:

Os homens não representam duas categorias distintas, heterossexuais e
homossexuais. O mundo não deve ser dividido em carneiros e bodes. Nem
todas as coisas são negras, nem todas as coisas são brancas. É um princípio
fundamental da taxonomia o fato de que a natureza raramente lida com
categorias distintas. Apenas a mente humana inventa categorias e tenta forçar
fatos em nichos separados. O mundo vivo é uma continuidade em todo e
cada um de seus aspectos. Quanto mais cedo tomarmos conhecimento disso,
no tocante ao comportamento sexual humano, mais cedo alcançaremos uma
compreensão sólida das realidades da sexualidade.

A terceira transferência — a que por fim trouxe tantos problemas a Kinsey
— levantava a polêmica questão do julgamento. Se a variação é primária,
abundante, e irredutível, e se as espécies não possuem essências, então que
critério “natural” de julgamento podemos descobrir? Uma variante singular é um
membro de sua espécie tanto quanto um indivíduo médio. Mesmo que os
indivíduos médios sejam mais comuns que os organismos peculiares, quem pode
identificar um ou outro como “melhor” — pois as espécies não possuem
nenhuma forma “certa” definida por uma essência imutável? Kinsey escreveu
em “Indivíduos”, mais uma vez tornando explícita sua referência a vespas:

Prescrições são meramente confissões públicas de prescritores. ... O que é
certo para um indivíduo pode ser errado para outro; e o que é pecado e
abominação para um indivíduo pode ser uma parte valiosa da vida de outro.
A amplitude de variação individual, em qualquer caso particular, é
habitualmente bem maior do que geralmente se compreende. Alguns dos
caracteres estruturais dos meus insetos variam em até mil e duzentos por
cento. Isso significa que populações de uma única localidade podem conter
indivíduos com asas de 15 unidades de comprimento, e outros indivíduos
com asas de 175 unidades de comprimento. Em alguns dos caracteres
morfológicos e fisiológicos que são fundamentais no comportamento
humano que estou estudando, a variação é de uns bons doze mil por cento.
No entanto, as fórmulas sociais e os códigos morais são prescritos como se
todos os indivíduos fossem idênticos; e emitimos julgamentos, damos
prêmios, e empilhamos castigos, sem levar em consideração as diversas
dificuldades envolvidas quando pessoas tão diferentes têm de enfrentar
exigências uniformes.

Em seus dois extensos relatórios, Kinsey afirmou repetidamente que se
limitara apenas a registrar os fatos do comportamento sexual sem emitir ou
mesmo insinuar julgamentos. No prefácio do seu relatório sobre homens, ele
escreveu:

Há algum tempo vem surgindo uma consciência crescente entre várias
pessoas da necessidade de se obter dados a respeito da sexualidade que
representariam um acúmulo de fatos científicos completamente divorciado
de questões de valor moral e de costume social.

Seus críticos retrucaram argumentando que uma ausência de julgamento no
contexto de um registro tão extenso é, ela própria, uma forma de julgamento.
Acho que eu teria de concordar. Não vejo nenhuma possibilidade de uma ciência
social completamente “livre de valores”. Kinsey pode ter negado nos próprios
relatórios, mas a declaração recém citada do seu ensaio de 1939 deixa bem clara
a sua convicção de que atitudes de não-julgamento são moralmente preferíveis
— e a própria crença na primazia da variação tem implicações evidentes. Pode-
se desprezar o que a natureza oferece como fundamental? (É claro que sim, mas
poucas pessoas apoiarão uma ética que rejeita a vida e o mundo tal como
inevitavelmente os encontramos.)
De qualquer modo, qual é a alternativa? Não devemos compilar os dados
concretos do comportamento sexual humano? Ou as pessoas que levam a cabo
tal estudo devem salpicar cada descoberta com pitadas de avaliação irrelevante
do seu valor moral a partir dos próprios pontos de vista? Seria mesmo muita
arrogância. Contudo, devo confessar por fim que minha aprovação de Kinsey e
minha forte atração por ele devem-se aos valores que compartilhamos. Eu
também sou um taxonomista.
No começo de The Grapes of Wrath (As vinhas da irá), quando Tom Joad
vai para casa após cumprir pena na prisão, ele encontra Casy, seu antigo
pregador. Casy explica que não preside mais cultos porque não podia reconciliar
seu comportamento sexual (muitas vezes inspirado pelo fervor do próprio culto)
com o conteúdo de suas pregações:

Eu disse, “Vai ver que não é pecado. Vai ver que as pessoas são assim
mesmo.”... Bem, eu tava debaixo de uma árvore quando descobri isso, e eu
dormi. E anoiteceu, e tava escuro quando eu acordei. Tinha um coiote uivando
por perto. Antes que eu percebesse, eu tava falando alto... “Não tem pecado e
não tem virtude. Só tem as coisas que as pessoas fazem. ... E algumas das coisas
que as pessoas fazem são boas, e outras não são boas, mas é só isso que um
homem tem o direito de dizer.”

11. Opus 100


(Este é o quarto volume de ensaios compilado da minha coluna mensal na revista Natural History. Alcancei a marca de dez anos de
trabalho, e como não deixei de cumprir um único prazo de entrega [não vou falar nada sobre as várias entregas em cima da hora],
com este ato de autoindulgência, concedo a mim mesmo este pequeno prazer pelo meu centésimo esforço).



Durante toda uma longa década de ensaios, eu nunca escrevi, por motivos
óbvios, sobre o tema de biologia mais próximo de mim. No entanto, desta vez,
no meu centésimo esforço, peço a sua indulgência para lhe impingir o Cerion,
um caracol terrestre das Bahamas, esteio da minha pesquisa pessoal e do meu
trabalho de campo. Eu amo o Cerion de todo coração e intelecto, mas tenho-o
evitado conscientemente neste foro porque a linha que separa o interesse geral da
paixão pessoal não pode ser traçada a partir de uma perspectiva de imersão total
— a imagem de pais-coruja atordoando de sono amigos e vizinhos com filmes
de família vem facilmente à lembrança. Estes ensaios devem seguir duas regras
inflexíveis: eu nunca minto, e esforço-me bravamente para não entediá-los.
Desta vez, porém, dentre cem, colocarei em risco a segunda apenas pelo meu
prazer pessoal.
O Cerion é o caracol terrestre mais conhecido nas ilhas das índias
Ocidentais. É encontrado desde as Ilhas Key, na Flórida, até as pequenas ilhas de
Aruba, Bonaire e Curaçao, perto da costa venezuelana, mas a vasta maioria das
espécies habita dois centros principais — Cuba e Bahamas. A vida do Cerion
não é muito excitante, segundo os nossos padrões. A maioria das espécies habita
as rochas e a vegetação esparsa limítrofes ao litoral. Podem viver de cinco a dez
anos, mas passam a maior parte desse tempo no que equivale, em climas
quentes, à hibernação (o entorpecimento de estio), pendurados de ponta-cabeça
na vegetação ou fixados em rochas. Após uma chuva ou às vezes no frescor e
umidade relativos da noite, eles descem de seus galhos e pedras, mordiscam os
fungos da vegetação que se decompõe, e às vezes até copulam. Nós marcamos e
mapeamos o movimento de caracóis individuais e muitos podem ser encontrados
nos mesmos metros quadrados de campo, ano após ano.
Por que escolher o Cerion? Realmente, por que gastar tanto tempo em cada
detalhe particular quando todas as estonteantes generalidades da teoria evolutiva
clamam pelo estudo de uma vida inteira, tempo suficiente para dar conta de
apenas algumas delas? Iconoclasta que sou, nunca iria abandonar a sabedoria
central da história natural desde a sua fundação — que conceitos sem objetos de
percepção são vazios (como disse Kant), e que nenhum cientista pode
desenvolver uma “sensação” adequada da natureza (aquele pré-requisito
indefinível da verdadeira compreensão) — sem examinar em profundidade
detalhes empíricos mínimos de algum grupo bem escolhido de organismos.
Assim. Aristóteles dissecou lulas e proclamou a eternidade do mundo, enquanto
Darwin escreveu quatro volumes sobre cracas e um sobre a origem das espécies.
Os maiores evolucionistas e estudiosos de história natural dos Estados Unidos,
G. G. Simpson, T. Dobzhansky e E. Mayr começaram suas carreiras,
respectivamente, como especialistas proeminentes em mamíferos mesozoicos,
joaninhas e pássaros da Nova Guiné.
Os cientistas não mergulham em particularidades apenas pelo motivo
grandioso (ou egoísta) de que tais estudos podem levar a generalidades
importantes. Fazemos isso por diversão. A alegria da descoberta transcende o
seu teor. E fazemos isso pela aventura e pela expansão. Em dramaticidade,
expedições de trabalho nas Bahamas podem parecer ridículas quando
comparadas à viagem de Darwin no Beagle, à de Bates no Amazonas, e à de
Wallace no arquipélago ma-laio — embora eu não faça questão de repetir o
único esbarrão que tive com a morte, preso no meio de um tiroteio entre
traficantes de drogas em Andros do Norte. Valorizo muito mais as ocasiões
calmas em mundos diferentes: uma discussão noturna sobre medicina do sertão
em Mayaguana, uma exploração de entalhes ornamentais que adornam tetos na
ilha Long e em Andros do Sul, e a melhor refeição que já comi — uma panela de
búzio fresco, cozido na fogueira do acampamento com batatas-doces do jardim
de Jimmy Nixon em Inagua, depois de um dia quente e de trabalho duro.
Se todos os naturalistas devem escolher um grupo de organismos para a
imersão minuciosa, não devemos selecioná-lo descuidadamente ou a esmo (ou
mesmo, como sugeriram alguns céticos, porque as Bahamas são melhores que o
Yukon como área para trabalho de campo). Estou interessado principalmente na
evolução da forma e me concentrei na maneira pela qual as formas variáveis do
desenvolvimento de um indivíduo podem servir como fonte de modificação
evolutiva (ver meu livro técnico Ontogeny and Philogeny, na Bibliografia). Um
paleontólogo de invertebrados com esses interesses acabaria por se voltar para os
caracóis, já que as suas conchas preservam um registro completo do
desenvolvimento do ovo ao adulto.


Um estudioso da forma com uma queda por gastrópodes não teria como
evitar o Cerion, pois esse gênero exibe, entre as suas várias centenas de espécies,
uma amplitude de forma inigualada por qualquer outro grupo de caracóis.
Alguns Cerions são altos e finíssimos; outros têm o formato de bolas de golfe.
Numa conferência pública, quando um colega arriscou “caracóis quadrados”
como um exemplo de animais impossíveis, pude lhe mostrar o estranho Cerion
quadrangular da fotografia acima, fileira de baixo, segundo a partir da esquerda.
Há cinco anos, descobri o maior Cerion, um gigante fóssil, fino e de lados
paralelos, de Mayaguana, com mais de 70 mm de altura. O menor é virtualmente
uma esfera que mal chega aos 5 mm de diâmetro, da Pequena Inagua (ver
fotografia).
O mistério e o interesse especial do Cerion não residem apenas na sua
exuberante diversidade; muitos grupos de animais contêm alguns membros com
uma propensão incomum para a formação de novas espécies e a consequente
variação de forma. As espécies são as unidades fundamentais da diversidade
biológica, populações distintas permanentemente isoladas uma da outra por meio
de uma ausência de hibridação na natureza. Não deve ser motivo de surpresa
para nós que grupos que produzem grandes números de espécies possam se
tornar inteiramente diversos na forma, já que mais unidades distintas oferecem
mais oportunidades para a evolução de uma larga amplitude morfológica.
Confrontados com uma sucessão de formatos tão profusa, naturalistas mais
antigos nomearam montes de espécies de Cerion, umas seiscentas mais ou
menos. No entanto, poucas são biologicamente válidas como populações
distintas, que não se acasalam entre si. Em dez anos de trabalho de campo em
todas as principais ilhas das Bahamas, só uma vez encontramos duas populações
distintas de Cerion vivendo no mesmo lugar sem se acasalarem — espécies
verdadeiras, portanto. Essas incluíam um gigante e um anão — trazendo assim à
lembrança várias piadas ruins sobre chihuahuas e cães dinamarqueses. Em todos
os outros casos, duas formas, não importa o quão distintas em tamanho e forma,
acasalam-se e produzem híbridos no ponto de contato geográfico. De algum
modo, o Cerion consegue gerar a sua inigualável diversidade de formas sem
dividir as suas populações em espécies verdadeiras. Como isso pode acontecer?
Além do mais, se formas tão diferentes produzem híbridos tão prontamente,
então as diferenças genéticas entre eles não podem ser tão grandes. Como pode
surgir tamanha diversidade de tamanho e forma na ausência de uma ampla
mudança genética?
Num segundo mistério relacionado, muitas vezes formas distintas de Cerion
habitam ilhas largamente separadas. A explicação mais simples propõe que essas
colônias afastadas representam a mesma espécie e que os furacões podem soprar
caracóis para grandes distâncias, produzindo distribuições fortuitas, ou então que
as colônias que habitavam ilhas intermediárias se extinguiram, deixando grandes
distâncias entre os sobreviventes. Contudo, todos os especialistas em Cerion
desenvolveram a sensação (que eu compartilho) de que essas colônias separadas,
apesar da similaridade detalhada de várias séries de traços, se desenvolveram de
modo independente in situ. Se tal interpretação não-convencional for correta,
como séries tão complexas de traços associados podem ser desenvolvidas
repetidas vezes?


Assim, o Cerion apresenta duas peculiaridades notáveis em meio à sua
inigualável diversidade: as suas formas mais distintas acasalam-se entre si e não
são espécies verdadeiras, enquanto essas mesmas formas, apesar de toda a sua
complexidade, podem ter se desenvolvido várias vezes de modo independente.
Qualquer cientista que possa explicar esses singulares fenômenos no caso do
Cerion dará uma importante contribuição para a compreensão da forma e da sua
evolução em geral. Tentarei descrever os poucos passos, preliminares e
vacilantes, que fizemos rumo a uma tal solução.
O Cerion tem atraído a atenção de vários naturalistas destacados, desde
Lineu, que nomeou a primeira espécie em 1758, até Ernst Mayr, que foi o
pioneiro no estudo de populações naturais duzentos anos mais tarde. Ainda
assim, apesar dos esforços de um pequeno grupo de entusiastas, o Cerion não
recebeu o renome que merece à luz de sua curiosa biologia e da promessa que
encerra como exemplar da evolução da forma. A sua relativa obscuridade pode
ser atribuída diretamente à prática biológica passada. Os naturalistas mais
antigos enterraram a biologia incomum do Cerion num matagal tão impenetrável
de nomes (para espécies inválidas) que os colegas interessados na teoria
evolutiva foram incapazes de recuperar o padrão e o interesse do caos absoluto.
O pior infrator foi C. J. Maynard, um bom biólogo amador, que, no período
compreendido entre 1880 e 1920, nomeou centenas de espécies de Cerion. Ele
imaginou que estava prestando um grande serviço, ao proclamar em 1889:

Os conquiliologistas (Conquiliologia: estudo das conchas - N.R.T.) podem fazer
objeções a algumas das minhas novas espécies, julgando, talvez, que usei
caracteres muito triviais para separá-las. Acreditando, porém, como acredito,
que é dever imperativo dos naturalistas, hoje, registrar minúcias das
diferenças entre os animais... não hesitei em assim designá-las, se não por
outro motivo, pelo benefício das gerações vindouras.

Confio que não serei acusado de ceticismo indevido ao reconhecer outro
motivo. Maynard financiava suas viagens às Bahamas, vendendo conchas, e um
número maior de espécies significava mais artigos que ele podia empurrar.
Caveat emptor.
Os colegas profissionais foram duros com a divisão esmiuçada de Maynard.
H. A. Pilsbry, o maior conquiliologista americano, declarou, numa prosa
atipicamente vigorosa, que “deuses e homens podem muito bem ficar
estupefatos diante da designação de colônias individuais em todos os campos de
sisal e plantações de batatas das Bahamas”. W. H. Dali rotulou os esforços de
Maynard como “nocivos e estonteantes”. No entanto, quando postos à prova na
prática, nem Pilsbry, nem Dali mostraram-se à altura de suas bravas palavras.
Cada um reconheceu pelo menos metade das espécies que Maynard defendia,
uma quantidade ainda excessiva, o suficiente para ocultar qualquer padrão na
floresta de nomes inválidos.
Tão rica era a diversidade do Cerion, e tão numerosas as suas espécies, que
G. B. Sowerby, o notável conquiliologista inglês, que se imaginava (com pouca
justificativa) um poeta, escreveu esta versalhada na introdução de sua
monografia sobre o gênero:

Ao Teu comando, coisas que não estavam
em forma perfeita, perante Ti se postam;
E todos elevam ao seu Criador
Uma harmonia maravilhosa de louvor.

Sowerby prossegue então enunciando um refrão e tanto. E esse quarteto data
de 1875, antes que Maynard nomeasse sequer um Cerion! À luz do caos
existente, e antes mesmo que possamos fazer as perguntas gerais propostas
acima a respeito da forma, devemos empreender uma tarefa bem mais básica e
humilde. Devemos descobrir se é possível encontrar algum padrão na
distribuição ecológica e geográfica da morfologia do Cerion. Se não detectarmos
absolutamente correlação alguma com a geografia ou o meio ambiente, então o
que podemos explicar? Por sorte, em uma década de trabalho, reduzimos o caos
de nomes existentes a padrões previsíveis e estabelecemos por meio deles o pré-
requisito para uma explicação mais profunda. Da natureza dessa explicação mais
profunda, temos intuições e indícios, mas nenhuma informação definida ou
mesmo as ferramentas necessárias para obtê-la (pois estamos encalhados numa
área da biologia — a genética do desenvolvimento — que se encontra, ela
própria, lamentavelmente subdesenvolvida). Ainda assim, acho que nós fizemos
um bom começo.
Digo “nós” porque percebi imediatamente que não podia fazer esse trabalho
sozinho. Sinto-me competente para analisar o desenvolvimento e a forma de
conchas, mas não possuo nenhum conhecimento especializado em duas áreas
que têm de estar unidas à morfologia em qualquer estudo abrangente: a genética
e a ecologia. Portanto, uni-me a David Woodruff, um biólogo da Universidade
da Califórnia em San Diego. Durante uma década, compartilhamos tudo, desde
bolhas na ilha Long até tiros em Andros.
(Preciso parar neste ponto, pois percebo de repente que quase quebrei a
minha primeira regra. Os cientistas têm uma propensão terrível para apresentar o
seu trabalho como um pacote lógico, como se determinassem tudo
antecipadamente, num planejamento cuidadoso e rigoroso, e então apenas
prosseguissem de acordo com seus bons desígnios. Nunca funciona desse jeito,
se não por outro motivo, porque qualquer pessoa que possa pensar e ver faz
descobertas imprevistas e tem de alterar fundamentalmente qualquer estratégia
preconcebida. Além disso, as pessoas se metem em problemas pelos motivos
mais peculiares e acidentais que se pode imaginar. Projetos crescem como
organismos, com felizes acasos e ajustes flexíveis, não como os passos pré-
ordenados de uma prova de geometria plana do colegial. Deixe-me confessar.
Fui atraído pelo Cerion pela primeira vez porque queria comparar os seus fósseis
com caracóis que havia estudado nas Bermudas. Evitei cuidadosamente todos os
Cerions modernos porque fiquei horrorizado diante do matagal de nomes
disponível e porque os considerei intratáveis. Woodruff foi a Inagua pela
primeira vez porque queria estudar o padrão de listras coloridas de outro gênero
de caracóis. Só que ele viajou no auge da temporada de mosquitos e ficou dois
dias. Fizemos a nossa primeira viagem conjunta à ilha da Grande Bahama: eu,
para estudar fósseis, ele para tentar mais uma vez o outro gênero. No entanto,
logo descobri que a Grande Bahama não tem nenhuma (ou quase nenhuma)
rocha de origem terrestre, e, portanto, nenhum caracol terrestre fossilizado. O
outro gênero também não era muito mais comum. Ficamos plantados lá por uma
semana. Assim, estudamos os Cerions vivos e descobrimos um padrão por trás
da pletora de nomes. Desde então, seguindo o conselho de Satchel Paige, nunca
mais olhamos para trás.)
Haviam sido propostos cerca de quinze nomes para os Cerions da Grande
Bahama e de Abaco, a ilha vizinha. Depois de uma semana, Woodruff e eu
descobrimos que apenas duas populações distintas habitavam essas ilhas, cada
uma restrita a um meio ambiente definido e diferente.
As ilhas Abaco e Grande Bahama projetam-se acima de uma plataforma rasa
chamada Pequena Plataforma das Bahamas (ver o mapa anexo). Quando o nível
do mar estava mais baixo, durante a última era glacial, a plataforma inteira
emergiu e as ilhas ficaram ligadas por terra. A Pequena Plataforma das Bahamas
está separada por oceano profundo da Grande Plataforma das Bahamas, maior
berço das ilhas mais conhecidas do arquipélago (New Providence, onde fica
Nassau, a capital das ilhas, Bímini, Andros, Eleuthera, Cat, o grupo Exuma e
várias outras). Todas essas ilhas também estiveram ligadas por terra durante as
épocas glaciais, quando o nível do mar era baixo. À medida que Woodruff e eu
passávamos de ilha para ilha na Grande Plataforma das Bahamas, encontramos o
mesmo padrão de duas populações diferentes, sempre nos mesmos meios
ambientes distintos. Na Pequena Plataforma das Bahamas, uma dúzia de nomes
inválidos haviam caído nesse padrão. Na Grande Plataforma das Bahamas, eles
desabaram, literalmente, para a centena. Cerca de um terço de todas as
“espécies” de Cerion (perto de duzentos ao todo) mostraram ser nomes
inválidos, baseados em variações menores dentro desse padrão único. Havíamos
reduzido um caos de nomes impróprios a uma ordem única, baseada na ecologia.
(Essa redução aplica-se apenas às ilhas da Pequena e da Grande Plataforma das
Bahamas. As ilhas de outras plataformas no sudeste do arquipélago, inclusive a
ilha Long, a ilha mais ao sudeste da Grande Plataforma das Bahamas, contêm
Cerions verdadeiramente diversos. Esses Cerions também podem ser reduzidos a
padrões coerentes, baseados em poucas espécies genuínas. Mas não há espaço
para tanto no presente ensaio, e restrinjo-me aqui apenas às Bahamas
setentrionais.)
As ilhas das Bahamas possuem dois tipos diferentes de Unhas costeiras. As
ilhas principais encontram-se nas bordas das plataformas. As plataformas em si
são bem rasas nas suas partes superiores, mas as bordas mergulham
precipitadamente no oceano profundo. Assim, as costas localizadas nas bordas
das plataformas são limítrofes ao oceano aberto e tendem a ser ásperas e
tempestuosas. Ao longo das costas varridas pelo vento, formam-se dunas que
acabam por se solidificar em forma de rocha (muitas vezes chamadas
erroneamente de “coral” pelos turistas). Portanto, as costas nas bordas das
plataformas tendem a ser também rochosas. Por contraste, as linhas costeiras das
regiões internas das plataformas — vou chamá-las de costas internas — são
rodeadas por águas calmas, rasas, que se estendem por milhas e não promovem a
formação de dunas. As costas internas, portanto, tendem a ser cobertas de
vegetação, baixas e calmas.


Woodruff e eu descobrimos que as costas externas das Bahamas setentrionais
são habitadas invariavelmente por Cerions de casca grossa, cheia de nervuras,
com coloração uniforme (do branco ao castanho meio escuro), relativamente
larga e de lados paralelos. Para não escrever a maior parte do resto desta coluna
em latim, vou deixar de lado os nomes formais e me referir a essas formas como
‘ ‘populações com nervuras” (ver fotografia da p. 161). As costas internas são o
lar de Cerions de casca fina, sem nervuras ou com poucas nervuras, de coloração
pintalgada (em geral com manchas brancas e castanhas), estreitas e em forma de
barril — as “populações malhadas”. (Os Cerions malhados também vivem longe
das costas, no centro das ilhas, enquanto os Cerions com nervuras estão
confinados exclusivamente às bordas das plataformas.)
Esse padrão é tão coerente e invariável que podemos “mapear” as zonas
híbridas antes mesmo de visitar uma ilha, simplesmente olhando uma carta de
batimetria. As zonas híbridas ocorrem onde as costas externas e internas se
encontram.


Esse padrão poderia parecer merecedor de algo mais que um indulgente
“hum, hum”. Talvez as conchas malhadas e as conchas com nervuras não sejam
tão diferentes. Talvez os dois meios ambientes extraiam as suas formas diversas
diretamente do mesmo material genético básico, como uma comida boa e
abundante pode tomar um homem gordo, e uma comida miserável transformar o
mesmo figurão num espantalho. A própria precisão e a previsibilidade da
correlação entre forma e meio ambiente poderiam sugerir esta solução
biologicamente sem graça. Dois argumentos, porém, parecem se opor de forma
conclusiva a essa interpretação e indicar que os Cerions malhados e os com
nervuras são entidades biológicas diferentes.
Primeiro, os caracóis com nervuras não são meramente formas malhadas
com conchas mais grossas e com mais nervuras. Como minha contribuição
técnica para nosso trabalho conjunto, eu meço cada concha de vinte modos
diferentes. Esse esforço me permite caracterizar o desenvolvimento e a forma
adulta final em termos matemáticos. Pude demonstrar que as diferenças entre os
caracóis cóm nervuras e os malhados envolvem diversos determinantes de forma
com variação independente.
Segundo, uma análise das zonas híbridas prova que elas caracterizam uma
mistura de duas entidades diferentes, não uma fusão homogênea de populações
separadas apenas superficialmente. Minha análise morfológica demonstra, em
muitos casos, as anomalias de forma e a variação aumentada que ocorrem com
frequência quando dois programas de desenvolvimento diferentes são misturados
na prole. A análise genética de Woodruff também prova que os híbridos
combinam dois sistemas substancialmente diferentes, já que ele encontrou uma
variabilidade genética em geral aumentada nas amostragens híbridas e genes não
encontrados em nenhuma das populações progenitoras.
Podemos demonstrar que os caracóis com nervuras e os malhados
representam populações com diferenças biológicas substanciais, mas não
podemos especificar a causa da separação, já que não nos foi possível fazer a
distinção entre duas hipóteses. Primeiro, a ecológica: as formas com nervuras e
as malhadas podem ser adaptações recentes e imediatas aos seus meios
ambientes locais diversos. Conchas brancas ou com cores claras dificilmente são
vistas contra o fundo de rochas de dunas das costas externas, enquanto as
conchas grossas e com nervuras protegem os seus portadores nessas costas
rochosas e varridas pelo vento. As conchas malhadas são igualmente difíceis de
ser vistas (na verdade, camuflam-se de modo notável) sob a luz solar filtrada
pela vegetação que abriga o Cerion na maioria das costas internas, enquanto as
conchas finas e leves também estão bem adaptadas para que os seus portadores
se pendurem em galhos finos e folhas de grama. Segundo, a histórica: o padrão
pode ser consideravelmente mais antigo (embora, ainda assim, seja
provavelmente adaptativo pelas razões citadas acima). Quando o nível do mar
era bem mais baixo e as plataformas estavam expostas, durante os períodos
glaciais, talvez as populações com nervuras habitassem todas as costas (já que
todas elas estavam então nas bordas das plataformas) enquanto as populações
malhadas evoluíam no interior da ilha. Quando o nível do mar subiu, os caracóis
com nervuras e os malhados simplesmente conservaram as suas posições e
preferências. As novas costas no interior das plataformas eram o interior de ilhas
maiores e continuam a ser o abrigo de caracóis malhados.
A distinção de caracóis malhados e caracóis com nervuras resolveu quase
todos os duzentos nomes anteriormente dados aos Cerions das Bahamas
setentrionais. Mas um problema (envolvendo mais cerca de dez nomes)
permaneceu. Um terceiro tipo de Cerion, com uma concha grossa, mais lisa, de
um branco puro, e com formato triangular, fora encontrado em Eleuthera e na
ilha Cat. Os relatos anteriores não indicavam nada a respeito da sua ecologia ou
dos seus hábitos, mas encontramos esses grossos caracóis brancos em duas áreas
separadas do sul de Eleuthera e no sudeste da ilha Cat. Eles preferem o interior
das ilhas e encaixam-se no padrão geral do Cerion com uma previsibilidade
gratificante — isto é, eles produzem híbridos com as populações malhadas
quando nos aproximamos das costas internas, e com as populações com nervuras
quando nos aproximamos das costas externas. Mas o que são eles? Assim como
a ecologia e a genética resolveram o padrão básico de caracóis malhados e
caracóis com nervuras, devemos recorrer à paleontologia para explicar a nossa
fonte restante de diversidade.
As dunas fósseis das Bahamas formaram-se em tempos em que o nível do
mar era alto, durante os períodos mais quentes entre os episódios de glaciação
(eras glaciais). Três conjuntos principais de dunas formaram New Providence, a
única das ilhas Bahamas com um pedigree geológico documentado (ver Garrett
e Gould, na Bibliografia). Esses abrangem, do mais jovem para o mais velho,
umas poucas dunas pequenas com menos de 10.000 anos e depositadas desde
que se derreteram as últimas geleiras; um conjunto extenso (que forma a espinha
dorsal da ilha) representando os altos níveis do mar há 120.000 anos, antes que
se formassem as últimas geleiras; e um conjunto menor (situado perto do centro
da ilha) construído há mais de 200.000 anos, antes de um período glacial
anterior. As dunas mais antigas contêm um Cerion fóssil agora desconhecido nas
Bahamas (ver fotografia na p. 164). O segundo e maior conjunto possui duas
espécies de Cerion, uma forma anã agora extinta e uma espécie grande, lisa,
chamada Cerion agassizi (o nome foi dado em homenagem a Alexander
Agassiz, filho de Louis, e um pioneiro da oceanografia científica nas índias
Ocidentais). O conjunto mais recente, como é de esperar, contém tanto Cerions
de nervuras quanto malhados, como na fauna modema. Comparamos os grandes
caracóis brancos de Eleuthera e da ilha Cat com o C. agassizi e não descobrimos
nenhuma diferença substancial. As populações pequenas nessas ilhas são
sobreviventes de uma espécie que já foi abundante em todas as ilhas da Grande
Plataforma das Bahamas.


As duzentas “espécies” de Cerion das Bahamas setentrionais reduzem-se,
portanto, a três tipos básicos com uma distribuição sensata e ordenada. O padrão
geográfico identificou as populações com nervuras e as malhadas, mas
precisamos recorrer à história para compreender as conchas brancas e lisas das
ilhas Eleuthera e Cat. É tremendamente grande a distância que separa este
exercício taxonômico em história natural do nosso objetivo final — compreender
como evolui a inigualável diversidade de forma do Cerion — mas demos o
primeiro passo no único caminho que conheço.
Para exemplificar a maneira pela qual esse padrão esclarece a questão maior,
usamos a nossa distinção entre caracóis malhados e caracóis com nervuras para
provar, pela primeira vez, que a hipótese não-convencional expressada pela
maioria dos especialistas em Cerion é realmente válida: a série complexa de
caracteres que definem tais formas básicas como caracóis malhados e caracóis
com nervuras pode ser desenvolvida de modo independente várias vezes.
Encontramos a mesma distinção de caracóis malhados e com nervuras tanto na
Pequena quanto na Grande Plataforma das Bahamas. A sabedoria convencional
sustentaria que os caracóis malhados de ambas as plataformas representam um
único tronco, enquanto os caracóis com nervuras formam um único grupo
genealógico. Mas Daniel Chung, um aluno de Woodruff, e Simon Tillier, um
proeminente anatomista de caracóis terrestres do Museu de Paris, estudaram para
nós a anatomia genital desses caracóis, e fizeram a seguinte e surpreendente
descoberta: ambos os caracóis, os malhados e os com nervuras, da Pequena
Plataforma das Bahamas, compartilham a mesma anatomia, ao passo que os
caracóis malhados e os com nervuras da Grande Plataforma das Bahamas têm
um conjunto de estruturas genitais distintamente diferentes. (A anatomia genital
é o instrumento-padrão para o estabelecimento de parentesco entre caracóis
terrestres. As diferenças são profundas e complexas o suficiente para indicar que
a anatomia compartilhada reflete a ascendência comum, enquanto a morfologia
compartilhada da concha deve evoluir de modo independente.) Assim, o
complexo de traços que define os caracóis malhados e os com nervuras pode
evoluir diversas vezes. Não teríamos sido capazes de chegar a essa conclusão se
não houvéssemos extraído o padrão de caracóis malhados e caracóis com
nervuras do caos de nomes antes existente.
Neste ponto, acho que começamos a vislumbrar vagamente o mistério mais
profundo da forma. Demonstramos que um conjunto complexo de traços
independentes pode ser desenvolvido virtualmente do mesmo modo mais de uma
vez. Não vejo como isso pode acontecer, se cada traço tiver de ser desenvolvido
em separado, seguindo o seu próprio caminho genético, a cada vez. Os traços
devem estar, de algum modo, coordenados no programa genético do Ceriom,
eles devem ser acionados ou “suscitados” juntos. Algum gatilho genético deve
coordenar o aparecimento conjunto desses caracteres. O programa genético
mestre de todos os Cerions codifica caminhos alternativos que representam as
formas básicas que se desenvolvem repetidas vezes? As mutações homeóticas de
insetos (ver ensaio 15 em Hen’s Teeth and Horse’s Toes) indicam que algum
sistema hierárquico de tal tipo deve regular o desenvolvimento, pois a produção
de órgãos bem formados nos lugares errados (pernas no lugar de antenas, por
exemplo) indica que alguma chave-mestra deve regular todos os genes que
produzem pernas, e que controles superiores devem acionar a chave-mestra no
lugar errado ou no momento errado. Do mesmo modo, alguma chave-mestra
dentro do programa do Cerion deve acionar algum dos seus caminhos básicos de
desenvolvimento e promover repetidas vezes a evolução do conjunto de traços
que caracteriza as suas formas fundamentais.
Desse modo, o Cerion fornece um vislumbre do que pode ser o problema
mais difícil e importante da teoria evolutiva: Como podem surgir formas novas e
complexas (não meramente características isoladas com um benefício adaptativo
óbvio) se cada uma requer milhares de mudanças separadas, e se estágios
intermediários fazem pouco sentido como organismos em funcionamento? Se os
programas genético e de desenvolvimento são organizados hierarquicamente,
como sugerem as mutações homeóticas e a evolução múltipla de formas básicas
no Cerion, então modelos anatômicos novos não têm de surgir em etapas (com
todos os intratáveis problemas vinculados a tal opinião), mas de maneira
coordenada, por meio de chaves-mestras (ou “reguladores”) de programas de
desenvolvimento. Ainda assim, é tão profunda a nossa ignorância a respeito da
natureza do desenvolvimento e da embriologia que temos de olhar os produtos
finais (uma Drosophila adulta com uma perna no lugar da antena, ou Cerions
malhados desenvolvidos repetidas vezes) para fazer inferências incertas a
respeito dos mecanismos subjacentes.
Escolhi o Cerion porque achei que ele poderia ilustrar estas grandes e
confusas questões. Ainda assim, embora sempre se esgueirem no fundo da
minha mente, elas não são a fonte da minha alegria diária. Pequenas previsões
que são comprovadas ou pequenos palpites que se revelam incorretos e são
substituídos por ideias mais interessantes são o alimento da satisfação contínua.
O Cerion, ou qualquer outro projeto de campo bom, oferece estímulo
interminável, contanto que pequenos enigmas permaneçam tão intensamente
absorventes, fascinantes e frustrantes como grandes questões. O trabalho de
campo não é como o centésimo milésimo ensaio sobre os sonetos de
Shakespeare; ele sempre apresenta algo verdadeiramente novo, não uma glosa de
comentários anteriores.
Lembro-me de quando descobrimos a primeira população de Cerions
agassizi vivos no centro de Eleuthera. Nossa primeira hipótese do padrão geral
do Cerion exigia que fossem confirmadas duas previsões (ou, do contrário,
estaríamos numa encrenca): essa população devia desaparecer por meio de
hibridação com conchas nialhadas na direção das costas internas e com caracóis
com nervuras na direção das costas externas. Caminhamos para o oeste na
direção das costas internas e encontramos híbridos facilmente, logo na beira da
estrada do aeroporto. Deslocamo-nos então para o leste, em direção à costa
externa, por uma estrada em desuso, onde a vegetação chegava a cinco pés no
espaço central entre os pneus. Devíamos ter encontrado os nossos híbridos, mas
não encontramos. O Cerion agassizi simplesmente desaparecia cerca de duzentas
jardas ao norte do nosso primeiro Cerion com nervuras. Percebemos então que
havia um pequeno lago bem do nosso lado leste, e que as formas com nervuras,
com suas preferências costeiras, talvez não gostassem do lado oeste do lago.
Vadeamos o lago e encontramos uma zona híbrida clássica entre o Cerion
agassizi e os Cerions com nervuras. (O Cerion com nervuras havia conseguido
apenas contornar a extremidade sul do lago, mas ainda não se deslocara o
suficiente para o norte ao longo do lado oeste para estabelecer contato com as
populações de C. agassizi). Eu quis gritar de alegria. Então pensei: “Mas para
quem eu posso contar; quem se importa?” E respondi a mim mesmo: “Não tenho
de contar para ninguém. Acabo de ver e compreender algo que ninguém jamais
viu e compreendeu antes. Do que mais precisa um homem?”
Um colega eminente, um bom teórico que cumpriu suas obrigações de
trabalho de campo, disse-me certa vez, brincando apenas em parte, que o
trabalho de campo é um modo dos diabos de se obter informações. Tanto tempo,
tanto esforço, tanto dinheiro, muitas vezes para se conseguir resultados pequenos
quando comparados com as horas investidas. É verdade, especialmente quando
fico contando as horas que gasto bebendo café cubano, o único prazer do meu
lugar menos favorito, o aeroporto de Miami. Mas todas as frustrações e todos os
esforços monótonos, repetitivos, tornam-se insignificantes diante da alegria pura
de descobrir algo novo — e esse prazer pode ser saboreado quase todos os dias
quando também se ama as pequenas coisas. Dizer: “Nós descobrimos isso; nós
compreendemos isso; nós conseguimos extrair sentido e ordem da confusão da
natureza.” Pode existir recompensa maior?

12. A igualdade humana é um fato contingente da


história


Pretória, 5 de agosto de 1984

O aeroplano mais famoso da história, o Spirit of St. Louis de Lindbergh, está
suspenso no teto do Washington’s Air and Space Museum, imperceptível na sua
majestade a certos visitantes. Há vários anos, uma delegação de mulheres e
homens cegos encontrou-se com o diretor do museu para discutir problemas de
acesso limitado. Devemos construir, perguntou ele, um modelo do avião de
Lindbergh, em tamanho natural, livre para ser apalpado e examinado? Tal
réplica resolveria o problema? A delegação refletiu em conjunto e deu uma
resposta que me comoveu profundamente, devido ao seu reconhecimento de
necessidades universais. Sim, disseram eles, tal modelo seria aceitável, mas
apenas sob uma condição — que fosse colocado diretamente abaixo do original
invisível.
A autenticidade exerce uma estranha fascinação sobre nós; o nosso mundo
realmente contém objetos e lugares sagrados. O seu impacto não pode ser
simplesmente estético, pois uma imitação absolutamente indistinguível do objeto
verdadeiro não evoca qualquer sentimento comparável de admiração. O impacto
é direto e emocional — uma sensação mais poderosa do que qualquer outra coisa
que conheço. No entanto, o ímpeto é puramente intelectual — uma refutação
visceral da baboseira romântica que afirma que o conhecimento abstrato não
pode engendrar emoção profunda.
Na noite passada, vi o sol se pôr na savana sul-africana — locação e habitat
originais dos nossos ancestrais australopitecinos. O ar ficou frio; começaram os
sons noturnos, a repetição incessante de sapos e insetos, enfeitada com o rosnado
ocasional e assustador de um mamífero; o Cruzeiro do Sul apareceu no céu,
junto com Júpiter, Marte e Saturno, dispostos numa fileira acima dos braços do
Escorpião. Eu senti o assombro, o medo e o mistério da noite. Sinto-me tentado
a dizer (descrevendo emoções, sem fazer quaisquer inferências sobre realidades,
superiores ou inferiores) que me senti próximo da religião como fenômeno
histórico da psique humana. Naquele momento, tive também uma sensação de
companheirismo com o mais distante passado humano — pois um
Australopithecus africanus pode ter estado, há quase três milhões de anos, no
mesmo lugar, em circunstâncias similares (ao que me é dado supor),
equilibrando a mesma mistura de admiração e medo.
Fui então rudemente arrancado daquele sentimento sublime, ainda que
passageiro, de unidade com todos os humanos do passado e do presente.
Lembrei-me de minha localização imediata — África do Sul, 1984 (no Kruger
Park, durante um intervalo de uma excursão de conferências sobre a história do
racismo). Também compreendi, de um modo mais direto que qualquer outro
anterior, a tragédia particular da história dos pareceres biológicos sobre as raças
humanas. Essa história é, em boa parte, uma história de divisões — uma série de
barreiras e categorias, erigidas para manter o poder e a hegemonia dos que estão
lá em cima. A maior ironia de todas pesa sobre mim: Sou um visitante na nação
mais comprometida com mitos de desigualdade — contudo, as savanas desta
terra foram o cenário de uma história evolutiva com um teor oposto.
Minha percepção visceral de fraternidade harmoniza-se com o nosso melhor
conhecimento biológico moderno. Tal união de sentimento e fato pode ser um
tanto rara, já que um não oferece nenhuma orientação ao outro (mais tolice
romântica posta de lado). Muitas pessoas pensam (ou temem) que a igualdade
das raças humanas representa uma esperança de sentimentalismo liberal
provavelmente esmagada pelas duras realidades da história. Eles estão errados.
Este ensaio pode ser reduzido a uma única expressão, um lema, se quiserem:
A igualdade humana é um fato contingente da história. A igualdade não é
verdadeira por definição; ela não é nem um princípio ético (embora a igualdade
de tratamento possa ser) nem uma afirmação sobre normas de ação social.
Simplesmente, funcionou desse jeito. Uma centena de roteiros diferentes e
plausíveis para a história humana teria produzido outros resultados (e dilemas
morais de enorme magnitude). Eles não aconteceram.
A história dos pareceres ocidentais sobre a raça é um relato de negações —
uma série de recuos progressivos, a partir das pretensões originais de separação e
hierarquização estritas, com base em valor intrínseco, até uma aceitação das
diferenças triviais reveladas pela nossa história contingente. Neste ensaio,
discutirei apenas duas etapas principais de recuo para cada um dos dois temas
principais: a genealogia, ou a separação entre as raças em função da sua idade
geológica; e a geografia, ou o nosso local de origem. Resumirei então os três
argumentos principais da biologia moderna em favor da pequena amplitude das
diferenças raciais humanas.

Genealogia, o primeiro argumento

Antes que a teoria evolutiva redefinisse irrevogavelmente a questão, a
antropologia, do início até meados do século XIX, conduziu um debate feroz
entre as escolas da monogenia e da poligenia. Os monogenistas defendiam a
ideia de que todas as pessoas têm uma origem comum no casal primevo, Adão e
Eva (as raças inferiores, argumentavam eles então, haviam posteriormente
degenerado da perfeição inicial). Os poligenistas afirmavam que Adão e Eva
foram ancestrais só do pessoal branco, e que as outras raças — inferiores —
haviam sido criadas separadamente. Cada um dos argumentos podia alimentar
uma doutrina social de desigualdade, mas a poligenia com certeza levava uma
ligeira vantagem como justificativa forçosa para a escravidão e a dominação em
casa e para o colonialismo no exterior. “O espírito benevolente”, escreveu
Samuel George Morton (um importante poligenista americano) em 1839, “pode
lamentar a inaptidão do índio para a civilização. ... A estrutura da sua mente
parece ser diferente da do homem branco. ... Eles não apenas são avessos aos
freios da educação, mas são, na maioria, incapazes de um processo contínuo de
raciocínio sobre temas abstratos.”

Genealogia, o segundo argumento

A teoria evolutiva requeria uma origem comum para as raças humanas, mas
muitos antropólogos pós-darwinianos encontraram um modo de preservar o
espírito da poligenia. Num recuo mínimo da perspectiva da separação
permanente, eles afirmavam que a divisão da nossa linhagem nas raças modernas
havia ocorrido tanto tempo atrás que as diferenças, acumulando-se lentamente ao
longo do tempo, tinham construído abismos intransponíveis. Embora
semelhantes certa vez, numa aurora simiesca, as raças humanas são agora
distintas e desiguais.


Não podemos compreender muito da história da antropologia de fins do
século XIX e começo do século XX, com a sua pletora de nomes taxonômicos
propostos para quase todo pedaço de osso fóssil, a menos que consideremos a
sua obsessão com a identificação e a hierarquização das raças. Pois muitos
esquemas de classificação procuraram classificar os vários fósseis como
ancestrais de raças modernas e usar a sua idade e a sua qualidade simiesca
relativas como critério de superioridade racial. Piltdown, por exemplo, continuou
enganando gerações de profissionais em parte porque isso se ajustava
confortávelmente às ideias de superioridade branca. Afinal, esse homem
“antigo” com um cérebro tão grande quanto o nosso (o produto, como sabemos
agora, de um embuste, construído com um crânio moderno) viveu na Inglaterra
— um ancestral óbvio para os brancos — ao passo que fósseis tão simiescos (e
genuínos) como o Homo erectus habitavam Java e China, origens reputadas dos
orientais e outros povos de cor.


Essa teoria de separação antiga recebeu a sua última defesa proeminente em
1962, quando Carleton Coon publicou o seu Origin of Races. Coon dividiu a
humanidade em cinco raças principais — caucasóides, mongoloides,
australóides, e, entre os negros africanos, os congóides e os cabóides. Ele
afirmou que esses cinco grupos já haviam se tornado subespécies distintas
durante o reinado do nosso ancestral, o Homo erectus. O H. erectus então
evoluiu em direção ao H. sapiens em cinco correntes paralelas, cada uma
percorrendo o mesmo caminho rumo a uma consciência aumentada. Mas os
brancos e os amarelos, que “ocupavam a mais favorável das regiões zoológicas
da Terra”, transpuseram o limiar do H. sapiens primeiro, enquanto os povos
escuros ficaram para trás e, desde então, vêm pagando por sua lerdeza. A
inferioridade negra, argumenta Coon, não é culpa de ninguém, é apenas um
acidente da evolução em ambientes menos desafiadores:

Os caucasóides e mongoloides... não chegaram aos presentes níveis de
população e posições de dominação cultural por acidente. ... Qualquer outra
subespécie que evoluísse nessas regiões provavelmente teria sido tão bem-
sucedida quanto eles.

Evolucionistas proeminentes de todo o mundo reagiram com incredulidade à
tese de Coon. As raças humanas podiam realmente ser distinguidas no nível do
H. erectus? Serei sempre grato a W. E. Le Gros Clark, o maior anatomista da
Inglaterra naquela época. Eu estava passando um ano da graduação na Inglaterra,
um zé-ninguém absoluto numa terra estranha. Ainda assim, ele passou uma tarde
comigo, respondendo pacientemente às minhas perguntas sobre raça e evolução.
Quando interrogado sobre a tese de Coon, esse homem de uma modéstia
esplêndida respondeu, com toda simplicidade, que ele, pelo menos, não podia
identificar uma raça moderna nos ossos de uma espécie antiga.
De modo mais geral, só em termos de probabilidade matemática uma
evolução paralela com tal precisão em tantas linhagens já parece quase que
impossível. Cinco subespécies diferentes poderiam sofrer mudanças tão
substanciais e ainda assim permanecer tão semelhantes no final a ponto de todas
poderem se cruzar livremente, como as raças modernas claramente o fazem? À
luz dessas deficiências empíricas e implausibilidades teóricas, devemos ver a
tese de Coon mais como o último suspiro de uma tradição moribunda do que
como uma síntese verossímil de indícios disponíveis.

Genealogia, o parecer moderno

As raças humanas não são espécies separadas (o primeiro argumento) ou
divisões antigas dentro de uma rede em evolução (o segundo argumento). Elas
são subpopulações recentes, mal diferenciadas, da nossa espécie moderna, o
Homo sapiens, separadas, no máximo, por dezenas ou centenas de milhares de
anos, e caracterizadas por diferenças genéticas notavelmente pequenas.

Geografia, o primeiro argumento

Quando Raymond Dart encontrou o primeiro australopitecino na África do
Sul, há sessenta anos, cientistas pelo mundo afora rejeitaram esse mais velho dos
ancestrais, essa adorabilíssima forma intermediária, porque ela procedia do lugar
errado. Darwin, sem um fragmento sequer de indícios fósseis, mas com um bom
critério de inferência, deduziu que os homens evoluíram na África. Nossos
parentes vivos mais próximos, argumentava ele, são os chimpanzés e os gorilas
— e ambas as espécies vivem apenas na África, o lar provável, portanto, também
do nosso ancestral comum.
No entanto, poucos cientistas aceitaram a inferência convincente de Darwin
porque a esperança, a tradição e o racismo conspiravam para localizar a nossa
morada ancestral nas planícies da Ásia central. Ideias de supremacia ariana
levavam os antropólogos a presumir que as vastas e “desafiadoras” extensões da
Ásia, e não os trópicos soporíferos da África, haviam incitado nossos ancestrais
a abandonar um passado simiesco e a emergir rumo às raízes da cultura indo-
europeia. A diversidade das pessoas de cor nos trópicos do mundo podia
testemunhar apenas as migrações secundárias e as subsequentes degenerações
desse tronco original. A grande expedição ao deserto de Gobi, patrocinada pelo
Museu Americano de História Natural apenas alguns anos antes da descoberta de
Dart, foi despachada principalmente para descobrir a ascendência do homem na
Ásia. Relembramos a expedição pelo seu sucesso na descoberta de dinossauros e
de seus ovos; esquecemos que a sua busca principal terminou em fracasso
absoluto porque a simples inferência de Darwin estava correta.

Geografia, o segundo argumento

Na década de 1950, estudos anatômicos adicionais e a simples magnitude das
descobertas contínuas forçaram o reconhecimento de que as nossas raízes se
encontravam nos australopitecinos, e de que a África fora o nosso lar original.
Mas o poder sutil do preconceito inconfesso ainda conspirava (com outras bases
mais racionais de incerteza) para negar à África o seu papel contínuo de berço
daquilo que realmente tem importância para nós — a origem da consciência
humana. Numa atitude de recuo intermediário, a maioria dos cientistas agora
afirmava que a África havia animado a nossa origem, mas não o surgimento da
nossa mente. Ancestrais humanos migraram, novamente para a mãe Ásia, e lá
transpuseram o limiar da consciência como Homo erectus (ou o chamado
homem de Java ou de Pequim). Surgimos dos macacos sem cauda na África;
desenvolvemos a nossa inteligência na Ásia. Carleton Coon escreveu no seu
livro de 1962: “Se a África foi o berço do gênero humano, ela foi apenas um
insignificante jardim de infância. A Europa e a Ásia foram as nossas escolas
principais.”

Geografia, o parecer moderno

O andamento das descobertas africanas acelerou-se desde que Coon elaborou
a sua metáfora de hierarquia educacional. O Homo erectus aparentemente
também evoluiu na África, onde foram encontrados fósseis que datam de quase
dois milhões de anos, ao passo que os sítios asiáticos podem ser mais recentes do
que se imaginava antes. Seria possível, é claro, dar ainda mais um passo para
trás e afirmar que o H. sapiens, pelo menos, desenvolveu-se posteriormente a
partir de um tronco asiático do H. erectus. Mas a migração do H. erectus para a
Europa e a Ásia não garante (ou mesmo sugere) qualquer ramificação posterior
dessas linhagens móveis. Porque o H. erectus também continuou a viver na
África. Os indícios ainda não são conclusivos, mas os palpites mais recentes
podem estar apontando para uma origem também africana do H. sapiens.
Ironicamente então (no tocante às expectativas anteriores), toda a espécie
humana pode ter evoluído primeiro na África e só então — no caso das duas
últimas espécies de Homo — se espalhado para outros lugares.
Apresentei, até aqui, apenas os indícios negativos a favor da minha tese de
que a igualdade humana é um fato contingente da história. Argumentei que as
velhas bases a favor da desigualdade evaporaram. Tenho agora de resumir os
argumentos positivos (em princípio, três) e, igualmente importante, explicar
como seria fácil que a história acontecesse de outros modos.

O argumento positivo (e formal, ou taxonômico) da definição racial

Reconhecemos apenas uma categoria formal de divisão dentro das espécies
— a subespécie. As raças, portanto, caso definidas formalmente, são
subespécies. As subespécies são populações que habitam uma subseção
geográfica definida do habitat de uma espécie e distintas o suficiente em
qualquer conjunto de traços para o reconhecimento taxonômico. As subespécies
diferem de todos os outros níveis da hierarquia taxonômica de dois modos
cruciais. Primeiro, elas são apenas categorias de conveniência e nunca precisam
ser designadas. Cada organismo deve pertencer a uma espécie, um gênero, uma
família e a todos os níveis superiores da hierarquia, mas uma espécie não tem de
ser dividida formalmente. As subespécies representam uma decisão pessoal do
taxonomista sobre a melhor maneira de relatar a variação geográfica. Segundo,
as subespécies de qualquer espécie não podem ser distintas e separadas. Como
todos pertencem a uma única espécie, os seus membros podem, por definição,
cruzar entre si. Os métodos quantitativos modernos permitiram aos taxonomistas
modernos descrever a variação geográfica mais precisamente em termos
numéricos; não precisamos mais inventar nomes para descrever diferenças que
são, por definição, fugazes e mutáveis. Por conseguinte, a prática de nomear
subespécies tem caído em descrédito, e poucos taxonomistas ainda usam a
categoria. A variação humana existe; a designação formal de raças é passé.
Algumas espécies são divididas em raças geográficas toleravelmente
distintas. Considere-se, por exemplo, uma espécie imóvel separada por blocos
continentais em deslocamento. Como essas subpopulações nunca se encontram,
elas podem desenvolver diferenças substanciais. Poderíamos ainda achar melhor
nomear subespécies para tais variantes geográficas distintas. Mas os humanos se
deslocam e mantêm os mais notórios hábitos de intercruzamento. Não estamos
suficientemente divididos em grupos geográficos distintos, e a designação de
subespécies humanas faz pouco sentido.
A nossa variação exibe todas as dificuldades que fazem com que o
taxonomista estremeça (ou que se delicie com a complexidade) e evite a
designação de subespécies. Considere-se apenas três pontos. Primeiro, a
discordância de caracteres. Poderíamos fazer uma divisão razoável por cor de
pele, apenas para descobrir que grupos sanguíneos implicam uniões diferentes.
Quando tantos caracteres bons exibem padrões de variação tão discordantes, não
pode ser estabelecido nenhum critério válido para uma definição inequívoca de
subespécie. Segundo, fluidez e gradação. Seja para onde for que nos
desloquemos, ocorrem cruzamentos que quebram barreiras e criam novos
grupos. A população de cor da Província do Cabo, um povo vigoroso, com a
força de mais de dois milhões de pessoas, descendentes de uniões entre africanos
e colonizadores brancos (ironicamente, os ancestrais dos autores do apartheid e
das leis contra a miscigenação), devem ser designados como uma nova
subespécie ou simplesmente como a prova viva de que brancos e negros não são
muito diferentes? Terceiro, convergências. Caracteres similares desenvolveram-
se de modo independente repetidas vezes; eles frustram qualquer tentativa de
fundamentar subespécies em traços definidos. A maioria dos povos indígenas
das áreas tropicais, por exemplo, desenvolveu pele escura.
Os argumentos contra a designação de raças humanas são fortes, mas a nossa
variação ainda existe e seria concebível que pudesse servir como base para
comparações injustas. Portanto, devemos acrescentar também o segundo e o
terceiro argumento.

O argumento positivo do caráter recente da divisão

Como afirmei na primeira parte deste ensaio (e que tenho de enunciar agora
apenas como repetição), a divisão dos humanos em grupos “raciais” modernos
ocorreu, em termos geológicos, ontem. Essa diferenciação não é anterior à
origem da nossa espécie, o Homo sapiens, e provavelmente ocorreu durante as
últimas dezenas (ou, no máximo, centenas) de milhares de anos.

O argumento positivo da separação genética

A obra de Mendel foi redescoberta em 1900, e a ciência da genética tem a
duração do nosso século inteiro. No entanto, até vinte anos atrás, uma questão
fundamental da genética não podia ser respondida por um motivo curioso. Não
tínhamos como calcular a quantidade média da diferença genética entre
organismos porque não havíamos elaborado nenhum método para coletar uma
amostragem aleatória de genes. Por exemplo, se absolutamente cada Drosophila
do mundo tivesse olhos vermelhos, poderíamos suspeitar justificadamente que
alguma informação genética codificava esse traço universal, mas não seríamos
capazes de identificar um gene para olhos vermelhos analisando pedigrees,
porque todas as moscas teriam a mesma aparência. No entanto, tão logo
encontramos algumas moscas de olhos brancos, podemos combinar branco e
vermelho, rastrear pedigrees através de geração de proles, e fazer inferências
apropriadas sobre a base genética da cor dos olhos.
Para medir a média de diferenças genéticas entre raças, temos de ser capazes
de coletar amostras de genes ao acaso — e essa seleção sem fins definidos não
pode ser feita se somos capazes de identificar apenas genes variáveis. Noventa
por cento dos genes humanos poderiam ser compartilhados por todas as pessoas,
e uma análise restrita a genes variáveis superestimaria de modo grosseiro a
diferença total.
No fim da década de 1960, vários geneticistas aproveitaram uma técnica
comum de laboratório, a eletroforese, para solucionar esse velho dilema. Os
genes são codificados por proteínas, e proteínas variáveis podem se comportar
de modo diferente quando sujeitas em solução a um campo elétrico. Qualquer
proteína podia ser colhida, independente de se saber de antemão se ela variava
ou não. (A eletroforese só pode nos dar uma estimativa mínima porque algumas
proteínas variáveis podem exibir a mesma mobilidade elétrica mas ser diferentes
de outros modos.) Assim, com a eletroforese, podíamos finalmente fazer a
pergunta-chave: Quanta diferença genética existe entre as raças humanas?
A resposta, surpreendente para muitas pessoas, logo surgiu sem
ambiguidade: bem pouca. Estudos intensos de mais de uma década não
detectaram um único “gene racial” — isto é, um gene presente em todos os
membros de um grupo e ausente nos de outro. As frequências variam, muitas
vezes de modo considerável, entre grupos, mas todas as raças humanas são
praticamente a mesma coisa. Podemos medir tanta variação entre indivíduos
dentro de qualquer raça, que encontramos bem poucas variações novas quando
acrescentamos outra raça à amostragem. Em outras palavras, a maioria
esmagadora da variação humana ocorre dentro de grupos, não nas diferenças
entre eles. Meu colega, Richard Lewontin (ver Bibliografia), que fez boa parte
do trabalho original de eletroforese sobre a variação humana, expressa isso de
forma dramática: Se, que Deus não permita, o holocausto ocorresse, “e apenas o
povo Xhosa, da ponta meridional da África sobrevivesse, a espécie humana
ainda conservaria 80% da sua variação genética”.
Enquanto a maioria dos cientistas aceitava a divisão antiga das raças, eles
esperavam encontrar importantes diferenças genéticas. Mas a origem recente das
raças (o segundo argumento positivo) confirma as diferenças genéticas de pouca
importância agora medidas. Os grupos humanos de fato variam de modo notável
em alguns poucos caracteres claramente visíveis (cor de pele, forma de cabelo)
— e essas diferenças externas podem nos ludibriar fazendo com que pensemos
que a divergência geral deve ser grande. Agora, porém, sabemos que a nossa
metáfora usual de superficialidade — skin deep (Skin deep, que tem a profundidade da
pele, ou seja, superficial - N.T.) — é literalmente exata.
Ao completar assim o meu sumário, confio que um ponto essencial não será
interpretado de forma errônea: Não estou, enfaticamente, falando sobre preceitos
éticos, mas sobre informações da melhor avaliação atual. Seria lógica ruim e
estratégia pior vincular um argumento moral ou político a favor da igualdade de
tratamento ou de oportunidade a qualquer enunciado concreto sobre a biologia
humana. Porque se as nossas conclusões empíricas precisarem de revisão — e
todos os fatos são provisórios na ciência — então poderíamos vir a ser forçados
a justificar o preconceito e o apartheid (dirigidos, talvez, contra nós mesmos, já
que ninguém sabe quem iria ficar por baixo). Não sou filósofo ético, mas só
posso ver a igualdade de oportunidade como inalienável, universal e não
relacionada à condição biológica dos indivíduos. As nossas raças podem variar
pouco em caracteres médios, mas os nossos indivíduos diferem bastante — e não
consigo imaginar um mundo decente que não trate a pessoa mais profundamente
retardada como um ser humano pleno em todos os aspectos, a despeito de todas
as suas evidentes e profundas limitações.
Estou falando, ao contrário, a respeito de uma questão menor, mas que me
agrada porque é considerada surpreendente pela maioria das pessoas. A
conclusão é evidente, uma vez articulada, mas raramente colocamos a questão de
um modo que permita o surgimento de tal declaração. Eu disse que a igualdade
das raças é um fato contingente. Até agora só argumentei a favor do fato; e a
contingência? Em outras palavras, como a história poderia ter sido diferente? A
maioria de nós pode compreender e aceitar a igualdade; poucos consideraram a
fácil plausibilidade de alternativas que não aconteceram.
Meus íncubos criacionistas, num de seus argumentos mais deliciosamente
ridículos, muitas vezes imaginam que podem eliminar a evolução com este dito
incontestável: “Tá legal”, exclamam eles, “você diz que os humanos evoluíram
dos macacos, certo?” “Certo”, respondo eu. “Tá legal, se os humanos evoluíram
dos macacos, por que é que os macacos ainda estão por aí? Responde essa!” Se a
evolução ocorresse como nessa caricatura — como uma escada de progressos,
onde cada degrau desaparecesse à medida que se transformasse corporalmente
no estágio seguinte — então acho que esse argumento mereceria atenção. Mas a
evolução é uma árvore, e os grupos ancestrais geralmente sobrevivem depois que
seus descendentes se ramificam. Os macacos surgem em várias formas e
tamanhos; apenas uma linhagem deu origem aos humanos modernos.
A maioria de nós conhece árvores, mas raramente consideramos as suas
implicações. Sabemos que os australopitecinos foram os nossos ancestrais e que
a sua árvore continha várias espécies. Mas nós os vemos como ancestrais e
presumimos sutilmente que, como estamos aqui, eles se foram. De fato, é assim,
mas não é necessariamente assim. Uma população de uma linhagem de
australopitecinos transformou-se no Homo habilis; várias outras sobreviveram.
Uma espécie, o Australopithecus robustus, morreu há menos de um milhão de
anos e viveu na África como contemporânea do Homo erectus durante um
milhão de anos. Não sabemos por que o A. robustus desapareceu. Ele poderia
muito bem ter sobrevivido e hoje nos apresentaria todos os dilemas éticos de
uma espécie humana verdadeira e marcadamente inferior em inteligência (com
capacidade craniana igual a um terço da nossa). Teríamos construído jardins
zoológicos, estabelecido reservas, promovido escravidão, cometido genocídio
ou, talvez, até mesmo sido bondosos? A igualdade humana é um fato
contingente da história.
Outros roteiros plausíveis também poderiam ter produzido uma desigualdade
pronunciada. O Homo sapiens é uma espécie jovem, e a sua divisão em raças é
ainda mais recente. Esse contexto histórico não ofereceu ainda tempo suficiente
para a evolução de diferenças consideráveis. Mas muitas espécies têm milhões
de anos, e as divisões geográficas podem ser marcantes e profundas. O H.
sapiens poderia ter evoluído ao longo de tal escala de tempo e produzido raças
de grande idade e grandes diferenças acumuladas — mas não fizemos isso. A
igualdade humana é um fato contingente da história.
Alguns poucos lemas poderiam servir como antídotos excelentes contra
hábitos profundamente arraigados no pensamento ocidental, que nos restringem
tanto porque não reconhecemos a sua influência — contanto que esses lemas se
tornem epítomes de uma compreensão real, não as distorções vulgares que
promovem o “tudo é relativo” como um resumo de Einstein.
Tenho três lemas favoritos, pequenos como enunciados mas grandes nas suas
implicações. O primeiro, a epítome do equilíbrio pontuado, lembra-nos que a
mudança gradual não é a única realidade na evolução: há outras coisas que
também contam; “a estase é um dado”. O segundo refuta a ideia preconcebida de
progresso e afirma que a evolução não é uma sequência inevitável de avanços:
“Os mamíferos desenvolveram-se ao mesmo tempo que os dinossauros.” O
terceiro é o tema deste ensaio, um enunciado fundamental sobre a variação
humana. Repita-o amanhã cinco vezes antes do desjejum; mais importante,
compreenda-o como o centro de uma rede de implicações: “A igualdade humana
é um fato contingente da história.”

13. A regra de cinco




A mente humana delicia-se ao encontrar padrões — delicia-se tanto que
muitas vezes tomamos erroneamente a coincidência ou a analogia forçada como
um significado profundo. Nenhum outro hábito de pensamento está tão arraigado
na mente de uma pequena criatura que tenta compreender um mundo complexo
que não foi feito para esse tipo de raciocínio.

Neste Universo, e por que não sabendo
Nem de onde, como água implacável correndo,

como diz o Rubáyát. Nenhum outro erro de raciocínio coloca-se tão
teimosamente no caminho de qualquer tentativa direta de compreensão de alguns
dos aspectos mais essenciais do mundo — os caminhos tortuosos da história, a
imprevisibilidade de sistemas complexos e a ausência de conexão causal entre
eventos superficialmente similares.
A coincidência numérica é um caminho comum para a perdição intelectual
em nossa busca de significado. Deliciamo-nos com listas de itens disparatados
unidos pelo mesmo número, e muitas vezes sentimos que, no fundo, deve existir
alguma unidade subjacente a tudo isso. Nossos ancestrais consideraram a mística
do sete — o número de planetas (o Sol, a Lua e os cinco planetas visíveis, todos
girando ao redor da Terra no sistema ptolomaico), os pecados mortais, os selos
do Apocalipse. O cinco também foi um dos favoritos, não apenas por causa dos
dedos dos pés e das mãos, mas também devido ao número de atos de uma peça
adequada segundo Horácio, às pedras lisas que Davi escolheu para matar Golias,
aos pães que Cristo usou para alimentar a multidão, ao número de filhos da sra.
Bixby (que, aparentemente, não morreram todos de modo glorioso no campo de
batalha, não obstante o sr. Lincoln). A coruja e o gatinho foram para o mar com
todos os seus bens terrenos embrulhados numa nota de cinco libras (uma nota
bem grande — em tamanho físico, assim como em valor monetário — naqueles
dias vitorianos). Aquilo que este país precisa, e que nunca mais terá outra vez, é
de um bom charuto de cinco centavos.
Neste ensaio, discutirei dois sistemas taxonômicos (teorias para a
classificação de organismos) populares nas décadas imediatamente anteriores à
publicação da Origem das Espécies de Darwin. Ambos adotaram outros
fundamentos que não a evolução para o ordenamento de organismos; ambos
propuseram um esquema baseado no número , cinco para a colocação de
organismos dentro de uma hierarquia de grupos e subgrupos. Ambos afirmavam
que tal regularidade numérica simples devia testemunhar um padrão intrínseco à
natureza, não uma falsa ordem imposta pela esperança humana a uma realidade
mais complexa. Descreverei esses sistemas e então discutirei como a teoria da
evolução minou os seus fundamentos lógicos e mudou em caráter permanente a
ciência da taxonomia, tornando esses sistemas numéricos simples incompatíveis
com a nossa visão da natureza. Essa importante modificação no pensamento
científico corporifica uma mensagem geral sobre o caráter da história e dos tipos
de ordem que um mundo construído pela história, e não por um plano pré-
ordenado, pode (e não pode) expressar.
Louis Agassiz escreveu sobre o seu professor, o embriologista alemão,
Lorenz Oken:

Um mestre na arte de ensinar, ele exercia uma influência quase que
irresistível sobre os seus alunos. Construindo o universo a partir de seu
cérebro... classificando os animais como que por mágica, de acordo com uma
analogia baseada no corpo desmembrado do homem, era como se, para nós
que o escutávamos, o processo lento e laborioso de acumular conhecimento
detalhado e preciso só pudesse ser o trabalho de parasitas, ao passo que um
espírito generoso, grandioso, podia construir o mundo com a sua imaginação
poderosa.

Oken foi um bom anatomista descritivo; os seus tratados sobre a embriologia
do porco e do cão, escritos em 1806, são clássicos de zelo meticuloso. Mas Oken
também foi um líder na popular escola da Naturphilosophie do início do século
XIX — um movimento intelectual baseado na visão romântica de que a natureza
era governada por leis simples de movimento dinâmico, e que grandes intelectos
podiam apreender essas leis por meio de uma espécie de intuição criativa. A
contribuição principal de Oken para esse movimento, o seu Lehrbuch der
Naturphilosophie (1809-1811), é uma relação, com quase 4.000 itens, que traz
todo o conhecimento para dentro do seu domínio, e cheio de pronunciamentos
oraculares sobre quase tudo, desde o porquê de a Terra ser um cristal (com
cordilheiras como arestas) até o porquê de a Kriegskunst (a arte da guerra) ser o
mais nobre dos empreendimentos humanos.
Apesar de amplamente respeitado no seu tempo (até mesmo por seus
adversários intelectuais), Oken sofreu o destino da citação moderna, provocando
principalmente risadas, provenientes da comparação entre o velho e mau passado
com o brilhante presente. Claro, pelos padrões modernos, o seu estilo oracular de
pronunciamento é um convite à zombaria. O que mais se pode fazer com o peã
de Oken ao zero: “A matemática inteira emerge do zero, portanto, todas as
coisas devem... ter surgido do eterno ou nada da natureza. ... Não existe
nenhuma outra ciência que não aquela que trata de nada.” Ou a asserção de que
todos os animais “inferiores” são simplesmente humanos incompletos: “O reino
animal é apenas um desmembramento do animal supremo, isto é, do Homem.”
Quando separados do contexto de Oken, esses enunciados perdem todo o
sentido, e só podemos rir do seu estilo desencarnado. Quando situados
adequadamente, eles pelo menos fazem sentido (embora possamos julgá-los
incorretos hoje), e podemos atribuir o estilo peculiar de Oken a diferenças de
gosto e costume, não à estupidez ou irrelevância.
O contexto para a maioria dos seus pronunciamentos peculiares — a
primazia do zero, os animais como humanos abortados, a taxo nomia por meio
do cinco — reside na doutrina principal da Naturphilosophie'. a ideia de uma
tendência de desenvolvimento única, progressiva, na natureza. Todos os
processos naturais são ascendentes, se movem numa única direção, a começar do
nada primordial (o zero de Oken) e avançando rumo à complexidade humana e
além. (A visão de Oken não é evolutiva, já que cada novo estado recomeça no
zero primordial e se move um degrau acima do seu predecessor. Uma forma
superior não se desenvolve a partir da descendência genealógica de um ancestral
menos desenvolvido, como exigiria uma teoria evolutiva.) Como todos os
animais podem ser dispostos em uma única série de complexidade ascendente,
com os humanos no ápice, as criaturas inferiores são humanos incompletos.
(Oken definia cada novo degrau de complexidade como a adição de um órgão;
desse modo, criaturas abaixo de nós na escala do progresso contêm menos
órgãos e são incompletas.)
O que há de instigante nas teorias novas é o seu poder de modificar
contextos, de tornar irrelevante o que antes parecia sensato. Se rirmos do
passado porque o julgamos de modo anacrônico à luz das teorias atuais, como
poderemos compreender essas mudanças de contexto? E como podemos
conservar a humildade adequada para com as nossas teorias preferidas e a sua
probabilidade futura de serem reduzidas à insignificância? Paixões intelectuais
honestas sempre merecem respeito.
A teoria da evolução foi o maior modificador de contextos da história da
biologia. Theodosius Dobzhansky escreveu, em uma famosa declaração, que
nada faz sentido na biologia, exceto à luz da evolução. No entanto, o mundo de
Oken fazia sentido sob um conjunto diverso de crenças a respeito do
funcionamento da natureza. Dobzhansky quis dizer, é claro, que assim que
reconhecemos a evolução como base da história orgânica, toda a biologia deve
ser reformulada. Mas caso desejemos compreender por que a evolução foi tal
divisor de águas na história das ideias, devemos compreender os contextos que
ela substituiu, e não vê-los como arautos imperfeitos da evolução. Eles eram
diferentes, sutis, brilhantes (e errados), não estúpidos. Devemos estudar tais
teorias, como a classificação por meio de cinco de Oken, e devemos
compreender por que a evolução destruiu a sua fundamentação lógica, caso
desejemos captar o alcance e o poder da evolução em si.
A taxonomia de cinco de Oken tenta reconciliar dois princípios, ambos caros
à Naturphilosophie, mas, superficialmente, contraditórios — primeiro, que os
animais representam uma única série de complexidade crescente definida pela
adição sucessiva de órgãos; segundo, que analogias significativas permeiam a
natureza e que cada segmento da taxonomia imita ou reflete todos os outros (a
ordem dos mamíferos, por exemplo, deve repetir, em miniatura, o mesmo
esquema que ordena toda a natureza). Mas como a natureza pode conter,
simultaneamente, uma única série ascendente e um conjunto de ciclos que se
repetem?
Examinemos as duas asserções em separado. Considere-se primeiro a
epítome de Oken da sua crença de que todos os animais formam uma única série
caracterizada pela adição de órgãos, aforismos 3067-3072 do seu Lehrbuch:

O reino animal é apenas um animal. ...
O reino animal é apenas um desmembramento do animal supremo, isto é, do
homem.
Os animais tornam-se mais nobres na hierarquia quanto maior for o número
de órgãos coletivamente liberados ou tirados do Grande Animal, e que
entrarem na combinação. Um animal que, por exemplo, vivesse apenas como
um intestino, seria, sem dúvida, inferior àquele em que o intestino se
combinasse a uma pele. ...
Os animais são gradualmente aperfeiçoados... pela adição de órgão sobre
órgão. ...
Cada animal, portanto, ocupa uma posição superior à de outro; dois deles
nunca se encontram em igual plano ou nível.
Os animais são distinguidos... pela quantidade dos seus diferentes órgãos.

Mas uma ordem linear tão simples não podia satisfazer o espírito de um
homem que acreditava que cada nuance da natureza possuía um significado
profundo na sua união com todas as outras partes. Oken não podia deixar a
ameba no lago ou o caranguejo na praia, pois todas as criaturas têm de ser
elementos de uma harmonia complexa e interligada, não simplesmente os
degraus inferiores de uma escada. Assim, Oken desenvolveu um esquema de
vínculos transversais; ele classificaria a natureza como um entrelaçamento de
significados, não apenas como uma linha de progresso.
Oken sentia que havia decifrado o código da ordem numérica ao reconhecer
ciclos onipresentes de cinco baseados nos órgãos do sentido e na sua própria
sequência ascendente: tato, paladar, olfato, audição e visão. Impelido pela visão
romântica da matéria viva, ansiando por perfeição ao longo de caminhos
simples, prenhes de significado, Oken encontrou círculos ascendentes de cinco
em toda a parte, da mais grandiosa escala, compreendendo todos os animais, até
a menor, a das raças humanas.
Ele ordenou o reino animal inteiro num ciclo ascendente de cinco, refletindo
a adição (ou aperfeiçoamento) sucessiva de órgãos sen-soriais. “As classes
animais”, escreveu ele, “nada mais são, virtualmente, que uma representação dos
órgãos dos sentidos.” Invertebrados, peixes, répteis, aves e mamíferos, ou tato,
paladar, olfato, audição e visão. Não sobrecarregarei este ensaio com os
argumentos capciosos e forçados de Oken a favor dessas correspondências
fantasiosas. A natureza recalcitrante, complexa, comporta-se muito mal sempre
que tentamos lhe impor esquemas tão simples (considere-se, por exemplo, a
dificuldade de identificar os mamíferos com a visão, quando a classe inferior das
aves contém espécies com visão mais aguda do que a de qualquer mamífero).
Limitar-me-ei a citar a fundamentação lógica de Oken.

Estritamente, existem apenas cinco classes de animais: a Dermatozoa, ou
invertebrados; a Glossozoa, ou peixes, sendo esses os animais em que pela
primeira vez surge uma verdadeira língua; a Rhinozoa, ou répteis, em que o
nariz se abre pela primeira vez na boca e inala ar; a Otozoa, ou aves, na qual
o ouvido se abre externamente pela primeira vez; a Ophtalmozoa, ou
Thricozoa [mamíferos], na qual todos os órgãos dos sentidos estão presentes
e completos, os olhos sendo móveis e cobertos com dois tampos ou
pálpebras.

Assim como ocorre no maior, ocorre no menor. Oken conseguiu até mesmo
retratar o ordenamento racista convencional dos grupos humanos com a sua
analogia sensorial, embora não tenha nem ao menos tentado fundamentar a
lógica das escolhas:

1. O homem-pele é o negro, o africano.
2. O homem-língua é o pardo, o malaio-australiano.
3. O homem-nariz é o vermelho, o americano.
4. O homem-ouvido é o amarelo, o asiático.
5. O homem-olho é o branco, o europeu.

Mas como a natureza pode se mover em ciclos regulados pelos órgãos dos
sentidos e, ao mesmo tempo, ao longo de um caminho único de progresso
governado pelo acréscimo de órgãos? Precisamos de uma imagem, uma analogia
e um diagrama.
Imagem: O objeto que sobe pelo caminho de progresso não é uma criatura
que caminha, mas um círculo que gira com cinco raios caracterizados por tato,
paladar, olfato, audição e visão. Cada vez que um raio toca o chão, ele deposita
uma criatura que representa o seu nível de avanço sensorial no caminho do
progresso. Quando o raio superior da visão afinal chega ao chão, uma roda nova
e menor começa a rolar novamente, depositando criaturas ao longo da mesma
sequência sensorial.
Analogia: Várias teorias de história do pensamento ocidental conseguem unir
ideias de progresso contínuo a repetições cíclicas. No vitral do século XVI da
capela do King’s College de Cambridge, uma vigorosa figura de Jonas, expelido
da barriga da baleia, se sobrepõe a uma imagem de Cristo erguendo-se do
sepulcro — pois ambos os homens voltaram à vida no terceiro dia in extremis. A
história cristã desloca-se inexoravelmente para diante, mas o Novo Testamento
repete o Antigo, e o significado de Deus revela-se na repetição.
Diagrama: O diagrama a seguir mostra quatro ciclos de rodas sen-soriais de
cinco partes: todos os animais, todos os mamíferos, o grupo superior dos
mamíferos, e a espécie superior do grupo superior. Para Oken, essas
identificações com os órgãos dos sentidos e especificações de rodas de cinco
partes em todas as escalas da natureza não representavam um sistema artificial
construído para auxiliar a memória ou facilitar a lembrança, mas uma descoberta
da realidade subjacente à natureza. Ele esperava resultados práticos dessas
correspondências. Ele também tentou, por exemplo, ordenar o mundo mineral e
o vegetal em rodas de cinco partes. Como os nossos remédios são feitos de
substâncias químicas e de plantas, as correspondências corretas especificariam
os tratamentos adequados. Poderíamos curar africanos com as plantas do tato, e
caucasianos com as da visão.

Se alguma vez os gêneros de Minerais, Plantas e Animais vierem a ser
colocados corretamente um diante do outro, uma grande vantagem resultará
disso para a ciçncia da Matéria Medica', pois gêneros correspondentes
atuarão especificamente um sobre o outro.


Admiro a abrangência e a coerência da visão de Oken, mas vou descer ao
domínio do sensato e quero ser o tio de um macaco se ela diz alguma coisa de
significativo sobre a natureza.
Assim como Oken construiu as suas rodas ascendentes de cinco na
Alemanha durante as décadas anteriores a Darwin, outra teoria taxonômica, o
sistema quinário, levou muitos naturalistas ingleses a ordenar todos os
organismos em círculos de cinco diferentes. O sistema quinário atrai a
comparação com o sistema de Oken porque ele também construiu círculos de
cinco em escalas diferentes e procurou correspondências entre organismos na
mesma posição em diferentes círculos. Ele também tentou resolver a aparente
contradição entre o progresso linear e a repetição circular.


O sistema quinário baseia-se numa separação entre dois tipos de
similaridade: afinidade e analogia. Vínculos de afinidade unem formas no
mesmo círculo; as analogias especificam a correspondência entre círculos. Por
exemplo, William Swainson, um proeminente representante britânico da teoria
quinária, justificou em 1835 o seguinte círculo de vertebrados. Reconhecemos os
peixes, anfíbios, répteis, aves e mamíferos como cinco grupos de modelo
anatômico comum. Mas como eles podem representar ao mesmo tempo um
caminho ascendente e um círculo fechado de cinco? Swainson argumenta que
devemos unir cada par por meio de uma forma intermediária que mostra
vínculos de afinidade — do peixe ao anfíbio através do girino, do anfíbio ao
réptil através da rã adulta, do réptil à ave através do pterodáctilo, da ave ao
mamífero através do ornitorrinco, e do mamífero de volta ao peixe através do
maior agente de transporte natural, a baleia. Como as baleias ligam os mamíferos
superiores aos peixes inferiores, o caminho de progresso curva-se sobre si
mesmo e forma um círculo. “A própria natureza”, proclamou Swainson,
‘‘descreve o grandioso círculo e declara-o completo.”
O círculo dos vertebrados pode então ser unido a outros círculos em escalas
menores e maiores por meio de vínculos de analogia que ligam grupos em
posições similares. (Devo confessar que os argumentos de Swainson parecem
tão forçados quanto os de Oken. Os adeptos da teoria quinária nunca
apresentaram critérios rigorosos para os motivos pelos quais certas relações
devem ser chamadas de afinidade e outras de analogia. Fica-se com a
desagradável sensação de que eles elaboraram de antemão os seus círculos
preferidos e então inventaram justificativas ad hoc para as afinidades e analogias
assim ordenadas — embora o método supostamente funcionasse em ordem
inversa, construindo-se círculos e correspondências a partir de dados brutos de
afinidade e analogia.) Por exemplo, Swainson ordenou todos os animais em
círculos de Radiata (equinodermos e parentes), Acrita (protozoários e outras
criaturas “simples”), Testacea (moluscos), Annulosa (vermes segmentados,
insetos e crustáceos), e Verte-brata. Os supostos vínculos de analogia com o
círculo dos vertebrados parecem, no mínimo, um tanto artificiosos: os mamíferos
com os vertebrados na condição dos mais aperfeiçoados de cada círculo; os
peixes com os radiários porque ambos são exclusivamente aquáticos, “não tendo
nenhuma espécie de nenhum dos grupos sido ainda descoberta em terra”;
Amphibia com Acrita porque ambos (aguente essa) “por mais dissimilares que
sejam em outros aspectos são notáveis por mudarem suas formas mais do que
qualquer outro dos tipos aberrantes em cada um dos círculos”; os répteis com os
moluscos porque tanto as serpentes quanto os caracóis não têm pés e rastejam
sobre os seus ventres; e as aves com os Annulosa porque os insetos também
voam.
Fiquei desapontado ao descobrir que o artigo sobre Swainson na bíblia dos
historiadores, o Dictionary of Scientific Biography (chamado DSB por todos do
ramo), segue a antiga tradição, já criticada neste ensaio, de desprezar sistemas
ultrapassados como pateticamente tolos à luz do conhecimento moderno:

A sua infatigável atividade na história natural e o trabalho consciencioso em
prol dela merecem ser lembrados como uma compensação para o prejuízo
que ele inadvertidamente causou por sua adesão ao absurdo sistema quinário.
... Essa teoria extraordinária foi tenazmente mantida por Swainson ao longo
de toda a sua carreira zoológica e certamente prejudicou muito o seu
trabalho.

Oken e Swainson foram legítima e severamente criticados em seus próprios
termos. (Tentei formular alguns desses argumentos expondo os critérios
fantasiosos usados para estabelecer os círculos de cinco e extrair analogias entre
eles.) Mas eles não eram tolos ou loucos, e os seus sistemas não eram absurdos.
Oken e Swainson ocupavam uma posição destacada entre os melhores
historiadores naturais da Europa, e os seus sistemas numéricos de taxonomia
foram populares e competidores sérios entre os esquemas contemporâneos de
ordenamento da natureza.
Sistemas numéricos rígidos só se tornaram absurdos posteriormente, à luz da
evolução, pois a sua respeitabilidade está assentada em teorias tidas como sendo
as causas da ordem da natureza. Se Deus colocou as espécies na Terra (como
Swainson acreditava), então ele poderia ter agido com uma precisão numérica
que exibiria o rigor e a harmonia dos seus pensamentos. Se leis simples, em vez
de acidentes da história, estabelecem a sequência dos organismos (como Oken
sustentava), então a ordem numérica poderia surgir entre os animais, exatamente
como a tabela periódica regula os elementos químicos. A numerologia na
taxonomia pode hoje ser rejeitada como misticismo absurdo, mas, no tempo de
Oken e Swainson, essa abordagem corporificava um resultado sensato de teorias
defensáveis sobre as causas da ordem da natureza. Swainson expôs isso com
perfeição ao inferir a existência de Deus e a sua preocupação especial para
conosco da ordem quinária:

Quando descobrimos indicações evidentes de um plano definido, sobre o
qual todas essas modificações foram reguladas por algumas leis simples e
universais, nosso assombro é despertado não só pela sabedoria e pela
bondade inconcebíveis do SUPREMO pelo qual essas miríades de seres
foram criadas e são agora preservadas, como também pela cegueira mental e
pelo entendimento deturpado daqueles filósofos, assim falsamente
denominados, que gostariam de nos persuadir de que mesmo o Homem, a
última e a melhor das coisas criadas, é insignificante demais para merecer o
cuidado especial da Onipotência.

Darwin destruiu a regra de cinco para sempre porque eliminou a sua
fundamentação lógica reconstruindo a natureza. O seu agente de destruição não
foi a evolução em si. Posso imaginar teorias evolutivas (na verdade, algumas
foram propostas) tão comprometidas com o pré-ordenamento por meio de leis
simples ou inteligências diretoras que a ordem numérica ainda poderia surgir de
processos rigidamente previsíveis. O anjo exterminador de Darwin foi,
simplesmente, a história. A evolução não ocorre segundo leis simples que
especificam resultados necessários. Os seus caminhos são torcidos e sacudidos
por ambientes em mudança, de modificações de pouca monta na temperatura e
na precipitação ao soerguimento de cordilheiras, ao crescimento de geleiras, ao
deslocamento de continentes, e até (provavelmente) ao impacto de cometas e
asteroides. A evolução não pode atingir a perfeição de construção porque tem de
trabalhar com partes herdadas de histórias anteriores, de diferentes contextos: o
“polegar” do panda é um osso destacado do pulso, desajeitado, posto em serviço
porque o primeiro dígito de verdade ficou incumbido de outras funções durante a
sua vida ancestral como carnívoro convencional; suportamos o incômodo de
dores nas costas e a irritação das hérnias porque criaturas grandes, de quatro
patas, da nossa linhagem, não foram feitas para andar apoiadas em dois pés —
quatro patas, bom; duas patas, não tão bom.
Como os animais poderiam evoluir ao longo dos tortuosos caminhos da
história e dispor-se ordenadamente em círculos de cinco? A precisão numérica
não pode regular a taxonomia porque a vida se desdobra no tempo. A evolução
registra uma história complexa, irrevogável; os seus caminhos não foram pré-
ordenados por regras simples ou inteligências diretoras.
Mas, ainda assim, a vida regulada pela história tem ordem — um padrão
firme, inelutável, definível, averiguável. A sua ordem é a topologia da sua
metáfora adequada — a árvore da vida. A sua ordem é a genealogia, a
vinculação por meio de ramificação e descendência. Swainson descreveu o
mundo biológico corretamente antes de ir longe demais:

Houvesse a ordem da natureza sido tão irregular a ponto de descobrirmos
que ela criara algumas aves com quatro pés, outras com dois, e algumas sem
nenhum; ou que, como o fabuloso grifo, existissem criaturas que fossem
metade quadrúpede, metade ave; ou se fossem encontrados insetos com pés
de quadrúpede e dedos de aves; em resumo, se existissem tais animais
compostos na natureza, as fundações da história natural como ciência nunca
poderiam ter sido estabelecidas.

Darwin então descobriu o motivo da ordem e mudou o mundo para sempre:

Algo mais está incluído na nossa classificação que a simples semelhança.
Creio que esse algo é... a afinidade de descendência — a única causa conhecida
da similaridade de seres orgânicos.




4. Tendências e o seu significado

14. Perdendo a forma



Desejo propor um novo tipo de explicação para a história mais antiga da liga
de beisebol — a tendência mais amplamente discutida na história da estatística
do beisebol: a extinção do rebatedor de 400 (Trata-se de um rebatedor que deteve 40% de
sucesso em suas rebatidas, rebatidas que se converteram em pontos - N.R.T.). Os entusiastas do
beisebol nadam em estatísticas, uma obsessão sensata que os não-iniciados
compreendem com dificuldade e ridicularizam com frequência. Os motivos não
são difíceis de se compreender. No beisebol, cada ação essencial é uma disputa
entre dois indivíduos — rebatedor contra arremessador, ou rebatedor contra
defensor — criando desse modo uma arena de feitos verdadeiramente
individuais dentro de um esporte de equipe.
Comparativamente, a abstração de feitos pessoais em outros esportes de
equipe faz pouco sentido. Os pontos marcados no basquete ou as jardas ganhas
no futebol americano dependem da complexidade indissolúvel do jogo de
equipe; uma corrida completa (home run) [Ocorre toda vez que um rebatedor consegue
percorrer as quatro bases do campo após uma rebatida e antes de a defesa chegar com a bola - N.R.T.], é
você contra o outro. Além disso, o beisebol tem sido jogado de acordo com um
conjunto de regras e condições suficientemente constantes durante o nosso
século para tornar as comparações significativas, e, no entanto, suficientemente
diferentes em detalhe para proporcionar matéria interminável para debate (a
“bola morta” de 1900-1920 contra a “bola viva” de anos posteriores, a
introdução de jogos noturnos e da substituição de arremessadores, a invenção do
slider [É um tipo de jogada em que o rebatedor escorrega até uma base para ganhar tempo - N.R.T.] os
tamanhos mutáveis e irregulares dos campos, os da natureza contra os de
Astroturf).
Nenhum tema inspirou mais discussão do que o declínio e o desaparecimento
do batedor de .400 — ou, de modo mais geral, a queda nas médias principais de
rebatidas de confederação (Média de todos os rebatedores do campeonato - N.R.T.) durante o
nosso século. Como chafurdamos em nostalgia e temos uma tendência lúgubre
para fazer comparações desfavoráveis entre o presente e uma “era de ouro”
passada, essa tendência adquire ainda mais fascínio porque carrega implicações
morais ligadas metaforicamente a comidas ruins, bombas nucleares e meios
ambientes em erosão como sinais do presente declínio e da queda iminente da
civilização ocidental.
Entre 1901 e 1930, as médias principais de confederação de .400 ou
melhores eram bastante comuns (nove dentre trinta anos) e foram obtidas por
vários jogadores (Lajoie, Cobb, Jackson, Sisler, Heilman, Hornsby e Terry), e as
médias acima de .380 praticamente não mereciam grandes comentários. No
entanto, a abundância cessou abruptamente daí em diante. Em 1930, Bill Terry
conseguiu .401, tornando-se o último rebatedor de .400 na Confederação
Nacional; e os .406 de Ted Williams marcaram o último pináculo da
Confederação Americana. Desde que Williams, o maior rebatedor que já vi,
conseguiu o seu feito no ano do meu nascimento (e eu, ai de mim, não sou mais
um garotinho), apenas três homens conseguiram marcas acima de .380 em uma
única temporada: Williams novamente em 1957 (.388, com 38 anos e o meu
voto de maior feito em rebatidas da nossa era), Rod Carew (.388 em 1977), e
George Brett (.390 em 1980). Para onde foram todos os grandes rebatedores?


Dois tipos um tanto diferentes de explicação têm sido tradicionalmente
oferecidos. O primeiro, ingênuo e moralista, apenas reconhece com um suspiro
que naqueles dias existiam gigantes na Terra. Algo em nós sente a necessidade
de criticar sem piedade o presente à luz de um passado irrealmente róseo. Ao
pesquisar a história da má conduta, por exemplo, descobri que cada geração
(pelo menos desde a metade do século XIX) tem se imaginado mergulhada numa
onda de crime. Cada era também tem testemunhado um declínio chocante de
esportividade. De modo similar, cidadãos mais velhos da liga de beisebol, assim
como torcedores mais jovens (pois a nostalgia pode conseguir o seu maior
impacto junto aos que são jovens demais para ter conhecimento direto de uma
realidade passada), tendem a afirmar que os rebatedores de .400 de tempos
passados simplesmente tinham mais interesse e se esforçavam mais. Bem, Ty
Cobb pode ter sido um exemplo acabado de intensidade, além de um diabo, e
Pete Rose, em comparação, pode ser um cavalheiro, mas o jogo de hoje é tudo,
menos apático. Digam o que quiserem, recompensas monetárias em milhões sem
dúvida inspiram esforços sinceros.
O segundo tipo de explicação encara as pessoas como basicamente iguais ao
longo do tempo e atribui a tendência de decréscimo nas médias principais de
rebatidas de confederação a mudanças no esporte e nos seus estilos de jogo. As
mais citadas são os progressos no arremesso e na defesa e as programações mais
extenuantes que reduzem o nível de excelência. J. L. Reichler, por exemplo, um
dos principais colecionadores de fatos do beisebol, argumenta (ver Bibliografia):

As chances de surgir outro batedor de .400 são bastante desfavoráveis por
causa do tremendo progresso na substituição de arremessadores e na defesa.
Os jogadores de hoje enfrentam as desvantagens de uma programação maior,
que desgasta até mesmo os atletas mais fortes, e de uma quantidade maior de
jogos noturnos, nos quais a bola é mais difícil de ser vista.

Não contesto os motivos de Reichler, mas creio que ele oferece uma
explicação incompleta, expressada a partir de uma perspectiva inadequada.
Outra proposta nessa segunda categoria de explicações invoca a numerologia
do beisebol. Todos os especialistas em estatísticas sabem que, após a introdução
da bola viva no começo da década de 1920 (e o estrago que Babe Ruth fez em
cima disso), as médias de rebatida dispararam de um modo geral e
permaneceram altas durante vinte anos. Como a tabela anexa demonstra, as
médias de confederação para todos os jogadores subiram para a casa dos .280 em
ambas as confederações durante a década de 1920 e permaneceram na dos .270
durante a década de 1930, mas nunca passaram de .260 em nenhuma outra
década do nosso século. Naturalmente, se as médias de confederação subiram de
modo tão considerável, não deve ser motivo de surpresa para nós que os
melhores rebatedores também tenham melhorado as suas marcas. A grande era
das médias de .400 na Confederação Nacional realmente ocorreu durante a
década de 1920 (outro episódio importante de medidas altas ocorreu na era pré-
moderna, durante a década de 1890, quando a média por década subiu para .280
— ela fora de .259 na de 1870 e de .254 na de 1880).
Mas esse fator simples também não consegue explicar a extinção do
rebatedor de .400. Ninguém conseguiu atingir .400 em nenhuma das
confederações entre 1931 e 1940, embora as médias de confederação tenham
estado vinte pontos acima dos valores das duas primeiras décadas do século,
quando as batidas com efeito estavam em moda. Uma comparação dessas duas
primeiras décadas com tempos recentes sublinha tanto o problema quanto o
fracasso das soluções comumente propostas — pois as marcas altas (e as de .400
em particular) floresceram de 1900 a 1920, mas as médias de confederação na
época não foram diferentes das de décadas recentes, ao passo que as marcas altas
desapareceram sem deixar traços.
Considere-se, por exemplo, a Confederação Americana durante os períodos
de 1911-1920 (média de confederação, .259) e de 1951-1960 (média de
confederação, .257). Entre 1911 e 1920, foram registradas médias acima de .400
durante três anos, e a média principal caiu abaixo de .380 apenas duas vezes (os
.368 e os .369 de Cobb em 1914 e 1915). Esse padrão de médias altas não se deu
apenas por obra e graça de Ty Cobb. Em 1912, Cobb conseguiu .410, enquanto o
malfadado Shoeless Joe Jackson alcançou .395, Tris Speaker, .383, Nap Lajoie,
com 37 anos, .368, e Eddie Collins, .348. Em comparação, durante 1951-1960,
apenas três médias principais excederam o quinto lugar de Eddie Collins, com
.348 (Mantle, com .353 em 1956, Kuenn, com .353 em 1959, e Williams, com os
seus já discutidos .388, em 1957). A década de 1950, diga-se de passagem, não
foi uma década de incompetentes, contando com gente como Mantle, Williams,
Minoso e Kaline. Assim, um declínio geral nas médias principais de
confederação ao longo do século não pode ser explicado por uma inflação de
médias gerais durante duas décadas intermediárias. Ficamos às voltas com um
enigma. Como acontece com os enigmas mais persistentes, provavelmente
precisamos de um novo tipo de explicação, não de uma simples reciclagem e
refinamento de argumentos antigos.
Sou paleontólogo por ofício. Nós, estudiosos da história da vida, gastamos a
maior parte do tempo preocupando-nos com tendências de longo prazo. A vida
tornou-se mais complexa ao longo do tempo? Existem mais espécies de animais
agora do que há duzentos milhões de anos? Há vários anos, ocorreu-me que
sofremos de uma predisposição sutil, mas poderosa, na abordagem que adotamos
para explicar tendências. Os extremos nos fascinam (o maior, o menor, o mais
velho), e tendemos a nos concentrar apenas neles, divorciados dos sistemas em
que estão incluídos na condição de valores incomuns. Ao explicar extremos, nós
os abstraímos de sistemas maiores e presumimos que as suas tendências surgem
por motivos autogerados: se os maiores se tornam ainda maiores ao longo do
tempo, uma vantagem poderosa deve acompanhar o aumento de tamanho.
Mas se considerarmos os extremos como valores-limite de sistemas maiores,
muitas vezes um tipo bem diferente de explicação se impõe. Se a quantidade de
variação dentro de um sistema muda (seja qual for o motivo), então os valores
extremos podem aumentar (se a variação total crescer) ou diminuir (se a variação
total cair) sem qualquer motivo especial baseado no caráter ou no significado
intrínsecos dos valores extremos em si. Em outras palavras, tendências em
extremos podem ser o resultado de mudanças sistemáticas em quantidades de
variação. Os motivos das mudanças de variação são muitas vezes
consideravelmente diferentes dos motivos propostos (com frequência espúrios)
para mudanças de extremos considerados como independentes dos seus sistemas.
Permitam-me ilustrar este conceito pouco conhecido com dois exemplos da
minha profissão — um para o aumento, outro para a diminuição de valores
extremos. Primeiro, um exemplo de aumento de valores extremos
apropriadamente interpretado como uma expansão de variação: os maiores
tamanhos de cérebros dos mamíferos aumentaram constantemente ao longo do
tempo (os campeões de miolos conseguiram mais miolos). Muitas pessoas, a
partir desse fato, inferem que tendências inexoráveis para um aumento de
tamanho do cérebro afetam a maioria ou todas as linhagens de mamíferos. Não é
assim. Dentro de vários grupos de mamíferos, o tamanho mais comum de
cérebro não mudou em nada desde que o grupo se tornou estabelecido. Contudo,
a variação entre as espécies aumentou — isto é, a amplitude de tamanhos de
cérebro tem crescido à medida que as espécies se tornam mais numerosas e mais
diversificadas nas suas adaptações. Se nos concentrarmos somente em valores
extremos, veremos apenas um aumento geral ao longo do tempo e presumiremos
algum valor intrínseco e inelutável no tamanho crescente do cérebro. Se
considerarmos a variação, veremos apenas uma expansão de amplitude ao longo
do tempo (levando, é claro, a valores extremos maiores), e ofereceremos uma
explicação diferente baseada nos motivos para a diversidade aumentada.
Segundo, um exemplo de diminuição de extremos interpretado
apropriadamente como um declínio de variação: um padrão característico na
história da maioria dos invertebrados marinhos foi denominado “experimentação
inicial e padronização posterior”. Quando surge um novo modelo de corpo, a
evolução parece explorar todos os tipos de torceduras, voltas e variações. Uns
poucos funcionam bem, mas a maioria não (ver ensaio 16). Por fim, apenas uns
poucos sobrevivem. Os equinodermos apresentam-se hoje em cinco variedades
básicas (dois tipos de estrela-do-mar, ouriços-do-mar, pepinos-do-mar e
crinóides — um grupo pouco familiar, que lembra mais ou menos uma estrela-
do-mar com vários braços em cima de um talo). Mas quando os equinodermos se
desenvolveram pela primeira vez, eles irromperam numa série impressionante de
mais de vinte grupos básicos, incluindo alguns torcidos como uma espiral e
outros com uma simetria bilateral tão acentuada que alguns paleontólogos
interpretaram-nos como ancestrais dos peixes. De modo similar, os moluscos
hoje existem na forma de caramujos, mariscos, cefalópodes (polvos e
aparentados), e mais dois ou três grupos raros e pouco familiares. Mas eles
exibiram de dez a quinze variações fundamentais no começo da sua história.
Essa tendência para aparar e eliminar extremos é com certeza a mais comum na
natureza. Quando os sistemas surgem pela primeira vez, eles examinam todos os
limites de possibilidades. Muitas variações não funcionam; surgem as melhores
soluções, e a variação diminui. À medida que os sistemas se regularizam, a
variação decresce.
A partir desta perspectiva, ocorreu-me que poderíamos estar encarando o
problema do rebatedor de .400 pelo lado errado. As médias principais de
confederação são valores extremos dentro de sistemas de variação. Talvez o seu
decréscimo ao longo do tempo testemunhe simplesmente a padronização que
afeta tantos sistemas à medida que eles se estabilizam — inclusive a própria
vida, tal como foi declarado acima e desenvolvido no ensaio 16. Quando o
beisebol era jovem, os estilos de jogo ainda não haviam se tornado regulares o
suficiente para frustrar os truques dos que eram bons de verdade. Wee Willie
Keeler podia “acabar com eles onde quer que estivessem” (e marcar uma média
de .432 em 1897) porque os defensores ainda não sabiam onde deviam estar.
Aos poucos, os jogadores foram se deslocando rumo a métodos ótimos de
posicionamento, defesa, arremesso e rebatida — e a variação caiu
inevitavelmente. Os melhores encontravam agora uma oposição por demais
afinada à sua própria perfeição para admitir os extremos de realização de uma
era mais descuidada. Não podemos explicar o declínio das médias altas
simplesmente argumentando que os empresários inventaram a substituição de
arremessadores, enquanto os arremessadores inventaram o slider — explicações
convencionais baseadas em tendências que afetam as médias altas consideradas
como um fenômeno independente. Mais exatamente, o jogo inteiro aprimorou os
seus padrões e diminuiu as suas amplitudes de tolerância.
Assim, apresento a minha hipótese: o desaparecimento do rebatedor de .400
(e o declínio geral das médias principais de confederação ao longo do tempo)
resulta em boa parte de um fenômeno geral — um decréscimo de variação de
médias de rebatida à medida que o esporte padronizava os seus métodos de jogo
— e não de uma tendência intrinsecamente impelida justificando uma explicação
especial em si mesma.
Para testar tal hipótese, precisamos examinar as mudanças ao longo do
tempo na diferença entre médias principais de confederação e a média geral de
todos os rebatedores. Se eu estiver certo, essa diferença deve decrescer. Mas
como a minha hipótese envolve um sistema inteiro de variação, então, algo
paradoxalmente, devemos examinar também as diferenças entre as médias de
rebatida mais baixas e a média geral. A variação deve diminuir em ambas as
pontas — isto é, dentro do sistema inteiro. Tanto as médias de rebatida mais
altas quanto as mais baixas devem convergir rumo à média geral de
confederação.
Assim, peguei a minha fiel Baseball Encyclopedia, aquele vade mecum de
todos os torcedores sérios (embora, com mais de 2.000 páginas, seja meio difícil
andar com ela debaixo do braço). A enciclopédia relata as médias de
confederação de cada ano e relaciona as cinco maiores médias para jogadores
que tenham pego o bastão oficialmente um número suficiente de vezes. Como os
extremos altos nos fascinam, ao passo que os baixos são apenas embaraçosos,
não há nenhuma lista das médias mais baixas, e é preciso passar em revista
laboriosamente a lista inteira de jogadores. Nas médias mais baixas, encontrei
(para cada confederação em cada ano) as cinco marcas mais baixas de jogadores
que tenham pego o bastão pelo menos trezentas vezes. Então, para cada ano,
comparei a média de confederação com a média das cinco marcas mais altas e as
cinco mais baixas para jogadores frequentes. Por fim, tirei a média desses
valores anuais década por década.
No quadro anexo, apresento os resultados de ambas as confederações
combinadas — uma confirmação clara da minha hipótese, já que tanto as médias
mais altas quanto as mais baixas convergem para a média de confederação ao
longo do tempo.


O declínio medido das médias altas para o meio parece ocorrer na forma de
três patamares, apenas com variação limitada dentro de cada patamar. Durante o
século XIX (só a Confederação Nacional; a Confederação Americana foi
fundada em 1901), a diferença média entre as médias mais altas e as mais baixas
foi de 91 pontos (amplitude de 87 a 95, por década). De 1901 a 1930, ela caiu
para 81 (amplitude de apenas 80 a 83),. enquanto que para as cinco décadas
desde 1931, a diferença entre média e extremo teve como média 69 (com uma
amplitude de apenas 67 a 70). Esses três patamares correspondem a três eras
marcadas por médias de rebatida altas. A primeira inclui as médias
desembestadas da década de 1890, quando Hugh Duffy alcançou .438 (em 1894)
e todos os cinco jogadores principais superaram .400, no mesmo ano (o que não
é surpreendente, já que esse ano apresentou a infame experiência, logo
abandonada, de contar caminhadas[Esta regra dá ao rebatedor o direito de caminhar para uma
base após erros sucessivos do arremessador, direito que ele normalmente só teria quando conseguisse
rebater a bola - N.R.T.] como rebatida). O segundo patamar inclui todas as marcas
inferiores de batedores de .400 do nosso século, com exceção de Ted Williams
(Homsby encabeçou as tabelas com .424 em 1924). O terceiro patamar registra a
extinção das marcas de .400.As médias mais baixas exibem o mesmo padrão de
diferença decrescente em relação à média de confederação, com um declínio
precipitado por década, de 71 para 54 pontos durante o século XIX, e dois
patamares desde então (de mais ou menos 40 no começo do século para mais ou
menos 30 depois), seguidos por uma exceção ao meu padrão — um retorno para
mais ou menos’40 durante a década de 1970.


Os valores do século XIX devem ser tomados com restrições, já que as
regras do jogo eram um tanto diferentes. Durante a década de 1870, por
exemplo, as programações variavam de 65 a 85 jogos por temporada
(comparados com os 154 da maior parte do nosso século e os 162 de tempos
mais recentes). Com temporadas curtas e menos jogadores no bastão, a variação
deve aumentar, exatamente como, em nossos dias, as médias de junho e julho
abrangem uma amplitude maior do que as médias de fim de temporada, depois
que centenas de jogadores passaram pelo bastão. (Para temporadas curtas, usei
dois turnos no bastão por jogo como critério para inclusão nas tabulações de
médias baixas.) No entanto, na década de 1890, as programações haviam
aumentado para 130-150 jogos por temporada, e as comparações com o nosso
século tornam-se mais significativas.
Fiquei um tanto surpreso — e prometo aos leitores que não estou fazendo
racionalizações após o fato, mas atuando sobre uma previsão que fiz antes de
começar a calcular — com o fato de que o padrão de decréscimo não ofereceu
mais exceções durante as duas últimas décadas, porque o beisebol experimentou
uma profunda desestabilização, do tipo que os meus cálculos deveriam refletir.
Após meio século de jogo estável com oito times geograficamente estacionários
por confederação, o sistema finalmente se rompeu em resposta à maior
facilidade de transporte e ao maior acesso aos poderosos dólares. As sedes das
equipes começaram a mudar, e os meus adorados Dodgers e Giants
abandonaram Nova York em 1958. Então, no começo da década de 1960, ambas
as confederações aumentaram para dez times, e, em 1969, para doze times em
duas divisões.
Essas ampliações deveriam ter causado uma inversão nos padrões de
decréscimo entre médias extremas de rebatidas e médias de confederação.
Muitos jogadores menos que adequados tornaram-se regulares e fizeram
diminuir as médias baixas (Marvelous Marv Throneberry ainda está colhendo os
benefícios em anúncios de cerveja Lite). As médias de confederação também
declinaram, em parte como consequência do mesmo influxo, e chegaram no
nível mais baixo em 1968 com .230, na Confederação Americana. (Essa
tendência foi revertida por decreto em 1969, quando a base do arremessador
tornou-se mais baixa e a zona de rebatida obrigatória diminuiu para dar uma
chance melhor aos rebatedores.) Essa diminuição de médias de confederação
também deveria ter aumentado a distância entre rebatedores com médias altas e a
média de confederação (já que os jogadores muito bons não estavam sofrendo
um declínio geral de qualidade). Assim, surpreendeu-me que um aumento na
distância entre as médias de confederação e as médias mais baixas durante a
década de 1970 tenha sido o único resultado dessa desestabilização importante
que pude detectar.
Na condição de não profissional e não jogador, não posso precisar as
mudanças que fizeram com que o jogo se estabilizasse e a amplitude de médias
de rebatida diminuísse ao longo do tempo. Mas posso identificar o caráter geral
de influências importantes. As explicações tradicionais que encaram o declínio
das médias altas como uma tendência intrínseca têm de enfatizar invenções e
inovações explícitas que desencorajam a marcação de pontos — a introdução da
substituição de arremessadores e a maior quantidade de jogos noturnos, por
exemplo. Não nego que esses fatores tenham efeitos importantes, mas se o
declínio teve como causa principal, como proponho, um decréscimo geral na
variação das médias de rebatidas, então devemos recorrer a outros tipos de
influências.
Deveríamos nos concentrar na precisão, na regularidade e na padronização
crescentes do jogo — e devemos procurar os modos que os empresários e
jogadores descobriram para remover a vantagem de que desfrutavam no passado
os jogadores verdadeiramente excelentes. O beisebol tornou-se uma ciência (no
sentido vernáculo de precisão repetitiva de execução). Os defensores de fundo de
campo praticam durante horas para fazer passes para o interceptador. O
posicionamento dos defensores muda por turno e por jogador. Os double plays
(Jogada dupla onde a defesa elimina dois jogadores adversários que correm simultaneamente para bases
diferentes antes que eles realizem uma home run. Consegue-se isso fazendo a bola chegar às bases
correspondentes antes de cada um dos jogadores adversários - N.R.T.) são executados com a
impressionante precisão de uma máquina. Cada arremesso e cada modo de
manejar o bastão é catalogado; mantêm-se livros elaborados sobre os hábitos e
as fraquezas pessoais de cada rebatedor. O “jogo” pelo jogo não existe mais.
Quando os grandes navios do mundo abrilhantaram o nosso bicentenário em
1976, muitas pessoas lamentaram a sua beleza perdida e citaram a mágoa de
Masefield, de que nunca “veríamos navios como esses outra vez”. Eu alimento
sentimentos opostos em relação ao desaparecimento do rebatedor de .400. Os
gigantes não cederam lugar a meros mortais. Aposto qualquer coisa como Carew
podia ser páreo para Keeler. Mais precisamente, as fronteiras do beisebol foram
restringidas e as suas arestas aparadas. O jogo alcançou uma graça e uma
precisão de execução que teve como consequência a eliminação dos feitos
extremos dos anos iniciais. Um jogo inigualado em estilo e detalhe tornou-se
mais equilibrado e bonito.

Pós-escrito

Alguns leitores extraíram do ensaio precedente a inferência (absolutamente
não-intencional) de que sustento uma atitude cética ou mesmo indigesta em
relação aos grandes feitos do esporte — algo por um passado distante, quando
heróis de verdade podiam brilhar, antes que o jogo alcançasse a sua perfeição
quase mecânica. Mas o capricho dos grandes dias e momentos, situado no
domínio do imprevisível, nunca poderia desaparecer, mesmo que os patamares
de realização constante rumassem para uma média invariável. Como tributo meu
à possibilidade eterna da transcendência, submeto este comentário sobre o maior
momento de todos, na página de artigos assinados do New York Times de 10 de
novembro de 1984.

Três strikes para Babe
(Strike é o termo utilizado para quando um rebatedor erra a bola, apesar de ela vir numa posição
considerada pelo juiz como “rebatível”. Se o rebatedor cometer três strikes ele é eliminado do jogo -
N.R.T.)

Lembretes minúsculos e superficiais muitas vezes provocam torrentes de
recordações. Acabo de ler uma pequena nota, espremida nas páginas de esportes:
“Babe Pinelli, por longos anos importante juiz de confederação, morreu
segunda-feira, com 89 anos, numa instituição de convalescença perto de São
Francisco.”
O que poderia ser mais fugaz do que a perfeição? E o que você preferiria ser
— o agente ou o juiz? Babe Pinelli foi o árbitro no único episódio de perfeição
no beisebol, numa ocasião em que isso era da maior importância. 8 de outubro
de 1956. Um jogo perfeito na World Series (Os americanos adoram chamar o seu
campeonato de beisebol como o “campeonato mundial” - N.R.T.) — e, por coincidência, o
último jogo oficial de Pinelli como árbitro. Que consumado canto do cisne! O
jogo estava empatado em 27 a 27. E, como atos isolados de grandeza são
estímulos intrínsecos à democracia, o agente foi um arremessador Yankee
competente, mas, de resto, inexpressivo, Don Larsen.
O dramático final foi todo de Pinelli, controverso desde então. Dale Mitchel,
substituindo Sal Maglie, foi o vigésimo sétimo rebatedor. Com uma contagem de
1 e 2 (A contagem 1 e 2 significa “1 rebatida e 2 strikes” - N.R.T.) Larsen serviu uma alta e
fora (Bola alta e fora é uma bola lançada pelo arremessador e que está fora do alcance do rebatedor, não
sendo válida; o rebatedor pode deixar passar sem que se considere como strike - N.R.T.) — quase, mas
certamente não, pela definição técnica, um ponto. Mitchell deixou o arremesso
passar, mas Pinelli não hesitou. Ergueu o braço direito para indicar o terceiro
strike. Yogi Berra saiu de trás da caixa do rebatedor, quase derrubando Larsen
num pulo frontal de alegria. “Fora por um pé”, resmungou Mitchell mais tarde.
Ele exagerou — já que foi fora apenas por umas poucas polegadas — mas estava
certo. Babe Pinelli, porém, estava mais certo. Um batedor não pode deixar passar
um arremesso próximo quando há tanta coisa em jogo. O contexto importa. A
verdade é uma circunstância, não um determinado local.
Eu cursava o penúltimo ano da Jamaica High School. Naquele dia, todos os
professores, até mesmo a sra. B, a nossa velha e azeda professora de geometria
sólida (e, em retrospecto, uma fã secreta de beisebol, acho eu), nos deixaram
acompanhar o jogo pelo rádio. Já no final da partida, fomos até a sra. G, a nossa
professora de francês, ainda mais azeda, e eu fui o escolhido para implorar. “A
senhora tem que deixar a gente ouvir”, disse eu, “nunca aconteceu antes.” “Meu
jovem”, ela retrucou, “esta é uma aula de francês.” Por sorte, sentei no fundo da
sala, bem na frente de Bob Hacker (lembram-se da distribuição de carteiras por
ordem alfabética?), um fã doente do Dodger, com rádio portátil e fone de
ouvido. No meio da aula, após o último ponto de Pinelli, senti um tapinha
sepulcral e olhei para trás. O rosto de Hacker estava sem cor. “Ele conseguiu —
o maldito conseguiu.” Eu gritei e atirei a minha jaqueta para o alto. “Meu
jovem”, disse a sra. G da escrivaninha, “tenho certeza de que o verbo écrire não
é tão excitante assim.” Isso me custou 10 pontos na média final, e talvez também
a admissão em Harvard. Nunca experimentei um instante de arrependimento.
A verdade é inflexível. A verdade é inviolável. Pelo costume reconhecido e
de longa data, por qualquer conceito de justiça, Dale Mitchell tinha de tentar
acertar qualquer coisa que passasse por perto. Foi um ponto — um ponto alto e
fora. Babe Pinelli, apitando o seu último jogo, encerrou-o com o seu momento
melhor, mais perceptivo e mais verdadeiro. Babe Pinelli, árbitro da história,
entrou no vestiário e chorou.

Pós-pós-escrito

Que negócio engraçado. Trabalhei durante três anos para escrever uma
monografia sobre a evolução de caracóis terrestres das Bermudas e, desde então,
apenas nove pessoas citaram o tomo resultante. Escrevi estas poucas centenas de
palavras num ímpeto de inspiração de quinze minutos, durante uma interminável
rodada de discursos no banquete anual da Pequena Confederação do meu filho
(ocasião boa para algo mais além de peru fatiado, eu sempre achei) — e elas já
receberam mais comentários do que a maioria dos meus trabalhos técnicos
combinados.
Algumas pessoas entenderam mal (recebi uma carta impiedosa do pastor de
Babe Pinelli, exigindo virtualmente uma retratação pública da minha acusação
de que o grande juiz havia mentido conscientemente, fosse por uma ducha
antecipada, fosse por um lugar ao sol). Recebi muitas outras cartas adoráveis,
inclusive uma do neto de Pinelli, dizendo que “Babe nunca teve segundas
intenções com aquele ponto e que não ia engolir gracinhas”. Certíssimo. Um
radialista particularmente gentil desenterrou a sua velha gravação do incidente e
tocou-a para mim pelo telefone — após observar que a sra. G havia me privado
de tal prazer, e que eu nunca escutara realmente o grande momento.
Fiquei feliz e surpreso ao saber que este comentário, que eu pretendia fosse
apenas uma doce lembrança de um único evento, foi lido e discutido em escolas
e em aulas de ética de faculdades. Só para que fique registrado, portanto, por
favor, não leiam o texto como uma argumentação a favor de um relativismo
piegas na busca da verdade. A questão estritamente empírica tem uma solução
clara e inequivocamente concreta — uma verdade absolutamente inviolável, se
quiserem. O arremesso foi alto e fora. A flexibilidade baseada nas circunstâncias
surge apenas no que diz respeito às definições, que são inventadas por pessoas e
não parte do mundo externo. O arremesso, naquele contexto particular, foi um
stríke, e Pinelli estava certo.
Devo também confessar um profundo constrangimento, sobretudo à luz do
meu último parágrafo. O meu texto original identificava o arremesso como baixo
e fora (tal como relatado por Peter Golen-bock em Dinasty, a sua história dos
anos de glória dos Yankee — mas, sem desculpas, já que eu não devia ter me
limitado simplesmente a copiar). O Times até mesmo exacerbou o erro, usando
como título, não a linha que eu pretendia usar (agora restaurada), mas “o ponto
que foi baixo e fora”. No entanto, mesmo o erro pode ter a sua recompensa,
provando assim que o mundo contém alguma benevolência intrínseca. Red
Barber, aquele bom homem e maior anunciante de todos, corrigiu-me com
bastante sutileza na sua preciosidade semanal de cinco minutos no serviço
público de rádio. Ele devia saber; afinal de contas, ele estava lá (e eu não, como
prova o texto). Eu pesquisei profundamente, só para confirmar. Ele estava certo,
é claro. O arremesso foi alto, não baixo. Lembre-se daquela série de desenhos —
“a emoção que vem apenas uma vez na vida” (como a do garoto que leva o carro
até o posto de gasolina e diz “enche”). Foi assim que eu senti. Imagine só — ser
corrigido pelo próprio Old Redhead!

15. Morte e transfiguração




Para muitos forasteiros, Indianápolis nada mais é que um fim de semana por
ano e quinhentas milhas de corrida de automóvel. Na realidade contínua, trata-se
de uma cidade atraente, cheia de amenidades modernas e com uma generosa
pitada daquelas estruturas mais antigas que unem o nosso frenético e incerto
presente a um passado mais confortador. Na semana passada, durante um
intervalo entre os deveres do dia-a-dia, vaguei pelo Templo Murat do Sepulcro e
pela enorme catedral da Maçonaria do Rito Escocês. Até há pouco tempo, essas
lojas devem ter dominado a vida social de Indianápolis; pelo que sei, pode ser
que ainda sejam importantes. Mas as suas edificações gigantescas parecem
solitárias e abandonadas — cavernosas salas vitorianas, de madeira escura e com
vitrais, vagamente iluminadas pela luz disponível, cheias de cadeiras velhas,
estufadas, raramente ocupadas por uns poucos velhos usando chapéus de
formatos bizarros. Sem dúvida, a velha ordem muda.
Estive em Indianápolis para o encontro anual da Geological Society of
America (Escrevi este ensaio em novembro de 1983 — logo após o encontro aqui descrito). Lá, vi,
ouvi e participei do debate, quando um grupo de colegas paleontólogos começou
a desmantelar uma velha ordem de pensamento a respeito de velhos objetos — e
a construir uma nova e surpreendente abordagem para uma característica de
suma importância da história da vida na Terra: das extinções em massa.
Os paleontólogos têm conhecimento das extinções em massa desde o início
da nossa ciência como disciplina moderna. Nós as usamos para demarcar as
divisões principais da escala temporal geológica — as fronteiras entre as eras. A
extinção do período permiano, que marcou o fim da era paleozoica, eliminou
metade dos invertebrados marinhos; a extinção do cretáceo, que marca a
transição da era mesozoica para a cenozoica, varreu mais ou menos 15% das
famílias marinhas, juntamente com as mais populares de todas as criaturas
terrestres, os dinossauros.
Contudo, embora sempre tenhamos reconhecido a existência dessas grandes
mortandades, tentamos, de uma maneira curiosa, mitigar os seus efeitos,
provavelmente porque o nosso forte preconceito a favor da mudança gradual e
contínua nos force a encarar as extinções em massa como anômalas e
ameaçadoras. Tentamos, em resumo, caracterizar as extinções em massa como
uma extensão simples, quantitativa, do desaparecimento mais lento, espécie por
espécie, que caracteriza os tempos normais — maiores e mais abruptas, é claro,
mas basicamente a mesma coisa. Seguimos duas estratégias principais para
temperar as extinções em massa e colocá-las em harmonia com os eventos dos
tempos normais. Primeiro, enfatizamos a continuidade entre as fronteiras
tentando encontrar ancestrais diretos das novas formas que surgem após uma
extinção entre as espécies que vicejavam pouco antes do evento. Segundo,
manipulamos os padrões numéricos das extinções para argumentar que os picos
não foram nem altos, nem abruptos o suficiente para fundamentar uma visão
catastrófica — em outras palavras, argumentamos que as pulsações de extinção
foram precedidas por declínios graduais com a duração de milhões de anos, e
que os picos em si não se destacam tão nitidamente das taxas “de fundo” dos
tempos normais.
No entanto, essas tradições foram vigorosamente desafiadas em Indianápolis,
numa série de dissertações separadas e ostensivamente não relacionadas que
apontam para uma conclusão comum: as extinções em massa, de acordo com
quatro critérios, devem ser reinterpretadas como rupturas, não como pontos
culminantes de sequências contínuas. Elas são mais frequentes, mais rápidas,
mais profundas (em quantidades de espécies eliminadas), e mais diferentes (em
efeito versus os padrões de tempos normais) do que havíamos suspeitado.
Qualquer teoria adequada da história da vida terá de tratá-las como eventos
controladores especiais por direito próprio. Elas não serão plenamente
explicadas pela teoria evolutiva que elaboramos para a interação entre
organismos e populações de tempos normais — isto é, por quase toda a teoria
evolutiva convencional agora disponível.
Adolf Seilacher, professor de geologia em Tübingen, Alemanha, apresentou
a peça central desse assalto não planejado contra a tradição. Dolf é o maior
observador que já tive o privilégio de conhecer. Ele olha objetos comuns,
examinados minuciosamente por gerações de pesquisadores, e, invariavelmente,
vê algo novo e inesperado. Dessa vez, ele voltou o seu olhar superior para o mais
antigo de todos os grupos metazoários (animais multicelulares) — a fauna
ediacarana. A sua dissertação resultou numa reinterpretação fundamental desses
fósseis, com implicações de longo alcance para toda a história da vida — e eu
fiquei sentado, em transe, enquanto onda após onda de significados expandidos
despencavam sobre mim.
Até cerca de 570 milhões de anos, o nosso moderno registro fóssil teve início
com a maior de todas as explosões geológicas — a explosão do período
cambriano. No espaço de uns poucos milhões de anos, quase todos os grupos
principais de invertebrados com partes duras fizeram o seu primeiro
aparecimento no registro fóssil. Durante todos os três bilhões de anos anteriores,
a vida incluíra pouco mais que uma longa sequência de bactérias e cianofíceas.
Mas o registro fóssil da vida primitiva sem dúvida contém uma exceção, ainda
que de última hora — descoberta primeiro na Austrália, mas agora conhecida em
todo o mundo — a fauna ediacarana (batizada assim por causa da importante
localidade australiana). Nas rochas imediatamente anteriores à explosão
cambriana, encontramos um grupo moderadamente diversificado de
invertebrados marinhos, de águas rasas, com corpo mole, de tamanho médio a
grande (até um metro de comprimento).
Na tradição continuísta que identifiquei acima como uma primeira estratégia
para suavizar o impacto das extinções em massa, os paleontólogos tentaram
constantemente identificar os animais ediacaranos com grupos modernos. Desse
modo, os animais ediacaranos foram interpretados como águas-vivas, corais e
vermes — uma sequência contínua de relações evolutivas ao longo da maior de
todas as fronteiras geológicas. No entanto, como argumento no ensaio seguinte,
o expediente tradicional de forçar fósseis antigos e problemáticos em categorias
taxonômicas modernas muitas vezes fracassa de modo lamentável. Temos de
reconhecer que a história primitiva da vida deve estar juncada de experimentos
fracassados — grupos pequenos que nunca alcançaram muita diversidade e que
mantêm apenas uma relação distante com qualquer animal moderno. Seria de
esperar que a nossa fauna antiga contivesse um grande número de tais
curiosidades — no entanto, todos os animais ediacaranos foram enfiados à força,
muitas vezes com uma força considerável, em grupos modernos.
Dolf Seilacher afirma agora, virando completamente de pernas para o ar o
antigo parecer, que a fauna ediacarana não contém nenhum ancestral de
organismos modernos, e que todos os animais ediacaranos compartilham um
modo básico de organização, de todo distinto da arquitetura dos grupos agora
vivos. Em outras palavras, a fauna ediacarana inteira representa um experimento
único e extinto no modelo básico de construção das formas vivas. A primeira
fauna do nosso planeta foi substituída após uma extinção em massa, e não
simplesmente melhorada e expandida.


Dolf começou demonstrando que as tradicionais similaridades entre os
animais ediacaranos e os modernos são enganosas e superficiais, e que as formas
ediacaranas não podiam funcionar como as suas supostas contrapartes modernas.
Quase todos os fósseis ediacaranos foram falsamente encaixados em três grupos
modernos: águas-vivas, corais e vermes segmentados. As águas-vivas modernas
movem-se contraindo um anel proeminente de músculos concêntricos
localizados na borda exterior do seu guarda-chuva; sulcos radiais para colher e
transportar alimento encontram-se dentro dos músculos concêntricos, voltados
para o centro. Mas os chamados medusóides ediacaranos invertem essa
disposição, e não poderiam, portanto, funcionar do mesmo modo: estruturas
concêntricas rodeiam o centro, e sulcos radiais encontram-se no exterior.
Os corais alcionários modernos (corais “moles”, ou “penas do mar”)
invariavelmente portam ramos distintos que muitas vezes emergem de um talo
comum. Os ramos têm de estar separados de modo que a água, que traz oxigênio
e nutrientes, possa alcançar os pólipos individuais (os membros da colônia) que
crescem sobre eles. À primeira vista, os “alcionários” ediacaranos assemelham-
se superficialmente às suas contrapartes modernas e no formato geral, mas eles
formam uma estrutura contínua, de segmentos fundidos, não um conjunto de
ramos separados — e, portanto, não poderiam operar como uma colônia
moderna de corais moles. Os “vermes” ediacaranos são segmentados e possuem
simetria bilateral como os supostos descendentes modernos, mas várias outras
criaturas compartilham a mesma simetria e uma arquitetura tão básica e repetível
não tem de implicar necessariamente um parentesco próximo. Em outros
aspectos, as criaturas ediacaranas não são nem um pouco vermiformes. Elas
chegam até a um metro de comprimento e permanecem chatas como uma
panqueca mais semelhantes a películas do que aos corpos substancialmente
engrossados da maioria dos vermes segmentados modernos.
Após expor as diferenças entre os animais ediacaranos e as suas supostas
contrapartes modernas, Seilacher examinou as similaridades que unem todas as
formas ediacaranas. Elas compartilham uma arquitetura usada apenas raramente
pelos animais modernos — e não se trata de qualquer criatura viva ligada a um
fóssil ediacarano. Elas parecem fitas, panquecas e películas, às vezes levemente
“infladas” como colchões de ar, com uma estrutura foliforme ou de partes
fundidas.
Os animais ediacaranos evoluíram antes que qualquer criatura houvesse
inventado esqueletos mineralizados ou partes externas duras. Talvez o seu
Bauplan singular (para usar a palavra alemã conveniente para um esquema
básico de arquitetura orgânica) testemunhe um caminho para o tamanho grande
que animais sem órgãos de sustentação duros poderiam seguir — estruturas
leves e finas, combinadas para a obtenção de maior força. De qualquer modo, e
seguindo um tema favorito destes ensaios por mais de uma década, os fósseis
ediacaranos parecem representar uma entre duas soluções possíveis — a qúe não
foi seguida pelos animais modernos — para o problema estrutural básico do
grande porte: o declínio imposto na área superficial relativa, já que as superfícies
(crescendo como comprimento elevado ao quadrado) devem aumentar mais
vagarosamente que os volumes (que crescem como comprimento elevado ao
cubo) à medida que objetos de forma similar se tornam maiores. Como tantas
funções orgânicas dependem de superfícies (a respiração e a alimentação, para
citar apenas duas), e, no entanto, têm de servir o volume inteiro do corpo, tal
declínio em superfície relativa não pode ser tolerado por muito tempo.
Das duas soluções possíveis, quase todos os animais modernos grandes
conservaram os seus formatos arredondados e globulares, mas desenvolveram
órgãos internos para aumentar as áreas superficiais — a profusa ramificação de
vias aéreas do nosso pulmão, e a superfície complexamente dobrada do nosso
intestino delgado, por exemplo. Outra solução potencial, raramente seguida hoje,
mas explorada por alguns parasitas grandes, inclusive as solitárias, permite o
desenvolvimento de porte grande sem complexidade interna mudando a estrutura
básica do corpo para algo bem fino — uma fita ou uma panqueca — de modo
que nenhum espaço interno fique distante da superfície externa, a única parte
onde podem ocorrer a respiração e a absorção de alimento na ausência de órgãos
internos. Os animais ediacaranos, como grupo, seguiram esse segundo caminho
para o aumento de tamanho e, portanto, representam uma fauna coerente,
notavelmente diversa em modelo básico de qualquer criatura moderna.
Caso estivesse inclinado a procurar o progresso na história, eu poderia sentir-
me satisfeito porque a primeira “tentativa” da vida usou a mais simples das duas
soluções — uma mudança no formato do corpo em vez de uma invenção de
órgãos internos complexos. Contudo, permanece o ponto mais importante, o de
que, se Seilacher estiver certo, a fauna ediacarana representa um experimento
diferente, único e coerente na arquitetura orgânica — e não um conjunto de
precursores dos animais modernos. Para enfatizar essa descontinuidade, a
primeira fauna com partes duras da era paleozoica, o chamado grupo tomotiano,
está cheio de criaturas minúsculas, tubulares, espiraladas e em forma de
carapuça sem praticamente semelhança alguma com as formas ediacaranas. A
ascendência dessas criaturas posteriores pode estar preservada em indícios
indiretos de outros animais pré-cambrianos não incluídos entre os fósseis
ediacaranos. Encontramos resquícios abundantes, em “traços fósseis” de tubos
para alimentação e abrigo mas ainda, ai de nós, nenhum “corpo fóssil” de
animais com formatos arredondados convencionais — uma boa fonte para os
descendentes tomotianos posteriores.
Seilacher terminou a sua dissertação com um argumento particularmente
interessante. Como ele assinalou, temos procurado sem sucesso, e com pouca
esperança, criaturas extraterrestres complexas, primeiro porque temos uma
curiosidade enorme para descobrir o que uma experiência independente no
desenvolvimento da vida poderia produzir. Que similaridades outra “tentativa”
teria com a vida na Terra? Com que força a física e a química dos objetos
impõem limitações? Qual seria a amplitude da diferença da vida em outro lugar?
As nossas respostas podem estar na evidência concreta do nosso próprio registro
fóssil, e não nas especulações abstratas da exobiologia. Talvez uma experiência
independente tenha ocorrido bem aqui na Terra, expressando-se na forma da
fauna ediacarana, o nosso primeiro grupo de animais multicelulares.
Voltando ao tema das extinções em massa, costumávamos afirmar que a
primeira fronteira entre eras, entre o período pré-cambriano e a era paleozoica,
há cerca de 570 milhões de anos, apresentava uma diferença enigmática em
relação a todas as outras porque testemunhava uma profunda irradiação (a
explosão do cambriano) mas nenhuma extinção prévia. Mas, se a fauna
ediacarana, que se encontra logo abaixo da base da era paleozoica nos estratos de
todo o mundo, representar uma experiência coerente e diferente na arquitetura da
vida, então uma grande extinção também marca essa fronteira inicial. A primeira
estratégia para mitigar a extinção em massa deixa de funcionar, e encontramos
pouca continuidade na travessia da primeira e mais profunda fronteira da
complexa história da vida.
Outras dissertações em Indianápolis desafiaram a segunda estratégia
apresentando argumentos a favor de uma separação maior em efeito e magnitude
entre as extinções em massa e os eventos de tempos comuns. Algumas
conclusões de anos anteriores, já documentadas nestes ensaios, prepararam o
caminho: (1) Um impacto de asteroide como fonte, ou pelo menos como golpe
de graça, da nossa extinção terminal do período cretáceo (ensaio 25 de Hen’s Teeth and
Horse’s Toes) — afinal, os organismos dificilmente podem se “preparar” para tal
gatilho. (2) A estimativa de David Raup (ensaio 26 em Hen’s Teeth and Horse’s Toes), de
que uma extirpação de 50% das famílias, a cifra contada para a extinção do
permiano, poderia ser traduzida como até 96% de todas as espécies (uma
remoção de metade das famílias implica uma extinção de muito mais espécies, já
que a maioria das espécies morre sem eliminar as suas famílias — uma categoria
mais inclusiva — ao passo que a morte de uma família tem de incluir todas as
suas espécies). Para uma eliminação tão profunda, devemos considerar
seriamente a possibilidade de que grupos inteiros se perdem por motivos
puramente aleatórios. (3) O cálculo de Raup e Jack Sepkoski (ensaio 27 em Hen’s
Teeth and Horse’s Toes) de que as grandes extinções são mais elevadas e distintas em
relação ao nível normal do que havíamos reconhecido previamente.
Este tema, o da diferença maior entre as extinções em massa e os tempos
“normais”, ganhou força e refinamento em várias dissertações apresentadas em
Indianápolis. Jack Sepkoski, um antigo aluno meu, agora prosperando
vigorosamente na Universidade de Chicago, passou anos compilando o conjunto
de dados mais coerente e completo jamais desenvolvido sobre extinções — uma
lista em nível de famílias que inclui tudo, de protozoários a mamíferos. Com
esses dados, finalmente alcançamos uma base para uma consideração minuciosa
dos padrões quantitativos de extinção que essa segunda estratégia exige. (A
ciência de boa qualidade pode requerer genialidade e imaginação, como estes
ensaios enfatizam com tanta frequência, mas nunca esqueçam que novas
conclusões também são o fruto de trabalho empírico duro — do contrário, o
raciocínio pretensioso não passa de bobagem).
Usando os dados de Sepkoski, Raup e Sepkoski identificaram uma
ciclicidade surpreendente nas extinções em massa durante 225 milhões de anos,
desde a grande mortandade do permiano. A cada 26 milhões de anos, com oito
acertos e apenas duas falhas aparentes (um padrão por demais regular e notável
para ser rejeitado, em bases estatísticas, como acidental), encontramos um pico
de extinção em massa; todos os desastres previamente identificados encontram-
se justamente nos pontos altos desse ciclo de 26 milhões de anos. Que causa
poderia ocasionar uma periodicidade tão regular e, no entanto, ião amplamente
espaçada? Se compreendemos direito a geologia, nenhum processo puramente
interno de clima, vulcanismo ou de tectônica cumpre ciclos tão regulares num
período tão grande. Portanto, Raup e Sepkoski especulam que algum ciclo
astronômico deve estar implicado — um fenômeno solar ou galáctico, embora,
no momento, não tenhamos ideia do quê (Ver ensaio 30 para detalhes adicionais e notáveis).
Se os desastres são tão frequentes e causados por eventos tão absolutamente
além do controle ou da expectativa de um organismo (como as populações
podem prever um ciclo de 26 milhões de anos?), e se essas mortandades
coordenadas moldam o padrão da vida de modo tão fundamental, então a
extinção em massa não é a morte comum extrapolada.
David Jablonski, um paleobiólogo da Universidade do Arizona em Tucson,
acrescentou então dois argumentos convincentes para enfatizar o caráter abrupto
e diferente das extinções em massa. Quanto ao caráter abrupto, Jablonski notou
que os dados brutos das extinções em massa com frequência incluem um longo
período de declínio aparentemente lento e estável entre grupos que despencam
mais profundamente no pico em si. Esses lentos declínios foram interpretados
durante um bom tempo como um sinal de continuidade entre a extinção normal e
a extinção em massa. Mas eles são reais ou um produto do nosso registro
biológico imperfeito?
Durante mais de um século, os geólogos procuraram agentes terrestres para
associar à extinção em massa. A ladainha é longa, e, no entanto, todos, menos
um, falharam — a construção de montanhas, o vulcanismo, flutuações de
temperatura, para citar apenas uns poucos favoritos, velhos e mal sucedidos. A
queda no nível do mar fornece a única correlação boa (e os teóricos do ciclo de
26 milhões de anos deveriam levá-la em consideração). A maioria das extinções
em massa é precedida por uma regressão pronunciada do nível do mar.
A queda do nível do mar pode participar como causa de extinção (o nosso
registro fóssil tem uma forte predisposição por invertebrados marinhos de água
rasa), mas ela também impõe um óbvio artefato aos nossos dados. À medida que
o nível do mar cai, formam-se menos rochas sedimentares para reter os fósseis
de oceanos limitados. Talvez o lento declínio que precede a maioria das
extinções em massa apenas testemunhe o volume decrescente de rochas
disponíveis para a descoberta de fósseis, não um decréscimo gradual e
verdadeiro pressagiando o pico posterior.
Jablonski inventou um método engenhoso para medir o artefato potencial.
Algumas formas desaparecem do registro à medida que cai o nível do mar,
retornando, porém, quando os mares voltam a depositar mais rochas após a
extinção em massa propriamente dita. Essas perdas temporárias devem
testemunhar um efeito artificial da queda do nível dos mares e das quantidades
decrescentes de rocha fossilífera. Jablonski refere-se a esses grupos que
reaparecem como “grupos Lázaro” (Lazarus taxa).
Contando o número de grupos Lázaro que desaparecem antes de uma
extinção em massa, mas que reaparecem depois, Jablonski tem condições de
avaliar quanto do declínio lento medido antes de uma extinção em massa pode
ser o resultado artificial de uma quantidade menor de rochas disponíveis para a
descoberta de fósseis, e quanto deve testemunhar um evento real e gradual
ligando picos de extinção em massa com os tempos normais anteriores.
Em alguns casos, a subtração dos grupos Lázaro ainda deixa um resíduo de
desaparecimento lento, e o padrão deve ser real (o declínio de amonitas antes da
extinção do período cretáceo, por exemplo). Mas, no que se refere a vários
grupos do cretáceo, um declínio lento medido pode ser inteiramente atribuído ao
artefato da menor quantidade de rocha disponível. Desse modo, a extinção do
cretáceo, assim como outras também, pode ter sido mais abrupta do que
havíamos imaginadoantes. O argumento a favor de um agente extraterrestre
ganha força. A extinção em massa é algo rápido e especial.
Jablonski examinou então o comportamento dos grupos durante tempos
normais e durante episódios de extinção em massa, para ver se conseguiria
detectar diferenças coerentes que pudessem acentuar o caráter especial das
extinções em massa. Encontrou algumas disparidades curiosas. Alguns ramos da
árvore evolutiva contêm mais espécies, ou porque as novas espécies se formam
com facilidade ou porque resistem à extinção assim que surgem. Jablonski
chamou esses ramos de “ramos ricos em espécies” (spedes-richclades), em
oposição a “ramos pobres em espécies” (species-poor clades), ou grupos que
nunca contêm muitas espécies.
Em tempos normais, ramos ricos em espécies tendem a aumentar o número
das suas espécies continuamente — e a ganhar vantagem numérica sobre ramos
pobres em espécies. Os meios ambientes devem encorajar ou a diferenciação
rápida de espécies ou a persistência posterior. Mas então por que os ramos ricos
em espécies não dominam inteiramente a biosfera? Jablonski julga que esses
mesmos ramos ricos em espécies saem-se pior do que os ramos pobres em
espécies durante as extinções em massa. As espécies individuais dos ramos
pobres em espécies possuem uma distribuição geográfica mais ampla e
tolerâncias ecológicas maiores que os grupos de nichos ecológicos mais
especializados dos ramos ricos em espécies. Essa amplitude geográfica e
ecológica provavelmente protege tais espécies nos meios ambientes extremos
que a extinção em massa deve gerar. Essas mesmas características de amplitude
podem diminuir o ritmo da diferenciação de espécies em tempos normais (menos
oportunidades de isolamento e de exploração de novos meios ambientes),
tornando assim tais grupos pobres em espécies.
Esse comportamento contrário dos ramos ricos em espécies em tempos
normais e em tempos catastróficos preserva um equibbrio que permite que tanto
os ramos ricos quanto os pobres em espécies floresçam ao longo de toda a
história da vida. Mais importante no nosso contexto, essa distinção enfatiza a
diferença qualitativa entre tempos normais e tempos em circunstâncias
catastróficas. As extinções em massa não são simplesmente uma ampliação do
que ocorre normalmente. Elas afetam os vários elementos da biosfera de um
modo distinto, bem diferente dos padrões de tempos normais.
Quando examinamos a história da vida desde o início da complexidade
multicelular nos tempos ediacaranos (ver ensaio 16), uma característica se
destaca como a mais enigmática — a ausência de ordem e progresso nítidos ao
longo do tempo entre as faunas invertebradas marinhas. Podemos relatar
histórias de progresso de alguns grupos, mas em momentos de honestidade
temos de admitir que a história da vida complexa é mais uma história de
variação multifária ao redor de um conjunto de modelos básicos do que uma
saga de excelência cumulativa. Os olhos dos primeiros trilobitas, por exemplo,
nunca foram superados em complexidade ou acuidade pelos artrópodes
posteriores. Por que não encontramos essa ordem que era de esperar?
Talvez a própria expectativa seja censurável, um produto de uma
predisposição progressista, difundida no pensamento ocidental, e nunca uma
previsão da teoria evolutiva. No entanto, se a seleção natural rege o mundo da
vida, deveríamos detectar algum acúmulo intermitente de modelos anatômicos
melhores e mais complexos ao longo do tempo — em meio a todas as
flutuações, recuos e avanços que devem caracterizar um processo devotado
primordialmente à construção de uma melhor adaptação dos organismos a meios
locais em mudança. Darwin com certeza previu tal progresso quando escreveu:

Os habitantes de cada período sucessivo na história do mundo venceram os
seus predecessores na corrida pela vida, e estão, em tal âmbito, em posição
superior na escala da natureza; e isso pode explicar aquele sentimento vago e
ainda mal definido, experimentado por muitos paleontólogos, de que a
organização como um todo progrediu.

Considero esse fracasso em encontrar um “vetor de progresso” nítido na
história da vida como o fato mais enigmático do registro fóssil. Mas também
creio que agora estamos prestes a encontrar uma solução, graças a uma
compreensão melhor da evolução em ambas as circunstâncias, as normais e as
catastróficas.
Devotei os últimos dez anos da minha vida profissional em paleontologia à
construção de uma teoria heterodoxa para explicar a ausência dos padrões
esperados em circunstâncias normais — a teoria do equilíbrio pontuado. Niles
Eldredge e eu, os perpetradores desse nome particularmente não-eufônico,
argumentamos que o padrão de tempos normais não é uma história de progresso
adaptativo contínuo dentro de linhagens. Mais exatamente, as espécies formam-
se com rapidez na perspectiva geológica (milhões de anos) e tendem a
permanecer altamente estáveis milhões de anos depois. O sucesso evolutivo deve
ser avaliado entre as próprias espécies, não no nível darwiniano tradicional de
organismos em luta dentro de populações. Os motivos do sucesso das espécies
são muitos e variados — ritmos altos de diferenciação de espécies e grande
resistência à extinção, por exemplo —, e muitas vezes não envolvem qualquer
referência às expectativas tradicionais de progresso em modelo morfológico. Se
o equilíbrio pontuado domina o padrão em tempos normais, então demos um
grande passo rumo à compreensão das direções curiosamente flutuantes da
história da vida. Até recentemente, eu suspeitava que o equilíbrio pontuado
poderia resolver o dilema do progresso por si mesmo.
Agora percebo que o padrão flutuante deve ser construído por uma interação
complexa e fascinante de duas linhas de explicação — o equilíbrio pontuado
para tempos normais e os diferentes efeitos produzidos por processos separados
de extinção em massa. Seja o que for que se acumule pelo equilíbrio pontuado
(ou por outro processo), em tempos normais, pode ser dissolvido, desmantelado,
reajustado e dispersado pela extinção em massa. Se o equilíbrio pontuado
perturbou as expectativas tradicionais (e como o fez!), a extinção em massa é
bem pior. Os organismos não podem rastrear ou prever os gatilhos ambientais da
extinção em massa. Não importa o quão bem se adaptem às amplitudes
ambientais de tempos normais, eles têm de se submeter a riscos nos momentos
catastróficos. E se as extinções podem demolir mais de 90% de todas as
espécies, então, dentre alguns poucos sobreviventes teimosos destinados a um
mundo novo, devemos estar perdendo grupos para sempre, por pura falta de
sorte.
Até agora, temos jogado as mãos para cima, frustrados diante da ausência do
padrão esperado na história da vida — ou temos procurado impor um padrão que
esperávamos encontrar num mundo que, na realidade, não aquiesce. Talvez
agora possamos navegar entre a Cila da desesperança e a Caribde da irrealidade
confortadora. Se conseguirmos desenvolver uma teoria geral da extinção em
massa, poderemos afinal compreender por que a vida frustrou as nossas
expectativas — e poderemos até mesmo extrair um tipo inesperado de padrão do
caos aparente. A trilha rápida de um extraordinário encontro em Indianápolis
pode estar apontando o caminho.

Pós-escrito

Como feliz ironia da ciência na sua melhor forma, qualquer ensaio sobre
material novo e instigante garante a rapidez do seu próprio esquecimento à
medida que novas descobertas se fazem. Quase eliminei este ensaio na condição
de ultrapassado (como outros, não lamentados, desapareceram), mas finalmente
decidi conservá-lo sem modificações, como uma expressão honesta da emoção
imediata, escrita enquanto todas as novas ideias ainda ecoavam em meus
ouvidos. Assim, não tentei revê-lo (ou mudar o tom) com as versões publicadas
desde as exposições verbais originais. Os ensaios da seção 8 atualizam a segunda
parte sobre as extinções em massa, enquanto a referência bibliográfica de
Seilacher pode ser consultada para mais informações sobre a primeira parte.


Não posso, porém, resistir a uma atualização em forma pictórica. Em
dezembro de 1984, Dolf Seilacher enviou-me a cópia acima da sua primeira
tentativa de desenhar toda a fauna ediacarana à luz da sua nova teoria. Nenhum
tema é mais fundamental a este livro e às suas convicções sobre o caráter central
da história do que a importância da taxonomia, encarada, não como um cabide
neutro para os fatos da natureza, mas como uma teoria que obriga e dirige o
nosso pensamento. A figura de Seilacher atordoou-me com a alegria específica
de ver algo inteiramente novo em objetos familiares. Durante toda a minha vida
profissional, eu vira os organismos ediacaranos como ancestrais de filos
modernos, posteriores. Foi assim que os classifiquei na minha mente. A Sprigina
(fila 1) ficou com os vermes, a Charnia (fila 1), com os corais, a Cyclomedusa
(fila 3), com as águas-vivas, e o Tribrachidium (fila 3), com os equinodermos.
Colocados nessas categorias distintas, simplesmente nunca percebi as
similaridades que agora me saltam aos olhos (embora, em certo sentido
“objetivo”, as similaridades tenham sempre estado “lá”). Agora consigo perceber
com nitidez o argumento de Seilacher — uma comunidade de estruturas de
partes fundidas, poliformes, com eixos de crescimento e simetria diferentes. A
taxonomia é uma ciência dinâmica e criativa da história.

16. Reduzindo enigmas




Em 1? de outubro de 1939, um mês depois de Stálin e Hitler terem assinado
o seu pacto de não-agressão, Winston Churchill descreveu a política russa como
“uma incógnita envolta em mistério dentro de um enigma”. Todas as profissões
têm os seus enigmas clássicos, embora raramente possam se gabar de ter um
Churchill para descrevê-los tão bem. O meu próprio campo de paleontologia de
invertebrados tem uma designação latina formal para os seus mistérios. Eles são
reunidos numa categoria de classificação semelhante a um cesto de lixo chamada
Problemática — animais de parentesco zoológico desconhecido, muito embora
os seus fósseis possam ser abundantes e bem preservados. A solução de um
grupo problemático torna-se um motivo de alegria geral entre os paleontólogos.
No começo de 1983, o mais resoluto de todos os mistérios paleontológicos foi
vencido, pelo menos pela metade. Quero relatar essa história e explicar por que
ela tem uma importância geral que transcende em muito o simples prazer da
descoberta.
Os conodontes eram o que havia de mais irritante em toda a problemática
fóssil. Como fica implícito no seu nome (“dentes em cone”), os conodontes são
estruturas pequenas, semelhantes a dentes, de composição fosfática. (A maioria
das partes duras dos invertebrados marinhos é feita de carbonato de cálcio,
embora alguns, inclusive os conodontes, sejam de fosfato de cálcio. Os ossos dos
vertebrados também são fosfáticos, o que leva muitos paleontólogos a especular
que os conodontes poderiam ser os dentes de peixes extintos.) A amplitude de
tamanho dos conodontes vai de dimensões microscópicas até cerca de 3 mm de
comprimento máximo, e a sua distribuição cronológica vai do período
cambriano ao triássico — de cerca de 580 até 200 milhões de anos atrás.
Muitos dos fósseis problemáticos são criaturas raras e insignificantes. Os
conodontes, por outro lado (e apesar do tamanho diminuto), estão entre os
fósseis mais importantes. São encontrados em abundância numa grande
variedade de rochas e evoluíram com rapidez, aumentando assim o seu valor na
correlação de estratos (já que cada pequeno segmento de tempo apresenta
conodontes exclusivos). Os conodontes, portanto, encontram-se dentre a meia
dúzia de grupos fósseis mais importantes na ciência da bioestratigrafia — a
datação e a correlação de rochas por meio dos seus restos fósseis, sendo ainda
(apesar do interesse crescente por problemas biológicos e evolutivos) a fonte
mais importante de emprego para paleontólogos. Um especialista declarou que
os conodontes são “ferramentas esplêndidas na bioestratigrafia de todo o mundo,
e o seu valor nas rochas do cambriano ao triássico não é excedido pelo de
nenhum outro grupo de fósseis”. Imagine então a nossa frustração: tamanha
importância prática e nem sabemos que tipo de animal eles representam. Não se
encontra nenhum outro grupo de tamanha importância na Problemática.


Os conodontes são evidentemente as únicas partes duras (e, portanto, as
únicas porções geralmente preservadas como fósseis) de uma criatura que, de
resto, tinha corpo mole. Mas que tipo de animal, e como descobri-lo a partir de
estruturas separadas semelhantes a dentes? Quando os conodontes eram
conhecidos apenas como elementos isolados, desarticulados — a situação desde
a sua descoberta em 1856 até 1934 —, não tínhamos fundamento algum para
qualquer opinião sensata, e a especulação corria solta. Os conodontes foram
colocados em quase todos os grupos principais do reino vegetal e do animal,
sendo considerados desde estruturas de sustentação de algas até órgãos
copulatórios de nematóides. As opiniões mais comuns atribuíam-lhes o caráter
de elementos mandibulares de anelídeos ou de peixes.
Em 1934, foram descobertos os primeiros, assim chamados, agrupamentos
de conodontes — elementos articulados unidos em padrões definidos e
invariáveis. Com a sua simetria bilateral e a gradação de elementos semelhantes
a dentes, do maior para o menor, esses agrupamentos sugeriam com mais força
ainda que os conodontes atuavam como estruturas coletoras de alimento (fosse
diretamente, como dentes, ou indiretamente, como suportes duros para coletores
de alimentos carnosos ou ciliares). Desapareceram as hipóteses mais fantasiosas
de parentesco, e a ideia de que os conodontes eram elementos mandibulares de
alguma criatura semelhante a um verme ou a um peixe ganhou força adicional.
Mas ainda não possuíamos nenhum indício direto do animal conodonte.
Então, em 1969, paleontólogos de todo o Continente reuniram-se no Field
Museum of Natural History, em Chicago, para a Primeira Convenção
Paleontológica Norte-Americana. (Lembro-me muito bem de mim nessa ocasião,
um professor assistente de primeiro ano, inexperiente, sentado em meio a todos
os grandes da minha profissão, pensando: ‘‘Se os russos — ou os chineses, ou
quem quer que seja — quisessem destruir esta profissão inteira...” E depois
concluindo, confiante: (“Mas por que eles iriam se importar?”) Na sessão
plenária, foi feita uma revelação dramática — o animal conodonte finalmente
havia sido descoberto. Fora encontrada uma criatura de corpo mole em Montana
com conodontes dentro de si, numa posição interpretada como sendo a boca ou o
intestino anterior, onde a comida podia ser masca-da ou macerada. Esses animais
possuíam outras características que pareciam uni-los aos cordados, membros
primitivos do nosso próprio filo (que inclui todos os vertebrados) e receberam o
nome de conodontocordados.
Infelizmente, não passou de um alarme falso. O estudo posterior revelou que
os conodontes se encontravam mais para trás no intestino — numa posição que
sugere com maior probabilidade que eles haviam sido engolidos pelo animal.
Além disso, a sua distribuição não era compatível com o que sabemos sobre
agrupamentos de conodontes. Um conodontófago continha partes de
agrupamentos distintos, indicação clara de que dois indivíduos conodontes
haviam, de algum modo, entrado no animal. Outro continha conodontes que
variavam muito em tamanho para que se inferisse sensatamente que provinham
do mesmo organismo. Um terceiro não tinha conodonte algum no lugar em que
era de esperar. Claramente, os chamados conodontófagos comiam animais
conodontes e muitas vezes retinham conodontes de mais de um indivíduo no
intestino. Essa notícia pode ter desapontado os paleontólogos, mas não rebaixou
a significação da descoberta. O conodontófago é um comedor de conodontes,
não um animal conodonte, mas continua a ser um enigma notável por direito
próprio. Em vez de resolvermos um fóssil problemático, havíamos acrescentado
outro à nossa copiosa lista. Que seja. O acréscimo de um mistério interessante é
quase tão bom (e muitas vezes mais interessante) quanto a solução de outro.
Contrariando as imagens românticas da ciência e da exploração, muitas
descobertas importantes são feitas em gavetas de museus, e não sob as condições
adversas do ressequido Gobi ou da enregelante Antártida. E tem de ser assim, já
que o século XIX foi a grande era de coleta — e praticantes destacados cavaram
material às toneladas, jogaram-no nas gavetas de museus e nunca mais olharam
para ele de novo. Uma das grandes descobertas zoológicas do nosso século, o
molusco segmentado primitivo Neopilina, foi tirado do fundo do mar, colocado
num frasco e catalogado com o nome de um caramujo semelhante ao
crepidópode (pois a sua concha externa conserva tal formato). Ali permaneceu
por vários anos até que H. Lemche virasse o frasco para olhar as partes moles e
descobrisse as guelras segmentadas.
E um prazer para mim comunicar que o animal conodonte foi agora
descoberto, e, desta vez, aparentemente, de verdade — numa gaveta de museu na
Escócia. Meu amigo Euan Clarckson estava remexendo algum material do
carbonífero (com cerca de 340 milhões de anos) coletado por D. Tait durante a
década de 1920, quando notou a impressão deixada por uma criatura vermiforme
com conodontes na extremidade frontal, exatamente onde deveria ser a boca.
Como Clarckson não é um especialista em conodontes, ele chamou alguns
colegas para verificar e ampliar a sua descoberta. Os resultados acabam de ser
publicados (Derek E. G. Briggs, Euan N. K. Clarckson, e Richard J. Aldridge, na
Bibliografia).
O nosso registro fóssil é quase que inteiramente a história de partes duras —
ossos, dentes, conchas e placas — porque as estruturas moles deterioram-se com
rapidez e não se fossilizam. Sob circunstâncias bastante especiais, partes moles
podem ser preservadas, e essas raras janelas que dão para a verdadeira
diversidade da vida passada encontram-se entre as mais preciosas das nossas
locações fossilíferas. Para os seiscentos milhões de anos em que os animais
multicelulares dominaram a fauna terrestre, não temos mais de uma dúzia de
depósitos extensos de criaturas de corpo mole. Os mais famosos são as películas
carbonizadas com criaturas bizarras e assombrosas na argila xistosa de Burgess
(Burgess Shale), cambriano de Alberta (com cerca de 550 milhões de anos, a
mais antiga das nossas grandes janelas); animais preservados dentro de
concreções de minério de ferro na formação de Mazon Creek de Illinois, período
carbonífero (350-270 milhões de anos); e.os calcários litográficos do período
jurássico (180-130 milhões de anos) de Solnhofen, Alemanha, onde foram
descobertos os restos do Archaeopteryx, a primeira ave, com penas e tudo.
O animal conodonte vem de uma das nossas janelas menores, a chamada
“faixa do camarão” (shrimp band) dentro dos arenitos de Granton (Granton
Sandstones), a leste de Edimburgo. Os arenitos de Granton são uma sequência de
sedimentos de lagos e lagoas depositados em água doce ou levemente salina.
Essa bacia foi ocasionalmente inundada pelo mar, e a “faixa do camarão”
representa uma dessas incursões marinhas. A sua fauna de corpo mole foi
preservada porque duas condições incomuns prevaleceram durante essa breve
inundação. Primeiro, as águas do fundo careciam aparentemente de oxigênio.
Nenhum animal consumidor de carniça ou bactérias poderia viver no leito do
lago, e os animais mortos que afundavam não eram desmembrados ou
decompostos. (Fazemos essas inferências porque a “faixa do camarão” exibe
sedimentação contínua, compacta, uma indicação de que nenhuma criatura
escavou ou abriu sulcos nos detritos do fundo.) Segundo, a bacia era estagnada e
virtualmente destituída de correntes. Assim, criaturas frágeis, de corpo mole, não
foram partidas, mas afundaram suavemente sendo enterradas intactas.
O animal conodonte tem aparência vermiforme, com cerca de 40,5 mm de
comprimento, não ultrapassando, porém, 2 mm de largura (ver fotografia na p.
231). A extremidade da cabeça parece ser bipartida, com dois grandes lobos ao
redor de uma depressão central (entrada para a boca, talvez). Logo atrás da
cabeça, os conodontes estão fixados ao longo de uma borda localizada numa
posição sensata para a boca. Eles ocorrem em três grupos e contêm elementos de
um agrupamento bem conhecido. Assim, Clarckson e os seus colegas não
precisaram inventar um nome para sua criatura; eles o incluíram dentro do
gênero Clydagnathus, estabelecido em 1969 só para os conodontes descarnados.
Umas poucas débeis linhas percorrem o interior do animal, paralelas aos seus
lados. Não sabemos se representam um intestino, um tubo nervoso ou mesmo
talvez a notocorda de um cordado. A partir de cerca de dois terços do corpo e
estendendo-se quase até a extremidade posterior, encontramos uma curiosa
sequência de segmentos repetidos, uns trinta e três ao todo, inclinando-se em
ângulo com a linha mediana do corpo. Por fim, uma borda da extremidade
posterior parece guarnecida com uma sequência de projeções, interpretadas
como raios de nadadeiras. Nada mais que seja digno de nota foi preservado. Pelo
menos as estruturas do Clydagnathus confirmam uma antiga suposição sobre os
elementos conodontes — eles representam as únicas partes duras de uma criatura
que, em outros aspectos, tinha o corpo inteiramente mole. Não é de admirar que
tivéssemos tão pouco sucesso na determinação do seu parentesco.
Como eu disse no início, Clarckson e os seus colegas resolveram só metade
do problema do conodonte. Eles encontraram o animal fugidio, mas não sabem
qual é o seu lugar. Dos filos animais modernos, apenas dois parecem dignos de
discussão como possíveis categorias taxonômicas para o animal conodonte.
Talvez ele seja um cordado — isto é, um membro pré-vertebrado do nosso
próprio filo. No entanto, cada similaridade potencial com os cordados não
carrega quase que convicção alguma. O corpo esguio e achatado, em forma de
enguia, lembra-nos alguns cordados, mas encontramos o mesmo formato geral
também em vários outros filos. As débeis linhas paralelas aos lados do animal
poderiam representar estruturas de cordados, como a notocorda, mas podem ser
simplesmente os resquícios do intestino, um órgão compartilhado por
virtualmente todos os animais “superiores”. Os raios de nadadeira aparentes da
extremidade posterior sugerem afinidades com os cordados, mas estruturas
similares também ocorrem em muitos outros filos. Os segmentos em forma de V
parecem dizer “cordado”, mas essas estruturas encontram-se tão mal preservadas
que não podemos realmente distinguir entre um estilo cordado de segmentação e
os padrões de muitos outros filos com elementos repetidos em série. Em resumo,
encontramos algumas similaridades gerais e superficiais com os cordados, mas
nada específico, e certamente nada que garanta qualquer colocação firme, ou
mesmo experimental, dentro do nosso filo.
Os Chaetognatha, ou vermes em forma de flecha, um pequeno grupo
marinho, localizado não muito longe dos cordados na nossa árvore evolutiva,
incluem os únicos outros candidatos viáveis para uma ligação entre o animal
conodonte e algum grupo moderno. Os quetognatos estão armados com espinhas
de preensão que guarnecem os flancos da boca em dois grupos laterais. Essas
espinhas têm uma semelhança superficial com os conodontes, mas são feitas de
quitina, não de fosfato de cálcio. Os quetognatos também possuem nadadeiras
caudais semelhantes às do animal conodonte. Além disso, possuem nadadeias
laterais, e tais estruturas não estão presentes no animal conodonte (numa área do
corpo — a posterior — onde a preservação é detalhada e excelente). Em resumo,
os quetognatos parecem uma perspectiva ainda menos digna de consideração do
que os cordados para abrigar o animal conodonte.


Portanto, Briggs, Clarckson e Aldridge concluíram, com ampla justiça, em
minha opinião, que o animal conodonte é único e anteriormente desconhecido.
Deve ser colocado num filo separado — o Conodonta. Afinal, argumentam eles,
se um século de esforços para enfiá-lo em algum grupo moderno foi frustrado
pelo enigma das suas peculiares partes duras, por que a descoberta de partes
moles igualmente ambíguas deveria encaixá-lo confortavelmente em alguma
categoria bem estabelecida da nossa taxonomia? Eles escrevem: “A falta de uma
solução definitiva para este problema em 125 anos de pesquisa enfatiza a
singularidade dos conodontes.” E com esta conclusão — a de que os conodontes
devem ser colocados num filo próprio, novo e separado —, finalmente chegamos
à mensagem geral que me inspirou a escrever este ensaio.
Os paleontólogos são, em geral, um grupo conservador. Organismos
problemáticos de afinidade taxonômica incerta e poucas espécies são um
embaraço e um estorvo desarranjado; nada deixa um paleontólogo às antigas
mais feliz do que a colocação bem-sucedida de organismos problemáticos dentro
de um grupo bem conhecido. O reconhecimento de que os organismos
problemáticos devem ser tratados com o estabelecimento de novos filos vai
contra a esperança e a tradição, e representa um último recurso. Em anos
recentes, esse recurso tem sido usado com mais e mais frequência porque — ora,
diabos! — muitos organismos problemáticos são estranhos, fantásticos,
singulares e simplesmente não se encaixam em qualquer grupo conhecido. Esse
reconhecimento relutante reflete um fato importante e pouco conhecido sobre a
história da vida.
Para compreender esse fato e as suas implicações, devemos estudar a
distribuição no tempo dos organismos problemáticos que não podem ser
colocados em filos convencionais. A história da vida vem apresentando animais
multicelulares apenas durante os últimos seiscentos milhões de anos. Dividimos
esse tempo em três grandes eras — a paleozoica (ou vida antiga), a mesozoica
(ou vida média), e a cenozoica (ou vida recente). Virtualmente todos os
organismos problemáticos aos quais se vem concedendo com má vontade os
seus próprios filos viveram durante a era mais antiga, a paleozoica (apesar de os
conodontes, depois de viverem durante toda a era paleozoica, terem se insinuado
no triássico, o primeiro período da era mesozoica). Este fato, o foco do meu
ensaio, pode não parecer estranho à primeira vista. Afinal, quanto mais para trás,
mais diferente dos filos modernos deve ser a vida. No entanto, dois aspectos
dessa distribuição no tempo provocam surpresa e apontam para um padrão
importante. Primeiro, embora pudéssemos esperar um decréscimo geral no
número de grupos problemáticos através do tempo, não iríamos prever um
desaparecimento abrupto de esquisitices depois da era paleozóica. Não
encontramos um declínio gradual de criaturas estranhas. Em vez disso, elas são
abundantes na era paleozóica inferior, tomam-se raras lá pelo fim da era
paleozóica e cessam daí em diante. Das três janelas que mencionei, a argila
xistosa de Burgess (era paleozóica inferior) está abarrotada de organismos
problemáticos, a formação de Mazon Creek (era paleozóica inferior) tem dois, e
os calcários litográficos de Solnhofen (era mesozoica), nenhum. Algo na história
inicial da vida multicelular encorajou um florescimento de organismos
problemáticos. Algo na sua história posterior (e não muito posterior) secou
completamente o poço.
Segundo — embora os conodontes sejam uma exceção a essa generalidade
—, os organismos problemáticos, em sua grande maioria, são raros, restritos no
tempo e representados por apenas umas poucas espécies. Espera-se que os filos
sejam grupos grandes — os artrópodes com as suas 750.000 espécies de insetos,
ou os cordados com as suas 20.000 espécies de peixes. Espera-se também que
subsistam por um bom tempo. Os taxonomistas são avarentos; eles não gostam
de estabelecer um grupo imediatamente inferior à categoria de reino apenas para
abrigar umas poucas espécies que só viveram uns poucos milhões de anos. Se os
organismos problemáticos estivessem restritos à era paleozóica, mas fossem
todos abundantes e se estendessem por um bom período de tempo, como os
conodontes, o padrão não seria tão perturbador ou estranho. No entanto, alguns
dos organismos problemáticos, agora colocados cada um no seu filo exclusivo,
são conhecidos apenas como uma única espécie, encontrada num único lugar. E
alguns são incomparavelmente estranhos. Considere-se o animal tão
formidavelmente estranho que tem o nome latino de Hallucigenia, cunhado pelo
seu autor, Simon Conway Morris, devido “à aparência bizarra e onírica do
animal”. (Simon disseme uma vez que o organismo se assemelhava a algo que
ele vira durante uma viagem — e não me refiro a uma viagem a Boston.) A
Hallucigenia (da primeira e mais famosa janela, a da argila xistosa de Burgess)
tem um corpo alongado, com quase uma polegada de comprimento, sustentado
por sete pares de espinhas que não se parecem em nada com as pernas de
qualquer criatura conhecida. Tem uma cabeça bulbosa e, por trás dela, uma fila
de tentáculos, cada um deles bifurcado na ponta, dispostos ao longo do dorso.
Atrás dos tentáculos encontra-se um agrupamento de projeções que lembram os
espinhos na cauda de um Stegossaurus. Um tubo anal projeta-se para cima na
extremidade posterior (ver figura na p. 235). Um diabo de coisa esquisita como
eu nunca vi na minha vida. Ou considere-se o peculiar organismo problemático
da segunda janela, a nossa formação de Mazon Creek, em Illinois. Ele também
possui um nome formal excêntrico, uma latinização do seu descobridor, um
certo sr. Tully, e da sua aparência. Chama-se Tullimonstrum. O monstro de Tully
é uma criatura peculiar, com um formato que, grosso modo, lembra uma banana,
de três a seis polegadas de comprimento. Assim como a Hallucigenia, é tão
diferente de qualquer coisa que conhecemos que parece exigir um filo só para si.
Tendemos a considerar a evolução como uma mudança progressiva dentro de
linhagens — peixes tornam-se anfíbios, répteis, mamíferos e, finalmente,
humanos — e, portanto, deixamos escapar temas importantes relacionados a um
aspecto diferente e mais generalizado da evolução: a diversidade mutante,
considerada como números absolutos de espécies e a sua abundância relativa ao
longo do tempo. A predominância dos organismos problemáticos da era
paleozoica registra um tema importante na história da diversidade. Esse tema
confere uma direção ao tempo que é mais clara e confiável do que qualquer
enunciado que possamos fazer sobre a mudança dentro de linhagens. Ela
provavelmente também reflete uma lei mais geral e básica sobre a história da
mudança nos sistemas naturais.
Durante a década passada, os paleontólogos discutiram acaloradamente o
padrão de mudança ao longo do tempo na diversidade dos animais marinhos.
Existem hoje mais espécies (como o parecer “progressivo” da evolução poderia
sugerir) ou o número de espécies permaneceu mais ou menos constante, devido à
obtenção rápida de algum valor de equilíbrio após a explosão do cambriano? O
problema não é tão fácil de ser resolvido como parece à primeira vista. Não se
pode simplesmente contar o número de espécies descritas para cada intervalo de
tempo. O registro fóssil é notoriamente imperfeito, e tende a piorar na medida
em que retrocedemos no tempo. Assim, um acréscimo empírico na abundância
de fósseis conhecidos poderia refletir, na verdade, um decréscimo de diversidade
verdadeira.
Os argumentos, portanto, sucederam-se apaixonadamente, mas, em 1981, os
quatro debatedores principais estabeleceram a paz e publicaram uma dissertação
conjunta com um acordo bem-vindo (J. J. Sepkoski, R. K. Bambach, D. M.
Raup, e J. W. Valentine, na Bibliografia). Várias fontes de dados (todos
corrigidos do melhor modo possível no que diz respeito à imperfeição do
registro) apontam agora para um padrão nítido de acréscimo real ao longo do
tempo — não estável e progressivo, mas indubitavelmente constituindo uma
direção geral. Os oceanos modernos contêm pelo menos o dobro do número de
espécies que a média dos mares paleozoicos.


Portanto, poderíamos esperar — na verdade, isso parece inevitável — que os
mares modernos devessem conter, não apenas mais espécies, mas também mais
tipos distintos de criaturas, mais modelos corporais basicamente diferentes. Mas
não é bem assim. Hoje, o dobro do número de espécies está apinhado num
número bem menor de grupos de hierarquia taxonômica superior. É claro, ainda
encontramos vários filos como modelo corporal distinto e poucos membros —
todos os grupos vermiformes com nomes engraçados que ninguém, a não ser os
especialistas, conhece e ama: os cinorrincos, gnatostomulídeos, priapulídeos,
quetognatos, já mencionados como um grupo onde seria possível a inclusão dos
conodontes, e vários outros. Os nossos mares modernos, porém, são dominados
por apenas uns poucos grupos — principalmente mariscos, caramujos,
caranguejos, peixes e equinóides — cada um deles com muito mais espécies que
qualquer filo paleozoico (com a possível exceção dos trilobitas no ordoviciano e
dos crinóides no carbonífero). Os mares paleozoicos podem ter contido apenas
metade das espécies que honram os nossos oceanos modernos, mas essas
espécies estavam distribuídas numa amplitude muito grande de modelos
corporais básicos. Esse decréscimo estável nos tipos de modelos anatômicos
orgânicos — todos em face de um grande acréscimo no número de espécies —
pode representar a tendência mais importante do nosso registro fóssil.
Tal decréscimo estável está bem testemunhado pelo padrão dos organismos
problemáticos já discutidos. A maioria das criaturas realmente bizarras e
fantásticas viveu exclusivamente durante a era paleozoica. (Não se impressione
com a singularidade de alguns filos modernos menores, pois muitos deles não
surgiram recentemente, mas têm também registros que se estendem até a era
paleozoica.) Ele talvez seja ainda melhor testemunhado pelas mudanças no
número de classes (o nível taxonômico imediatamente inferior) dentro dos filos
comuns. Considere-se apenas um exemplo, baseado numa contagem de classes
bastante conservadora feita por J. J. Sepkoski, da Universidade de Chicago. Os
equinodermos modernos surgem em quatro classes, todos com uma diversidade
que vai de respeitável a alta: ouriços-do-mar (os equinodermos já citados como
um grupo dominante), estrelas-do-mar, pepinos-do-mar e crinóides. No entanto,
mais dezesseis classes viveram e morreram durante a era paleozoica, e dezesseis,
do total de vinte, coexistiram durante o período ordoviciano, há cerca de
quinhentos milhões de anos. Nenhuma dessas dezesseis classes (com duas
possíveis exceções) jamais alcançou a diversidade hoje exibida por qualquer um
dos sobreviventes modernos.
O mundo paleozoico era bem diferente do nosso, com poucos representantes
de um tipo distribuídos numa variedade bem grande de formas corporais básicas.
A Hallucigenia desapareceu, o monstro de Tully não vive mais, e mesmo os
abundantes conodontes estão extintos. Por que o mundo da vida sofreu esse
profundo deslocamento, de poucas espécies em vários grupos para muitas
espécies em menos grupos?
Das duas respostas gerais, a primeira é convencional e causal (a segunda
basear-se-á em processos aleatórios). Ela invoca o que pode ser uma propriedade
comum de quase todos os sistemas naturais e que pode, portanto, ter uma
importância que transcende em muito este exemplo particular. O princípio
poderia ser chamado de “experimentação inicial e padronização posterior”. Há
cerca de seiscentos milhões de anos a explosão do cambriano encheu os oceanos
com o seu primeiro cortejo de animais multicelulares. A evolução sondou todos
os limites da possibilidade. Cada plano corporal básico experimentou uma
enorme série de variantes potenciais. O padrão de muitos grupos, cada um com
poucos membros, foi estabelecido. Alguns desses experimentos funcionaram
bem, mas, inevitavelmente, a maioria não — e uma eliminação gradual teve
lugar.
Muitos dos fracassos eram defeituosos desde o início e nunca alcançaram
uma grande diversidade. São os nossos estorvos taxonômicos — planos
corporais altamente distintos com poucas espécies. Nós os chamamos
Problemática, concedemo-lhes os seus filos próprios apenas com muita má
vontade (embora, se compreendêssemos o princípio que representam,
proporíamos e aceitaríamos os seus nomes especiais com mais equanimidade).
Outros, como as classes pequenas e extintas de equinodermos paleozoicos, são
experimentos fracassados com um modelo anatômico fundamental que, sem
dúvida, funciona bem em algumas poucas classes bem-sucedidas. Assim,
ouriços-do-mar e estrelas-do-mar usam o plano fundamental dos. equinodermos
de modo bastante vantajoso, ao passo que um grande número de experimentos
iniciais, dotados de nomes tão estranhos como ctenocistóides, helicoplacóides e
edrioblastóides, logo fracassaram. As nossas faunas modernas são os
sobreviventes que passaram pelo crivo de uma grande limpeza baseada em
princípios de bom planejamento.
O mesmo princípio se aplica a qualquer sistema de experimentação livre mas
que se baseia, em última análise, na modelagem boa e funcional. Carros elétricos
e a vapor, e uma variedade de outros experimentos, cederam lugar ao motor de
combustão interna (embora, algum dia, se faltar petróleo, eles possam ressurgir
como a fênix). Os carros surgem agora em centenas de marcas, cada uma delas
construída sobre o mesmo princípio. Em 1900, uma quantidade bem menor de
marcas usava uma variedade bem maior de modelos básicos. E considere-se os
dirigíveis, planadores e a variedade de aviões a motor antes que nos
estabelecêssemos nos 747 e nos da sua espécie.
Esse princípio de experimentação inicial e padronização posterior dita uma
redução geral de variação — particularmente a eliminação de extremos. Muitas
vezes compreendemos mal o motivo para uma perda de extremos porque
tentamos interpretar o desaparecimento de singularidade como uma tendência
por direito próprio e não como uma consequência inevitável da variação
decrescente dentro de um sistema natural. O ensaio 14 sobre o desaparecimento
dos rebatedores de .400 no beisebol considera outro exemplo do mesmo
processo. As explicações convencionais para essa tendência notável e
amplamente discutida no beisebol invariavelmente procuram por alguma
modificação direcional — a introdução da substituição no arremesso ou as
programações mais extenuantes, compostas, na maior parte, de jogos noturnos
— que diminuiria sozinha as médias altas. Meu raciocínio é o de que o declínio
das médias altas pode simplesmente refletir a estabilização e o aperfeiçoamento
geral de jogo que deve acompanhar um esporte à medida que sobem os seus
padrões (análogas à redução de planos corporais à medida que modelos
anatômicos bem-sucedidos predominam na história da vida). À medida que o
arremesso, a defesa e a rebatida progridem, a variação em cada categoria
decresce. Pude demonstrar que as médias de confederação não mudaram entre a
grande era das rebatidas de .400 (1890-1920) e hoje, mas que tanto as médias
mais altas (os rebatedores de .400) como as médias mais baixas convergiram
rumo à média de confederação. Em outras palavras, os extremos foram
eliminados em ambas as pontas — o mesmo princípio de experimentação (ou
tolerância) inicial e padronização posterior.
A segunda explicação não é convencional e baseia-se em processos
aleatórios. Um padrão de deslocamento, de poucas espécies em muitos grupos
para muitas espécies em menos grupos, ocorreria mesmo sob regimes de
extinção aleatória, contanto que admitamos uma mudança média maior por
evento de criação de espécie no início da história da vida (como parece garantido
num mundo inicialmente “vazio”, aberto a quase que qualquer experimento em
forma).
A extinção, como nos lembram os militantes ecologistas, é para sempre.
Uma vez perdido um experimento complexo de forma, ele não surgirá outra vez;
as chances matemáticas são fortemente contrárias à repetição de passos
complexos numerosos (os biólogos referem-se a esse princípio como “a
irreversibilidade da evolução”). Assim, inevitavelmente, perdemos a maior parte
dos experimentos iniciais e começamos a encher os nossos oceanos com
exemplos repetidos dos poucos grupos sobreviventes principais. Interessado
como sou por processos aleatórios, duvido que eles venham a explicar o padrão
de redução inteiro dos planos corporais, se não por outro motivo, pelo fato de
que a ideia de experimentação inicial e padronização posterior faz muito sentido.
Mas eu insistiria para que as consequências previsíveis dos processos aleatórios
recebessem mais atenção do que a que comumente recebem. Processos
aleatórios de fato produzem altos graus de ordem — e a existência de padrão não
é um argumento contra a aleatoriedade.
Vivemos num mundo de história e mudança. Como criaturas de hábitos, que
se sentem confortadas pela descoberta de ordem, buscamos princípios que
confiram uma direção ao tempo — que admitam um pouquinho de ordem na
pujante confusão da história. No entanto, as flechas do tempo são difíceis de ser
encontradas, e a ciência não nos deu muitas. A segunda lei da termodinâmica,
com a entropia crescente e a ordem decrescente em universos fechados, é o
nosso agente de direção mais famoso. A maioria das propostas da biologia
evolutiva é espúria e baseia-se mais nas nossas esperanças e expectativas do que
nos mecanismos da seleção natural — a noção de progresso contínuo em
particular. Este princípio de diversidade — experimentação inicial e
padronização posterior —, porém, pode ser uma característica da história,
produzindo tendências para uma variação menor em modelos básicos de vida.
Portanto, deveríamos nos interessar pelos conodontes, mesmo que nunca
tenhamos correlacionado uma rocha ou então que tenhamos a tendência de olhar
de soslaio para vermes de uma polegada com nadadeiras caudais esmaecidas e
cabeças bilobadas. Pela sua idade, pela sua singularidade taxonômica e pelo seu
desaparecimento, eles podem registrar a natureza da história.




5. Política e progresso

17. Apresentando um macaco




Hoje, classificamos todos os humanos numa única espécie, Homo sapiens.
Mas Carolus Linnaeus, no documento fundador da taxonomia animal, o Systema
naturae (Sistema da natureza) de 1758, reconheceu uma segunda espécie, Homo
troglodytes. Enquanto Lineu devotou várias páginas ao Homo sapiens em toda a
nossa diversidade, o Homo troglodytes mereceu apenas um parágrafo. Essa
segunda espécie, ativa apenas à noite e que falava em sibilos, oferecia poucas
informações que sustentassem a sua existência. O Homo troglodytes surgiu
como um composto de relatos exagerados de viajantes, baseados em observações
imperfeitas de macacos antropoides humanizados ou de povos nativos
degradados. Lineu aventou mesmo a possibilidade de uma terceira espécie, o
Homo caudatus, ou homem com cauda, mas admitiu que essa criatura, incola
orbis antarctici (habitante das regiões antárticas), permanecia tão obscura (se é
que existia) que ele não podia determinar “se ela pertence ao gênero humano ou
ao simiesco”.
Por que esse sóbrio naturalista incluiu uma ficção tão mal fundamentada na
descrição do seu primeiro e mais importante gênero? Como resposta básica,
Lineu trabalhou com uma teoria que previa tais criaturas; quando algo deve
existir, indícios imperfeitos tornam-se mais aceitáveis.
Muitas vezes escrevo sobre a interação de teoria e fato nestes ensaios porque
nenhum outro tema exibe tão bem o lado humano da ciência — a intrusão da
mente na natureza e a sua necessária interpenetração em toda a atividade
criativa. A ciência não segue um caminho de mão única, da natureza obediente
até a mente objetiva. Este tema também ilustra por que devemos abandonar
como falido o procedimento comum de julgar cientistas passados pela sua
precisão segundo o conhecimento atual. Algumas teorias incorretas, na condição
de grandes e generosas sínteses de conhecimento, propõem grandes e
interessantes questões, e podem com isso produzir tantas descobertas novas
quanto noções que aceitamos hoje (ver o ensaio 6 de Hen ’s Teeth and Horse’s Toes sobre o
uso das causas finais por James Hutton).
Neste caso, uma teoria incorreta, a da cadeia do ser, levou Lineu a prever
formas intermediárias entre símios e humanos. Pois os objetos da natureza
formavam uma única cadeia, que se estendia sem interrupção da mais simples
ameba até nós. Mas a cadeia do ser sempre se defrontara com um problema
empírico considerável — lacunas grandes e evidentes entre unidades principais,
em particular entre minerais e plantas, entre plantas e animais e entre símios e
humanos (ver o ensaio 18 para uma discussão adicional desse problema). Na
verdade, Sir Thomas Browne, na sua Religio Medici (1642), declara que as
lacunas aumentavam à medida que subíamos a escala:

Existe neste Universo uma Escada, ou Escala manifesta de criaturas, que não
ascende desordenadamente, mas com um método conveniente e
proporcional. Entre criaturas com mera existência e coisas com vida, existe
uma grande desproporção de natureza; entre plantas e animais, ou criaturas
de sentidos, uma diferença ainda maior; entre eles e o Homem, uma bem
maior: se a proporção persistir, entre o Homem e os Anjos deve existir uma
ainda maior.

Aos que se dedicavam a preencher as lacunas, a aparente distância entre
símio e humano propunha o maior dilema solúvel — e o Homo troglodytes cabia
no intervalo.
Mas se o Homo troglodytes apenas testemunhava a imaginação vívida dos
primeiros viajantes, os grandes macacos antropoides — gibões, chimpanzés,
orangotangos e gorilas — existiam de verdade. Nenhum era adequadamente
conhecido ou descrito na Europa ocidental antes do século XVII, o que
aumentava a distância aparente entre os humanos e os primatas mais avançados.
Arthur Lovejoy, no seu tratado clássico, The Great Chain of Being (A grande
cadeia do ser) citou explicitamente o ímpeto dado ao estudo dos macacos
antropoides como sendo uma importante consequência empírica dessa teoria
falsa. Ele escreveu:

O princípio de continuidade não foi desprovido de consequências
significativas. Ele pôs os naturalistas à procura de formas que preenchessem
os aparentes “elos perdidos” da cadeia. ... A suposição metafísica forneceu
um programa de pesquisa científica. Foi, portanto, altamente estimulante
para o trabalho do zoólogo. ... Tornou-se, assim, tarefa da ciência, pelo
menos aumentar o rapprochement de homem e macaco.

A primeira descrição adequada de um macaco antropoide não foi publicada
até 1699, exatamente cem anos antes da última grande defesa da cadeia estática
— o tratado de Charles White, analisado no ensaio seguinte. Naquele ano,
Edward Tyson, o melhor anatomista comparativo da Inglaterra, publicou o seu
“Orang-Outang, sive Homo sylvestris: or, the anatomy of a pigmy compared
with that of a monkey, an ape, and a man” (“Orang-Outang, sive Homo
sylvestris: ou, a anatomia de um pigmeu comparada com a de um macaco, a de
um grande símio e a de um homem”). (No tempo de Tyson, orangotango,
literalmente homem da floresta, servia como um termo geral para todos os
grandes símios, tanto os africanos quanto os asiáticos, e não apenas para a forma
asiática como hoje. Tyson, cauteloso demais neste caso, também duvidava dos
relatos de pigmeus africanos na África e supôs que o seu bebê chimpanzé, que
ele considerou erroneamente como quase que inteiramente crescido, constituía a
fonte de tais rumores.)
Edward Tyson (1650-1708) estudou em Oxford e Cambridge, e depois
trabalhou como médico em Londres. Ensinou anatomia humana durante quinze
anos no Surgeon’s Hall e tornou-se médico principal do mais célebre hospital de
doentes mentais da Inglaterra, o Bethlehem (de onde vem a palavra bedlam
[Bedlam, em inglês, confusão, balbúrdia, tumulto]). Lá, ele introduziu a prática de utilizar
mulheres como enfermeiras e fundou um departamento para acompanhar
pacientes após a alta, um exemplo inicial de tratamento de ambulatório. Foi,
porém, mais conhecido como anatomista comparativo e especialista em sistemas
glandulares. Escreveu monografia sobre um boto e um gambá, mas o seu tratado
de 1699 sobre um jovem chimpanzé tornou-se a sua obra mais famosa e
duradoura. Foi um homem rico, calmo e conservador, que nunca se casou e que
demonstrou uma dedicação incomum aos seus estudos anatômicos e ao seu
passatempo de erudição clássica. Um poema fúnebre de 1708 celebrou a sua
devoção exclusiva a Minerva, deusa da sabedoria dentre as mulheres:

Nenhuma Fronte podia mais ricas Diademas cingir,
Pelo menos com Gemas da sagrada Mina do Saber.
Não admira que nunca, pela Beleza Cativo guiado,
Tenha com uma Noiva o seu leito compartilhado.
Não, ao Deus mais cego nenhum respeito rendeu,
À grande Minerva toda a sua corte ele fez.

A boa biografia de Tyson escrita por Ashley Montagu (ver Bibliografia)
continuou a ser a obra-padrão sobre essa importante, mas negligenciada, figura
da história da ciência.
Hoje consideramos os macacos antropoides como os primatas mais
semelhantes aos humanos e os mais próximos de nós dentre as formas vivas no
que diz respeito à ascendência. Contudo, os macacos antropoides é os humanos
diferem substancialmente, não apenas na anatomia, mas particularmente na fala
e no funcionamento mental. Os chimpanzés, nossos parentes vivos mais
próximos, são membros de um ramo evolutivo lateral, não ancestrais ou formas
intermediárias. Mas Tyson colocou o seu pigmeu, ou chimpanzé jovem,
exatamente no meio do intervalo entre os outros primatas e o homem. Quando
obrigado a ser categórico, Tyson realmente colocou o seu pigmeu entre os
animais: “O nosso Pigmeu tem muitas vantagens sobre o resto da sua espécie; no
entanto, ainda acho que ele nada mais é do que um tipo de macaco e um simples
bruto; e, como diz o provérbio, um macaco é um macaco, não importa o que
vista.” No entanto, em várias outras passagens, Tyson reclama uma condição
intermediária para o seu chimpanzé: “O nosso Pigmeu não é um homem, nem
tampouco o macaco comum; mas uma espécie de animal entre os dois.”
A disposição de Tyson para colocar os macacos antropoides ainda mais perto
dos humanos do que os padrões correntes de compreensão tornou-se a fonte de
um importante equívoco histórico a seu respeito — e o ímpeto inicial para este
ensaio baseou-se na minha preocupação contínua com a relação entre fato e
teoria. Na escola “heroica”, que analisa figuras passadas em termos do seu
sucesso por padrões modernos, Tyson recebe grandes elogios pela sua coragem
de reconhecer, tanto tempo atrás, a afinidade de macacos e humanos. Ele foi
capaz de discernir essa verdade fundamental, prossegue o mito, devido a dois
motivos principais: ele era um empiricista destacado, disposto a rejeitar antigos
preconceitos e a simplesmente registrar o que via; e ele usou o método moderno
da anatomia comparada — contrastes explícitos, órgão por órgão, do seu
chimpanzé com outros primatas e humanos.



Essa tradição de louvar Tyson pelo seu suposto modernismo permeia a
história dos comentários ao seu tratado de 1699. T. H. Eluxley, por exemplo, no
seu ensaio seminal sobre O lugar do homem na natureza (1863), destacou Tyson
para elogiá-lo porque ele havia escrito “a primeira descrição de um símio
antropoide que tem pretensões de exatidão científica e totalidade”. Ashley
Montagu declara que se interessou primeiramente por Tyson quando, ainda
estudante, leu num livro didático de antropologia (1904) o comentário de que a
obra de Tyson “constitui uma notável antecipação dos métodos modernos de
pesquisa”. George Sarton, o principal historiador de ciência do nosso século,
escreveu no seu prefácio para a biografia de Ashley Montagu que o tratado de
Tyson “é um marco notável na história da ciência... um marco na história da
teoria da evolução” — muito embora Tyson fale apenas da cadeia estática, e
absolutamente não mencione a evolução (O maravilhoso livro de D. J. Boorstin, The
Discoverers [Nova York, Random House, 1983], foi publicado depois do aparecimento deste ensaio. Ele
continua a infeliz tradição de elogiar Tyson como um corajoso modernista e arauto da evolução, não
percebendo que a sua descoberta do caráter intermediário não fomentou uma revolução, mas antes resolveu
um problema na teoria-padrão da “cadeia do ser” tal como compreendida no tempo de Tyson. Boorstin
escreveu [p. 461]: “Exatamente como Copérnico retirou a Terra do centro do universo, Tyson tirou o
homem do seu papel exclusivo, acima e separado do resto da Criação. ... Nunca antes houvera uma
demonstração tão pormenorizada ou tão pública da afinidade física do homem com os animais. ... A
implicação de que ali estava o ‘elo perdido’ entre o homem e toda a criação animal ‘inferior’ era óbvia. ...
Assim como a perspectiva heliocêntrica, uma vez vista, não podia ser esquecida, assim também, após ler
Tyson, ninguém poderia acreditar que o homem estava isolado do resto da natureza”).
O mito do suposto e corajoso modernismo de Tyson é contestado por duas
anomalias, também relatadas com destaque. Em primeiro lugar, se ele foi tão
iconoclasta na sua disposição de colocar um animal tão perto dos nossos
exaltados egos, por que ele é universalmente descrito como tendo um caráter tão
cauteloso e conservador? Em segundo lugar, se a concessão de uma condição
intermediária ao seu chimpanzé era tão polêmica, por que ela obteve tão poucos
comentários contemporâneos — embora as gerações posteriores tenham coberto
Tyson de louvores? Ashley Montagu diz: “O fato de haver tão poucas
referências a Tyson na correspondência contemporânea não deixa de ser
enigmático.”
Creio que a solução para esse dilema encontra-se simplesmente no abandono
da abordagem falaciosa da história da ciência que o gerou. Tyson não foi um
modernista. Foi um homem conservador e trabalhou com as preconcepções
comuns do seu tempo. Ele não colocou o seu chimpanzé numa posição
intermediária entre os símios e os humanos porque previu a evolução ou
simplesmente porque foi capaz de enxergar com mais nitidez por entre o véu do
preconceito comum. Mais exatamente, Tyson foi firme expoente da cadeia do
ser — um ordenamento da natureza comum e aceito no seu tempo. Lacunas entre
os grupos principais perturbavam intensamente essa teoria — e o espaço entre
símio e homem parecia especialmente óbvio e embaraçoso. Os cientistas
buscavam formas intermediárias com avidez (e inquietude); a descoberta de
Tyson produziu uma confirmação bem-vinda de uma teoria estabelecida — a
cadeia do ser —, não um desafio baseado numa ideia radicalmente diferente — a
evolução —, a qual não seria ampla e seriamente discutida por mais um século.
A obra de Tyson recebeu poucos comentários porque era confortadora e não
polêmica.
Além disso, o uso de Tyson do método comparativo não o caracteriza como
um modernista esclarecido, mas surge também do seu compromisso com a
cadeia do ser. Quando se deseja colocar um animal entre um macaco e um
humano, o que mais se pode fazer além de catalogar a sua semelhança relativa
com cada um?
Não tenho a mínima intenção de criticar Tyson ou de depreciar o seu lugar
legítimo no panteão dos heróis científicos. Ajustar um homem ao seu tempo
deveria apenas aumentar a nossa compreensão. Após ler o tratado de Tyson,
certamente posso confirmar o cuidado minucioso e a exatidão das suas
descrições, atributos altamente valorizados em qualquer época. Ainda assim,
como tema principal deste ensaio, quero argumentar que a característica
marcante do tratado de Tyson não é uma exatidão que surge da renúncia a velhos
preconceitos, mas antes o exagero de Tyson do caráter humanoide do seu
pigmeu — um resultado do seu comprometimento anterior com a cadeia do ser.
A teoria sempre influencia a percepção, e nem sempre para o pior.
Tyson afirma logo no início o seu compromisso com a cadeia do ser e a sua
intenção de usá-la como tema organizador do seu tratado.

Trata-se de uma observação verdadeira, a qual não se pode fazer sem
admiração, de que a transição dos minerais para as plantas, das plantas para
os animais, e dos animais para o homem é tão gradual, que parece haver uma
similitude bastante grande entre as plantas mais humildes e alguns minerais,
assim como entre a categoria mais inferior dos homens e o tipo mais alto de
animais. O animal do qual forneci a anatomia, o qual é o que mais se
aproxima do gênero humano, parece ser o nexo entre o animal e o racional.

Ele então defende a técnica comparativa, não como algo controverso e
moderno, mas como o método apropriado para colocar uma criatura na escala do
ser:

Para tomar este estudo mais proveitoso, fiz um exame comparativo deste
animal com um macaco, um grande símio e um homem. Vendo as mesmas
partes de todos esses juntos, podemos observar melhor a gradação da
natureza na formação de corpos animais e as transições feitas de um para
outro; não há nenhuma outra prática que melhor possa conduzir à aquisição
de conhecimento verdadeiro tanto do tecido quanto do uso dos órgãos.
Seguindo o novelo da natureza neste labirinto maravilhoso da criação,
podemos ser mais facilmente admitidos nos seus recantos secretos, e se
perdermos o seu fio, temos necessariamente de errar e ficar confusos.

Apesar de afirmar várias vezes que, como diriam os séculos posteriores, “no
fundo”, o seu pigmeu era um “bruto” e não uma criatura racional, Tyson enfatiza
continuamente as qualidades humanoides do seu chimpanzé. Bem no final, numa
lista de características, ele cita quarenta e oito pontos em que a semelhança entre
chimpanzé e humano é maior do que entre o chimpanzé e um grande símio, e
apenas trinta e quatro pontos de afinidade maior entre chimpanzé e grande símio.
O texto inteiro enfatiza sem cessar a posição gradualmente intermediária do
chimpanzé de Tyson: “Nesta cadeia da criação, na condição de elo intermediário
entre um grande símio e um homem, eu colocaria o nosso pigmeu.”
Como os chimpanzés, no aspecto anatômico geral, provavelmente são mais
similares a outros primatas do que aos humanos, essa conclusão requer algum
exagero das qualidades humanoides do pigmeu de Tyson. De modo inteiramente
inconsciente, eu suspeito, e por dois motivos diversos, Tyson enfatiza exagerada
e continuamente as similaridades humanas, e com uma frequência igual
subestima a relação com os macacos.
Pelo primeiro motivo, Tyson, simples e coerentemente, dá preferência ao
lado humano nas situações ambíguas. Note-se em particular as suas declarações
sobre a postura. O chimpanzé de Tyson foi levado de Angola para a Inglaterra e
chegou doente e bastante fraco (morreu em poucos meses e assim tornou-se
disponível para a dissecção de Tyson). Ele observou que, às vezes, ainda que
raramente, o chimpanzé andava ereto: o chimpanzé de Tyson em geral
caminhava, como os grandes antropoides caracteristicamente o fazem, apoiando-
se nos nós dos dedos — os pés firmes no chão, mas com as mãos jogadas para a
frente. Tyson atribuiu essa postura peculiar ao seu estado enfraquecido e insistiu
que o seu modo de locomoção devia ser ereto, apoiado apenas sobre as pernas,
como os humanos — embora os seus dados empíricos identificassem a
locomoção com apoio nos nós dos dedos como sendo bem mais comum:

Quando ia de quatro, como um quadrúpede, fazia-o desajeitadamente, não
colocando a palma da mão no chão, andando, ao contrário, apoiado nos nós
dos dedos, conforme o vi fazer quando fraco, sem força suficiente para
sustentar o corpo. ... Andar sobre os nós dos dedos, como o nosso pigmeu
fazia, não parece ser uma postura natural, e ele estava suficientemente
provido em todos os aspectos para andar ereto.

Não podemos culpar Tyson por não saber que os grandes antropoides andam
normalmente apoiados nos nós dos dedos, pois essa postura tão pouco
característica nos animais não estava bem descrita na sua época. Ainda assim, a
defesa de Tyson da postura ereta (ou humanoide) como modo normal para os
chimpanzés realmente parece um bocado forçada, condicionada mais por
preconcepções sobre a condição intermediária na cadeia do ser do que pela
observação direta dos dados brutos. Assim, ao escrever que “podemos concluir
com segurança que a natureza projetou-o como bípede”, Tyson discute a
articulação do fêmur com a pélvis e o “tamanho grande do osso do calcanhar no
pé, o qual, sendo tão extenso, assegura que o corpo não cai para trás”. No
entanto, na mesma discussão, ele, convenientemente, omite outros traços
anatômicos descritos antes que poderiam nos levar a duvidar da postura ereta —
em especial as importantes diferenças de estrutura pélvica entre chimpanzés e
humanos, e o pé semelhante a uma mão, com o seu dedão curto e fraco.
Como os primatas são animais que se valem sobretudo de estímulos visuais,
nunca devemos omitir (embora os historiadores o façam com frequência) o papel
desempenhado por ilustrações científicas na formação de conceitos e na
fundamentação de argumentos. As magníficas gravuras de Tyson são todas
elaboradas para realçar a argumentação em favor da postura ereta, mesmo na
ausência de indícios diretos (incluo quatro reproduções com este ensaio). A
primeira mostra o seu pigmeu de frente, plenamente ereto, embora se deva notar
que Tyson, engenhosamente, lhe forneça uma bengala para indicar a dificuldade,
que ele não teve como deixar de observar, no seu modo de andar! Tyson escreve:
“Estando fraco, para melhor apoiá-lo, coloquei-lhe uma bengala na mão.” A
segunda gravura retrata o chimpanzé de costas, mais uma vez ereto, mas desta
vez apoiando-se numa corda suspensa acima da sua cabeça! Por fim, as gravuras
com o sistema muscular e o esqueleto exibem uma postura humana plenamente
ereta.
Em outras passagens, Tyson confere atributos e emoções quase humanas ao
seu pigmeu. Ele recorda com prazer, por exemplo, como o chimpanzé adorava
usar roupas e vesti-las quando estava na cama, embora note que ele nunca
aprendeu a se abster de executar as funções da natureza nesse mesmo lugar:

Após ser capturado e se acostumar um pouco com o uso de roupas, o nosso
pigmeu gostou delas; e o que não conseguia vestir sozinho, ele trazia nas
mãos para que alguém da companhia o ajudasse a vestir. Ele costumava
deitar-se na cama, colocar ã cabeça no travesseiro e puxar as roupas por
sobre si, como um homem faria; mas era tão descuidado, e um bruto tão
consumado, que fazia todas as necessidades lá.

Muitas vezes, Tyson discutiu a conduta do chimpanzé em termos puramente
humanos: “Pois eu mesmo o ouvi chorar como uma criança; e ele foi visto várias
vezes esperneando, como fazem as crianças, quando estava contente ou
irritado.’’ Em certa passagem, Tyson até mesmo confere superioridade ao seu
chimpanzé em questões de temperança:

Certa vez, ele foi embebedado com ponche (e eles gostam bastante de
bebidas fortes), mas observou-se que, depois dessa ocasião, ele nunca bebia mais
de uma xícara, e recusava a oferta de mais do que ele considerava apropriado
para si. Assim, vemos que o instinto da natureza ensina temperança aos brutos; e
a intemperança é um crime não apenas contra as leis da moralidade, mas também
da natureza.



Como segundo motivo para o exagero de similaridades entre o chimpanzé e
os humanos, Tyson cometeu um erro crucial. Ele sabia que o seu pigmeu era um
animal jovem, pois as extremidades dos ossos longos ainda estavam formadas
em cartilagem e não plenamente ossificadas, mas ele o considerou quase que de
todo crescido porque, erroneamente, tomou a série completa de dentes de leite
por uma dentição permanente (em alguns aspectos, os dentes de leite dos
macacos antropoides de fato lembram os dentes permanentes dos humanos).
Desse modo, ele não percebeu como era jovem — quase um bebê — o animal
que estava dissecando. (Essa identificação errônea também agravou o erro
subsequente, num tratado filológico apenso à anatomia, de atribuir as lendas
clássicas e os relatos mais recentes sobre pigmeus africanos ao mesmo animal,
que ele considerou como tendo apenas dois pés de altura quando plenamente
desenvolvido.)
Muitas vezes discuti nestes ensaios o papel da neotenia (literalmente,
agarrar-se à juventude) na evolução humana (ver Darwin e os grandes enigmas
da vida e O polegar do panda). Nós evoluímos diminuindo os ritmos de
desenvolvimento geral dos primatas e outros mamíferos. Assim, os adultos
humanos lembram chimpanzés e gorilas jovens muito mais intimamente do que
macacos antropoides adultos. Em consequência disso, o esqueleto de um bebê
chimpanzé conserva muitas características humanoides que um adulto perderia
— inclusive uma cabeça relativamente grande (os bebês humanos, é claro,
também têm cabeças relativamente maiores do que as dos adultos humanos), um
posicionamento mais ereto da cabeça sobre a espinha (já que o foramen
magnum, ou orifício de articulação entre crânio e coluna vertebral, se desloca
para trás com o crescimento), um crânio mais bulboso (já que o cérebro cresce
muito mais devagar que o corpo após o nascimento), protuberâncias do
supercílio menos salientes, e mandíbulas menores. A gravura de Tyson do
esqueleto do seu pigmeu, uma figura notavelmente precisa (vi fotografias dos
ossos originais), mostra todos esses traços humanoides.
Tyson também notou todos esses traços com prazer no seu texto, mas deixou
escapar o tema coordenador — não o de que os chimpanzés são tão parecidos
com os humanos, mas o de que ele havia dissecado um animal bem jovem e que
os primatas jovens lembram os adultos humanos de vários modos, sem que isso
demonstre descendência direta ou parentesco. Ele escreveu, por exemplo:

Quanto ao rosto do nosso pigmeu, ele era mais parecido com o de um
homem do que com os de um grande símio ou de um macaco: pois a sua
testa era maior, e mais arredondada, e a mandíbula superior e a inferior não
tão longas ou proeminentes, e mais espalhadas; e a sua cabeça, novamente,
era maior do que a de qualquer um dos dois outros animais.

De fato, o cérebro grande e semelhante ao humano do chimpanzé de Tyson
propunha um problema e tanto. Tyson já havia determinado que o aparelho vocal
do seu pigmeu era suficientemente semelhante ao nosso para a fala, mas então
por que ele não falava? Talvez uma deficiência do cérebro impedisse a expressão
desse atributo humano por excelência. No entanto, Tyson encontrou pouca
diferença entre o cérebro do seu pigmeu e o nosso, quer na estrutura básica, quer
no tamanho relativo.

Poder-se-ia estar propenso a pensar que, como existe uma disparidade tão
grande entre a alma de um homem e um bruto, do mesmo modo, o órgão no
qual ela está também deveria ser bastante diferente. No entanto, comparando
o cérebro do nosso pigmeu com o de um homem, e com o maior rigor,
examinando cada parte em ambos, surpreendeu-me muito encontrar uma
semelhança tão grande, que não poderia ser maior, entre um e outro.

Numa passagem fascinante, que exibe o contexto seiscentista da sua obra,
Tyson simplesmente negou que a estrutura física deva oferecer uma explicação
para a função. Os cérebros são de fato semelhantes, mas os humanos possuem
algo, em princípio superior, que anima a mesma matéria de um modo diferente:

Não há nenhum motivo para se pensar que os agentes realmente executem
tais e tais ações porque se descobre que são possuidores dos órgãos
apropriados para tal; porque, então, o nosso pigmeu poderia de fato ser um
homem. Os órgãos nos corpos animais são apenas um conglomerado
harmonioso de tubos e vasos para a passagem de fluidos, e são passivos. O
que os ativa são os humores e os fluidos; e a vida animal consiste no
movimento devido e regular desse corpo orgânico. Mas aquelas faculdades
mais nobres na mente do homem devem certamente possuir um princípio
superior, e a matéria organizada nunca poderia produzi-las; pois, qual outro
motivo poderia explicar que, sendo os órgãos iguais, as ações executadas
também não o sejam?




Se a cadeia do ser possuísse valor permanente como estímulo heurístico para
a exploração de elos perdidos, e se as lacunas se tornassem maiores à medida
que a cadeia avançasse, então o que fazer com o abismo ainda maior do que
aquele que Tyson julgou ter preenchido entre símio e homem — a lacuna entre
humanos e anjos e outros seres celestiais? Tyson deu ao problema um
comentário superficial, mais político do que científico, sugerindo na epístola
dedicatória a John Sommers, presidente da Câmara dos Pares da Inglaterra e
presidente da Royal Society (editores do tratado), que homens com tão ampla
erudição podiam muito bem preencher os buracos eles mesmos!

O animal do qual forneci a anatomia, o qual é o que mais se aproxima do
gênero humano, parece ser o nexo entre o animal e o racional, assim como
Vossa Excelência e os da Vossa Categoria e Ordem, por conhecimento e
sabedoria, sendo os mais próximos daquela espécie de seres que se
sobrepõem em seguida a nós, são os que ligam o mundo visível ao invisível.

No entanto, embora Tyson não tenha dado prosseguimento à questão, a
lacuna entre homens e anjos na cadeia tornou-se um importante estímulo para
especulações iniciais sobre um tema atualmente popular e talvez, pela primeira
vez, abordável — a exobiologia (ver ensaios na Parte 7). Pois a solução óbvia deve
sustentar que as criaturas mais avançadas do que os humanos, e que preenchem a
lacuna entre homem e anjo, habitam outros planetas. O filósofo Immannuel
Kant, por exemplo, argumentou que um planeta grande e pesado como Júpiter
devia suportar tais criaturas superiores. E Alexander Pope mencionou-as
explicitamente nos dísticos sobre a cadeia do ser do seu Essay on Man (enquanto
ao mesmo tempo elogiava Isaac Newton como um exemplo de sabedoria
terrena):

Seres superiores, quando há pouco viram
Um mortal desvendar toda a lei da natureza,
Admiraram tamanha sabedoria numa forma terrena
E apresentaram Newton como apresentamos um macaco.

Pope apenas se dava ao luxo de devaneios emoldurados em dísticos heroicos.
Tyson foi o homem que primeiro apresentou um grande antropoide com exatidão
e uma admirável meticulosidade.

18. Preso pela grande cadeia




Em A Child's Garden of Verses, Robert Louis Stevenson denominou o
seguinte dístico como um Pensamento Feliz:

O mundo está tão cheio de coisas,
Deveríamos todos ser felizes como reis.

No entanto, a maioria de nós não se alegra a contemplar a diversidade
assombrosa da natureza; ficamos atordoados com a complexidade e a confusão.
Não conseguimos ficar satisfeitos antes de estabelecer algum tipo de ordem;
temos de compreender a desconcertante variedade classificando-a.
A evolução é um princípio ordenador satisfatório, e hoje nós a usamos sem
hesitar, pois a evolução tanto testemunha o caminho da natureza quanto nos
permite classificar os organismos de um modo coerente. Mas que sistemas os
cientistas usavam antes que a evolução se tornasse tão popular no século XIX? A
“grande cadeia do ser’’, ou ainda gradação de todas as coisas vivas, com certeza
detinha o lugar de honra dentre todos os competidores. Arthur Lovejoy, o
famoso historiador de ideias que investigou a linhagem dessa noção na sua obra
maior (ver Bibliografia), disse que a cadeia do ser “está entre aquela meia dúzia
de pressupostos mais vigorosos e persistentes do pensamento ocidental. Até há
pouco mais de um século, é bem provável que ela tenha sido a mais amplamente
difundida das concepções do esquema geral dos objetos, do padrão constitutivo
do universo”.
Na grande cadeia do ser, cada organismo forma um elo definido dentro de
uma sequência única, que vai da mais humide ameba numa gota d’água a seres
cada vez mais complexos, culminando, como você já deve ter adivinhado, nos
nossos próprios e exaltados egos.

Atenta como ela sobe à raça imperial do homem,
A partir das verdes miríades da relva habitada.

Escreveu Alexander Pope nas suas expostulações em dísticos heroicos do
Essay on Man.
Uma vez que nos inclinamos a confundir evolução com progresso, a cadeia
do ser foi muitas vezes interpretada erroneamente como uma versão primitiva da
teoria da evolução. Embora alguns pensadores do século XIX tenham, nas
palavras de Lovejoy, “temporaliza-do” a cadeia convertendo-a numa escada que
os organismos podiam escalar no seu avanço evolutivo, a cadeia do ser original
era explícita e veementemente antievolutiva. A cadeia é um ordenamento
estático de entidades criadas, imutáveis — uma série de criaturas colocadas por
Deus em posições fixas de uma hierarquia ascendente que não representa nem o
tempo nem a história, mas a ordem eterna das coisas. A natureza estática da
cadeia define a sua função ideológica: cada criatura deve estar satisfeita com o
lugar que lhe foi atribuído — tanto o servo na choupana, quanto o senhor no
castelo — pois qualquer tentativa de ascensão romperá a ordem estabelecida.
Mais uma vez, Alexander Pope:

Da cadeia da Natureza qualquer que seja o elo tirado,
O décimo, ou o décimo milésimo, quebra-se igualmente a cadeia.

Neste ensaio, analisarei os argumentos apresentados na última defesa
influente da cadeia como ordem estática na Inglaterra — o tratado de 1799 do
médico e biólogo Charles White, “An account of the regular gradation in man,
and in different animais and vegetables” (Descrição da gradação regular no homem e em
diversos animais e vegetais). Charles White (1728-1813), que viveu e exerceu a
profissão em Manchester, Inglaterra, foi um cirurgião famoso pelo seu trabalho
em obstetrícia, particularmente pela sua exigência de limpeza absoluta durante
os partos. Em 1795, ele apresentou as suas ideias sobre a cadeia do ser à
Sociedade Literária e Filosófica de Manchester. Os resultados foram publicados
quatro anos mais tarde.
Para esse médico conservador, a cadeia funcionava do modo costumeiro,
como fundamento ideológico da estabilidade social e dos valores tradicionais.
Da natureza estática da corrente em si, White inferiu a existência necessária de
Deus como agente criador — pois a única alternativa converteria a cadeia num
produto temporal da evolução, uma interpretação obviamente inaceitável. Na
última linha do seu tratado, White justifica os seus esforços escrevendo que “seja
o que for que tenha por fim exibir a sabedoria, a ordem e a harmonia da criação,
e manifestar a necessidade de se recorrer a uma Divindade como primeira causa,
deve ser aprazível ao homem”. E embora White expressasse a sua oposição à
escravidão e insistisse em dizer que desejava apenas examinar uma proposição
de história natural, a sua hierarquização dos grupos humanos, com os brancos
europeus em cima e os negros africanos em baixo, certamente reforçava os
preconceitos dos seus folgados contemporâneos caucasianos. White insistiu,
falando de si:

Nem deseja ele atribuir a qualquer um superioridade sobre outro, exceto
aquela que surge naturalmente da força física, dos poderes mentais e da
diligência, ou das consequências resultantes da vida num estado de
sociedade. Ele deseja apenas investigar a verdade e descobrir quais são as
leis estabelecidas da natureza no que diz respeito a esse tema, 'entendendo
que, seja o que for que tenha por fim elucidar a história natural do gênero
humano, deve ser interessante ao homem.

A cadeia do ser sempre inquietara os biólogos porque, em certo sentido
objetivo, ela não parece descrever muito bem a natureza. Como podemos
ordenar todos os organismos numa única cadeia, minuciosamente graduada,
quando enormes lacunas parecem estar presentes em todo o sistema da natureza
— o que vem entre as plantas e os animais, ou entre os invertebrados e os
vertebrados, por exemplo? E como podemos colocar numa hierarquia de
perfeição as criaturas que parecem representar variações equivalentes de um
modelo básico, e não produtos inferiores ou superiores — as raças de cães, por
exemplo, ou o persistente dilema da diversidade racial humana?
De uma maneira relevante, a cadeia do ser sempre fora um argumento ruim,
mesmo nos seus próprios termos e no seu próprio tempo — isso caso se acredite,
pelo menos, que uma teoria da natureza deve registrar a sua aparência literal com
precisão (um critério nem sempre em voga entre os eruditos). De modo
paradoxal, é exatamente essa característica de harmonia insatisfatória com a
natureza que faz da cadeia do ser um tema de análise particularmente
interessante. Argumentos bons não chegam nem perto de fornecer tamanho
discernimento do pensamento humano, pois podemos dizer simplesmente que
vimos a natureza direito e empreendemos de forma adequada a humilde tarefa de
mapear os objetos de maneira precisa e objetiva. No entanto, os argumentos
ruins têm de ser defendidos diante da oposição da natureza, uma tarefa que exige
certo trabalho. A análise desse “trabalho” muitas vezes nos fornece o
discernimento da ideologia ou dos processos de pensamento de uma era, quando
não dos modos do próprio raciocínio humano. A defesa de White da cadeia
estática é particularmente direta e pouco sutil, mas não diferente em substância
de outras versões mais sofisticadas. Assim, ela se torna uma excelente cartilha
para a elaboração de argumentos dúbios.
White considerava as diversas raças humanas como espécies criadas
separadamente (coerente com o seu parecer antievolutivo da gradação na cadeia
do ser) e devotou o seu tratado ao ordenamento dessas raças numa sequência
única, da inferior para a superior. O livro persegue dois argumentos difíceis (em
sequência) para chegar à sua dúbia conclusão. Primeiro, White tem de justificar
a cadeia do ser em geral, e em meio às grandes lacunas que parecem separar as
plantas dos animais e os macacos dos homens. Segundo, ele deve ordenar as
raças humanas numa única cadeia, embora a sua variação seja tão diversificada
que critérios diferentes parecem resultar em ordenamentos diversos. Em resumo,
como elaborar uma cadeia única quando a natureza parece apresentar variação
abundante, mas pouca hierarquia?
A primeira parte do tratado de White tenta justificar a cadeia como um
princípio ordenador geral para todas as formas de vida. Primeiro, ele ataca o
problema das lacunas aparentes entre os grandes reinos, plantas e animais em
particular. Defensores prévios da cadeia haviam, de modo geral, “resolvido” esse
dilema propondo argumentos fantasiosos para as formas intermediárias. Assim,
Charles Bonnet defendeu o asbesto como forma de transição entre minerais e
plantas porque a sua natureza fibrosa lembrava os sistemas vasculares das
plantas. E a hidra de água doce, um parente dos corais, foi amplamente
proclamada, após a sua descoberta em 1739, como forma intermediária entre
plantas e animais porque (como as plantas) ela parecia desprovida de órgãos
internos complexos e porque apresentava reprodução assexuada por brotamento.
White prestou a homenagem tradicional às hidras, mas a sua estratégia
principal para preencher a lacuna entre plantas e animais invoca um argumento
de similaridade de modelo anatômico — pois, se pudesse demonstrar que as
plantas e os animais não diferiam no modelo básico, mas que procediam do
mesmo molde, com as plantas na condição de versões menos complexas do
mesmo plano fundamental, então uma ordem única podia ser elaborada. White
propôs três argumentos deficientes para tentar estabelecer uma unidade de
estrutura entre as plantas e os animais. Em primeiro lugar, ele invocou algumas
analogias ruins, afirmando, por exemplo, que, como as plantas perdem as folhas
e os mamíferos os pelos, uma similaridade fundamental une arbustos e babuínos.
Em segundo lugar, ele se serviu de informações pura e simplesmente erradas ao
afirmar que as plantas possuem pulmões para respirar. Em terceiro lugar, ele
citou similaridades agora julgadas irrelevantes, por serem excessivamente gerais
para fundamentar qualquer pretensão de similaridade estrutural — por exemplo,
que as plantas, assim como os animais, estão sujeitas a doenças.
Para preencher a maior lacuna conhecida na outra extremidade da escala —
aquela entre macacos e humanos (embora ela nos pareça menor hoje) — White
empregou os mesmos argumentos deficientes. Ele não se preocupou em
estabelecer unidade de modelo (mesmo o maior difamador de macacos não
podia negar a sua similaridade anatômica com os humanos). Em vez disso, ele
tentou elevar a posição dos macacos, enquanto rebaixava o valor dos humanos
supostamente inferiores. Usando analogias deficientes (ou transferindo conceitos
humanos para o comportamento animal), ele dizia que os babuínos designavam
sentinelas para velar à noite pelo bando adormecido. Numa passagem divertida,
na categoria das informações pura e simplesmente erradas, White promoveu os
orangotangos afirmando que eles se submetiam de bom grado à mais
esclarecidas das práticas médicas contemporâneas — a sangria: “Sabe-se que,
quando doentes, esses animais consentem em ser sangrados e até mesmo
solicitam a operação, e que se submetem a outros tratamentos necessários como
criaturas racionais.” Então, num passe de mágica com o fim de elevar os
macacos e rebaixar os humanos negros, ele retratou os símios como
escravocratas e tarados (qualidades bastante humanas, se bem que não
particularmente admiráveis):

Soube-se que eles já raptaram rapazes, garotas e até mesmo mulheres negras,
com o intuito de torná-los subservientes aos seus desejos, como escravos, ou
como objetos de paixão brutal; e alguns afirmam que mulheres já tiveram
filhos de tais uniões.

Tendo assim estabelecido a cadeia como uma sequência minuciosamente
graduada, compreendendo todos os objetos vivos, White segue rumo ao tema
principal do seu tratado: a hierarquização das raças humanas numa única ordem,
com o seu próprio grupo no topo. Em mais de cem páginas, examinando
estrutura após estrutura, órgão após órgão, White luta vigorosamente para
ordenar as raças como uma sequência única. O esforço foi uma luta intelectual
envolvendo o desconfortável ajustamento de dados recalcitrantes num esquema
predeterminado; pois as diferenças entre as raças não podem ser linearizadas
facilmente, não importa a força do compromisso a priori com tal ordenamento.
Além disso, quando forçamos caracteres em sequências únicas, nem sempre
podemos estabelecer as mesmas direções para cada caráter — os negros podem
exibir uma quantidade menor de qualidades admiráveis do que os brancos, mas
os brancos certamente serão inferiores em outras características. Como White
lidou com essas incoerências e ameaças ao seu sistema?


Consigo compreender a maioria dos esforços de White dispondo as suas
discussões de características particulares em quatro categorias — e notando que
apenas uma se encaixa confortavelmente no seu esquema favorito, de uma
cadeia única, erguendo-se dos animais “inferiores” até as raças “inferiores” (os
negros africanos em baixo e os orientais no meio) e, finalmente, até o ápice dos
brancos europeus. A primeira categoria inclui traços admiráveis possuídos em
quantidade maior por brancos, menor por negros, e menor ainda por animais. Por
exemplo, usando algumas medidas dúbias (já que as raças humanas não diferem
substancialmente quanto ao tamanho do cérebro, como se isso tivesse alguma
importância), White afirmou que os negros ocupavam uma posição intermediária
numa sequência heterogênea de tamanho cerebral, que ia de aves para cães,
depois para macacos, e, por fim, através das raças humanas “inferiores”, chegava
aos europeus brancos (ver na figura acima a perpetração um tanto diversa de
White da cadeia do ser). No entanto, apenas essa categoria dentre as quatro
confirmava os pressupostos de White. As outras três impunham problemas de
interpretação distintos e prementes. White, porém, estava à altura da tarefa.
A segunda categoria inclui aquelas características admiráveis que, para o
desconforto de White, são distribuídas com maior abundância entre os negros.
White lidou com esse dilema argumentando que, embora os traços devam ser
considerados valiosos, os animais se encontram ainda melhor providos — de
modo que a sequência vai de animal para negro, de negro para branco. Ele
escreve: “Nessas particularidades, a ordem é modificada, sendo a posição do
europeu na escala a mais inferior, a do africano superior, e a da criação bruta
mais superior ainda.” Os negros, por exemplo, suam menos que os brancos —
um aparente avanço em refinamento (embora White nos assegure que os negros
têm um odor corporal mais forte do que o dos caucasianos). White comenta:

Nos seus relatos, capitães e cirurgiões de navios da Guiné, e fazendeiros das
índias Ocidentais, concordam unanimemente que os negros suam bem menos
do que os europeus, sendo difícil ver uma gota de suor sobre eles. Os símios
suam menos ainda, e os cães não suam nada.

De modo semelhante, as mulheres negras têm uma menstruação menos
copiosa — um óbvio avanço de refinamento em relação às brancas. No entanto,
a maioria dos símios sangra menos ainda ou então não sangra absolutamente
nada. Os negros superam os brancos em memória, mas os animais inferiores são
os campeões absolutos; os elefantes realmente nunca esquecem. Na verdade,
White consegue degradar qualquer coisa admirável que os negros tenham,
atribuindo mais dessas qualidades aos animais inferiores. Ele afirma, por
exemplo, que os negros toleram a dor melhor do que os brancos. E cita um
colega que escreveu:

Eles suportam operações cirúrgicas bem melhor do que as pessoas brancas, e
o que seria a causa de dor insuportável para um homem branco, um negro
quase que desprezaria. Cheguei mesmo a amputar as pernas de muitos
negros, os quais seguravam, eles próprios, a parte superior do membro.

Mas, pense em quantos animais inferiores — insetos em particular —
suportam o desmembramento sem aparentemente um gemido sequer.
A terceira categoria inclui características animalescas que os brancos
possuem em maior grau do que os negros, mas que se verificam em grau ainda
mais intenso nos animais inferiores — a exceção mais direta e evidente para a
ordem preferida por White. Os brancos, por exemplo, têm uma barba mais
cerrada e pelos corporais mais abundantes do que os negros, ao passo que a
maioria dos mamíferos está inteiramente coberta por uma densa pelagem. White
desvencilha-se desse problema com um artifício retórico e uma afirmação de que
os mais nobres dos animais têm pelos em abundância, como no caso das
ondulantes madeixas dos brancos europeus!

O cabelo fino, longo, ondulante, parece ser concedido como ornamento. O
Pai Universal conferiu-o apenas a uns poucos animais, e estes são os do tipo
mais nobre — ao homem, a criatura superior da criação, ao majestoso leão, o
rei da selva, e àquele que é o mais belo e útil animal doméstico, o cavalo.

Na categoria final, os negros possuem mais características aparentemente
animalescas do que os brancos, e, portanto, tudo parece bem — até que nos
damos conta de que os animais são os menos dotados dentre todos. Os homens
negros, por exemplo, têm pênis maiores que os brancos, ao passo que as
mulheres negras têm seios maiores — sinais evidentes de uma sexualidade
indecente e desenfreada. (White até mesmo relata que “as mulheres hotentotes
têm seios longos e flácidos, e que conseguem amamentar as crianças que
carregam nas costas atirando os seios por cima dos ombros”.) No entanto, os
macacos têm pênis e seios menores do que os de qualquer grupo humano. White
não encontrou nenhuma solução adequada para esse problema e limitou-se a
contorná-lo, dizendo que, pelo menos, os negros e os símios desenvolvem os
maiores mamilos!
Neste ponto, e depois de cem páginas de incansável enumeração, o
argumento de White está em frangalhos — a despeito dos esforços heroicos para
remendá-lo, tal como documentado na discussão precedente. Então, seguindo
todos os velhos adágios sobre enfrentar a adversidade com bravura, ele termina o
floreio retórico com um apelo gritante ao subjetivismo supremo — critérios
estéticos. Afinal, todos sabemos que as pessoas brancas são mais atraentes e
agradáveis a Deus e ao homem — e, definitivamente, é isso mesmo. Assim, num
trinado final e num famoso parágrafo, muitas vezes citado devido ao seu efeito
humorístico não-intencional, White encerra o seu argumento com a seguinte peã
à beleza europeia:

Ascendendo a linha de gradação, chegamos finalmente ao branco europeu, o
qual, sendo o mais distante da criação bruta, pode, por esse motivo, ser
considerado como a mais bela das raças humanas. Ninguém duvidará da
superioridade dos seus poderes intelectuais, e creio que se julgará que a sua
capacidade é naturalmente superior também à de todos os outros homens.
Onde encontraremos, a não ser no europeu, aquela cabeça nobremente
abobadada, contendo tamanha quantidade de cérebro, e sustentada por uma
coluna cônica oca, entrando no seu centro? Onde, a face perpendicular, o
nariz proeminente, e o queixo saliente e redondo? Onde, aquela variedade de
traços e plenitude de expressão; aquelas longas, ondulantes, graciosas
madeixas, aquela barba majestosa, aquelas maçãs róseas e lábios de coral?
Onde, aquela postura ereta do corpo e aquele nobre andar? Em que outro
canto do globo encontraremos o rubor que sé espalha por sobre os suaves
traços das belas mulheres da Europa, aquele emblema de modéstia, de
sentimentos delicados e de juízo? Onde, aquela linda expressão das amáveis
e mais suaves paixões no semblante, e aquele refinamento geral de traços e
tez? Onde, exceto nos seios da mulher europeia, dois hemisférios
rechonchudos e níveos, coroados de escarlate?

Não tenho a intenção de diminuir o humor póstumo desta passagem —
“hemisférios níveos coroados de escarlate” como a marca definitiva da perfeição
humana, francamente! O estilo floreado de White pode torná-lo mais sujeito ao
ridículo do que a maioria dos seus contemporâneos, mas a sua argumentação não
é pior ou diferente daquela de vários deles. Ele estava apenas expressando uma
opinião comum do seu tempo, numa retórica confessamente intumescida. A
cadeia estática do ser, como argumenta Lovejoy, havia constituído uma pedra
angular das interpretações ocidentais da natureza durante séculos, apesar das
suas evidentes dificuldades de aplicação a um mundo recalcitrante, cheio de
lacunas e de variação copiosa, difícil de ser ordenado em sequências únicas.
Portanto, dê uma boa risada nas partes apropriadas, mas pondere então por
um momento a questão séria e maior. A evolução levou a cadeia estática do ser à
obsolescência — portanto, podemos, em retrospecto, identificar as suas falhas
evidentes e analisar a falsidade e a incoerência da argumentação usada para
defendê-la. Mas quantas das crenças que nos são caras, aquelas sobre as quais
nunca temos dúvidas porque pensamos que mapeiam a natureza de modo óbvio,
parecerão, daqui a alguns séculos, tolas e restritas pela ideologia como a cadeia
estática do ser? Não deveríamos examinar a lógica e a verossimilhança das
nossas convicções mais profundas? Pelo menos podemos evitar o ridículo das
gerações futuras esquivando-nos da anatomia sexual e deixando aos grandes
poetas bíblicos do Cântico dos Cânticos qualquer descrição metafórica dos seios
humanos.

19. A Vénus hotentote




Eu tinha uma amiguinha no jardim de infância. Nem me lembro do nome
dela. Mas, sem dúvida, lembro-me de um conselho secreto que lhe dei um dia no
playground. Eu disse a ela que as criaturas enormes que nos rodeavam,
conhecidas como adultos, sempre olhavam para cima quando andavam, e que
nós, o pessoal miúdo, podíamos encontrar todo o tipo de coisas valiosas se
olhássemos para baixo. Será que as minhas predisposições paleontológicas já
estavam em evidência?
Cari Sagan e eu crescemos em Nova York, ambos interessados em biologia e
astronomia. Como Cari Sagan é alto e escolheu a astronomia, ao passo que eu
sou baixo e escolhi a paleontologia, sempre imaginei que ele continuaria olhando
para cima (como ele fez com certa regularidade ao apresentar a sua série de TV,
Cosmos), e que eu continuaria aferrado ao meu conselho, velho, porém bom, de
ficar olhando para baixo. Mas, no mês passado, em Paris, eu o venci por uma
cabeça (literalmente).
Alguns anos atrás, Yves Coppens, professor do Musée de L’Homme em
Paris, levou Cari Sagan para uma excursão pelas entranhas do museu. Lá,
armazenado numa estante, eles encontraram o cérebro de Paul Broca, flutuando
numa redoma de formalina. Cari escreveu um bom ensaio sobre essa visita, a
peça título do seu livro Broca’s Brain. Alguns meses atrás, Yves levou-me para
uma excursão semelhante. Eu segurei o crânio de Descartes e o do nosso
ancestral mútuo, o antigo homem de Cro-Magnon. Também encontrei o cérebro
de Broca, repousando na sua prateleira e rodeado por outras redomas contendo
os cérebros dos seus ilustres contemporâneos científicos — todos brancos e
todos homens. No entanto, encontrei as peças mais interessantes na prateleira
logo acima. Talvez Cari nem tenha olhado para cima.
Essa área das “alas dos fundos” do museu contém a coleção de peças
anatômicas de Broca, inclusive a sua generosa e póstuma contribuição. Broca,
um grande anatomista clínico e antropólogo, corporificou a grande fé do século
XIX na qualificação como chave para a ciência objetiva. Se ele pudesse coletar
órgãos humanos em quantidade suficiente de uma quantidade suficiente de raças
humanas, as medidas resultantes com certeza definiriam a grande escala do
progresso humano, do chimpanzé ao caucasiano. Broca não era mais
virulentamente racista do que os seus contemporâneos científicos (quase todos
homens brancos bem-sucedidos, claro); ele apenas foi mais diligente no acúmulo
de dados irrelevantes, apresentados seletivamente para sustentar um ponto de
vista apriorístico.
Essas estantes contêm um potpourri horripilante: cabeças cortadas da Nova
Caledónia; uma ilustração do amarramento de pés praticado pelas mulheres
chinesas — sim, um pé amarrado, junto com a parte inferior das pernas, cortada
entre o joelho e o tornozelo. E, numa prateleira logo acima dos cérebros, vi uma
pequena exposição que me forneceu um discernimento imediato e arrepiante da
mentalité do século XIX e da história do racismo: em três frascos menores, vi os
órgãos genitais dissecados de mulheres do terceiro mundo. Não encontrei o
cérebro de nenhuma mulher, e tampouco o pênis de Broca ou de algum outro
homem honravam a coleção.
Os três frascos têm escrito nos rótulos une négresse, une péruvienne e la
Vénus Hottentotíe, ou a Vénus hotentote. O próprio Georges Cuvier, o maior
anatomista da França, dissecara a Vénus hotentote depois da morte dela em Paris
no final de 1815. Cuvier atacou diretamente os órgãos genitais por um motivo
particular e interessante, ao qual retornarei após relatar a história dessa infeliz
mulher.
Numa época em que a televisão e o cinema ainda não haviam feito com que
virtualmente tudo deixasse de ser exótico, e quando a teoria antropológica
avaliava como subumanos tanto os caucasianos mal formados quanto os
representantes normais de outras raças, a exposição de humanos incomuns
tornou-se um negócio lucrativo, não só nos salões da classe alta, como também
nas barracas de rua (ver The Shows of London, de Richard D. Altick, na
Bibliografia, ou o tratamento dado ao “Homem Elefante” no livro, no palco e no
cinema). Supostos selvagens de terras longínquas eram um dos esteios dessas
exposições, e a Vénus hotentote superou a todos em fama. (Os hotentotes e os
boximanes são povos aparentados, de baixa estatura, do sul da África. Os
boximanes tradicionais, quando encontrados pela primeira vez pelos europeus,
viviam da caça e do extrativismo, enquanto os hotentotes criavam gado. Os
antropólogos inclinam-se agora a abandonar esses termos europeus, um tanto
depreciativos, e a designar coletivamente os dois grupos como povos Khoi-San,
uma palavra composta, obtida a partir dos nomes que cada um dos grupos dá a si
mesmo). A Vénus hotentote era empregada de fazendeiros holandeses perto da
Cidade do Cabo, e não sabemos a qual grupo ela pertencia. Ela tinha nome,
embora os que a exploravam nunca o tenham usado. Foi batizada como Saartjie
Baartman (Saartjie, ou “pequena Sara” em africâner, pronuncia-se Sar-qui).
Hendrick Cezar, irmão do “empregador” de Saartjie, sugeriu uma viagem
para que Saartjie fosse exibida na Inglaterra e prometeu torná-la uma mulher
rica. Lord Caledon, governador da província do Cabo, concedeu a permissão
para a viagem, mas arrependeu-se mais tarde, quando compreendeu plenamente
os seus objetivos. (A exibição de Saartjie provocou muitos debates, e ela sempre
teve simpatizantes, enojados com a exibição de humanos como animais; o
espetáculo continuou, mas sem aprovação universal.) Ela chegou a Londres em
1810, e foi imediatamente exposta em Piccadilly, onde causou sensação, por
motivos a serem discutidos em breve. Um membro da Associação Africana, uma
sociedade beneficente que requereu a sua “libertação”, descreveu o espetáculo.
Ele encontrou Saartjie pela primeira vez numa jaula, sobre uma plataforma
erguida uns poucos pés acima do chão:

Ao receber a ordem do carcereiro, ela saiu. ... A hotentote foi apresentada
como um animal selvagem, e foi-lhe ordenado que andasse para trás e para
diante, e que saísse e entrasse na jaula, mais como um urso treinado do que
como um ser humano.

No entanto, Saartjie, interrogada em holandês perante um tribunal, reiterou
que não estava sob coação e que compreendia perfeitamente bem que lhe haviam
garantido metade dos lucros. O espetáculo continuou.
Após uma longa excursão pelas províncias inglesas, Saartjie acabou sendo
levada para Paris, onde foi exibida durante quinze meses por um treinador de
animais, causando uma sensação tão grande quanto na Inglaterra. Cuvier e todos
os grandes naturalistas da França foram visitá-la, e ela posou nua para pinturas
científicas no Jardin du Roi. Saartjie, porém, morreu de um mal inflamatório em
29 de dezembro e, em vez de rica na Cidade do Cabo, terminou na mesa de
dissecção de Cuvier.
Por que, numa época em que exibições de humanos eram tão comuns,
Saartjie foi tamanha sensação? Podemos oferecer duas respostas, cada uma
inquietante e cada uma associada a um dos seus títulos oficiais — Vénus e
hotentote.
Na escala racista do progresso humano, os boximanes e os hotentotes
disputavam com os aborígenes australianos o degrau mais baixo, logo acima dos
chimpanzés e orangotangos. (Alguns estudiosos dizem que a primeira
designação aplicada pelos colonizadores holandeses do século XVII —
Bosmanneken ou boximane — era uma tradução literal de uma palavra malaia
que eles conheciam muito bem — Orang Outan, ou “homem da floresta”.)
Nesse sistema, Saartjie exercia um fascínio sinistro, não como um elo perdido
num sentido posterior, evolutivo, mas como uma criatura que se colocava numa
posição intermediária naquela temida fronteira entre o humano e o animal e, ao
fazê-lo, ela nos ensinava algo sobre uma identidade ainda presente, embora
submersa, nas criaturas “superiores” (ver ensaios 17 e 18).
Os comentaristas contemporâneos enfatizaram a aparência simiesca e os
hábitos brutais dos boximanes e dos hotentotes. Em 1839, o eminente
antropólogo americano, S. G. Morton rotulou os hotentotes como “a
aproximação mais extrema dos animais inferiores. ... A sua tez é de um pardo
amarelado, comparado por viajantes à nuance peculiar dos europeus no último
estágio da icterícia. ... As mulheres são representadas como sendo ainda mais
repulsivas na aparência do que os homens”. Mathias Guenther (ver Bibliografia)
cita um relato jornalístico de 1847 com a descrição de uma família boximane
exibida no Egyptian Hall de Londres:

Na aparência, eles se encontram pouco acima da tribo dos macacos. O tempo
todo eles ficam agachados, aquecendo-se junto ao fogo, tagarelando ou
resmungando. ... São carrancudos, taciturnos e selvagens — meros animais
na propensão e pior do que animais na aparência.

E o relato parcial de um missionário fracassado em 1804:

Os boximanes são capazes de matar os filhos sem remorso em várias
ocasiões; por exemplo, quando estes são mal formados, ou quando falta
comida, ou quando são obrigados a fugir dos fazendeiros ou de outros;
nesses casos, eles os estrangulam, asfixiam-nos, abandonam-nos no deserto
ou enterram-nos vivos. Há casos de pais que atiram os seus jovens rebentos
ao faminto leão que se posta rugindo à frente da sua caverna, recusando-se a
partir antes que lhe seja feita uma oferenda de paz.

Guenther relata que esse igualamento de boximane e animal tornou-se tão
arraigado que um grupo de colonos holandeses matou e comeu um boximane
durante uma expedição de caça, presumindo que ele fosse o equivalente africano
do orangotango malaio.
A monografia da dissecção de Saartjie, feita por Cuvier e publicada nas
Mémoires du Muséum d’Histoire Naturelle do ano de 1817, seguiu esse parecer
tradicional. Após discutir e rejeitar várias lendas infundadas, Cuvier prometeu
apresentar apenas os “fatos positivos” — inclusive esta descrição da vida de um
boximane:

Como são incapazes de se dedicar à agricultura, ou mesmo ao pastoreio, eles
subsistem inteiramente da caça e do furto. Moram em cavernas e cobrem-se
apenas com as peles dos animais que mataram. Sua única indústria consiste
no envenenamento das flechas e na manufatura de redes de pesca.

A sua descrição da própria Saartjie enfatiza todos os pontos de semelhança
superficial com qualquer macaco ou grande antropoide. (Mal preciso mencionar
que, como as pessoas variam tanto, cada grupo tem de estar mais próximo do
que outros de algum traço de um ou outro primata, sem que isso implique
qualquer coisa sobre genealogia ou capacidade.) Cuvier, por exemplo, discute o
achatamento dos ossos nasais de Saartjie: “Neste aspecto, nunca vi uma cabeça
humana mais semelhante à dos macacos.” Ele enfatiza várias proporções do
fêmur (osso superior da perna) como corporificando “caracteres de
animalidade”. Cuvier fala do crânio pequeno de Saartjie (o que não chega a ser
surpresa numa mulher com quatro pés e meio de altura) e a relega à estupidez
em conformidade com “aquela lei cruel, que parece ter condenado a uma
inferioridade eterna as raças com crânios pequenos e comprimidos”. Ele até
mesmo extrai uma série de reações supostamente simiescas do comportamento
dela: “Os seus movimentos tinham algo de brusco e caprichoso, que lembrava o
dos macacos. Ela tinha, acima de tudo, um modo de fazer beicinho da mesma
maneira que observamos os orangotangos fazerem.”
Contudo, uma leitura cuidadosa da monografia inteira desmente essas
interpretações, já que Cuvier afirma repetida vezes (embora não extraia
explicitamente nem uma moral, nem uma mensagem) que Saartjie era uma
mulher inteligente, com proporções gerais que não desagradariam connaisseurs.
De um modo algo descuidado, ele menciona, que Saartjie possuía uma excelente
memória, que falava holandês razoavelmente bem, tinha certo domínio do inglês
e estava aprendendo um pouco de francês quando morreu. (Nada mau para um
ser bruto enjaulado; eu gostaria muito que mais americanos conseguissem um
terço desse desempenho no seu domínio de línguas.) Cuvier admitiu que os
ombros de Saartjie, costas e peito “eram graciosos”, e, com a gentilesse da sua
raça, falou de sa main charmante (“sua mão encantadora”).
No entanto, o fascínio de Saartjie sobre europeus bem educados não se devia
apenas à sua condição racial. Ela não era apenas uma hotentote, ou a mulher
hotentote, mas a Vénus hotentote. Sob todas as palavras oficiais residia o grande
e, muitas vezes, não mencionado motivo da sua popularidade. As mulheres
Khoi-San com certeza exageraram duas características da sua anatomia sexual
(ou, pelo menos, de partes do corpo que excitam desejo sexual na maioria dos
homens). A Vénus hotentote conquistou a fama como um objeto sexual, e a sua
combinação de suposta bestialidade e fascinação lasciva concentrou a atenção de
homens que podiam obter desse modo prazer indireto e uma presunçosa
confirmação da sua superioridade.
Antes de mais nada — pois, como dizem, não há como não perceber —
Saartjie era, nas palavras de Altick, “esteatopigia ao extremo”. As mulheres
Khoi-San acumulam grandes quantidades de gordura nas nádegas, uma condição
denominada esteatopigia. As nádegas projetam-se bem para trás, muitas vezes
formando um cume na extremidade superior, descendo então em direção aos
órgãos genitais. Saartjie era especialmente bem dotada, o motivo provável para a
decisão de Cezar de convertê-la de empregada em mulher fatal. Saartjie cobria
os órgãos sexuais durante as exibições, mas a sua extremidade posterior era o
espetáculo, e ela se submeteu a um exame e a uma bisbilhotice intermináveis
durante cinco longos anos. Uma vez que as mulheres europeias não usavam
anquinhas na época, indicando pela roupa o que a natureza lhes dera, Saartjie
parecia ainda mais incrível.
Cuvier demonstrou compreender muito bem a natureza mista, bestial e
sexual, do fascínio de Saartjie, ao escrever que “todos puderam vê-la durante a
sua estada de dezoito meses na nossa capital e verificar a enorme protrusão das
suas nádegas e a aparência animalesca do seu rosto”. Na sua dissecção, Cuvier
concentrou-se sobre um mistério não resolvido que envolvia cada uma das suas
características incomuns. Por um bom tempo, os europeus haviam se perguntado
se as nádegas grandes eram gordurosas, musculosas ou talvez, até mesmo
sustentadas por um osso anteriormente desconhecido. O problema já fora
resolvido — em favor da gordura — por meio da observação externa, a razão
principal do seu desnudamento perante cientistas no Jardin du Roi. Ainda assim,
Cuvier dissecou-lhe as nádegas e relatou:

Pudemos verificar que a protuberância das suas nádegas nada tinha de
musculoso, mas era devida a uma massa gordurosa de uma consistência
trêmula e elástica, situada imediatamente sob a pele. Ela vibrava com todos
os movimentos feitos pela mulher.

No entanto, a segunda peculiaridade de Saartjie provocava curiosidade e
especulação ainda maiores entre os cientistas, e Saartjie alimentou ainda mais
esse interesse ao manter esta característica escrupulosamente oculta, recusando
até mesmo uma exibição no Jardin. Apenas depois da sua morte é que pôde ser
saciada a curiosidade da ciência.
Durante dois séculos haviam circulado relatos sobre uma espantosa estrutura
ligada diretamente aos órgãos genitais das mulheres Khoi-San, que lhes cobriria
os órgãos pudendos com um véu de pele, o chamado sinuspudoris, ou “cortina
do pudor”. (Caso me seja permitida uma breve excursão pelo domínio das
minúcias eruditas — as notas de rodapé da publicação acadêmica mais
convencional — gostaria de corrigir um erro padrão na tradução de Lineu, um
erro que eu mesmo cometi. Na sua descrição original do Homo sapiens, Lineu
apresentou um relato nada lisonjeiro sobre os negros africanos, o qual incluía a
expressão feminae sinus pudoris. Essa expressão tem sido traduzida como “as
mulheres não têm vergonha” — uma calúnia inteiramente compatível com a
descrição geral de Lineu. Em latim, “sem vergonha” seria sine pudore, não sinus
pudoris. Mas o latim científico do século XVIII era escrito de modo tão sofrível
que os erros de grafia e de casos não constituem um obstáculo para a intenção
real, e a interpretação de “sem vergonha” acabou por ser mantida. Lineu,
entretanto, estava apenas afirmando que as mulheres africanas possuem uma
saliência genital, ou sinus pudoris. Também estava errado, porque só as Khoi-
San e as mulheres de alguns povos aparentados desenvolvem essa característica).
A natureza do sinus pudoris havia gerado um debate intenso, com partidários
de ambos os lados afirmando ter o apoio de testemunhas oculares. Um partido
afirmava que o sinus era simplesmente uma parte aumentada dos órgãos genitais
comuns; outros diziam tratar-se de uma estrutura nova, não encontrada em
nenhuma outra raça. Alguns chegaram mesmo a descrever o chamado “avental
hotentote” como uma grande dobra de pele pendendo da própria porção inferior
do abdômen.
Cuvier estava determinado a solucionar essa antiga controvérsia; a condição
do sinus pudoris de Saartjie seria o objetivo principal da sua dissecção. Cuvier
iniciou a sua monografia observando: “Não há nada mais famoso na história
natural que o tablier (a tradução francesa de sinus pudoris) das hotentotes, e, ao
mesmo tempo, nenhuma característica tem sido objeto de tantas controvérsias.”
Cuvier resolveu a polêmica com a sua costumeira elegância: os labia minora, ou
lábios internos, dos órgãos femininos comuns são extremamente desenvolvidos
nas mulheres Khoi-San, e podem pender até três ou quatro polegadas abaixo da
vagina quando as mulheres estão de pé, causando assim a impressão de que se
trata de uma cortina de pele envoltória e separada. Cuvier preservou a sua
habilidosa dissecção dos órgãos de Saartjie e escreveu com um floreio: “Tenho a
honra de apresentar os órgãos genitais desta mulher, preparados de modo tal que
não restem dúvidas quanto à natureza do seu tablier.” E a dádiva de Cuvier
ainda repousa no seu frasco, esquecida numa prateleira do Musée de l’Homme
— logo acima do cérebro de Broca.
No entanto, ao mesmo tempo em que identificava corretamente a natureza do
tablier de Saartjie, ele incorria num erro interessante, resultado da mesma falsa
associação que inspirara o fascínio público por Saartjie — sexualidade e
animalidade. Como Cuvier considerava os hotentotes o mais bestial dos povos, e
como as suas mulheres tinham um tablier grande, ele presumiu que o tablier de
outras africanas devia tornar-se progressivamente menor à medida que a
escuridão da África meridional cedia lugar à claridade do Egito. (Na última parte
da sua monografia, Cuvier afirma que os egípcios antigos devem ter sido
plenamente caucasianos; quem mais poderia ter construído as pirâmides?).
Cuvier sabia que a circuncisão feminina era amplamente praticada na
Etiópia. Presumiu que o tablier devia ser, pelo menos, de tamanho médio entre
essas pessoas de tonalidade e geografia intermediárias, e conjecturou ainda que
os etíopes amputavam o tablier para facilitar o ato sexual, e não que a
circuncisão representasse um costume sustentado pelo poder e imposto a garotas
com órgãos notavelmente diferentes dos das mulheres europeias. “As negras da
Abissínia”, escreveu ele, “são importunadas a ponto de serem obrigadas a
destruir essas partes com faca e cauterização” (par le fer et par le feu, como
escreveu ele, em francês mais eufônico).
Cuvier também relatou uma história interessante que, repetida, não necessita
de comentários:

Os jesuítas portugueses, que converteram o rei da Abissínia e parte do seu
povo durante o século XVI, sentiram-se obrigados a proscrever essa prática
da circuncisão feminina por acharem que ela era remanescente do antigo
judaísmo daquela nação. Mas aconteceu que as garotas católicas não mais
conseguiam encontrar marido, porque os homens não eram capazes de se
reconciliar com uma deformidade tão repugnante. O Colégio da Propaganda
enviou um cirurgião para verificar o fato e, com base no seu relatório, o
restabelecimento do antigo costume foi autorizado pelo Papa.

Não tenho necessidade de sobrecarregá-lo com nenhuma refutação detalhada
dos argumentos gerais que fizeram de Vénus hotentote tamanha sensação. Mas,
ita verdade, acho engraçado que ela e o seu povo sejam, pelas convicções
modernas, tão singular e especialmente inadequados para o papel que ela foi
forçada a desempenhar.
Se os povos Khoi-San eram tidos pelos velhos cientistas como aproximações
dos primatas inferiores, eles agora se distinguem como os heróis dos
movimentos sociais modernos. As suas linguagens, com cliques complexos,
foram certa vez desprezadas como uma mixórdia gutural de sons animalescos.
São agora admiradas pela sua complexidade e sutileza de expressão. Cuvier
estigmatizara o estilo de vida de caça e extrativismo dos San (boximanes)
tradicionais como a degradação suprema de um povo estúpido e indolente
demais para se dedicar à agricultura ou à criação de gado. As mesmas pessoas
hoje se tornaram modelos de retidão para os modernos militantes ecologistas
devido à sua abordagem compreensiva, não exploratória e equilibrada dos
recursos naturais. É claro, com Guenther argumenta no seu artigo sobre a
imagem em mudança dos boximanes, pode ser que os nossos louvores modernos
também não sejam realistas. Ainda assim, se as pessoas têm de ser exploradas
em vez de compreendidas, imputações de bondade e heroísmo certamente são
melhores do que acusações de animalidade.
Além disso, enquanto os contemporâneos de Cuvier procuravam sinais
físicos de bestialidade na anatomia dos Khoi-San, os antropólogos agora
identificam essas pessoas como, talvez, o mais pedomórfico dos grupos
humanos. Os humanos evoluíram através de uma desaceleração geral das taxas
de desenvolvimento, deixando os nossos corpos adultos bastante semelhantes em
vários aspectos à forma juvenil, mas não à adulta, dos nossos ancestrais primatas
— um resultado evolutivo chamado pedomorfose, ou “conformação infantil”.
Por esse critério, quanto maior o grau da pedomorfose, maior a distância de um
passado simiesco (embora diferenças menores entre as raças humanas não sejam
equivalentes a variações de valor mental ou moral). Apesar de Cuvier ter
procurado com afinco sinais de animalidade nos movimentos dos lábios de
Saartjie ou na forma do osso da sua perna, o seu povo é, em geral, talvez o
menos simiesco de todos os humanos.
Por fim, a fundamentação lógica principal para a popularidade de Saartjie
repousava numa premissa falsa. Ela fascinou os europeus porque tinha nádegas e
órgãos sexuais grandes e porque pertencia supostamente ao mais atrasado dos
grupos humanos. Tudo se encaixava para os contemporâneos de Cuvier. Os
humanos avançados (leia-se europeus modernos) são refinados, recatados e
sexualmente contidos (além de hipócritas por terem a coragem de atribuir a si
mesmos tais qualidades). Os animais são aberta e ativamente lascivos, e assim
traem o seu caráter primitivo. Dessa maneira, os órgãos sexuais exagerados de
Saartjie testemunhavam a sua animalidade. Mas o argumento é, como dizem os
nossos amigos ingleses “arse about face” (expressão idiomática que significa,
aproximadamente, confundir “alhos com bugalhos” - N.T.). Os humanos são os mais
sexualmente ativos dos primatas, e os humanos possuem os maiores órgãos
sexuais da ordem. Caso tenhamos de seguir esta linha dúbia de argumentação,
uma pessoa com dotes acima da média é, se é que é alguma coisa, mais humana.
Sob todos os aspectos — modo de vida, aparência física e anatomia sexual
— Londres e Paris deveriam ter sido colocadas numa jaula gigantesca para que
Saartjie as olhasse. Ainda assim, Saartjie conquistou o seu triunfo póstumo.
Broca herdou não apenas o tablier de Saartjie preparado por Cuvier, mas
também o seu esqueleto. Em 1862, ele achou que havia encontrado um critério
para ordenar as raças humanas por mérito físico. Ele mediu a razão entre o rádio
(osso inferior do braço) e o úmero (osso superior do braço), raciocinando que
razões mais altas indicam antebraços maiores — uma característica tradicional
dos macacos. Começou a imaginar que a mediação objetiva havia confirmado
esse pré-julgamento quando obteve a média de .794 para os negros e de .739
para os brancos. Mas o esqueleto de Saartjie ofereceu .703 e Broca abandonou
prontamente o seu critério. Cuvier não havia elogiado o braço da Vénus
hotentote?
Saartjie continua hoje mantendo a sua vitória sobre o sr. Broca. O cérebro
dele se decompõe num frasco mal vedado. O tablier dela está colocado acima,
enquanto o seu bem preparado esqueleto olha para cima. A morte, como diz o
bom livro, é tragada pela vitória.

Pós-escrito

Como o determinismo biológico conquistou o seu prestígio com pretensões
espúrias de objetividade por meio da quantificação (ver meu livro, The
Mismeasure of Man), e como Saartjie Baartman deve a sua opressão a essa
doutrina política fantasiada de ciência, foi divertido descobrir que o próprio
Francis Galton, o principal apóstolo da quantificação (e da hereditariedade),
certa vez usou uma técnica engenhosa para medir o grau de esteatopigia de uma
mulher Khoi-San. Galton, o primo brilhante e excêntrico de Darwin, acreditava
que podia traduzir qualquer coisa em números. Certa vez, ele tentou quantificar a
distribuição geográfica da beleza feminina por meio do dúbio método
apresentado a seguir (tal como descrito na sua autobiografia, Memories of my
Life, 1909, pp. 315-316):

Sempre que tenho oportunidade de classificar as pessoas que encontro em
três classes, “boa, média, ruim”, uso uma agulha montada como um
perfurador, com o qual faço furos, sem ser visto, num pedaço de papel,
rasgado, grosso modo, na forma de uma cruz com um pé longo. Uso a
extremidade superior para “boa”, o braço da cruz para “média”, e a ponta
inferior para “ruim”. Os furos mantêm-se distintos e são decifrados
facilmente nas horas de ócio. O objeto, o lugar e a data são escritos no papel.
Usei esse plano para os meus dados de beleza, classificando as garotas por
quem eu passava nas ruas ou outros lugares como atraentes, comuns ou
repelentes. Trata-se, claro, de uma estimativa puramente pessoal, mas
coerente, a julgar pela conformidade das diferentes tentativas realizadas com
a mesma população. Descobri que Londres possuía a maior quantidade de
beleza, Aberdeen, a menor.

O seu judicioso método para a esteatopigia foi, na minha opinião, ainda mais
engenhoso (e provavelmente bem mais preciso, se todas aquelas provas de
trigonometria do colegial funcionam mesmo). Na sua Narration of an Explorer
in Tropical South África, ele escreve (meus agradecimentos a Raymond B. Hay
da Universidade de Washington por me enviar esta passagem):

O subintérprete era casado com uma pessoa encantadora, não apenas uma
hotentote na aparência, mas, nesse aspecto, uma Vénus entre os hotentotes.
Fiquei perfeitamente estupefato diante do seu desenvolvimento, e fiz
indagações a respeito desse delicado ponto tanto quanto me atrevi junto aos
meus amigos missionários. ... Professo ser um homem científico, e estava por
demais ansioso para obter medidas exatas da sua forma; mas havia uma
dificuldade para fazê-lo. Eu não sabia uma palavra de hotentote e, portanto,
nunca poderia explicar à dama qual poderia ser o objeto da minha bitola; e,
realmente, eu não me atrevia a pedir ao meu digno missionário que atuasse
como meu intérprete. Portanto, estava num dilema, enquanto contemplava a
sua forma, aquela dádiva da generosa natureza a essa raça exuberante, que
um fabricante de mantôs, com todas as suas crinolinas e enchimentos, pode
apenas humildemente imitar. O objeto da minha admiração estava de pé sob
uma árvore, voltando-se para todos os pontos cardeais, como geralmente
fazem as damas que desejam ser admiradas. Súbito, o meu olhar pousou
sobre o sextante; ocorreu-me a brilhante ideia, e eu extraí uma série de
observações da sua figura, em todas as direções, de cima para baixo,
transversalmente, diagonalmente, e assim por diante, registrando-as com
todo o cuidado num esboço da sua imagem para que não houvesse nenhum
erro; feito isso, corajosamente saquei a minha fita métrica e medi a distância
de onde eu estava até o lugar onde ela sê encontrava, calculando os
resultados por meio de trigonometria e logaritmos.


A própria Saartjie Baartman continua a nos fascinar através dos tempos; a
exploração a seu respeito, de fato, nunca terminou. Numa loja de antiguidades de
Johannesburgo (ver ensaio 12), encontrei e comprei a notável estampa apresentada a
seguir. (Ainda não consigo vê-la sem um arrepio, apesar do efeito humorístico
pretendido, e reproduzo-a aqui na condição de um comentário sobre a história e
a realidade presente que não nos atrevemos a ignorar.) A gravura é um
comentário satírico francês (publicado em Paris no ano de 1812) sobre a
fascinação dos ingleses pela exibição de Saartjie. Intitula-se: Les curieux en
extase, ou les cordons de souliers (Os curiosos em êxtase, ou os cordões de
sapato). Os espectadores concentram-se inteiramente sobre as características
sexuais da Vénus hotentote. Um cavalheiro fardado observa a esteatopigia de
trás e comenta: “Oh! godem quel rosbif”. O segundo homem de uniforme e a
senhora elegantemente trajada estão tentando dar uma espiada no tablier de
Saartjie. (Este é o detalhe sutil que um observador não informado não
perceberia. Saartjie exibia as nádegas mas, seguindo os costumes do seu povo,
nunca descobria o tablier.) O homem exclama “como é estranha a natureza”,
enquanto a mulher, com esperanças de obter uma vista melhor de baixo, inclina-
se a pretexto de amarrar os cordões dos sapatos (daí o título). Enquanto isso, o
cão nos lembra que, sob os nossos diversos trajes, somos todos o mesmo objeto
biológico.
Para atualizar a exploração, W. B. Deatrick enviou-me a capa da revista
francesa Photo de maio de 1982. Ela mostra uma mulher nua que se
autodenomina “Carolina, la Vénus hottentote de Saint-Domingue”. Ela segura à
sua frente uma garrafa destampada de champanhe. A espuma passa voando por
cima da sua cabeça, atravessa a letra O do título da revista, cai por trás dela,
diretamente no copo, o qual se encontra sobre as nádegas espichadas da jovem,
que se abaixa (para imitar os dotes de Saartjie).

20. A filha de Carrie Buck




O Senhor foi sem dúvida bastante claro naquele protótipo de todas as
prescrições, os Dez Mandamentos:

... eu sou o Senhor teu Deus, forte e zeloso, que vinga a iniquidade dos pais
nos filhos até a terceira e a quarta geração daqueles que me odeiam.
(Ex. 20:5)

O terror desta declaração reside na sua evidente injustiça — a sua promessa
de punir a prole inocente pelos pecados dos seus distantes ancestrais.
Uma forma diferente de culpa por associação genealógica tenta remover esse
estigma de injustiça negando uma premissa cara ao pensamento ocidental — o
livre-arbítrio humano. Se a prole estiver maculada, não apenas pelos atos dos
seus pais, mas por alguma forma concreta de mal, transferida diretamente por
meio de herança biológica, então a “iniquidade dos pais” torna-se um sinal ou
advertência contra a provável má conduta dos seus filhos. Assim, Platão, ao
mesmo tempo em que negava que os filhos devessem sofrer diretamente pelos
crimes dos pais, defendia, não obstante, o exílio de um homem pessoalmente
inocente, mas cujo pai, avô e bisavô houvessem todos sido condenados à morte.
Talvez seja uma simples coincidência o fato de que tanto Jeová quanto
Platão tenham escolhido três gerações como critério para estabelecer diferentes
formas de culpa por associação. No entanto, nós conservamos uma forte tradição
popular, ou vulgar, de encarar ocorrências triplas como provas mínimas de
regularidade. Coisas ruins, como nos dizem, vêm em três. Duas podem
representar uma associação acidental; três formam um padrão. Talvez, então,
não devêssemos nos admirar de que o mais famoso pronunciamento de culpa por
parentesco do nosso século tenha empregado o mesmo critério — a defesa de
Oliver Wendell Holmes da esterilização compulsória no Estado de Virgínia
(decisão da Suprema Corte, de 1927, no caso Buck versus Bell): “três gerações
de imbecis são suficientes”.
Restrições à imigração, com quotas nacionais estabelecidas como
discriminação contra os considerados mentalmente inaptos de acordo com as
primeiras versões dos testes de QI, marcaram o maior triunfo do movimento
americano de eugenia — a imperfeita doutrina de hereditariedade, tão popular no
início do nosso século e, absolutamente, não desaparecida hoje (ver ensaio
seguinte), que tentava “melhorar” o nosso plantei humano impelindo a
propagação dos que eram considerados biologicamente inadequados e
encorajando a procriação entre os supostamente adequados. Mas o movimento
para decretar e fazer executar leis de esterilização “eugênica” compulsória
tiveram um impacto e um sucesso quase que igualmente pronunciados. Se
podíamos fechar as nossas praias aos ineptos e estúpidos, podíamos também
impedir a propagação dos que eram afligidos de modo semelhante, mas que já
estavam aqui.
O movimento pela esterilização compulsória começou de verdade durante a
década de 1890, favorecido por dois fatores principais — a ascensão da eugenia
como movimento político influente e o aperfeiçoamento de operações seguras e
simples (a vasectomia nos homens, e a salpingectomia, o corte e amarramento
das trompas de Falópio, nas mulheres) para substituir a castração e outras formas
socialmente inaceitáveis de mutilação. O Estado de Indiana aprovou a primeira
lei de esterilização baseada em princípios de eugenia em 1907 (alguns Estados
haviam ordenado a castração antes, como medida punitiva contra certos crimes
sexuais, embora tais leis fossem executadas raras vezes sendo em geral
derrubadas pela revisão judicial). Como tantas outras que viriam a seguir, ela
previa a esterilização de pessoas afetadas que vivessem do “cuidado” do Estado,
fosse como internos de hospitais para dementes e asilos para débeis mentais,
fosse como habitantes de prisões. A esterilização podia ser imposta aos que
fossem julgados loucos, idiotas, imbecis ou mentecaptos, e a estupradores ou
criminosos condenados, quando tal fosse recomendado por um conselho de
especialistas.
Na década de 1930, mais de trinta Estados haviam decretado leis
semelhantes, muitas vezes com uma lista aumentada de, como eram chamados,
defeitos hereditários, que incluía o alcoolismo e o vício em drogas em alguns
Estados, e até mesmo a cegueira e a surdez em outros. Na maioria dos Estados
essas leis foram desafiadas continuamente e executadas raras vezes; apenas a
Califórnia e a Virgínia as aplicaram com zelo. Em janeiro de 1935, cerca de
20.000 esterilizações “eugênicas” forçadas haviam sido feitas nos Estados
Unidos, quase a metade delas na Califórnia.
Nenhuma organização lutou tão clamorosamente e com tanto sucesso por
essas leis como o Eugenics Record Office, o braço semioficial e repositório de
dados do movimento americano pela eugenia. Harry Laughlin, superintendente
do Eugenics Record Office, dedicou a maiorparte da sua carreira a uma
campanha incansável de escritos e pressão política a favor da esterilização
eugênica. Com isso, ele tinha esperanças de eliminar em duas gerações os genes
do que ele chamava o “décimo submerso” — “a décima parte mais inútil da
nossa atual população”. Ele propôs em 1922 uma “lei-modelo de esterilização”,
com o fim de

impedir a procriação de pessoas socialmente inadequadas devido a herança
defeituosa, autorizando e provendo a esterilização eugênica de certos pais
potenciais com qualidades hereditárias degeneradas.


Esse projeto de lei modelo tornou-se o protótipo da maioria das leis
decretadas nos Estados Unidos, embora poucos Estados as fizessem tão
abrangentes quanto Laughlin aconselhara. (As categorias de Laughlin incluíam
“cegos, inclusive os indivíduos com visão seriamente debilitada; surdos,
inclusive os indivíduos com audição seriamente debilitada; e dependentes,
inclusive órfãos, inúteis, desabrigados, vagabundos e mendigos”.) As sugestões
de Laughlin foram melhor observadas na Alemanha nazista, onde a sua lei-
modelo inspirou o infame e rigorosamente executado Erbgesundheitsrecht, que,
às vésperas da Segunda Guerra Mundial havia levado à esterilização forçada
cerca de 375.000 pessoas, a maioria por “debilidade mental congênita”, mas
incluindo quase 4.000 por cegueira e surdez.
A campanha nos Estados Unidos pela esterilização eugênica compulsória
alcançou o clímax e o auge da respeitabilidade em 1927, quando a Suprema
Corte, por uma votação de 8 a 1, sustentou a lei de esterilização no Estado de
Virgínia no caso Buck versus Bell. Oliver Wendell Holmes, então com seus
oitenta e poucos anos, o mais famoso juiz dos Estados Unidos, escreveu a
opinião da maioria com a costumeira verve e força de estilo. Ela incluía o
notório parágrafo, com a sua arrepiante frase-chave, desde então citada como a
expressão consumada do princípio eugênico. Relembrando com orgulho as suas
experiências distantes como soldado de infantaria na Guerra Civil, Holmes
escreveu:

Vimos em mais de uma ocasião que o bem-estar público pode pedir a vida
dos seus melhores cidadãos. Seria estranho se não pudesse pedir estes
sacrifícios menores àqueles que já sugam a força do Estado. ... Seria melhor
para todo o mundo, se, em vez de esperarmos para executar por causa de
crime a prole degenerada, ou deixar que ela morra de fome por causa da
imbecilidade, a sociedade pudesse impedir de propagar a sua espécie, os que
são manifestamente incapacitados. O princípio que sustenta a vacinação
compulsória é bastante abrangente para incluir o corte das trompas de
Falópio. Três gerações de imbecis são suficientes.

Quem foram, então, as famosas “três gerações de imbecis”, e por que ainda
deveriam arrebatar o nosso interesse?
Quando o Estado de Virgínia decretou a sua lei de esterilização compulsória
em 1924, Carrie Buck, uma mulher branca, de dezoito anos, vivia como
residente involuntária da Colônia Estadual para Epilépticos e Deficientes
Mentais. Na condição de primeira pessoa selecionada para a esterilização pela
nova lei, Carrie Buck tornou-se o foco de um desafio constitucional lançado, em
parte, pelos conservadores Cristãos da Virgínia, os quais sustentavam, segundo
os modernistas eugênicos, pareceres “antiquados” sobre preferências individuais
e o poder estatal “benevolente”. (Rótulos políticos simplistas não são adequados
neste caso e, diga-se de passagem, raramente o são. Costumamos considerar a
eugenia como um movimento conservador e os seus críticos mais ruidosos como
membros da esquerda. Esse alinhamento tem sido geralmente válido na nossa
década. Mas a eugenia, aclamada na sua época como a última palavra em
modernismo científico, atraiu muitos liberais e, dentre os seus críticos mais
ferozes, contava com grupos muitas vezes catalogados como reacionários e anti-
científicos. Se alguma lição política emerge dessas alianças oscilantes,
poderíamos considerá-la como sendo a inalienabilidade genuína de certos
direitos humanos.)
Mas por que Carrie Buck estava na Colônia Estadual e por que ela foi
selecionada? Oliver Wendell Holmes defendeu a escolha como sensata nas
linhas iniciais do seu parecer de 1927:

Carrie Buck é uma mulher branca, débil mental, que foi posta sob a custódia
da Colônia Estadual. ... Ela é filha de uma mãe débil mental da mesma
instituição, e mãe de uma filha débil mental ilegítima.

Em resumo, a herança colocava-se como questão crucial (na verdade, como a
força propulsora por trás de toda a eugenia). Pois, se a deficiência mental medida
surgisse da má nutrição, do corpo ou do espírito, e não de genes maculados,
como poderia ser justificada a esterilização? Se alimentação, criação, cuidado
médico e educação decentes pudessem fazer da filha de Carrie Buck uma cidadã
digna, como o Estado de Virgínia poderia justificar o corte das trompas de
Falópio de Carrie contra a sua vontade? (Algumas formas de deficiência mental
são transmitidas por herança em linhas familiares, mas a maior parte delas não
— uma conclusão pouco surpreendente quando consideramos os milhares de
choques que nos perseguem a todos durante as nossas vidas, de anomalias no
desenvolvimento embriológico até
traumas de nascimento, má nutrição, rejeição e pobreza. De qualquer modo,
nenhuma pessoa com mentalidade justa daria crédito aos critérios sociais de
Laughlin para a identificação de deficiências hereditárias — inúteis,
desabrigados, vagabundos e mendigos — embora, como em breve veremos,
Carrie Buck tenhá sido condenada com base nesses fundamentos).
Quando o caso de Carrie Buck surgiu na condição de prova crucial para a lei
do Estado de Virgínia, os chefões da eugenia compreenderam que havia chegado
a hora de falar ou calar sobre a questão crucial da herança. Assim, o Eugenics
Record Office enviou Arthur H. Estabrook, o seu “grande” pesquisador de
campo, até a Virgínia, para um estudo “científico” do caso. O próprio Harry
Laughlin prestou um depoimento, e a sua súmula a favor da herança foi
apresentada no julgamento local que confirmou a lei da Virgínia e que
posteriormente conseguiu chegar à Suprema Corte como o caso Buck versus
Bell.
Laughlin insistiu em dois temas importantes perante o tribunal. Primeiro, o
de que Carrie Buck e a sua mãe, Emma Buck, eram débeis mentais segundo o
teste de QI de Stanford-Binet, o qual, na época, encontrava-se na sua infância.
Carrie conseguia a marca de uma idade mental de nove anos, Emma, de sete
anos e onze meses. (Esses números classificavam-nas tecnicamente como
“imbecis”, segundo as definições da época, daí a posterior escolha de palavras de
Holmes — embora a sua infame frase seja muitas vezes citada erroneamente
como “três gerações de idiotas”. Para completar a antiga nomenclatura da
deficiência mental, os imbecis exibiam uma idade mental de seis a nove anos; os
idiotas saíam-se pior e os mentecaptos, melhor). O segundo, de que a maior parte
dos tipos de deficiência mental reside ineluta-velmente nos genes, e de que o
caso de Carrie Buck situava-se com certeza dentre dessa maioria. Laughlin
relatou:

A deficiência mental geralmente é causada pela herança de qualidades
degeneradas, mas às vezes pode ser causada por fatores ambientais que não
são hereditários. No caso dado, há indícios muito fortes de que a deficiência
mental e a delinquência moral de Carrie Buck devem-se, antes de mais nada,
à herança e não ao ambiente.

A filha de Carrie Buck era então, e tem sido sempre, a figura central desse
doloroso caso. Observei no início deste ensaio que nos inclinamos (muitas vezes
em risco próprio) a considerar duas ocorrências como um acidente potencial e
três como um padrão estabelecido. A suposta imbecilidade de Emma e Carrie
poderia ter sido uma coincidência infeliz, mas o diagnóstico de uma deficiência
semelhante em Vivian Buck (feito por uma assistente social, como veremos,
quando Yivian tinha apenas seis meses) inclinou a balança a favor de Laughlin e
levou Holmes a declarar a linhagem de Buck inerentemente corrupta por causa
de herança deficiente. Yivian selava o padrão — três gerações de imbecis são
suficientes. Além disso, se Carrie não tivesse Vivian ilegitimamente, nada teria
vindo à luz (em duplo sentido).
Oliver Wendell Holmes encarou o seu trabalho com orgulho. O homem tão
famoso pelo seu princípio de comedimento judiciário, que proclamara que a
liberdade não devia ser restringida sem “perigo nítido e presente” — sem o
equivalente de gritar “fogo” num teatro lotado, quando não há fogo — escreveu
sobre o seu julgamento em Buck versus Bell: “Senti que estava próximo do
primeiro princípio de reforma real.”
E assim Buck versus Bell permaneceu por cinquenta anos uma nota de
rodapé de um momento da história americana que talvez fosse melhor esquecer.
Então, em 1980, ele ressurgiu para espetar a nossa consciência coletiva, quando
o dr. K. Ray Nelson, então diretor do Lynchburg Hospital, onde Carrie Buck
fora esterilizada, pesquisou os registros da instituição e descobriu que 4.000
esterilizações haviam sido executadas, a última em 1972. Ele também encontrou
Carrie Buck, viva e passando bem, perto de Charlottesville, além de sua irmã,
Doris, esterilizada dissimuladamente com base na mesma lei (disseram-lhe que
se tratava de uma operação de apendicite), agora, com uma dignidade feroz,
arrasada e amarga porque queria um filho mais do que qualquer outra coisa na
vida e finalmente descobrira, na velhice, por que nunca havia concebido.
À medida que especialistas e repórteres visitavam Carrie Buck e a irmã, o
que alguns poucos especialistas sabiam o tempo todo tomou-se fartamente claro
para todos. Carrie Buck era uma mulher de inteligência obviamente normal. Por
exemplo, Paul A. Lombar do, da Faculdade de Direito da Universidade de
Virgínia, e um dos maiores conhecedores do caso Buck v. Bell, escreveu, numa
carta dirigida a mim:

Quanto a Carrie, quando a encontrei, ela lia jornais diariamente e reunia-se
com uma amiga mais instruída para que ela a ajudasse nas pelejas regulares
com as palavras cruzadas. Não era uma mulher refinada e faltava-lhe o
requinte social, mas os profissionais de saúde mental que a examinaram
posteriormente confirmaram a minha impressão de que ela não era
mentalmente enferma ou retardada.

Então, com base em que indícios Carrie Buck foi confiada à Colônia
Estadual para Epilépticos e Deficientes Mentais em 23 de janeiro de 1924? Vi o
texto da audiência de internamento; ele é, no mínimo, superficial e contraditório.
Além da autoridade dos pais adotivos, nua e sem documentação, e de uma rápida
apresentação perante uma comissão de dois médicos e um juiz de paz, nenhuma
prova foi apresentada. Nem mesmo o tosco e ainda jovem teste Stanford-Binet,
tão fatalmente inadequado como medida de valor inato (ver meu livro, The
Mismeasure of Man, embora os indícios do caso de Buck sejam suficientes) fora
aplicado.
Quando entendermos por que Carrie Buck chegou a ser internada em 1924,
conseguiremos finalmente compreender o significado oculto do seu caso e a sua
mensagem para nós hoje. A solução silenciosa é, mais uma vez, como foi desde
o início, sua filha, Vivian, nascida em 28 de março de 1924, e, na época, apenas
uma saliência evidente na sua barriga. Carrie Buck foi uma dentre os vários
filhos ilegítimos que sua mãe, Emma Buck, deu à luz. Ela cresceu com pais
adotivos, J. T. e Alice Dobbs, e continuou morando com eles quando adulta,
ajudando nos serviços de casa. Foi violentada por um parente dos pais adotivos e
depois culpada pela gravidez resultante. Quase que com certeza, ela veio a ser
(como costumavam dizer) internada para esconder a sua vergonha (e a
identidade do estuprador), não porque a ciência esclarecida acabava de descobrir
o seu verdadeiro estado mental. Em resumo, ela foi mandada embora para ter o
filho. O seu caso nunca foi de deficiência mental; Carrie Buck foi perseguida por
suposta imoralidade sexual e comportamento social divergente. Os anais do
julgamento e da audiência têm o fedor do orgulho dos bem de vida e bem
criados pelas pessoas pobres de “moral frouxa’’. Ninguém iria mesmo se
importar em saber se Vivian era ou não um bebê de inteligência normal; ela era
filha ilegítima de uma filha ilegítima. Duas gerações de bastardos são
suficientes. Harry Laughlin iniciou a “história de família” dos Buck escrevendo:
“Estas pessoas pertencem à classe inepta, ignorante e inútil de brancos
antissociais do sul.”
Pouco sabemos sobre Emma Buck e sua vida, mas não temos maiores
motivos para suspeitar da sua deficiência mental bem como da de sua filha
Carrie. O suposto desvio de ambas foi social e sexual; a acusação de
imbecilidade veio a ser apenas um disfarce, o sr. juiz Holmes não obstante.
Chegamos então ao ponto crucial do caso, a filha de Carrie, Vivian. Que
indícios foram apresentados para provar a sua deficiência mental? Este e apenas
este: no julgamento original, no fim de 1924, quando Vivian Buck tinha sete
meses, uma certa srta. Wilhelm, assistente social da Cruz Vermelha, compareceu
perante o tribunal. Ela começou por declarar honestamente o verdadeiro motivo
para o internamento de Carrie Buck:

O senhor Dobbs, que tinha a guarda da jovem, tendo-a acolhido ainda
pequena, havia contado à srta. Duke [secretária temporária do Bem-Estar
Público da Comarca de Albemarle] que a jovem estava grávida e que ele
queria que fosse internada em algum lugar — que fosse enviada para alguma
instituição.

A srta. Wilhelm forneceu então o seu julgamento sobre Vivian Buck
comparando-a com a neta normal da sra. Dobbs, nascida apenas três dias antes:

É difícil julgar as probabilidades de uma criança tão jovem quanto essa, mas
ela não me parece um bebê inteiramente normal. Na aparência — devo dizer
que talvez o meu conhecimento da mãe possa me tornar preconceituosa
nesse aspecto, mas eu vi a criança na mesma época em que vi o bebê da filha
da sra. Dobbs, que é apenas três dias mais velha do que essa, e existe uma
diferença indiscutível no desenvolvimento dos bebês. Isso foi há, mais ou
menos, duas semanas. Existe algo nela que não é inteiramente normal, mas
exatamente o que é, eu não sei dizer.

Este breve depoimento, e nada mais, constituiu toda a prova para a crucial
terceira geração de imbecis. Um novo interrogatório revelou que nem Vivian
nem a neta dos Dobbs sabia andar ou falar, e que o bebê da “sra. Dobbs é uma
menina bastante receptiva. Quando você brinca com ela ou tenta atrair a sua
atenção — é um bebê com quem se pode brincar. A outra não. Ela parece
bastante apática e bem pouco receptiva”. A srta. Whilhelm então instigou a
esterilização de Carrie Buck: “Eu acho”, disse ela, “que isso pelo menos
impediria a propagação dos da sua espécie.” Vários anos depois, a srta.
Whilhelm negou que houvesse examinado Vivian ou que houvesse considerado
a criança débil mental.
Infelizmente, Vivian morreu com oito anos de “enterocolite” (tal como
registrado no certificado de óbito), um diagnóstico ambíguo que pode significar
muitas coisas, mas que pode muito bem indicar que ela foi vítima de uma das
doenças infantis evitáveis, derivadas da pobreza (um desagradável lembrete da
verdadeira questão em Buck versus Bell). Ela está, portanto, emudecida como
testemunha na nossa reavaliação do famoso caso.
Quando Buck versus Bell voltou à tona em 1980, ocorreu-me imediatamente
que o caso de Vivian era de extrema importância, e que os indícios quanto à
condição mental de uma criança morta aos oito anos poderiam ser encontrados
em boletins escolares. Portanto, nos últimos quatro anos, saí em busca dos
registros escolares de Vivian Buck e finalmente consegui. (Eles me foram
fornecidos pelo dr. Paul A. Lombardo, que também me enviou outros
documentos, inclusive o depoimento da srta. Wilhelm, e que gastou horas
respondendo às minhas perguntas por carta, e Deus sabe quanto tempo bancando
o detetive bem-sucedido no que se refere aos registros escolares de Vivian.
Nunca conheci o dr. Lombardo; ele fez todo o trabalho por gentileza, espírito
acadêmico e amor ao jogo do conhecimento, não na expectativa de recompensa
ou mesmo por reconhecimento. Numa profissão — a acadêmica — tantas vezes
prejudicada por banalidades e brigas tolas por causa de prioridades sem sentido,
essa generosidade deve ser registrada e celebrada como um sinal de como as
coisas podem e deveriam ser.)
Vivian Buck foi adotada pela família Dobbs, que havia criado (mas depois
mandado embora) sua mãe, Carrie. Com o nome de Vivian Alice Elaine Dobbs,
ela frequentou a Venable Public Elementary School de Charlottesville durante
quatro períodos, de setembro de 1930 até maio de 1932, um mês antes da sua
morte. Foi uma estudante perfeitamente normal, inteiramente dentro da média,
nem particularmente destacada, nem muito problemática. Naqueles dias, antes da
inflação das notas, quando C queria dizer “bom, 81-87” (tal como definido no
boletim) e não apenas aprovado “raspando”, Vivian Dobbs recebeu A e B por
comportamento e C em todas as matérias acadêmicas, menos matemática (que
sempre foi difícil para ela, e na qual tirou D) durante o seu primeiro período, na
série IA, de setembro de 1930 a janeiro de 1931. Ela progrediu durante o
segundo período, na série 1B, merecendo um A em comportamento, C em
matemática e B em todas as outras matérias acadêmicas; foi colocada na lista de
louvor em abril de 1931. Promovida para a 2A, teve problemas durante o
período de outono de 1931, sendo reprovada em matemática e ortografia, mas
recebendo A em comportamento, B em leitura e C em composição e inglês. Foi
“retida na 2A” pelo período seguinte — ou “repetiu”, como costumávamos
dizer, algo que, quando me lembro de todos os meus camaradas que tiveram o
mesmo destino, dificilmente pode ser caracterizado como sinal de imbecilidade.
De qualquer modo, ela mais uma vez se saiu bem no período final, com B em
comportamento, leitura e ortografia, e C em composição, inglês e matemática
durante o seu último mês na escola. Essa filha de mulheres “lascivas e imorais”
teve comportamento excelente e um desempenho adequado, ainda que não
brilhante, nas matérias acadêmicas.


Em resumo, só podemos concordar com a conclusão a que o dr. Lombardo
chegou na sua pesquisa sobre Buck versus Bell — não havia imbecis, uma que
fosse, nas três gerações dos Buck. Sei que tais correções de erros passados, mas
esquecidos da história, não valem grande coisa; no entanto, acho simbólico e
satisfatório descobrir que a esterilização eugênica compulsória, um
procedimento de moralidade tão dúbia, tenha conseguido a sua justificação (e
ganho a sua frase retórica mais citada) fundamentando-se numa falsidade
patente.
Carrie Buck morreu no ano passado. Por um capricho do destino, e não por
lembrança ou propósito, ela foi enterrada a apenas alguns passos do túmulo de
sua única filha. No enésimo e definitivo verso de uma velha balada favorita, uma
rosa e uma sarça — o doce e o amargo — emergem das tumbas de Barbara Allen
e de seu amante, entrelaçando-se na união da morte. Que Carrie e Vivian,
vítimas de modo diferentes, na flor da idade, descansem em paz juntas.

21. O patrimônio (e o matrimônio) de Cingapura




Alguns argumentos históricos são tão intrinsecamente ilógicos ou
implausíveis que, após caírem em descrédito, não prevemos nenhuma espécie de
ressureição subsequente em tempos e contextos posteriores. O desaparecimento
de algumas ideias deveria ser tão irrevogável quanto a extinção das espécies.
De todas as noções inválidas da eugenia — a tentativa de “melhorar” as
qualidades humanas por meio de cruzamentos seletivos — nenhuma me parece
tão tola ou egoísta quanto a tentativa de inferir a “inteligência” intrínseca, de
base genética, das pessoas, a partir do número de anos em que elas freqüentaram
a escola. Gente burra, como dizia o argumento, simplesmente não dá certo na
sala de aula; elas abandonam a educação formal tão logo é possível. A falácia,
claro, encontra-se na mistura, mais exatamente na inversão, de causa e efeito.
Não negamos que os adultos que nos impressionam como inteligentes em geral
(mas não sempre, em absoluto) pasSaram vários anos na escola. Mas o bom
senso obriga-nos a reconhecer que boa parte das suas realizações é resultado do
próprio ensino e do aprendizado (e dos meios ambientes econômicos e
intelectuais favoráveis que permitem o luxo da educação avançada), e não de um
patrimônio genético que os manteve nos bancos escolares. A menos que a
educação seja uma monumental perda de tempo, os professores devem transmitir
e os alunos receber algo de valor.
Essa explicação invertida faz tanto sentido que mesmo os mais firmes
adeptos da eugenia abandonaram a versão genética original há muito tempo. O
argumento genético foi bastante popular desde o início das avaliações de QI no
começo do século até meados da década de 1920, mas quase não encontro
referências a ele desde então — em-bra Cyril Burt, aquele grande farsante e
desacreditado líder veterano dos adeptos da hereditariedade, tenha mesmo
escrito em 1947:
É impossível um jarro de um quartilho conter mais de um quartilho de leite;
e é igualmente impossível que as conquistas educacionais de uma criança sejam
mais altas do que permite a sua capacidade de ser educada.
No meu exemplo favorito da versão genética original, o psicólogo de
Harvard, R. M. Yerkes, submeteu a testes quase dois milhões de recrutas para o
seu exército durante a Primeira Guerra Mundial e calculou um coeficiente de
correlação de 0,75 entre inteligência medida e anos de escolaridade. Ele
concluiu:

A teoria de que a inteligência inata é um dos fatores condicionantes de maior
importância na permanência na escola é sem dúvida sustentada por esta
coleta de dados.

Yerkes notou então uma correlação adicional entre as marcas baixas obtidas
pelos negros nos testes e a escolaridade limitada ou inexistente. Ele parecia
prestes a fazer uma observação social significativa ao escrever:

Os recrutas negros, embora criados neste país, onde a educação elementar
supostamente é não apenas gratuita, mas também compulsória, revelam
ausência de escolaridade numa proporção notavelmente grande.

Mas ele imprimiu aos dados a costumeira distorção genética, argumentando
que uma falta de inclinação para frequentar a escola só podia refletir uma falta
inata de inteligência. Ele não disse nem uma palavra sobre a má qualidade (e os
maus orçamentos) das escolas segregadas ou sobre a necessidade prematura de
emprego remunerado entre os pobres. (Ashley Montagu reexaminou os
volumosos dados de Yerkes vinte anos depois e, numa famosa dissertação,
demonstrou que os negros de vários Estados nortistas, com orçamentos escolares
generosos e compromissos firmes com a educação, se saíram melhor nos testes
de que os brancos sulistas com o mesmo tempo de escolaridade. Quase pude
ouvir os eugenistas da velha guarda resmungando nas suas covas: “Sim, mas, só
os pretos mais inteligentes foram espertos o suficiente para se mudar para o
norte”).
De qualquer modo, nunca esperei que a argumentação de Yerkes fosse
ressuscitada como arma da hereditariedade no contínuo debate sobre a
inteligência humana. Eu estava errado. A reencarnação é particularmente curiosa
porque vem de um local e de uma cultura muito distantes do contexto original
dos testes de QI da Europa ocidental e dos Estados Unidos. Isso deveria nos
ensinar que os debates entre acadêmicos nem sempre são exibições impotentes
de uma misteriosa ginástica mental, como são muitas vezes retratados nas nossas
sátiras e estereótipos, mas que as ideias podem ter consequências sociais
importantes, com impactos sobre as vidas de milhões de pessoas. Noções antigas
podem ressurgir mais tarde, muitas vezes em contextos curiosamente alterados,
mas a sua fonte ainda pode ser reconhecida e remontada a asserções feitas em
nome da ciência e que, no entanto, nunca tiveram outro fundamento real que não
os preconceitos sociais (com frequência negados) dos seus propositores. As
ideias têm importância de modo tangível.
Recebi recentemente de alguns amigos de Cingapura um grosso pacote de
reportagens xerocadas da imprensa de língua inglesa da sua nação. Essas páginas
cobriam um debate que vem sacudindo o país desde agosto de 1983, quando, no
seu discurso do Dia Nacional (pelo que entendi, um equivalente da mensagem
State of union nos Estados Unidos), o primeiro-ministro Lee Kwan Yew
abandonou o costumeiro relato de perspectivas econômicas e progresso e, ao
contrário, devotou as suas observações ao que ele considera o grande perigo que
ameaça a nação. A manchete do dia 15 de agosto do Straits Times (Cingapura já
foi a cidade principal de uma colônia britânica chamada Straits Settlement) diz:
“Amarre-se... e não pare no primeiro. PM prevê o esgotamento da fonte de
talento em 25 anos, a menos que os mais instruídos se casem e tenham mais
filhos.”
O primeiro-ministro Lee havia estudado os números do recenseamento de
1980 e encontrado uma relação perturbadora entre os anos que as mulheres
passam na escola e o número de filhos nascidos depois. Especificamente, o sr.
Lee percebeu que as mulheres sem instrução têm, em média, 3,5 filhos; as com
educação primária, 2,7; as com escolaridade secundária, 2,0; e as com diplomas
universitários, apenas 1,65. Ele afirmou:

Quanto mais instruídas são as pessoas, menos filhos elas têm. Elas
conseguem perceber as vantagens de uma família pequena. Elas sabem como
é duro criar uma família grande. ... Quanto mais instruída a mulher, menos
filhos ela tem.

Até aí, é claro, o primeiro-ministro Lee apenas observou na sua nação um
padrão demográfico comum a quase todas as sociedades tecnológicas modernas.
Mulheres com títulos superiores e carreiras interessantes não querem passar a
vida em casa tendo filhos e criando famílias grandes. O sr. Lee reconheceu:

Já é tarde demais para revertermos a nossa política e fazer com que as nossas
mulheres voltem ao papel primário de mães. ... Nossas mulheres não
aceitarão isso. E, de qualquer modo, elas já se tornaram um fator muito
importante na nossa economia.

Mas por que esse padrão é perturbador? Ele existe há gerações em vários
países, o nosso, por exemplo, sem nenhum detrimento aparente para as nossas
reservas mentais ou morais. A correlação da educação com uma quantidade
menor de filhos torna-se um dilema apenas quando nela se instila o velho e
desacreditado argumento de Yer-kes de que pessoas com menos anos de
escolaridade são irreversível e biologicamente menos inteligentes, e que a sua
estupidez será herdada pela prole. O sr. Lee propôs justamente esse argumento,
iniciando desse modo aquilo que a imprensa de Cingapura intitulou “o grande
debate do casamento”.
O primeiro-ministro, é claro, não ignora que os anos de escolaridade podem
refletir vantagens econômicas e tradições de família que pouco têm a ver com
inteligência herdada. Mas ele fez uma afirmação específica que retirou a ênfase,
até torná-la insignificante, da contribuição potencial de tais fatores ambientais na
quantidade de anos de escolaridade. Cingapura fez grandes e recentes avanços na
educação: a escolaridade universal foi introduzida durante a década de 1960 e as
universidades foram abertas a todos os candidatos qualificados. Antes dessas
reformas, argumenta Lee, muitas crianças geneticamente brilhantes cresceram
em lares pobres e nunca receberam uma educação adequada. Mas, afirma ele,
essa única geração de oportunidade universal resolveu todas as injustiças
genéticas num único golpe. Os filhos capazes de pais pobres foram descobertos e
instruídos até o limite do seu nível de competência. A sociedade se ordenou de
acordo com a capacidade genética — e o nível de educação agora é um guia
seguro da capacidade herdada.

Demos educação universal à primeira geração no começo da década de 1960.
Nas décadas de 1960 e 1970, tivemos uma grande colheita de rapazes e
garotas capazes. Eram filhos de pais brilhantes, muitos dos quais nunca
haviam tido instrução. Na geração de seus pais, os capazes e os não-capazes
tinham famílias grandes. Foi uma colheita excepcionalmente enorme que
provavelmente não se repetirá. Pois, assim que essa geração de pais não-
instruídos, com educação adquirida no final da década de 1960 e na de 1970,
e os brilhantes chegam ao ápice, ao nível terciário [isto é, à universidade],
eles têm menos de dois filhos por mulher casada. Eles não terão famílias
grandes como os seus pais.

Lee então esboçou um quadro lúgubre da gradual deterioração genética:

Se continuarmos a nos reproduzir desta maneira desequilibrada, certamente
seremos incapazes de manter os nossos atuais padrões. Os níveis de
competência declinarão. A nossa economia será debilitada, a administração
sofrerá, e a sociedade entrará em declínio. Pois, como poderemos evitar a
queda no desempenho, se, daqui a 25 anos, para cada dois indivíduos
diplomados que temos hoje (com certo exagero para que a ideia fique bem
clara), haverá um diplomado, e para cada dois operários não-instruídos
haverá três?

Até agora não provei a minha proposição — a de que os piores argumentos
levantados pelos adeptos da hereditariedade nas grandes guerras dos intelectuais
do Ocidente ao redor do tema qualidades inatas versus influências externas
podem ressurgir com grande impacto social em contextos posteriores
consideravelmente diversos. As afirmações do sr. Lee certamente soam como
uma repetição do debate sobre imigração nos Estados Unidos durante o início da
década de 1920 ou da longa controvérsia na Grã-Bretanha sobre o
estabelecimento de escolas separadas, patrocinadas pelo Estado (feito durante
vários anos), para crianças brilhantes e para crianças lamentavelmente
ignorantes. Afinal, é fácil elaborar argumentos, ainda que falhos. Talvez o
primeiro-ministro de Cingapura os tenha reinventado, sem nenhuma informação
sobre as encarnações ocidentais mais antigas.
No entanto, outra passagem fundamental do discurso de Lee — a que
provocou ondas de reconhecimento e me inspirou a escrever este ensaio —
localiza a fonte das suas asserções nas antigas falácias da literatura ocidental.
Deixei de lado uma parte crucial da argumentação — a justificação “positiva” de
uma predominância da hereditariedade no progresso intelectual (em oposição à
asserção meramente negativa de que a educação universal deveria uniformizar
qualquer componente ambiental). Numa passagem que provocou um arrepio de
déjà-vu na espinha, Lee declarou que:

O desempenho de uma pessoa depende das qualidades inatas e das
influências externas. Há indícios crescentes de que as qualidades inatas, ou
aquilo que é herdado, é um fator determinante maior do que as influências
externas (ou educação e ambiente) no desempenho de uma pessoa. ... A
conclusão que os pesquisadores extraem é que 80% vêm da natureza, ou são
herdados, e que 20% vêm das diferenças de ambiente e criação.

Note-se a expressão delatora: “80%” (suplementada pelas referências
específicas de Lee a estudos de gêmeos idênticos criados separadamente). Todos
os cognoscenti do debate ocidental reconhecerão de imediato a fonte dessa
asserção na “cifra-padrão”, tantas vezes citada pelos adeptos da hereditariedade
(especialmente por Arthur Jensen, no notório artigo de 1969, intitulado “How
much can we boost IQ and scholastic achievement” (Em quanto podem ser
fomentados o QI e o aproveitamento escolar?), de que o QI tem 80% de
hereditário.
As falácias desta fórmula de 80%, tanto de fato quanto de interpretação,
foram expostas à exaustão, mas aparentemente, e lamentavelmente, esse aspecto
do debate não chegou a Cingapura.
Quando Jensen defendeu os 80% de hereditariedade, a sua principal defesa
repousava no estudo de Cyril Burt de gêmeos idênticos separados no início da
vida e criados longe um do outro. Burt, o grande ancião da hereditariedade,
escreveu o seu primeiro trabalho em 1909 (apenas quatro anos depois de Binet
publicar o seu teste inicial de QI) e continuou, com uma coerência inabalável, a
propor os mesmos argumentos até a sua morte em 1971. O seu estudo de gêmeos
separados conquistou uma fama especial porque ele conseguiu acumular uma
amostragem enorme desses raríssimos animais — mais de cinquenta casos —
enquanto nenhum pesquisador antes dele conseguira encontrar sequer a metade.
Agora sabemos que o “estudo” de Burt foi talvez o caso mais espetacular e
rematado de fraude científica do nosso século — não há problema algum em
localizar cinquenta pares de gêmeos separados quando eles só existem na sua
cabeça.
Os adeptos da hereditariedade que apoiavam Burt no princípio reagiram à
acusação de fraude atribuindo a acusação a ideólogos ambientalistas de
esquerda, dispostos a destruir um homem com insinuações, já que não podiam
derrotá-lo por meio de lógica ou provas. A partir do momento em que a fraude
de Burt ficou estabelecida além de qualquer possível dúvida (ver a bibliografia
de L. S. Hearnshaw, Cyril Burt, Psychologist), os antigos defensores propõem
outro argumento — a cifra de 80% está tão bem estabelecida em outros estudos
que a “corroboração” de Burt não tem importância.
A meu ver, a literatura a respeito de estimativas de hereditariedade no QI é
uma bagunça estonteante — com valores que vão de 80%, cifra ainda citada por
Jensen e outros, até a alegação de Leon Kamin (ver Bibliografia) de que a
informação existente não é incompatível com um grau de hereditariedade igual a
zero. De qualquer modo, o número real não tem importância, pois a
argumentação de Lee repousa sobre uma falácia mais profunda e fundamental —
uma interpretação falsa do que significa hereditariedade, seja lá qual for o seu
valor numérico.
O problema começa com uma equiparação comum e incorreta de hereditário
com “fixo e inevitável”. A maioria das pessoas quando escuta que o QI tem 80%
de hereditariedade, conclui que quatro quintos do seu valor estão
irrevogavelmente estabelecidos nos nossos genes, com apenas um quinto sujeito
a melhoria por meio de instrução e ambiente de boa qualidade. O primeiro-
ministro Lee caiu direitinho nessa velha armadilha de raciocínio falso quando
concluiu que 80% de hereditariedade estabeleciam a predominância de
qualidades inatas sobre fatores externos.
A hereditariedade, como termo técnico, mede quanto da variação no
surgimento de uma característica dentro de uma população (altura, cor de olhos,
ou QI, por exemplo) pode ser explicado por diferenças genéticas entre
indivíduos. A hereditariedade simplesmente não é uma medida de flexibilidade
ou inflexibilidade na expressão potencial de uma característica. Um tipo de
deficiência visual, por exemplo, poderia ser 100% hereditária, mas, ainda assim,
ser facilmente corrigida por um par de óculos capaz de normalizar a visão.
Mesmo que o QI tivesse 80% de hereditário, ele ainda poderia estar sujeito a
grande melhoria por meio de educação adequada. (Não afirmo que todas as
características hereditárias sejam facilmente alteradas; algumas deficiências
visuais herdadas não podem ser superadas por qualquer tecnologia disponível.
Estou apenas assinalando que a hereditariedade não é uma medida de biologia
intrínseca e imutável.) Assim, confesso que nunca me interessei muito pelo
debate sobre a hereditariedade do QI — pois mesmo um valor bem alto (que está
longe de ser estabelecido) não diria respeito à questão principal, caracterizada
com tanta precisão por Jensen no título do seu artigo — em quanto podem ser
fomentados o QI e o aproveitamento escolar? E eu nem ao menos mencionei (e
não discutirei, para que este ensaio não se torne interminável) a falácia mais
profunda deste debate inteiro — a suposição de que uma noção tão
maravilhosamente multifacetada como a inteligência possa ser medida de modo
significativo por um único número, com as pessoas sendo hierarquizadas desse
modo ao longo de uma escala unilinear de valor mental. O QI pode ter uma
parcela de hereditariedade, mas se essa venerável medida de inteligência for
(como suspeito) uma abstração sem sentido, então que diferença faz? A primeira
junta do meu anelar direito provavelmente tem uma dose de hereditariedade
mais alta que o QI, mas ninguém se importa em medir o seu comprimento
porque o traço não possui nem realidade independente, nem importância.
Ao afirmar que o primeiro-ministro Lee baseou os seus temores pela
deterioração intelectual de Cingapura numa leitura falsa de alguns dados
ocidentais dúbios, eu renuncio a qualquer direito de deitar sentenças sobre os
problemas de Cingapura ou sobre as suas soluções potenciais. Tenho
qualificações para fazer comentários sobre a nação do sr. Lee apenas segundo o
primeiro critério da velha piada que diz que os especialistas em outros países
viveram lá por menos de uma semana ou então por mais de trinta anos. Contudo,
metido como sou, não posso resistir a duas pequenas intromissões. Primeiro,
questiono se uma nação com tradições culturais tão diversas entre os seus setores
chineses, malaios e indianos pode realmente ter expectativas de nivelar todas as
influências ambientais em apenas uma geração de oportunidade educacional.
Segundo, pergunto-me se a nação mais densamente povoada do mundo
(excluindo cidades-estado tão minúsculas quanto Mônaco) deveria mesmo
encorajar uma taxa de reprodução mais alta em qualquer segmento da população.
Apesar da minha fidelidade ao relativismo cultural, ainda preservo o direito de
fazer comentários quando outras tradições pegam emprestada a ilogicidade da
minha própria cultura.
A maior barreira à compreensão da questão real nesse debate histórico pode
ser expressada da melhor maneira expondo-se a abordagem falsa encorajada por
aquele contraste eufônico entre dois pretensos opostos — nature e nurture
(Nature [natureza] e nurture [criação, educação, soma das influências e
condições ambientais que atuam sobre um organismo] foram traduzidos neste
texto como, respectivamente, qualidades inatas e influências externas - N.T.).
(Como eu queria que o inglês não tivesse um par tão irresistível — pois a
linguagem canaliza o pensamento, muitas vezes, rumo a direções infelizes. Em
séculos passados, a felicidade de expressão sublinhando uma comparação entre
as palavras de Deus e as suas obras (Em inglês, words e works,
respectivamente - N.T.). encorajou uma leitura errônea da natureza como
espelho da verdade bíblica. Na nossa época, uma antítese imaginada entre
qualidades inatas e influências externas provoca uma compartimentalização
inteiramente alheia ao nosso mundo de interações.) Todas as características
humanas complexas são construídas por uma mistura inextricável de ambientes
variados operando sobre o desdobramento de um programa contido em DNA
herdado. A interação começa no momento da fertilização e continua até o
instante da morte; não podemos dividir exatamente nenhum comportamento
humano em uma parte rigidamente determinada pela biologia e uma porção
sujeita a modificação por influência externa.
A verdadeira questão é a potencialidade biológica versus o determinismo
biológico. Somos todos interacionistas; todos reconhecemos a poderosa
influência da biologia sobre o comportamento humano. Mas os deterministas,
como Arthur Jensen e o primeiro-ministro Lee (pelo menos no discurso de
agosto), usam a biologia para elaborar uma teoria de limites. Na versão do sr.
Lee, a falta de escolaridade implica uma inerradicável falta de inteligência, já
que, se somos subalternos, a culpa (ou pelo menos quatro quintos dela) não se
encontra realmente nas nossas estrelas, mas em nós mesmos. Os potencia-listas
reconhecem a importância da biologia, mas enfatizam que as complexidades da
interação e a resultante flexibilidade de comportamento excluem a programação
genética rígida como base para as conquistas humanas.
O determinismo tem um uso político duradouro (e contínuo) como
ferramenta para justificar as iniquidades de um status quo culpando a vítima —
como John Conyers, Jr., um dos nossos poucos congressistas negros, afirma num
vigoroso artigo do New York Times de 28 de dezembro de 1983. Conyers
começa:

Na década de 1950, boa parte da literatura sociológica sobre a pobreza
atribuía as dificuldades econômicas dos negros e de outras minorias ao que
eles diziam ser a indolência e a inferioridade intelectual a elas inerentes.
Isso desviava a atenção das muralhas virtualmente intransponíveis de
segregação que bloqueavam a mobilidade social e econômica.

Conyers então analisa uma literatura crescente que busca causas genéticas
para as altas taxas de mortalidade entre os negros, particularmente por causa de
várias formas de câncer. “No local de trabalho”, Conyers escreve,

os negros têm um risco 37% mais alto de doenças provocadas pelo trabalho
e uma taxa de mortalidade 20% maior devido a doenças relacionadas ao
trabalho.

A suscetibilidade à doença pode ser influenciada por constituição genética, e
os grupos raciais tendem a variar quanto à propensão média. Mas se nos
concentrarmos em especulações não fundamentadas sobre heranças,
negligenciamos a razão imediata do racismo e da desvantagem econômica —
pois esses problemas profundos são certamente as causas principais da
discrepância, que poderia então ser reduzida ou eliminada pela reforma social.
(Como comentário político óbvio, a localização da causa numa biologia
intratável diminui a pressão pelas reformas.) Conyers prossegue:

Assim como na década de 1950, estão dizendo aos negros que os seus
problemas são, em boa parte, autoinfligidos, que a sua saúde ruim é uma
manifestação de hábitos pessoais imoderados. Tais estratégias do tipo
culpar-a-vítima... servem para desviar a atenção do fato de que os negros
são os alvos de uma ameaça desproporcional de toxinas, tanto no local de
trabalho, onde lhes são confiados os trabalhos mais sujos e perigosos,
quanto nas suas residências, que tendem a estar situadas nas comunidades
mais poluídas.

Como exemplo, Conyers observa que os operários siderúrgicos negros
exibem uma taxa de mortalidade por câncer duas vezes maior que a dos
operários brancos, e, em particular, uma taxa de morte por câncer pulmonar oito
vezes maior que a dos brancos. “Esta disparidade”, argumenta Conyers,

é explicável pelos padrões de trabalho: 89% dos operários negros trabalham
nos fornos de coque — a parte mais perigosa da indústria; apenas 32% dos
seus companheiros brancos realizam tais tarefas.

Devemos lutar diretamente para melhorar as condições de trabalho ou
especular sobre diferenças raciais inerentes? Mesmo se preferirmos hipóteses
genéticas, só poderíamos pô-las à prova igualando (e melhorando) os nossos
locais de trabalho e depois avaliando o impacto sobre a mortalidade. De modo
semelhante, deveríamos proclamar que as mulheres com pouca escolaridade
devem ser intratavelmente estúpidas ou deveríamos remover os obstáculos
sociais e econômicos, incentivar um pouquinho mais a educação universal e ver
como se saem essas mulheres? Em meio ao grande debate do casamento em
Cingapura, o Jakarta Post deu uma espiada no tumulto do vizinho e comentou:
“Seria mais sensato e menos polêmico construir mais escolas.”

Pós-escrito

Nas palavras imortais de Alice, a situação em Cingapura tornou-se “mais e
mais esquisitérrima” desde que escrevi este ensaio. Alguns relatos parecem
quase cômicos, mas rimos com risco próprio (como documentarei em breve).
Logo após o discurso do primeiro-ministro Lee Kuan Yew e o furor resultante
descrito em meu ensaio original, o representante do primeiro-ministro, o dr. Goh
Keng Swee, lançou o primeiro pacote de contramedidas ao público. Elas
incluíam o estabelecimento de serviços computadorizados de dados para
incrementar uniões apropriadas e instruções para que a Universidade Nacional
de Cingapura introduzisse cursos de namoro para aperfeiçoar as habilidades de
reprodutores potenciais capazes, porém tímidos. Segundo o New York Times (12
de fevereiro de 1984), a televisão estatal de Cingapura “está planejando exibir
uma série que vai procurar mostrar que mulheres bem-sucedidas, porém
solteiras, são incompletas e que as suas vidas são vazias”.
Bem mais sério, e chegando perto do insidioso, o primeiro-ministro Lee
agora instituiu as primeiras medidas oficiais de preferência e incentivo. A
Comissão de Planejamento Familiar de Cingapura inverteu a sua longa política
de persuasão a favor de famílias restritas a dois filhos — mas só na propaganda
dirigida aos bem instruídos. A Comissão agora empreende uma campanha com
“mensagem dupla”: “Dirão aos diplomados que cresçam e se multipliquem;
junto aos menos instruídos insistirão para que não tenham mais de dois filhos”
(New York Times, 12 de fevereiro de 1984).
Como primeiro ato explícito, o governo proclamou, em janeiro de 1984, que
as mulheres com diploma universitário terão prioridade para matricular os filhos
nas escolas primárias da sua escolha. Os menos instruídos — escute essa e
estremeça — terão preferência logo a seguir se concordarem com a esterilização
após o nascimento do primeiro ou do segundo filho (New York Times, 12 de
fevereiro de 1984).
Os planos do primeiro-ministro Lee não receberam aprovação universal,
nem em Cingapura, nem nos países vizinhos. Warren Y. Brockelman, da
Universidade Manhidol de Bangkok juntou-se a Youngyuth Yuthavong e dez
outros membros da Faculdade de Ciência num vigoroso protesto (publicado no
Bangkok Post de 16 de fevereiro de 1984. Agradeço ao dr. Brockelman por
enviar, via David Woodruff, os documentos que usei para escrever este pós-
escrito). Ele escrevem:

Não existe nenhuma prova de que diferenças de taxa de natalidade entre
classes econômicas ou níveis educacionais produzam quaisquer mudanças
na estrutura genética de uma população humana. ... Um aspecto
particularmente contraproducente e injusto da nova política é que as
crianças nascidas de pais instruídos terão preferência sobre outras na
admissão em escolas. O efeito dessa política será assegurar que as famílias
menos instruídas permaneçam sem instrução e com taxas de natalidade
altas. Ela não aumentará a fonte de talentos instruídos. Uma política mais
sensata seria dar preferência de admissão aos filhos de casais menos
instruídos, para que eles elevem o seu nível de progresso sócio-econômico e
atinjam as taxas de natalidade mais baixas geralmente associadas a tal
progresso.

Na vizinha Maláisia, Chee Heng Leng e Chan Chee Khoon publicaram uma
série de críticas inspiradas pela ressurreição da eugenia em Cingapura (Designer
Genes, IQ Ideology and Biology, INSAN, Selangor, Malásia — a capa exibe a
fotografia de um par de denins — marca Lee, é claro. Deixou-me satisfeito saber
que puderam incluir na coletânea um ensaio meu, de Darwin e os grandes
enigmas da vida). Os drs. Chee e Chan assinalam que há ideias semelhantes a
caminho em Malásia (embora ainda não traduzidas em política oficial), onde o
primeiro-ministro Datuk Seri Dr. Mahathir Mohamad afirmou que os malaios
nativos herdaram um caráter fraco e despreocupado como resultado do ambiente
físico propício combinado com a endogamia (ao passo que os indivíduos de etnia
chinesa são um grupo mais vigoroso, criado numa terra mais dura). Chee e Chan
resumem a situação em Cingapura de modo admirável:

O que há de notável a respeito da situação presente em Cingapura é, na
verdade, o modo tosco como foi formulado o conceito de “hereditariedade
de QI”. Além disso, dados ditos científicos, que perderam toda a
credibilidade nos círculos científicos há uma década, estão sendo usados
para fundamentar essas asserções. Também é admirável na situação em
Cingapura que esses pronunciamentos científicos tenham sido rapidamente
transformados em políticas sociais que favorecem descaradamente a classe
alta e fazem discriminações contra a maioria pobre da população de
Cingapura.




6. Darwiniana

22. O ombro esquerdo de Hannah West e a origem da


seleção natural


No seu ensaio “Technical Education”, escrito em 1877, Thomas Henry
Huxley proclamou que “o grande fim da vida não é o conhecimento, mas a
ação”. Como Huxley não era nenhum desleixado intelectual, podemos ter certeza
de que ele não estava defendendo o esforço irrefletido, mas afirmando que o
conhecimento obtido com esforço conquistava o seu valor supremo na utilidade.
Como Marx escreveu na sua última tese sobre Feuerbach: ‘‘Até agora os
filósofos só interpretaram de vários modos o mundo; o que importa, porém, é
modificá-lo.”
A originalidade pura é uma ilusão: todas as grandes ideias foram pensadas e
expressadas antes que um descobridor convencional as proclamasse. Copérnico
não inverteu o movimento celeste sozinho, e Darwin não inventou a evolução.
Os descobridores convencionais conquistam a sua justa reputação porque se
preparam para a ação e porque compreendem a implicação plena de ideias que
predecessores exprimiram com uma apreciação escassa do seu poder
revolucionário.
Todos os especialistas sabem que vários cientistas destacados — Lamarck,
em particular — desenvolveram elaborados sistemas de pensamento evolutivo
antes de Darwin. Muitos supõem, no entanto, que Darwin foi o verdadeiro
criador da sua própria teoria específica de como a evolução ocorreu — a teoria
da seleção natural. No entanto, segundo a sua própria e tardia confissão (no
prefácio histórico acrescentado a edições posteriores da Origem das espécies),
Darwin admitiu que dois autores o haviam precedido na formulação do princípio
da seleção natural. Ele também afirmou, pelo menos por implicação — e eu
concordo vigorosamente —, que nenhuma dessas antecipações diminuía o seu
direito à fama ou à originalidade. Ele não as havia desconsiderado por má
vontade, mas simplesmente porque nunca ouvira falar delas, apesar dos seus
hábitos de leitura e correspondência absolutamente onívoros. Os motivos dessa
ignorância justificável reforçam a condição de Darwin e nos auxiliam a
compreender a diferença que existe entre apenas expressar uma ideia e
compreender o que ela pode fazer e significar.
Um dos predecessores de Darwin, o naturalista e fruticultor escocês, Patrick
Matthew, publicou a sua versão da seleção natural em 1831, como apêndice a
uma obra intitulada Naval Timber and Arboriculture [Madeira para construção
naval e arboricultura]. E lá ela ficou definhando, despercebida no seu bizarro
contexto, até que Darwin fosse publicado em 1859. Matthew então escreveu uma
carta para a Garden ’s Chronicle reivindicando a sua prioridade não apenas na
seleção natural, mas também na

primeira proposta do aríete a vapor (pretensão também de vários outros —
ingleses, franceses e americanos) e de uma marinha de canhoneiras a vapor
como requisitos indispensáveis na guerra marítima futura, propostas que,
como a lei da seleção orgânica, só agora estão ganhando impulso.

Darwin escreveu à Garden’s Chronicle em 21 de abril de 1860 (agradeço a
W. J. Dempster por me enviar cópias dessa correspondência e por chamar a
minha atenção para os pareceres de Matthew):

Fiquei muito interessado no comunicado do sr. Patrick Matthew, no número
do seu jornal datado de 7 de abril. Reconheço francamente que o sr. Matthew
antecipou em vários anos a explicação que ofereci da origem das espécies
sob o nome de seleção natural. Acho que não será motivo de surpresa para
ninguém que nem eu, nem, aparentemente, qualquer outro naturalista, tenha
ouvido falar dos pareceres do sr. Matthew, considerando-se a brevidade com
que são expostos e o fato de terem surgido no apêndice de uma obra sobre
madeira para construção naval e arboricultura. Nada mais posso fazer, além
de oferecer as minhas desculpas ao sr. Matthew pela minha completa
ignorância a respeito da sua publicação. Se for pedida outra edição da minha
obra, publicarei uma nota com tal propósito.

A segunda antecipação, anterior, da seleção natural não foi apresentada
dentro de um contexto tão obscuro. Em 1813, William Charles Wells, outro
cientista e médico escocês (embora nascido em Charleston, Carolina do Sul)
proferiu uma dissertação perante a Royal Society de Londres, a preeminente
instituição científica da Inglaterra. Ela carregava um daqueles títulos
assombrosamente grandes tão comuns na época: Account of a female of the white
race of mankind, parts of whose skin resembles that of a negro, with some
observations on the causes of the differences in color and form between the
white and negro races of men [Descrição de uma mulher da raça branca do
gênero humano, cuja pele em certas partes lembra a de um negro, com algumas
observações sobre as causas das diferenças de cor e forma entre as raças branca e
negra dos homens].
O ensaio não produziu nenhum impacto de que se tenha notícia na ocasião de
sua apresentação, e Wells não o imprimiu na época. Cinco anos depois, quando
esperava a morte por causa de uma doença cardíaca, Wells preparou para
publicação um único volume com os seus ensaios mais importantes. Esse
volume, publicado postumamente em 1818, incluía a breve comunicação de
1813, quase que como uma lembrança de última hora, bem no final. O volume
de Wells foi bem recebido, pois incluía os dois ensaios que haviam conquistado
para ele a fama, limitada, porém segura — um sobre a formação do orvalho (um
problema solucionado definitivamente por Wells, que provou que o orvalho não
é nem chuva invisível, nem uma exsudação das plantas, mas uma condensação
do ar circundante), e outro sobre o motivo pelo qual os nossos dois olhos veem
apenas uma única imagem. Ironicamente, e como testemunho da total
obscuridade do pequeno ensaio de Wells sobre a origem da cor da pele humana,
quando Hugh Falconer propôs Darwin para a Medalha Copley da Royal Society
em 1864, ele elogiou Darwin comparando os seus métodos de pesquisa com
aqueles seguidos por Wells no excelente tratado sobre o orvalho: “Pode ser
comparado com o ‘Ensaio sobre o orvalho’ do dr. Wells, na condição de
original, exaustivo e completo — contendo a observação mais minuciosa, com
generalização ampla e importante.” Aparentemente, Falconer nunca se deu conta
de que o volume que consultara para a leitura do “Ensaio sobre o orvalho” de
Wells também continha uma declaração antecipatória sobre a própria seleção
natural.
Wells era um homem austero, intensamente reservado e idiossincrático.
Segundo o seu próprio relato, ele tinha poucos amigos, menos pacientes, e bem
pouco dinheiro (em boa parte porque passou a maior parte da vida pagando
empréstimos aos poucos bons amigos). Passou a sua vida adulta sozinho em
Londres. Nunca se casou, teve pouco convívio social e publicou menos ainda. A
autobiografia que precede o volume de ensaios lamenta as persistentes
dificuldades financeiras, em especial a sua incapacidade de manter uma
carruagem, o que impedia a maior parte da atividade social e o acesso a
pacientes potenciais (naqueles dias felizes, mas passados, em que as visitas de
médicos eram praticamente obrigatórias).
Embora nascido nos Estados Unidos, Wells era filho de fervorosos legalistas
britânicos. Wells registra a preocupação do pai de que um jovem pudesse ser
conquistado pela causa republicana na agitada América pré-revolucionária:

Temendo que eu viesse a ser infectado pelos princípios desleais que
começaram a prevalecer por toda a América imediatamente após a paz de
1763, ele me obrigou a usar um casaco com tartã e um gorro escocês azul,
esperando conseguir, por esses meios, que eu me considerasse um escocês. A
perseguição que passei a sofrer desde então produziu tal efeito
completamente.

Wells tinha pouco de bom a dizer sobre a América, pois atribuía à sua
infância na Carolina do Sul virtualmente todas as imperfeições da sua vida
posterior, inclusive esta embaraçosa confissão:

O que direi em seguida sem dúvida será considerado bastante ridículo. Até
atingir quase onze anos, vivi bem perto das docas de um grande porto
marítimo na América, e, desse modo, tive muito contato com vários jovens
marinheiros de baixa condição. A esse fato atribuo o hábito de praguejar que
tenho desde criança, do qual sou frequentemente culpado quando meus
sentimentos são agitados ou mesmo quando não existe nenhuma desculpa de
tal tipo.

Portanto, Wells ficou feliz ao deixar a América para ser educado na Grã-
Bretanha. Ele retornou à Carolina (então nas mãos de monarquistas) em 1781,
para cuidar dos negócios do pai; mas acabou preso após a derrubada do poder
político e foi com bastante alegria que conquistou a repatriação para a Grã-
Bretanha, desta vez em caráter permanente. Ele se mudou para Londres e foi
licenciado pelo Royal College of Physicians em 1788. O ensaio de 1792 sobre a
visão única com dois olhos assegurou-lhe a eleição para a Royal Society,
enquanto o ensaio de 1814 sobre o orvalho conquistou-lhe a cobiçada Medalha
Rumford da mesma sociedade. Apesar da qualidade e do renome dessas obras,
Wells publicou pouca coisa mais. Sua autobiografia nem menciona o ensaio de
1813 sobre a cor da pele humana, e não possuímos nenhuma indicação de que
ele lhe conferisse qualquer importância em sua mente ou de que reconhecia
quaisquer implicações adicionais para suas ideias.
Como tantos relatos gerais escritos por médicos, o ensaio de Wells, de 1813,
sobre a seleção natural, começa com a descrição da história de um caso médico
incomum. Elannah West, uma jovem de Sussex, filha de “um lacaio a serviço da
família de um fidalgo”, visitou-o para que ele observasse a sua pele peculiar.
Seus pais e todos os parentes eram caucasianos convencionais, mas Elannah
West, embora com a pele apropriadamente pálida em todos os lugares, tinha o
ombro, o braço e o antebraço esquerdos “tão escuros quanto os de qualquer
negro”. Em deferência para com a venerável teoria, ainda reinante, das
“impressões maternais” (ver o último ensaio de Hen’s Teeth and Horse’s Toes),
a família de West e os vizinhos atribuíram a sua calamidade a este peculiar
evento:

A mãe... levou um susto, quando ainda estava grávida dela, ao pisar
acidentalmente numa lagosta viva; e a isso foi atribuído o negrume de parte
da pele da menina, verificado quando ela nasceu.

Wells observou Hannah West cuidadosamente, notou a transição abrupta
entre a incomum pele escura e a esperada pele branca, assombrando-se com o
negrume do seu braço esquerdo — “mais escuro que a parte correspondente de
qualquer negro que eu tenha visto; pois a palma da sua mão e a parte interna dos
dedos são pretos, ao passo que essas partes num negro são apenas de coloração
meio parda”. Mas, na verdade, Wells nunca transcendeu o puramente descritivo
e não relatou nada de interesse geral. Mesmo a premissa básica da descrição era
errônea; os brancos com grandes trechos de pele melânica não mantêm qualquer
semelhança significativa, genealógica ou de outra espécie, com pessoas negras.
Se Wells não houvesse acrescentado sete páginas de especulação sobre a origem
das cores da pele humana ao relato, este certamente teria caído no total e
permanente esquecimento, em vez da mera obscuridade (com a ressurreição
posterior na condição de curiosidade). Essas sete páginas, o pensamento de
última hora de um ensaio publicado na última hora, incluem uma seção de duas
ou três páginas sobre a seleção natural, a primeira expressão clara e reconhecida
do grande princípio de Darwin.
Wells começa com hesitação, talvez temeroso de que um excesso de
especulação dilua o valor das sóbrias observações sobre a pele incomum de
Hannah West:

Ao considerar a diferença de cor entre europeus e africanos, ocorreu-me um
parecer sobre o assunto, o qual não foi emitido por nenhum autor cujos
trabalhos tenham vindo às minhas mãos. Ousarei, portanto, mencioná-lo
aqui, embora sob o risco de que venham a considerá-lo mais fantasioso do
que correto.

Wells invoca a seleção natural para explicar o sucesso dos negros em climas
quentes. Partindo do costumeiro e inconfessado pressuposto racista de que a pele
branca é adequada e primordial, Wells imagina que os habitantes originais da
África eram mais claros do que os seus descendentes atuais. Ele explica a
mudança por meio da seleção natural e até mesmo invoca o argumento favorito
de Darwin, o da analogia com a seleção artificial, tal como praticada por
criadores de animais:

Aqueles que se dedicam à melhoria de animais domésticos, quando
encontram indivíduos que possuem, num grau maior que o comum, as
qualidades que eles desejam, cruzam um macho e uma fêmea destes, tomam
então os melhores da sua prole como novo plantei e desse modo prosseguem,
até chegarem tão perto do resultado em vista quanto permite a natureza das
coisas. Mas o que é feito aqui pela arte, parece ser feito, com igual eficácia,
embora mais lentamente, pela natureza, na formação das variedades do
gênero humano, adaptadas ao território que elas habitam.

Esse pronunciamento foi citado em várias obras anteriores (é a citação
“padrão” de Wells), mas não acho que qualquer comentarista anterior percebeu o
caráter decididamente heterodoxo da exposição de Wells. Curiosamente, as suas
características mais incomuns antecipam alguns dos argumentos que agora são
apresentados por muitos evolucionistas contra a interpretação estrita do
darwinismo que tem sido tão popular nos últimos vinte e poucos anos.
O argumento convencional, estritamente darwiniano, destacaria a adaptação
direta da cor da pele e a mudança evolutiva impelida pela competição entre
organismos individuais. Em outras palavras, afirmaríamos que a pele negra
oferecia vantagens em climas quentes e que surgiu por meio da sobrevivência
diferencial e da propagação de indivíduos mais escuros dentro de uma
população. Wells nega explicitamente ambas as partes dessa sequência de
eventos.
Quanto à adaptação, Wells refuta a ideia de que a pele negra forneça
qualquer benefício em si (ele provavelmente estava errado) e afirma ao contrário
que alguma outra característica fisiológica adapta as pessoas negras aos climas
quentes conferindo-lhes resistência a doenças tropicais. Wells faz a especulação
de que essa característica pode ser sutil e não manifesta na morfologia evidente.
É possível que a pele negra esteja correlacionada a essa característica por algum
motivo desconhecido de desenvolvimento e, portanto, ela pode servir como um
sinal da vantagem, embora não ofereça nenhum benefício em si:

Não suponho, contudo, que as suas diferentes suscetibilidades a doenças
dependam propriamente da diferença de cor. Pelo contrário, acho provável
que isso seja apenas sinal de alguma diferença entre eles, a qual, embora
vigorosamente manifestada pelos seus efeitos na vida, é, porém, sutil demais
para ser descoberta por um anatomista após a morte; da mesma maneira que
um corpo humano, que é incapaz de contrair a varíola, não difere em nada
observável de outro, o qual, no entanto, está sujeito a ser afetado por essa
doença.

Darwin ponderou sobre essas “correlações de desenvolvimento” e
reconheceu que muitas características podem não oferecer nenhum benefício
direto e, no entanto, caracterizar grandes grupos pela sua relação fisiológica
obrigatória com outros traços. As versões radicais do darwinismo esqueceram
essa sutileza e tentaram encontrar vantagens adaptativas diretas, muitas vezes
por meio de argumentação puramente especulativa, para quase todas as
características de grande difusão.
O tema das “consequências não-adaptativas” de Wells tem sido retomado
ultimamente numa atmosfera de atenção renovada pelos padrões de
desenvolvimento e pela integridade de organização (os animais não podem ser
analisados como um amálgama de partes independentes). O tratamento dado por
Wells à cor acompanha essas críticas recentes.
Quanto à seleção, o argumento costumeiro proporia uma população humana
com variação considerável de cor de pele entre os seus membros. As pessoas de
cor escura seriam, em média, melhor sucedidas na criação da prole e, com vagar,
mas inevitavelmente, a cor da pele dentro da população mudaria para tonalidades
mais escuras. Em outras palavras, a mudança evolutiva ocorre por meio de
competição entre indivíduos dentro de uma população (a “luta pela existência”).
Wells nega explicitamente essa forma costumeira de seleção afirmando que
variantes favoráveis não podem se difundir através de populações grandes e
estáveis. O seu argumento é incorreto e fundamentado numa opinião falsa sobre
a hereditariedade, corrente na época, chamada herança por mistura (blending
inheritance) — a ideia de que todas as variantes favoráveis serão diluídas pela
metade na prole através do casamento com um membro normal da população. A
prole diluída em geral se casa com indivíduos normais (já que as variantes
favoráveis são tão raras) e a geração subsequente será diluída em um quarto.
Dentro de pouco tempo, as variantes raras e favoráveis desaparecerão por
completo. A hereditariedade não funciona desse modo (embora Wells não
pudesse ter conhecimento do que Mendel descobriria cinquenta anos depois).
Traços favoráveis muitas vezes surgem por mutação, e tais características não
podem ser diluídas por meio de cruzamento com indivíduos normais. É possível
que a mutação (se recessiva) não se manifeste na geração seguinte, mas ela não
será eliminada. A crença de Wells na herança por mistura levou-o a negar a
seleção por meio de transformação lenta dentro de uma população:

Essas variedades [isto é, as variações favoráveis], na maior parte,
desaparecem com rapidez, através dos casamentos de famílias diferentes.
Desse modo, se for produzido um homem bem alto, ele provavelmente se
casará com uma mulher bem mais baixa do que ele, e a sua prole
dificilmente diferirá em tamanho dos seus compatriotas.

Como funcionará então a seleção? Wells argumenta que variantes favoráveis
podem se difundir, presumivelmente mais por acaso do que por seleção (embora
ele não seja explícito), através de populações pequenas e móveis onde um
grande número de indivíduos normais não pode impor a diluição, devido à
existência de retrocruzamento (back-breeding):

Contudo, em algumas regiões, de extensão bem pequena, e com pouco
contato com outras terras, uma diferença acidental na aparência dos
habitantes frequentemente será transmitida à posteridade.

Assim, Wells conjecturou que o povo da África estava de início dividido em
populações pequenas, que não interagiam. Por acaso, cores médias diferentes (e
a resistência a doenças que as acompanhava) tornaram-se estabelecidas entre
essas populações. A seleção então atuou por meio de competição entre
populações já diferentes (por motivos não relacionados com a seleção natural)
em cor média de pele. Dentro de cada grupo, a cor era relativamente constante e
a seleção só podia operar por meio do reordenamento dos própios grupos. Em
outras palavras, a seleção ocorre entre grupos, não entre indivíduos dentro de um
grupo.

Das variedades acidentais do homem [desta vez com o sentido de
populações; Wells e os seus contemporâneos usavam a palavra variedade
tanto para indivíduos distintos quanto para populações diferentes], as quais
ocorreriam entre os primeiros habitantes, poucos e espalhados, das regiões
do meio da África, algumas estariam melhor adaptadas do que outras para
suportar as doenças da terra. Consequentemente, essa raça iria se multiplicar,
ao passo que as outras diminuiriam, não apenas devido à incapacidade de
sustentar os ataques das doenças, como também à incapacidade de fazer
frente aos seus vizinhos mais vigorosos. A partir daquilo que já foi dito,
tenho por certo que a cor dessa raça vigorosa seria escura.

O local ou nível da seleção é um “tópico quente” da teoria evolutiva hoje.
Embora ninguém negue que a seleção opere vigorosamente no nível tradicional
de diferenças entre organismos dentro de uma população, outras modalidades
também podem ser importantes. A ideia de que a seleção pode operar sobretudo
entre populações locais — a chamada seleção intergrupal — tem sido defendida
há um bom tempo pelo grande geneticista Sewall Wright (que, com 95 anos,
ainda argumenta com bastante eloquência a favor da sua posição). O eclipse de
Wright dentro dos círculos darwinianos estritos foi recentemente invertido, e a
seleção intergrupal está recebendo um segundo exame, mais favorável. Acho
curioso que a primeira formulação da seleção natural advogasse um processo
intergrupal, em vez da ênfase tradicional sobre organismos em competição.
Contudo, embora a argumentação de Wells fosse heterodoxa pelos padrões
darwinianos posteriores, ela de fato expressa o princípio da seleção natural.
Devemos, portanto, retornar à nossa pergunta inicial. Por que esses precursores
darwinianos foram totalmente ignorados, e por que Darwin merece a sua
presente condição (e, receio, Wells e Matthew também as suas)?
Loren Eisele nota com perspicácia (em Darwin’s Century) que a
argumentação de Wells, tal como formulada, não pode ser ampliada ou
generalizada para fornecer um quadro completo da modificação evolutiva ao
longo da história da vida. Todos sabiam que os organismos variam e que raças
locais podem ser fabricadas a partir desse material bruto (de que outro modo os
criadores imaginosos de cães e pombos trabalham, isso para não falar dos
fazendeiros?). Mas a variação entre raças de cães não é extrapolada
automaticamente para a transformação de peixe para humano. Talvez as espécies
possuam limites de variação fixos e dados por Deus. Podemos produzir novas
raças fazendo seleções de extremos dentro desses limites, mas não podemos
transcender a fronteira para construir criaturas fundamentalmente novas. Wells
não generaliza a sua argumentação para que ela compreenda a mudança
evolutiva em larga escala, e apenas o exame em retrospecto permite que
interpretemos as suas especulações como precursoras da reviravolta da biologia
realizada por Darwin.
Ainda assim, a incapacidade de Wells para generalizar não pode ser o
principal motivo da sua obscuridade. (A propósito, Darwin só soube do trabalho
de Wells através de um correspondente americano com interesses bibliográficos
de antiquário.) A justificativa principal não é complexa. As ideias são baratas; a
simples declaração conta pouco ou nada. A fama intelectual é dada às pessoas
que possuem a visão para fazer com que uma boa ideia funcione de duas
maneiras: usando-a para fazer novas descobertas e reconhecendo as suas
implicações como um instrumento de longo alcance para transformar atitudes
gerais.
Não temos nenhum motivo para suspeitar que Wells ou Matthew
reconhecessem o poder revolucionário por trás da sua inteligência. Wells
apresentou a seleção natural como apêndice a um ensaio que ele nem se deu ao
trabalho de publicar até às vésperas da morte. Matthew enterrou-a entre as suas
árvores e não viu floresta alguma (embora, ao contrário de Wells, tenha
defendido a evolução como sendo a causa da história da vida). Na verdade,
numa segunda carta, em resposta ao pedido de desculpas de Darwin de 1860,
Matthew faz elogios frouxos a Darwin (e se condena inadvertidamente)
afirmando que nunca dera muita importância à seleção porque, ao contrário de
Darwin, que lutara tanto para formular o princípio, ele o captara como uma
dedução evidente da natureza das coisas. Ele a considerava como
necessariamente verdadeira, quase trivial nesse sentido, e, assim, indigna de
muito desenvolvimento. Matthew, portanto, deixou passar toda a sua
significação:

Para mim, a concepção desta lei da Natureza veio intuitivamente, como um
fato auto-evidente, quase que sem um esforço de pensamento concentrado.
Neste ponto, o sr. Darwin parece ter mais mérito na descoberta do que eu —
para mim, ela não surgiu como uma descoberta. Ele parece tê-la formulado
por meio de raciocínio indutivo, vagarosamente e com a devida prudência
para fazê-lo de modo sistemático, de fato para fato e assim por diante; ao
passo que para mim, foi por meio de um vislumbre geral do esquema da
Natureza que avaliei essa produção seletiva de espécies como um fato
reconhecível a priori — um axioma, exigindo apenas que fosse assinalado
para ser admitido por mentes de entendimento suficiente e sem preconceitos.

Por outro lado, Darwin usou a seleção natural como o fulcro intelectual de
toda uma carreira. Ele interpretou a evolução humana à sua luz, reformulou os
princípios da psicologia e explicou a coevolução das orquídeas e dos seus insetos
polinizadores, a distribuição biogeográfica dos organismos, os hábitos e ações
das minhocas — uma rica panóplia de questões, dos maiores enigmas da vida até
os menores caprichos de organismos particulares. Ele estabeleceu um programa
viável de pesquisas para toda uma profissão.
Nenhum documento do pensamento humano revelou-se mais estimulante
para mim do que os cadernos de anotações que Darwin encheu em Londres,
quando era um jovem de vinte e tantos anos, recém-chegado de uma viagem de
cinco anos a bordo do Beagle. Ele tinha a chave para uma nova visão da vida e
sabia disso. A sua mente estendeu-se por toda a paisagem intelectual, da biologia
até a psicologia, a moralidade, a filosofia e a literatura. A evolução por seleção
natural invadiu tudo. Wells e Matthew haviam expressado o mesmo princípio,
mas então esqueceram ou não conseguiram extrair quaisquer implicações.
Darwin ficou em Londres, um jovem reconstruindo um mundo de pensamento.
Considere-se apenas uma declaração, como um símbolo do seu feito e como
final apropriado para este ensaio. Charles Darwin, rompendo dois mil anos de
tradição na filosofia ocidental com uma observação epigramática para si mesmo:

Platão diz no Fédon que as nossas “ideias imaginárias” surgem da
preexistência da alma, não são deriváveis da experiência — leia-se macacos
no lugar de preexistência.

23. Darwin em alto-mar — e as virtudes do porto




Charles Darwin e Abraham Lincoln nasceram no mesmo dia — 12 de
fevereiro de 1809. Eles também estão unidos de outra maneira curiosa — pois
ambos têm de desempenhar simultaneamente, e por motivos semelhantes, o
papel de homem e o de lenda. Numa nação jovem demais para possuir heróis
míticos, os de carne e osso têm de substituí-los. Daí os escolares aprenderem
sobre o honesto Abe, que libertou os escravos sozinho, apenas por uma questão
de justiça, e que, quando jovem, percorreu penosamente milhas e milhas para
devolver alguns cents a uma mulher a quem inadvertidamente dera troco a
menos. Esse Lincoln lendário pode preencher uma necessidade nacional ou
psicológica, mas os historiadores também têm de trabalhar para resgatar o
homem real, e extraordinariamente complexo, desse papel tão efetivamente
inexato. De modo semelhante, a ciência não adora nenhum deus, e os sábios
antigos encontram-se estritamente em falta. Mais uma vez, as figuras históricas
têm de constituir o material para as lendas necessárias. A maçã despenca sobre
Newton; Galileu atira os seus projéteis da torre inclinada; e Darwin, sozinho em
alto-mar, num isolamento mental esplêndido, transforma o mundo intelectual.
O mito do Beagle — o de que Darwin tornou-se um evolucionista por meio
da observação simples e imparcial de um mundo inteiro estendido à sua frente
durante uma viagem de cinco anos ao redor do mundo — ajusta-se a todos os
nossos critérios românticos para a melhor das lendas: um jovem, livre dos
empecilhos da sociedade inglesa e dos seus pressupostos limitadores, face a face
com a natureza, exercitando a sua mente formidável e inexperiente com todos os
desafios oferecidos por plantas, animais e rochas do globo todo. Ele parte da
Inglaterra em 1831, com planos de se tomar um pároco de aldeia ao voltar.
Retorna em 1836, tendo visto a evolução em estado bruto, compreendendo
(embora vagamente) as suas implicações e comprometido com uma vida
científica de pensador evolucionista. O catalisador principal: as ilhas Galápagos.
Os atores principais: tartarugas, tordos-dos-remédios (em inglês mockingbirds, pássaros
da família Mimidae, especialmente o Mimus polyglottos, notáveis devido à capacidade de imitar o canto de
outros pássaros) e, acima de tudo, treze espécies de tentilhões de Darwin — o
melhor laboratório evolutivo que a natureza nos ofereceu.
Podemos precisar de lendas simples e heroicas para aquele peculiar gênero
de literatura conhecido como livro didático. Mas os historiadores também devem
lutar para resgatar os seres humanos das suas lendas na ciência — se não por
outro motivo, pelo menos para que possamos compreender direito o processo do
pensamento científico. Para começar, Darwin só se tornou um evolucionista
depois de passados vários meses do seu regresso a Londres — provavelmente
não antes de março de 1837 (o Beagle atracou em outubro de 1836). Ele não
percebeu a significação evolutiva das Galápagos enquanto lá esteve e, de início,
compreendeu os tentilhões de modo tão absolutamente errôneo que, mais tarde,
mal conseguiu reconstruir a história a partir dos seus registros sofrivelmente
inadequados. A lenda dos tentilhões pode persistir, mas foi desmascarada de
modo esplêndido em dois artigos recentes do historiador de ciência Frank
Sulloway. Os seus argumentos constituem a base deste ensaio (ver Bibliografia).
As treze espécies de tentilhões de Darwin formam um grupo genealógico
estreitamente relacionado, com estilos de vida amplamente divergentes — um
caso clássico de irradiação adaptativa numa série de papéis e nichos que, em
situações continentais mais convencionais e populosas, seriam preenchidos por
membros de outras famílias de pássaros. Conseguimos as principais pistas sobre
a adaptação das espécies a partir do formato dos seus bicos. Três espécies de
tentilhões de chão possuem bicos grandes, médios e pequenos, ao passo que um
quarto desenvolve um bico agudo, pontudo. Todos estão adaptados ao consumo
de sementes diferentes, de tamanho e dureza apropriados. Duas espécies
alimentam-se de cactos e outra de mangues. Quatro habitam árvores — dessas,
uma é vegetariana, ao passo que as outras comem insetos grandes, médios e
pequenos, respectivamente. Uma décima segunda espécie lembra os “trinadores”
(em inglês warblers, nome comum a vários pássaros da família Parulidae) na forma e nos hábitos;
ao passo que a décima terceira, a mais curiosa de todas, usa gravetos e espinhos
de cactos como ferramentas para extrair insetos de buracos em troncos de
árvores.
O bom trabalho do grande ornitologista David Lack nos ensinou que as treze
espécies evoluíram e tornaram-se distintas através de um processo de quatro
estágios: colonização, isolamento e formação de espécies, reinvasão, e
aperfeiçoamento de adaptação na competição. Lack também deu aos pássaros o
bem escolhido nome de “tentilhões de Darwin”, no seu livro de 1947, com o
mesmo título. Mas, contra-riando a lenda anacrônica, essa descrição clássica de
formação de espécies é uma história da qual Darwin nunca teve conhecimento.
Darwin visitou as Galápagos em setembro e outubro de 1835,
desembarcando em apenas quatro das ilhas. Em alto-mar, em certo momento de
meados de 1836, ele escreveu uma famosa declaração nas suas Ornithological
Notes [Observações ornitológicas], uma das principais fontes da lenda segundo a
qual as suas experiências nas Galápagos haviam-no convertido diretamente à
evolução e que os tentilhões tinham inspirado a sua nova visão da vida:

Quando me recordo de que os espanhóis conseguem dizer imediatamente, a
partir da forma do corpo, do formato das escamas e do tamanho geral, de
qual ilha pode ter sido trazida qualquer tartaruga. Quando vejo essas ilhas tão
próximas entre si, possuídas apenas por um parco grupo de animais,
habitadas por esses pássaros, que diferem apenas levemente na estrutura e
que ocupam o mesmo lugar na natureza, tenho de suspeitar de que são
apenas variedades. O único fato de tipo similar do qual tenho conhecimento
é a diferença constantemente afirmada — entre a raposa semelhante a um
lobo que habita as Ilhas Falkland do leste e do oeste. — Se houver o menor
fundamento para essas observações, será de grande valia examinar a
zoologia dos arquipélagos; pois tais fatos abalariam a ideia da estabilidade
das espécies.

Antes de mais nada, os “pássaros” desta passagem são os tordos-dos-
remédios das Galápagos, não os tentilhões. Darwin percebeu que três das quatro
ilhas que visitou continham tordos nitidamente diferentes. À primeira vista, essa
declaração pode exibir uma forte preferência pela evolução; ela com certeza
levanta a possibilidade. Mas a familiaridade com a terminologia zoológica do
século XIX sugere uma interpretação alternativa. Todos os criacionistas
admitiam que as espécies muitas vezes assumem formas moderadamente
distintas em certas condições, tais como as de cadeias de ilhas e arquipélagos,
nas quais as populações podem ficar isoladas em circunstâncias diferentes de
ecologia e clima. Essas raças locais eram chamadas variedade, e elas não
ameaçavam o caráter criado e imutável da essência de uma espécie.
Adequadamente traduzido a partir da terminologia da sua época, Darwin diz na
sua famosa declaração que, ou as tartarugas e os tordos são apenas variedades —
caso em que não ameaçam os seus pareceres criacionistas — ou então se
tornaram espécies separadas, e, se for esse o caso, então eles o fazem. Ele
considerou brevemente a evolução ao admitir a segunda possibilidade, mas
acabou voltando atrás ainda durante a viagem, decidindo em caráter provisório
(incorretamente, pelo menos no caso dos tordos) que as formas insulares eram
apenas variedades. As memórias da velhice de Darwin confirmam essa opinião,
de que ele apenas flertou brevemente com a evolução a bordo do Beagle,
rejeitando-a depois. Ele escreveu ao naturalista alemão Otto Zacharias em 1877:
“Quando estava a bordo do Beagle, eu acreditava na permanência das espécies,
mas, tanto quanto consigo me lembrar, de vez em quando vinham-me à mente
algumas vagas dúvidas.”
Uma segunda declaração, tomada em conjunto com uma interpretação
errônea das Ornithological Notes, também poderia ser considerada um indício de
que Darwin tornou-se um evolucionista em 1836, ainda em alto-mar. Ele
escreveu no seu diário de bolso: “Em julho, iniciei primeiro caderno sobre
‘transmutação das espécies’ — fiquei impressionado desde março passado com o
caráter de fósseis da América do Sul — e espécies no arquipélago das
Galápagos. Esses fatos originaram (especialmente mais tarde) todos os meus
pareceres.” Sabemos que ele iniciou o primeiro caderno sobre a transmutação em
julho de 1837 e poderíamos, portanto, interpretar o “março passado” como 1836,
mais ou menos a mesma época em que ele escrevia as Ornithological Notes, em
alto-mar. Mas o março passado poderia muito bem ser 1837, ocasião em que,
como veremos em breve, ele se encontrava em Londres, descobrindo junto a
especialistas da Sociedade Zoológica o verdadeiro caráter das suas coleções das
Galápagos — uma série de fenômenos que ele não conseguiu perceber durante a
visita em si.
O que, então, Darwin realmente viu nas Galápagos, e o que lhe passou
despercebido? Três grupos de animais atravessaram a história como os mais
famosos laboratórios evolutivos das Galápagos: os tordos-dos-remédios, as
tartarugas e os tentilhões. Foi apenas no caso dos tordos que Darwin fez a
observação-chave subjacente à história evolutiva contada depois (embora, como
vimos, Darwin tenha rejeitado explicitamente a leitura evolutiva em favor de
uma interpretação diferente). Em resumo, ele percebeu que formas variantes
(mais tarde reconhecidas como espécies verdadeiras, embora Darwin as tenha
catalogado originalmente como variedades) habitavam as diferentes ilhas que
visitou. Ele desembarcou primeiro na ilha Chatham, depois na ilha Charles, e
então percebeu que podia distinguir o tordo da ilha Charles da forma que
coletara antes na ilha Chatham. Assim, ele passou a coletar mais tordos onde
quer que desembarcasse e teve o cuidado de manter as coleções de cada ilha
diferente bem catalogadas e distintas. Ele não conseguiu distinguir o tordo de
Albemarle, na terceira ilha que visitou, da forma da ilha Chatham, mas o pássaro
da ilha James representava uma terceira variedade distinta (de acordo com a sua
interpretação original). [Ilhas Chatham, Charles, Albemarle e James. Trata-se, respectivamente, das
ilhas San Cristobal, Floreana, Isabella e Santiago].
As tartarugas das Galápagos são todas de uma espécie, mas a maioria das
ilhas apresenta as suas próprias subespécies reconhecíveis. Estas cobrem uma
amplitude impressionante de formas, desde as carapaças lisas, abobadadas, até
aquelas com a peculiar forma de sela, com uma corcova pronunciada logo acima
da cabeça. A história passou completamente despercebida a Darwin. Ele não
notou nem mesmo as carapaças em forma de sela. Além disso, o seu conceito
básico a respeito dessas tartarugas garantia virtualmente que não seria capaz de
fazer a observação crucial.
Nicholas Lawson, o vice-governador, disse a Darwin que “as tartarugas
diferem de ilha para ilha, e que ele podia dizer com certeza de qual ilha cada
uma delas havia sido trazida” (embora as distinções sejam abundantes, essa
declaração é excessivamente otimista, e os especialistas modernos nem sempre
conseguem distinguir a variedade de cada ilha). Darwin, contudo, segundo
confissão própria, pouco fez dessa informação, escrevendo na edição de 1845 da
Viagem do Beagle:

Durante algum tempo não dei atenção suficiente a essa declaração, e já havia
misturado parcialmente as coleções de duas das ilhas. Nunca imaginei que
ilhas separadas entre si por cinquenta ou sessenta milhas, a maioria delas à
vista uma da outra, formadas precisamente pelas mesmas rochas, colocadas
sob clima inteiramente similar, erguendo-se quase que à mesma altura,
pudessem ser povoadas de modo diverso.

Como resultado de um erro comum em classificação, Darwin estava pouco
disposto a considerar as diferenças entre as ilhas como evolutivamente (ou
taxonomicamente) significativas. Darwin aceitou a opinião geral de que as
tartarugas das Galápagos não eram taxonomicamente distintas, mas que
pertenciam à espécie Testudo indicus, a tartaruga terrestre gigante das ilhas
Aldabra, no oceano índico. Elas haviam sido trazidas para as Galápagos por
bucaneiros, prosseguia a falsa história, apenas recentemente. Portanto, as
diferenças de ilha para ilha, se é que realmente existiam, só podiam ser imediatas
e superficiais — causadas por climas rudes na época da introdução. Além disso,
Darwin nunca viu tartarugas com carapaça em forma de sela vivas. Ele observou
tartarugas vivas apenas nas ilhas James e Chatham, e ambas possuem versões de
carapaças abobadadas quase indistinguíveis.
Ainda assim, Darwin não pode ser inteiramente absolvido da acusação de
certo descuido na observação. Ele realmente teve uma oportunidade de observar
a carapaça em forma de sela, mas não conseguiu fazê-lo, ou então deixou de
registrar qualquer impressão. A raça da ilha Charles estava extinta quando
Darwin chegou, mas havia carapaças antigas em abundância no povoado, onde
serviam como vasos de flores. Além disso, Darwin demonstrou singularmente
pouco interesse em preservar para comparação os espécimes das diferentes ilhas,
um sinal óbvio de que não considerava significativa a declaração de Lawson
(algo de que posteriormente se arrependeria muito). O capitão Fitzroy embarcou
trinta grandes tartarugas de Chatham para reforçar o suprimento de carne do
Beagle para a longa travessia do Pacífico. Sulloway observa:

Mas Darwin e os outros membros da tripulação foram gradualmente
comendo os indícios que, por fim, na forma de boatos, deveriam
revolucionar as ciências biológicas. Lamentavelmente, nenhuma das trinta
carapaças da ilha Chatham chegou à Inglaterra, tendo todas sido jogadas ao
mar, junto com todos os restos não comestíveis.

A reação de Darwin aos tentilhões das Galápagos foi ainda mais cheia de
erros e incompreensão. Mais uma vez, ele não demonstrou qualquer apreço pela
importância das diferenças entre as ilhas. Na verdade, ele nem mesmo se deu ao
trabalho de registrar ou catalogar as ilhas que haviam abrigado os espécimes
colhidos. Apenas três dos seus 31 tentilhões são identificados por ilha nas
Ornithological Notes, todos membros de uma espécie altamente distinta que
Darwin recordava-se ter visto apenas na ilha James. Mais tarde, ele escreveu
com pesar na Viagem do Beagle\ “Infelizmente, a maioria dos espécimes da tribo
dos tentilhões foi misturada.” Em segundo lugar, ele absolutamente não coletou
espécime algum numa das ilhas que visitou — Albemarle. É verdade que esteve
lá apenas durante parte de um dia, mas o seu próprio diário testemunha uma
abundância de tentilhões facilmente coletáveis numa fonte perto de Bank’s
Cove: “Para o nosso desapontamento, os pequenos poços de Sandstone mal
continham um galão de água, e esta não era boa. Era, porém, suficiente para
atrair todos os passarinhos do lugar; as suas margens fervilhavam de pombos e
tentilhões.”
Em terceiro lugar, excetuando-se o tentilhão dos cactos e o tentilhão trinador,
Darwin não observou qualquer distinção na dieta e acreditou erroneamente que
todos eles comiam os mesmos tipos de alimento. Assim, ele não poderia ter
reconstruído a nossa história moderna, mesmo que estivesse inclinado a ter
opiniões evolutivas.
Em quarto lugar, todo o estilo de coleta de Darwin nas Galápagos refletia
vigorosamente os seus pressupostos criacionistas. Os evolucionistas veem a
variação como fundamental, como a matéria-prima da mudança evolutiva. As
espécies só podem ser bem definidas através da coleta de vários espécimes e da
definição do seu espectro de variação. Os criacionistas acreditam que cada
espécie é dotada de uma essência fixa. A variação é meramente um incômodo,
uma série confusa de desvios de uma forma ideal, induzidos pelo ambiente. Os
criacionistas tendem a colher um número limitado de cada espécie e a
concentrar-se na obtenção de indivíduos mais próximos da forma essencial.
Darwin coletou bem poucos espécimes, geralmente apenas um macho e uma
fêmea de cada espécie. Ao todo, ele obteve apenas 31 tentilhões das Galápagos.
Em contrapartida, uma expedição, entre 1905 e 1906, da Academia de Ciências
da Califórnia, enviada explicitamente para estudar a evolução, trouxe mais de
8.000 espécimes.
Em quinto lugar, e mais importante, os tentilhões não revelam nenhuma
história evolutiva, a menos que se reconheça que, apesar das diferenças externas
de forma e comportamento, todos eles constituem um grupo genealógico
intimamente relacionado. Porém enquanto Darwin esteve nas Galápagos, foi
logrado pela estonteante diversidade e não reconheceu os tentilhões de Darwin
como uma entidade taxonômica. Ele relacionou os tentilhões dos cactos com
uma família de pássaros que inclui papafigos e calhandras, e classificou
erroneamente o tentilhão trinador como uma carriça ou um “trinador”. Aqueles
que reconheceu como tentilhões, ele dividiu em dois grupos de parentesco
distante dentro da família. Sulloway observa: “Quanto ao suposto discernimento
de Darwin da evolução por meio de irradiação adaptativa enquanto ainda se
encontrava nas Galápagos, na época, quanto mais as várias espécies de tentilhões
exibiam esse fenômeno notável, mais Darwin as tomava erroneamente pelas
formas que elas imitavam.”
A fonte teórica do erro de Darwin encontra-se num princípio razoavelmente
misterioso do estilo criacionista de taxonomia por ele seguido. Se os animais são
criados de acordo com um plano racional e geral na mente da divindade, então
certos “caracteres-chaves” poderiam ser pistas para a estrutura taxonômica em
diferentes níveis. Por exemplo, a variação em caracteres “superficiais” como o
tamanho e o formato poderiam definir espécies diferentes, ao passo que a
variação em traços “fundamentais” como a forma de órgãos essenciais poderia
testemunhar as diferenças mais importantes entre gêneros e famílias. Idealmente,
uma hierarquia de caracteres-chaves deveria definir níveis taxonômicos. Darwin
tentou seguir tal sistema nas classificações preliminares do Beagle. As espécies
dentro de um gênero de pássaros deveriam diferir na plumagem, ao passo que os
gêneros deveriam ser separados por caracteres tais como a forma do bico. Os
tentilhões de Darwin são todos semelhantes na plumagem, mas diferem muito
nos estilos de alimentação e, consequentemente, no formato dos bicos. Pela
hierarquia criacionista de caracteres-chaves de Darwin, eles pertenciam a
gêneros ou famílias diferentes.
A hierarquia de caracteres-chaves não faz sentido algum num contexto
evolutivo. Os caracteres que definem gêneros numa situação poderiam variar
bastante entre espécies dentro de outro grupo. Os bicos podem definir tipos de
alimentação, e os tipos de alimentação em geral tendem a distinguir gêneros em
continentes. Mas se apenas um tipo de passarinho consegue alcançar um
arquipélago oceânico e então se diversificar, na ausência de competidores, numa
ampla variedade de nichos ecológicos e tipos de alimentação, então os critérios
tradicionais para os gêneros — a forma do bico — serão agora diferentes em
espécies intimamente aparentadas. Na exuberante confusão da evolução, em
oposição à ordem da mente de um criador, são as respostas a ambientes locais
prefixados, e não regras de mudança, que determinam quais partes do corpo
serão modificadas em qualquer caso particular. O comportamento e a plumagem
num lugar; a alimentação e o formato do bico em outro. Não existe tal coisa
como um caráter invariavelmente “específico” ou “genérico”.
Resumindo, então, Darwin chegou às Galápagos e delas saiu como
criacionista, e o seu estilo de coleta durante toda a visita refletiu essa posição
teórica. Vários meses depois, compilando as anotações em alto-mar, durante as
longas horas da travessia do Pacífico, ele flertou brevemente com a evolução
enquanto pensava nas tartarugas e nos tordos, não nos tentilhões. Mas ele
rejeitou essa heresia e atracou na Inglaterra em 2 de outubro de 1836 na
condição de criacionista que nutria dúvidas nascentes.
Esta nova versão da história dos tentilhões é particularmente satisfatória
porque se ajusta bem melhor do que a velha lenda ao uso que Darwin fez dos
tentilhões das Galápagos ao longo de todos os seus escritos posteriores. Ele
nunca os mencionou em nenhum dos Transmutation Notebooks que manteve de
1837 a 1839 e que servem de fundamento para a sua obra posterior. Eles
recebem apenas uma observação passageira na primeira edição (1839) da
Viagem do Beagle. É claro que a segunda edição (1845) realmente contém essa
declaração profética, escrita depois de Darwin ter descoberto que os tentilhões
formam um grupo genealógico intimamente relacionado.
Vendo a gradação e a diversidade de estrutura num grupo pequeno,
intimamente relacionado, de pássaros, poder-se-ia de fato imaginar que, de um
pequeno número de pássaros neste arquipélago, üma espécie foi tomada e
modificada para diferentes fins.
Mas se os tentilhões produziram uma impressão tão tardia, o impacto parece
não ter se mantido. Os tentilhões não são absolutamente mencionados na Origem
das espécies (1859); o astro ornitológico daquele grande livro é o pombo
doméstico. Sulloway conclui, justificadamente, creio eu, que:
Contradizendo a lenda, os tentilhões de Darwin não parecem ter inspirado os
seus primeiros pareceres teóricos sobre a evolução, mesmo depois que ele se
tornou um evolucionista em 1837: para ser mais exato, foram os seus pareceres
evolutivos que lhe permitiram posteriormente compreender o complexo caso dos
tentilhões.
Darwin retornou em 1836 à Inglaterra, um jovem ambicioso, ansioso por
deixar a sua marca na ciência; não se deve permitir que a posterior e elegante
modéstia da velhice ocultem esse vigor juvenil. Ele sabia que a chave para a sua
reputação encontrava-se nos valiosos espécimes que coletara a bordo do Beagle,
e, portanto, fez esforços determinados e bem-sucedidos para confiá-los aos
melhores especialistas e para obter fundos para a publicação dos resultados. Em
março de 1837, ele se mudou para Londres, em boa parte para ficar perto dos
especialistas que estudavam os seus espécimes. Iniciou uma série de encontros
com esses homens, descobriu afinal o verdadeiro caráter do seu material e
surgiu, depois de um ou dois meses, como evolucionista.
Na famosa anotação do seu diário de bolso, citada anteriormente, ele
escreveu que o caráter dos fósseis da América do Sul e das espécies das
Galápagos haviam sido os principais catalisadores da sua conversão evolutiva.
Richard Owen, o mais eminente paleontólogo de vertebrados da Grã-Bretanha,
concordara em estudar os fósseis e informou a Darwin que eles representavam
versões diferentes, em geral maiores, de animais distintos que ainda habitavam a
América do Sul. Darwin reconheceu que a melhor interpretação desta “lei de
sucessão” colocava as formas antigas como ancestrais evolutivos de animais
modernos alterados.
O famoso ornitologista John Gould (não é meu parente) encarregara-se dos
pássaros do Beagle. Darwin encontrou-se com ele em meados de março e soube
que três formas de tordos-dos-remédios eram espécies separadas, não variedades
simples e superficiais de um tipo único e criado. Darwin já havia proclamado
que tal conclusão (por ele rejeitada anteriormente) “abalaria a ideia de
estabilidade das espécies”. Além disso, Gould informou-lhe que vinte e cinco
dos seus vinte e seis pássaros terrestres das Galápagos eram espécies novos, mas
claramente aparentadas com formas do continente sul-americano. Darwin
integrou essa informação espacial aos dados temporais que Owen fornecera e
oscilou ainda mais para o lado da evolução. Os pássaros distintos das Galápagos
devem ser descendentes evolutivos de colonizadores do continente sul-
americano. Darwin não estava inteiramente preparado para uma interpretação
evolutiva dos tentilhões, e a correção de Gould dos erros de Darwin lhe forneceu
também essa peça do quebra-cabeças (embora o próprio Gould não adotasse
pareceres evolutivos).
Apesar de ser um criacionista em taxonomia, Gould reconheceu
imediatamente que os bicos não podiam ser usados como caracteres-chaves e
para a separação de gêneros nos tentilhões das Galápagos. Ele compreendeu que
esses pássaros não eram, como Darwin pensara, um agrupamento heterogêneo de
tentilhões divergentes com um papafigo ou um “trinador” jogados no meio;
tratava-se, na verdade, de um grupo peculiar de treze espécies intimamente
relacionadas, as quais ele colocou num único gênero, com três subgêneros. “O
bico parece constituir apenas um caráter secundário”, proclamou Gould. Darwin
tinha finalmente a base de uma história evolutiva.
Darwin foi estimulado a se converter à evolução e preparou-se para
reinterpretar toda a sua viagem sob esta nova óptica. Mas ficou também
profundamente embaraçado porque agora percebia que o fato de não ter
separado os tentilhões por ilhas, algo que não constituía um problema particular
num contexto criacionista, fora um lapso sério e lamentável. Ele não podia fazer
grande coisa com a sua própria coleção, além de sondar uma lembrança
imperfeita e gradualmente enfraquecida; por sorte, porém, três dos seus
companheiros de viagem também haviam coletado tentilhões — e, por não terem
feito (ironicamente) a coleta com uma teoria ativamente criacionista em mente
(com a implícita irrelevância atribuída a dados geográficos precisos), eles
haviam registrado as ilhas de coleta. Como ironia adicional, uma dessas coleções
fora reunida pelo próprio capitão Fitzroy, mais tarde inimigo implacável de
Darwin, o homem que, em passos duros, na reunião da British Association em
que Huxley arrasou Wilberforce, brandiu uma Bíblia no ar, exclamando: “o
Livro, o Livro.” (A coleção de Fitzroy continha 21 tentilhões, todos catalogados
por ilha. Darwin também teve acesso às coleções menores do seu criado Syms
Covington e de Harry Fuller, que passara uma semana fazendo coletas com ele
na ilha James.)
Darwin, portanto, tentou reconstruir as localidades dos próprios espécimes
comparando-os com as coleções minuciosamente catalogadas dos seus
companheiros de navio e, infelizmente, como se percebeu mais tarde,
pressupondo que a história dos tentilhões seria semelhante à dos tordos — com
cada espécie confinada a uma única ilha definida. No entanto, como a maioria
das espécies de tentilhões habita várias ilhas, esse procedimento deu origem a
um grande número de erros. Sulloway relata que ainda existem dúvidas
substanciais a respeito da exatidão das informações geográficas de oito dentre os
quinze espécimes de tentilhões do “tipo” Darwin (ou que levam o nome). Não é
de admirar que ele nunca tenha sido capaz de elaborar uma história clara e
coerente para os tentilhões de Darwin. Não é de admirar, talvez, que eles nunca
tenham sequer aparecido na Origem das espécies.
Concluindo, por que esta correção da lenda dos tentilhões de Darwin é de
grande importância? As duas histórias são realmente tão importantes? Darwin,
qualquer que tenha sido o caso, foi bastante influenciado pelos indícios das
Galápagos. Na primeira e falsa versão, ele compreende tudo sozinho durante a
visita. No segundo relato, o modificado, ele necessita de uma cutucada (e de
algumas substanciais correções) dos amigos quando retorna a Londres.
Eu vejo um mundo de diferença entre as histórias no que fica nelas implícito
sobre a natureza da criatividade. A primeira versão (falsa) sustenta a visão
romântica e empiricista de que o gênio conquista a sua condição por meio de
uma habilidade para ver a natureza com os olhos livres do véu de preconceitos
da cultura circundante e dos pressupostos filosóficos. A visão de um
brilhantismo tão puro e imaculado tem alimentado a maioria das lendas na
história da ciência e fornece pareceres seriamente falsos sobre o processo do
pensamento científico. Os seres humanos não podem escapar aos seus
pressupostos e ver “com pureza”; Darwin operou como um criacionista ativo ao
longo de toda a viagem do Beagle. A criatividade não é uma fuga da cultura,
mas um uso singular das suas oportunidades, combinado com um inteligente
desvio ao redor das limitações que ela impõe. A realização científica também é
uma atividade comunitária, não a realização de um eremita. Onde estaria Darwin
em 1837, sem Gould, Owen e a vida científica ativa de Londres e Cambridge?
Assim que abandonamos a imagem sedutora, mas falaciosa, de Darwin
vencendo a sua batalha intelectual absolutamente sozinho em alto-mar, podemos
fazer a pergunta realmente interessante que começa a devassar o gênio peculiar
de Darwin. Gould era o especialista. Gould resolveu os detalhes de modo
correto. Gould, embora fosse um sólido criacionista em taxonomia, reconheceu
que tinha de abandonar os bicos como caracteres-chaves. Darwin não conseguiu
nada disso. Mas foi Darwin, não Gould, quem reconheceu que todas as peças
exigiam uma explicação radicalmente diversa — a evolução — para que se
construísse uma história coerente. O amador triunfou quando os interesses eram
superiores, ao passo que o profissional conseguiu os detalhes com exatidão, mas
não percebeu o tema organizador.
Darwin continuou a trabalhar desse modo durante toda a sua carreira. De
alguma forma, como amador, ele conseguiu romper padrões mais antigos de
pensamento e vislumbrar novos modos de explicação que poderiam se ajustar
melhor a uma história nascente, detalhada, elaborada por especialistas que, de
alguma maneira, não conseguiram dar o grande passo final. Darwin, porém,
trabalhou com a sua cultura e os seus colegas. A ciência é um esforço coletivo;
mas alguns indivíduos operam com uma visão ampliada — e gostaríamos de
saber como e por quê. Não podemos fazer pergunta mais difícil, e eu não
proponho nenhuma solução geral. Mas sem dúvida precisamos varrer as lendas
heroicas antes de começar.

24. Um caminho curto para o milho




Uma vez que Tipperary ficava a apenas algumas milhas, e não tão longe
como na canção e na lenda, fiz um desvio para visitar a cidade. Logo me senti
como o espertalhão da cidade grande naquela antiga piada da Nova Inglaterra. À
procura de um vilarejo, ele para diante de um armazém e pergunta a um senhor:
“Onde fica Pleasantville?” “Não dê mais nem um passo que seja”, responde o
outro.
Tipperary, engrandecida pela sua fama e pela minha imaginação, é apenas
uma rua principal com umas poucas lojas e casas. Esta cena sinistra repetiu-se
vezes e vezes durante a minha visita àquela belíssima terra europeia. Pois a
Irlanda, contrariando a tendência da maioria dos outros países, é uma nação
pouco populosa. A cifra atual de três milhões de habitantes é apenas a metade do
total da de 1840. Casas, fazendas e mesmo cidades abandonadas espalham-se
pelo campo.
O começo da grande imigração que tanto enriqueceu a minha cidade natal de
Nova York e o meu lar atual, Boston, data da grande fome das batatas de 1845 e
1846, quando um milhão de pessoas morreu de fome e outro milhão foi embora.
A batata é um alimento notável. Ela contém uma série tão equilibrada de
nutrientes que as pessoas podem viver anos a fio sem comer praticamente mais
nada. Monótono talvez, batatas sendo batatas, mas perfeitamente viável. Os
camponeses da Irlanda muitas vezes não comiam mais nada além de batatas
durante os longos meses do inverno. Mas a doença atacou a colheita em 1845,
destruindo-a quase que por completo e produzindo fome sem precedentes e o
grande êxodo para Liverpool e além.
A doença das batatas na Irlanda ilustra um dilema clássico na agricultura.
Para produzir a “melhor” planta visando a obtenção de produção máxima, os
fazendeiros e cientistas aperfeiçoam e selecionam durante gerações até obter a
combinação certa de características. Eles então propagam a colheita inteira a
partir dessa forma melhorada. Essas plantas, como descendentes de um único
tipo de progenitor, são geneticamente uniformes e de variabilidade esgotada. Em
outras palavras, trocamos a diversidade genética por um ótimo invariável.
Tudo pode ir muito bem durante algum tempo, mas castas uniformes são
extremamente suscetíveis às devastações da doença. Se algum vírus, bactéria ou
fungo atacar com sucesso as plantas, pode destruir todas, devastando assim a
colheita. Nas populações naturais, por outro lado, a variação genética entre os
indivíduos assegura que alguns gozarão de proteção contra o agente da doença e
que parte da colheita sobreviverá. Como as plantas do ano seguinte são
descendentes desses sobreviventes imunes, as populações com variabilidade
abundante mantêm um mecanismo natural para se livrarem da doença.
Os irlandeses, cultivando as suas batatas a partir de uma casta uniforme,
perderam a colheita inteira em 1845. Pode-se contar a mesma história em relação
à maioria dos principais produtos agrícolas. Alguns estudiosos acreditam que o
misterioso colapso da civilização maia clássica foi precipitado por um vírus,
transmitido por cigarras cicadulídeas disseminadas por correntes aéreas de
grande altitude, que varreu a cultura de milho virtualmente da noite para o dia. O
milho continua a nos atormentar com problemas semelhantes. Durante o verão
de 1970, uma nova variedade mutante do Fungo da Doença das Folhas do Sul
assolou os campos de milho americanos ao ritmo de cinquenta milhas ou mais
por dia, devastando todas as plantas que haviam sido criadas para conter um
elemento genético chamado fator citoplasmático Texas de esterilidade
masculina.
Para evitar esse dilema, os criadores tentam aumentar a variabilidade
genética cruzando as castas bem-sucedidas, mas uniformes, com variedades
diferentes. Com relação ao milho, temos uma importante fonte de hibridação
potencial numa planta de aparência nitidamente diferente, a gramínea do Novo
Mundo conhecida como teosinto. Por exemplo, a Zea diploperennis, uma
espécie de teosinto descoberta há pouco tempo, é a única fonte conhecida de
imunidade contra três dos principais vírus que afligem o milho doméstico. (É
bom lembrar que essa espécie é uma planta perene, ao contrário do milho, com
seu ciclo anual; isso dá substância potencial a um velho sonho, o de que, pela
hibridação, os criadores possam produzir um milho perene, que sobreviva de
safra para safra e que não tenha de ser replantado por semente a cada ano).
A princípio, pode parecer estranho que uma planta tão diferente do milho na
aparência deva ser suficientemente similar em estrutura genética para permitir a
hibridação. É bem verdade que as plantas jovens do milho e do teosinto são
indistinguíveis, mas depois da floração, as diferenças entre as estruturas adultas
não poderiam ser mais profundas. A parte útil do milho é um grande sabugo com
várias fileiras de grãos (o termo técnico, polístico — que significa simplesmente
várias fileiras —, soa muito bem). O sabugo e os grãos são femininos, e situam-
se na ponta terminal de fortes ramos de posição lateral em relação ao caule
principal (preste atenção nisto, pois essas posições tornam-se cruciais na
argumentação que desenvolverei). Muitas pessoas não reconhecem essa posição
porque as espigas de milho parecem estar enfiadas nos lados do caule principal.
No entanto, as cascas que envolvem tão completamente as espigas são na
verdade resquícios de folhas que constituíam um ramo lateral maior. Elas
cobrem o sabugo, o qual se encontra, na verdade, em posição terminal num ramo
lateral drasticamente reduzido. O caule central tem na ponta terminal um pendão
masculino, a fonte do pólen. Assim, o milho desenvolve estruturas masculinas e
femininas separadas: o pendão, em posição terminal no caule principal, é
masculino; as espigas, em posição terminal nos ramos laterais, são femininas.
O teosinto, por outro lado, desenvolve um caule central e vários ramos
laterais longos, de comprimento e força comparáveis. Cada ramo termina num
pendão masculino. As espigas femininas, de modo inteiramente diverso do
milho, crescem em posição lateral, não terminal, a partir dos ramos laterais. A
“espiga” do teosinto é também um produto análogo pobre, uma nanica, quando
comparada com a majestosa espiga de milho. Ela contém (dependendo da raça
de teosinto) de seis a doze grãos em duas fileiras (tecnicamente, ela é dística)
unidas em uma, porque as pontas triangulares dos grãos opostos se encaixam. Os
grãos são envolvidos por uma cobertura externa dura sendo praticamente inúteis
como alimento humano, a menos que sejam estourados (como o milho de
pipoca) ou trabalhosamente moídos e separados da cobertura não-comestível.
(Os grãos de milho são moles e nus, imediatamente disponíveis como alimento
porque as estruturas de cobertura não apenas são flexíveis, mas são tão reduzidas
em tamanho que envolvem apenas a base do grão.)
No entanto, apesar dessas diferenças, o milho e o teosinto são cruzados sem
qualquer impedimento, produzindo sabugos de tamanho intermediário. Tal
compatibilidade paradoxal existe por dois motivos básicos que refletem o tema
deste ensaio — uma investigação sobre a descendência e a origem do milho.
Primeiro, o teosinto é provavelmente o ancestral direto do milho doméstico
(alguns especialistas discordam, embora nenhum negue o parentesco próximo).
Segundo, não foram encontradas quaisquer disparidades cromossômicas ou
mesmo diferenças simples e coerentes em genes isolados entre o teosinto e o
milho. (É claro que as duas formas não poderiam ser tão diferentes na aparência
sem alguma divergência genética, mas a facilidade de hibridação e o nosso
fracasso em encontrar diferenças indicam que a distinção genética entre as duas
formas deve ser minúscula. Na verdade, os botânicos classificam o milho e os
teosintos anuais como uma mesma espécie, Zea mays).


A teoria do teosinto como origem do milho sempre sofreu por causa de um
importante dilema: Como isso pode acontecer? Como a espiga do teosinto, tão
diferente do milho, pode se transformar no sabugo moderno? O milho, como
todos os principais cereais domésticos, é uma gramínea. A origem evolutiva de
outros grãos importantes, o trigo, por exemplo, apresenta menos problemas. As
espigas de trigo diferem apenas em termos quantitativos da gramínea ancestral
selvagem — são, essencialmente, a mesma coisa, porém maiores. Podemos
compreender com facilidade como a seleção agrícola conseguiu transformar um
ancestral selvagem no trigo doméstico. Mas como é possível tirar um sabugo de
milho de uma espiga de teosinto ou de qualquer outra parte do teosinto? Eles são
construídos de modo tão diferente!
Na versão-padrão da hipótese do teosinto — a qual rejeitarei aqui em favor
de uma alternativa radical —, a espiga do teosinto é, não obstante, transformada
gradualmente na moderna espiga de milho. Aos poucos ela aumenta o número de
fileiras, ao passo que a cobertura externa dura vai amolecendo e se retirando dos
grãos. Esse roteiro parece bastante óbvio e compatível com a nossa costumeira
visão de transformação evolutiva. A tradição da modificação gradual da espiga
de teosinto em espiga de milho data, pelo menos, de Luther Burbank, o grande
“mago” da criação de plantas do início do século XX, que afirmou ter
transformado o teosinto em milho em dezoito gerações de seleção. Ele estava
errado. Ele começou, não com o teosinto, como pensava, mas com um híbrido de
milho e teosinto — e a sua seleção limitara-se a segregar e acumular os fatores
genéticos do milho. No entanto, o seu argumento geral a favor de uma
transformação gradual da espiga de teosinto em sabugo de milho persistiu. Num
artigo de janeiro de 1980 da Scientific American, George Beadle, um dos
grandes cientistas do milho de nossa época, proclamou que “os sabugos podem
ser dispostos numa sequência contínua, do teosinto ao milho moderno, com base
em modificações progressivas”.
No entanto, essa teoria de derivação gradual a partir da espiga de teosinto
depara-se com três grandes problemas, talvez fatais. Primeiro, o milho surge
repentinamente no registro arqueológico há sete mil anos. As primeiras espigas,
claro, não são tão gordas, nem têm tantas fileiras como o sabugo moderno, mas
representam nitidamente o milho, não algo entre o milho e o teosinto. Segundo,
como foi dito antes, os criadores não encontraram nenhuma diferença genética
sólida entre o milho e o teosinto. Se o milho fosse o produto de uma seleção
longa e vagarosa a partir do teosinto, um número considerável de mudanças
genéticas deveria ter se acumulado. Ambos os argumentos são negativos e,
portanto, não conclusivos. Talvez o surgimento repentino apenas testemunhe um
fracasso na descoberta de formas intermediárias; talvez a ausência de diferença
genética signifique apenas que não olhamos nas partes certas dos cromossomos
certos.
O terceiro argumento é positivo e mais perturbador para a hipótese de que as
espigas de milho surgiram das espigas de teosinto. Lembre-se do ponto que pedi
que fosse assinalado alguns parágrafos atrás: as posições das espigas do teosinto
e das do milho não são equivalentes. A espiga de teosinto brota lateralmente a
partir de ramos laterais; a espiga de milho desenvolve-se em posição terminal em
ramos laterais. No teosinto, a estrutura terminal dos ramos laterais principais é
um pendão masculino, não uma espiga feminina. Portanto, de acordo com a
posição — e direi num instante porque a posição é um critério tão importante —,
a espiga feminina do milho moderno é equivalente (ou, como dizemos no jargão
técnico, homóloga) a um pendão masculino.
Essa homologia de pendão masculino e espiga feminina já foi reconhecida (e
afirmada) há um bom tempo por muitos especialistas em milho, mas nenhum
explorou o fato antes para desenvolver uma hipótese sobre a origem do milho. A
teoria óbvia sugerida pela homologia pode, a princípio, parecer absurda, mas ela
resolve de modo plausível e refinado todos os problemas clássicos da hipótese
do teosinto. Em resumo, essa nova teoria propõe que as espigas de milho
evoluíram rapidamente a partir de pendões masculinos por meio do
encurtamento dos ramos laterais e da supressão das espigas de teosinto situadas
abaixo. Em vez de um aumento lento e contínuo das espigas femininas de
teosinto, prefiguramos uma transformação abrupta de pendões masculinos em
versões pequenas e primitivas de uma moderna espiga feminina de milho.
Hugh H. Iltis, professor de botânica e diretor do Herbário da Universidade de
Wisconsin em Madison, desenvolveu essa teoria heterodoxa e a divulgou
recentemente na principal publicação profissional dos Estados Unidos (ver
Bibliografia) [A teoria não convencional de Iltis logo desencadeou a esperada rajada de críticas dos
defensores dos pareceres mais tradicionais. Os leitores que desejarem acompanhar a controvérsia podem
começar com as críticas de dois “grandes chefes” dos estudos do milho (Walton C. Galinat e Paul C.
Mangelsdorf) e a resposta de Iltis, todas publicadas em Science, 14 de setembro de 1984, pp. 1093-1096,
logo após a publicação original deste ensaio. O livro de Mangelsdorf, Corn (Harvard University Press,
1974), contém uma grande riqueza de informações sobre a maior contribuição do nosso hemisfério para a
alimentação humana]. Não tenho nenhuma credencial de especialista em milho e não
posso fazer qualquer proclamação a respeito da verdade ou da falsidade desta
curiosa ideia. Quero, entretanto, ilustrar a sua condição de exemplo potencial
plausível de um processo evolutivo muitas vezes rejeitado com uma ridícula
falta de compreensão — o chamado monstro promissor.
Dizemos que partes de dois organismos são “homólogas” quando elas
representam a mesma estrutura segundo um critério de descendência evolutiva a
partir de um ancestral comum. Nenhum conceito é mais importante na
descoberta dos caminhos da evolução, pois as homologias registram a
genealogia, e conclusões falsas a respeito da homologia levam invariavelmente a
árvores evolutivas incorretas.
Estruturas homólogas não têm de ser parecidas. Na verdade, os exemplos-
padrão invocam órgãos bastante dissimilares em forma e função, pois esses
“clássicos” são escolhidos para ilustrar a ideia de que a mera semelhança não
tem a qualidade de critério. Os exemplos incluem a homologia do martelo e da
bigorna, ossos do ouvido médio dos mamíferos, com os ossos da articulação da
mandíbula dos répteis; e o pulmão dos vertebrados terrestres com a bexiga
natatória dos peixes ósseos.
Como podemos, então, reconhecer a homologia e, por meio dela, reconstruir
os caminhos da evolução? Essa questão dificílima da teoria evolutiva não tem
nenhuma resposta definitiva. Nenhum critério único funciona em todos os casos;
todas as regras têm exceções bem conhecidas. Devemos avaliar as homologias
propostas segundo todos os padrões e aceitar ou rejeitar uma hipótese através da
afirmação conjunta e independente de vários critérios. A similaridade no
desenvolvimento embriológico inicial muitas vezes funciona bem no caso de
estruturas que se tornam bastante diferentes nos adultos: os embriões jovens de
mamíferos desenvolvem os ossos do ouvido nas pontas das mandíbulas — e esse
fato harmoniza-se com uma sequência fóssil bem estabelecida que mostra a
redução desses dois ossos mandibulares e o seu deslocamento final para o
ouvido médio. No entanto, órgãos verdadeiramente homólogos podem ser
modificados por mudanças evolutivas que dissimulam os caminhos da
descendência.
Um detalhe aparentemente superficial — a simples relação espacial com
outras partes — muitas vezes serve bem como critério de homologia. Como diz a
velha ladainha, o osso do pé é mesmo ligado ao osso do tornozelo, e relações tão
fundamentais não podem ser alteradas com facilidade na evolução. Assim, o
chamado “critério posicional” de homologia é provavelmente o mais respeitado
e utilizado dentre todos os padrões. E, por esse critério, as modernas espigas
femininas de milho devem descender dos pendões masculinos do teosinto (pois
ambos os traços ocupam posição igual, nas pontas terminais dos ramos laterais),
e não das espigas femininas do teosinto.
Para que não pareça absurdo o fato de estruturas masculinas se
transformarem em órgãos femininos de aparência tão diversa, lembro aos
leitores que as partes masculinas e femininas muitas vezes possuem uma base
comum no desenvolvimento embriológico, uma se desenvolvendo diretamente a
partir da outra sob a influência de diferentes hormônios. Os órgãos genitais
externos de todos os mamíferos, por exemplo, têm início como estruturas
femininas: o clitóris aumenta, dobra-se e funde-se para formar um cilindro com
um tubo central, o pênis do macho; os labia majora expandem-se e fundem-se
na linha mediana para formar um saco escrotal. No ensaio 11 de Hen ’s Teeth
and Horse’s Toes, usei essas equivalências para afirmar que os notáveis órgãos
genitais das fêmeas das hienas pintadas, que imitam os órgãos masculinos,
surgem comumente a partir desses caminhos comuns de desenvolvimento
sexual, porque as fêmeas dessa espécie secretam níveis extraordinariamente altos
de testosterona durante o crescimento e se tornam maiores e dominantes em
relação aos machos.
O pendão e a espiga do milho também são estruturas equivalentes, e a
transformação de um no outro é igualmente plausível. Na verdade, tais trocas
muitas vezes ocorrem como teratologias, ou anomalias de desenvolvimento no
milho moderno. Os pendões masculinos podem se desenvolver como espigas
femininas ou como espigas femininas parciais com pontas masculinas por
diversos motivos: mutações genéticas e doenças que reduzem drasticamente o
ramo central, por exemplo. Iltis enviou-me a foto anexa de um pendão
feminilizado, vendido como uma espiga de milho comum no supermercado
Kohol em Madison, Wisconsin, por trinta e nove cents. O eixo central
desenvolveu-se como uma espiga feminina completa. Os três ramos laterais são
femininos na base, tornando-se gradualmente masculinos no ápice, com as partes
masculinas “dispostas”, disseme Iltis, “exatamente como em qualquer ramo de
pendão de milho ou teosinto”. É claro que tais teratologias apenas mostram a
permutabilidade entre pendões de milho e espigas de milho, não a derivação
evolutiva de espigas de milho a partir de pendões de teosinto. Mas elas
certamente ilustram, através de uma vigorosa analogia, por que o caminho
genealógico do pendão de teosinto até a espiga de milho continua a ser tão
sensato, embora pareça peculiar à primeira vista.


Ao chamar essa teoria de “transmutação sexual catastrófica”, Iltis identifica
eficazmente as suas duas propriedades notáveis e não convencionais. Primeiro,
usando o critério posicionai da homologia como guia, as espigas de milho
femininas surgiram através da transmutação de um pendão masculino de
teosinto, e não através do crescimento gradual de uma espiga feminina de
teosinto. Segundo, a transformação ocorreu rapidamente, sob a orientação de
pouca (ou nenhuma) mudança genética, a despeito da alteração repentina e
surpreendente da forma. Tentarei resumir a argumentação de Iltis nos seguintes
passos básicos:

1. Tanto no milho quanto no teosinto, os hormônios são distribuídos ao longo
de gradientes simples em caules longos, com zonas
masculinas nos ápices, passando através de um limiar para zonas femininas
abaixo.
2. Um gradiente na época de diferenciação durante o desenvolvimento
também acompanha essa distribuição hormonal. As estruturas nos ápices dos
caules desenvolvem-se antes das que estão abaixo. Num ramo lateral de
teosinto, o pendão masculino terminal diferencia-se antes das espigas
femininas abaixo.
3. As necessidades alimentares de um pendão masculino são pequenas, as de
uma espiga feminina (particularmente de uma espiga grande e polística de
milho) muito maiores. A diferenciação de um pendão na ponta terminal de
um ramo ainda deixa a maioria dos nutrientes disponíveis para o
desenvolvimento de estruturas femininas abaixo (ver ponto 2).
4. Se um pendão masculino terminal se transformasse abruptamente numa
espiga feminina, essa espiga iria se tornar de imediato um receptáculo para
todos os nutrientes disponíveis e poderia suprimir de forma automática o
desenvolvimento de qualquer estrutura feminina subsequente em posição
inferior no ramo.
5. O passo inicial da transmutação sexual catastrófica, dados os pontos de 1 a
4, poderia, portanto, exigir nada mais do que um encurtamento acentuado de
um ramo lateral de teosinto. O encurtamento mudaria a ponta do ramo, de
zona masculina para zona feminina (ponto 1). A estrutura terminal então se
diferenciaria primeiro como espiga feminina (pontos 1 e 2). A espiga
terminal iria se apropriar de todos os nutrientes e suprimir o
desenvolvimento de quaisquer estruturas abaixo, inclusive das costumeiras
espigas femininas de teosinto (pontos 3 e 4).
6. Embora o encurtamento de um ramo possa induzir uma série profunda e
variada de consequências automáticas (ponto 5), a mudança inicial (o
encurtamento em si) é simples e pode exigir apenas uma alteração genética
insignificante, talvez a mutação de um único gene. A mudança inicial
poderia mesmo não exigir absolutamente mutação genética alguma, pois
vários tipos de ferrugem e vírus do milho, ou mesmo uma simples mudança
ambiental, como temperaturas noturnas mais frias, ou dias mais curtos,
poderiam levar a uma feminilização dos pendões centrais do milho.
7. E claro que o produto inicial de tal encurtamento e feminilização não seria
uma espiga moderna de milho plenamente desenvolvida. O primeiro passo
produziria, com toda probabilidade, um sabugo com umas poucas fileiras de
grãos femininos na base e estruturas masculinas acima. A produção de
espigas polísticas, ou de muitas fileiras, continua problemática. Uma
hipótese imagina a conjunção de vários segmentos do pendão (à medida que
o ramo diminui) e a sua junção e entrelaçamento subsequentes para formar a
espiga polística. Lembre-se, porém, de que a teoria convencional de
derivação a partir de uma espiga de teosinto com duas fileiras depara-se com
o mesmo problema e propõe a mesma resolução básica. Como assinala Iltis,
o pendão de um teosinto é um candidato melhor do que a espiga de teosinto
para tal processo hipotético. A espiga do teosinto é, como dizem os biólogos,
uma estrutura fortemente “canalizada” — uma que se desenvolve
basicamente do mesmo modo em todos os indivíduos de uma raça, sem
muita variação de planta para planta. Ela sempre tem duas fileiras e poucos
grãos. O pendão, por outro lado, é bem variável e prolífico em unidades
individuais (todas adequadas para a transformação em grãos). Ao
transformar uma variante masculina com quantidade máxima de fileiras e
unidades, o primeiro passo poderia nos trazer bem mais perto de uma espiga
de milho do que qualquer mudança inicial a partir de uma espiga de teosinto.
8. A espiga inicial, pequena, da transmutação sexual catastrófica é
imediatamente útil como alimento humano. Os fazendeiros, portanto,
propagam os grãos e selecionam as futuras gerações a partir das plantas com
os grãos maiores. A seleção agrícola comum, portanto, produz a espiga
maior e mais cheia a partir da sua condição inicial, um tanto quanto pequena,
mas ainda assim útil.

Como característica geral mais importante, a teoria de Iltis propõe que uma
pequena mudança genética, que inicia uma modificação básica de forma
(encurtamento dos ramos laterais), engendra automaticamente uma importante
alteração de estrutura (transformação da espiga do pendão masculino em espiga
feminina) “destruindo o equilíbrio’ ’ dos sistemas de desenvolvimento e sexual
herdados (gradientes hormonais de macho para fêmea ao longo de um caule, e
gradientes em diferenciação que permitem que estruturas terminais se
desenvolvam primeiro). Essa teoria, portanto, pode servir como um exemplar
notável de um processo longamente ridizularizado por evolucionistas
convencionais, mas, a meu ver, eminentemente plausível em certos casos — o
“monstro promissor”, um parecer “saltacionista” para a origem de estruturas
morfológicas e de espécies novas (evolução por saltos). O grande geneticista
alemão Richard Goldschmidt propôs essa ideia numa série de obras, que
culminaram no seu livro de 1940, The Material Basis of Evolution (recentemente
reimpresso pela Yale University Press com uma introdução feita por este seu
criado). O monstro promissor de Goldschmidt tornou-se o bode expiatório dos
darwi-nianos ortodoxos, com as suas preferências pela mudança gradual e
contínua, e a sua teoria sofreu o destino mais cruel de todos — não ser lida nem
compreendida, ao mesmo tempo em que era ridicularizada numa versão caricata.
Na sua versão caricata, os monstros promissores são rejeitados por três
motivos. A proposta de Iltis sobre a origem do milho ilustra muito bem a teoria
na sua forma correta e sutil, tal como Goldschmidt a apresentou, e fornece um
antídoto específico para todos os três argumentos. Primeiro, os detratores
afirmam que a teoria de Goldschmidt representa uma capitulação à ignorância,
uma busca de apoio em algum tipo de acidente singular e caprichoso, útil por
acaso, vez ou outra. No entanto, não sabemos que virtualmente todas as grandes
mudanças são prejudiciais? Goldschmidt reconheceu que a maioria dos
macromutantes são inviáveis — monstros verdadeiramente sem esperança, nas
suas palavras. Os poucos promissores conquistaram a sua condição precisamente
porque alcançaram a sua forma abruptamente alterada dentro das limitações
impostas por um sistema de desenvolvimento herdado. Os monstros promissores
não são uma velha mudança singular, mas modificações em larga escala ao
longo de caminhos estabelecidos de desenvolvimento sexual e embriológico
comuns. Na teoria de Iltis, os gradientes herdados, de desenvolvimento e
hormonais, ao longo de um ramo, permitem a transformação do pendão em
espiga. Mudanças grandes em harmonia com — e produzidas ao longo de —
caminhos comuns de desenvolvimento não têm de ser inviáveis, pois elas se
encontram dentro das possibilidades herdadas da organização fundamental.
Segundo, os monstros promissores têm sido rejeitados porque supostamente
propõem perturbações desconhecidas e de grande escala dos sistemas genéticos.
De fato, no fim da carreira, Goldschmidt infelizmente confundiu a noção inicial
de mudança por saltos na forma com uma teoria posterior de mudança genética
abrupta e substancial — a chamada mutação sistêmica. Mas, na versão inicial de
Goldschmidt, o monstro promissor surgiu como consequência de mudanças
genéticas pequenas — e, portanto, plausíveis e ortodoxas — que produzem
grandes efeitos na forma porque alteram estágios iniciais de desenvolvimento
que provocam efeitos em cadeia no desenvolvimento subsequente. Iltis propõe
uma mudança genética pequena (ou mesmo nenhuma) como base para o
encurtamento dos ramos laterais e a produção do salto, de pendão para espiga,
como uma consequência automática de padrões de desenvolvimento.
Terceiro, quem o monstro promissor irá escolher para o acasalamento? Ele é
apenas um indivíduo, ainda que bem dotado, e a evolução exige a difusão dos
traços favoráveis na população. A prole de duas formas diferentes, um indivíduo
normal e um monstro promissor, será, com toda probabilidade, estéril ou, pelo
menos, no seu estado peculiarmente híbrido, não será páreo para os indivíduos
normais na seleção natural. No entanto a teoria de Iltis evita esse problema
invocando a ajuda humana na propagação das sementes. O teosinto trans-mutado
catastroficamente ainda é uma criatura viável, com um pendão masculino na
espiga central e espigas femininas em posições terminais nos ramos laterais.
Por fim, uma última característica, interessante e incomum, da teoria de Iltis:
ela recorre à resposta humana, não apenas para melhorar a espiga inicial por
meio da seleção convencional, mas também para torná-la, antes de mais nada,
uma estrutura viável — um exemplo notável de interação entre duas espécies
disparatadas na natureza. A espiga de milho, como objeto natural, pode muito
bem não ser funcional — pois os folhelhos, que envolvem o sabugo com firmeza
como resultado do encurtamento tão drástico do ramo lateral, impedem qualquer
dispersão das sementes (os grãos). Em estado natural, a espiga simplesmente
apodreceria no local onde caísse, ou daria origem a plantas tão próximas entre si
que nenhuma delas alcançaria a maturidade plena. Mas os fazendeiros podem
tirar os folhelhos e plantar as sementes — convertendo um monstro sem
esperança num monstro muitíssimo promissor e útil.
O milho é a terceira maior cultura do mundo, não muito atrás do trigo e do
arroz. Na condição de cultura básica original dos povos do Novo Mundo, ele
construiu as civilizações de um hemisfério inteiro. Hoje plantamos 270 milhões
de acres de milho por ano, que produzem quase nove bilhões de Bushels (unidade
de medida de grãos. Equivale a oito galões ou 36,5 litros - N.R.T.). A maior parte disso não
acaba em tacos ou salgadinhos, mas em ração animal — a fonte primária para os
nossos apetites carnívoros. Precisamos do milho para uma vida confortável, mas
o milho precisa de nós, simplesmente para sobreviver.




7. Avida aqui e em outros lugares

25. Justamente no meio




A defesa da integridade orgânica foi expressada com mais vigor por um
poeta, e não por um biólogo. Na sua peã romântica, The Tables Turned, William
Wordsworth escreveu:

Doce é o saber que a natureza traz;
O nosso intelecto intrometido
Desfigura as formas belas das coisas:
Assassinamos para dissecar.

O ranço de anti-intelectualismo que impregna este poema sempre me
perturbou, por mais que eu aprecie a sua defesa da unidade da natureza. Pois ele
deixa implícito que qualquer tentativa de análise, qualquer esforço de
compreensão por meio da fragmentação de um sistema complexo em partes
constituintes é não apenas inútil, como também imoral.
No entanto, a caricatura e a rejeição do outro lado têm sido igualmente
intensas, se bem que em geral não expressadas com tanta inspiração. Os
cientistas que estudam sistemas biológicos decompondo-os em partes cada vez
menores, até chegarem à química das moléculas, muitas vezes ridicularizam os
biólogos que insistem em tratar os organismos como todos irredutíveis. Os dois
lados desta dicotomia excessivamente simplificada têm até nomes, muitas vezes
invocados de modo pejorativo pelos seus oponentes. Os dissecadores são
“mecanicistas”, que acreditam que a vida nada mais é que a física e a química
das suas partes componentes. Os integralistas são “vitalistas”, e afirmam que a
vida, e apenas a vida, tem aquele “algo especial”, para sempre fora do alcance da
química e da física, até mesmo incompatível com a ciência “básica”. Nessa
interpretação, uma pessoa é, de acordo com os adversários, ou um mecanicista
insensível ou um místico vitalista.
Sempre me diverti com a nossa tendência vulgar para tornar questões
complexas, com soluções que não se encontram nem num extremo nem no outro
de uma sequência contínua, e dividi-las em dicotomias, atribuindo a um grupo
um dos pólos e ao outro o extremo oposto, sem nenhum reconhecimento das
sutilezas e posições intermediárias — e quase sempre com o opróbrio moral
vinculado aos oponentes. Como canta o sábio Private Willis em Iolanthe, de
Gilbert e Sullivan:

Muitas vezes acho cômico
Como a natureza sempre consegue
Que todo rapaz e toda moça
Nascidos vivos neste mundo
Sejam, ou um pequeno liberal
Ou então um pequeno conservador!
Fal la la!

As categorias hoje mudaram, mas ainda somos direitistas ou esquerdistas,
defensores da energia nuclear ou do aquecimento solar, pró escolha ou contra o
assassinato de fetos. Simplesmente não nos permitem a sutileza de uma opinião
intermediária em questões intrincadas (embora eu suspeite que o único debate
verdadeiramente importante e complexo sem nenhum posicionamento
intermediário possível é saber se você é a favor ou contra a regra do rebatedor
indicado [Regra segundo a qual o técnico pode indicar o rebatedor dentre os jogadores da equipe que
não estejam desempenhando função na defesa - N.R.T.] — e eu sou contra).
Assim, persiste a impressão de que os biólogos são mecanicistas ou
vitalistas, partidários de uma redução final à física e à química (sem
consideração alguma pela integridade do organismo) ou defensores de uma força
especial que dá sentido à vida (e místicos modernos que negariam a unidade
potencial da ciência). Por exemplo, um popular artigo sobre pesquisas no
Laboratório de Biologia Marinha em Woods Hole (no número setembro-outubro
de 1983 da Harvard Magazine) discute o trabalho de um cientista que usa uma
abordagem de físico para problemas neurológicos:

No jargão dos filósofos da ciência, ele poderia ser considerado um
“reducionista” ou “mecanicista”. Ele acredita que as leis fundamentais da
mecânica e do eletromagnetismo são suficientes para explicar todos os
fenômenos nesse nível. Os vitalistas, por contraste, sustentam que algum
princípio vital, alguma chama da vida, separa a matéria viva da não-viva.
Thomas Hunt Morgan, um vitalista confesso, observou acidamente certa vez
que os cientistas que comparavam os organismos vivos com máquinas eram
como “índios selvagens que descarrilavam trens e procuravam pelos cavalos
dentro da locomotiva”. A maioria dos mecanicistas, por sua vez, consideram
o princípio vital dos seus oponentes como pouco mais que magia negra.

Mas essa dicotomia é uma caricatura absurda das opiniões mantidas pela
maioria dos biólogos. Embora eu tenha conhecido alguns mecanicistas, tal como
definidos no artigo, acho que nunca encontrei um vitalista (embora a posição de
fato tenha gozado de certa popularidade durante o século XIX). A vasta maioria
dos biólogos, incluindo o grande geneticista T. H. Morgan (um antivitalista
como qualquer cientista do nosso século), defende uma posição intermediária.
Os extremos podem dar boas matérias e um tema conveniente (ainda que
simplista) para discussões, mas eles são adotados por poucos cientistas
praticantes, se é que o são por algum. Se conseguirmos compreender esta
posição intermediária e entender por que ela tem gozado de uma popularidade
tão persistente, talvez consigamos começar, antes de mais nada, a criticar a nossa
lamentável tendência de reduzir temas complexos a dicotomias. Portanto, devoto
o presente ensaio à definição e ao apoio a essa posição intermediária, mostrando
como ela foi desenvolvida e defendida por um bom biólogo americano, Ernest
Everett Just, no curso da sua própria pesquisa biológica.
A posição intermediária sustenta que a vida, como resultado da sua
complexidade estrutural e funcional, não pode ser separada em constituintes
químicos e explicada na sua totalidade por leis físicas e químicas funcionando
em nível molecular. Mas o caminho intermediário nega com o mesmo vigor que
esse fracasso do reducionismo testemunhe qualquer propriedade mística da vida,
qualquer “chama” especial inerente apenas à vida. A vida obtém da estrutura
hierárquica da natureza os seus princípios próprios. À medida que os níveis de
complexidade ascendem à hierarquia de átomo, molécula, gene, célula, tecido,
organismo e população, surgem novas propriedades como resultado das
interações e interconexões que emergem em cada nível. Um nível superior não
pode ser plenamente explicado através da decomposição em elementos
constituintes e da apresentação das suas propriedades na ausência dessas
interações. Assim, precisamos de princípios novos, ou “emergentes”, para
abarcar a complexidade da vida; esses princípios suplementam a física e a
química dos átomos e moléculas, e são compatíveis com eles.
Esse caminho intermediário pode ser designado como “orgânico” ou
“holístico”; ele representa a postura adotada pela maioria dos biólogos e até
mesmo pela maioria dos físicos que pensaram com afinco sobre a biologia e que
experimentaram diretamente a sua complexidade. Ele foi, por exemplo,
defendido no que pode ser o mais famoso livro do nosso século sobre “o que é a
vida?” — a pequena obra-prima do mesmo título, escrita em 1944 por Erwin
Schrödinger, o grande estudioso de física quântica que se voltou para os
problemas biológicos no fim da carreira. Schrödinger escreveu:

A partir do que aprendemos sobre a estrutura da matéria viva, devemos estar
preparados para encontrá-la funcionando de uma maneira que não pode ser
reduzida às leis comuns da física. E isso não tomando como fundamento a
existência de uma “nova força” ou sabe-se lá o quê, que dirige o
comportamento dos átomos isolados dentro de um organismo vivo, mas sim
porque a construção é diferente de qualquer coisa que tenhamos posto à
prova no laboratório de física.

Schrödinger então apresenta uma analogia notável. Compare-se o físico
comum a um engenheiro familiarizado apenas com a operação de máquinas a
vapor. Quando esse engenheiro encontrar, pela primeira vez, um motor elétrico
mais complicado, ele não irá supor que este funciona através de leis
intrinsecamente misteriosas apenas porque não consegue compreendê-lo com os
princípios próprios das máquinas a vapor: “Ele não irá suspeitar que um motor
elétrico é acionado por um espírito só porque começa a girar depois de ligada
uma chave, sem caldeira e vapor.”
Ernest Everett Just, um embriologista sério, que desenvolveu uma atitude
holística semelhante como consequência direta da sua própria pesquisa, nasceu
há cem anos em Charleston, Carolina do Sul (Escrevi este ensaio em 1983, para o centenário
do nascimento de Just). Formou-se em 1907, em Dartmouth, na condição de melhor
aluno da sua turma, e fez a maior parte da sua pesquisa no Laboratório de
Biologia Marinha de Woods Hole, durante a década de 1920. Continuou o
trabalho em vários laboratórios europeus de biologia durante a década de 1930, e
foi internado por um breve período pelos nazistas depois da derrota francesa em
1940. Repatriado para os Estados Unidos, com o espírito abatido, morreu de
câncer pancreático em 1941, aos 58 anos de idade.
Just começou como experimentalista, estudando problemas de fertilização
em nível celular e na grande tradição de pesquisa descritiva, cuidadosa, tão
característica da “escola de Woods Hole”. À medida que se desenvolvia esse
trabalho, e especialmente depois da partida para a Europa, a sua carreira entrou
numa nova fase: ele ficou fascinado com a biologia das superfícies celulares.
Essa mudança teve origem direta no seu interesse pela fertilização e na
preocupação particular com um velho problema: como o espermatozoide penetra
a membrana exterior de um óvulo, e como a superfície do óvulo reage então em
termos físicos e químicos? Ao mesmo tempo, o trabalho de Just assumiu um tom
mais filosófico (embora ele nunca tenha abandonado os seus experimentos), e
ele pouco a pouco desenvolveu uma perspectiva holística, orgânica, a meio
caminho dos extremos caricatos do mecanicismo e do vitalismo clássicos. Just
expôs essa filosofia biológica, um resultado direto da sua preocupação crescente
com a superfície celular considerada como um todo, em The Biology of Cell
Surfaces, publicado em 1939.
O trabalho inicial de Just sobre fertilização antecipava coisas que estavam
por vir. Ele não se mostrava particularmente interessado em como o material
genético do óvulo e do espermatozoide se fundem e então dirigem a subsequente
arquitetura do desenvolvimento — um tema clássico da tradição reducionista
(uma tentativa de explicar as propriedades da embriologia em termos de genes
alojados num núcleo controlador). Ele estava mais preocupado com os efeitos
que a fertilização impõe à célula inteira, particularmente à sua superfície, e com
a interação de núcleo e citoplasma na divisão celular e diferenciação
subsequentes do embrião.
Just possuía uma habilidade fora do comum para inventar experimentos
simples e refinados que iam de encontro às principais questões teóricas do seu
tempo. Logo no primeiro trabalho, por exemplo, ele demonstrou que, pelo
menos em algumas espécies de invertebrados marinhos, o ponto de entrada do
espermatozoide determina o plano da primeira clivagem (a divisão inicial do
óvulo fertilizado em duas células). Ele também provou que a superfície do óvulo
é “equipotencial” — isto é, que o espermatozoide tem probabilidades iguais de
entrar em qualquer ponto. Nessa época, os biólogos conduziam um vigoroso
debate (lá vamos nós outra vez com as dicotomias) entre pré-formacionistas, que
afirmavam que a diferenciação de um embrião em partes e órgãos especializados
já está prefigurada na estrutura de um óvulo não-fertilizado, e epigeneticistas,
que afirmavam que a diferenciação surge durante o desenvolvimento de um
óvulo inicialmente capaz de formar qualquer estrutura subsequente a partir de
qualquer uma das suas regiões.
Ao demonstrar que a direção da clivagem seguia o caráter aleatório do ponto
de penetração de um espermatozoide (e que um espermatozoide podia penetrar
em qualquer parte da superfície do óvulo), Just apoiava a alternativa epigenética.
Essa primeira dissertação já continha a base para o holismo posterior e explícito
de Just — o seu interesse pelas propriedades de organismos inteiros (a superfície
completa do óvulo) e pelas interações de organismo e ambiente (o caráter epige-
nético do desenvolvimento contrastado com a opinião pré-formacionista de que
os caminhos do desenvolvimento posterior se encontram dentro da estrutura do
óvulo).
Acredito que o holismo maduro de Just teve duas fontes primordiais nos seus
primeiros trabalhos experimentais sobre fertilização. Primeiro, Just distinguiu-se
em Woods Hole pela sua “boa mão”, a melhor da sua geração. Era
absolutamente rigoroso em questões de procedimento e limpeza adequadas nos
laboratórios. Tinha uma empatia fantástica com os invertebrados marinhos que
habitam as águas perto de Woods Hole. Sabia onde encontrá-los e compreendia
muito bem os seus hábitos. Conseguia extrair ovos e mantê-los em estado
normal e saudável sob condições de laboratório. Tornou-se a principal fonte de
conselhos técnicos para jovens e brilhantes pesquisadores, que haviam dominado
todas as últimas novidades na técnica de experimentação, mas que pouca coisa
sabiam de história natural.
Just, portanto, compreendia melhor do que qualquer outra pessoa a
importância da normalidade saudável dos óvulos usados para experimentos de
fertilização — a integridade de células inteiras nas suas condições normais não
podia ser comprometida. Vezes e vezes, ele demonstrou como vários
experimentos famosos de cientistas eminentes não tinham validade porque eles
haviam usado células moribundas ou anormais, e que os resultados podiam ser
atribuídos a essas condições ‘ ‘pouco vitais” e não à intervenção experimental
em si. Por exemplo, Just refutou uma série importante de experimentos sobre
anomalias de desenvolvimento quando os óvulos são fertilizados por
espermatozoides de outra espécie. Ele provou que os padrões peculiares de
desenvolvimento embriológico devem ser atribuídos, não ao espermatozoide
alienígena em si, mas ao estado moribundo dos óvulos, causado pelas condições
ambientais (de temperatura e condição química da água) necessárias para induzir
a fertilização anormal, mas que eram incompatíveis com a boa saúde do óvulo.
Just ridicularizava a falta de preocupação pela história natural exibida por
tantos experimentadores, que tudo sabiam sobre o que havia de mais recente e
requintado na física e na química, mas que não sabiam praticamente nada sobre
organismos. Eles se referiam aos óvulos e ao esperma como ‘ ‘material” (tenho a
mesma reação diante dos modernos reducionistas que chamam de “preparados”
as células e os órgãos vivos das suas experiências) e aceitavam os seus objetos
experimentais em quaisquer condições, porque não sabiam distinguir a
normalidade da anomalia: “Se a condição dos óvulos não for levada em
consideração”, escreveu Just, “os resultados obtidos por meio do uso de óvulos
subnormais poderão ser atribuídos inteiramente ou em parte às más condições
fisiológicas dos óvulos.”
Segundo, e mais importante, os vinte anos de pesquisas de Just sobre a
fertilização o conduziram direta e quase que inexoravelmente ao interesse pela
superfície celular e à sua filosofia holística. Uma vez que a sua obra, tal como
previamente mencionado, se concentrava nas mudanças que as superfícies
celulares sofrem durante a fertilização, Just logo percebeu que a superfície
celular não era uma fronteira simples, passiva, mas uma parte complexa e
essencial da organização celular;

Não se pode pensar no citoplasma superficial como inerte ou separado da
substância celular viva. O ectoplasma [o nome que Just dava ao material
superficial] é mais do que uma barreira para deter a maré alta dentro da
substância celular ativa; é mais do que uma barragem contra o mundo
exterior. É uma parte móvel e viva da célula.

Depois, perseguindo uma preocupação comum da biologia holística, Just
enfatizou que a superfície celular, na condição de domínio de comunicação entre
o organismo e o meio ambiente, corporifica o tema da interação — uma
complexidade orgânica que não pode ser reduzida a partes químicas:

Ela está sintonizada com o mundo exterior como nenhuma outra parte da
célula. Ela monta guarda à forma peculiar da substância viva, amortece os
ataques do meio ambiente e é o meio de comunicação com este.

Além disso, como principal contribuição experimental, Just demonstrou que
a superfície celular reagia à fertilização como uma entidade contínua e
indivisível, muito embora o espermatozoide apenas penetrasse num único ponto.
Se a superfície possui tamanha integridade, e se ela regula tantos processos
celulares, como podemos interpretar significativamente as funções das células
separando-as em componentes moleculares?

Sob o impacto de um espermatozoide a superfície do óvulo primeiro cede e
depois se recompõe: a membrana do óvulo move-se para dentro e para fora
abaixo do espermatozoide, que se move ativamente, durante um ou dois
segundos. Então, de repente, o espermatozoide fica imóvel, com a ponta
enterrada numa pequena reentrância da superfície do óvulo, ocasião em que
o ectoplasma desenvolve uma aparência nebulosa. A turbidez se espalha a
partir desse ponto, de modo que, vinte segundos após a inseminação — a
mistura de óvulo e espermatozoide —, o ectoplasma inteiro está nublado. Em
seguida, como um relâmpago, começando no ponto da ligação com o
espermatozoide, uma onda varre a superfície do óvulo, clareando o
ectoplasma à medida que passa.

À medida que o trabalho progredia, Just reclamava mais e mais importância
para a superfície celular, acabando por ir longe demais. Ele sabiamente negou a
premissa reducionista de que todas as características celulares são produtos
passivos de genes diretores localizados no núcleo, mas o seu parecer alternativo
de controle ectoplasmático sobre os movimentos nucleares tampouco pode ser
sustentado. Além disso, o seu argumento de que a história da vida testemunha
um domínio crescente da parte do ectoplasma, já que as células nervosas são as
mais ricamente dotadas de material superficial e já que o tamanho do cérebro
aumenta continuamente durante a evolução, reflete a concepção errônea e
comum de que a evolução inevitavelmente produz progresso, o qual tem o
avanço mental como principal critério. A seguinte passagem pode refletir a
habilidade literária de Just, mas coloca-se como uma metáfora confusa, não
como biologia esclarecida:

A nossa mente abrange os movimentos planetários, delimita as eras
geológicas, reduz a matéria aos seus elétrons constituintes, porque a nossa
mentalidade é a expressão transcendental da integração antiqüíssima entre o
ectoplasma e o mundo não-vivo.

Por fim, a obra de Just também sofreu porque ele teve a infelicidade de
empreender a sua pesquisa e de publicar o seu livro pouco antes da invenção do
microscópio eletrônico. A superfície celular é por demais delgada para ser
esclarecida pela microscopia óptica, e Just nunca teve condições de compreender
a sua estrutura. Ele foi obrigado a trabalhar a partir de inferências baseadas em
mudanças efêmeras da superfície celular durante a fertilização — e, em face
dessas limitações, o seu sucesso foi brilhante. Porém, uma década depois da sua
morte, boa parte do seu árduo trabalho já havia se tornado obsoleta.
Assim, Just caiu na obscuridade em parte porque fazia asserções em demasia
e se alheava dos colegas, e em parte porque sabia muito pouco, consequência das
técnicas limitadas à sua disposição. Ainda assim, o presente esquecimento da
biologia de Just parece injusto por dois motivos. Primeiro, ele estava
basicamente certo a respeito da integridade e da importância das superfícies
celulares. Com o microscópio eletrônico, agora esclarecemos a estrutura da
membrana — uma história complexa e fascinante que vale um ensaio por si só.
Além disso, aceitamos a premissa de Just de que a superfície não é uma simples
barreira passiva, mas um componente ativo e essencial da estrutura celular. Q
livro didático de biologia mais popular (Biological Science, de Keeton)
proclama:

A membrana celular não serve apenas como um envoltório que dá forr ça
mecânica, forma e alguma proteção à célula. É também um componente
ativo da célula viva, impedindo que algumas substâncias entrem nela e
impedindo que outras saiam. Ela regula o tráfego de materiais entre o interior
precisamente ordenado da célula e o ambiente externo, essencialmente
desfavorável e potencialmente destruidor. Todas as substâncias que se
movem entre o meio ambiente da célula e o interior celular, em qualquer
direção, têm de passar através da membrana.

Segundo, e mais importante para este ensaio, qualquer que seja a condição
concreta das opiniões de Just sobre as superfícies celulares, ele usou as suas
ideias para desenvolver uma filosofia holística que representa um caminho
intermediário sensato entre os extremos do mecanicismo e do vitalismo — uma
filosofia sábia que pode continuar a nos guiar hoje.
Podemos sintetizar o holismo de Just e identificá-lo como uma solução
genuína do debate mecanicista-vitalista, resumindo as suas três premissas
principais. Primeiro, nada na biologia contradiz as leis da física e da química;
qualquer forma adequada de biologia deve se conformar às ciências “básicas”.
Just iniciou o seu livro com estas palavras:

As coisas vivas têm composição material, são compostas, em última análise,
as unidades, moléculas, átomos e elétrons, com tanta certeza quanto a
matéria não viva. Como todos as formas na natureza, elas têm estrutura
química e propriedades físicas; são sistemas físico-químicos. Como tais, eles
obedecem às leis da física e da química. Caso se negasse este fato, negar-se-
ia com isso a possibilidade de qualquer investigação científica das coisas
vivas.

Segundo, os princípios da física e da química não são suficientes para
explicar objetos biológicos complexos porque novas propriedades surgem como
resultado de organização e interação. Essas propriedades só podem ser
compreendidas por meio do estudo direto de sistemas vivos inteiros no seu
estado normal. Just escreveu num artigo de 1933:

Temos nos esforçado muitas vezes para provar que a vida é inteiramente
mecânica, começando com a hipótese de que os organismos são máquinas!
Assim, deixamos passar a organodinâmica do protoplasma — o seu poder de
organizar a si mesmo. A substância viva é tal porque possui essa organização
— algo mais que a soma das suas partes mínimas. ... É ... a organização do
protoplasma, que é a sua característica predominante e que coloca a biologia
numa categoria inteiramente separada da física e da química. ... Tampouco é
vitalismo estéril dizer que resta algo no comportamento do protoplasma que
os nossos estudos físico-químicos deixam por explicar. Esse “algo” é a
organização peculiar do protoplasma.

Numa metáfora notável, Just ilustra a inadequação dos estudos mecanicistas:

A coisa viva desaparece e resta apenas um mero aglomerado de partes.
Quanto melhor o prosseguimento dessa análise e maiores os seus resultados,
mais completamente a vida desaparece da matéria viva investigada. A
condição de ser vivo é como um floco de neve numa vidraça, que desaparece
sob o toque morno de uma criança curiosa. ... Hoje, acho que poucos
investigadores subscrevem a comparação ingênua, mas seriamente proposta,
feita certa vez por uma eminente autoridade em biologia, a saber, de que o
experimento num óvulo procura conhecer o seu desenvolvimento
despedaçando-o, como se despedaça um trem para compreender o seu
mecanismo. ... Os dias da embriologia experimental como expedição
punitiva contra o óvulo, esperamos, passaram.

Terceiro, a insuficiência da física e da química para a compreensão da vida
não testemunha nenhuma adição mística, nenhuma contradição às ciências
básicas, mas reflete apenas a hierarquia dos objetos naturais e o princípio de
propriedades emergentes em níveis superiores de organização:

A análise direta da condição de ser vivo nunca deve descer abaixo da ordem
de organização que caracteriza a vida: ela deve se confinar à combinação de
compostos na unidade vital, nunca descendo a compostos isolados e,
portanto, certamente nunca abaixo destes. ... O físico almeja a partícula
mínima, indivisível, da matéria. O estudo da condição de ser vivo confina-se
à organização que lhe é peculiar.

Finalmente, tenho de enfatizar mais uma vez que os argumentos de Just não
são singulares ou mesmo incomuns. Eles representam a opinião padrão da
maioria dos biólogos praticantes, e, como tal, refutam o esquema dicotômico que
vê a biologia como uma guerra entre vitalistas e mecanicistas. O caminho do
meio é eminentemente sensato e popular. Escolhi Just como ilustração porque a
sua carreira exemplifica como um biólogo sério pode ser levado a tal posição
pela sua própria investigação de fenômenos complexos. Além do mais, Just disse
tudo isso muito bem e com vigor; ele se qualifica como um exemplar do
caminho intermediário segundo o nosso mais venerável critério — “o que foi
muitas vezes pensado, mas nunca tão bem expressado”.
Este ensaio deveria terminar aqui. Num mundo decente e justo ele
terminaria. Mas não pode. E. E. Just lutou toda a sua vida para ser julgado pelo
mérito intrínseco apenas da sua pesquisa biológica — algo que venho tentando
inutilmente (e postumamente) conceder-lhe aqui. Ele nunca conseguiu o
reconhecimento, nunca chegou perto dele, por um motivo intrinsecamente
biológico que não deveria ter importância, mas que sempre teve nos Estados
Unidos. E. E. Just era negro.
Hoje, um negro que fosse o melhor aluno de alguma escola da Ivy League
seria coberto de oportunidades. Just não conquistou absolutamente mobilidade
alguma em 1907. Como escreveu o seu biógrafo, o historiador de ciência do M.
I. T. (Massachussets Institute of Technology), Kenneth R. Manning: ‘‘Um negro
instruído tinha duas opções, ambas limitadas: ele podia ensinar ou pregar — e
apenas entre negros.” (A biografia de Manning, Black Apollo of Science: The
Life of Ernest Everett Just, foi publicada em 1983 pela Oxford University Press.
É um livro esplendidamente escrito e documentado, a melhor biografia que já li
em anos. O livro de Manning é uma história institucional da vida de Just. Ele
discute a sua interminável luta por patrocínio e as suas complexas relações com
instituições de ensino e pesquisa, mas diz relativamente pouco a respeito da sua
obra biológica per se — uma lacuna que tentei, em alguns aspectos, preencher
com este ensaio.)
E assim, Just foi para Howard e lá ficou toda a sua vida. Howard era uma
escola de prestígio, mas não mantinha nenhum programa de pós-graduação, e as
exigências excruciantes de ensino e administração não deixaram a Just nem
tempo, nem oportunidade para a carreira de pesquisa que ele desejava tão
ardentemente. Just, entretanto, não admitiria a derrota. Por meio de uma
constante e incansável autopromoção, ele buscou o apoio de todas as instituições
filantrópicas e fundações que pudessem patrocinar um biólogo negro — e se saiu
relativamente bem. Obteve patrocínio suficiente para passar longos verões em
Woods Hole e conseguiu publicar mais de setenta dissertações e dois livros, ao
longo de uma carreira que nunca poderia ser mais do que uma carreira de
pesquisa de meio período, juncada de obstáculos, tanto ostensivos quanto
psicológicos.
Por fim, o racismo explícito dos seus detratores e, pior ainda, o persistente
paternalismo dos seus defensores esgotaram Just. Ele não se atrevia nem mesmo
a ter esperanças de um emprego permanente em qualquer instituição branca que
pudesse promover a pesquisa, e o acúmulo de desrespeito e críticas acabaram
por tornar a vida intolerável para um homem orgulhoso como Just. Se houvesse
se encaixado no molde de um cientista negro aceitável, ele poderia ter
sobrevivido no mundo hipócrita do liberalismo do seu tempo. Um homem como
George Washington Carver, que apoiava a doutrina de Booker T. Washington,
de iniciativa individual lenta e humilde para os negros, que vestia as suas roupas
de agricultor e passou a vida ajudando fazendeiros negros a encontrarem mais
usos para amendoins, era festejado como um exemplo da ciência negra
adequada. Mas Just preferia ternos elegantes, bons vinhos, música clássica e
mulheres de todas as cores. Ele desejava empreender a pesquisa teórica nos mais
altos graus de abstração e obteve sucesso com distinção. Se o seu trabalho
divergia das teorias de cientistas brancos eminentes, ele o dizia, e com vigor
(embora a sua conduta geral tendesse à modéstia).
A única coisa que Just queria tão desesperadamente, acima de tudo — ser
julgado apenas pelo mérito da sua pesquisa —, ele nunca conseguiu. Os seus
defensores mais fortes tratavam-no com o que, em retrospecto, só pode ser
rotulado como paternalismo esmagador. Esqueça a sua pesquisa, diminua a
ênfase dela, vá mais devagar, todos diziam. Volte para Howard e seja um
“modelo para a sua raça”; desista de objetivos pessoais e devote a vida ao
treinamento de doutores negros. Tal questão teria alguma vez vindo à baila no
caso de um homem branco com o evidente talento de Just?
Por fim, como tantos outros intelectuais negros, Just buscou exílio na
Europa. Lá, na década de 1930, ele afinal encontrou o que procurava — a
aceitação simples da sua excelência como cientista. No entanto, a sua alegria e a
produtividade tiveram curta duração, já que o espectro do nazismo logo se
tornou realidade e o mandou de volta para Howard e para a morte prematura.
Just foi um homem brilhante, e a sua vida incorporou fortes elementos de
tragédia, mas não devemos retratá-lo como um herói irreal. Ele era um homem
por demais fascinante, complexo e ambíguo para se prestar a uma interpretação
errônea tão simplista. Profundamente conservador e com um caráter não pouco
elitista, Just nunca identificou o seu sofrimento com o destino dos negros em
geral e considerou cada objeção como um insulto pessoal. A sua raiva tornou-se
tão profunda, e a alegria pela aceitação europeia tão grande, que ele
compreendeu de uma forma equivocada toda a política italiana da década de
1930, tornando-se um defensor de Mussolini. Ele chegou mesmo a buscar
fundos de pesquisa diretamente com II Duce.
No entanto, como podemos nos atrever a julgar um homem tão contrariado
na sua terra natal? Sim, Just deu-se bem melhor do que a maioria dos negros.
Tinha um bom emprego e segurança econômica razoável. Mas, na verdade, não
vivemos apenas de pão. Just foi roubado do direito inato do intelectual — o
desejo de ser levado a sério por suas ideias e realizações. Eu conheço, do modo
mais direto e pessoal, a alegria e a necessidade da pesquisa. Nenhuma chama
arde mais profundamente dentro de mim, e nenhum cientista de mérito e
realizações se sente de modo diferente. (Um dos meus colegas mais eminentes
disseme certa vez que considerava a pesquisa como a maior de todas as alegrias,
pois era como um orgasmo contínuo.) O sofrimento de Just pode ter sido sutil
comparado com a brutalização de tantas vidas negras nos Estados Unidos, mas
foi profundo, sempre presente e aniquilador. O homem que compreendeu tão
bem o holismo na biologia não teve o direito de viver uma vida completa.
Podemos, pelo menos, assinalar o seu centenário refletindo sobre as ideias que
ele lutou para desenvolver e que apresentou tão bem.

26. Mente e supermente




Harry Houdini usou a sua consumada habilidade como prestidigitador para
desmascarar legiões de mágicos menores que se faziam passar por médiuns, com
acesso direto a um mundo independente do puro espírito. Os seus dois livros,
Miracle Mongers and their Methods (1920) (Milagreiros e os seus métodos) e A
Magician among the Spirits (1924) (Um mágico entre os espíritos), poderiam ter
ajudado Arthur Conan Doyle, houvesse esse devoto acrítico do espiritualismo
sido tão inclinado ao ceticismo e dedicado ao racionalismo quanto a sua criação
literária, Sherlock Holmes. Mas Houdini batalhou com uma geração de atraso,
tarde demais para poder ajudar os intelectuais crédulos que haviam sucumbido a
uma onda de espiritualismo vitoriano tardio — uma turma distinta, que incluía o
filósofo Henry Sidgwick e Alfred Russel Wallace, o parceiro de Darwin na
descoberta da seleção natural.
Wallace (1823-1913) nunca perdeu o interesse pela história natural, mas
devotou a maior parte da sua vida ulterior a uma série de causas que hoje
parecem esquisitas (ou pelo menos idiossincráticas), embora formassem na sua
mente um curioso padrão de encadeamento comum — campanhas contra a
vacinação, a favor do espiritualismo, e a tentativa apaixonada de provar que,
muito embora a mente impregne o cosmos, a nossa Terra abriga a única
experiência de objetos físicos com consciência. Estamos verdadeiramente
sozinhos em corpo, embora unidos na mente, proclamou o primeiro exobiólogo
eminente dentre os evolucionistas (ver o livro de Wallace, Man’s Place in the
Universe: a Study of the Results of Scientific Research in Relation to the Unity
or Plurality of Worlds, 1903) (O lugar do homem no universo: um estudo dos
resultados da pesquisa científica em relação à unidade ou à pluralidade dos
mundos).
O argumento básico de Wallace a favor de um universo impregnado pela
mente é simples. Também o considero mal fundamentado de modo patente e
curiosamente antiquado no seu fracasso em evitar a velha cilada da vida
intelectual do Ocidente — a representação da esperança crua travestida como
realidade racionalizada. Em resumo (os detalhes vêm depois) Wallace examinou
a estrutura física da Terra, do sistema solar e do universo, e concluiu que se
qualquer parte fosse construída com a menor diferença que fosse, a vida
consciente não teria surgido. Portanto, a inteligência deve ter planejado o
universo, pelo menos em parte, para que ele pudesse gerar vida. Wallace
concluiu:

Para produzir um mundo que devesse ser precisamente adaptado em cada
detalhe para o desenvolvimento ordenado da vida orgânica culminando no
homem, um universo tão vasto e complexo como o que sabemos existir ao
nosso redor pode ter sido absolutamente necessário.

Como poderia um homem duvidar que o seu médium favorito podia entrar
em contato com o espírito do querido tio George quando a prova da existência da
mente desencarnada encontrava-se na estrutura do próprio universo?
A argumentação de Wallace tinha as suas peculiaridades, mas um aspecto da
história me parece ainda mais singular. Durante a última década, como os gatos
e os maus pences dos nossos provérbios, o argumento de Wallace tem retornado
em outra roupagem. Alguns físicos o apregoaram como sendo algo fresco e novo
— uma fuga ao mecanicismo sombrio da ciência convencional e uma
reafirmação de antigas verdades e suspeitas a respeito da força espiritual e do
seu lugar legítimo no nosso universo. Para mim, trata-se do mesmo argumento
ruim, só que desta vez privado da sutileza de Wallace e do reconhecimento de
interpretações alternativas.
Outros chamaram-no de “princípio antrópico”, a ideia de que a vida
inteligente encontra-se prefigurada nas leis da natureza e na estrutura do
universo. Emprestando o termo de um oponente que o usou com desprezo, o
físico Freeman Dyson classifica-o orgulhosamente como “animismo”, não
porque a ideia seja animada ou orgânica, mas por causa do latim anima, ou
“alma”. (O ensaio de Dyson, “The argument from design”, na sua boa
autobiografia, Disturbing the Universe, oferece uma boa expressão do
argumento.)
Dyson começa com a costumeira profissão de esperança:

Não me sinto um forasteiro neste universo. Quanto mais examino o universo
e estudo os detalhes da sua arquitetura, mais provas encontro de que o
universo, em certo sentido, devia saber que viríamos.

A sua defesa é pouco mais do que uma relação de leis físicas que
impossibilitariam a vida inteligente, caso as suas constantes fossem apenas um
pouquinho diferentes, e de condições físicas que nos destruiriam ou excluiriam
se sofressem a menor mudança. Estes são, escreve ele, “os acidentes numéricos
que conspiram para tornar o universo habitável”.
Considere-se, diz ele, a força que mantém juntos os núcleos atômicos. Ela é
forte o suficiente para superar a repulsão elétrica entre as cargas positivas
(prótons), mantendo desse modo o núcleo intacto.
Mas essa força, se fosse um pouquinho mais forte, juntaria pares de núcleos
(prótons) de hidrogênio em sistemas presos que seriam chamados “diprótons”, se
existissem. “A evolução da vida”, lembra-nos Dyson, provavelmente “requer
uma estrela como o Sol, que fornece energia num ritmo constante por bilhões de
anos”. Se as forças nucleares fossem mais fracas, o hidrogênio absolutamente
não se queimaria, e não existiria nenhum elemento pesado. Se fossem fortes o
suficiente para formar diprótons, então todo o hidrogênio potencial existiria
nessa forma, deixando muito pouco para a formação de estrelas que pudessem
sobreviver durante bilhões de anos por meio da queima de hidrogênio no seu
centro. Uma vez que a vida planetária, tal como a conhecemos, requer um Sol
central que queime de modo estável durante bilhões de anos, “então a potência
das forças nucleares teve de se colocar dentro de uma amplitude um tanto
estreita para tornar a vida possível”.
Dyson então se desloca para outro exemplo, tirado desta vez do estado do
universo material, em vez da natureza das suas leis. O nosso universo é
construído numa escala que oferece, em galáxias típicas como a nossa Via-
Láctea, uma distância média entre as estrelas de algo por volta de vinte milhões
de milhões de milhas. Suponha-se, argumenta Dyson, que a distância média
fosse dez vezes menor. Nessa densidade reduzida, tornar-se-ia
avassaladoramente provável que, pelo menos uma vez, durante os 3,5 bilhões de
anos de domínio da vida na Terra, outra estrela passaria suficientemente perto do
nosso Sol para puxar a Terra da sua órbita, destruindo assim toda a vida.
Dyson extraiu então a conclusão inválida que constitui a base do animismo
ou princípio antrópico:

A peculiar harmonia entre a estrutura do universo e as necessidades da vida e
da inteligência é uma manifestação da importância da mente no esquema das
coisas.

A falácia central desse argumento recém-apregoado, mas historicamente
carcomido, encontra-se na natureza da própria história. Qualquer resultado
histórico complexo — vida inteligente na Terra, por exemplo — representa uma
soma de improbabilidades e torna-se, desse modo, absurdamente improvável.
Mas alguma coisa tem de acontecer, mesmo que essa “alguma coisa” particular
nos deixe atordoados com a sua improbabilidade. Podemos olhar para qualquer
resultado e dizer: “Que espantoso! Se as leis da natureza fossem estabelecidas
com um tiquinho de diferença, não teríamos esse tipo de universo de jeito
nenhum.”
Esse tipo de probabilidade permite-nos concluir alguma coisa que seja a
respeito daquele mistério dos mistérios, a origem definitiva das coisas?
Suponha-se que o universo fosse feito de pouca coisa além de diprótons. Isso
seria ruim, irracional ou indigno do espírito que se move de diversas maneiras
para realizar os seus prodígios? Poderíamos concluir que existiria algum tipo de
Deus parecido com núcleos presos de hidrogênio ou que meramente os adora, ou
então que não existe nenhum Deus ou mentalidade? De modo semelhante, a
existência de vida inteligente no nosso universo exige alguma mente preexistente
só porque outro cosmos teria produzido um resultado diverso? Se a mente
desencarnada realmente existir (e macacos me mordam se conheço alguma fonte
de indícios científicos contra ou a favor de tal ideia), ela tem de preferir um
universo capaz de gerar o estilo de vida da nossa Terra em vez de um cosmos
cheio de diprótrons? O que podemos dizer contra os diprótons como sinais de
inteligência preexistente, exceto que tal tipo de universo não teria cronistas entre
os seus objetos físicos? Toda a inteligência concebível tem de possuir um desejo
incon-trolável de se encarnar inevitavelmente no universo da sua escolha?
Se retornarmos agora à formulação inicial de Wallace do princípio antrópico,
poderemos compreender melhor ainda por que as suas raízes se encontram na
esperança e não na racionalidade forçosa. Primeiro, temos de mencionar uma
diferença notável entre as visões de Dyson e Wallace. Dyson não tem objeção
alguma à perspectiva de inteligência em numerosos mundos de um vasto
universo. Wallace sustentava a singularidade humana e, portanto, defendia a
ideia de um universo limitado, contido dentro da Via-láctea, e de uma Terra
planejada de modo impecável através de uma série de eventos necessários à
evolução da vida inteligente, que seriam suficientemente numerosos e
complexos para excluir a possibilidade de repetição em outros lugares. Não
conheço as raízes mais profundas da crença de Wallace e tenho pouca simpatia
por psicobiografia, mas a seguinte passagem da sua conclusão para Man ’s Place
in the Universe certamente testemunha uma necessidade pessoal que ultrapassa a
simples inferência a partir do fato científico. A mente preexistente,
transcendente, do universo, escreve Wallace, permitiria apenas uma encarnação
de inteligência, pois uma pluralidade

... introduziria a monotonia num universo cujo principal caráter e
ensinamento é a infindável diversidade. Isso implicaria que, produzir a alma
viva no corpo maravilhoso e glorioso do homem — o homem com as suas
faculdades, aspirações, poderes para o bem e o mal — é uma coisa fácil, que
poderia ser realizada em qualquer lugar, em qualquer mundo. Isso implicaria
que o homem é um animal e nada mais, que não tem importância no
universo, que não foram necessários grandes preparativos para o seu
advento, apenas, talvez, um demônio de segunda categoria, e uma Terra de
terceira ou quarta.

Essa diferença fundamental de opinião a respeito da frequência da vida
inteligente não deve encobrir a identidade básica do argumento principal,
proposto por Wallace e pelos modernos defensores do princípio antrópico: a vida
inteligente, seja rara ou comum, não poderia ter se desenvolvido num universo
físico construído com um mínimo de diferença; portanto, a inteligência
preexistente deve ter planejado o cosmos. A descrição de Wallace dos seus
defensores poderia muito bem incluir Dyson: “Eles afirmam que a maravilhosa
complexidade de forças que parecem controlar a matéria, se é que não a
constituem efetivamente, são e têm de ser produtos da mente.’’
No entanto, o universo usado por Wallace para sustentar o princípio
antrópico não poderia ser mais radicalmente diverso do de Dyson. Se o mesmo
argumento se aplica a ordenamentos tão diferentes da matéria, não podemos
suspeitar legitimamente que o apelo emocional, em vez de um suposto
fundamento no fato ou na lógica, explica essa curiosa persistência? O Universo
de Dyson é aquele agora familiar a todos nós — espantoso em extensão e
ocupado por galáxias tão numerosas quanto os grãos de areia numa vasta praia.
O cosmos de Wallace era um produto passageiro do que os seus contemporâneos
orgulhosamente chamavam “Nova Astronomia”, as primeiras inferências,
essencialmente errôneas, feitas a partir de um exame espectrográfico das
estrelas.
No universo limitado de Wallace, a Via-láctea ocupa cerca de 3.600 anos-luz
num cosmos que, pelos cálculos de Lord Kelvin, não podia ter o dobro desse
tamanho em diâmetro total (o espaço além da Via-Láctea seria ocupado por
poucas estrelas, se é que o seria). Um pequeno “agrupamento solar” de estrelas
coloca-se no centro do universo; o nosso Sol encontra-se no seu limite exterior
ou próximo a ele. Uma região quase vazia estende-se para além do agrupamento
solar, seguida, num raio de cerca de trezentos anos-luz, a partir do centro, por
um anel interno de estrelas e outros objetos cósmicos. Outra região, bem maior,
de espaço pouco ocupado estende-se depois do interno, seguida por um anel
exterior, bem maior, densamente ocupado, a Via-láctea propriamente dita, com
uma extensão de 600 anos-luz, encontrando-se de 1.200 a 1.800 anos-luz do
centro.


A versão de Wallace do princípio antrópico sustenta que a vida requer cada
parte desse intrincado universo físico, e que a vida só poderia surgir ao redor de
um Sol situado no local onde, por sorte, está o nosso, na borda exterior do
agrupamento solar central. Todos esses anéis, agrupamentos e espaços vazios
devem, portanto, refletir o plano da inteligência preexistente.
O argumento de Wallace requer que as estrelas distantes exerçam uma
influência direta e sustentadora sobre a capacidade da Terra de manter vida.
Enquanto tenta desesperadamente elaborar argumentos em torno de um cálculo
contemporâneo, segundo o qual a brilhante estrela Vega proporciona à Terra
cerca de 1/200.000.0Ú0 do calor de uma vela comum a um metro de distância,
ele flerta com a ideia de que os raios estelares podem ser benéficos para as
plantas. Ele até mesmo propõe o dúbio argumento de que, como as estrelas
podem imprimir a sua luz sobre uma placa fotográfica, as plantas também
podem requerer a mesma luz para executar as suas atividades noturnas — um
salto bem precipitado, que parte do fato de que o filme pode registrar para a
inferência de que a matéria viva necessita.
Mas Wallace não insistiu nesse débil argumento especulativo. Em vez disso,
ele enfatizou que a vida depende da estrutura física detalhada do universo pelo
mesmo motivo que Dyson cita nos seus dois principais exemplos: a evolução de
vida complexa, inteligente, requer um Sol central que possa se queimar de modo
estável por eras incontáveis, e tais sóis estáveis desenvolvem-se apenas dentro de
um âmbito delicado e estreito de leis e condições físicas. Dyson enfatiza a
densidade estelar e os diprótons; Wallace argumentava que sóis adequados só
podiam existir num universo estruturado como o nosso e apenas na borda de um
agrupamento central de tal universo.
No universo de Wallace, as estrelas estão concentradas em três regiões: o
anel exterior (ou a Via-Láctea propriamente dita), o anel interior que rodeia o
agrupamento central, e o próprio agrupamento central. O anel exterior da Via-
Láctea é uma região muito densa e ativa para permitir a existência de sóis
estáveis. As estrelas movem-se com muita rapidez e encontram-se tão próximas
entre si que as colisões e aproximações romperiam inevitavelmente qualquer
sistema planetário antes que a vida inteligente evoluísse.
Wallace então afirma que a estabilidade solar não pode (como acreditamos
hoje) surgir como um produto do suprimento de combustível próprio de uma
estrela (ele sabia pouca coisa sobre radioatividade e fusão nuclear). As estrelas
só podem se queimar de modo estável se forem constantemente abastecidas com
matéria nova proveniente de outros lugares. Essa matéria se desloca, por
gravitação, das regiões exteriores do universo (particularmente do anel da Via-
Láctea) rumo ao centro, onde reside o nosso Sol. O anel interior não pode
abrigar sóis estáveis, já que é bombardeado por muita matéria exterior. O centro
do agrupamento solar não serve, porque recebe muito pouco material nutritivo.
Apenas na borda exterior do agrupamento solar, onde (e certamente de modo
planejado) reside o nosso Sol, é que uma estrela consegue obter o equilíbrio
ideal de material para ser queimado de modo estável, durante um período de
tempo longo o suficiente para a evolução da inteligência.
Cada detalhe do plano cósmico conspira para permitir a vida num planeta
que circula ao redor de um Sol tão afortunadamente situado. Precisamos da Via-
láctea para fornecer o combustível externo. Precisamos do anel interno como um
filtro, permitindo que apenas a quantidade certa de combustível passe.
Precisamos de um agrupamento central onde as estrelas se movem
vagarosamente e não interferem uma na outra. Tudo isso poderia ter acontecido
sem alguma inteligência diretora? Oitenta anos depois do livro de Wallace, o
nosso universo não poderia ser mais radicalmente diferente, e, no entanto, a
esperança humana continua a lhe impor o mesmo argumento inválido.
Uma diferença importante, final, separa Wallace de Dyson e da maioria dos
defensores modernos do princípio antrópico. Nossos adeptos contemporâneos
desenvolvem os seus argumentos e então apresentam a conclusão — a de que a
mente planejou o universo, em parte para que a vida inteligente pudesse evoluir
dentro dele — como uma inferência necessária e lógica. Wallace era um cientista
histórico muito bom para se permitir uma certeza tão fácil; ele compreendia
muito bem que resultados ordenados e complexos podem surgir de
improbabilidades acumuladas. Portanto, ele reconheceu e apresentou
francamente a interpretação alternativa:

Um corpo considerável, incluindo provavelmente a maioria dos homens de
ciência, admitirá que os indícios sem dúvida levam a essa conclusão
aparente, mas irá explicá-la como tendo sido causada por uma feliz
coincidência. Poderiam ter existido cem ou mil planetas capazes de sustentar
vida, houvesse o curso da evolução sido um pouco diferente, ou poderia não
ter existido absolutamente nenhum.

Esse bom cientista, cansado pela idade e por tantas batalhas solitárias por
causas idiossincráticas, mas que ainda era incisivamente autocrítico, apresentou
então a sua interpretação favorita, reconhecendo com honestidade que ela tinha
como base uma visão confortadora da vida, impossível de ser provada:

O outro corpo, que provavelmente é bem maior, seria representado por
aqueles que, afirmando que a mente é essencialmente superior à matéria e
dela distinta, não conseguem acreditar que a vida, a consciência, a mente, são
produtos da matéria. Eles afirmam que a maravilhosa complexidade de
forças que parece controlar a matéria, se é que não a constituem de fato, são
e têm de ser produtos da mente.

Não posso negar que este segundo parecer, o princípio antrópico, é uma
interpretação possível dos indícios, embora eu prefira a primeira explicação.
(Sempre suspeite de conclusões que reforçam a esperança acrítica e que seguem
tradições confortadoras do pensamento ocidental.) Não me oponho à sua
apresentação e discussão, contanto que a sua condição de interpretação possível,
não de inferência lógica, seja adequadamente identificada — como Wallace fez
há oitenta anos, e Dyson não fez no nosso tempo. Quanto a mim, procurarei a
minha esperança em outro lugar. Também ficaria surpreso, mas nem um pouco
insatisfeito, se, mirabile dictu, Wallace e Dyson estivessem certos, afinal.

Pós-escrito

Vários leitores me informaram (como eu deveria ter me lembrado) que o
famoso ensaio de Mark Twain, “A maldita raça humana”, foi escrito como
resposta explícita à versão de Wallace do princípio antrópico. A Parte 1 desta
série, intitulada ‘‘O mundo foi feito para o homem?”, tem como epígrafe: “A
ressurreição, promovida por Alfred Russell [s/c, Russel] Wallace, da teoria de
que esta Terra está no centro do universo estelar, e é o único globo habitável,
despertou grande interesse no mundo.” Twain, à sua moda inimitável, reconta
então a história da vida em cinco páginas, assegurando-nos de que toda a rica e
desordenada diversidade só podia representar um longo cortejo de preparo para
aquele segundo geológico final da habitação humana! — o suficiente para a
asserção de Wallace de que o universo deve ter sido planejado conosco em
mente.
Fiquei fascinado ao ver quantos outros temas destes ensaios estão embutidos
na sátira sucinta de Twain. Por exemplo, ele cita Kelvin como fonte de
autoridade para afirmar a grande idade da Terra — uma confirmação do meu
argumento (ensaio 8) de que o trabalho de Kelvin, na sua própria época, e
contrariando o mito comum que o retrata como um vilão arrogante contra a
ciência empírica, foi interpretado como prova da confortável antiguidade da
Terra, não como uma restrição da imensidade do tempo: “De acordo com esses
números [os de Kelvin], foram necessários 99.968.000 anos para preparar o
mundo para o homem, impaciente como estava o Criador, sem dúvida, para vê-
lo e admirá-lo. Mas um empreendimento como esse tem de ser conduzido com
cautela, a duras penas e de maneira lógica.”
O final de Mark Twain apresenta uma metáfora maravilhosa (a literatura e a
ciência popular contêm tantas) para a grande idade da Terra em relação ao
espaço de tempo da ocupação humana. (Eu o vejo como um tipo de ancestral
literário da imagem de John McPhee em Basin and Range — a de que, se
imaginássemos o tempo geológico como a antiga jarda inglesa, a distância do
nariz do Rei até a ponta do seu braço esticado, um golpe de lixa aplicado à unha
do seu dedo médio apagaria toda a história humana):

Tal é a história. O homem está aqui há 32.000 anos. Que tenham sido
necessários cem milhões de anos para preparar o mundo para ele é prova de
que é para isso que o mundo foi feito. Acho que sim. Sei lá. Se a Torre Eiffel
agora representasse a idade do mundo, a casquinha de tinta na bolinha do
pináculo, lá no topo, representaria a parte do homem nessa idade; e qualquer
um perceberia que foi para essa casquinha que a torre foi feita. Imagino que
achariam isso, sei lá.

27. O programa SETI e a sabedoria de Casey Stengel




Como o estudo da vida extraterrestre carece de qualquer objeto provado, as
opiniões sobre a forma e a frequência de seres não terráqueos testemunha mais
as esperanças e os temores de cientistas especuladores do que a força de indícios.
Alfred Russel Wallace, por exemplo, parceria de Darwin na descoberta da
seleção natural e o primeiro grande evolucionista a considerar a exobiologia em
detalhe, sustentava com firmeza que o homem deve estar sozinho no cosmos
inteiro — pois não conseguia suportar a ideia de que a inteligência humana não
fosse a dádiva especial e singular de Deus, conferida a um planeta idealmente
apropriado. Ele escreveu em 1903 que a existência de extraterrestres numerosos
e inteligentes “implicaria que o homem é um animal e nada mais, que não tem
importância no universo, que não foram necessários grandes preparativos para o
seu advento, apenas, talvez, um demônio de segunda categoria, e uma Terra de
terceira ou quarta” (ver ensaio anterior para uma versão completa dessa citação e
uma discussão das opiniões de Wallace).
O interminável debate sobre a vida extraterrestre tem se concentrado sobre o
cálculo de probabilidades — quantas estrelas, quantos planetas adequados, a
probabilidade de que a vida se origine em Terras adequadas, a probabilidade de
que a vida por fim gere inteligência. Devo confessar que sempre vi essa
literatura como árida e inconclusiva, excessivamente misturada com a esperança
e a incerteza para alcançar qualquer conclusão respeitável.
Recentemente, vários astrônomos e astrofísicos defenderam uma abordagem
diferente — uma busca direta de subprodutos tecnológicos da inteligência por
meio do exame sistemático dos céus com radio-telescópios à procura de sinais
emitidos por outras civilizações. Esse, assim chamado, programa SETI (search
for extraterrestrial mteligence) [procura de inteligência extraterrestre - N.T.] tem sido
objeto de vigoroso debate. Os proponentes afirmam que ele exigiria apenas uma
fração minúscula do orçamento anual da NASA e, quaisquer que sejam as suas
fontes de sucesso, removeria o tema do debate estéril sobre probabilidades para
uma sondagem experimental através dos únicos meios agora disponíveis. Os
oponentes contra-atacam dizendo que o plano é uma inutilidade, que custa
milhões e tem o seu fracasso tão virtualmente assegurado que não merece um
centavo dos parcos fundos públicos destinados à ciência.
Na condição de biólogo evolutivo, não possuo nenhum conhecimento
especializado na maioria das áreas que motivam o debate. Sinto-me obrigado a
fazer comentário apenas porque oponentes do SETI apresentaram um argumento
da minha área como uma de suas armas mais poderosas. Eles afirmam que todos
os principais biólogos evolutivos proclamaram a existência de vida extraterrestre
como quase que inconcebível. O otimismo de alguns cientistas físicos reside,
portanto, no seu fracasso em compreender o caráter distintivo do raciocínio
evolutivo. Mas os oponentes do SETI formularam erroneamente o argumento
biológico, e eu gostaria de explicar por que pelo menos um biólogo evolutivo
acha que o SETI é um tiro no escuro que pode muito bem valer a pena.
Frank J. Tipler, um matemático da Tulane University, tem sido o crítico mais
infatigável do SETI. Numa longa série de artigos veementes em publicações
técnicas e populares (New Scientist, Mercury, Physics Today, Quarterly Journal
of the Royal Astronomical Society, por exemplo), ele fornece “dois motivos
básicos para a minha descrença na existência de seres extraterrestres com
inteligência” (todas as transcrições são do seu artigo de 1982, na Bibliografia,
embora Tipler faça uso dos mesmos temas em todos os seus escritos contra o
SETI).
O segundo motivo encontra-se fora da minha área e não me deterei sobre ele,
embora deva ser mencionado. Tipler argumenta que “se ‘eles’ existissem, já
estariam aqui. ... Porque não estão aqui, tais seres não existem”. Em resumo,
Tipler afirma que qualquer criatura verdadeiramente inteligente inspecionaria ou
colonizaria o cosmos com um instrumento que ele chama de máquina Von
Neumann — “um computador com inteligência próxima do nível humano, capaz
de auto-reprodução e capaz, na verdade, de construir qualquer coisa para a qual
esteja programada, usando as matérias brutas disponíveis no sistema solar para o
qual está voltado”. A vida inteligente poderia, portanto, explorar uma galáxia
inteira “pelo preço de uma máquina Von Neumann” — pois esse computador
escavaria nos asteroides e cometas a matéria para construir réplicas de si mesmo
e da sua sonda envoltória. Essas réplicas iriam então correr para outras estrelas
adequadas e replicar-se novamente. Numa simples questão de trezentos milhões
de anos, uma galáxia inteira poderia estar saturada com os produtos duplicados
de uma única máquina Von Neumann.
Tal máquina seria capaz até mesmo de fabricar a carne e o sangue de
extraterrestres extraindo das minas os elementos químicos necessários e depois
indicando o programa genético do seu criador a partir da memória armazenada:

Essa informação poderia, em princípio, ser armazenada na memória de uma
máquina Von Neumann, que seria, eventualmente, instruída para sintetizar
um óvulo e colocar a “célula fertilizada” num ventre artificial. ... Em nove
meses, haveria um bebê humano no sistema estelar, e este poderia ser criado
até a idade adulta por pais substitutos, construídos pela máquina Von
Neumann.

Não quero ser prosaico, mas devo confessar que simplesmente não sei como
reagir a tais argumentos. Já tenho trabalho de sobra prevendo os planos e reações
das pessoas mais próximas de mim. Em geral fico desconcertado pelos
pensamentos e realizações de culturas diferentes. Macacos me mordam se posso
dizer com certeza o que alguma fonte extraterrestre de inteligência poderia fazer.
Assim, o segundo argumento de Tipler segue a tradição especulativa que o SETI,
com a sua abordagem experimental, tem o intuito de transcender.
Como primeiro argumento, porém, Tipler apresenta um tipo diferente de
asserção, fundamentada em métodos e dados do meu campo. Ele escreve:

Primeiro, todos os grandes especialistas modernos da teoria da evolução —
Francisco Ayala, Theodosius Dobzhansky, Ernst Mayr e George Simpson —
são unânimes em afirmar que a evolução de uma espécie inteligente a partir
de organismos unicelulares é tão improvável que é possível que sejamos a
única espécie inteligente a existir.

No nível mais mundano, se me é permitido fazer o irrelevante “jogo do
especialista” apenas por uma sentença, a afirmação de Tipler é empiricamente
falsa. Conto pelo menos quatro evolucionistas perfeitamente respeitáveis na
petição intemacional pró-SETI publicada recentemente por Cari Sagan (Tom
Eisner, de Cornell, Dave Raup, da Universidade de Chicago, Ed Wilson, de
Harvard e, com desculpas pela arrogância, este seu criado). Os biólogos
evolutivos, na sua habitual conformidade com o tema principal da natureza,
mantêm uma diversidade de opiniões sobre esse assunto.
Mais importante, acho que Tipler compreendeu mal o que os biólogos
evolutivos rejeitam com tanto vigor, combinando duas questões bem diferentes.
Todos os evolucionistas que discutiram a exobiologia detalhadamente
delinearam com nitidez duas preocupações separadas — uma asserção específica
e um argumento geral.
A questão específica considera a ideia de repetição detalhada de qualquer
sequência evolutiva particular — neste caso, a evolução de criaturas bem
parecidas conosco: de simetria bilateral, com órgãos dos sentidos em cima e na
frente, dois olhos, um nariz no meio, uma boca e um cérebro. Se pudéssemos
começar de novo a fita da evolução, criaturas inteligentes se desenvolveriam
novamente com essa forma? Se outros mundos compartilhassem a nossa química
e as condições básicas, tais “humanoides” se desenvolveriam lá?
A questão geral pergunta se atributos que identificaríamos como inteligência
poderiam surgir em criaturas de qualquer conformação — bolhas, películas,
esferas de energia pulsante ou formas difusas e inimaginadas, bem além das
visões limitadas da maioria dos escritores de ficção científica.
Todos os evolucionistas negaram com veemência a asserção específica, e eu
me junto a eles com todo o vigor. Muitos evolucionistas ainda deram um passo
adicional e duvidaram também do argumento geral, mas nunca com tanta certeza
— e isso sempre na condição de opinião pessoal, nunca como uma proclamação
com o imprimatur da “teoria da evolução”. Eu me encontro entre os
evolucionistas que negam a asserção específica, mas que sentem ser impossível
alimentar alguma opinião de peso contra o argumento geral. O SETI só precisa
do argumento geral como defesa para o seu apoio.
Gregory Bateson, o recentemente falecido guru das ciências que lidam com
objetos complexos e sistemas em interação, enfatizou várias vezes que a
confusão de categorias hierárquicas pode ser a falácia mais comum e séria do
raciocínio humano (ver o seu livro, Mind and Nature, por exemplo). Como um
exemplo principal de “confusões de categorias”, Bateson identificou a
substituição de classes por indivíduos (ou vice-versa).
Casey Stengel, um dos maiores gurus gerais do nosso tempo, cometeu
conscientemente a falácia de categorias de Bateson para evitar o calor do
escrutínio num momento difícil. Ele foi severamente criticado por desperdiçar a
primeira escolha dos Mets no recrutamento de novos jogadores com um
apanhador particular de habilidade bem modesta (um tal de Hobie Landrith)
[Depois de encerrado o campeonato de beisebol, cada equipe, de acordo com a sua classificação, pode
escolher um novo jogador dentre as equipes amadoras. Neste caso, os Mets tinham o direito de fazer a
primeira escolha e, entre as diversas posições existentes no beisebol, resolveram escolher um apanhador,
jogador menos importante que tem a função de interceptar a bola caso o rebatedor erre - N.R.T.]. Casey
respondeu invocando a classe dos apanhadores em geral: “Você tem que ter um
apanhador, porque se não tiver, é provável que passe um monte de bolas.” Ora, o
velho Case, como sempre, sabia exatamente o que estava dizendo (nunca deixe
que a conversa fiada conhecida como “stengelês” o engane). Ele usou o humor
quando recebia críticas rudes porque sabia que todos nós reconheceríamos a
falácia de raciocínio e daríamos risada da combinação. Mas nós cometemos o
mesmo erro em circunstâncias mais sutis e não conseguimos identificar a nossa
confusão.
Quando usamos a “teoria evolutiva” para negar categoricamente a
possibilidade de inteligência extraterrestre cometemos a falácia clássica de
substituir classes (a probabilidade de que a evolução em outros lugares possa
produzir uma criatura na classe geral dos seres inteligentes) por questões
específicas (a possibilidade de repetição individual de humanoides). Posso
apresentar um bom argumento da “teoria evolutiva” contra a repetição de
qualquer coisa parecida com o corpo humano em outros lugares; mas não posso
estendê-lo à proposição geral de que alguma forma de inteligência possa estar
difundida no universo.
Os cientistas físicos, seguindo o estereótipo da ciência como
empreendimento determinista, previsível, muitas vezes raciocinaram que, se os
humanos surgiram na Terra, então devemos inferir (como a causa leva
invariavelmente ao efeito) que criaturas inteligentes de forma aproximadamente
humana surgiriam em qualquer planeta que tivesse início com condições físicas
e químicas semelhantes às vigentes na Terra primitiva.. Talvez essa perspectiva
determinista seja responsável pela imaginação pobre dos cineastas e escritores de
ficção científica, com as suas intermináveis criaturas, todas planejadas a partir de
um modelo humano, com dois olhos, um nariz, uma boca, dois braços e duas
pernas (Contatos imediatos, ET e até mesmo o mais imaginativo, Guerra nas
estrelas). Essa tendência podia ser perdoada quando atores humanos tinham de
desempenhar os papéis nos filmes, mas agora que pedaços de plástico podem
evocar as nossas emoções mais profundas e mover-se com tanta sutileza a ponto
de o ET tornar-se um herói nacional, essa desculpa não serve mais.
No entanto, os estilos de ciência são tão diversos quanto os seus objetos. O
determinismo clássico e a previsibilidade completa podem prevalecer no que se
refere a objetos macroscópicos sujeitos a umas poucas leis de movimento (as
bolas descendo em planos inclinados nas experiências de física e no colegial),
mas os objetos históricos complexos não se prestam a um tratamento tão fácil.
Na história da vida, todos os resultados são produtos de uma longa série de
eventos, cada um dependendo de modo tão intrincado de meios ambientes
particulares e histórias anteriores que não podemos prever com certeza alguma o
seu curso futuro. As ciências históricas tentam explicar situações singulares —
acidentes históricos imensamente complexos. Os biólogos evolutivos, na
condição de cientistas históricos, não esperam a repetição detalhada e não podem
usar os resultados efetivos da história para estabelecer probabilidades de novas
ocorrências (um César iria mais uma vez morrer brutalmente em Roma, se
pudéssemos voltar ao Australopithecus na África e começar de novo?). Os
evolucionistas encaram a origem dos humanos (ou de qualquer borboleta, barata
ou estrela-do-mar específica) como um evento histórico de tamanha
complexidade e improbabilidade que nunca poderíamos ter a expectativa de ver
algo exatamente igual outra vez (ou em outro lugar) — daí a nossa vigorosa
oposição ao argumento específico sobre humanoides em outros mundos.
Considere-se apenas dois dos muitos motivos para a singularidade de eventos
complexos na história da vida.
1. As extinções em massa como influência-chave na história da vida na
Terra [ver ensaios na seção 8]. Os dinossauros morreram há cerca de 65 milhões de
anos na grande extinção mundial do período cretáceo, que também pôs fim a
cerca de metade das espécies de invertebrados marinhos de água rasa. Eles
haviam dominado os meios ambientes terrestres durante cem milhões de anos e
provavelmente reinariam hoje se houvessem sobrevivido à catástrofe. Os
mamíferos surgiram mais ou menos na mesma época e passaram os seus
primeiros cem milhões de anos como criaturas pequenas habitando os
esconderijos e gretas de um mundo de dinossauros. Se a morte dos dinossauros
não houvesse lhes dado a grande oportunidade, os mamíferos ainda seriam
criaturas pequenas e insignificantes. Não estaríamos aqui, e nenhuma vida com
consciência inteligente enfeitaria a nossa Terra. Os indícios colhidos desde 1980
[ver ensaio 29] indicam que o impacto de um corpo extraterrestre detonou essa
extinção. O que poderia ser mais imprevisível e inesperado do que cometas ou
asteroides atingindo a Terra vindos do nada? No entanto, sem tal impacto, a
nossa Terra não teria vida inteligente com. consciência. Muitas grandes
extinções (várias delas maiores do que as do evento do cretáceo) estabeleceram
padrões fundamentais na história da vida, conferindo uma aleatoriedade
essencial ao nosso cortejo evolutivo.
2. Cada espécie como uma concatenação de improbabilidades. Cada espécie
animal — humano, lula ou coral — é o elo mais recente de uma cadeia evolutiva
que se estende através de milhares de espécies desde o início da vida. Se
qualquer uma dessas espécies houvesse se extinguido ou evoluído em qualquer
outra direção, os resultados finais seriam nitidamente diferentes. Cada cadeia de
eventos improváveis contém adaptações desenvolvidas para um meio ambiente
local e apenas fortuitamente apropriadas para sustentar modificações posteriores.
Os nossos ancestrais entre os peixes desenvolveram uma nadadeira peculiar com
um eixo ósseo, rijo e central. Sem uma estrutura desse tipo, os descendentes
destinados à terra não poderiam ter se sustentado num meio ambiente terrestre,
sem flutuação. (A maioria das linhagens de peixes não desenvolveu e não
poderia ter desenvolvido descendentes terrestres porque não tinha a nadadeira
com essa forma.) No entanto, essas nadadeiras não foram desenvolvidas como
antecipação de futuras necessidades terrestres. Elas surgiram como adaptações a
um meio ambiente local aquático, e, por sorte, eram adequadas para,
posteriormente, permitir uma nova direção terrestre. Todas as sequências
evolutivas contêm tais grandes séries de sine quibus non, séries fortuitas de
acidentes relacionados com o sucesso evolutivo futuro. Os cérebros e corpos
humanos não evoluíram ao longo de uma escada direta e inevitável, mas por
meio de uma rota tortuosa e cheia de rodeios, talhada por adaptações
desenvolvidas por diferentes motivos e que, afortunadamente, eram adequadas a
necessidades posteriores.
As improbabilidades da história proclamam que todas as espécies são únicas
e irrepetíveis em detalhe. A teoria evolutiva, como ciência da história, realmente
nega o argumento específico de que existem hu-manóides em outros mundos.
Todos os principais evolucionistas, nos seus escritos sobre exobiologia,
disseram-no com entusiasmo, e eu concordo. Wallace iniciou o tema em 1903:

O desenvolvimento final do homem, portanto, dependeu, grosso modo, de
algo como um milhão de modificações distintas, cada uma de um tipo
especial e dependente de algumas modificações precedentes nos meios
ambientes orgânicos e inorgânicos, ou em ambos. As improbabilidades de
que série tão vastamente longa de modificações definidas tenha ocorrido
duas vezes... são quase infinitas.

Simpson expressou o tema com mais eloquência em anos recentes, no seu
famoso ensaio sobre “a não-prevalência de humanoides” (ver Bibliografia):

Essa irrepetibilidade essencial da evolução na Terra obviamente possui um
significado importante para as chances de que ela tenha sido repetida ou de
que algo comparável tenha ocorrido em algum outro planeta. A suposição,
tão livremente feita por astrônomos, físicos e alguns bioquímicos, de que,
uma vez iniciada a vida em algum lugar, os humanoides acabarão por surgir
inevitavelmente, é claramente falsa. ... Aceitemos a afirmação não
comprovada de que existem milhões ou bilhões de possíveis abrigos
planetários para a vida; as chances de tal duplicação histórica ainda são
infinitamente pequenas.

No entanto, todos esses evolucionistas também distinguiram esta proposição
específica a respeito de humanoides do argumento geral segundo o qual a
inteligência numa outra forma poderia surgir em outro lugar. Sobre a proposição
geral, eles mantiveram uma diversidade de opiniões — que leva à conclusão
empírica de que a “teoria evolutiva” não tem nenhum pronunciamento claro a
fazer. Tanto Wallace quanto Simpson ampliaram a sua argumentação para
duvidar também da asserção geral, mas de modo bem mais gentil, e apenas na
condição de opinião individual. Simpson, por exemplo, escreveu:

Mesmo em histórias planetárias diferentes da nossa não poderiam alguns
seres bem diferentes e, no entanto, de inteligência comparável... terem se
desenvolvido? Trata-se, claro, de questões que não podem ser respondidas
categoricamente. Só posso expressar uma opinião... Acho extremamente
improvável que exista no universo acessível qualquer coisa semelhante o
suficiente a nós em comunicação de pensamento real.

Outros evolucionistas, inclusive dois citados por Tipler como negando
qualquer possibilidade de sucesso para o SETI, também distinguem o argumento
específico do geral, mas expressam muito mais otimismo quanto ao argumento
geral. Num importante livro didático Dobzhansky e Ayala (em co-autoria com
G. L. Stebbins e J. W. Valentine), escrevem (ver Bibliografia):

Admitindo que a possibilidade de se obter uma criatura semelhante ao
homem é infinitamente pequena, mesmo dado um número astronômico de
tentativas... existe ainda uma pequena possibilidade de que outra espécie
inteligente tenha surgido, uma capaz de alcançar uma civilização
tecnológica.

Não estou convencido de que a possibilidade seja tão pequena.
A teoria da evolução oferece algum discernimento sobre o argumento geral?
A partir do fenômeno conhecido como “convergência”, conquistamos certo
senso das probabilidades de repetição de um tema básico (mas não de detalhes
específicos). O vôo foi desenvolvido separadamente nos insetos, pássaros,
pterossauros (répteis voadores) e morcegos. Os princípios de aerodinâmica não
mudam, mas as morfologias diferem amplamente (os pássaros usam penas; os
morcegos e pterossauros empregam uma membrana, mas os morcegos estendem-
na entre vários dedos, os pterossauros a partir de apenas um). “Toupeiras” e
“lobos” marsupiais desenvolveram-se na Austrália, um continente isolado dos
mamíferos placentários de outros lugares. Como os temas adaptativos são
limitados e os animais são tão diversos, a convergência de diferentes linhagens
evolutivas rumo à mesma solução geral (mas não à repetição detalhada) é
comum. Formas altamente adaptativas que se desenvolvem com facilidade
surgem vezes e vezes. Morfologias mais complexas sem tal necessidade
adaptativa oferecem pouca ou nenhuma perspectiva de repetição. A inteligência
consciente evoluiu na Terra apenas uma vez, e não apresenta nenhuma
perspectiva concreta de ressurgimento, caso escolhamos fazer uso do nosso dom
de destruição. Mas a inteligência encontra-se dentro da classe de eventos
excessivamente complexos e por demais condicionados historicamente para
serem repetidos? Não acho que a sua singularidade na Terra especifique tal
conclusão. Talvez, em outra forma, num outro mundo, a inteligência fosse tão
fácil de ser desenvolvida como no nosso.
Tipler rejeita a questão da convergência afirmando que o biólogo Leonard
Ornstein (num artigo em que apoia Tipler, ver Bibliografia) refutou a mais
famosa de todas as convergências — o “olho em câmera” dos vertebrados e dos
cefalópodes (lulas e aparentados) — sugerindo que essa estrutura surgiu em
ambos os grupos a partir de um ancestral comum, e não separadamente em cada
um deles. Mesmo que Ornstein estivesse correto, a rejeição de um caso
específico não nega a importância da convergência como fenômeno geral.
Entretanto, os argumentos de Ornstein são seriamente defeituosos. Ele nunca
mencionou o argumento “clássico”, o mais forte, a favor da convergência — o
de que os olhos, embora tão semelhantes em modelo e operação, têm
desenvolvimentos embriológicos fundamentalmente diversos (os olhos das lulas
formam-se a partir de precursores cutâneos, ao passo que os olhos dos
vertebrados, com exceção das lentes, desenvolvem-se a partir do cérebro). Além
disso, o principal argumento de Ornstein a favor da evolução a partir de um
ancestral comum fundamenta-se num princípio biológico refutado há mais de
cinquenta anos. Ele invoca a desacreditada lei de Haeckel de que “a ontogenia
recapitula a filogenia” — que o desenvolvimento embriológico de um organismo
repete a sequência de ancestrais adultos da sua bnhagem evolutiva. Como o olho
se desenvolve cedo embriologicamente, Ornstein argumenta que ele já pode ter
existido num ancestral bastante remoto — remoto o bastante para anteceder a
separação das linhagens evolutivas das lulas e dos vertebrados. Não apenas a lei
de Haeckel foi refutada (os embriões não repetem estágios ancestrais), como
também o próprio Haeckel, quando o seu princípio estava no auge, jamais usou a
época de surgimento no desenvolvimento embriológico para especificar o
momento de origem evolutiva — pois ele mesmo identificara e nomeara uma
grande classe de exceções a essa generalização simplista.
Mesmo se seguirmos Tipler na argumentação de que as máquinas Von
Neumann são o único caminho adequado a seguir, ele admite que antes de um
século não teremos a tecnologia para construir uma. Sou um sujeito impaciente e
mortal. Como acho cruel pedir às minorias desfavorecidas para “irem devagar”
nas exigências de mudança política — garantindo assim que quaisquer
benefícios práticos irão apenas para os filhos dos seus filhos — assim eu
também, egoisticamente, quero ver alguns resultados exobiológicos (positivos ou
negativos) durante a minha vida. O SETI é tudo o que temos por enquanto. É
relativamente barato, e (a meu ver) inteiramente sensato segundo as perspectivas
que a teoria evolutiva pode esclarecer. Francamente, acho que as suas chances de
sucesso são bem menores do que as probabilidades imaginadas pelos seus
defensores mais entusiásticos entre os cientistas físicos. Mas não podemos saber
antes de tentar. Contudo, devo, por fim, justificar a tentativa de tal tiro no escuro
dizendo que um resultado positivo seria o evento mais cataclísmico de toda a
nossa história intelectual. A curiosidade impele e nos faz humanos. Ela poderia
impelir outros também?




8. Extinção e continuidade

28. Sexo, drogas, desastres e a extinção dos dinossauros




Na sua definição mais fundamental, a ciência é um modo produtivo de
investigação, não uma lista de conclusões sedutoras. As conclusões são a
consequência, não a essência.
A minha maior infelicidade com a maioria das apresentações populares de
ciência diz respeito ao seu fracasso em separar proposições fascinantes dos
métodos que os cientistas usam para estabelecer os fatos da natureza. Os
jornalistas e o público vivem de declarações polêmicas e impressionantes. Mas a
ciência, basicamente, é um modo de saber — nas palavras perspicazes de P. B.
Medawar, “a arte do solúvel”. Se o batalhão crescente de escritores populares de
ciência se concentrasse em como os cientistas desenvolvem e defendem essas
fascinantes proposições, eles dariam a sua maior contribuição possível para a
compreensão do público.
Considere-se três ideias, propostas com perfeita seriedade para explicar o
mais instigante de todos os enigmas — a extinção dos dinossauros. Como essas
três ideias invocam os temas de fascínio fundamental da nossa cultura — sexo,
drogas e violência — elas com certeza se encontram na categoria das propostas
fascinantes. Quero demonstrar por que duas delas se classificam como
especulação tola, ao passo que a outra representa a ciência no que ela tem de
mais grandioso e útil.
A ciência trabalha com propostas averiguáveis. Se, após muita compilação e
escrutínio de dados, novas informações continuam a afirmar uma hipótese,
podemos aceitá-la provisoriamente e ganhar confiança à medida que se
acumulam indícios adicionais. Nunca podemos ter certeza completa de que uma
hipótese é correta, embora sejamos capazes de demonstrar com confiança que
ela está errada. As melhores hipóteses científicas também são generosas e
expansivas: elas sugerem ampliações e implicações que esclarecem assuntos
relacionados e até mesmo outros bem distantes. Considere-se simplesmente
como a ideia de evolução influenciou virtualmente todos os campos intelectuais.
A especulação inútil, por outro lado, é restritiva. Ela não gera nenhuma
hipótese averiguável e não oferece nenhum modo de se obter indícios potenciais
de refutação. Note, por favor, que não estou falando de verdade ou falsidade. A
especulação pode muito bem ser verdadeira; contudo, se não oferece, em
princípio, nenhum material para confirmação ou rejeição, não podemos fazer
nada com ela. Ela, simplesmente, tem de permanecer para sempre como uma
ideia curiosa. A especulação inútil volta-se para si mesma e não leva a lugar
algum; a ciência boa, que contém tanto as sementes da sua refutação potencial
quanto implicações para conhecimentos adicionais diferentes e averiguáveis, se
expande. Mas, basta de pregação. Passemos para os dinossauros e as três
propostas a respeito da sua extinção.

1.Sexo: Os testículos funcionam apenas numa faixa muito estreita de
temperatura (os dos mamíferos pendem externamente num saco escrotal
porque as temperaturas internas do corpo são muito altas para que eles
funcionem adequadamente). Um aumento da temperatura em todo o mundo
no final do período cretáceo fez com que os testículos dos dinossauros
parassem de funcionar, o que levou esses animais à extinção através da
esterilização dos machos.
2. Drogas: As angiospermas (plantas com flores) desenvolveram-se de início
por volta do final do reinado dos dinossauros. Muitas dessas plantas contêm
agentes psicoativos, evitados hoje pelos mamíferos em virtude do seu sabor
amargo. Os dinossauros não tinham nem como sentir o amargor, nem fígados
eficientes o bastante para eliminar a toxicidade das substâncias. Eles
morreram de overdoses maciças.
3. Desastres: Um grande cometa ou asteroide chocou-se com a Terra há
cerca de 65 milhões de anos, o que provocou uma nuvem de poeira no céu e
bloqueou a luz solar; isso impediu por completo a fotossíntese, e as
temperaturas do mundo se reduziram tão drasticamente que os dinossauros e
legiões de outras criaturas acabaram sendo extintas.

Antes de analisar essas três provocantes declarações, devemos estabelecer
uma regra fundamental muitas vezes violada nas propostas sobre a extinção dos
dinossauros. Não existe o problema específico da extinção dos dinossauros.
Muitas vezes, divorciamos eventos específicos dos seus contextos e sistemas
mais amplos de causa e efeito. O fato fundamental da extinção dos dinossauros é
a sua sincronia com o desaparecimento de tantos outros grupos ao longo de uma
grande faixa de habitais, do terrestre ao marinho.
A história da vida tem sido pontuada por breves episódios de extinção em
massa. Uma análise recente dos paleontólogos Jack Sepkoski e Dave Raup, da
Universidade de Chicago, baseada na melhor e mais exaustiva tabulação de
dados jamais reunida, mostra claramente que cinco episódios de extinção em
massa colocam-se bem acima das extinções “de fundo” dos tempos normais
(quando consideramos todas as extinções em massa, grandes e pequenas, elas
parecem localizar-se num ciclo regular de 26 milhões de anos — ver ensaio 30).
A catástrofe do cretáceo, que ocorreu há 65 milhões de anos e separa a era
mesozoica da cenozoica na nossa escala de tempo geológico, destaca-se entre as
cinco. Quase todo o plâncton marinho (criaturas unicelulares flutuantes) morreu
de repente pelos padrões geológicos; dentre os invertebrados marinhos,
pereceram quase 15% de todas as famílias, inclusive muitos grupos
anteriormente dominantes, sobretudo as amonitas (parentes das lulas, com
conchas espiraladas). Sobre a terra, os dinossauros desapareceram depois de
mais de cem milhões de anos de domínio incontestado.
Nesse contexto, as especulações limitadas apenas aos dinossauros ignoram o
fenômeno maior. Precisamos de uma explicação coordenada para um sistema de
eventos que tem a extinção dos dinossauros como um dos seus componentes.
Assim, faz pouco sentido, embora isso possa alimentar o nosso desejo de encarar
os mamíferos como herdeiros inevitáveis da Terra, conjecturar que os
dinossauros morreram porque os pequenos mamíferos comiam os seus ovos
(uma favorita eterna dentre as especulações não averiguáveis). Parece por
demais improvável que algum desastre peculiar aos dinossauros tenha ocorrido a
essas imponentes feras — e que a catástrofe tenha ocorrido justamente quando
uma das cinco grandes mortandades da história envolvia a Terra por motivos
completamente diversos.
A teoria testicular, uma velha favorita da década de 1940, teve origem num
estudo interessante e perfeitamente respeitável sobre as tolerâncias de
temperatura no aligátor americano, publicado no sóbrio Bulletin of the American
Museum of Natural History, em 1946, por três especialistas em répteis vivos e
fósseis — E. H. Colbert, o meu primeiro professor de paleontologia, R. B.
Cowles e C. M. Bogert.
A primeira sentença do seu sumário revela uma proposta que vai além dos
aligatores: “Este relatório descreve uma tentativa de inferir as reações de répteis
extintos, especialmente os dinossauros, a altas temperaturas, fundamentadas nas
reações observadas no aligátor moderno.” Por meio de termometria retal, eles
estudaram as temperaturas corporais de aligátores sob mudanças variáveis de
aquecimento e resfriamento. (Ora, encare a verdade, você não iria querer enfiar
um termômetro debaixo da língua de um aligátor.) As previsões sob averiguação
remontam a uma teoria formulada primeiramente por Galileu na década de 1630
— a gradação desigual de superfícies e volumes. À medida que um animal, ou
qualquer objeto, cresce (contanto que não mude o seu formato), as áreas de
superfície têm de aumentar mais vagarosamente do que os volumes — já que as
superfícies aumentam como comprimento ao quadrado, ao passo que os volumes
crescem com muito mais rapidez, como comprimento ao cubo. Portanto, os
animais pequenos possuem quocientes elevados de superfície para volume, ao
passo que os animais grandes se cobrem com relativamente pouca superfície.
Entre os animais de sangue frio, que não dispõem de qualquer mecanismo
para manter as suas temperaturas constantes, as criaturas pequenas têm um
trabalho danado para se manterem quentes — porque elas perdem muito calor
através das suas superfícies relativamente grandes. Por outro lado, os animais
grandes, com as suas superfícies relativamente pequenas, podem perder calor tão
devagar que, uma vez aquecidos, podem manter com eficiência temperaturas
constantes contra flutuações comuns de clima. (De fato, a solução da
controvérsia do “dinossauro de sangue quente”, que foi objeto de intenso debate
há alguns anos, pode ser, simplesmente, o fato de que, embora os grandes
dinossauros não possuíssem nenhum mecanismo fisiológico para manter a
temperatura constante, não sendo, portanto, animais de sangue quente no sentido
técnico, o seu grande porte e a superfície relativamente pequena mantinham-nos
aquecidos.)
Colbert, Cowles e Bogert compararam as taxas de aquecimento de aligatores
pequenos e grandes. Tal como previsto, os miúdos esquentaram (e esfriaram),
com mais rapidez. Quando exposto ao sol quente, um aligátor pequeno, de 50
gramas, ganhou um grau Celsius a cada minuto e meio, ao passo que um aligátor
grande, 260 vezes maior, com 13.000 gramas, levou sete minutos e meio para
ganhar um grau. Extrapolando para um dinossauro adulto, de 10 toneladas, eles
concluíram que um aumento de um grau na temperatura do corpo levaria 86
horas. Se animais grandes absorvem calor tão lentamente (através das suas
superfícies relativamente pequenas), eles também não terão como eliminar
qualquer excesso de calor quando as temperaturas subirem acima de um nível
favorável.
Os autores conjecturaram então que os grandes dinossauros viviam em
temperaturas ótimas ou quase ótimas; Cowles sugeriu que um aumento em
temperaturas globais pouco antes da extinção do período cretáceo fez com que
os dinossauros se aquecessem além da sua tolerância ótima — e, sendo tão
grandes, eles não conseguiam eliminar o calor indesejável. (Então, numa
declaração por demais incomum numa dissertação científica, Colbert e Bogert
repudiaram essa extensão especulativa do seu trabalho empírico com aligatores.)
Cowles admitiu que esse excesso de calor provavelmente não era suficiente para
matar ou mesmo para debilitar as grandes feras, mas como os testículos muitas
vezes funcionam apenas dentro de uma estreita faixa de temperatura, ele propôs
que esse aumento global poderia ter esterilizado todos os machos, causando a
extinção por meio dessa contracepção natural.
A teoria da overdose foi recentemente defendida por Ronald K. Siegel, da
Universidade da Califórnia. Siegel colheu, afirma ele, mais de 2.000 registros de
animais que, quando conseguem acesso, administram várias drogas a si mesmos
— de um mero gole de álcool até doses maciças de heroína. Os elefantes são
capazes de engolir por vez o equivalente a vinte cervejas, mas não gostam de
álcool em concentrações acima de 7%. Num pequeno e tolo exemplo de
especulação antropocêntrica, Siegel diz que “os elefantes talvez bebam para
esquecer... a ansiedade produzida pela diminuição das pastagens e pela
competição por alimento”.
Como as imaginações férteis conseguem aplicar quase que qualquer ideia
quente à extinção dos dinossauros, Siegel encontrou um jeito. As plantas com
flores não surgiram até perto do fim do reinado dos dinossauros. Essas plantas
também produziam uma série de alcaloides — o principal grupo de agentes
psicoativos — aromáticos, de base aminoácida. A maioria dos mamíferos é
“esperta” o suficiente para evitar esses venenos potenciais. Os alcaloides
simplesmente têm gosto ruim (são amargos); de qualquer modo, e para nossa
sorte, nós, mamíferos, temos fígados dotados da capacidade de lhes tirar a
toxidade. No entanto, especula Siegel, talvez os dinossauros não pudessem nem
sentir o amargor nem eliminar a toxicidade das substâncias uma vez ingeridas.
Recentemente ele disse aos membros da Associação Psicológica Americana:
“Não estou sugerindo que todos os dinossauros tomaram overdoses de drogas
vegetais, mas isso com certeza foi um fator.” Ele também afirmou que a morte
por overdose pode ajudar a explicar por que tantos fósseis de dinossauros são
encontrados contorcidos.
As catástrofes extraterrestres têm uma longa linhagem na literatura popular
de extinções, mas o assunto explodiu novamente em 1979, após uma prolongada
calmaria, quando a equipe de pai e filho, físico e geólogo, de Luis e Walter
Alvarez propôs que um asteroide, com cerca de 10 km de diâmetro, chocou-se
com a Terra há 65 milhões de anos (os cometas, ao contrário dos asteroides, têm
ganho preferência desde então, por motivos delineados no ensaio 30. A boa
ciência é autocorretiva).
A força de tal colisão seria imensa, bem maior que a megatonagem de todas
as armas nucleares do mundo (ver ensaio 29). Ao tentarem reconstruir um
roteiro capaz de explicar a morte simultânea dos dinossauros sobre a terra e de
tantas criaturas no mar, os Alvarez propuseram a hipótese de que uma nuvem
gigantesca de poeira, gerada por partículas arremessadas para o alto com o
impacto, teria escurecido a Terra de modo a impossibilitar a fotossíntese e a
fazer com que as temperaturas caíssem precipitadamente. O plâncton oceânico
unicelular fotossintético, com ciclos vitais medidos em semanas, pereceria de
imediato, mas as plantas terrestres poderiam sobreviver através da dormência
das sementes (as plantas terrestres não foram muito afetadas pela extinção do
cretáceo, e qualquer teoria adequada deve explicar o curioso padrão de
sobrevivência diferencial). Os dinossauros morreriam de fome e frio; os
mamíferos, pequenos, de sangue quente, com necessidades alimentares mais
modestas e uma melhor regulagem de temperatura corporal, mal e mal
escapariam. “Que os miseráveis congelem no escuro”, como proclamavam,
vários anos atrás, os adesivos dos nossos vizinhos chauvinistas dos Estados do
sul, durante a crise de óleo no inverno dos Estados do nordeste.
Todas as três teorias, a disfunção testicular, a ingestão excessiva de agentes
psicoativos, e o impacto de um asteroide, conseguem arrebatar a nossa atenção.
Como fenomenologia pura, elas estão empatadas na parada de fascínio
primordial. No entanto, uma representa ciência expansiva, as outras, especulação
restritiva e inaveriguável. O critério apropriado encontra-se nos indícios e na
metodologia; devemos investigar o que há por trás do fascínio superficial de
proposições particulares.
Como seria possível decidirmos se a hipótese dos testículos fritos é certa ou
errada? Teríamos de saber coisas que o registro fóssil não oferece. Quais
temperaturas eram ótimas para os dinossauros? Eles podiam evitar a absorção de
excesso de calor ficando na sombra ou em cavernas? A que temperatura os seus
testículos deixavam de funcionar? Os climas do fim do cretáceo foram quentes o
suficiente para empurrar as temperaturas internas dos dinossauros até esse teto?
Testículos simplesmente não se fossilizam, e mesmo que o fizessem, como
poderíamos inferir as suas tolerâncias de temperatura? Em resumo, a hipótese de
Cowles é apenas uma especulação curiosa que não leva a lugar algum. A
declaração mais condenatória contra ela surgiu logo na conclusão da dissertação
de Colbert, Cowles e Bogert, quando eles admitiram: “É difícil propor quaisquer
argumentos definidos contra esta hipótese.” O que tenho a dizer pode parecer
paradoxal — uma hipótese contra a qual não se pode elaborar nenhum
argumento não é mesmo boa de verdade? Muito pelo contrário. Ela é
simplesmente inaveriguável e inútil.
A overdose de Siegel tem menos força ainda. Cowles pelos menos fez uma
extrapolação a partir de dados de boa qualidade sobre aligatores. Ele não violou
completamente a regra primária de situar a extinção dos dinossauros no contexto
de uma grande mortandade em massa — pois o aumento de temperatura poderia
ser a causa básica de uma catástrofe geral, que acabaria com os dinossauros por
disfunção testicular e grupos diferentes por outros motivos. Mas a especulação
de Siegel não consegue tocar a extinção das amonitas ou do plâncton oceânico
(as diatomáceas produzem a própria comida com a boa e pura luz do Sol; elas
não tomam overdoses de substâncias químicas de plantas terrestres). Trata-se
apenas de um palpite gratuito, que busca chamar a atenção. Não pode ser
averiguado, pois como vamos saber que sabores os dinossauros sentiam ou o que
os seus fígados conseguiam fazer? Fígados não se fossilizam melhor do que
testículos.
A hipótese não faz sentido nem mesmo no seu próprio contexto. As
angiospermas estavam em plena floração dez milhões de anos antes que os
dinossauros seguissem o caminho de toda a carne. Por que demorou tanto a
acontecer? Quanto às dores da morte química registradas nas contorções dos
fósseis, lamento dizer (ou melhor, sinto-me satisfeito por dizer, em consideração
para com os dinossauros) que o conhecimento de geologia de Siegel deve ser um
bocado deficiente: os músculos se contraem após a morte, e os estratos
geológicos sobem e descem com os movimentos da crosta terrestre após o
sepultamento — motivos mais do que suficientes para distorcer a aparência
original de um fóssil.
Por outro lado, a hipótese do impacto possui um fundamento sólido de
indícios. Ela pode ser submetida a exame, expandida, refinada e, se for incorreta,
rejeitada. Os Alvarez não se limitaram a elaborar um palpite arrebatador para
consumo público. Eles propuseram a sua hipótese após laboriosos estudos
geoquímicos com Frank Asaro e Flelen Michael terem revelado um vasto
aumento de irídio nas rochas depositadas justamente na época da extinção. O
irídio, um metal raro do grupo da platina, está virtualmente ausente das rochas
nativas da crosta terrestre; a maior parte do nosso irídio provém de objetos
extraterrestres que se chocam com a Terra.
A hipótese Alvarez rendeu frutos imediatos. Fundamentada originalmente
nos indícios de duas localidades europeias, ela levou os bioquímicos de todo o
mundo a examinar outros sedimentos de mesma idade. Eles encontravam
quantidades atipicamente altas de irídio em toda a parte — das rochas
continentais do oeste dos Estados Unidos até pontos do fundo do mar no
Atlântico Sul.
Cowles propôs a sua hipótese testicular em meados da década de 1940. Até
onde ela chegou desde então? Absolutamente a lugar algum, porque os cientistas
nada podem fazer com ela. A hipótese tem de permanecer na condição de
apêndice curioso de um sólido estudo sobre aligatores. O roteiro da overdose de
Siegel também vai conquistar algumas notas na imprensa até cair no
esquecimento. O asteroide dos Alvarez classifica-se numa categoria inteiramente
diversa, e boa parte do comentário popular não percebeu a distinção essencial
porque se concentrou no impacto e nos seus resultados, e esqueceu o que
realmente importa para um cientista — o irídio. Se você fala apenas sobre
asteroides, poeira e escuridão, não está contando histórias melhores ou mais
divertidas do que as dos testículos fritos ou das “viagens” terminais. É o irídio
— a fonte de evidência averiguável — que importa e que forja a distinção
crucial entre especulação e ciência.
A prova, distorcendo uma expressão, encontra-se no fazer. A hipótese de
Cowles não gerou coisa alguma em 35 anos. Desde a sua proposição em 1979, a
hipótese Alvarez gerou centenas de estudos, uma importante conferência e as
publicações resultantes. Os geólogos estão em polvorosa. Procuram por irídio
em todas as outras fronteiras de extinção. Toda semana surge algo novo na
imprensa científica. Continuam a se acumular os indícios de que o irídio do
cretáceo representa um impacto extraterrestre e não o vulcanismo nativo.
Enquanto faço a revisão deste ensaio em novembro de 1984 (este parágrafo
estará antiquado quando o livro for publicado), estão surgindo novos dados que
incluem “assinaturas” químicas de outros isótopos que apontam para uma
origem extraterrestre, esférulas de vidro do tamanho e do tipo produzidos por
impacto e não por erupções vulcânicas, e variedades de sílica de alta pressão que
se formam (pelo que sabemos) apenas sob o tremendo choque do impacto.
Minha tese é simplesmente esta: qualquer que seja o resultado final (suspeito
que será positivo), a hipótese Alvarez é ciência estimulante, proveitosa, porque
gera exames, oferece-nos o que fazer e se expande. Estamos nos divertindo,
avançando e recuando, rumando para uma solução e ampliando a hipótese além
do seu propósito original (ver no ensaio 30 algumas ampliações verdadeiramente
extraordinárias).
Apenas como exemplo das contribuições inesperadas que a boa ciência
engendra em outros campos, a hipótese Alvarez fez uma importante contribuição
para um tema que tem arrebatado a atenção pública nos últimos meses — o
chamado inverno nuclear (ver ensaio seguinte). Num discurso proferido em abril
de 1982, Luis Alvarez calculou a energia que um asteroide de dez quilômetros
liberaria no impacto. Ele comparou tal explosão com uma troca nuclear plena e
deixou implícito que uma guerra atômica total poderia desencadear
consequências semelhantes.
Este tema, do impacto que gera nuvens gigantescas de poeira e quedas de
temperatura, constituiu um importante estímulo para a decisão de Cari Sagau e
um grupo de colegas, de formular as consequências climáticas do holocausto
nuclear. A troca nuclear plena provavelmente geraria o mesmo tipo de nuvem de
poeira e escurecimento que pode ter eliminado os dinossauros. As temperaturas
cairiam precipitadamente e a agricultura poderia se tornar impossível. Evitar a
guerra nuclear é fundamentalmente um imperativo ético e político, mas temos de
saber as consequências concretas para podermos fazer julgamentos firmes.
Sinto-me encorajado por uma ligação final, entre disciplinas e preocupações
profundas — a propósito, outro critério da ciência no que ela tem de melhor (Essa
caprichosa ligação estimula de tal modo a minha imaginação que vou quebrar a minha regra estrita de
eliminar redundâncias desses ensaios e terminarei este e o próximo ensaio com este incitamento ao
pensamento e à ação): reconhecer o fenômeno que, exterminando os dominadores
prévios, os dinossauros, e abrindo caminho para a evolução de mamíferos
grandes, inclusive nós, tornou possível a nossa evolução, pode ajudar
concretamente a evitar que nos juntemos àquelas feras magníficas em suas poses
contorcidas nos estratos da Terra.

29. Continuidade


Uma faixa dourada de mosaicos circunda o interior da cúpula de
Michelângelo na Basílica de São Pedro no Vaticano. Ela é adornada por aquele
trocadilho geológico definitivo, as palavras de Cristo, tomadas desde então como
justificativa da supremacia e da continuidade papal. Tu es Petrus, et super hanc
petram aedificabo ecclesiam meam — “Tu és Pedro, e sobre esta pedra
edificarei a minha igreja” (Mateus 16:18) Em latim, e em outras línguas do
tempo de Cristo, o nome de Pedro significa pedra petra) — portanto, Cristo
nomeou o seu primeiro papa por nome e talvez não sem um toque de humor. (É
claro que não é da minha conta, mas sempre considerei Pedro — o hómem que
negou Cristo três vezes e então tentou escapulir de Roma até que Cristo
reaparecesse e respondesse com uma suave censura à sua indagação “Domine,
quo vadis?” — um caráter um tanto fraco para assumir uma responsabilidade tão
importante.) De qualquer modo, as palavras em mosaico dourado simbolizam
uma das grandes continuidades da nossa instável e efêmera história — uma
instituição (o papado) que tem como reconstituir a sua linhagem ao longo de
dois milênios.
Não há nenhuma cidade exatamente como Roma, e nenhuma instituição
exatamente como a Igreja católica, no que diz respeito a continuidade apreciável
— aquela propriedade fugaz que um paleontólogo como eu deve considerar de
valor intrínseco e inestimável. Se o ajustamento sutil a necessidades e
sentimentos humanos profundos representa a melhor fórmula para a
continuidade, então a Igreja de Roma conquista os aplausos deste leigo. Ao fim
da tarde, na bela igreja de Santa Maria de Trastevere, iniciada no século III,
rapazes jogam futebol na praça contígua. À medida que o dia se esvai, eles se
deslocam para o pórtico iluminado, sob os magníficos mosaicos da Virgem, e
prosseguem com o jogo, em meio às tumbas de cristãos primitivos. O sagrado
e.o profano devem se misturar.
Na Casina Pio Quatro (palácio de Pio IV), no território do Vaticano, em
janeiro de 1984, começo do ano de Orwell, encontrei-me com vinte cientistas de
oito nações para esboçar um relatório sobre o “inverno nuclear” que o papa
pudesse usar nos seus discursos contra a guerra atômica. Pio IV foi um papa
quinhentista da poderosa família Mediei. A casa dele é um palácio romano,
rodeado de grutas e terraços ornados com estátuas e relevos de jovens romanos
em várias poses de brincadeira e contentamento. Os tetos são pintados com
desenhos ondulantes de criaturas imaginárias e símbolos sexuais e de fertilidade
razoavelmente ostensivos. Querubins erguem o escudo de seis bolas dos Mediei,
o símbolo do poder temporal, com o seu título digno de um monarca terreno,
Pius IIII Pontifex Optimus Maximus. Aqui e ali, quase que como um
pensamento de última hora, uma cena bíblica — o batismo de Cristo por João,
por exemplo — preenche um espaço entre motivos romanos. Mais uma vez,
sagrado e profano, espiritual e temporal, prazer e contemplação — todos
contidos numa única unidade artística, um símbolo de continuidade que
incorpora o passado e reconhece realidades humanas do presente.
Estive em Roma para discutir a continuidade na mais grandiosa escala. Uma
série de estudos, executados por grupos independentes de cientistas em diversas
nações, examinados e confirmados por líderes das várias disciplinas envolvidas,
parecem estar convergindo (apesar de várias incertezas remanescentes) para uma
conclusão perturbadora. Em todos os prognósticos sobre os horrores da guerra
nuclear, deixamos passar anteriormente um tema importante que torna a
perspectiva de tal holocausto ainda mais impensável. Exploramos as
consequências imediatas da explosão e da precipitação radioativa, mas não
avaliamos os efeitos a longo prazo (de meses e anos) sobre o clima produzidos
pelas nuvens de poeira e fuligem erguidas por grandes explosões. Sob uma série
de circunstâncias plausíveis, um manto de partículas poderia cobrir a Terra,
trazendo temperaturas abaixo de zero nos verões de latitudes médias e
envolvendo a Terra em tamanha escuridão que a agricultura poderia desaparecer
completamente. Esse inverno nuclear levanta, pela primeira vez, a aterrorizante
perspectiva de que uma grande guerra não apenas debilitaria e dizimaria,
trazendo consigo sofrimento humano inigualado, mas também levaria à extinção
total e irremediável de várias espécies vegetais e animais. Nós, humanos, somos
um grupo robusto e bem distribuído, mas até mesmo a possibilidade do nosso
próprio desaparecimento, como consequência da pior sequência de eventos de
um inverno nuclear, não deve ser de todo excluída.
Por que devemos nos preocupar tanto com a extinção? Já é bastante
considerar a destruição aterradora da guerra nuclear sem essa dimensão
adicional. Eu poderia oferecer uma série de motivos “objetivos”. Alguns são
práticos. O milho, a nossa colheita mais importante, estará em dificuldades se
perdermos o teosinto, a sua gramínea ancestral, com uma distribuição geográfica
e ecológica limitada na América Central e América do Sul. O teosinto produz
híbridos com o milho (ver ensaio 24) e constitui uma importante reserva de
variabilidade genética de que todas as espécies necessitam para a sua própria
preservação e flexibilidade evolutiva. Outros motivos são francamente estéticos.
Este seria mesmo um mundo bem empobrecido e triste se não encontrássemos
nada além de humanos, e um rato ou uma barata de vez em quando. Mas, no
presente ensaio, que apresento mais como uma divagação sobre a continuidade
do que como um relato técnico sobre o inverno nuclear, gostaria de enfatizar um
argumento altamente pessoal, moral (não sujeito a prova, mas simplesmente à
expressão, profundamente sentida), que se origina da minha própria carreira de
paleontólogo, um estudioso da maior de todas as continuidades naturais, a
genealogia da vida na Terra.
Temos hoje provas, nos fósseis de células simples e nos tapetes de
sedimentos que os agregados dessas células capturam e prendem, de que a vida
surgiu há pelo menos 3,5 bilhões de anos. Desde então, ela tem se expandindo
no tempo, numa sequência ininterrupta até o presente. Todos nós, musgo,
efêmera, hipopótamo, podemos, de modo absolutamente literal, rastrear toda a
nossa ascendência até esses primórdios. A árvore é uma metáfora precisa para a
história da vida; a ponta de cada ramo hoje existente (nós, humanos, somos um
deles) recua por ramos sempre mais largos e robustos, até o tronco comum das
células originais com quase quatro bilhões de anos de idade.
Cada extinção remove em caráter permanente um pedaço desse patrimônio;
cada morte irremediável de uma espécie não destrói meramente um bocado do
protoplasma presente, mas um caminho singular da história, mantido durante
quatro bilhões de anos. Cada extinção é um rompimento de continuidade na mais
grandiosa escala. Claro, a partir de uma perspectiva geológica medida em
milhões de anos, a extinção é inevitável, até mesmo necessária para a
manutenção de uma vigorosa árvore da vida. Também podemos argumentar,
tanto no nível abstrato quanto na história efetiva da vida, que um ocasional
episódio catastrófico de extinção em massa abre novas possibilidades evolutivas,
liberando espaço ecológico num mundo lotado.
Mas essas escalas geológicas não são adequadas para se considerar a nossa
própria vida e o seu significado imediato. O efeito potencialmente benéfico de
uma extinção em massa no imprevisível ricochete da vida ao longo de dez
milhões de anos não pode expressar o significado do nosso pequeno ramo na
árvore da vida — e não estamos exibindo uma vaidade cósmica quando achamos
melhor alimentar e defender este raminho em especial, mas apenas um auto-
interesse adequado.
O nosso raminho é bem pequeno mesmo, mas lembre que ele remonta, por
meio de uma miríade de galhos maiores, ao longo de quatro milhões de anos, ao
próprio tronco central. A nossa origem na África e a subsequente difusão por
todo o mundo formam uma história complexa e instigante que expressa a nossa
continuidade com toda a história da vida. Se extirparmos este raminho
diretamente, por meio do inverno nuclear, ou se perdermos tantos outros ramos
que o nosso venha por fim a murchar, teremos então cancelado para sempre o
experimento mais peculiar, diferente e imprevisto jamais gerado entre os bilhões
de ramos — a origem, via consciência, de um ramo capaz de descobrir a sua
própria história e de apreciar a sua continuidade.
Algumas pessoas, que nunca se livraram da cadeia do ser (ver ensaios 17-19)
e que encaram a história da vida como um relato de progresso linear que leva de
modo previsível à evolução da consciência, poderiam sentir-se menos
perturbadas (em certo sentido abstrato) pela nossa potencial auto-remoção.
Afinal, a evolução se desloca rumo à complexidade e à consciência. Se não nós,
então algum outro ramo sobrevivente entrará na corrente e por fim dará uma
segunda chance à inteligência. E, se não aqui, então em outro lugar, num
universo povoado, pois as leis da natureza não variam de lugar para lugar.
Como estudioso da história da vida, e como homem que trabalhou duro para
separar o preconceito cultural e a esperança psicológica da história que os fósseis
tentam nos contar, cheguei a uma conclusão inteiramente diversa, compartilhada,
penso eu, pela maioria dos colegas profissionais: a consciência é um caprichoso
acidente evolutivo, um produto de uma linhagem peculiar que desenvolveu a
maioria dos componentes da inteligência para outros propósitos evolutivos (ver
ensaio 27). Se perdermos esse ramo com a extinção humana, a consciência pode
não se desenvolver outra vez em qualquer outra linhagem durante os mais ou
menos cinco bilhões de anos que restam à Terra antes da explosão do Sol. Sem
nenhuma culpa nossa, e sem a pressão de nenhum plano cósmico ou propósito
consciente, nós nos tornamos, pelo poder de um glorioso acidente evolutivo
chamado inteligência, os administradores da continuidade da vida na Terra. Não
pedimos esse papel, mas não podemos abjurá-lo. Podemos não estar qualificados
para tamanha responsabilidade, mas cá estamos nós. Se a mandarmos pelos ares
(em sentido absolutamente literal), romperemos em caráter permanente uma
continuidade de eras que reduz a nossa minúscula história à insignificância
geológica, mas que, não obstante, nós agora controlamos. Não consigo imaginar
nada mais vulgar, mais odioso, do que a perspectiva de que um ramo minúsculo,
com um poder peculiar, possa dizimar uma árvore majestosa e antiga, cuja
continuidade se prolonga desde a aurora dos tempos da Terra e cujo tronco e
ramos abrigam milhares de pré-requisitos para a existência desse mesmo ramo.
O argumento do inverno nuclear tem várias fontes e progenitores. Mas ele
ganhou destaque em fins de 1983 principalmente através do trabalho de uma
equipe com a apropriada acrossemia de TTAPS (Taps significa toque fúnebre - N.T.) —
R. P. Turco, O. B. Toon, T. P. Ackerman, J. B. Pollack e Cari Sagan. A
modelagem climática representa um estilo pouco familiar de ciência, bem
diferente do estereótipo escolar de experimento simples, previsão clara e prova
inequívoca. Temos de lidar, ao contrário, com uma série de variáveis cujos
valores não conseguimos especificar com exatidão e cujas interações são, em
boa parte, desconhecidas, já que o experimento, graças a Deus, não foi tentado.
Quanta poeira e fuligem sobe; ela se espalha numa camada homogênea ou deixa
brechas para a luz solar intermitente; ela se espalha para o hemisfério sul e, se o
fizer, com que intensidade; em que lugar da atmosfera a poeira e a fuligem se
alojam e por quanto tempo elas permanecerão antes que a chuva consuma as
partículas e as traga de volta ao chão; a que nível chegará o frio; por quanto
tempo durarão os efeitos? Eu poderia continuar por uma eternidade, mas vou
parar por aqui. Além disso, estas são apenas as questões de primeira ordem sobre
resultados imediatos desconhecidos. O que dizer das interações entre os efeitos,
pois tais “sinergias” muitas vezes não são, no jargão técnico, cumulativas — isto
é, mau com mau pode não ser duas vezes mau, mas muitas vezes pior. A
radiação, por exemplo, enfraquece o sistema imunológico humano. Ela também
engendra altos ritmos de mutação capazes de levar à evolução de um agente de
doenças particularmente virulento. A interação desse novo vetor de doença,
junto com corpos humanos de resistência nitidamente reduzida, poderia produzir
uma pandemia bem maior em efeito do que qualquer previsão baseada em
componentes considerados em separado seria capaz de imaginar.
Em face dessas dificuldades e incertezas, a equipe TTAPS procedeu
especificando os âmbitos de valor mais sensatos para cada efeito e elaborando
centenas de roteiros possíveis para obter algum senso de campo de ação
plausível. As variações principais dependem em boa parte dos diferentes
comportamentos e quantidades de poeira e fuligem. Em resumo, e simplificando
um pouco, impactos diretos longe de cidades podem erguer grandes quantidades
de poeira fina na atmosfera; as explosões sobre cidades e florestas podem
acender gigantescas labaredas que colocam nuvens de fuligem mais grossa em
níveis atmosféricos mais baixos. A poeira e a fuligem bloqueiam a luz solar e
engendram o inverno nuclear. (Nem mencionei as séries de outros efeitos
profundamente negativos como, por exemplo, a radiação e o esgotamento da
camada de ozônio).
Não posso nem começar a tratar dos detalhes técnicos neste pequeno ensaio.
(O relatório original do TTAPS e o comentário de biólogos que o acompanha,
divulgados primeiro como dois artigos na Science, em 23 de dezembro de 1983,
foram republicados por W. W. Norton como The Cold and the Dark, de Paul
Ehrlich et al. — ver Bibliografia. Cari Sagan também publicou um relato menos
técnico, mas, ainda assim, completo, no número de inverno de 1983/1984 da
Foreign Affairs.) Mencionarei, porém, apenas duas conclusões gerais. Primeiro,
o limiar do inverno nuclear pode ser atingido através de várias sequências
plausíveis de eventos envolvendo uma porcentagem apropriada da megatonagem
do mundo e um número plausível de bombas explodidas sobre cidades e alvos
militares. Segundo e, de certo modo, surpreendentemente, mesmo uma guerra
nuclear “pequena” poderia, sob circunstâncias plausíveis, detonar o inverno
nuclear (por exemplo, apenas 100 megatons, do estoque mundial de
aproximadamente 10.000, se explodidos em cidades, com grandes incêndios
subsequentes e uma produção máxima de fuligem, poderiam ser suficientes).
Não sou um observador astuto da política mundial, e fiquei surpreso (mas
bastante satisfeito) com o reconhecimento de que a possibilidade do inverno
nuclear surtiu efeito com tanto vigor em tantos setores. Sempre achei que a nossa
velha história, restrita às conseqüên-cias imediatas de explosão e precipitação
radioativa, era tão horrível que nenhum acréscimo adicional de tormento seria
necessário para galvanizar a opinião pública. Mas agora percebo, criaturas
esperançosas que somos, que muitas pessoas viviam com a ilusão, a essa altura
dissipada, de que, se residissem longe o suficiente das explosões imediatas e
permanecessem o tempo suficiente em seus abrigos, em breve poderiam voltar à
superfície de um mundo luminoso esperando para ser reconstruído. Também não
havia conseguido notar que pessoas de outras nações, particularmente do
hemisfério sul, conseguiam sentir certa segurança pessoal, agora também
dissipada, frente à loucura do norte. O inverno nuclear também ajuda a
esclarecer o que me parece a quase certeza de que qualquer “conquista” na
guerra nuclear poderia se tornar apenas a definitiva vitória de Pirro, à medida
que um clima impiedoso fosse propagando os seus enregelantes efeitos contra
qualquer agressor.
De qualquer modo, o argumento do inverno nuclear espalhou-se por todo o
mundo como a sua nuvem de poeira, tornando-nos, talvez, mais próximos e
unindo-nos contra um perigo comum — pois a Terra, assim como um
organismo, possui a sua própria continuidade e pode distribuir em partes iguais
os insultos que sofrer. A Academia Pontifícia de Ciências, representando a
instituição mais ecumênica do mundo, trouxe ao Vaticano vinte de nós, de oito
nações e mais religiões (e não religiões) a fim de elaborar um pronunciamento
sobre o inverno nuclear e para um encontro com o papa João Paulo II num
esforço para desenvolver esse novo argumento como uma arma eficaz contra a
ameaça de uma guerra nuclear. Num breve pronunciamento a nós, o papa
argumentou que devemos combinar o nosso modo científico de dissuasão (a
nossa melhor estimativa das consequências concretas) com o meio de dissuasão
moral que ele e outros podem oferecer. E eu pensei no casamento do espiritual e
do temporal, da contemplação e da sensualidade, da força física e da persuasão
moral, todos retratados nos tetos quinhentistas do nosso local de encontro. A
continuidade exigirá essa flexibilidade, essa união de todas as nossas forças.
Também podemos estender este tema de continuidade, flexibilidade e
ecumenismo ao próprio processo de geração do argumento do inverno nuclear na
ciência. A elaboração dos detalhes exigiu as habilidades combinadas de físicos,
meteorologistas, químicos, biólogos, especialistas na mecânica da formação de
crateras e no comportamento de partículas em suspensão. Fico feliz em dizer que
uma das duas maiores fontes de inspiração para o grupo TTAPS veio
diretamente do meu campo, a paleontologia, tantas vezes vista como uma
disciplina arcana devotada a eventos do passado distante, sem relevância
imediata para a vida humana. Escrevi diversos ensaios sobre a teoria do impacto
na extinção do período cretáceo — a ideia instigante, com apenas alguns anos de
idade, mas conquistando continuamente força e indícios de que a extinção dos
dinossauros e muitas outras criaturas há 65 milhões de anos pode ter sido
detonada pelo impacto de cometas ou asteroides que se chocaram com a Terra e
deixaram indícios do seu bombardeio nos altos níveis de irídio, um elemento
extremamente raro em rochas nativas da crosta terrestre, porém mais comuns em
corpos extraterrestres (ver ensaios 28 e 30).
Luis Alvarez, o grande físico de Berkeley e cofundador da teoria do impacto,
defendeu desde o início uma sequência de eventos para a extinção que tem como
base uma gigantesca nuvem de poeira erguida pelo choque cósmico, com a
subsequente supressão de fotossíntese e o súbito declínio de temperatura. Ele
também reconheceu explicitamente os paralelos entre o choque com um cometa
e a guerra nuclear (na verdade, a megatonagem de tal impacto excede em muito
a força de todo o nosso arsenal nuclear). Sagan e os seus colegas leram a
mensagem e aplicaram-na diretamente. A boa ciência também exibe a
continuidade entre disciplinas aparentemente não relacionadas.
O impacto tornou possível a nossa evolução; sem tal explosão, duvido que
estivéssemos aqui para considerar o inverno nuclear. Os mamíferos
desenvolveram-se mais ou menos ao mesmo tempo que os dinossauros e
passaram os seus primeiros cem milhões de anos como criaturas pequenas,
vivendo na periferia de um mundo dominado por répteis gigantes. Se os
dinossauros não houvessem se extinguido no bombardeio do cretáceo, eles
presumivelmente ainda dominariam a Terra (já que o haviam feito por cem
milhões de anos, por que não por mais 65 milhões ou mais?), os mamíferos
teriam continuado a viver como criaturas pequenas, do tamanho de ratos, e a
inteligência não se teria desenvolvido para criar as glórias do intelecto e os
horrores do holocausto nuclear. Não é mesmo um pensamento cheio de
esperança o de que, reconhecendo a causa de um evento fundamental para a
nossa evolução, podemos também contribuir, através do seu uso direto na
formulação do argumento do inverno nuclear, para a nossa sobrevivência na luta
contra a maior ameaça já produzida pela árvore da vida contra a sua própria e
frágil continuidade?

Pós-escrito

O pronunciamento oficial do Vaticano, elaborado durante o nosso encontro,
foi agora publicado. O texto completo aparece abaixo.

Inverno nuclear: uma advertência

A guerra nuclear teria entre as suas consequências imediatas a morte de uma
grande proporção das populações das nações combatentes. Tal guerra
representaria uma catástrofe sem precedentes na história humana. A subsequente
precipitação radioativa, o enfraquecimento do sistema imunológico, a doença e o
colapso do serviço médico e outros serviços civis ameaçariam um grande
número de sobreviventes.
Temos agora de emitir uma advertência adicional: efeitos recém-
reconhecidos da guerra nuclear sobre o clima global indicam que as
consequências a longo prazo podem ser tão terríveis quanto os efeitos imediatos,
se não piores.
Numa guerra nuclear, as armas detonadas perto do solo introduziriam
grandes quantidades de poeira na atmosfera, e as detonadas acima de cidades e
florestas gerariam repentinamente enormes quantidades de fumaça fuliginosa
dos incêndios resultantes. As nuvens de partículas finas logo se espalhariam por
todo o hemisfério norte, absorvendo e dispersando a luz solar e desse modo
escurecendo e resfriando a superfície da Terra. As temperaturas continentais
poderiam cair rapidamente — bem abaixo do nível de congelamento, durante
meses, mesmo no verão — criando um “inverno nuclear”. Isso aconteceria
mesmo com grandes variações na natureza e no âmbito da guerra nuclear.
Apenas recentemente nos demos conta de quão severos o frio e a escuridão
poderiam ser, sobretudo como consequência dos intensos e numerosos incêndios
provocados por explosões nucleares, e das mudanças consequentes na circulação
atmosférica. Isso produziria uma agressão adicional profunda às plantas, aos
animais e humanos sobreviventes. A agricultura, pelo menos no hemisfério
norte, poderia ficar seriamente prejudicada por um ano ou mais, causando fome
generalizada.
Os cálculos demonstram que a poeira e a fumaça podem muito bem se
espalhar para os trópicos e boa parte do hemisfério sul. Assim, nações não
combatentes, incluindo aquelas bem distantes do conflito, poderiam ser
seriamente danificadas. Nações como índia, Brasil, Nigéria e Indonésia
correriam o risco de ser atingidas por desastres sem paralelo, sem que uma única
bomba explodisse em seus territórios.
Além disso, o inverno nuclear poderia ser detonado por uma guerra nuclear
relativamente pequena, envolvendo apenas uma fração reduzida dos presentes
arsenais estratégicos do globo, bastando que cidades sejam alvejadas e
queimadas. Mesmo se uma guerra nuclear “limitada” fosse iniciada de uma
maneira que tivesse como intenção minimizar os seus efeitos, ela provavelmente
aumentaria até o uso maciço de armas nucleares, como salientou a Academia
Pontifícia de Ciências na precedente “Declaração sobre a prevenção da guerra
atômica” (1982).
Os resultados gerais parecem ser válidos num âmbito amplo de condições
plausíveis, e ao longo de grandes variações no caráter e na extensão de uma
guerra nuclear. Contudo, ainda existem incertezas nas presentes avaliações, e há
efeitos que ainda não foram estudados. Portanto, trabalhos científicos adicionais
e o escrutínio crítico contínuo de métodos e dados são nitidamente necessários.
Perigos adicionais imprevistos da guerra nuclear não podem ser excluídos.
O inverno nuclear implica um vasto aumento do sofrimento humano,
incluindo nações não diretamente envolvidas na guerra. Uma grande proporção
de humanos que sobrevivessem às consequências imediatas da guerra nuclear
provavelmente morreria de frio, fome, doença e, além disso, dos efeitos da
radiação. A extinção de muitas espécies vegetais e animais pode ser esperada, e,
em casos extremos, poderia ocorrer a extinção da maioria das espécies não
oceânicas. A guerra nuclear traria na sua esteira uma destruição inigualada de
vida em qualquer tempo durante o período de vida dos humanos na Terra, e
poderia, portanto, colocar em risco o futuro da humanidade.

Carlos Chagas, Brasil, Presidente
S. N. Isaev, URSS
Vladimir Alexandrov, URSS
Raymond Latarjet, França
Edoardo Amaldi, Itália
Louis Leprince-Ringuet, França
Dan Beninson, Argentina
Carl Sagan, EUA
Paul J . Crutzen, República Federal da Alemanha
Carlo Schaerf, Itália
Lars Ernster, Suécia
Eugene M. Shoemaker, EUA
Charles Townes, EUA
Giorgio Fiocco, Itália
Stephen J. Gould, EUA
Eugene P. Velikhov, URSS
José Goldemberg, Brasil
Victor Weisskopf, EUA

30. A dança cósmica de Shiva




Vulcano, o deus romano do fogo, deu o seu nome a um planeta durante uns
poucos anos no século XIX. Apropriadamente situado no ponto mais quente do
nosso céu imediato, entre Mercúrio e o Sol, esse planeta putativo surgiu porque a
ciência newtoniana não conhecia nenhum outro modo de explicar (por meio da
atração gravitacional) a ligeira irregularidade que fora medida na órbita de
Mercúrio. Como Vulcano tinha de existir, e como a teoria consegue exercer um
efeito notável sobre a observação, muitos realmente disseram ter visto o planeta.
Agora compreendemos que a gravitação é einsteiniana, não perfeitamente
newtoniana, e equações de relatividade explicam de maneira adequada as
perturbações de Mercúrio sem a interferência de um corpo adicional. Privado da
sua necessidade teórica, Vulcano desapareceu silenciosamente.
Nenhuma atividade científica oscila mais precariamente no precipício entre a
bravura e a insensatez do que a descrição de objetos não observados, com
existência justificada apenas pela sua necessidade teórica. Os audaciosos podem
até mesmo dar um passo mais firme rumo à perdição ou à fama, conferindo um
nome formal à sua entidade hipotética. O que um observador amistoso pode
dizer sobre tal estratégia? É impossível formular quaisquer regras gerais para o
sucesso; como diz Nick, o grego: “Você ganha umas e perde outras.” Os
proponentes de Vulcano perderam feio, mas outros obtiveram triunfo no mesmo
jogo.
Ernst Haeckel, o principal evolucionista da Alemanha no tempo de Darwin,
descreveu uma linhagem hipotética da evolução humana trinta anos antes que
Eugene Dubois descobrisse os primeiros fósseis de transição. Nessa árvore, o
Homo sapiens ligava-se a um predecessor menos digno chamado Homo stupiduz
— um cretino hipotético, descendente do verdadeiro elo perdido que liga
macacos e homens. Haeckel não tinha fóssil algum, mas sem dúvida tinha um
nome. Ele chamou o ancestral putativo de Pithecaníhropus alalus, ou homem-
macaco que não sabia falar. Mas Haeckel venceu onde os vulcanófilos
encontraram a derrota. Tão exatas foram as previsões principais de Haeckel —
sobretudo a sua afirmação de que o nosso ancestral imediato andava plenamente
ereto mas possuía um cérebro bem menor do que o nosso — que Dubois aceitou
de boa vontade o nome por ele escolhido, batizando os primeiros fósseis
humanos como Pithecanthropus erectus (os espécimes de Java agora chamados
Homo erectus).
Em abril de 1984, inspirados por uma nova teoria sobre a causa das extinções
em massa, vários cientistas batizaram outro membro não observado do nosso
sistema solar. O Sol, propuseram eles, tem uma companheira previamente não
reconhecida, uma estrela que gira numa órbita excêntrica e que agora se encontra
a uma distância máxima de mais de dois anos-luz (portanto, com uma massa
pequena e uma luminosidade fraca, tão praticamente indiscernível, mesmo com
os mais poderosos telescópios, que facilmente nos passaria despercebida para
sempre, a menos que a procurássemos diretamente). Eles também — já que
estamos nisso, por que não ir até as últimas consequências — propuseram um
nome para a companheira hipotética do Sol. Chamaram-na Nêmesis (explicarei
num instante) para homenagear a personificação grega da ira justificada em
forma de deusa. “Receamos”, escreveram eles, “que se a companheira não for
encontrada, este trabalho será a nossa Nêmesis.” (Marc Davis, Piet Hut, e
Richard A. Muller, ver Bibliografia. Daniel P. Whitmire e Albert A. Jackson IV
postularam independentemente a existência de Nêmesis no mesmo número da
Nature.)
A previsão de Nêmesis é o ponto culminante de uma longa série de
descobertas e conjecturas diversas, ao longo de mais de um século, mas que vem
ganhando força considerável nos últimos meses. Discuti cada um dos temas, por
diversas vezes, durante uma década de ensaios. A sua presente conjunção e
síntese caracteriza o evento mais instigante da minha profissão, a paleontologia,
durante toda a minha vida, ou então apenas mais um erro daqueles mortais
falíveis conhecidos como cientistas. (Devido ao entusiasmo, tenho dez libras em
jogo com um cético colega inglês.) Com o meu prazo de três meses (agora um ano e
meio entre a composição e o livro — um espaço de tempo absurdamente longo para um área instigante da
ciência). e a enxurrada de artigos de jornais e revistas que serão produzidos com
mais rapidez, eu não prestaria serviço algum ao apresentar uma exposição
metódica da teoria em si. Quero, ao contrário, explicar por que essa nova teoria
de extinção em massa poderia ser tão vitalmente importante na alteração da
nossa concepção básica das causas do padrão na história da vida. Também quero
terminar com um pequeno comentário sobre a teoria em si — um apelo aos
descobridores potenciais para que batizem a nossa companheira como Shiva, e
não Nêmesis, tanto para expressar o espírito ecumênico da ciência no que ela
tem de melhor, quanto para reconhecer uma semelhança quase devastadora entre
o papel proposto dessa companheira solar e os atributos desse deus oriental da
destruição. Mas, primeiro, permita-me enumerar os eventos principais que agora
se unem numa nova visão da extinção em massa.
1. Há quase dois séculos os geólogos sabem que extinções amplas, que
afetaram a vida numa enorme variedade de meios ambientes, ocorreram muitas
vezes durante os últimos seiscentos milhões de anos esporádica e rapidamente. A
nossa escala temporal geológica depende dessas extinções em massa, já que elas
estabelecem as fronteiras das divisões principais. Minha resposta-padrão a
gerações de gemidos estudantis (diante da necessidade imposta de memorizar
todos aqueles nomes engraçados do cambriano ao pleistoceno) lembra meus
pupilos que eles não estão aprendendo palavras extravagantes para a divisão
arbitrária do tempo contínuo, mas antes as datas de importantes eventos na
história da vida.
2. As teorias de extinção em massa encheriam um livro grosso o bastante
para elevar a altura de qualquer garoto à de um adulto na mesa do jantar. Mas
um impasse se rompeu há cerca de cinco anos, quando altos níveis de irídio em
rochas da fronteira entre o cretáceo e o terciário (o juízo final dos dinossauros)
forneceram o primeiro indício sólido de coincidência entre impacto extraterrestre
e épocas de extinção (ver ensaio 25 em Hen’s Teeth and Horse’s Toes), O irídio
é um elemento pesado, não reativo, e o estoque original da Terra
presumivelmente afundou no seu interior quando o nosso planeta se liquefez e se
diferenciou há cerca de quatro bilhões de anos. O irídio de rochas superficiais
provém em boa parte de fontes extraterrestres — asteroides, meteoritos e
cometas, a menos, é claro, que o irídio original da Terra possa surgir do interior
em erupções vulcânicas — o único desafio sério proposto contra a teoria do
impacto.
3. Luis Alvarez, Walter Alvarez, Frank Asaro e Helen Michael propuseram a
hipótese de que um grande asteroide, com cerca de dez quilômetros de diâmetro,
chocou-se com a Terra e depositou o irídio há cerca de 65 milhões de anos. Eles
basearam a sua sugestão na elevada quantidade de irídio em três sítios, todos
referentes a uma extinção. As reações paleontológicas variaram de início do
ceticismo ao escárnio (sinto-me consideravelmente orgulhoso, numa carreira
fartamente semeada de erros, pelo meu entusiasmo iconoclasta original). Desde
então, a tênue base de indícios iniciais ganhou bastante força. Quantidades
elevadas de irídio foram encontradas em todo o mundo, em mais de cinquenta
localidades, justamente da fronteira entre o cretáceo e o terciário, de sedimentos
terrestres até pontos do fundo do mar. Também foi descoberto irídio, com graus
variáveis de certeza, em rochas que marcam quatro ou cinco outros episódios de
extinção em massa.
1. David Raup e Jack Sepkoski, trabalhando com amplas compilações das
épocas de vida e morte de famílias fósseis, descobriram uma periodicidade de 26
milhões de anos nas extinções durante os últimos 225 milhões de anos (ver
ensaio 15). (Essa ciclicidade não fora percebida antes porque a menor dessas
extinções não podia ser separada dos níveis de fundo comuns antes que Sepkoski
compilasse os seus dados mais amplos e refinados.)
2. Walter Alvarez e Richard A. Muller descobriram uma periodicidade,
semelhante em ritmo e intervalo (28,4 milhões de anos), aos picos de extinção de
Raup-Sepkoski, em crateras de impacto bem datadas da Terra, com diâmetros de
mais de dez quilômetros. Como tais crateras são raras (menos de vinte), as
conclusões têm de ser provisórias, mas a coincidência de duas séries de dados —
as quais nunca se pensou em usar antes para demonstrar ciclicidade ou (falando
nisso) sequer se imaginou que tivessem qualquer relação entre si — é (no
mínimo) sugestiva.
3. Até aqui, dados sólidos. O resto é especulação produtiva sobre
mecanismos: A ciclicidade enfraqueceu o asteroide dos Alvarez (a boa ciência é
autocorretiva). Os impactos de asteroides, tal como os compreendemos, só
podem ocorrer aleatoriamente quando um objeto Apoio (um asteroide com uma
órbita excêntrica o suficiente para atravessar a nossa parte do céu durante as suas
andanças) se choca com a Terra. Que objeto extraterrestre poderia introduzir
irídio mas também atingir a Terra com um ritmo coerente? O pensamento
deslocou-se para os cometas.
4. Especulação de segundo nível: bilhões de cometas circundam o Sol num
envoltório chamado nuvem de Oort, localizado bem além da órbita de Plutão. A
perturbação gravitacional dessa nuvem poderia alterar as órbitas de cometas e
arremessar grandes quantidades deles para o espaço dos planetas interiores.
Alguns deles então se chocariam com a Terra.
5. Especulação de terceiro nível: O que poderia perturbar de tal modo a
nuvem de Oort com uma periodicidade de 26 milhões de anos? Surgiram várias
sugestões. Oscilações do sistema solar em relação ao plano da nossa galáxia
(estabelecendo e interrompendo o contato da nuvem de Oort com nuvens
interestelares de poeira e gás) foram propostas, mas o ritmo e a extensão dessas
excursões — um ciclo de cerca de 33 milhões de anos — ajustam-se mal aos
dados das extinções e da formação de crateras. Uma companheira do Sol, numa
órbita tão excêntrica que perturba a nuvem de Oort apenas durante a sua
proximidade máxima, parece funcionar em princípio. Tal ideia, confesso
francamente, soa como ficção científica da pior espécie, mas tem de ser tomada
seriamente, pois ela obedece ao critério cardeal da ciência produtiva. Ela é
plausível na teoria e averiguável na prática (ver ensaio 28). Podemos
esquadrinhar os céus e ter esperanças de saber — uma jogada que vale a pena
tentar (mesmo com baixa probabilidade), dada a imensa recompensa intelectual
do possível sucesso. Piet Hut disseme que devemos ter uma chance de 50% de
encontrar a companheira em três anos, se ela existir. E, ah, sim, não se
preocupem. A nossa companheira está agora na sua distância máxima; a nuvem
de Oort não será sacudida por mais ou menos 13 milhões de anos.
Chuvas de cometas e véus de poeira devem atiçar a fantasia de qualquer um,
mas o seu fascínio para os paleontólogos não se encontra no que isso tem de
mais obviamente sensacional, e sim numa implicação profunda que precisamos
encarar com honestidade e que pode alterar de modo fundamental o nosso
princípio favorito para a explicação da história da vida. Podemos identificar duas
posições extremas (e conflitantes) como guias para a interpretação do padrão da
vida no tempo. (Todos os paleontólogos astutos reconhecem que a verdade se
encontra em algum lugar entre as duas, mas quero afirmar que a primeira tem
sido favorecida com uma espécie de metáfora controladora, ao passo que novos
pareceres sobre as extinções em massa sugerem um papel bem maior para a
segunda).
A primeira sustenta que a competição entre as espécies impele a história da
vida e especifica as suas mudanças estáveis. Mesmo que os meios ambientes
fossem perfeitamente constantes, a evolução continuaria, já que os organismos
lutam (em sentido literal ou figurado) com outros na corrida pela vida. Não se
chega necessariamente a algum lugar (avaliado por meio do triunfo sobre os
outros) porque todos os outros também estão lutando, mas o resultado líquido é
um tipo de substituição de nível superior que preserva os equilíbrios entre os
competidores, visto que todos lutam por vantagens temporárias. O paleontólogo
Leigh Van Valen codificou esse modelo para a história de vida como a hipótese
“Rainha Vermelha” em homenagem à compatriota de Alice (em Através do
espelho), que tinha de passar o tempo todo correndo só para ficar no mesmo
lugar.
A Rainha Vermelha tem sido o nosso modelo dominante para a história da
vida. Ela é a própria metáfora controladora de Darwin da substituição de cunhas
para a plenitude dos tempos:

A natureza pode ser comparada a uma superfície coberta com dez mil cunhas
agudas... representando diferentes espécies, todas bem juntas e impelidas
para dentro por golpes incessantes... sendo atingida às vezes uma cunha de
certa forma, às vezes outra; a que foi empurrada para dentro forçando outras
para fora; a trepidação e o choque sendo com frequência transmitidos para
outras cunhas em muitas direções diferentes.

Em outras palavras, a natureza está sempre plena (ou em quase equilíbrio, no
jargão técnico). Uma forma só pode ganhar espaço empurrando outra para fora
(“forçando-se a cunha”, como diria Darwin). A metáfora da cunha é subjacente
ao nosso parecer convencional da história da vida e o sustenta: As criaturas
lutam para se aperfeiçoar; a vida ascende de modo regular, embora ninguém
fique à frente em caráter permanente; a ordem prevalece à medida que a luta
previsível de indivíduos se traduz em padrões de complexidade e diversidade
crescentes. Marx não estava muito errado ao comentar que o sistema de Darwin
lembrava o bellum omnium contra omnes (guerra de todos contra todos) imposto
à natureza.
O segundo parecer, ou minoritário, afirma que nenhuma dinâmica interna
impele a vida. Se os meios ambientes não mudassem, a evolução poderia muito
bem virtualmente parar. Num alto nível de resolução paleontológica (se não
entre os insetos e pássaros do meu jardim), as espécies passam a sua vida em
independência geral, como os “navios que passam na noite. ... Apenas um sinal
que se mostra e uma voz distante na escuridão...” de Longfellow. As suas “lutas”
principais são com climas, configurações geológicas e geográficas em mudança,
não com os outros. (A competição funciona então como uma interação
esporádica e local, que suaviza e modela as arestas da ordem da vida, mas que
não age como força propulsora).
Nesse parecer, os gatilhos externos de meios ambientais em mudança devem
impelir a história da vida. Mas eles a impelem em direções não convencionais:
onde podemos encontrar o avanço ascendente que procuramos de modo tão
aplicado (para nos colocarmos no ápice de uma massa em luta) se a vida apenas
corre atrás de um meio que muda caprichosamente? Onde, afinal, podemos
localizar a ordem previsível, se os principais gatilhos ambientais são
precipitações periódicas de cometas?
Para citar um exemplo específico contrastando os dois pareceres e a suas
diferentes implicações, eu reestudei (com C. Brad Calloway, ver Bibliografia) o
caso padrão que os livros didáticos oferecem para a metáfora das cunhas numa
escala grandiosa: a interação de mariscos e braquiópodes ao longo do tempo.
Esses grandes grupos de invertebrados marinhos parecem superficialmente
semelhantes: ambos cobrem o corpo com duas conchas, e a maioria das espécies
fixa-se sobre o fundo do mar ou, com mobilidade limitada, enterra-se nos
sedimentos. Mas os mariscos possuem uma anatomia mais complexa e são
classificados convencionalmente em nível superior nas velhas classificações
procustianas que forçavam a árvore da vida numa ordem linear. Os mariscos
também dominam as faunas marinhas hoje, ao passo que os braquiópodes são
relativamente pouco abundantes; o nosso registro fóssil, contudo, é rico em
braquiópodes e paupérrimo em mariscos. Assim, temos todos os ingredientes
para uma clássica história de substituição competitiva gradual como na metáfora
das cunhas — os mariscos, superiores, pouco a pouco, vão empurrando os
braquiópodes para fora do seu meio ambiente mútuo e limitado. Calloway e eu
reunimos um compêndio de declarações, cobrindo mais de um século, todas
citando os mariscos e os braquiópodes como o caso clássico de progresso na
história da vida por meio de exclusão competitiva.
Descobrimos, no entanto, que os números não corroboram essa história
simplista. Os mariscos e braquiópodes não apresentam a interação negativa
minuciosa que o mecanismo das cunhas exige. Na verdade, a sua comunhão
varia ao longo de todo o tempo geológico: períodos com um número acima da
média de mariscos são fartos também em braquiópodes; estágios privados de
braquiópodes também são fracos em mariscos. Além disso, cada grupo parece
seguir o seu próprio curso distinto em tempos normais, alheios ao destino e à
história do outro: os mariscos aumentam lentamente a cada espaço de tempo
normal; os braquiópodes se mantêm.
A velha história representa uma inferência falsa a partir de um fato básico: os
braquiópodes realmente dominam as faunas primitivas ao passo que os mariscos
são tão abundantes hoje que Ho Jo consegue alimentar uma nação inteira com os
seus pés panados. Verificamos, então, que a suposta “substituição” de
braquiópodes por mariscos não ocorre por meio de expulsão competitiva
gradual, mas simplesmente testemunha reações diferentes à maior de todas as
mortandades em massa — a extinção do permiano (quando com toda
probabilidade pereceram mais de 90% das espécies). Os braquiópodes de fato
levaram na cabeça (metafórica); os mariscos mal perceberam a catástrofe.
Assim, os mariscos passaram à frente dos braquiópodes nesse momento
geológico e nunca mais cederam a nova posição. O padrão fóssil testemunha
reações independentes a uma extinção em massa única, não a expulsão gradual e
o triunfo de anatomias superiores. Os mariscos e braquiópodes agem como
navios passando pela noite, mas que se comportam de modos diferentes na
grande tempestade.
Em resumo, se as extinções em massa são tão frequentes, tão profundas em
seus efeitos, e causadas fundamentalmente por um agente tão catastrófico em
impacto e tão completamente além do poder de antecipação dos organismos,
então a história da vida tem uma aleatoriedade irredutível ou opera através de
novas e desconhecidas regras de perturbações, não (como sempre pensamos) por
meio de leis que regulam a competição previsível em tempos normais.
Todo este fermento pode perturbar as nossas esperanças e os nossos desejos
de encontrar uma gratificação ou alívio na natureza, mas ele presenteia a
paleontologia com o mais rico campo possível para o pensamento e a ação. Pois
nós, estudiosos da história da vida, somos os guardiães dos dados que podem
solucionar essas questões fundamentais. A teoria cíclica da extinção catastrófica
deixa os paleontólogos no assento do motorista, com uma década de trabalho
instigante pela frente. Raramente os cientistas têm o privilégio de tratar de
questões tão fundamentais de um modo novo e proveitoso.
Não posso, neste contexto, apresentar um programa técnico de trabalho
palcontológico, mas considere-se apenas três questões que exigem alteração e
que são suscetíveis de resolução a partir do registro fóssil:

1. Quantos dos 26 milhões de anos entre catástrofes são necessários para que
a vida recupere a sua antiga riqueza (em número de espécies e complexidade
ecológica de comunidades)? Se a maior parte do tempo transcorre em períodos
de recuperação, então os modelos competitivos devem deixar de funcionar (já
que requerem um mundo pleno para a metáfora das cunhas) e gatilhos externos
devem impelir a história da vida.
2. Os padrões de quem morre e de quem sobrevive a uma catástrofe são
coerentes com remoções do campo da vida puramente aleatórias? Se a
aleatoriedade não funcionar, as regularidades da extinção em massa
testemunham regras diferentes das que governam a ordem dos tempos normais
entre catástrofes? Sob um modelo aleatório ou de “regras diferentes”, a
esperança darwiniana de fácil extrapolação de eventos em pequena escala (que
podem ser estudados diretamente) para o grande panorama geológico fracassa, e
temos de reconhecer o caráter distintivo que a extinção em massa confere à
história da vida.
3. Por que as extinções cíclicas são tão diferentes no que se refere à força
(uma que varre mais de 90% das espécies, outras que se elevam tão pouco acima
dos níveis de fundo que necessitamos dos dados refinados de Sepkoski para
reconhecê-los)? Alguns entusiastas da hipótese dos cometas, na onda de
aplicação excessiva que acompanha a maioria das novas ideias, estão tentando
explicar tudo por meio do impacto. Se perturbações da nuvem de Oort
arremessam bilhões de cometas em direção aos planetas, apenas um punhado
deles atingirá a Terra — às vezes mais, às vezes menos. Grandes extinções
significam mais cometas; pequenas extinções, menos cometas. Mas isso não
pode ser tão mecanicamente simples. Compilamos um século de dados sobre
correlações de eventos terrestres com extinções em massa (muitas, por exemplo,
são acompanhadas por declínio nos níveis do mar); também sabemos que várias
extinções foram precedidas por declínios longos, graduais e simultâneos em
vários grupos. Costumávamos achar que esses correlatos terrestres explicariam
as extinções. Suspeito que precisamos de uma perspectiva inversa, mas uma que
ainda leve em conta os dados terrestres. Os correlatos terrestres provavelmente
são, não as causas, mas os principais reguladores do rigor. Quando os cometas
atingem uma biosfera enfraquecida por outros motivos, seguem-se extinções
atipicamente grandes. A maior de todas as extinções ocorreu numa Terra com
todos os continentes fundidos num único, Pangea. Eu costumava achar que
Pangea era a causa principal (ver ensaio 16 em Darwin e os grandes enigmas da
vida); agora acho que foi o palco para o rigor máximo.
Para encerrar essas explosões universais com uma lamúria pessoal, permita-
me fazer a minha pequena sugestão aos colegas astrônomos que estão
empreendendo a boa busca. Se Talia, a deusa do bom humor, sorrir-lhes e vocês
encontrarem a estrela companheira do Sol, por favor, não a batizem (como
pretendem) com o nome da sua colega Nêmesis. Nêmesis é a personificação da
ira justificada. Ela ataca os vaidosos e poderosos, e trabalha por causa definida
(punir Narciso, com o seu fardo de inextinguível vaidade). Ela representa tudo o
que o nosso parecer sobre a extinção em massa está lutando para substituir —
causas previsíveis, deterministas, que afligem aqueles que o merecem. Ela
também colocaria mais uma figura ocidental num céu universal. Um membro do
nossos sistema solar não pode homenagear as tradições de outra cultura?
As extinções em massa não são invariavelmente destrutivas na história da
vida. Elas representam também uma fonte de criação, sobretudo se o segundo
parecer, de gatilhos externos, possuir validade, e a Rainha Vermelha da
competição interna não conduzir a vida inexoravelmente. A extinção em massa
pode ser a fonte principal e indispensável de importantes mudanças e
deslocamentos na história da vida. A destruição e a criação estão entrelaçadas
numa dialética de interação. Além disso, a extinção em massa é provavelmente
cega às primorosas adaptações desenvolvidas para meios ambientes prévios de
épocas normais. Ela ataca aleatoriamente ou de acordo com regras que
transcendem os planos e os propósitos de qualquer vítima. Não podemos batizar
a potencial companheira do Sol com o nome de uma figura que incorpora essas
características centrais de criatividade na destruição e “neutralidade” para com
as lutas evolutivas das criaturas nos tempos normais precedentes?
Shiva, o deus hindu da destruição, forma uma tríade indissolúvel com
Brahma, o criador, e Vishnu, o preservador. Todos estão entrelaçados em um —
uma trindade de uma diferente ordem — porque toda a atividade reflete a sua
interpretação. A. Parthasarathy escreve no seu Symbo/ism of Hindu Gods and
Rituais-. “Todos os três poderes são manifestos em todos os tempos. Eles são
inseparáveis. Criação e destruição são como dois lados de uma moeda. ... A
manhã morre para dar a luz à tarde. A tarde morre quando nasce a noite. Nesta
cadeia de nascimento e morte, o dia é mantido” — assim como os equilíbrios da
história da vida originam-se de recuperações criativas que sucedem destruições
gigantescas.
Shiva é apresentado muitas vezes, e de modo belíssimo, na forma de
Nataraja, a dança cósmica. Ele segura numa das mãos a chama da destruição, e
em outra (tem quatro ao todo) o damaru, um tambor que regula o ritmo da dança
e simboliza a criação. Ele se move dentro de um círculo de fogo — o ciclo
cósmico — mantido por uma interação de destruição e criação, batendo um
ritmo tão regular quanto o de qualquer mecanismo de colisões de cometas.
“Nesse processo perpétuo de criação e destruição”, escreve Parthasarathy, “o
universo é mantido.” Ao contrário de Nêmesis, Shiva não ataca alvos específicos
com motivo ou como punição. Em vez disso, o seu rosto plácido testemunha a
tranquilidade e a serenidade absolutas de um processo neutro, que não é dirigida
a ninguém, mas que é responsável pela conservação da ordem do nosso mundo.


A maioria das ideias “quentes” acabam por se revelar erradas. Só posso
esperar que eu não venha a ser lembrado como o homem que lutou por um nome
para o inexistente (certamente pior que uma lua para os vis). Alguns riscos
valem a pena. Se Talia sorrir, e Shiva existir, pense o que isso significará para a
minha adorada ciência da paleontologia. Trabalhamos há tanto tempo sob o ônus
do tédio e do enfado. Somos os guardiães da história, mas somos muitas vezes
retratados como insensatos filatelistas de pedras; especialistas em cantos
insignificantes do espaço, do tempo e da taxonomia; fornecedores de nomes tão
arcanos como Pharkidonotus percarinatus em enormes orgias de detalhes
irrelevantes. Os editores da principal publicação científica da Grã-Bretanha
escreveram sobre nós em 1969: “Os cientistas em geral podem ser desculpados
por presumirem que a maioria dos geólogos são paleontólogos e que a maioria
dos paleontólogos tiveram como trabalho da sua vida delimitar uma milha
quadrada com estacas”.
Os tempos vêm mudando há mais de uma década, mas Shiva coroaria a
nossa transformação. Que apoteose para uma ciência anteriormente “enfadonha”
— ser a fonte e o ímpeto, por meio da descoberta do ciclo de 26 milhões de
anos, para a maior revisão da cosmologia (pelo menos a do nosso cantinho dos
céus) desde Galileu.

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