Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
O Sorriso Do Flamingo - Reflexões Sobre História Natural - Stephen Jay Gould - 2004 PDF
O Sorriso Do Flamingo - Reflexões Sobre História Natural - Stephen Jay Gould - 2004 PDF
Sorriso do Flamingo
Reflexões sobre história natural
Stephen Jay Gould
Tradução
LUÍS CARLOS BORGES
Martins Fontes
São Paulo 2004
Título original: THE FLAMINGO’S SMILE.
Copyright © 1985 by Stephen Jay Gould.
Copyright © 1990, Livraria Martins Fontes Editora Ltda., São Paulo, para a presente edição.
1ª edição
setembro de 1990
2ª edição
março de 2004
Tradução
LUÍS CARLOS BORGES
Revisão técnica
Zysman Neiman
Preparação do original
Pier Luigi Cabra
Revisões gráficas
Elaine Maria dos Santos
Maria Corina Rocha
Silvana Cobucci Leite
Produção gráfica
Geraldo Alves
Composição
Antonio José da Cruz Pereira Oswaldo Voivodic
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CEP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Gould,
Stephen Jay, 1941- .
O sorriso do flamingo : reflexões sobre história natural / Stephen Jay Gould ; [tradução
Luís Carlos Borges]. - 2a ed. - São Paulo : Martins Fontes, 2004.
Título original: The flamingo’s smile Bibliografia.
ISBN 85-336-1964-2
1. Evolução - História 2. Evolução - Obras de divulgação 3. História natural - Obras de
divulgação 4. Seleção natural - História I. Título.
04-1306 CDD-508
Índices para catálogo sistemático: 1. História natural: Ciências 508
Todos os direitos desta edição para o Brasil reservados à Livraria Martins Fontes Editora Ltda.
Rua Conselheiro Ramalho, 330/340 01325-000 São Paulo SP Brasil Tel (11)3241.3677 Fax (11) 3105.6867
e-mail: info@martinsfontes.com.br http://www.martinsfontes.com.br
Para Deb por tudo
Índice
Prólogo
1. ZOONOMIA (E EXCEÇÕES)
1. O sorriso do flamingo
2. Só restaram suas asas
3. Sexo e tamanho
4. Convivendo com ligações
6. DARWINIANA
22. O ombro esquerdo de Hannah West e a origem da seleção natural 23. Darwin em alto-mar — e
as virtudes do porto
29. Continuidade
30. A dança cósmica de Sivã
Bibliografia
Prólogo
Num dos vitrais medievais da catedral de Canterbury, um anjo surge diante
dos sábios adormecidos e os adverte para que voltem diretamente para casa e
não retornem a Herodes. Abaixo, o evento correspondente do Antigo Testamento
ensina que cada momento da vida de Jesus reencena um trecho do passado e que
Deus colocou significado no tempo — Lot volta-se, e sua esposa se transforma
numa coluna de sal (o vidro branco forma um contraste surpreendente com as
cores cintilantes que a rodeiam). O tema comum de ambos os incidentes: não
olhe para trás.
O sorriso do flamingo é o meu quarto volume de ensaios publicados nas
colunas mensais da Natural History Magazine, ele também contém a minha
centésima contribuição para um gênero que certa vez considerei o mais efêmero
e o mais impossível de se manter. Assim, vou quebrar a injunção de Lot, ter
esperanças de um destino mais agradável e correr o olhar pelos volumes
anteriores.
Certa marca de uísque muitas vezes enfeita as contracapas do New Yorker
com a sua afirmação de que Mac-qualquer coisa (e os da sua raça) vem
praticando o tento de caber no mesmo campo desde 1367, uns anos a mais ou a
menos. “Algumas coisas nunca mudam”, diz a legenda. Seria melhor que
algumas coisas mudassem (por mais difícil que isso seja sob o equilíbrio
pontuado), ainda que apenas para diminuir o tédio, mas temas fundamentais
(assim como um blend bem-sucedido) deveriam se regozijar na persistência. Se
os meus volumes funcionam, afinal, eles devem sua reputação à coerência
fornecida pelo tema comum da teoria da evolução. Tenho uma vantagem
maravilhosa entre os ensaístas, porque nenhum outro tema abrange tão
belamente as particularidades que fascinam e as generalidades que instruem.
A evolução é uma dentre a meia-dúzia de ideias avassaladoras que a ciência
desenvolveu para subverter esperanças e suposições passadas, e para esclarecer
os nossos pensamentos presentes. A evolução também é mais pessoal que o
quantum ou que o movimento relativo da Terra e do Sol; ela vai diretamente ao
encontro das questões da genealogia que tanto nos fascinam — como e quando
surgimos, quais são as nossas relações biológicas com outras criaturas? E a
evolução construiu todas essas criaturas numa variedade atordoante — uma
fonte inesgotável de prazer (embora não o motivo para a sua existência!), para
não falar de ensaios. Tendo em mente mapear as modificações dentro dessa
persistência, reli os prefácios dos meus outros livros e encontrei o tema
coordenador, vinculado às épocas de composição, de cada um deles. Rever SINE
Darwin (Darwin e os grandes enigmas da vida, Martins Fontes, 1987), na condição de primeira
tentativa, apresentava os elementos básicos da evolução como visão de mundo
abrangente com implicações para um mundo político (de anos imediatamente
subsequentes à guerra do Vietnã), que tratava a diversidade humana de modo
mais generoso. The Pandas Tumba (O polegar da panda, Martins Fontes, 1989) focalizava
uma série de debates (sobre taxas e resultados) surgidos entre evolucionistas
profissionais que conferiram uma vigor e uma amplitude renovada a “essa visão
da vida”. Bens Teto and. Hores Toes nasceu à sombra de um brutalismo
ressurgente — a chamada “ciência da criação”, tal como pregada por Falwell e
companhia — e exigiu uma leve defesa da veracidade e da humanidade da
evolução.
O sorriso do flamingo tem um tipo de gatilho diferente — uma descoberta
específica com implicações sucessivas. Agora, para usar um jargão da área,
parece “altamente provável” que um asteroide errante ou uma chuva de cometas
tenha provocado a grande extinção do cretáceo (o dobre de finados dos
dinossauros e, na razão inversa, o intróito da nossa evolução). Além disso, tais
reestruturações quintessencialmente fortuitas e episódicas da vida ocorreram
várias vezes, talvez até mesmo num ciclo regular de cerca de 25-30 milhões de
anos. As particularidades são notáveis (trocadilho intencional, acho), mas as
implicações gerais são ainda mais arrebatadoras, e coincidem belamente com os
temas persistentes que infestam todas as minhas colunas — o significado do
padrão na história da vida (em parte aleatório e, de qualquer modo, não
destinado ou voltado para nós); as implicações sociais dos ataques científicos
contra preconceitos profundos do pensamento ocidental (os meus quatro
cavaleiros favoritos, progresso, determinismo, gradualismo e adaptacionismo —
todos severamente questionados pela teoria do impacto nas extinções em massa).
No centro, coloca-se o único tema que transcende a própria evolução em
generalidade — a natureza da história. O sorriso do flamingo é sobre a história e
sobre o que significa dizer que a vida é o produto de um passado contingente,
não o resultado inevitável e previsível de leis simples, atemporais, da natureza.
O capricho e o significado são dois dos meus temas não tão contraditórios.
Tudo isso soa terrivelmente tendencioso e pode levar os leitores a temer que
o prazer potencial tenha sido sacrificado num altar inchado de importância
imaginária (meus volumes tornaram-se cada vez maiores sem que mudasse o
número de ensaios — uma tendência mais regular que o declínio, por mim
mapeado, das médias de rebatidas do ensaio 14, e um sinal de advertência contra
problemas iminentes caso haja continuidade além de um limite alcançado,
suponho, por esta coleção). Minha salvação potencial em face do egoísmo,
confesso, deve continuar sendo um compromisso inflexível de tratar da
generalidade apenas quando ela surge das pequenas coisas que nos arrebatam e
abrem os nossos olhos com um “ah” — enquanto os ataques diretos, abstratos,
eruditos, contra as generalidades geralmente as tornam nebulosas. Mesmo o meu
ensaio mais grandiloquente (não o melhor — o de número 29, sobre a própria
continuidade) — surgiu como uma glosa a respeito de uma pequena observação:
a mescla de sagrado e profano na iconografia do Palácio de Pio IV no Vaticano.
Coloquei os meus ensaios sobre inversões e fronteiras no começo porque
eles ilustram melhor esse estilo de deixar que a generalidade flua das
particularidades — três ensaios sobre inversões de expectativas generalizadas
(flamingos que se alimentam de cabeça para baixo; fêmeas de insetos que
supostamente comem os parceiros após a cópula; flores e moluscos machos que
viram fêmeas e, às vezes, reinvertem o processo); e dois sobre continuidades e o
problema das fronteiras na natureza (as caravelas são indivíduos ou colônias, os
irmãos siameses são uma ou duas pessoas). Cada ensaio é ao mesmo tempo uma
única argumentação longa e uma união de particularidades.
Na maior parte da Europa, a comunicação da ciência a um público geral foi
considerada como parte do humanismo, como uma tradição intelectual honrosa
vinda de Galileu, que escreveu em italiano para levar a ciência além dos limites
do latim da Igreja e das universidades, até Thomas Henry Huxley, um estilista
literário tão bom quanto muitos grandes romancistas vitorianos, até J. B. S.
Haldane e Peter Medawar, na nossa época. Nos Estados Unidos, essa digna
atividade foi seriamente confundida com os piores aspectos do jornalismo, e
“popularização” tornou-se, em certos círculos, sinônimo de ruim, simplista,
trivial, barato e adulterado. Eu sigo uma regra fundamental na composição
destes ensaios — nada de concessões. Tornarei a linguagem acessível definindo
ou eliminando o jargão; não simplificarei conceitos.
Posso apresentar todos os tipos de justificações morais pretensiosas para essa
abordagem (e realmente acredito em todas), mas o motivo básico é simples e
pessoal. Escrevo estes ensaios sobretudo para auxiliar meu propósito de aprender
e compreender o mais possível sobre a natureza no pouco tempo que me cabe.
Se eu fizer o jogo do livro didático ou da TV, de destilar o que já se sabe, ou
eliminar a sutileza até tornar tudo acessível no sentido vulgar (nenhum retorno
exigido dos consumidores), então de que me serve isso tudo?
Todos estes ensaios estão fundamentados nas fontes originais, nas suas
linguagens originais: nenhum deles é repetição direta de textos e outros sumários
conhecidos. (A propagação do erro através da infindável transferência de livro
didático para livro didático é uma história perturbadora e divertida por direito
próprio — uma fonte de defeitos herdados quase mais persistente que os defeitos
inatos da genética.) Os meus erros são os meus erros.
Sob essa perspectiva, se classificam estes ensaios em três categorias. A
maioria deles compõe-se de exercícios de erudição pessoal. Alguns atingem
novas interpretações (pelo menos para mim): acho que a minha leitura de Tyson
como um adepto conservador da cadeia do ser e não como um pioneiro inovador
da evolução esclarece as disparidades entre o seu texto e as análises costumeiras
(ensaio 17); descobri que o primeiro enunciado de Wells da seleção natural não
se harmoniza tanto com a versão posterior de Darwin como afirmou a maior
parte dos comentadores (ensaio 22); embora a vida anterior de Kinsey como
taxonomista de vespas não tenha sido ocultada, não acho que sua ligação
intelectual íntima com as suas pesquisas de sexualidade tenha sido
adequadamente investigada (ensaio 10 — suspeito de que esse tratamento exigia
um taxonomista profissional trabalhando a partir das vespas, não um psicólogo
partindo do sentido contrário). Outros ensaios representam descobertas de
diversos tipos baseadas em dados novos. Pode não ficar claro em vista do tom
jocoso do ensaio, mas há mais trabalho (do tipo tabulatório mudo — um tipo de
prazer perverso e entorpecedor em si mesmo) escondido na minha tabela de
médias baixas de rebatidas ao longo do tempo (ensaio 14) do que nas análises
requintadas exibidas nas minhas dissertações técnicas sobre caracóis terrestres.
(Cada um dos meus volumes contém um ensaio em relevo mais baixo — a
alometria de catedrais em Darwin e os grandes enigmas da vida, a neotenia de
Mickey Mouse em O polegar do panda, as barras de Hershey em Hen’s Teeth
and Horse’s Toes, a extinção das médias de .400 do beisebol neste livro. Muitas
vezes insisto na seriedade desses trabalhos, e falo sério — embora eu vá ficar
absolutamente arrasado se o leitor não rir. Quase me arrependo da ilustração
escolhida, a história das médias de rebatidas, no ensaio 14, porque o seu tema
geral — um apelo para que se leve em consideração sistemas em vez de partes
abstratas — devia ser parte do divertimento, e não perder-se nele.) Numa
segunda categoria, relato as descobertas ou interpretações de amigos e colegas,
mas encaixo-as num tema pessoal. Uso a teoria de Iltis sobre a origem do milho
(ensaio 24) para ilustrar o conceito evolutivo muitíssimo difícil e importante da
homologia; a descoberta do animal conodonte (ensaio 16) torna-se um pretexto
para discutir o que pode ser o padrão fundamental (mas mal avaliado) da história
da vida — a redução na diversidade de modelos morfológicos, com expansão
nítida entre os sobreviventes.
A terceira categoria coloca temas gerais que precisam ser arejados, mas
busca particularidades caprichosas e incomuns para a sua ilustração. Os ensaios
4 e 5 são um experimento — o mesmo, com ilustrações radicalmente diferentes.
Discuto o reducionismo através da vida trágica de E. E. Just (ensaio 25) e a
numerologia de taxonomias pré-darwinianas antiquadas (ensaio 13). Tempero a
natureza da ciência com algumas ideias engraçadas sobre dinossauros (ensaio
28) e um apelo em favor do sr. Gosse (ensaio 6), que afirmou que, assim como
Deus criou animais com fezes nos intestinos, também criou a Terra com
coprólitos (excremento fóssil) nos seus estratos.
Também espero que o ordenamento dos ensaios em categorias auxilie o meu
propósito maior enfatizando, por meio da justaposição, os temas expressados nos
ensaios tomados separadamente. Ao fazer três declarações sobre a cadeia do ser
(17-19), tento demonstrar como o inevitável assentamento da ciência na cultura
atua como uma restrição (ao defender o preconceito não confirmado como
conhecimento certificado, com trágicas consequências para vidas individuais —
ensaio 19 sobre a Vénus hotentote), e como um estímulo produtivo para uma
nova descoberta que, em troca, pode influenciar a cultura (a cadeia do ser levou
Tyson a alguns dados notáveis sobre a anatomia dos chimpanzés — ensaio 17).
A minha profissão incorpora um tema ainda mais inclusivo que a evolução
— a natureza e o significado da história. A história emprega a evolução para
estruturar os eventos biológicos no tempo. A história subverte o estereótipo da
ciência como um empreendimento preciso, desalmado, que priva a singularidade
de qualquer complexidade e reduz tudo a experimentos de laboratório
atemporais, repetíveis e controlados. As ciências históricas são diferentes, não
menores. Os seus métodos são comparativos, nem sempre experimentais; elas
explicam, mas geralmente não tentam prever; elas reconhecem o capricho
irredutível que a história acarreta, e aceitam o poder limitado das presentes
circunstâncias para impor ou inferir soluções ótimas; a rainha entre as suas
disciplinas é a taxonomia, a Gata Borralheira das ciências. Enquanto escrevia
Hen’s Teeth and Horse’s Toes, presenciei com um prazer quase distanciado
como a história lentamente surgia na vanguarda das minhas preocupações. Ela se
espalhou por este volume como um transposon (Tipo de gene de um DNA que tem a
capacidade de “saltar” de um cromossomo para outro dentro da célula. -N.R.T.). O sorriso do
flamingo (como o polegar do panda) é a sua sinédoque — uma estrutura
caprichosa, imposta por um passado distante, e amalgamada a partir de partes
disponíveis.
O ensaio 12, sobre fatos contingentes versus fatos necessários, pode ser o
meu pronunciamento direto sobre a história, mas esse assunto perpassa o volume
inteiro. Ponderei por um bom tempo sobre o meu centésimo ensaio, pois achava
que ele deveria exprimir a essência dos meus esforços. Escrevi sobre a
importância da taxonomia, tal como aplicada aos caracóis terrestres das índias
Ocidentais que servem como foco da minha pesquisa técnica em biologia. A
taxonomia, a mais subestimada de todas as ciências, é a pedra fundamental das
disciplinas históricas. A Parte 3 celebra a taxonomia em várias roupagens.
Outros ensaios também discutem os métodos da história — o ensaio 24 sobre a
homologia como guia para a determinação da ascendência; os ensaios 4 e 5
sobre o significado das fronteiras num mundo de continuidades.
Várias seções tratam dos padrões que a história produz por meio do seu
processo autorizado, a evolução — a Parte 4 sobre tendências na história da vida
(e de alguns sistemas menores); a Parte 8 sobre as extinções como sendo muito
mais que uma força negativa; a Parte 7 sobre a vida aqui na Terra, e as previsões
que a história permite sobre a vida em outros lugares (mais uma vez, receio, os
limites da contingência em vez dos planos para o E.T.). Por fim, se a história tem
importância e a ciência não pode ser reduzida a experimentação automática,
então a interação da ciência com a cultura e a personalidade não é um mero
estorvo, mas um incentivo à criatividade e uma chave para a compreensão. A
Parte 5 trata da interação em temas da evolução humana. A Parte 2 prega o
respeito por bons cientistas que foram mal compreendidos ou ridicularizados
pela abordagem arrogante que considerava a história apenas como um
repositório de erros e, desse modo, uma fonte de instrução moral. Confesso uma
afeição particular pelo ensaio 5 e o seu tema picante.
Se o asteroide dos Alvarez foi o estímulo externo para a coesão, este livro
tem também um tema interno. Não é exatamente um segredo o fato de que passei
esses últimos anos lutando contra o câncer. Minha doença foi diagnosticada
apenas uma semana após o último volume ter ido para a impressão. Este livro se
torna, portanto, uma espécie de roman à def (completo, espero) para uma
odisseia pessoal. O ensaio 19, “A Vénus hotentote”, foi o primeiro texto que
escrevi na condição de membro desse enorme clube involuntário — e considero
a sua última linha o meu touché. Quando organizados segundo sua ordem de
publicação na Natural History, estes ensaios poderão traçar uma viagem
emocional (embora eu prefira não empreender a análise). Direi apenas que
alguns ensaios são secos no seu estilo exegético de comentário sobre textos
históricos individuais (pois não pude chegar às bibliotecas para as minhas
costumeiras divagações, e, várias noites, um belo e velho livro foi o que me deu
alívio), ao passo que outros são completamente barrocos na sua miscelânea de
detalhes (a minha simples alegria de ser capaz outra vez).
Não me atrevo nem a tentar expressar minha gratidão aos que me apoiaram
ao longo de tudo isso; não há palavras para isso em língua alguma. Mas àqueles
que me conhecem apenas através destes ensaios, aos que tomaram o seu tempo
para dizer que estavam preocupados, a minha gratidão especial; isso teve real
importância. Durante esse tempo, eu repisava várias coisas — que eu tinha de
ver os meus filhos crescerem, que seria perverso ter chegado tão perto do fim do
milênio e perdê-lo. Espero que não vá parecer piegas agradecer também à
natureza — no contexto da penosa regularidade destes ensaios. Ninguém tem
melhor sorte do que a que eles me oferecem; todo mês é uma nova aventura —
em aprendizado e expressão. Eu só poderia dizer com a mais firme resolução:
“Ainda não, Senhor, ainda não.” Nem mesmo em cem vidas eu conseguiria
dominar todo esse tesouro, mas simplesmente tenho de dar uma olhada em mais
alguns daqueles belos pedregulhos.
1. Zoonomia (e exceções)
1. O sorriso do flamingo
Buffalo Bill desempenhou o seu papel específico na redução da população de
bisões americanos, estimada em sessenta milhões de cabeças, para a quase
extinção. Em 1867, sob os termos de um contrato para fornecimento de comida
aos trabalhadores das estradas de ferro, ele e seus homens mataram 4.280
animais em apenas oito meses. O massacre pode ter sido indiscriminado, mas a
carne obtida não foi desperdiçada. Outros espoliadores de nossa herança natural
mataram bisões com um desenfreamento ainda maior, removendo apenas a
língua (considerada uma esplêndida iguaria em certos círculos), e deixando o
resto da carcaça a apodrecer.
As línguas já haviam figurado antes nos tristes anais da rapacidade humana.
Os primeiros exemplos datam daqueles infames episódios de glutonaria
gastronômica — as orgias dos imperadores romanos. O sr. Stanley, o “general
moderno” de Gilbert Sullivan, podia “citar cm versos elegíacos todos os crimes
de Heliogábalo” (isso antes de demonstrar suas habilidades para se apropriar de
uma rima através do domínio de “peculiaridades parabólicas” no estudo de
seções cônicas) (“The Major General’s Song”, da opereta The Pirates of Penzance, de W. S. Gilbert e
A. S. Sullivan.- N.T.). Entre outros crimes, o licencioso imperador adolescente
cometia o de presidir banquetes onde figuravam com destaque pratos cheios de
línguas de flamingo. Suetônio relata que o imperador Vitélio servia uma
gigantesca mistura chamada “escudo de Minerva”, feita de fígados de peixe-
papagaio, cérebros de pavão e faisão, tripas de lampreia e línguas de flamingo,
sendo todos os ingredientes “trazidos em grandes navios de guerra, de lugares
tão longínquos quanto o mar de Cárpato e os estreitos espanhóis”.
Lampreias e peixes-papagaio (apesar de não desprovidos de beleza)
raramente suscitaram grande compaixão. Mas os flamingos, essas elegantes aves
de cor vermelho brilhante (como proclama seu nome - Proveniente talvez do latim
Flamma [chama, fogo] com o sufixo germânico ingl., segundo Antenor Nascentes.- N.T), inspiraram
apoio ardoroso, dos poetas da Roma antiga aos modernos preservacionistas.
Num de seus mais pungentes dísticos, Marcial criticou duramente seus
imperadores (por volta de 80 a.C.), ao especular sobre a possibilidade de um
destino diferente, houvesse a língua do flamingo sido dotada, não simplesmente
de sabor agradável, mas de melodia, como a do rouxinol:
Dat mihi penna rubens nomen; sed língua gulosis
Nostra sapit: quid, si garrula língua foret?
(Minha asa vermelha me dá o nome; mas os epicuristas consideram saborosa
a minha língua. Mas, e se minha língua pudesse cantar?)
A maioria dos pássaros tem línguas magras e pontudas, certamente indignas
de um imperador, mesmo em grandes quantidades. O flamingo, para seu
posterior e imprevisto infortúnio, adquiriu ao longo da evolução uma língua
grande, macia e carnuda. Por quê?
Os flamingos desenvolveram um método extraordinariamente raro de
alimentação, único entre as aves e adotado por bem poucos dentre os outros
vertebrados. Seus bicos são providos de numerosas fileiras complexas de
lamelas córneas — filtros que funcionam como as barbatanas das baleias
gigantes. Os flamingos são errônea e comumente retratados como residentes
típicos de luxuriantes ilhas tropicais — algo divertido de se ver enquanto se bebe
rum e coca-cola na varanda do cassino. Na verdade, eles vivem num dos habitats
mais inóspitos do mundo — os lagos rasos e hipersalinos. Poucas criaturas são
capazes de tolerar as condições ambientais incomuns desses desertos salinos. As
que conseguem se desenvolver podem, na ausência de competidores, multiplicar
em muito suas populações. Os lagos hipersalinos, portanto, oferecem aos
predadores condições ideais para a evolução de uma estratégia de alimentação
por filtragem — poucos tipos de presas potenciais, disponíveis em grandes
quantidades e de tamanho essencialmente uniforme. O Phoenicopterus ruber, o
maior flamingo (de espécie mais comum em nossos jardins zoológicos e nas
áreas de preservação das Bahamas e de Bonaire), filtra, predominantemente,
presas de dimensões em torno de uma polegada — pequenos moluscos,
crustáceos e larvas de insetos, por exemplo. Mas o Phoeniconaias minar, o
flamingo menor, possui filtros tão densos e eficazes que são capazes até mesmo
de reter células de cianofíceas e diatomáceas de 0,02 a 0,1 mm de diâmetro.
Os flamingos fazem com que a água passe através de seus filtros de duas
maneiras (tal como documentado por Penelope M. Jenkin em seu artigo clássico
de 1957): balançando a cabeça para a frente e para trás, eles permitem que a
água flua passivamente, ou então, pelo sistema mais comum e eficaz, que
inspirou os glutões romanos pelo bombeamento ativo sustentado por uma língua
grande e forte. A língua preenche um grande canal no bico inferior. Move-se
rapidamente para a frente e para trás, com uma frequência de até quatro vezes
por segundo, trazendo a água através dos filtros com o movimento para trás e
expelindo-a com o movimento para a frente. A superfície da língua está munida
de numerosos dentículos que raspam o alimento recolhido nos filtros
(exatamente como as baleias recolhem o krill de suas barbatanas).
A vasta literatura sobre a alimentação dos flamingos sempre ressaltou esses
singulares filtros — e com frequência negligenciou outra característica,
intimamente relacionada ao tema, igualmente notável e longamente considerada
pelos grandes naturalistas. Os flamingos alimentam-se de cabeça para baixo.
Eles se postam na água rasa, abaixam a cabeça até o nível dos pés, ajustando
sutilmente a posição da cabeça pelo alongamento ou acentuação da curva em “S”
do pescoço. Esse movimento naturalmente inverte a posição normal da cabeça,
e, desse modo, os bicos têm seus papéis convencionais trocados durante a
alimentação. O bico anatomicamente superior do flamingo fica para baixo e
passa a servir, funcionalmente, como uma mandíbula inferior. O bico
anatomicamente inferior fica para cima, na posição assumida pelos bicos
superiores de quase todas as outras aves.
Com esta curiosa inversão, afinal chegamos ao tema do presente ensaio: esse
comportamento incomum resultou em mudanças de forma? E, em caso
afirmativo, quais foram elas e como se deram? A teoria de Darwin, na condição
de postulado sobre a adaptação a circunstâncias ambientais imediatas (não um
progresso geral ou uma direção global), prevê que a forma deve seguir a função
a fim de estabelecer uma boa adaptação a estilos peculiares de vida. Em resumo,
poderíamos suspeitar que o bico superior do flamingo, agindo funcionalmente
como uma mandíbula inferior, evoluiria até se aproximar, ou mesmo imitar, a
forma usual da mandíbula inferior de uma ave (e vice-versa no caso do bico
anatomicamente inferior e funcionalmente superior). Tal modificação terá
ocorrido?
A natureza abriga um enorme séquito de excentricidades, tão especiais que
dificilmente sabemos o que prever. Neste caso, porém, nos deparamos com uma
inversão precisa de anatomia e função usual — o que nos leva a uma expectativa
definida: quando o comportamento presente entra em conflito com a anatomia
convencional, os animais com características invertidas deveriam reorientar a
forma de seus corpos para uma nova função.
Podemos começar dispensando as costumeiras pontificações (mas só por
alguns instantes) e olhar uma figura. Se essa figura lhe provoca uma vaga
sensação de familiaridade e um leve estranhamento, sua percepção é aguda.
Ainda assim, acompanhe minha exposição.
A princípio julgamos ver um cisne com um longo pescoço e um largo
sorriso. Mas, olhe com mais cuidado, pois os detalhes traem esse animal
impossível. A boca se abre acima dos olhos. As plumas estão voltadas na
direção errada. E, onde estão suas pernas? Vou mostrar-lhes, a seguir, o famoso
original em sua posição correta (e com as pernas de volta) — o flamingo de
Birds of America de J. J. Audubon, que certamente figurará em qualquer relação
de ilustrações mais famosas da história natural.
Esse radical deslocamento perceptual, de cisne feliz para altivo flamingo,
traz à lembrança qualquer um dos vários itens-padrão do arsenal de ilusões de
óptica da psicologia — particularmente o da jovem dama bem-vestida, com o
rosto voltado, que se transforma na velha megera de perfil. Na verdade, qualquer
desenho bem-executado de um flamingo, quando visto de cabeça para baixo,
produz o mesmo efeito surpreendente (verifiquei todos os retratos historicamente
importantes) — e por um motivo óbvio. As mandíbulas evoluíram para se
adaptarem à sua função invertida. A mandíbula superior do flamingo de fato se
parece com o bico inferior de uma ave típica, e, portanto, vemos o flamingo de
cabeça para baixo, não como um absurdo, mas apenas como uma ave parecida
com o cisne, ligeiramente estranha.
As alterações morfológicas vão muito além das modificações da forma
exterior responsáveis por essa mudança perceptual tão surpreendente, de
flamingo ereto para “cisne” invertido. Note-se, porém, primeiro a curva peculiar
do próprio bico. O bico do flamingo projeta-se do seu rosto, mas faz então um
desvio angular abrupto, produzindo a acentuada corcova que se parece com um
cocho (e que funciona como tal) quando invertida durante a alimentação. Alguns
povos do Oriente próximo chamam os flamingos de “camelos do mar”, não
porque o bico curvo lembre a corcova do camelo, mas porque ele imita a curva
de nariz que confere uma errônea (porém inabalável) impressão de arrogância a
ambos os animais (ver meu ensaio sobre a história de Mickey Mouse e as
mensagens transmitidas casualmente pelos traços faciais dos animais — ensaio 9
de O polegar do panda). Virada de cabeça para baixo, a curvatura torna-se um
sorriso, e um “cisne” sorridente substitui o flamingo arrogante.
Os bicos estão minuciosamente adaptados a seus papéis invertidos, e não
simplesmente curvados no ponto médio com vistas a uma reorientação
adequada. Em primeiro lugar, os tamanhos relativos foram rearranjados para
complementar os formatos. O bico superior é pequeno e raso, e o inferior,
profundo e maciço. (Na maioria das aves, o bico inferior, menor, move-se para
cima e para baixo contra o bico superior, maior.) Em segundo lugar, o bico
inferior do flamingo (funcionalmente superior durante a alimentação) evoluiu até
adquirir uma rigidez incomum. Os ossos de cada metade (ou ramus no jargão
técnico) são firmemente fundidos, e os próprios rami são, por sua vez, soldados
um ao outro. O bico inferior é maciço e bem fixado. A língua é disposta
longitudinalmente numa cavidade profunda da mandíbula inferior. (Lembre-se
de que a alimentação por filtragem serve como tema coordenador de todas essas
mudanças — a postura de cabeça para baixo para a alimentação, a decorrente
alteração do formato e do tamanho dos bicos e a língua gorda que quase selou o
destino do flamingo.) Em terceiro lugar, na maioria das espécies de flamingo, a
mandíbula superior, de tamanho menor, encaixa-se em um receptáculo inferior,
de tamanho maior, numa inversão da convenção usual — a mandíbula inferior,
com movimento para cima, encaixando-se em um bico superior de tamanho
maior.
Essas mudanças complexas e coordenadas formam um quadro convincente,
mas deixam de lado uma peça, reconhecida como sendo a chave para as
peculiaridades do flamingo desde que Menipo, quase trezentos anos antes do
apelo de Marcial, registrou a primeira especulação ainda preservada sobre o
assunto: os movimentos também são invertidos para combinar com a inversão da
forma?
Na maioria das aves (e dos mamíferos, inclusive nós mesmos), a mandíbula
superior se funde ao crânio; os atos de mastigar, morder e gritar fazem com que
a mandíbula inferior se mova contra esse suporte fixo. Se a postura alimentar
invertida converteu a mandíbula superior do flamingo numa mandíbula inferior
funcional em tamanho e forma, então devemos supor que, ao contrário de toda a
praxe anatômica, esse bico superior se move para cima e para baixo contra uma
mandíbula inferior rígida. O flamingo, em resumo, deveria alimentar-se
erguendo e baixando sua mandíbula superior.
Fazendo justiça à clareza de pensamento dos nossos melhores naturalistas,
notei com prazer em minhas leituras que esta questão central vem sendo
considerada fundamental há mais de dois mil anos — por cientistas de diversas
culturas e ao longo de todas as vicissitudes de teoria e prática que têm marcado a
história da biologia. Georges Buffon, o maior de todos os naturalistas sinópticos,
iniciou seu ensaio sobre flamingos, de meados do século XVIII, admitindo a
fama de sua coloração vermelha, mas, ao mesmo tempo, sustentando que o
estranho formato de seu bico constituía um problema de interesse ainda maior:
“Essa cor flamejante não é o único traço notável exibido por essa ave. Seu bico
tem um formato extraordinário, a parte superior sendo achatada e fortemente
curvada em sua porção central, e a inferior densa e bem assentada, como uma
grande colher.” Em resumo, usando a sua adorável língua, “une figure d’un beau
bizarre et d’une forme distinguée”. Então, remontando a questão até Menipo,
Buffon estabeleceu o primum desideratum dos estudos sobre flamingos —
“saber se, neste bico singular, é (como disseram muitos naturalistas) a parte
superior que se move, ao passo que a inferior mantém-se fixa e imóvel”.
O primeiro comentário amplo e explícito fora oferecido em 1681 por
Nehemiah Grew, o grande naturalista inglês (conhecido principalmente por seus
pioneiros estudos microscópicos de plantas). Ao catalogar as coleções da Royal
Society — no seu Musaeum Regalis Societatis, or a catalogue and description of
the natural and artificial rarities belonging to the Royal Society and preserved
at Gresham College, whereunto is subjoyned the comparative anatomy
ofstomachs and guts [Musaeum Regalis Societatis, ou catálogo e descrição das
raridades naturais e artificiais pertencentes à Royal Society e preservadas no
Gresham College, ao qual se acha apensa a anatomia comparativa dos estômagos
e intestinos] —, ele encontrou um único flamingo (ver figura) e declarou:
“Aquilo no qual ele se mostra mais notável é no bico.” Grew achava que as
singularidades do bico seriam explicadas caso a porção superior se movesse
apoiada contra uma mandíbula inferior estacionária. Ele afirmava que a “forma e
o tamanho grande do bico superior (o qual, neste caso, ao contrário do que
ocorre com todas as aves que vi, é mais fino e bem menor que o inferior)
indicam que ele é mais apropriado para o movimento e para realizar o contato, e
o inferior, para recebê-lo”.
A questão não foi inteiramente solucionada até que-Jenkin publicasse seu
abrangente trabalho em 1957 — confirmando com dados sólidos as suspeitas e o
bom julgamento de Menipo, Grew e Buffon. Na verdade, os flamingos (assim
como várias outras aves) desenvolveram uma articulação esférica altamente
móvel entre as mandíbulas superior e inferior. Os bicos, por conseguinte, têm
maior mobilidade, e cada um deles pode se mover de modo independente. No
alisamento de plumas com o bico, tanto a mandíbula' superior quanto a inferior,
podem ser abertas e operadas uma contra a outra. Mas na alimentação, a
mandíbula superior em geral se abaixa e se ergue apoiada contra uma mandíbula
inferior estacionária — exatamente como os grandes naturalistas sempre haviam
suposto.
A reviravolta do flamingo é completa e abrangente — quanto à forma e ao
movimento. As formas são subvertidas pela inclinação, os tamanhos trocados, o
encaixe invertido e a sustentação deslocada. A ação também é invertida. Uma
inversão particular de comportamento engendrou uma complexa inversão na
forma. A evolução como adaptação a modos particulares de vida — na visão de
Darwin — ganha força a partir de um teste extremo imposto por uma forma de
vida de cabeça para baixo.
Mas os flamingos são apenas um exemplo divertido ou simbolizam uma
generalidade? O que dizer de outras criaturas que vivem de cabeça para baixo?
Consideremos outro animal de águas rasas das índias Ocidentais, a medusa
invertida, Cassiopea xamachana (a heterodoxa denominação da espécie é uma
menção ao nome dado pelos nativos americanos à ilha da Jamaica).
A Cassiopea é uma água-viva não convencional em vários aspectos. Ela não
desenvolve tentáculos marginais nem boca central. Em vez disso, oito “braços
orais” (assim chamados porque cada um deles contém uma boca) carnudos e
complexamente ramificados emergem de um talo central curto e robusto, ligado
ao costumeiro guarda-chuva das águas-vivas, só que com uma diferença (ver a
figura — uma reprodução da clássica litografia da monografia de Mayer, de
1910, Medusae of the World). Os braços orais estão repletos de células algáceas
simbióticas, um possível impulso adaptativo para a elaborada ramificação (com
o fim de fornecer superfícies captadoras de luz aos sim-biontes
fotossintetizantes). Cada braço oral abriga cerca de quarenta vesículas orais —
sacos ocos conectados com os canais alimentares e contendo nas pontas bolsas
de nematocistos, ou células urticantes. As vesículas disparam seus nematocistos
contra as presas (em geral pequenos crustáceos) em filamentos de muco; os
filamentos com as vítimas grudadas e paralisadas são depois puxados para as
bocas orais. (Sim, também achei engraçada, assim como alguns de vocês, a
redundante expressão “boca oral” — o equivalente zoológico de torta de pizza
ou corrente AC. Esta expressão desajeitada é o resultado infeliz de uma decisão
anterior de designar os apêndices como “braços orais” — um equivalente
reduzido de “bocas dos braços orais”).
A anatomia incomum da Cassiopea combina com sua orientação e seu estilo
de vida não convencionais. As águas-vivas comuns, providas de autorrespeito,
nadam ativamente com seus guarda-chuvas para cima e os braços e tentáculos
para baixo. A Cassiopea permanece estacionada no fundo de poços rasos e
regiões costeiras — de cabeça para baixo. O topo de seu guarda-chuva se abraça
ao sedimento, e os braços orais ondulam por cima, esperando que pequenos
crustáceos adentrem sua órbita. Os navegadores de Fort Jefferson, nas Tortugas,
onde a Cassiopea guarnecia as docas, chamavam-nas de “bolos de musgo”.
(Como a Cassiopea é capaz de dar uma ferroada bem dolorida, e, já que os
marinheiros em geral “apimentam” sua linguagem de mo do a que ela se adapte
à qualidade do estímulo, fico imaginando como eles realmente as chamavam.
Contudo, o sr. H. F. Perkins, ao escrever em 1908 sobre a anatomia da
Cassiopea, preferiu não nos contar.)
O guarda-chuva da Cassiopea lembra a mandíbula do flamingo em sua
adaptação à vida invertida. A superfície superior do guarda-chuva mostra-se
suavemente convexa nas águas-vivas comuns, como exige a eficiência
hidrodinâmica. Mas a superfície superior do guarda-chuva da Cassiopea (a
superfície funcionalmente inferior na vida de cabeça para baixo) é
acentuadamente côncava — bem apropriada para servir como um dispositivo de
ventosa para pegar e segurar o substrato.
A Cassiopea realizou uma segunda e intrigante modificação para a sua
insólita vida invertida. A maioria das águas-vivas move-se na água contraindo
anéis de músculos concêntricos que circundam a porção exterior do guarda-
chuva. Na Cassiopea, um desses anéis musculares foi erguido e acentuado,
formando uma faixa circular contínua que rodeia a concavidade interna. Este aro
erguido opera juntamente com a superfície côncava para formar uma eficaz
ventosa que mantém a “cabeça” da água-viva em sua posição apropriada no
fundo. (A Cassiopea ainda consegue nadar de maneira convencional, embora o
faça de modo débil e ineficaz. Se for desalojada do fundo, ela se vira e nada por
meio de pulsações durante alguns instantes antes de voltar a fixar a “cabeça” no
fundo.) Alguns cientistas também sugeriram que as contrações pulsatórias dos
músculos concêntricos, em geral usados para nadar, servem para outras
importantes funções na posição fixa e invertida da Cassiopea — manter a
ligação com o substrato pressionando o animal para baixo e mover correntes de
água com presas potenciais na direção dos braços orais. Mas estas proposições
razoáveis não foram testadas de forma adequada.
Assim, os flamingos e a Cassiopea — dois animais que dificilmente
poderiam ser mais diferentes em modelo anatômico e história evolucionária —
compartilham a característica comum da alimentação de cabeça para baixo.
Como mensagem geral dentre as particularidades, ambos remodelaram a
anatomia convencional para fazer frente ao estilo de vida invertido. O bico
superior do flamingo mudou radicalmente — em tamanho, formato e movimento
— para parecer e funcionar como o bico inferior da maioria das aves. O ápice
estrutural do guarda-chuva da Cassiopea inverteu o seu formato para funcionar
adequadamente como um “pé ecológico”.
A adaptação tem um poder maravilhoso de alterar um projeto anatômico,
amplamente difundido e estável entre milhares de espécies, para responder às
exigências invertidas de um estilo de vida ímpar adotado por uma ou algumas
poucas formas aberrantes. No entanto, não devemos concluir que a adaptação
darwiniana ao meio ambiente local possui poder irrestrito para modelar formatos
teoricamente ótimos para todas as situações. A seleção natural, como processo
histórico, só pode trabalhar com o material disponível — nestes casos, os
modelos anatômicos convencionais desenvolvidos para a vida comum. As
imperfeições e soluções excêntricas resultantes, construídas a partir de partes
disponíveis, registram um processo que se desdobra no tempo a partir de
antecedentes inadequados, não a obra de um arquiteto perfeito trabalhando ab
nihilo. A Cassiopea elege uma faixa de músculos comumente usada para nadar e
forma um aro saliente que agarra o substrato. Os flamingos curvam o bico numa
curiosa corcova como a única solução topológica para uma nova orientação.
Estas adaptações à vida de cabeça para baixo não são apenas fatos divertidos.
Elas nos ajudam a compreender a solução para um dilema maior, e clássico, na
teoria da evolução (daí minha decisão de uni-los neste ensaio). Podemos
compreender facilmente como os flamingos e a Cassiopea funcionam; suas
características incomuns de fato os tornam adaptados para as suas vidas não
convencionais. Mas como surgem estas estruturas bizarras se a evolução tem de
avançar através de etapas intermediárias (ninguém irá sugerir com seriedade que
o primeiro protoflamingo virou a cabeça para baixo e depois gerou descendentes
com um conjunto completo de adaptações complexas à vida invertida).
Nos anos pré-darwinianos do começo do século XIX, quando a teoria da
evolução era novidade, e quando os primeiros expoentes de uma ideia tão radical
estavam tentando formular as suas implicações, surgiram duas escolas que
conduziram a um debate interessante (e em boa parte esquecido) que durou até
que Darwin resolvesse a polêmica. Ambos os lados admitiam o bom ajuste que
em geral existe entre forma e função — adaptação no sentido estático, não-
histórico. Os estruturalistas, como Etienne Geoffroy Saint-Hilaire argumentavam
que a forma deve mudar primeiro e depois encontrar uma função. Os
funcionalistas, como Jean Baptiste Lamarck, sustentavam que os organismos
devem primeiro adotar um modo de vida diferente para acionar algum tipo de
pressão para uma forma subsequentemente alterada.
A natureza desta “pressão” inspirou outro debate famoso (e mais lembrado,
se bem que não mais importante). Lamarck afirmava que os organismos reagiam
criativamente às necessidades impostas pelo meio ambiente e depois transmitiam
as mudanças resultantes diretamente para a prole — a “herança de caracteres
adquiridos” no jargão costumeiro. Darwin argumentava que o meio ambiente
não impunha as exigências adaptativas de imediato. Em vez disso, os
organismos que, por sorte, variavam em direções melhor ajustadas ao meio
ambiente local, através de um processo de seleção natural, deixavam uma
descendência sobrevivente maior.
Como Darwin venceu esta discussão sobre a natureza das informações que o
meio ambiente passa para o organismo, Lamarck foi eclipsado e, ainda hoje,
apesar dos vários esforços dos historiadores para corrigir o equívoco, sofre de
uma reputação imposta de perdedor, que não deve ter nenhuma de suas ideias
levadas a sério.
Mas Lamarck tinha a resposta certa (a mesma que Darwin) para a disputa
maior entre estruturalistas e funcionalistas. (Ele apenas propôs o mecanismo
errado para explicar como o meio ambiente transmite suas mensagens aos
organismos.) A solução estruturalista de Geoffroy propõe um óbvio dilema. Se a
estrutura muda primeiro, de acordo com desconhecidas “leis de forma”, e depois
encontra o meio ambiente mais adequado para o seu estado alterado, como pode
surgir a adaptação precisa? Poderíamos admitir que algumas mudanças básicas e
gerais tendem a preceder algum significado ou vantagem funcional — um
animal poderia, por exemplo, tornar-se maior e depois explorar as vantagens
inerentes a um tamanho maior. Mas como acreditar seriamente que algo tão
complexo, tão variado e tão profundamente adaptado a uma ecologia incomum
como o bico do flamingo poderia surgir antes do fato e sem relação com a sua
serventia — permitindo que apenas mais tarde o flamingo descobrisse como
aquele bico funcionava tão bem de cabeça para baixo?
A solução funcionalista de Lamarck reveste-se de uma simplicidade refinada
atualmente aceita por quase todos os evolucionistas (mas que costuma ser
atribuída a Darwin, que também a defendia. Por mais que eu admire Darwin,
quero fazer um apelo para que este princípio básico seja reconhecido como
contribuição principal de Lamarck. Ele não surge como uma nota de rodapé
eventual na Philosophie zoologique de Lamarck, de 1809, mas como um tema
central de seu livro. Lamarck sabia muito bem sobre o que estava argumentando
e por quê). Lamarck simplesmente reconhecia que a mudança de comportamento
deve preceder a alteração da forma. Um organismo entra em um novo ambiente
com a sua antiga forma, adaptada para outros estilos de vida. A inovação
comportamental estabelece uma discordância entre função nova e forma herdada
— um ímpeto para a mudança (por meio de reação criativa e herança direta para
Lamarck, por meio de seleção natural para Darwin). O protoflamingo primeiro
inverte o seu bico normal — e ele não funciona muito bem. A proto-Cassiopea
fica de cabeça para baixo, mas o seu guarda-chuva convexo não agarra o
substrato. Lamarck escreveu:
Não é nem a forma do corpo, nem a das suas partes, que dá origem aos
hábitos dos animais e ao seu modo de vida; mas, pelo contrário, foram os
hábitos, o modo de vida, e todas as outras influências do meio ambiente que
modelaram ao longo do tempo o formato do corpo e das partes dos animais.
A evidência direta da solução de Lamarck não pode surgir de adaptações tão
“completas” quanto o bico do flamingo ou o guarda-chuva da Cassiopea —
embora, mesmo neste caso, a inferência se torne verdadeiramente irresistível
(afinal, por que deveriam os flamingos, de modo exclusivo entre as aves,
desenvolver um bico tão peculiar, se não para explorar o ambiente incomum que
escolheram?). Devemos surpreender o processo em seus estágios iniciais —
encontrando animais invertidos que já alteraram o seu comportamento, mas não
a sua forma.
Os silurídeos africanos da família Mochokidae incluem várias espécies que
caracteristicamente nadam de barriga para cima (ver G. Sterba, na bibliografia).
O comportamento já se modificou radicalmente, e em alguns casos dispomos até
mesmo de bons palpites quanto aos gatilhos que detonaram o processo. (O
Synodontis nigriventris, por exemplo, come algas raspando o lado inferior das
folhas de plantas aquáticas.) Mas a forma mudou pouco, isso quando mudou.
Algumas poucas espécies inverteram o costumeiro padrão de coloração
mimética própria de peixes que nadam perto da superfície. As barrigas claras da
maioria dos peixes, vistas contra o sol, os tornam invisíveis aos predadores que
olham de baixo. Mas o S. nigriventris, como dá a entender o seu nome (barriga
preta), é escuro no lado anatomicamente inferior, e claro no lado estruturalmente
superior. Como este peixe nada de barriga para cima, o lado claro fica para
baixo, como de costume. No entanto, a não ser por esta mudança de cor, a
maioria dos Mochokidae invertidos tem a mesma aparência que os seus parentes
que nadam com a barriga para baixo. O tamanho, o formato e a posição das
nadadeiras não mudaram. O detonador do processo (supostamente recente) é
comportamental. Teremos de esperar para ver quais mudanças ainda podem
ocorrer.
Como questão final, os leitores podem reconhecer a validade de minha
argumentação, mas rejeitar os exemplos como triviais ou periféricos. Todos
amamos os flamingos, e a Cassiopea estimula o nosso interesse (o nosso corpo
também, se nos metermos com ela). Os Mochokidae são divertidos nos aquários.
Mas é possível ver a forma de vida invertida como algo mais que um cantinho
engraçado da história natural? Todos os meus exemplos são as adaptações
acabadas de umas poucas espécies; a vida invertida pode levar a algo
fundamental e amplo?
Como importante ilustração tirada da história (embora a ideia seja, quase
com certeza, incorreta), o modo de vida invertido certa vez arrebatou a atenção
como especulação fundamental sobre a origem dos vertebrados — a teoria do
“verme que se virou”, por assim dizer. Os anelídeos e os artrópodes, os mais
complexos dos invertebrados segmentados, desenvolvem cordões nervosos
ventrais (no lado de baixo); o esôfago penetra nos cordões nervosos e liga uma
boca ainda mais ventral a um canal alimentar central (intestino) localizado acima
dos cordões nervosos. Nos vertebrados o cordão nervoso principal está disposto
longitudinalmente em posição dorsal (no lado de cima), e o canal alimentar,
inclusive boca e esôfago, localiza-se inteiramente no lado de baixo.
Estes dois modelos anatômicos parecem inteiramente incompatíveis e não
relacionados. Não obstante, e ironicamente no contexto do contraste que fiz
entre a opinião estrutural e a funcional, o maior de todos os estruturalistas, o
próprio Geoffroy Saint-Hilaire, notou que um anelídeo virado de barriga para
cima fica um bocado parecido com um vertebrado — pois o cordão nervoso
ventral torna-se então dorsal e fica acima do canal alimentar. Resolvendo um
problema, surgem outros: a boca agora se abre no lado de cima do verme
invertido. Geoffroy sugeriu, como uma solução ad hoc, que exige demais da
credulidade, que a antiga boca e o esôfago que penetra no nervo simplesmente
desapareceram, e que uma abertura de todo nova (a boca de vertebrado)
desenvolveu-se abaixo do cordão nervoso, ligando-se diretamente ao canal
alimentar, e não mais penetrando no sistema nervoso. (Tantas outras diferenças
incomodam a comparação — por exemplo, a falta de qualquer estrutura nos
anelídeos que lembre a notocorda ou as fendas branquiais dos vertebrados,
disparidades fundamentais no desenvolvimento embriológico dos dois grupos —
que a teoria do verme nunca impôs assentimento geral, embora tenha se mantido
por quase um século como uma controvérsia fundamental).
Geoffroy nunca pretendeu que sua comparação de vertebrado com verme
invertido fosse uma especulação evolucionária, mas apenas uma comparação
estrutural para escorar a sua notável teoria de que todos os animais compartilham
de um plano arquitetônico comum. (Ele também sustentava que os segmentos do
esqueleto externo de um inseto correspondiam às nossas vértebras internas — e
que os insetos viviam literalmente dentro das próprias vértebras. Esta
comparação implicava a conclusão adicional e assombrosa, francamente
defendida por Geoffroy, de que as pernas dos insetos são costelas de vertebrado.)
Geoffroy também expôs a sua comparação como uma hipótese funcional
sobre a adaptação — ele não sustentava (como Lamarck poderia ter feito) que o
comportamento inovador de um verme (de virar-se de barriga para cima) havia
detonado uma pressão adaptativa para uma remodelação anatômica. Muito pelo
contrário. Como estruturalista, ele afirmava que ventre e dorso são termos de
invenção humana sem nenhum sentido, usados para descrever uma orientação
superficial também desprovida de sentido para aquilo que realmente importa —
leis estruturais abstratas de forma e caminhos de modificação permitidos.
Hoje, rejeitamos a especulação de Geoffroy junto com a sua abordagem de
forma e função. O modo de vida invertido confirma a asserção de Lamarck de
que a mudança substancial na morfologia surge em geral como consequência de
gatilhos comportamentais. O famoso lema do século XIV, daquela arrogante
instituição — o New College — de Oxford, parece incorporar uma verdade
essencial tanto sobre a história quanto sobre a conduta: os modos fazem o
homem.
2. Só restaram suas asas
A prosa convencional da ciência do século XX é curta e seca. Mas nossos
antecessores vitorianos, talvez em harmonia com os enfeites vistosos do exterior
de suas casas e as prateleiras de quinquilharias dentro delas, deleitavam-se com
o detalhe e o vagar. Considere-se, por exemplo, esta descrição longa (mas muito
interessante) de amor e morte no louva-a-deus, publicada por L. O. Howard em
1886:
Alguns dias depois, levei um macho de Mantis carolina a um amigo que
vinha mantendo uma fêmea solitária como mascote. Colocados os dois no
mesmo frasco, o macho, alarmado, procurou escapar. Em poucos minutos, a
fêmea conseguiu agarrá-lo. Primeiro, ela lhe arrancou parte do tarso dianteiro
esquerdo e devorou-lhe a tíbia e o fêmur. Em seguida, roeu-lhe o olho
esquerdo. Feito isto, o macho pareceu dar-se conta da proximidade de um
indivíduo do sexo oposto e pôs-se a fazer vãs tentativas de acasalamento. Em
seguida, a fêmea comeu-lhe a perna dianteira direita e depois decapitou-o
inteiramente, devorando-lhe a cabeça e pondo-se a morder-lhe o tórax. Só
parou para descansar depois de ter comido todo o tórax do macho, exceto 3
mm. Durante todo esse tempo, o macho havia persistido em suas vãs
tentativas de ganhar acesso às válvulas da fêmea, o que conseguiu neste
momento, quando ela voluntariamente posicionou as válvulas por sobre o
macho, tendo então lugar a união. Ela permaneceu imóvel durante quatro
horas, e os restos do macho apresentaram sinais ocasionais de vida, com o
movimento de um ou outro dos tarsos restantes, durante três horas. Na
manhã seguinte, ela se livrara completamente do cônjuge, e nada havia
restado dele, além de suas asas.
Apresento esta passagem não apenas por causa do seu estilo, mas sobretudo
por sua substância — já que ela representa o primeiro relato que conheço de um
favorito insuperado dentre os fatos curiosos da natureza. Nós todos já ouvimos
falar de alguns animais que conseguem sobreviver depois de terem amputadas
grandes porções de seus corpos, mas os imaginamos nesse estado tão limitado
apenas vivendo mal e mal, não com as suas habilidades melhoradas. Nosso
chavão, “ficar de um lado para o outro como um frango com a cabeça cortada”
(Tradução literal da expressão idiomática. Estar como um frango com a cabeça cortada significa estar
confuso - N.T.), sublinha a sensata suposição de que uma redução na anatomia
acarreta necessariamente uma capacidade reduzida. No entanto, os machos do
louva-a-deus decapitados por uma parceira voraz não apenas continuam o ato de
corte e cópula, mas efetivamente atuam com mais persistência e êxito.
Quero, como de costume, discutir a mensagem maior por trás desta suprema
esquisitice, mas o tratamento adequado exige uma longa digressão, de volta ao
próprio Darwin. Portanto, seja paciente comigo e, por fim, voltaremos aos louva-
a-deus e a muito mais daquilo que a literatura biológica chama “canibalismo
sexual’’.
A Descendência do homem é, sem dúvida, o livro mais mal compreendido de
Darwin. Muitas pessoas supõem que ele representa a tentativa de Darwin de
encaixar os fatos da evolução humana na sua perspectiva evolucionária. Mas não
existiam quaisquer fatos inequívocos quando ele o publicou em 1871, pois, além
do homem de Neanderthal (uma raça de nossa própria espécie, não um ancestral
ou alguma forma de “elo perdido”), nenhum fóssil humano seria descoberto até a
década de 1890. Mais exatamente, a Descendência do homem é um amplo ensaio
sobre a íntima relação biológica entre os humanos, os grandes símios e os
possíveis modos de nossa evolução física e mental a partir desta ascendência
comum. Darwin, entretanto, abominava a especulação; ele nunca escreveu um
tratado puramente teórico. Mesmo a Origem das espécies é um compêndio de
fatos que apontam para uma conclusão convincente. Ele nunca teria escrito um
relato não corroborado de como isso poderia ter ocorrido, não importa o quanto
ansiasse por estender a sua perspectiva evolucionária àquilo que ele certa vez
chamou de “a própria cidadela” — a mente humana.
A chave para a Descendência do homem é a sua situação de prefácio
relativamente breve para um grande trabalho em dois volumes, A descendência
do homem e a seleção em relação ao sexo; Darwin conseguia tecer admiráveis e
amplas tapeçarias sobre temas centrais — tanto que muitas vezes os seus leitores
perdem o ponto central no meio de todo o entrelaçamento. Mas todos os seus
livros são soluções de enigmas específicos; o resto, apesar do brilhantismo, é
superestrutura. O livro a respeito dos recifes de coral é sobre a inferência
histórica a partir de resultados contemporâneos; o livro das orquídeas é sobre a
adaptação imperfeita baseada em partes disponíveis; o livro das minhocas é
sobre grandes efeitos acumulados por meio de pequenas mudanças sucessivas
(ver o ensaio 9 em Hen’s Teeth and Horse’s Toes). Mas porque adorava as
minúcias, Darwin conta mais do que você quer saber sobre como os insetos
fertilizam as orquídeas e como as minhocas puxam objetos para dentro de suas
tocas — e você facilmente perde o âmago da questão, o paradoxo, o germe de
um problema que deu início à edificação inteira.
A Descendência do homem é um prefácio para um tal problema. Em 1871,
doze anos após a Origem das espécies, Darwin não precisava mais convencer as
pessoas de boa vontade e flexibilidade mental de que a evolução havia ocorrido;
essa batalha fora vencida. Mas como a evolução funciona, que tipo de mundo
habitamos, e como podemos saber? A mensagem radical de Darwin achava-se na
sua asserção de que as belezas e a harmonia da natureza são todas subprodutos
de um processo primário chamado seleção natural: os organismos lutam para
conseguir maior sucesso reprodutivo pessoal — no jargão moderno, lutam para
transmitir mais dos seus genes às futuras gerações (já que não podem preservar
os seus corpos) — e isso é tudo. Nada de leis supremas sobre o bem das espécies
ou dos ecossistemas, nenhum regulador sábio e vigilante nos céus — apenas
organismos lutando.
Mas como podemos saber que o mundo é regulado pela seleção natural e não
por algum outro princípio evolucionário? A resposta de Darwin é brilhante,
paradoxal e geralmente mal compreendida. Não fundamente o seu argumento,
aconselha ele, no que poderia ser a expressão mais refinada de seleção — as
belas adaptações, projetadas do melhor modo possível, dos organismos aos seus
ambientes: a perfeição aerodinâmica da asa de um pássaro ou a beleza
hidrodinâmica de um marlim. Pois o modelo anatômico bom é a expectativa da
maior parte das teorias evolucionárias (aliás, também do criacionismo). Não há
nada distintamente darwiniano na perfeição. Em vez disso, procure pelas
singularidades e imperfeições que só ocorrem se a seleção baseada no sucesso
reprodutivo dos indivíduos — e não em algum outro mecanismo evolucionário
— traçar o caminho da evolução.
A maior classe de tais singularidades inclui aquelas estruturas e hábitos que
visivelmente comprometem o bom modelo anatômico dos organismos (e o
sucesso final das espécies) mas que, de modo igualmente óbvio, aumentam a
habilidade reprodutiva dos indivíduos que as têm como atributo. (Meus
exemplos favoritos são as plumas da cauda dos pavões e os enormes e
embaraçosos chifres dos alces gigantes (Megaloceros hibernicus, grande mamífero
artiodáctilo extinto, cujos fósseis foram encontrados na Irlanda, na Dinamarca, na Itália e na Sibéria. A
galhada do animal chegava a medir três metros e meio de ponta a ponta - N.T.), ambas adaptações
na luta dos machos para conseguirem acesso às fêmeas ou serem aceitos por elas
mas que, sem dúvida, não contribuem para uma boa adaptação no sentido
biomecânico). Nosso mundo está repleto de formatos e comportamentos
peculiares que seriam desprovidos de sentido, se não funcionassem apenas para
promover a vitória no grande jogo de acasalamento e reprodução. Nenhum outro
mundo, a não ser o de Darwin, encheria a natureza de tais curiosidades que
estorvam a boa adaptação, mas que trazem sucesso naquilo que realmente
importa no universo de Darwin — transmitir mais genes às gerações futuras.
Darwin percebeu que a seleção natural no seu sentido usual — adaptação
progressiva a ambientes em mudança — não explicaria esta grande classe de
características desenvolvidas ao longo da evolução para assegurar benefícios
puramente reprodutivos para os indivíduos. Portanto, ele batizou um processo
paralelo, a seleção sexual, para explicar esta evidência crucial. Ele argumentava
que a seleção sexual poderia operar por meio de combate entre machos ou então
escolha da parte das fêmeas: no primeiro caso, para produzir armas e
instrumentos de exibição de porte exagerado; no segundo caso, para encorajar o
desenvolvimento desses adornos e atitudes elaboradas que chamam a atenção e
induzem a aceitação (o rouxinol não canta para o nosso deleite).
Os humanos entram na história neste ponto. Por que Darwin escolheu o seu
longo e detalhado tratado sobre seleção sexual para abrigar o seu prefácio, bem
menor, sobre a Descendência do homem? Mais uma vez a resposta se acha no
fascínio de Darwin por enigmas específicos e pela contribuição dada pela
resolução desses enigmas para a solução da questão maior. A Descendência do
homem tem sua base em um problema particular de variação racional humana;
não é um tratado pomposo e sem sentido sobre generalidades. Nós podemos,
argumenta Darwin, compreender algumas diferenças raciais, a cor da pele, por
exemplo, como adaptações convencionais ao meio ambiente (a pele de cor
escura foi desenvolvida, por diversas vezes, de modo independente, e sempre em
climas tropicais). Mas com certeza não podemos afirmar que todas as pequenas e
sutis diferenças entre as pessoas — variações menores, mas estáveis em feitio e
forma, de narizes e orelhas ou de textura do cabelo — têm sua origem naquilo
que o meio ambiente ordena. Argumentar, por meio de fabulações engenhosas,
que cada nuance insignificante de modelo anatômico é realmente uma
configuração ótima para circunstâncias locais seria fazer uma caricatura vulgar
da seleção natural (embora alguns devotos fanáticos continuem a promover este
parecer. Certa vez, um proeminente evolucionista sugeriu-me seriamente que as
línguas eslavas são cheias de consoantes porque é melhor que as bocas fiquem
fechadas em climas frios, ao passo que o havaiano tem pouca coisa além de
vogais porque o ar saudável das ilhas oceânicas deve ser sorvido e saboreado).
Como foi, então, se não pela seleção natural comum, que se originaram estas
pequenas e sutis, mas generalizadas diferenças raciais?
Darwin propôs — e acho que ele está, em boa parte, certo — que diferentes
padrões de beleza surgem por motivos caprichosos entre os vários e antigamente
isolados grupos de humanos que habitam os extremos do nosso mundo. Essas
diferenças — uma inclinação de nariz aqui, pernas mais magras ali, um
encrespamento de cabelo acolá — são então acumuladas e intensificadas pela
seleção sexual, já que os indivíduos acidentalmente dotados com características
favorecidas são mais procurados e, portanto, melhor sucedidos na reprodução.
Olhe para a organização da Descendência do homem e você perceberá que é
este argumento, não as generalidades, que constitui o foco do livro. O livro
começa com um panorama geral de umas 250 páginas, todas apontando para um
capítulo final sobre as raças humanas e uma apresentação do paradoxo central na
última página.
Até agora tivemos frustradas todas as nossas tentativas de explicar as
diferenças entre as raças do homem; mas resta uma agência importante, a
saber, a Seleção Sexual, que parece ter atuado poderosamente sobre o
homem, assim como sobre vários outros animais... Para expor este tema de
modo apropriado, julguei necessário passar em revista o reino animal inteiro.
Darwin tem agora o ponto de apoio para o verdadeiro cerne de seu livro, e
ele gasta mais do dobro do espaço, as quinhentas páginas seguintes, num relato
minucioso da seleção sexual em grupo após grupo de organismos. Finalmente,
nos três capítulos finais, ele volta à variação racial humana e completa a sua
solução do paradoxo atribuindo nossas diferenças primariamente à seleção
sexual.
A seleção sexual foi às vezes considerada como um contraste ou conflito
com a seleção natural, mas tal interpretação distorce o parecer de Darwin. A
seleção sexual é a mais refinada confirmação que temos de seu princípio central,
o de que a luta dos indivíduos pelo sucesso reprodutivo dirige a evolução — uma
noção que a seleção natural não confirma adequadamente porque os seus
produtos também são os resultados de outras teorias evolucionárias (e também,
no que diz respeito à modelagem anatômica ótima, do próprio criacionismo). A
prova de que o nosso mundo é darwiniano encontra-se no grande conjunto de
adaptações que surgem apenas porque aumentam o sucesso reprodutivo mas
que, quanto ao mais, estorvam os organismos e prejudicam as espécies. Se pode
suplantar com tanta frequência outros níveis e formas de vantagem, a seleção
darwiniana para o sucesso reprodutivo deve ser extraordinariamente poderosa.
Podemos agora retomar ao repasto de sangue do louva-a-deus durante o
acasalamento. Certa vez, W. H. Auden, demonstrando uma grande compreensão
de nossas vidas, escreveu que o amor e a morte são os únicos temas dignos da
atenção da literatura. Eles são realmente os focos do mundo de Darwin, um
universo de luta pela sobrevivência e pela continuidade. Mas devem eles ser
associados? À primeira vista, nada parece mais absurdo, mais em desarmonia
com qualquer noção de ordem ou vantagem, que o sacrifício da vida por uma
cópula. No mundo de Darwin, um macho não deve sobreviver para se acasalar
outra vez? Não necessariamente, caso esteja destinado a uma vida curta e, de
qualquer modo, com pouca probabilidade de se acasalar de novo, e caso os seus
“preciosos fluidos corpóreos” (para citar a linha imortal do Dr. Fantástico)
venham a fazer uma grande diferença na nutrição dos ovos fertilizados por seu
esperma dentro da sua antiga parceira e atual executora.
Afinal, o seu corpo é apenas bagagem darwiniana. Ele não pode ser
transmitido à geração seguinte; o seu patrimônio jaz, de modo absolutamente
literal, no DNA do seu esperma. Assim, o canibalismo sexual deveria ser um
exemplo principal da razão pela qual vivemos num mundo darwiniano — uma
curiosidade clássica, um aparente absurdo, tornado sensato pela proposição de
que a evolução diz respeito fundamentalmente à luta entre organismos pela
continuidade genética. Mas os indícios são satisfatórios? (E agora devo preveni-
los — já que este pode vir a ser o mais intrincado ensaio que já escrevi — de que
este argumento perfeitamente razoável a favor do darwinismo tem atualmente,
pela minha avaliação, bem pouco fundamento. No entanto, uma interpretação
alternativa, por um motivo diferente, afirma algo ainda mais fundamental sobre
o darwinismo e sobre a natureza da própria história. Francamente, enquanto
estou no confessionário, devo admitir que iniciei a pesquisa para este ensaio
convencido de que um argumento tão adorável e sensato a favor da seleção
sexual provaria ser válido, e me vi bastante surpreso com a escassez de indícios.
Eu também me recuso terminantemente a evitar um tema porque ele é difícil. O
mundo não é simples, e uma restrição dos escritos de caráter geral a fatos nítidos
e sem controvérsia transmite uma falsa impressão de como a ciência opera e de
como funciona o nosso mundo.)
Um número recente do American Naturalist, uma das três principais
publicações de biologia evolucionária dos Estados Unidos, publicou um artigo
de R. E. Buskirk, C. Frohlich e K. G. Ross, “A seleção natural do canibalismo
sexual” (ver Bibliografia). Eles desenvolvem um modelo matemático para
demonstrar que o sacrifício voluntário da vida a uma parceira fecundada será
darwinianamente vantajoso para o macho caso ele tenha pouca expectativa de
acasalamento subsequente e caso o valor alimentar do seu corpo venha a fazer
uma diferença substancial no desenvolvimento e na criação bem-sucedidos da
sua prole. O modelo faz sentido, mas a natureza irá corroborá-lo apenas se
pudermos demonstrar que tais machos promovem ativamente a sua própria
destruição. Caso eles tentem fugir como desesperados depois do acasalamento e
ocasionalmente sejam apanhados e comidos por uma fêmea voraz, então não
poderemos afirmar que a seleção sexual promoveu diretamente esta estratégia de
sacrifício final em benefício da continuidade genética.
Buskirk, Frohlich e Ross são francos ao afirmar que o canibalismo sexual é
não apenas raro em geral, como também muito menos comum quanto outros
estilos de consumo de parentes próximos (como irmão por irmão ou mãe pela
prole; ver ensaio 10 em Darwin e os grandes enigmas da vida [Ever Since
Darwin] e ensaio 6 em O polegar do panda [The Panda’s Thumb], Existem
exemplos documentados apenas para artrópodes (insetos e semelhantes), e
apenas umas trinta espécies foram implicadas (embora o fenômeno possa ser
bastante comum entre aranhas). Eles citam três exemplos como os melhores
casos.
1. O louva-a-deus fêmea (Mantis religiosa e várias espécies aparentadas)
ataca qualquer coisa que se mova e seja menor que ela. Como os machos são
menores que as fêmeas em quase todos os insetos, e como o acasalamento exige
proximidade, o louva-a-deus macho tornase um alvo principal. Em sua
dissertação clássica de 1935 (ver Bibliografia), K. Roeder escreve: “Todos os
relatos concordam quanto à ferocidade da fêmea e à sua tendência para capturar
e devorar o macho em qualquer tempo, seja durante a corte, seja após a cópula...
A fêmea pode agarrar e comer o macho como o faria com qualquer outro
inseto.”
O macho, portanto, acerca-se do acasalamento exatamente como diz a
resposta daquela velha e terrível piada sobre como os porcos-espinhos fazem o
negócio: com muito cuidado. Ele se aproxima vagarosamente, tentando a todo
custo manter-se fora da linha de visão da fêmea. Se a fêmea se volta em sua
direção, ele se imobiliza — pois os louva-a-deus ignoram qualquer coisa que não
se mova. Roeder escreve: “Tão extrema é essa imobilidade, que se o macho
estiver erguendo uma perna quando primeiro perceber a fêmea, ele a manterá
suspensa no ar durante algum tempo, e muitas posições curiosas podem ser
observadas.” Assim, o macho continua a se aproximar como uma criança
participando daquele jogo de rua, a “batatinha frita” — avançando quando a sua
adversária e parceira potencial desvia os olhos, imobilizando-se imediatamente
quando ela olha ao redor (embora o castigo por algum movimento percebido seja
a morte, e não um retorno à linha de partida). Se o macho conseguir se esgueirar
até uma distância de onde possa alcançá-la com um pulo, ele dá um salto
decisivo para cima da fêmea. Se errar vira comida de louva-a-deus; se acertar
consegue o summum bonum darwiniano de representação potencial na geração
seguinte. Após o acasalamento, ele se deixa cair para tão longe quanto possível e
trata de se safar correndo.
Até aqui, a história não parece muito um conto de conspiração ativa do
macho pela sua própria morte — a exigência, lembrem-se, por favor, necessária
ao argumento de que os machos são diretamente selecionados para o
canibalismo sexual. Talvez os machos estejam simplesmente fazendo o diabo
para escapar, mas nem sempre o consigam. O ponto forte do argumento é
inerente àquela grande curiosidade mencionada no início deste ensaio: os
machos decapitados têm desempenho sexual melhor que o de seus irmãos
intactos. Roeder até mesmo descobriu o fundamento neurológico para esta
situação peculiar. Boa parte do comportamento dos insetos é “prefixado”, bem
diferente da flexibilidade de nossas ações (e um motivo básico pelo qual os
modelos sociobiológicos para formigas funcionam tão mal para os humanos). Os
movimentos copulatórios são controlados por nervos do último gânglio
abdominal (perto da extremidade posterior). Uma vez que executar esses
movimentos copulatórios continuamente seria inconciliável com o
funcionamento normal dos machos (além de indecoroso), eles são suprimidos
por centros inibidores localizados no gânglio subesofagiano (perto da cabeça).
Quando uma fêmea come a cabeça de seu parceiro, ela ingere o gânglio
subesofagiano, e, assim, nada resta que possa inibir os movimentos copulatórios.
O que sobra do macho atua agora como uma máquina de acasalamento de
funcionamento ininterrupto. Ele tenta cobrir qualquer coisa — um lápis, por
exemplo — que apenas vagamente possua o tamanho e o formato apropriados.
Com alguma frequência, ele encontra a fêmea e consegue fazer de sua morte
vindoura a antítese darwiniana daquilo que Sócrates chamava “um estado de
nada”.
2. Uma viúva-negra faminta também é uma formidável máquina de comer, e
os machos têm de ser muito prudentes durante a corte.
Ao entrar na teia de uma fêmea, o macho dá tapinhas e puxões nos fios de
seda. Se a fêmea ataca, o macho bate em retirada rapidamente ou sai voando
suspenso no seu próprio fio. Se a fêmea não reage, o macho se aproxima devagar
e cautelosamente, e corta, afinal, a teia da fêmea em vários pontos estratégicos,
reduzindo desse modo as suas chances de fuga ou ataque. Muitas vezes, o macho
lança vários fios de seda ao redor da fêmea, formando o que é chamado,
inevitavelmente, acho eu, de o “véu de noiva”. Os fios não são fortes, e a fêmea,
de tamanho maior, certamente poderia rompê-los, mas ela em geral não o faz, e a
cópula, como gostam de dizer na literatura técnica, “tem então lugar”. O macho,
favorecido com órgãos duplos para a transferência de espermatozoides, insere
um palpo, e depois, se não for atacado pela fêmea, insere o outro. Fêmeas
famintas podem então devorar os seus parceiros, concretizando a expressão de
duplo sentido de uma consumação a ser fervorosamente desejada.
O argumento a favor da seleção direta do canibalismo sexual reside em dois
fenômenos intrigantes da corte. Primeiro, a ponta do palpo do macho geralmente
se parte durante a cópula e permanece dentro da fêmea. Os machos, tornados
assim incompletos, podem não ser capazes de se acasalar de novo; se for este o
caso, eles se tornam nulidades darwinianas, próprios para serem eliminados.
(Uma especulação interessante identifica esta ponta quebrada como uma “tampa
de acasalamento” selecionada para impedir a entrada subsequente do esperma de
algum outro macho. Tais cintos naturais de castidade post factum são comuns, e
de construção variada no mundo dos insetos, e dariam um tema interessante para
um futuro ensaio sobre, o mesmo problema, o de por que a seleção identifica o
nosso mundo evolucionário como darwiniano). Segundo, os machos demonstram
bem menos sofreguidão e prudência para dar o fora depois do fato do que
demonstraram ao se aproximar. K. Ross e R. L. Smith escrevem (ver
Bibliografia): “Os machos que conseguiram executar a inseminação deixaram-se
ficar nas proximidades de suas parceiras ou então se afastaram calmamente. Este
comportamento estava em nítido contraste com a cautela inicial de aproximação
e das estratégias de fuga, características dos machos antes da inseminação.”
3. As fêmeas do escorpião do deserto Paruroctonus mesaensis são
extremamente vorazes e comem qualquer coisa pequena o suficiente que possam
detectar. “Qualquer objeto móvel, dentro da amplitude de tamanho apropriada, é
atacado sem discriminação.” (G. A. Polis e R. D. Farley, ver Bibliografia.)
Como os machos são menores que as fêmeas, eles se tornam alvos excelentes,
sendo consumidos com avidez. Essa voracidade indiscriminada representa um
problema considerável para o acasalamento, o qual, como de costume, requer
uma certa intimidade espacial. Os machos desenvolveram, portanto, um
elaborado ritual de acasalamento, em parte para suprimir o apetite normal da
fêmea.
O macho inicia uma série de movimentos de agarrar e apalpar com as suas
quelíceras (pinças menores), e depois prende aquela (pinça maior) da fêmea com
a sua e executa a celebrada promenade à deux, uma “dança” recíproca e
simétrica, bonitinha como qualquer coisa que você possa ver no Arthur Murray.
Esses escorpiões não inseminam as fêmeas diretamente, inserindo um pênis,
mas, mais exatamente, depositam um espermatóforo (um pacote de esperma) que
a fêmea deve colocar dentro do corpo. Assim, o macho conduz a fêmea na
promenade até encontrar um local adequado. Ele deposita o espermatóforo, em
geral sobre um galhinho ou graveto, depois golpeia a fêmea ou até mesmo lhe dá
uma ferroada, desvencilha-se e corre para salvar a vida. Se a fortuna lhe sorrir, a
fêmea permitirá que ele fuja e dará devida atenção à tarefa de inserção do
espermatóforo. Mas, em dois casos, dentre mais de vinte, Polis e Farley
observaram a fêmea empenhada em devorar o parceiro, enquanto o
espermatóforo permanecia sobre um graveto próximo, provavelmente para
ingestão posterior através de um orifício diferente.
Que evidências, então, estes casos fornecem a favor da seleção do
canibalismo sexual entre machos? Para sua continuidade genética, os machos
oferecem ativamente os seus próprios corpos (ou se submetem passivamente à
destruição) em benefício do cuidado e da alimentação dos ovos fertilizados?
Nestes casos, encontro poucos indícios convincentes para tal fenômeno, e me
pergunto se ele existe mesmo — embora o argumento viesse a fornecer uma
excelente explanação de uma curiosidade que não faz muito sentido a menos que
o mundo evolucionário trabalhe em prol do sucesso reprodutivo dos indivíduos,
como afirma o darwinismo.
A história do escorpião, apesar de sua menção entre os melhores casos, não
fornece evidência alguma. Ao ler Polis e Farley, percebo apenas que os machos
fazem o possível para escapar após a cópula e que o conseguem na grande
maioria dos casos (apenas dois fracassaram). Na verdade, o seu comportamento
de acasalamento, tanto antes quanto depois, parece ter como intuito evitar a
destruição, não cortejá-la. Primeiro, eles desativam os instintos agressivos das
fêmeas através de marchas e toques. Depois, ele bate e foge. Que uns poucos
fracassem e sejam devorados apenas reflete as inevitáveis possibilidades de
acidente de qualquer jogo perigoso.
As viúvas-negras e os louva-a-deus têm mais a oferecer à teoria de seleção
direta, confirmando a destruição entre machos. As aranhas parecem tão
cautelosas quanto os escorpiões antes, mas bem apáticas depois, fazendo poucas
tentativas, quando o fazem, para escapar da teia da fêmea. Além disso, se a
tampa de acasalamento que eles deixam na fêmea lhes impede qualquer
transmissão futura de herança, então eles serviram plenamente ao seu propósito
darwiniano. Quanto aos louva-a-deus, o desempenho melhor de um macho sem
cabeça poderia indicar que sexo e morte foram ativamente relacionados pela
seleção. No entanto, em ambos os casos, outras observações tornam mais que
ambígua qualquer evidência a favor da seleção ativa nos machos.
Na condição de problema maior tanto para os louva-a-deus quanto para as
aranhas, não temos nenhuma evidência satisfatória sobre a frequência do
canibalismo sexual. Se ele ocorresse sempre ou pelo menos com frequência, e se
o macho nitidamente não resistisse e deixasse acontecer, então eu me
convenceria de que este fenômeno aceitável existe. Mas se ele ocorre raramente
e representa um simples fracasso de fuga, então ele é um subproduto de outros
fenômenos, não um traço selecionado em si. Não tenho como encontrar dados
sobre a porcentagem de machos devorados após o acasalamento na natureza ou
mesmo nas condições insatisfatórias e artificiais de um laboratório.
Quanto aos louva-a-deus, não encontro nenhum indício de cumplicidade do
macho para a sua própria destruição. Os machos são cautelosos antes e ansiosos
para fugir depois. Mas a fêmea é grande e voraz; ela não faz qualquer distinção
entre um louva-a-deus menor e qualquer outra presa que se mova. Quanto ao
fato curioso do melhor desempenho em machos decapitados, simplesmente não
sei o que dizer. Poderia ser uma adaptação direta para a combinação de sexo e
morte, mas, na ausência de indícios, outras interpretações fazem tanto sentido
quanto esta. O comportamento prefixado deve ser programado de alguma
maneira. Talvez o sistema de inibição por meio de um gânglio na cabeça e de
ativação por um perto da cauda tenha se desenvolvido em uma linhagem
ancestral bem antes que o canibalismo sexual surgisse entre os louva-a-deus.
Talvez ele já existisse quando as fêmeas desenvolveram seu apetite
indiscriminado. Ele seria então eleito, não ativamente selecionado, para o seu
papel útil no canibalismo sexual. Afinal, o mesmo sistema age também nas
fêmeas, embora o seu comportamento não sirva a nenhuma função evolucionária
conhecida. Decapitem um louva-a-deus fêmea, e o comportamento sexual,
inclusive a postura de ovos, também será desencadeado. Caso alguém queira
argumentar dizendo que o sistema deve ter sido desenvolvido ativamente porque
a fêmea tende a comer primeiro a parte do macho que desencadeia a sexualidade,
ofereço como réplica um bocadinho de biologia em seu aspecto mais elementar:
as cabeças ficam na frente e são a primeira coisa que a fêmea vê quando o
macho se aproxima.
A história da viúva-negra também é frágil. Os machos podem não tentar
fugir após o acasalamento, mas será que isso é uma adaptação ativa em prol de
sua morte ou uma reação automática à verdadeira adaptação — a quebra do
órgão sexual e a deposição de uma tampa de acasalamento na fêmea (pois tal
ferimento poderia enfraquecer o macho e explicar a sua subsequente
prostração)? Além disso, os machos de viúva-negra são minúsculos em
comparação com as suas parceiras — apenas uns 2% do peso da fêmea. Uma
refeição tão pequena vai fazer muita diferença? Por fim, e mais importante, qual
a frequência com que a fêmea come esta refeição disponível? Se ela sempre
comesse o macho exaurido após o acasalamento, eu ficaria mais convencido.
Mas alguns estudos indicam que o canibalismo sexual pode ser raro, ainda que
nitidamente disponível como opção para as fêmeas. Curiosamente, vários artigos
relatam que os machos muitas vezes ficam na teia da fêmea até morrer, com
frequência por duas semanas ou mais, e que as fêmeas os deixam em paz. Ross e
Smith, por exemplo, observaram apenas um caso de canibalismo sexual e
escreveram: “Dos machos observados que conseguiram inseminar uma fêmea,
apenas um foi comido pela parceira imediatamente após o acasalamento.
Contudo, vários foram posteriormente encontrados mortos nas teias de suas
parceiras.”
Por que, então, diante dessa perturbadora falta de evidências, a nossa
literatura está repleta de comentários sobre o óbvio bom senso evolucionário do
canibalismo sexual? Por exemplo: “Sob algumas condições, a seleção deveria
favorecer o consumo dos machos pelas suas parceiras. A sua probabilidade de
ser vítima de canibalismo deveria ser diretamente proporcional à expectativa
futura de reprodução do macho.” Ou, “machos bem-sucedidos serviriam melhor
os seus interesses biológicos apresentando-se a suas parceiras como uma
refeição pós-nupcial”.
Neste hiato entre esperança razoável e evidência concreta, vemo-nos face a
face com um preconceito típico do darwinismo moderno. A teoria darwiniana
diz respeito fundamentalmente à seleção natural. Não contesto esta ênfase, mas
creio que, ao tentarmos atribuir todas as formas e comportamentos significativos
à sua ação direta, tornamo-nos excessivamente ardorosos quanto ao poder e ao
alcance da seleção. Neste jogo darwiniano, nenhum prêmio é mais doce do que
uma interpretação selecionista bem-sucedida para fenômenos que parecem
desprovidos de sentido para nossa intuição. Se a seleção rege o nosso mundo,
como um macho poderia se tornar um repasto de sangue após o acasalamento?
Porque, desse modo, em certas circunstâncias, ele aumenta o seu sucesso
reprodutivo, respondem os nossos devotados selecionistas.
No entanto, outro princípio evolucionário fundamental, se bem que muitas
vezes esquecido, em geral intervém e impede qualquer adaptação ótima entre
organismo e ambiente imediato — os estranhos, tortuosos e irresistíveis
caminhos da história. Os organismos não são pedaços de massa diante de um
ambiente que os modela ou então bolas diante do taco de bilhar da seleção
natural. As suas formas e comportamentos herdados impõem limitações e fazem
recuar; eles não podem ser transformados rapidamente num novo ótimo absoluto
toda vez que o ambiente muda.
Toda mudança adaptativa traz consigo uma série de consequências, algumas,
por sorte, eleitas para uma vantagem posterior, outras não. Algumas fêmeas
grandes desenvolvem uma voracidade indiscriminada por motivos próprios, e
alguns machos sofrem as consequências, apesar de sua corrida para fugir.
Modelos desenvolvidos por um motivo (ou por nenhum motivo) têm outras
consequências, algumas delas eventualmente úteis. Machos de louva-a-deus
podem se tornar maravilhas sem cabeça; machos de viúva-negra permanecem na
teia da fêmea. Ambos os comportamentos podem ser úteis, mas não temos
nenhuma evidência de que algum deles tenha surgido através de seleção ativa em
prol do sacrifício do macho. O canibalismo sexual com cumplicidade ativa do
macho deveria ser favorecido em vários grupos (pois é comum encontrar
condições de oportunidade limitadas ao período após o acasalamento e de
comida útil), mas ele raramente chegou a ser desenvolvido, se é que o foi.
Perguntem por que não o vemos onde ele deveria ocorrer; não fiquem
simplesmente maravilhados com a sabedoria da seleção em uns poucos casos
possíveis. A história muitas vezes impossibilita a oportunidade útil; o caminho
da explicação não é sempre esse. As fêmeas podem não ser suficientemente
vorazes, ou podem ser menores que os machos, ou tão limitadas em flexibilidade
comportamental a ponto de não conseguirem desenvolver um sistema capaz de
suprimir uma inibição geral contra o canibalismo só após o acasalamento e só
para com o macho.
Nosso mundo não é um mundo absolutamente ótimo, minuciosamente
regulado por forças de seleção onipotentes. Ele é uma massa caprichosa de
imperfeições, funcionando razoavelmente bem (muitas vezes de modo
admirável); um conjunto de adaptações de uso temporário, construído com
partes curiosas, tornadas disponíveis por histórias passadas, em diferentes
contextos. Darwin, que era um arguto estudioso da história e não apenas um
devoto da seleção, compreendia este princípio como a prova principal da própria
evolução. Um mundo adaptado de modo absolutamente ótimo a meios ambientes
presentes é um mundo sem história, e um mundo sem história poderia ter sido
criado tal como o encontramos. A história faz diferença; ela frustra a perfeição e
prova que a vida atual transformou o seu próprio passado. Em sua famosa
dissertação sobre as idades do homem — “O mundo todo é um palco” — Jaques,
em Asyou like it, discorre sobre “esta estranha história cheia de acontecimentos”.
Que se respeite o passado e se informe o presente.
Pós-escrito
À luz de minhas dúvidas sempre crescentes sobre a existência do
canibalismo sexual (apesar da sua plausibilidade na teoria) — como ficou
patente na própria odisseia pessoal do presente ensaio — fiquei deliciado com
um relatório do encontro anual de 1984 da Sociedade de Neurociência. E. Liske,
da Alemanha Ocidental, e W. J. Davis, da Universidade da Califórnia, em Santa
Cruz, filmaram e analisaram o comportamento de acasalamento de dúzias de
louva-a-deus chineses. Nenhuma fêmea decapitou ou comeu um macho. Em vez
disso, a análise de quadro por quadro revelou uma série complexa de
comportamentos, aparentemente destinados (pelo menos em parte) à supressão
da voracidade natural das fêmeas. O comportamento masculino inclui fixação
visual, oscilação das antenas, aproximação vagarosa, a flexão repetida do
abdômen, e finalmente um salto sobre o dorso da fêmea. Liske e Davis sugerem
que os relatos anteriores de decapitação podem representar o comportamento
aberrante de espécimes cativos (embora o canibalismo possa ainda ser o
comportamento normal em outras variedades ou espécies, que não as estudadas
por Liske e Davis. Dada a propensão da natureza pela diversidade, não existe
algo que se possa chamar de o louva-a-deus). De qualquer forma, estou ainda
mais convencido de que o canibalismo sexual é um fenômeno sem exemplos
provados, e que os motivos para a sua raridade (ou inexistência) constituem um
tema bem mais interessante (e um deslocamento apropriado de ênfase) que
aquele que primeiro inspirou a minha pesquisa para o ensaio — motivos mesmo
para a suposta (e agora dúbia) existência.
Eu afirmo com frequência que o melhor teste para as lendas é o grau com
que elas se infiltram na cultura popular. Em Sherlock Holmes and the Spider
Woman (1944) — um dos inumeráveis, e no entanto maravilhosos, anacronismos
Rathbone-Bruce, que atiram Holmes contra Hitler e inimigos sortidos —,
Holmes desmascara um entomologista poseur (e assassino do verdadeiro
cientista) detectando várias falácias sutis de sua linguagem. O impostor chama
terrários de ‘ ‘jaulas de vidro”, mas ele realmente se trai é quando fala de viúvas-
negras: “Disseram-me que elas comem os seus parceiros.” Holmes responde:
“Você disse que lhe contaram que as viúvas-negras comem os seus parceiros.
Qualquer cientista saberia disso. ” Vou ficar esperando pela próxima atualização
(quem anda interpretando Charlie Chan ultimamente?).
3. Sexo e tamanho
Quando eu tinha oito anos e colecionava conchas em Rockaway Beach,
adotei uma abordagem funcional mas não-lineana de taxonomia, classificando as
minhas presas como “normais”, “incomuns” e “extraordinárias”. Minha favorita
era o crepidópode comum, embora ele se enquadrasse na categoria dos normais
devido à sua ubiquidade. Eu adorava a sua amplitude de formatos e cores, e a
bolsa inferior que servia de abrigo para o animal. Meu encanto transformou-se
em fascinação alguns anos depois, quando eu entrava na puberdade e começava,
ao mesmo tempo, a estudar um pouco de taxonomia lineana. Aprendi o seu
nome correto, Crepidula fornicata — um estímulo garantido para a curiosidade.
Como fora o próprio Lineu quem batizara essa espécie particular, fiquei
assombrado diante da libido desenfreada do pai da taxonomia.
Ao tomar conhecimento dos hábitos da C. fornicata, fiquei convencido de
que encontrara a chave para o seu curioso nome. Pois o crepidópode forma
amontoados, os menores empilhados sobre os maiores, que muitas vezes reúnem
uma dúzia de conchas ou mais. Os animais menores do topo são invariavelmente
machos, e os maiores que servem de suporte em baixo são sempre fêmeas. E
caso você suspeite que os machos do ápice poderiam estar restritos a uma vida
de homossexualidade compulsória em virtude de sua separação da primeira
fêmea grande, não tema. O pênis do macho é bem maior que o seu corpo inteiro
e pode se esgueirar facilmente por entre alguns machos para alcançar as fêmeas.
Crepidula fornicata mesmo; um amontoado erótico.
Então, para completar a desapontadora histórica, descobri que o nome nada
tinha a ver com sexo. Lineu descrevera a espécie a partir de exemplares isolados
em gavetas de museus; ele nada sabia sobre o seu hábito peculiar de se
amontoarem umas sobre as outras. Fornix significa “arco” em latim, e Lineu
escolheu o nome levando em consideração o seu formato levemente abobadado
(Descobri depois que a história não é tão desapontadora e unidirecional [do significado ostensivo para a
coincidência] quanto eu concluíra ao escrever o ensaio. A história linguística oferece uma explicação de
formação regressiva de palavra, de arcos morfológicos para sexo. 'Em A Browser’s Dictionary [Harper
and Row, 1980]), John Ciardi relata: “... porque os romanos usavam... arcos de tijolos nas partes
subterrâneas de grandes construções, e porque os pobres e as prostitutas de Roma viviam em tais
subterrâneos... os primeiros autores cristãos produziram o verbo fornicari, frequentar prostíbulos. As
prostitutas de Pompéia trabalhavam em cubículos de pedra similares).
Finalmente, alguns anos depois, o desapontamento cedeu lugar a um
interesse renovado, quando soube dos detalhes da sexualidade da Crepidula e
julguei a história mais intrigante do que nunca, mesmo depois do nome
convidativo. A Crepidula é um animal que muda de sexo naturalmente, um
hermafrodita sequencial no nosso jargão. Os jovens pequenos atingem a
maturidade primeiro como machos e depois, à medida que vão crescendo,
tornam-se fêmeas. Os animais intermediários no meio do amontoado de
Crepidula estão geralmente no processo de mudança de macho para fêmea.
O sistema funciona ordenamente para todos os elementos envolvidos. A C.
fornicata tende a habitar áreas relativamente lamacentas, mas tem de encontrar
um substrato sólido para se fixar. O membro fundador de um amontoado adere a
uma rocha ou concha velha. Elaine Hoagland, num exaustivo estudo das
mudanças de sexo da Crepidula (ver Bibliografia), observou que estes
fundadores podem então atrair ativamente larvas planctônicas à medida que elas
se metamorfoseiam e começam a descer — presumivelmente por meio de algum
chamariz químico, ou feromônio. Ela colocou seis recipientes com substratos
apropriados de rochas e conchas: três já ocupados por Crepidulas adultas e três
sem o molusco vivo. Os recipientes que continham adultos atraíram 722 jovens,
enquanto apenas 232 desceram sobre território não-ocupado. O membro
fundador cresce e torna-se fêmea dentro de pouco tempo, enquanto o jovem de
cima torna-se automaticamente um macho. A união permanece estável durante
algum tempo, mas por fim o macho cresce e se transforma em fêmea. O par de
fêmeas pode então atrair outras Crepidulas, que se tornam machos bem
abastecidos. O amontoado cresce, sempre mantendo um amplo número e
coeficiente de machos e fêmeas.
Este curioso sistema fornece um exemplo particularmente interessante de um
fenômeno geral na natureza. A mudança de sexo pode ocorrer em uma ou em
outra direção (ou em ambas) durante o crescimento, de macho para fêmea ou de
fêmea para macho. Ambos os fenômenos ocorrem, mas o padrão da Crepidula,
de macho primeiro e fêmea depois, chamado protandria (ou macho primeiro) é
decididamente o mais comum. (As criaturas que são primeiro fêmeas e depois
machos são protogínicas, ou fêmea primeiro.) A protandria parece representar o
caminho preponderante de mudança de sexo, sendo a protoginia um fenômeno
mais raro desenvolvido sob circunstâncias especiais (mas não particularmente
incomuns). Por que deve ser assim?
A resposta mexe com um de nossos velhos preconceitos e extrapolações
falsas que estendemos a toda a natureza a partir dos animais que conhecemos
melhor, nós mesmos e outros mamíferos. Pensamos nos machos como grandes e
fortes, nas fêmeas como menores e mais fracas, quando o padrão inverso
prevalece em toda a natureza — os machos são geralmente menores que as
fêmeas, e por bons motivos, a despeito dos humanos e da maioria dos outros
mamíferos. O espermatozoide é pequeno e barato, facilmente produzido em
grandes quantidades por criaturas pequenas. Um espermatozoide é pouco mais
que um núcleo de DNA nu com um sistema de distribuição. Por outro lado, os
óvulos têm de ser maiores, já que fornecem o citoplasma (todo o resto da célula)
com mitocôndrias (ou usinas de energia), cloroplastos (para fotossintetizadores),
e todas as outras partes de que um zigoto precisa para iniciar o processo de
crescimento embrionário. Além disso, os óvulos em geral fornecem a substância
nutriente inicial, ou comida para o embrião em desenvolvimento. Por fim, as
fêmeas geralmente executam as tarefas de cuidado básico, retendo os ovos
dentro do corpo durante algum tempo ou guardando-os após a postura. Por todos
esses motivos, na maioria das espécies animais, as fêmeas são maiores que os
machos.
Esse sistema pode ser suplantado quando os machos desenvolvem uma
forma de competição com outros machos em que o tamanho grande é favorecido
na obtenção de contato sexual com as fêmeas. Essas formas de competição são
destrutivas em termos de conceitos teóricos tais como “o bem da espécie”. Mas o
darwinismo diz respeito à luta de organismos individuais para transmitirem mais
de seus genes às gerações futuras. A melhor indicação de que nosso mundo é
darwiniano reside nos casos de evolução destinada unicamente à vantagem
individual — como quando os machos se tornam maiores porque têm de
competir como indivíduos, em batalha ou em exibição sexual, para ganhar
acesso às fêmeas.
Esta forma de competição geralmente exige um grau razoável de
inteligência, já que tais ações complexas implicam repertórios comportamentais
flexíveis e amplos. Assim, existe a tendência para encontrarmos o padrão
incomum ou inverso, de machos maiores, nas chamadas criaturas superiores,
com cérebros consideráveis. Esta correlação de complexidade e poder mental
provavelmente explica por que, de todos os grupos com um grande número de
hermafroditas sequenciais, apenas os vertebrados desenvolveram a protoginia
como padrão mais comum do que a protandria. Quando olhamos a história
natural da maioria dos peixes protogínicos, percebemos que os imperativos
comportamentais baseados na competição macho-macho condicionaram o
padrão de fêmea primeiro, com mudança posterior para machos maiores.
Douglas Y. Shapiro, por exemplo, estudou a inversão de sexo no Anthias
squamipinnis, um peixe tropical marinho de águas rasas, que habita recifes de
coral em grupos sociais estáveis de mais ou menos oito fêmeas para um macho
(ver Bibliografia). A competição entre machos para guardar e manter os seus
grupos pode ser intensa. A remoção de um macho induz uma fêmea a mudar de
sexo, e esta transição inclui uma série de características úteis à manutenção da
custódia de várias fêmeas: a mudança para coloração mais vistosa, espinhas das
nadadeiras maiores, flâmulas da nadadeira caudal mais elaboradas e tamanho
maior.
A distribuição da protandria e da protoginia oferece uma ilustração ainda
melhor da preferência da natureza por fêmeas maiores que a simples
documentação de machos permanentemente menores em insetos e peixes.
Machos e fêmeas permanentes representam sistemas estáticos que podem manter
a sua relação de tamanho por uma série de outros motivos. Mas quando
descobrimos que a mudança ativa de sexo em geral ocorre de macho para fêmea,
devemos buscar algum motivo direto fundamentado nas vantagens gerais do
tamanho maior das fêmeas.
Poderíamos buscar uma ilustração ainda melhor, uma que os animais,
infelizmente, devido ao seu modo de crescimento, não têm como oferecer. Em
termos ideais, gostaríamos de encontrar uma criatura que muda de sexo em
qualquer direção, mas que se torna fêmea quando fica maior e macho quando
fica menor. Podemos ter esperanças de encontrar tal caso ideal na natureza, a
confirmação de um princípio geral em uma única criatura? (Enquanto formos
obrigados a defender o princípio usando como exemplo várias criaturas, seremos
perseguidos pela inquietante possibilidade de termos entendido tudo errado —
que a protoginia é dominante nos peixes não porque eles são avançados no que
diz respeito ao comportamento e ilustram o princípio de Darwin da competição
individual, mas em virtude de alguma propriedade desconhecida e peculiar da
condição de peixe. Porém, se formos capazes de encontrar ambos os fenômenos
na mesma criatura, uma explanação unificada parece garantida.) Mas, temos
algum direito de esperar da natureza tal exemplo ideal? Afinal, os animais, salvo
exceções bastante raras, nunca diminuem de tamanho e, portanto, não servem.
Um dos primeiros artigos sobre a mudança de sexo na Crepidula, escrito em
1935, terminava com estas palavras: “A transformação sexual na Crepidula,
assim como a metamorfose em outros animais, pode ser acelerada ou retardada
experimentalmente, mas não pode ser revertida.”
A natureza conseguiu de novo — ela sempre consegue. O organismo ideal
foi descoberto. Infelizmente, o tópico geral de minha deplorável e profunda
ignorância é uma planta. As plantas podem sofrer substancial redução de
tamanho, por diversos motivos e sem morrer. Nosso exemplo é um habitante
comum e atraente dos nossos bosques do leste, Arisaema triphyllum, o
“joãozinho-no-púlpito” (Na verdade, a tradução correta de jack-in-the-pulpit, Arisaema Tryphilum,
seria nabo selvagem. A solução “joãozinho-no-púlpito” é uma exigência do texto, como se pode ver a
seguir - N.T.). Os resultados foram recentemente relatados por meu amigo David
Policansky no sóbrio Proceedings of the National Academy of Sciences (ver
Bibliografia). (Confesso que meu interesse anterior por esta planta restringia-se
virtualmente a ficar imaginando se a sua forma plural incluía um joãozinho e
vários púlpitos, como na maioria das palavras, ou vários joãozinhos e um
púlpito, como aqueles velhos terrores da gramática do colegial, os cavalos-vapor
e os navios-escola. Reparei que este assunto deve confundir também outras
pessoas, porque as duas referências que descobri ao trabalho de Policansky
evitam cuidadosamente a questão e, desafiando as regras da gramática, usam o
singular em todos os casos. Eu opto por vários púlpitos, embora saiba que cada
um deles carrega um joãozinho. Ou será que eles são como os louva-a-deus,
afinal? - Um leitor deu a óbvia e elegante sugestão para este dilema de eras — “joãozinhos-em-púlpitos”.
Que estupidez a minha não ter pensado nisso antes).
As flores da maioria das plantas (mas não de todas, absolutamente) contêm
tanto estruturas masculinas quanto femininas. Mas o joãozinho-no-púlpito é uma
coisa ou outra. A parte sexual da flor contém ou anteras, a estrutura sexual do
macho, ou ovários coroados por estigmas. As plantas menores, os machos, têm
uma folha, enquanto as fêmeas, maiores, geralmente desenvolvem duas. Durante
um estudo de três anos nos bosques Eastbrook, em Concord, Massachusetts,
Policansky marcou e registrou 2.038 plantas; 1.224 eram machos com uma
altura média de 336 mm, enquanto as 814 fêmeas tinham por volta de 411 mm.
O chamado modelo de mudança de sexo da “vantagem de tamanho’’ prevê,
para o caso costumeiro de machos maiores, que uma transição de macho para
fêmea deveria ocorrer nos casos em que qualquer aumento adicional de tamanho
passasse a beneficiar mais a fêmea (em termos de produção de sementes) do que
o macho. (Lembre-se de que machos pequenos podem produzir uma
superabundância de espermatozoides, e que, portanto, um tamanho maior
oferece relativamente pouca vantagem, ao passo que o benefício para as fêmeas
pode ser substancial.) Valendo-se de dados sobre o aumento do número de
espermatozoides e de sementes em relação ao tamanho, Policansky calculou que,
na teoria, esta transição deveria ocorrer aos 398 mm no joãozinho-no-púlpito.
Ele então descobriu que, na natureza (ou pelo menos em Concord), 380 mm é a
linha divisória — um resultado bem próximo da teoria. Abaixo desta altura, ele
encontrou mais machos do que fêmeas; acima, mais fêmeas do que machos.
Ele também pôde averiguar diretamente que as plantas macho tendiam a se
transformar em fêmeas à medida que cresciam durante o curso normal de vida.
Além disso, e esta é a observação fundamental, os indivíduos mudavam de
fêmea para macho por ocasião das circunstâncias, mais incomuns, que
ocasionalmente levam uma planta a ficar menor. A diminuição de tamanho
ocorreu por três motivos: quando parte da planta foi comida (quando a
mariazinha quebra o cocoruto, o joãozinho vem depois); quando a planta passou
a ficar na sombra e, consequentemente, teve o crescimento atrofiado; e quando
produzira um número excepcionalmente grande de sementes na estação anterior,
também inibindo desse modo o aumento de tamanho, devido ao desvio da maior
parte da energia para as próprias sementes.
Assim, com a mudança em ambas as direções se conformando ao modelo de
vantagem de tamanho e seguindo o padrão usual da natureza, de machos
menores e fêmeas maiores, o joãozinho-no-púlpito oferece, sozinho, uma
adorável ilustração dos erros de nossas costumeiras, estreitas, percepções e
pressuposições a respeito do tamanho relativo dos sexos — e uma excelente
confirmação de um importante princípio da biologia darwiniana. Ele também
nos ajuda a entender por que, se o homem é a medida de toda as coisas, a
mariazinha precisa de um púlpito mais espaçoso.
Os sifonóforos pertencem ao filo Cnidaria (ou Coelenterata). Dois aspectos
da biologia dos cnidários estabelecem o contexto do nosso paradoxo. Primeiro,
muitos cnidários vivem em colônias de indivíduos ligados — nossos recifes
maciços de coral são gigantescos amontoados compostos por vários milhões de
pólipos minúsculos e conjugados. Segundo, o ciclo vital dos cnidários apresenta
uma, assim chamada, alternância de gerações. O pólipo séssil, um cilindro fixo
com uma orla de tentáculos, reproduz-se assexuadamente e gera, por meio de
brotamento, medusas, ou “águas-vivas”, que nadam livremente. A medusa
produz células sexuais que se unem e formam um pólipo. E por aí vai.
Diferentes tipos de cnidários podem enfatizar uma dessas gerações e
suprimir a outra. Dos três grupos cnidários principais, o grupo Scyphozoa (ou
águas-vivas verdadeiras) abandonou os pólipos e enfatizou as medusas, ao passo
que o grupo Anthozoa (ou corais verdadeiros) dispensou as medusas e construiu
recifes de pólipos e de seus esqueletos. No terceiro grupo, o Hydrozoa, muitos
membros mantêm o ciclo completo, com pólipos e medusas distintos. Os
sifonóforos são hidrozoários. A literatura técnica, que geralmente não se destaca
nem pelo seu encanto nem pela falta de rodeios, transcendeu suas costumeiras
limitações neste caso: em meio a uma profusão medonha de termos técnicos
aplicados às outras partes da anatomia cnidária, ela se refere ao estágio polipóide
e ao medusóide de um único ciclo vital como “indivíduos”.
A caravela, com flutuador em cima e tentáculos embaixo, à primeira vista
parece uma água-viva (isto é, uma única medusa). Quando estudada com maior
minúcia, descobrimos que esta arma flutuante é uma colônia de vários
indivíduos, tanto polipóides quanto medusóides. O pneumatóforo, ou flutuador,
é provavelmente uma grande medusa modificada (embora alguns cientistas
achem que ele pode ser um pólipo ainda mais alterado). Os “tentáculos”, apesar
de especializados para os diferentes papéis de captura de comida, digestão e
reprodução, não são simples partes de uma água-viva, mas pólipos modificados
— isto é, cada tentáculo surge como um indivíduo distinto. (Outro sifonóforo
comum, a Velella, literalmente a “pequena vela’’, mas que popularmente
recebeu o adorável nome de “by-the-wind-sailor” [Algo como “marinheiro ao sabor do
vento” - N. T.], provoca ainda mais confusão. Os seus indivíduos são bem poucos e
tão bem coordenados que a colônia parece um simples flutuador rodeado de
tentáculos — em outras palavras, uma simples água-viva. No entanto, o
flutuador é um indivíduo medusóide e cada tentáculo, um indivíduo polipóide.)
[Dei uma aula sobre este ensaio pouco depois da sua publicação e repeti para
meus ávidos alunos a frase fundamental: “Vocês achavam que a caravela era
uma água-viva, mas ela não é.” Mais tarde, durante o semestre, fiquei
horrorizado quando uma aluna me contou que havia perdido uma partida de
Master por ter dado a resposta correta à pergunta: “O que é uma caravela?”
Vocês acreditam que os Sólons da cultura pop proclamaram esta colônia como
sendo uma água-viva? Está lá, no eartãozinho azul, e portanto tem de ser isso.
Mas, ainda assim, ela não é!] Se este grau de divisão de trabalho entre indivíduos
o impressiona, a natureza tem muito mais a oferecer. A Physalia e a Velella são
sifonóforos simples, com relativamente poucos tipos de indivíduos modificados.
Os sifonóforos mais complexos são, sem dúvida, as colônias mais integradas da
natureza. As suas partes revelam-se tão diferenciadas e especializadas, tão
subordinadas à totalidade da colônia, que funcionam mais como órgãos de um
corpo do que como indivíduos de uma colônia.
A maioria dos sifonóforos são criaturas pequenas e transparentes do mar
aberto. Eles flutuam entre o plâncton da superfície ou nadam ativamente, em
geral a baixas profundidades. Sendo carnívoros, capturam pequenos animais
planctônicos em sua rede de tentáculos. Sifonóforos maiores, a Physalia entre
eles, conseguem capturar e devorar peixes de porte considerável; como bem
sabem muitos de nós, para nossa infelicidade, eles podem infligir dolorosas
“queimaduras” em banhistas humanos.
Os sifonóforos complexos contêm uma série impressionante de estruturas
bem diferenciadas. Seus corpos podem ser divididos, grosso modo, em duas
partes: um conjunto superior de bulbos e bombas para locomoção e um conjunto
inferior de tubos e filamentos para alimentação e reprodução. Cada parte contém
uma série de pólipos e medusas diferenciadas.
Considere-se primeiro a variedade de formas e atividades que os indivíduos
polipóides assumem. Encontramos três tipos básicos e uma miríade de
modificações. Os órgãos alimentares, ou sifões (daí o nome do grupo —
sifonóforo significa “portador de sifão”), são estruturas tubulares, cada uma com
um estômago e uma boca em forma de trombeta, que na maioria das vezes
pendem em abundância abaixo dos flutuadores e indivíduos natatórios. Os sifões
são indivíduos polipóides muito pouco modificados, e é fácil compreender a sua
origem como organismos completos. Todos os outros tipos de pólipos (e a
maioria das medusas) são mais altamente alterados e especializados, e, portanto,
mais difíceis de ser ligados à sua personalidade original. Uma segunda ordem de
indivíduos polipóides, os chamados datilozóides (“animais-dedo”, ou que
tocam), capturam e transportam a comida para os sifões. Os datilozóides
compreendem os tentáculos finos e longos, às vezes com mais de quinze metros
de comprimento na Physalia, que carregam os dolorosos nematocistos, ou
células urticantes, e formam uma teia transparente para apanhar as presas. Eles
não conservaram nem a boca, nem o aparelho digestivo, e poderiam ser
facilmente tomados por órgãos em vez de indivíduos, caso não pudéssemos
rastrear sua origem como brotos distintos em crescimento.
Essas partes de captura muitas vezes exibem uma complexidade notável de
forma e função. As células urticantes podem estar concentradas em
protuberâncias, ou “baterias”, às vezes protegidas por uma tampa. Na
Stephanophyes, cada bateria se prolonga num delicado filamento terminal e
contém cerca de 1.700 células urticantes de quatro tipos diferentes. O filamento
terminal laça a presa e dispara as suas poucas células urticantes. Caso essas
células não consigam matar a vítima, o filamento se contrai e carrega a presa
para a extremidade mais distante da própria bateria, onde outra descarga de
células urticantes maiores paralisa a vítima. Se a presa continua a lutar, outra
contração a desloca bateria acima até a extremidade próxima, onde as células
urticantes maiores e mais poderosas finalmente põem fim ao tormento, antes de
mandar a presa vencida para o sifão a fim de ser ingerida.
Jennifer E. Purcell (ver Bibliografia) apresentou recentemente evidências
adicionais de que os indivíduos alimentadores e captores não constituem uma
simples rede passiva, como a teia de uma aranha, mas que desempenham um
papel ativo na obtenção de comida. Ela descobriu que as baterias de células
urticantes de duas espécies funcionam como chamarizes, lembrando, tanto na
forma quanto no movimento, o zooplâncton pequeno que serve de presa para os
animais ingeridos pelos sifonóforos. As baterias da Agalma okeni parecem um
copépode com duas longas antenas; cada uma se contrai de modo independente
em intervalos variáveis de cinco a trinta segundos, criando uma série de
movimentos que simula as arrancadas e o modo de nadar de um cardume de
copépodes (cardume ou seja lá qual for o nome que se dá a um agregado desses
minúsculos artrópodes planctônicos). Para finalizar a história, Purcell abriu os
estômagos da Agalma e encontrou os restos de três criaturas, todas predadoras de
copépodes. As baterias de outra espécie, a Athorybia rosacea, lembram as larvas
planctônicas de peixes. Elas também se contraem rapidamente, imitando os
movimentos de natação e alimentação dos seus modelos.
Os gonozóides, a terceira categoria de indivíduos polipóides, são estruturas
reprodutoras. Trata-se em geral de tubos simples, pequenos, sem boca ou
movimento. Mas deles brotam os indivíduos medusóides, os quais produzem
então células reprodutoras que darão origem à geração seguinte de sifonóforos.
Os indivíduos medusóides de um sifonóforo complexo compreendem quatro
tipos básicos: natatórios, flutuadores, protetores e reprodutores. Os órgãos
natatórios, ou nectóforos, são medusas com modificações mínimas —
basicamente as campânulas natatórias superiores sem os tentáculos inferiores.
Alguns sifonóforos carregam várias fileiras ordenadas de nectóforos; as suas
contrações musculares rítmicas impelem a criatura, muitas vezes em trajetórias
elaboradas, arqueadas. Os flutuadores passivos, ou pneumatóforos, são cheios de
gás (de composição semelhante à do ar comum) e mantêm o sifonóforo na
superfície ou em alguma profundidade intermediária. Sua origem é um objeto de
controvérsia. Tidos durante um bom tempo como indivíduos medusóides
modificados, alguns biólogos agora consideram os pneumatóforos como pólipos
ainda mais elaboradamente transformados. Os dois sifonóforos mais conhecidos,
a Velella e a Physalia, constroem grandes flutuadores mas não possuem nenhum
nectóforo. Movem-se passivamente, portanto, ao sabor dos ventos e correntes,
muitas vezes sendo carregados em grande número para baías e praias.
Os órgãos de cobertura, ou brácteas, são as estruturas mais curiosamente
modificadas de todas. Costumam ser chatas, com o formato de prisma ou folha, e
tão diferentes em forma e função de um indivíduo medusóide que dificilmente
suspeitaríamos de sua origem se não pudéssemos acompanhar seu crescimento e
seu brotamento.
As medusas reprodutoras, ou gonóforos, brotam de indivíduos polipóides, os
gonozóides discutidos anteriormente. Em algumas poucas espécies, os gonóforos
são libertados para flutuar no oceano como objetos independentes. Mas eles não
podem se alimentar e morrem pouco depois de lançarem suas células sexuais. Na
maioria dos sifonóforos, porém, os gonóforos nunca se separam da colônia-mãe
e permanecem grudados a ela como uma espécie de órgão sexual.
O paradoxo dos Siphonophora expressa uma questão que venho evitando, ou
melhor, que venho contornando, ao apresentar essa taxonomia de indivíduos ou
partes. Descrevi as diversas estruturas natatórias, flutuadoras, protetoras,
alimentares, captoras e reprodutoras como indivíduos — isto é, como
organismos polipóides ou medusóides individuais. Usando a história
evolucionária como critério, esta designação é, quase com certeza, correta e
aceita por praticamente todos os biólogos. Pela história, os sifonóforos são
colônias; eles evoluíram a partir de agregados mais simples de organismos
distintos, cada um deles razoavelmente completo e capaz de executar uma série
de funções (como nas modernas colônias de coral). Mas a colônia tornou-se tão
integrada, e os diferentes indivíduos tão especializados em forma e tão
subordinados ao todo, que o agregado inteiro agora funciona como um único
indivíduo, ou superorganismo.
Os indivíduos de um sifonóforo não conservam mais a sua individualidade
num sentido funcional. Estão especializados para uma única tarefa e atuam como
órgãos de uma entidade maior. Não parecem organismos e não poderiam
sobreviver como criaturas separadas. A colônia inteira funciona como um único
ser, e as suas partes (ou indivíduos) movem-se de maneira coordenada. Embora
cada nectóforo (ou campânula natatória) conserve seu próprio sistema nervoso,
um aparelho nervoso comum liga o conjunto inteiro. Os impulsos ao longo desse
caminho regulam as fileiras de nectóforos de uma maneira integrada que permite
que toda a colônia (ou animal) se mova com graça e precisão. Tocando-se o
flutuador da Nanomia em uma ponta, os nectóforos da outra extremidade
contraem-se para remover o animal (ou colônia, se quiserem) do perigo. Os
sifões bombeiam a comida digerida ao longo do tubo comum ao resto da colônia,
mas os sifões vazios também se juntam à peristalse geral, e, como resultado, a
comida chega à colônia (ou organismo) inteira de modo mais eficaz.
Os premeditados parênteses do último parágrafo sublinham o paradoxo
fundamental. Saber se devemos chamar o sifonóforo de colônia ou organismo —
pois ele é uma colônia pela história evolutiva mas, pelas funções atuais, parece
mais um organismo. E o que dizer das partes ou indivíduos? Pela história, trata-
se de entidades individuais modificadas; pela função atual, trata-se de órgãos de
uma entidade maior. O que se deve fazer?
Esta questão alimentou o grande debate dos sifonóforos na história natural
do século XIX. T. H. Huxley estudou sifonóforos durante seu longo período de
aprendizado no mar, a bordo do H. M. S. Rattlesnake (menos famoso que a
aventura de Darwin no Beagle, mas também exemplo do mesmo estilo amplo,
exemplar e, em boa parte, extinto, de treinamento em história natural). Ele
interpretou os sifonóforos como organismos convencionais, as suas partes como
órgãos verdadeiros e não como indivíduos modificados. Huxley usou os
sifonóforos como exemplo principal num famoso ensaio sobre a natureza da
individualidade na biologia.
Louis Agassiz estudou a “caravela-portuguesa” nos litorais de seu país
adotivo, os Estados Unidos (incluí neste ensaio sua bela litografia de Physalia) e
decidiu que os sifonóforos são uma colônia, e a sua integração um sinal da obra
divina.
Ernst Haeckel, artista e naturalista extraordinaire, descreveu os sifonóforos
coletados durante uma das mais famosas expedições científicas de oceanografia,
a viagem do H. M. S. Challenger, 1873-1876. Com seu relato ele publicou uma
série de gravuras (da qual fazem parte todas as outras que ilustram este ensaio),
desde então inigualáveis em beleza (embora um tanto deficientes em precisão, já
que Haeckel muitas vezes acrescentava um toque de simetria mais acentuada em
benefício do efeito artístico). Haeckel também inclui várias gravuras de
sifonóforos no seu Kunstformen der Natur (Formas artísticas na natureza) de
1904 — a grande série de cem litografias, com plantas e animais dispostos de
forma fantasticamente distorcida, com uma simetria ondulante, na melhor
tradição da então reinante art nouveau, tão bem personificada nos quiosques
contemporâneos do metrô de Paris.
A teoria dos sifonóforos de Haeckel exigiria um ensaio inteiro para ser
explicada e explorada, mas ele tentou uma mediação entre Huxley e Agassiz,
considerando essas criaturas em parte como colônias (a teoria poliindividual, em
suas palavras) e em parte como organismos (a teoria poliorgânica). Haeckel
também usou os sifonóforos, como Huxley o fizera, para ilustrar, por meio de
uma dúbia analogia, as suas opiniões sobre a organização apropriada das
sociedades humanas. No seu Über Arbeitsheilung in Natur und Menschenleben
(Sobre a divisão de trabalho na natureza e na vida humana), ele comparou as
colônias simples de outros cnidários com o estilo de vida dos humanos
“primitivos” e a sua divisão limitada de trabalho, aplicada a tarefas repetitivas,
executadas por todos: “Os povos selvagens da natureza, que permaneceram no
nível mais baixo até nossos dias, carecem tanto de cultura quanto de divisão de
trabalho — ou limitam a divisão de trabalho, como a maioria dos animais, às
diferentes tarefas dos dois sexos.” Ele então comparou as colônias complexas de
sifonóforos com os “avanços” que a divisão de trabalho permite nas sociedades
humanas “superiores” — inclusive a guerra moderna, onde instrumentos de
destruição “requerem centenas de mãos humanas, trabalhando de modos e
maneiras diferentes”.
Podemos sugerir agora alguma solução para este velho debate, alguma
mediação possível entre dois critérios legítimos que parecem oferecer resultados
antagônicos — o critério da história sustentando a teoria poliindividual (os
sifonóforos são colônias, e as suas partes são indivíduos) e o critério da função
atual sustentando a teoria poliorgânica (os sifonóforos são organismos, e as suas
partes são órgãos)? Podemos inclinar a balança a favor de um ou de outro
parecer invocando o terceiro grande critério da história natural — crescimento e
forma?
O crescimento e a forma nos fornecem um embarras de richesse ao nos
apresentar evidências a favor e contra ambas as teorias. Como forte ponto a
favor da teoria poliorgânica, os sifonóforos se desenvolvem a partir de um único
óvulo fertilizado. Um sifonóforo começa a vida inequivocamente como um
indivíduo — não deveríamos considerar qualquer desenvolvimento posterior
como uma elaboração deste indivíduo fundador? Além disso, o sifonóforo adulto
age como um objeto distinto. Muitas espécies exibem uma simetria definida e
complexa que governa todas as partes consideradas em conjunto. Algumas
caravelas, por exemplo, surgem em versões destras e canhotas.
Contudo, podemos também citar bons argumentos a favor da teoria
poliindividual. Sabe-se que cada colônia inicia a vida como um óvulo único, mas
então desenvolve uma série de entidades — indivíduos plenos, neste sentido —
por meio de brotamento a partir de um talo comum. Este modo de crescimento é
familiar em muitos agregados convencionalmente considerados como colônias.
Um pé de bambu pode ter sua origem remontada a uma única semente, e, no
entanto, em geral vemos cada caule brotado como um indivíduo.
Além disso, estruturas altamente especializadas às vezes carregam partes
vestigiais que servem de testemunho da sua condição de indivíduos. Na teoria
poliindividual, por exemplo, os nectóforos são medusas que perderam todos os
órgãos alimentares e digestivos, conservando apenas o guarda-chuva das águas-
vivas. Por outro lado, alguns nectóforos desenvolvem tentáculos rudimentares;
existe uma espécie em que os tentáculos conservam até mesmo os ocelos. As
brácteas protetoras são as partes mais modificadas e especializadas dos
sifonóforos, mas as brácteas de duas espécies conservam uma boca vestigial —
uma indicação de que elas surgiram como indivíduos medusóides plenos.
Mais uma vez a questão parece duvidosa. Poderíamos solucionar nosso
paradoxo se o crescimento ocorresse em um dos dois modos — mas a natureza
não é obsequiosa. Se todas as estruturas iniciassem o crescimento como
indivíduos completos, com um conjunto completo de órgãos, e então perdessem
os pedaços desnecessários à medida que se especializassem para as funções de
nadar, proteger ou comer, a teoria poliindividual ganharia um bom impulso. Se
os brotos do talo principal começassem como indivíduos completos e então se
desarticulassem — as partes em forma de campânula tornando-se nectóforos e as
partes tentaculares tornando-se sifões, por exemplo — então a teoria
poliorgânica se afirmaria. Mas a maioria das partes especializadas simplesmente
cresce como as encontramos. Os nectóforos diferenciam-se como nectóforos, as
brácteas como brácteas. Estamos imersos num conflito insolúvel entre critérios
igualmente legítimos: brotos distintos crescem como um indivíduo com partes
especializadas como um órgão. O que dizer, por exemplo, de um gonóforo, a
medusa reprodutora degenerada que brota de um pólipo? Se ela se separa da
colônia, podemos achar melhor considerar o gonóforo como um organismo. Mas
ela não tem boca e não pode se alimentar: deve, portanto, morrer após liberar as
células sexuais. Deveríamos chamar de indivíduo uma máquina reprodutora tão
limitada? E se o gonóforo permanece ligado à colônia, como geralmente faz,
deveríamos considerá-lo como algo mais que um órgão sexual?
Quando uma investigação se torna tão intrincada, somos obrigados a
suspeitar que estamos indo pelo caminho errado. Temos de voltar, mudar as
marchas, e reformular o problema, não perseguir cada nova minúcia de
informação ou nuance de argumento no velho estilo, o tempo todo com a
esperança de que a nossa arredia solução aguarda um item crucial ainda não
descoberto.
Em alguns aspectos, a natureza se nos apresenta como continuidades, não
como objetos distintos com fronteiras nítidas. Uma das muitas continuidades da
natureza parte das colônias, numa ponta, até os organismos, na outra. Mesmo os
termos básicos — organismo e colônia — não têm definições precisas e
inequívocas. Podemos, porém, usar os dois critérios do nosso vernáculo como
guia. Inclinamo-nos a chamar um objeto biológico de organismo se ele não
mantiver nenhuma ligação física permanente com outros, e se as suas partes
forem tão bem integradas que operem apenas em coordenação e para o
funcionamento adequado do todo.
A maioria das criaturas encontra-se perto de uma ponta ou da outra dessa
continuidade, e não temos nenhum problema para defini-las como organismos
ou colônias. As pessoas são organismos — embora todas as criaturas
multicelulares tenham provavelmente surgido como colônias há cerca de um
bilhão de anos. Essa origem é tão distante, e tanta coisa aconteceu desde então,
que não detectamos nenhum sinal dessa condição de colônia em nosso
funcionamento atual. Assim, somos organismos em qualquer acepção sensata do
termo. Os corais construtores de recifes são colônias porque cada pólipo é uma
criatura completa, independente, plenamente funcional por si só, apesar de
ligada a seus semelhantes.
Mas como a natureza construiu uma continuidade que vai da colônia ao
organismo, devemos encontrar ambiguidade no centro. Será impossível dar
nome a alguns casos — devendo-se isso a uma propriedade da natureza e não a
uma imperfeição do conhecimento. Considere-se uma progressão que vai de um
organismo inequívoco até o centro indefinível. As sociedades humanas são feitas
de organismos; cada pessoa é geneticamente distinta e espacialmente separada. E
as formigas? Ainda optamos pela denominação de organismos, embora as
formigas possam submergir sua individualidade em sociedades constituídas de
modo tão rígido que alguns naturalistas se referem a uma colônia de formigas
como um superorganismo.
E os afídios? A nitidez começa a se desfazer. Todos os membros de um
clone de afídios são fêmeas; cada mãe fundadora desenvolve seus filhos dentro
do próprio corpo sem fecundação. Toda a sua prole é geneticamente idêntica. O
clone é um agregado de indivíduos separados ou um corpo evolucionário gigante
com vários milhares de partes separadas, todas idênticas? (Um proeminente
biólogo evolucionário recentemente defendeu este segundo parecer).
E um pé de bambu? Mais difícil ainda. Todos os caules são membros de um
clone; são idênticos geneticamente e ligados a um rizoma subterrâneo comum.
Cada planta acima do chão é um indivíduo ou uma parte? Em geral, ainda
optamos por indivíduos (embora alguns biólogos levantem objeções) porque
cada planta parece quase a mesma coisa e tem um conjunto completo de
estruturas (Como os botânicos enfrentam este dilema com mais frequência que os zoólogos, eles criaram
uma terminologia para esses casos ambíguos — “touceira” para o agregado inteiro e “ramos” para cada
conjunto repetido de partes. Essa nova terminologia não é uma solução, mas apenas um reconhecimento
formal de que a questão não pode ser solucionada com nossos conceitos usuais de individualidade).
Por fim, o que dizer, então, dos sifonóforos? Estamos bem no meio de uma
continuidade, e não podemos oferecer uma resposta clara. Pela história, as partes
de um sifonóforo são indivíduos; pela função atual, órgãos, pelo crescimento,
um pouco de cada coisa. Nossos critérios de separação e operação independente
falharam, mas não podemos rejeitar uma história que ainda está bem diante dos
nossos olhos.
Os sifonóforos não transmitem a mensagem — um tema favorito do
romantismo irracional — de que a natureza nada mais é que um todo gigantesco,
com todas as suas partes intimamente ligadas e interagindo numa harmonia
superior, inefável. A natureza compraz-se com fronteiras e distinções; habitamos
um universo de estruturas. Mas como o nosso universo de estruturas evolui
historicamente, ele nos oferece fronteiras imprecisas, onde um tipo de coisa se
converte gradualmente em outra. Os objetos presentes nessas fronteiras
continuarão a nos confundir e frustrar enquanto persistirmos em seguir velhos
hábitos de pensamento e insistirmos em que todas as partes da natureza sejam
rigidamente classificadas para satisfazer os nossos pobres e sobrecarregados
intelectos.
O paradoxo do sifonóforo tem uma respostazinha, e até que profunda. A
resposta é que fizemos a pergunta errada — uma pergunta que não tem nenhum
significado porque seus pressupostos violam os processos da natureza. Os
sifonóforos são organismos ou colônias? Os dois e nenhum; eles se encontram
no meio de uma continuidade, onde uma coisa se transforma gradualmente em
outra.
O paradoxo do sifonóforo é esclarecedor, não desalentador. Não pode ser
solucionado, mas quando compreendemos por que, compreendemos uma grande
verdade sobre a estrutura da natureza. Os sifonóforos transmitem a mesma
mensagem que aquele velho caso da senhora que vai ao açougue certa manhã de
sexta-feira, procurando um frango grande para a refeição do sábado. O
açougueiro olha no depósito e descobre com pesar que só tem um animal bem
magro. Ele o retira com ostentação e coloca-o na balança. Duas libras. “Muito
pequeno”, diz a senhora. Ele leva embora o animal, finge procurar outro em
meio a uma pilha de alternativas inexistentes, tirando por fim o mesmo frango,
colocando-o na balança, desta vez, dando uma ajudazinha com o polegar. Três
libras. “Ótimo”, diz a senhora. “Vou levar os dois” (O dr. S. I. Joseph contou-me depois
ter visto a mesma senhora mais tarde, naquele mesmo dia, numa barraca de frutas. Ela estava perguntando
pelo preço da toranja. “Duas por trinta e cinco cents”, disseram. “Quanto custa uma?”, ela perguntou.
“Vinte cents”, foi a resposta. “Ótimo”, ela disse: “Vou levar a outra”). Coisas que parecem
separadas muitas vezes são os lados diferentes de uma unidade.
2. Teoria e percepção
6. O umbigo de Adão
A ampla folha da figueira serviu muito bem aos nossos antepassados
artísticos como um escudo botânico contra a exibição indecente de Adão e Eva,
nossos progenitores nus, na primitiva bem-aventurança e na inocência do Éden.
Contudo, em várias pinturas antigas, a folhagem esconde mais do que os órgãos
genitais de Adão; um ramo serpenteante cobre também o seu umbigo. Se o pudor
prescrevia a cobertura genital, um motivo bem diferente — o mistério — punha-
lhe uma planta sobre o ventre. Num debate teológico mais portentoso que a
velha discussão sobre anjos em cabeças de alfinetes, muitos fiéis sinceros
perguntaram a si mesmos se Adão tinha ou não umbigo.
Afinal, ele não nascera de uma mulher e não precisava de nenhum resquício
de seu cordão umbilical inexistente. No entanto, ao criar um protótipo, Deus não
faria o primeiro homem como todos os outros que viriam a seguir? Deus não
iria, em outras palavras, criá-lo com a aparência de preexistência? Na falta de
uma orientação definida para a solução desse embaraçoso problema, e não
querendo incorrer na ira de ninguém, muitos pintores literalmente cercaram e
cobriram o ventre de Adão.
Alguns séculos mais tarde, quando a então nascente ciência da geologia
colhia provas da imensa antiguidade da Terra, alguns defensores da interpretação
literal da Bíblia ressuscitaram essa velha discussão, aplicando-a ao planeta
inteiro. Os estratos geológicos e os fósseis neles sepultados certamente pareciam
representar um registro sequencial de incontáveis anos, mas Deus não criaria a
Terra com a aparência de preexistência? Por que não deveríamos acreditar que
ele criou as camadas geológicas e os fósseis para dar à vida moderna uma ordem
harmoniosa, conferindo-lhe um sensato (ainda que ilusório) passado? Assim
como Deus proporcionou um umbigo a Adão para enfatizar a continuidade nos
homens futuros, ele concedeu a um mundo intacto a aparência de uma história
ordenada. Desse modo, a Terra podia ter apenas alguns milhares de anos, como o
Gênesis afirmava literalmente, e ainda assim conservar o registro de uma história
aparente de eras incontáveis.
Esse argumento, tantas vezes citado como exemplo principal da razão em sua
faceta mais perfeita e preciosamente ridícula, foi apresentado com a maior
seriedade e amplitude pelo naturalista britânico Philip Henry Gosse em 1857.
Gosse homenageou adequadamente o contexto histórico ao escolher o título de
seu volume. Ele lhe deu o nome de Omphalos (umbigo, em grego), em
homenagem a Adão, e acrescentou como subtítulo: Uma tentativa de desatar o
nó geológico.
Como Omphalos é um disparate tão espetacular, os leitores podem perguntar,
justificadamente, por que me proponho a discuti-lo. Faço-o, antes de mais nada,
porque o seu autor era um homem muito sério e fascinante, e não um excêntrico
ou incorrigível insatisfeito. Qualquer paixão honesta merece a nossa atenção,
ainda que apenas pelo mais antigo dos motivos já declarado: o famoso Homo
sum: humani nihil a me alienum puto de Terêncio (sou humano e, portanto, não
indiferente a nada que tenha sido feito por humanos).
Philip Henry Gosse (1810-1888) foi o David Attenborough de sua época, o
melhor popularizador na Grã-Bretanha dos fascínios da natureza. Ele escreveu
uma dúzia de livros sobre plantas e animais, fez várias conferências para
públicos populares e publicou várias dissertações técnicas sobre invertebrados
marinhos. Além disso, numa época que encontrava no forte sentimento religioso
um modo de expressar paixões humanas que não tinham outro escoadouro, ele
era um radical e empenhado fundamentalista da seita dos Irmãos de Plymouth.
Embora a sua História das anémonas marinhas britânicas e outras divagações
sortidas de história natural não sejam mais lidas, Gosse mantém certa
notoriedade como a figura paterna daquela obra clássica de auto-análise e
confissão pessoal, típica do fim da era vitoriana, o maravilhoso relato, de autoria
de seu filho Edmund, da luta de um jovem contra o sufocante extremismo
religioso imposto por um pai atencioso e amado — Father and Son.
Meu segundo motivo para considerar Omphalos invoca o mesmo tema que
envolve tantos desses ensaios sobre as pequenas singularidades da natureza:
exceções realmente provam regras (provam, isto é, no sentido de submeter à
prova ou testar, não de confirmar). Se você quer compreender o que as pessoas
comuns fazem, um dissidente sério irá ensiná-lo mais que dez mil sólidos
cidadãos. Quando entendermos por que Omphalos é tão inaceitável (e, a
propósito, não é pelo motivo que comumente se alega), compreenderemos
melhor como a ciência e a lógica útil procedem. De qualquer modo, como
exercício na antropologia do conhecimento, Omphalos não tem paralelo — pois
a sua incomparável estranheza surgiu na mente de um imperturbável inglês, cujo
caráter geral e cenário cultural podem ser vistos como similares aos nossos, ao
passo que os sistemas exóticos de culturas estrangeiras são terra incógnita tanto
pelo conteúdo quanto pelo contexto.
Para compreender Omphalos, devemos começar com um paradoxo. O
argumento de que as camadas geológicas e os fósseis foram todos criados
simultaneamente com a Terra e que apresentam apenas uma ilusão de tempo
decorrido seria apreciado com mais facilidade se o seu autor fosse um teólogo
urbano, de gabinete, sem qualquer sentimento ou afeição pelas obras da
natureza. Mas como era possível que um naturalista entusiástico, que passara
dias, ou melhor, meses, em excursões geológicas, que estudara fósseis por horas
e horas, aprendendo a distingui-los e memorizando seus nomes, ficasse satisfeito
com a perspectiva de que esses objetos de sua devotada atenção nunca
houvessem existido — que fossem, na verdade, uma espécie de piada grandiosa
perpetrada contra nós pelo Senhor de Tudo?
Philip Henry Gosse foi o melhor naturalista descritivo de seus dias. Seu filho
escreveu: “Como compilador de fatos e organizador de observações, ele não teve
rival naquela época.” O problema encontra-se na costumeira caricatura de
Omphalos como sendo uma afirmação de que Deus, ao modelar a Terra, havia
mentido, de modo consciente e elaborado, para testar a nossa fé ou apenas para
satisfazer algum inescrutável acesso de humor arcano. Gosse, tão
fervorosamente comprometido com seus fósseis e com seu Deus, propôs uma
interpretação conflitante, que nos mandava estudar geologia com diligência e
respeitar todos os seus fatos, muito embora eles não possuíssem existência
alguma no tempo real. Quando entendermos por que um empiricista dedicado
pôde aceitar o argumento de Omphalos (“criação com aparência de
preexistência”), só então poderemos compreender as suas falácias mais
profundas.
Gosse inicia sua argumentação com uma premissa central dúbia. Todos os
processos naturais, declarou ele, movem-se infinitamente num círculo: de ovo
para galinha para ovo, de semente para carvalho para semente.
Esta, então, é a ordem de toda a natureza orgânica. Assim que nos achamos
em alguma parte do curso, vemo-nos correndo numa trilha circular, tão
infinita quanto o curso de um cavalo cego num moinho. ... [Nos moinhos
pré-mecanizados, os cavalos usavam antolhos ou, triste dizer, eram
efetivamente cegados, para que continuassem a andar em círculos e não
tentassem seguir em frente, como tendem a fazer os cavalos que se valem de
orientações visuais.] Esta não é a lei de uma espécie particular, mas de todas:
ela permeia todas as classes de animais, todas as classes de plantas, desde a
majestosa palmeira ao protocolo, desde a mônada ao homem: a vida de todo
ser orgânico está girando num círculo interminável, ao qual não se sabe
como atribuir qualquer início. ... A vaca é uma sequencia tão inevitável do
embrião, quanto o embrião é da vaca.
Quando Deus cria, e Gosse não alimentava a menor dúvida de que todas as
espécies haviam surgido por mando divino, sem nenhuma evolução subsequente,
ele deve surgir (ou “irromper”, como escreveu Gosse) em algum lugar desse
círculo ideal. Seja qual for o lugar em que Deus penetra no círculo (ou “coloca a
hóstia da criação”, como expressou metaforicamente Gosse), seu produto inicial
deve carregar traços de estágios anteriores do círculo, mesmo que esses estágios
não tenham qualquer existência no tempo real. Se Deus escolheu criar humanos
como adultos, seus cabelos e unhas (para não falar de seus umbigos)
testemunham um crescimento anterior que nunca ocorreu. Mesmo que ele decida
nos criar como um simples óvulo fertilizado, essa forma inicial implica o ventre
de uma mãe fantasma e dois progenitores inexistentes para a transmissão do
fruto da herança.
A criação nada mais pode ser que uma série de irrupções em círculos...
Supondo que a irrupção tenha ocorrido na parte do círculo que melhor nos
aprouver, e variando indefinidamente esta condição de acordo com nossa
vontade, não podemos evitar a conclusão de que cada organismo foi desde o
início marcado com os antecedentes de um ser anterior. Mas como a criação
e a história anterior são incompatíveis entre si, como a própria ideia da
criação de um organismo exclui a ideia da preexistência desse organismo ou
de qualquer parte dele, conclui-se que, na medida em que testemunham o
tempo, esses antecedentes são falsos.
Gosse então inventou uma terminologia para contrastar as duas partes de um
círculo antes e depois de um ato de criação. Ele denominou como “procrônico”,
ou ocorrendo fora do tempo, as aparências de preexistência efetivamente
modeladas por Deus no momento da criação, mas que parecem indicar estágios
anteriores no círculo da vida. Os eventos subsequentes, que ocorrem após a
criação, e que se desenrolam no tempo convencional ele chamou de
“diacrônicos”. O umbigo de Adão era procrônico, os 930 anos de sua vida
terrena, diacrônicos.
Gosse dedicou mais de trezentos páginas, mais ou menos 90% de seu texto, a
uma simples lista de exemplos para uma pequena parte de sua argumentação
completa, a seguinte — se as espécies surgem por meio de criação repentina em
qualquer ponto de seu ciclo vital, a sua forma inicial deve apresentar aparências
ilusórias (procrônicas) de preexistência. Permitam-me escolher apenas uma
dentre as suas numerosas ilustrações, para caracterizar seu estilo de
argumentação e apresentar sua prosa gloriosamente floreada. Se Deus criou os
vertebrados como adultos, afirmava Gosse, seus dentes indicam um passado
procrônico nos padrões de uso e substituição.
Gosse leva-nos numa excursão imaginária pela vida, apenas uma hora depois
de sua criação no meio selvagem. Ele se detém no litoral e perscruta as ondas
distantes:
Vejo lá ao longe um... terrível tirano do mar. ... E o medonho tubarão. Quão
furtivamente desliza ele. ... Olhemos dentro de sua boca. ... Não é mesmo
uma coleção aterradora de facas e lancetas? Não é mesmo uma valise de
instrumentos cirúrgicos suficiente para lhe dar arrepios? O que seria a
amputação de sua perna para esta fileira de escalpelos triangulares?
No entanto, os dentes crescem em espirais, um atrás do outro, cada um
esperando por sua vez enquanto os dentes em uso se desgastam e caem:
Segue-se, portanto, que os dentes que agora vemos, eretos e ameaçadores,
são os sucessores de dentes antigos que se foram, e que estiveram dormentes
como os que agora vemos por trás deles. ... Daí, os fenômenos obrigam-nos a
atribuir uma longa existência passada a esse animal, ao qual, no entanto, a
vida foi dada há uma hora.
Caso se tente argumentar que os dentes atualmente em uso são os primeiros
membros da espiral, não implicando predecessor algum, Gosse replica dizendo
que o seu estado de desgaste indica um passado procrônico. Caso se sugira que
esses dentes iniciais poderiam estar incólumes num tubarão recém-criado, Gosse
segue rumo a outro exemplo.
Adiante, para um rio mais largo. Aqui chafurda e se diverte o enorme
hipopótamo. O que podemos dizer de sua dentição?
Todos os hipopótamos adultos modernos possuem caninos e incisivos
profundamente desgastados e lascados, um sinal claro de uso ativo no decorrer
de uma longa vida. Não podemos, porém, assim como dizemos com o nosso
tubarão, argumentar que um hipopótamo recém-criado poderia ter dentes frontais
agudos e intactos? Gosse argumenta, corretamente, que nenhum hipopótamo
conseguiria funcionar de forma adequada com dentes em tal estado. Um
hipopótamo criado adulto deve ter dentes gastos como provas de um passado
procrônico:
As superfícies polidas dos dentes, gastos pela ação mútua, fornecem uma
evidência notável do lapso de tempo. Alguém possivelmente pode objetar. ...
“Que direito você tem de supor que esses dentes estavam gastos no momento
de sua criação, admitindo-se que o animal foi criado adulto. Eles não podiam
estar inteiros?” Eu retruco: Impossível: os dentes do hipopótamo ser-lhe-iam
perfeitamente inúteis, exceto em sua condição desgastada: mais ainda, os
caninos intactos teriam efetivamente impedido que suas mandíbulas se
fechassem, sendo necessário então manter a boca escancarada até que o atrito
fosse feito; bem antes do que, é claro, ele morreria de fome. ... O grau de
atrito é meramente uma questão de tempo. ... Que evidência distinta de ação
passada e, no entanto, no caso de um indivíduo criado, quão ilusória!
Isso poderia se prolongar ao infinito (é o que quase acontece no livro), mas
permitam-me apenas mais um exemplo dentário. Gosse, subindo na trajetória
topográfica de sua viagem imaginária, alcança uma floresta interior e encontra a
Babirussa, o famoso porco asiático com caninos superiores salientes que se
voltam para trás, quase perfurando-lhe o crânio:
Na folhagem cerrada deste bosque de noz-moscada há uma babirrussa;
vamos examiná-la. Aqui está ela, quase submersa em seu tépido lago.
Gentil suíno da presa circular, faça o obséquio de abrir sua boca formosa!
O porco, criado por Deus há apenas uma hora, aquiesce, exibindo desse
modo seus molares gastos e, em particular, os próprios caninos arqueados,
produtos de um crescimento prolongado e contínuo.
Acho esta parte da argumentação de Gosse inteiramente satisfatória como
solução, dentro dos limites de seus pressupostos, para aquele clássico dilema de
raciocínio (comparável em importância aos anjos em cabeças de alfinete e ao
umbigo de Adão): “O que veio primeiro, o ovo ou a galinha?” A resposta de
Gosse: “Qualquer um, à vontade de Deus, com traços procrônicos do outro.”
Mas os argumentos são tão bons apenas quanto às suas premissas, e o inspirado
disparate de Gosse fracassa porque uma suposição alternativa, agora aceita como
indubitavelmente correta, torna a questão irrelevante — ou seja, a própria
evolução. Os círculos de Gosse não giram eternamente; cada ciclo vital remonta
a uma linhagem proveniente de substâncias químicas inorgânicas de um oceano
primitivo. Se os organismos surgiram por meio de atos de criação ab nihilo,
então o argumento de Gosse sobre traços procrônicos deve ser respeitado. Por
outro lado, se os organismos evoluíram até o seu estado atual, Omphalos
descamba para a irrelevância colossal. Gosse compreendeu muito bem esta
ameaça e preferiu enfrentá-la rejeitando-a abruptamente. A evolução,
concordava ele, desacreditava o seu sistema, mas apenas um tolo podia aceitar
tão patente bobagem e idolatria. (Gosse escreveu Omphalos dois anos antes que
Darwin publicasse A origem das espécies).
Se alguém prefere sustentar, como muitos fazem, que as espécies foram
gradualmente trazidas à sua atual maturidade a partir de formas mais
humildes... ele tem toda a liberdade de manter a sua hipótese, mas eu nada
tenho a ver com isso. Estas páginas não o tocarão.
No entanto, Gosse veio então a se defrontar com uma segunda e maior
dificuldade: o argumento procrônico pode funcionar para organismos e seus
ciclos vitais, mas como pode ser aplicado à Terra inteira e aos seus registros
fósseis — porque Gosse pretendia que Omphalos fosse um tratado que
reconciliasse a Terra com a cronologia bíblica, “uma tentativa de desatar o nó
geológico”. Suas afirmações sobre partes procrônicas de organismos têm a
finalidade apenas de apoio colateral para o argumento geológico principal. E a
asserção geológica de Gosse fracassa precisamente porque repousa nessa
analogia tão dúbia com aquilo que ele reconhece (já que lhe deu tão mais
espaço) como um argumento muito mais forte sobre os organismos modernos.
Gosse tentou bravamente estender à Terra inteira as mesmas duas premissas
que faziam com que sua argumentação funcionasse quando aplicada aos
organismos. Mas um mundo relutante rebelou-se contra tal raciocínio forçado e
Omphalos desabou sob o peso de toda a sua ilogicidade. Gosse primeiro tentou
argumentar que todos os processos geológicos, assim como os ciclos vitais
orgânicos, se movem em círculos:
O problema a ser solucionado, então, antes que possamos determinar com
certeza a questão da analogia entre o globo e o organismo, é esta: A história
vital do globo é um círculo? Se é (e existem muitos motivos para que isso
seja provável), então estou certo de que o procronismo deve ter sido evidente
na sua criação, já que não existe nenhum ponto em um círculo que não
implique pontos anteriores.
Gosse, porém, nunca poderia documentar qualquer ciclicidade geológica
inevitável, e a sua argumentação se perde num mar de retórica e alusões bíblicas
tiradas do Eclesiastes: “Todos os rios entram no mar, e o mar nem por isso
transborda; os rios voltam ao mesmo lugar de onde saíram para tornarem a
correr.”
Em segundo lugar, para tornar os fósseis procrônicos, Gosse tinha de
estabelecer uma analogia tão cheia de falhas que faria o mais ardente verificador
mental estremecer — o embrião está para o adulto como o fóssil está para o
organismo moderno. Pode-se admitir que galinhas requeiram ovos anteriores,
mas por que deveria um réptil moderno (especialmente para um
antievolucionista como Gosse) estar necessariamente ligado a um dinossauro
anterior como parte de um ciclo cósmico? Um pitão certamente não implica um
sepultamento inelutável de um Triceratops ilusório em camadas geológicas
procrônicas.
Com este compêndio da argumentação de Gosse, temos condições de
resolver o paradoxo proposto no início. Gosse podia aceitar as camadas
geológicas e os fósseis como ilusórios e ainda assim defender o seu estudo
porque ele não considerava a parte “procrônica” de um ciclo menos “verdadeira”
ou informativa do que o seu segmento diacrônico convencional. Deus decretou
dois tipos de existência — uma construída simultaneamente com a aparência de
tempo transcorrido, a outra progredindo sequencialmente. Ambas combinam-se
harmoni-camente para constituir círculos ininterruptos que, em sua ordem e
majestade, nos dão um discernimento dos pensamentos e planos de Deus.
A parte procrônica não é nem uma piada, nem um teste de fé; ela representa
a obediência de Deus à sua própria lógica, dada a sua decisão de ordenar a
criação em círculos. Como pensamentos na mente de Deus, solidificados em
pedra por meio de criação ab nihilo, as camadas geológicas e os fósseis são tão
verdadeiros como se registrassem os produtos do tempo convencional. Um
geólogo deveria estudá-los com o mesmo cuidado e zelo, pois aprendemos as
leis de Deus tanto a partir de seus objetos procrônicos quanto dos diacrônicos. A
escala temporal geológica não é mais significativa como padrão do que como um
mapa dos pensamentos de Deus.
A aceitação dos princípios apresentados neste volume... não afetaria, no
menor grau que fosse, o estudo da geologia científica. O caráter e a ordem
das camadas geológicas; ... as sucessivas floras e faunas; e todos os outros
fenômenos continuariam a ser fatos. Eles continuariam a ser, como são
agora, objetos legítimos de exame e investigação... Ainda poderíamos falar
da duração inconcebivelmente longa do processo em questão, contanto que o
tempo fosse compreendido como ideal, em vez de efetivo — que a duração
foi projetada na mente de Deus, e não que tenha existido realmente.
Assim, Gosse oferecia Omphalos aos cientistas praticantes como uma
solução útil para conflitos religiosos potenciais, não como um desafio aos seus
processos ou à relevância de suas informações.
Seu filho, Edmund, escreveu sobre as grandes esperanças que Gosse nutria
em relação a Omphalos:
Nunca um livro foi lançado com maiores expectativas de sucesso como este
curioso, este obstinado, este fanático volume. Meu pai viveu numa febre de
suspense, esperando pelo tremendo lançamento. Este seu Omphalos, pensava
ele, poria fim a toda a desordem da especulação científica, arremessaria a
geologia nos braços das Escrituras, faria com que o leão pastasse ao lado do
cordeiro.
No entanto, os leitores receberam Omphalos com descrença, escárnio ou,
pior ainda, com um silêncio de espanto. Edmund Gosse prosseguiu:
Ele o ofereceu, com um gesto apaixonado, a ateus e cristãos, igualmente.
Esta tinha de ser a panacéia universal, este, o sistema de terapêutica
intelectual que não poderia deixar de curar todas as doenças da época. Mas,
ai! Ateus e cristãos, igualmente, olharam, riram e jogaram-no fora.
Embora Gosse se reconciliasse com um Deus capaz de criar um passado
ilusório tão minuciosamente detalhado, tal noção era um anátema para a maioria
de seus compatriotas. Os britânicos são um povo prático, empírico, “uma nação
de lojistas”, na famosa expressão de Adam Smith; eles tendem a respeitar os
fatos da natureza de acordo com o seu significado manifesto e raramente veem
com bons olhos os sistemas complexos, de interpretação não óbvia, tão
populares em boa parte do pensamento europeu. O procronismo era
simplesmente demais para se engolir. O reverendo Charles Kingsley, um líder
intelectual de inquestionável devoção tanto a Deus quanto à ciência, deu voz a
um consenso ao declarar que não podia “renunciar à penosa e lenta conclusão de
vinte e cinco anos de estudo de geologia e crer que Deus escrevera nas rochas
uma enorme e supérflua mentira”.
E assim tem acontecido com o argumento de Omphalos desde então. Gosse
não o inventou, e, desde então, uns poucos criacionistas ressuscitaram-no de
tempos em tempos. Mas a ideia nunca foi bem-vinda ou popular porque viola
nossa noção intuitiva da benevolência divina como sendo livre de qualquer
comportamento desonesto — pois, enquanto Gosse via o brilhantismo divino na
ideia de procronismo, a maioria das pessoas não consegue se livrar da teimosa
sensação de que isso cheira a trapaça, velha e deslavada. Nossos modernos
criacionistas americanos rejeitam-no como imputando a Deus um caráter moral
dúbio e optam, ao contrário, pela noção ainda mais ridícula de que as nossas
milhas de camadas fossilíferas são todas produtos do Dilúvio e que podem,
portanto, ser encaixadas na escala de tempo literal do Gênesis.
Mas o que há de tão desesperadamente errado com Omphalos'? Apenas isto,
realmente (e talvez paradoxalmente): o fato de que não podemos inventar um
modo de descobrir se ele está errado — ou, a propósito, certo. Omphalos é o
exemplo clássico de uma noção absolutamente inaveriguável, pois o mundo será
exatamente o mesmo, em todos os seus intrincados detalhes, quer os fósseis e as
camadas geológicas sejam procrônicas, quer sejam produtos de uma história
extensa. Quando percebermos que Omphalos deve ser rejeitado por causa deste
absurdo metodológico, e não por qualquer inexatidão concreta comprovada,
então compreenderemos a ciência como um modo de saber, e Omphalos servirá
seu propósito de contraste ou estímulo intelectual.
A ciência é um processo para colocar à prova e rejeitar hipóteses, não um
compêndio de certo conhecimento. Afirmações cuja incorreção pode ser provada
encontram-se dentro do seu domínio (como enunciados falsos, é claro, mas
como propostas que vão de encontro às exigências do critério metodológico
primário da averiguabilidade). No entanto, as teorias que não podem ser
averiguadas em princípio não são parte da ciência. A ciência é fazer, não
cogitação engenhosa; rejeitamos Omphalos como inútil, não como errado.
O erro profundo de Gosse estava na sua incapacidade de compreender
plenamente este caráter essencial do raciocínio científico. Ele cavou sua própria
sepultura ao enfatizar continuamente que Omphalos não fazia nenhum diferença
prática — que o mundo seria exatamente o mesmo com um passado procrônico
ou diacrônico. (Gosse achava que esta concessão tornaria seu argumento
aceitável para os geólogos convencionais; ele nunca percebeu que podia apenas
levá-los a rejeitar seu esquema inteiro como irrelevante.) “Não sei”, escreveu
ele, “de uma única conclusão, agora aceita, a que se teria de renunciar, exceto a
da cronologia real.”
Gosse enfatizava que não podemos saber onde Deus pôs sua hóstia da
criação no círculo cósmico porque os objetos procrônicos, criados ab nihilo, se
parecem exatamente com produtos diacrônicos do tempo real. Aos que
argumentavam que os coprólitos (excremento fossilizado) provam a existência
de animais ativos, que se alimentavam num passado geológico real, Gosse
retrucava dizendo que assim como Deus criaria adultos com fezes nos intestinos,
assim também ele colocaria pedaços de merda petrificada nas camadas
geológicas por ele criadas. (Não estou inventando este exemplo para conseguir
efeito cômico; você o encontrará na pág. 353 de Omphalos.) Assim, com estas
palavras, Gosse selou o seu destino e colocou-se fora do domínio da ciência:
Agora, repito novamente, não há diferença imaginável a ser percebida entre
o desenvolvimento procrônico e o diacrônico. Todo argumento pelo qual o
fisiologista pode provar a demonstração de que aquela vaca foi um feto no
útero de sua mãe poderá ser aplicado com a mesma força para demonstrar
que a vaca recém-criada foi um embrião alguns anos antes de sua criação. ...
Não há nada nos fenômenos, e não pode haver, que indique um início ali,
não mais do que acolá, ou, na verdade, em qualquer lugar que seja. O início,
como fato, devo saber por meio de testemunho; não tenho meio algum de
inferi-lo a partir dos fenômenos.
Gosse ficou emocionalmente aniquilado pelo fracasso de Omphalos. Durante
as longas noites do inverno de seu desgosto, no frio de janeiro de 1858, ele
sentava-se perto do fogo com o filho de oito anos, tentando evitar os
pensamentos amargos com a discussão dos horríveis detalhes de assassinatos do
passado e do presente. O jovem Edmund ouviu falar de Mrs. Manning, que
enterrou sua vítima em cal viva e foi enforcada em cetim negro; de Burke e
Hare, os vampiros escoceses, e do “mistério da mala”, uma porção de órgãos
humanos cuidadosamente esquartejados pendurada num pilar da Ponte Waterloo.
Este talvez não tenha sido o tema mais adequado para um rapaz impressionável
(Edmund, de acordo com suas próprias lembranças, ficava “quase petrificado de
horror”), mas, ainda assim, dá-me certo conforto pensar que Philip Henry Gosse,
golpeado pela dor de ter recusada a sua teoria inaveriguável, pôde encontrar
refúgio em algo tão inequivocamente real, tão absolutamente concreto.
Pós-escrito
Soube depois que um de meus escritores favoritos, Jorge Luis Borges,
escreveu um breve e fascinante comentário sobre Omphalos (A criação e P. H.
Gosse” em Other Inquisitions, 1937-1952, publicado em 1964 pela University of
Texas Press, tradução de Ruth L. C. Simms). Borges começa citando várias
referências literárias à ausência de umbigo em nossos progenitores primordiais.
Sir Thomas Browne, como metáfora do pecado original, escreve em Religio
Medici (1642), “o homem sem umbigo ainda vive em mim”; e James Joyce, no
primeiro capítulo de Ulisses (o que não se pode encontrar nesse livro incrível!)
diz: “Heva, nua Eva. Ela não tinha umbigo.” Apreciei em particular o adorável
compêndio e o discernimento da conclusão de Borges (embora discorde de seu
segundo ponto essencial): “Gostaria de enfatizar duas virtudes da tese esquecida
de Gosse. Primeiro, a sua elegância algo monstruosa. Segundo: a sua redução
involuntária de uma criação ab nihilo ao absurdo, a sua demonstração de que o
universo é eterno, como pensavam o Vedanta, Heráclito, Espinoza e os
atomistas.”
7. O congelamento de Noé
Petiscos de um passado distante muitas vezes reaparecem em nossos dias
com uma relevância surpreendente. Afinal, o pensamento e a emoção humana
possuem uma universalidade que transcende o tempo e converte os diversos
estágios da história em teatros que fornecem lições aos atores modernos.
Quero fazer um relato de vinte anos da história da geologia britânica — mais
ou menos de 1820 a 1840. O relato mostra a ciência funcionando do melhor
modo possível. Um dos principais geólogos da Grã-Bretanha propôs uma teoria.
Essa proposição, claramente formulada, tinha raízes (como todas as teorias) na
posição social e na constituição psicológica do seu fundador. Mas também era
fundamentada empiricamente e obviamente podia ser posta à prova. A teoria foi
posta à prova e falhou. Seus dois principais defensores retrataram-se
francamente e mais tarde conduziram um esforço para formular explicações
diferentes e mais adequadas para os fenômenos que haviam inspirado a teoria
original.
Em 1823, o reverendo William Buckland (1784-1856), primeiro geólogo
“oficial” da Universidade de Oxford, publicou um tratado científico com um
título notável, que refletia a tentativa do autor de amalgamar seus dois mundos
profissionais — a religião e a geologia. Ele lhe deu o nome de Religuiae
diluvianae, ou Relíquias do dilúvio. Seu subtítulo indicava o tipo de evidência
que Buckland citaria para fundamentar sua teoria sobre a expressão geológica da
catástrofe de Noé: Observações sobre os restos orgânicos contidos em cavernas,
fissuras e cascalho aluvial, e outros fenômenos geológicos que atestam a ação
de um dilúvio universal. A teoria de Buckland foi testada e rejeitada por
geólogos que eram criacionistas e cientistas genuínos. O dilúvio não tem sido
uma questão entre os geólogos durante o último século e meio.
Os fundamentalistas modernos que se autodenominam “criacionistas
científicos” ressuscitaram Noé e fizeram do dilúvio a peça fundamental do seu
sistema. Na verdade, eles atribuem todas as camadas geológicas que contêm
fósseis à ação desse único evento, ao passo que Buckland, de modo muito mais
sensato, buscava identificar apenas a delgada cobertura não consolidada de terras
pretas e cascalhos como produtos do dilúvio universal. O reconhecimento do
dilúvio como agente geológico primário foi ordenado pela lei da “ciência da
criação” do Arkansas, declarada inconstitucional em janeiro de 1982. Não
conheço melhor ilustração da diferença entre ciência e pseudociência do que a
comparação entre a abordagem racional de Buckland — proposição concreta,
teste e rejeição — e o dogmatismo dos fundamentalistas.
Buckland não foi o primeiro geólogo a propor uma ‘ ‘teoria diluviana”
ligando o dilúvio de Noé aos indícios da geologia, mas a sua nova versão
possuía as virtudes irmãs da sensatez e da averiguabilida-de. A vovó das teorias
diluvianas (a que agora é tão anacronicamente defendida pelos criacionistas)
vinha sendo discutida há vários séculos — a ideia de que um único dilúvio havia
produzido todos, ou quase todos, os estratos geológicos. Essa versão já não tinha
mais credibilidade no tempo de Buckland, e ele a rejeitou num único parágrafo,
escrito em 1836, e que ainda é suficiente para refutar o que a nossa maioria
moralista tentou impingir às crianças do Arkansas:
Alguns tentaram atribuir a formação de todas as rochas estratificadas aos
efeitos do Dilúvio Mosaico; uma opinião que é irreconciliável com a enorme
densidade e as subdivisões quase infinitas dessas camadas, e com as
numerosas e regulares sucessões que elas contêm dos restos de animais e
vegetais, os quais diferem mais e mais amplamente das espécies existentes à
medida que os estratos em que os encontramos são mais velhos ou estão
dispostos a profundidades maiores.
Outros geólogos haviam considerado o Dilúvio como um período de
sublevamento da superfície terrestre. Antigas terras afundaram, enquanto novos
continentes emergiram das profundezas oceânicas — explicando desse modo a
presença de conchas fossilizadas no topo de montanhas. Mas Buckland
reconhecia que a Terra tinha uma história antiga, pontuada esporadicamente
(mas com frequência) por episódios de soerguimento. Ele não precisava de um
dilúvio recente para explicar a topografia terrestre e o conteúdo geológico de
suas montanhas.
O dilúvio de Buckland era um episódio menos acidentado, menos
catastrófico, e muito mais fácil de se acreditar. Ele propunha que as águas
diluvianas haviam se erguido acima dos continentes, já então colocados nas suas
posições atuais, haviam-nos mantido submersos apenas por um breve período —
“um dilúvio universal e passageiro”, nas suas palavras — e deixado como
memorial apenas uma camada superficial de terra preta e cascalho e uma série de
características topográficas talhadas pelas águas ao subirem e descerem.
Reliquiae diluvianae não é um tratado teórico bombástico, pomposo e sem
sentido sobre todos os efeitos e causas do Dilúvio, mas um estudo empírico
específico de cavernas e da fauna a elas associadas. Buckland havia examinado
anteriormente uma caverna em Kirkdale, Yorkshire, e recebera pelos seus
esforços a Medalha Copley da Royal Society. Agora ele estendia seu trabalho a
outras cavernas da Grã-Bretanha e a uma série de cavernas e fissuras na
Alemanha.
Como argumento geral sustentando a importância das cavernas para a
comprovação de um dilúvio recente e passageiro, Buckland afirmava que as
águas em elevação haviam perturbado de tal modo todos os ambientes a céu
aberto que apenas cavernas isoladas preservavam indícios satisfatórios a respeito
da integridade das comunidades antediluvianas.
A violência daquela tremenda convulsão destruiu e remodelou tão
completamente a forma da superfície antediluviana, que é apenas nas
cavernas, que foram protegidas de seus estragos, que podemos ter esperanças
de encontrar indícios intactos dos eventos do período imediatamente anterior.
As cavernas estavam cheias de ossos, aprisionados dentro delas pelas águas
em ascensão. Os ossos pertenciam a espécies então residentes nas áreas locais
(assim, o Dilúvio não fora violento o bastante para misturar faunas numa
mixórdia aleatória pelo mundo todo). Os ossos eram frescos (indicando um
sepultamento recente), cobertos apenas com a lama trazida pelas águas da
inundação ou então com uma leve cobertura proveniente do gotejamento das
cavernas (também indicações de um dilúvio não muito remoto), e pertenciam a
espécies agora extintas mas intimamente relacionadas a formas modernas (as
criaturas menos afortunadas que não haviam encontrado abrigo na arca).
A discussão feita por Buckland da caverna de Kirkdale fornece uma boa
ilustração dos seus métodos e modos de argumentação. Ele encontrou um grande
depósito de ossos fossilizados, partidos em fragmentos angulares, às vezes
enfiados na lama, às vezes incrustados em gotejamentos de calcário da caverna.
Invocando uma símile gastronômica de sua própria época, Buckland descreveu
seu tesouro:
Onde a lama era rasa, e as pilhas de dentes e ossos, consideráveis, partes
destas projetavam-se algumas polegadas acima da superfície da lama e da
sua crosta estalagmítica; e as extremidades superiores dos ossos, projetando-
se no espaço vazio acima, como as pernas de um pombo atravessando a
crosta de uma torta, tinham uma cobertura delgada de gotejamentos
estalagmíticos, ao passo que suas extremidades inferiores não possuíam tal
incrustação, mas simplesmente a lama aderida na qual haviam sido
enterradas.
Buckland usa a maior parte da monografia para provar que Kirkdale era um
covil de hienas, e que os ossos lá presentes haviam sido colhidos e triturados
pelos seus residentes. Ele trabalhou, como todos os bons geólogos, procurando
analogias modernas para efeitos antigos. Aprendeu tudo o que podia sobre
hienas, desde os textos latinos de autores clássicos até observações pessoais de
hienas no jardim zoológico de Exeter. Ele provou que os ossos de Kirkdale
foram triturados e partidos em fragmentos angulares iguais aos produzidos pelas
hienas modernas e descobriu que as curiosas esferas de fragmentos de ossos
dentro das cavernas eram idênticas aos excrementos de seus amigos enjaulados
de Exeter. Ele também descobriu ossos de hienas em abundância dentro da
caverna — todos eles também triturados e partidos — indicando que as hienas
tratam seus mortos do mesmo modo que as presas e a carniça das outras espécies
que constituem sua dieta habitual.
Como Buckland não encontrou ossos incólumes de hienas na caverna
(embora tenha recuperado alguns em depósitos externos), ele formulou a
hipótese de que, quando as águas subiram, as hienas abandonaram a caverna e se
safaram para as colinas:
Caso se pergunte por que não encontramos pelo menos o esqueleto inteiro de
uma ou mais hienas que morreram por último, não deixando atrás de si
nenhum sobrevivente que as devorasse; encontramos uma resposta
satisfatória na circunstância da provável destruição dos últimos indivíduos
pelas águas diluvianas; com a ascensão destas, caso houvesse hienas no
covil, elas teriam debandado e fugido para a segurança das colinas; e, caso
ausentes, elas não poderiam ter retornado de altitudes superiores: que elas
foram extirpadas por esta catástrofe é óbvio, a partir da descoberta de seus
ossos no cascalho aluvial da Inglaterra e da Alemanha.
Os ossos mais comuns de Kirkdale pertenciam a elefantes, rinocerontes e
hienas. Como todos esses animais agora habitam climas tropicais, Buckland
presumiu que o dilúvio havia marcado uma transição rápida para temperaturas
mais frias. (Ele estava inteiramente errado, pois agora sabemos que todas essas
espécies tinham pelos compridos, sendo variantes glaciais de seus parentes
tropicais modernos.) Reliquiae diluvianae distingue-se de modo especial por
evitar qualquer discussão de causas e teorias gerais. Buckland repudiou as velhas
tradições de construção de sistema e especulação, e escreveu, em vez disso, uma
monografia empírica sobre indícios específicos de um dilúvio. Essa tática tornou
seu trabalho averiguável e preparou o terreno para a sua refutação — a atividade
mais saudável que a ciência pode exercer. Ao discutir a suposta queda de
temperatura, Buckland fez a sua única conjectura e então retratou-se
imediatamente, em conformidade com seu objetivo maior:
Qual foi a causa, se foi uma mudança na inclinação do eixo terrestre, ou a
aproximação de um cometa, ou qualquer outra causa ou combinação de
causas puramente astronômicas, é uma questão cuja discussão é estranha ao
presente estudo.
Após discutir Kirkdale e outras cavernas da Inglaterra e da Alemanha,
Buckland prossegue com indícios subsidiários de um dilúvio universal. A última
parte de Reliquiae diluvianae discute duas fontes de corroboração. Em primeiro
lugar, Buckland estudou as terras pretas e cascalhos que cobrem os estratos
sólidos em toda a Europa setentrional e descobriu neles ossos dos mesmos
animais que frequentavam as suas cavernas. Como ele considerava as terras
pretas e cascalhos depósitos diretos do Dilúvio, fósseis similares estabeleciam os
restos das cavernas como relíquias dos últimos dias antes de Noé. Em segundo
lugar, ele sustentou o argumento de que a modelagem das colinas e vales registra
a ação das águas encapeladas.
Ao resumir sua discussão de Kirkdale, Buckland extraiu uma inferência
essencial que plantou as sementes de sua posterior derrota. A teoria diluviana de
Buckland exigia absolutamente duas conclusões para estabelecer o Dilúvio de
Noé como sendo o agente que selara as cavernas e depositara as terras pretas e
cascalhos exteriores. Primeiro, todos os depósitos das cavernas e cascalhos
devem representar material da mesma época. Segundo, cada uma dessas
acumulações deve ser o registro de um único evento, não de uma série de
dilúvios ou outras catástrofes.
Não existe nenhuma alternância entre essa lama e os depósitos de ossos e
estalagmites, como teria ocorrido caso ela houvesse sido produzida por
dilúvios repetidos com frequência; uma vez, e apenas uma, ela parece ter
sido introduzida; e podemos considerar como tendo sido o seu veículo as
águas barrentas da mesma inundação que produziu universalmente o
cascalho e a terra preta aluviais na superfície exterior.
Ao extrair a inferência, Buckland abandonara seu autoproclama-do e
estritamente empírico caminho (um ideal mal colocado que, de qualquer modo,
poucos cientistas imaginativos conseguem de fato executar). Nenhum dado real
sustentava a sua afirmação da contempora-neidade dos depósitos das cavernas e
das terras pretas e cascalhos. Além disso, como suas cavernas estavam
largamente separadas, ele não conseguiu apresentar nenhuma evidência direta de
que os fósseis dentro delas eram todos da mesma época. Na verdade, Buckland
argumentava em ordem inversa — partindo de uma crença anterior para a
conclusão empírica. Ele presumiu que esses depósitos diversos e descontínuos
eram contemporâneos porque acreditava fervorosamente na realidade histórica
do dilúvio de Noé. Contudo, ele também afirmava que podia provar o dilúvio de
Noé a partir somente de evidências empíricas. Ou uma coisa ou outra.
Não obstante, numa conclusão audaciosa e surpreendente, escrita quatro anos
antes, no seu discurso de posse em Oxford, no ano de 1819, Buckland
proclamou:
O grandioso fato de um dilúvio universal num período não muito remoto está
provado com base em fundamentos tão decisivos e incontroversos que,
mesmo que nunca tivéssemos ouvido falar de tal evento nas Escrituras ou em
qualquer outra autoridade, a própria Geologia teria pedido a assistência de
alguma catástrofe do tipo.
Esta famosa citação tem sido frequentemente alvo de zombaria, zombaria
esta baseada na suposição de que Buckland sofria de uma auto-ilusão adiantada,
nascida de suas convicções bíblicas. Não era isso. A declaração, apesar de
vigorosa, não é irracional e reflete uma das supremas ironias de toda a história
da ciência.
Sabemos, em retrospecto, que a Inglaterra e a maior parte da Europa
setentrional foram cobertas diversas vezes, há não muito tempo, por mantos
continentais compactos de gelo. Os indícios que as geleiras deixam — enormes
pedras carregadas para longe de sua origem, cascalhos mal ordenados,
aparentemente atirados em sua presente localização por agentes catastróficos —
são similares aos que poderiam ser produzidos por inundações gigantescas. Na
verdade boa parte da topografia glacial é formada pelas águas do degelo.
Buckland estava, de fato, estudando indícios de glaciação, mas, de modo
absolutamente natural, interpretou seus dados como resultados de inundação. Se
Buckland vivesse na Europa meridional, ou se a ciência da Geologia houvesse
surgido nos trópicos, esta versão sensata da “teoria diluviana” nunca teria
entrado em nossa história. Não podemos culpar Buckland por não contemplar
uma hipótese de uma capa de gelo com uma milha de espessura cobrindo a sua
terra natal. Na década de 1820, com certeza, a ideia de um manto continental de
gelo era absurda e impensável, ao passo que um dilúvio não ia nem contra a
razão, nem contra a experiência. Contudo e mais uma vez em retrospecto,
podemos facilmente perceber por que a teoria de Buckland fracassou no teste
com tanta facilidade. Ele atribuiu os depósitos das cavernas e os cascalhos
externos a um único dilúvio, na verdade, eles foram produzidos por diversos
episódios de glaciação.
Ao longo de toda a década de 1820, a teoria de Buckland foi objeto de
intenso debate na Sociedade Geológica de Londres. Os maiores geólogos da
Grã-Bretanha alinharam-se em lados opostos. Como aliado principal, Buckland
podia contar com sua contraparte de Cambridge e colega teólogo, o reverendo
Adam Sedgwick. Liderando a oposição estavam Charles Lyell, o grande
apóstolo do gradualismo, e o aristocrático Roderick Impey Murchison. O debate
foi agitado, com um vigor igual ao das águas do dilúvio de Buckland, mas,
dentro de dez anos, tanto Buckland quanto Sedgwick haviam se dado por
vencidos.
Duas descobertas primárias forçaram o recuo de Buckland. Primeiro, ele teve
finalmente de admitir que os seus depósitos de terra preta e cascalho não se
encontravam distribuídos pelo mundo todo (como exigiria um “dilúvio
universal”) mas apenas em terras situadas em latitudes setentrionais (refletindo
— embora Buckland ainda não conhecesse o motivo — o alcance limitado das
geleiras que se expandiram a partir das regiões polares).
Segundo, e mais importante, a labuta cotidiana da geologia provou que as
cavernas e os cascalhos de Buckland não se correlacionavam todos, ou não
“combinavam”, como produtos de um único evento no tempo, e que também
vários depósitos eram registros de mais de um episódio de inundação (ou
glaciação, como diríamos hoje). A “correlação” é a atividade básica dos
geólogos que fazem trabalho de campo. Andamos de afloramento para
afloramento; tentamos rastrear os depósitos de uma locação até os estratos
geológicos de outra; averiguamos quais depósitos da nossa primeira locação
combinam (ou se correlacionam no tempo) com conjuntos de estratos geológicos
de outros lugares.
À medida que este trabalho básico prosseguia, os geólogos reconheceram
que os depósitos de cavernas e os cascalhos de Buckland representavam muitos
eventos, não um único dilúvio universal. Esta descoberta não exigia o abandono
das inundações como agentes causais, mas sem dúvida roubava de Noé qualquer
status especial. Se várias inundações haviam ocorrido, então os notáveis indícios
de Buckland não podiam ser atribuídos a nenhum evento bíblico particular.
Além disso, como Buckland não encontrou nenhum osso humano em seus
depósitos (considerando-se que o dilúvio de Noé ocorreu para que fosse
extirpada a gananciosa humanidade), ele por fim concluiu que todos os vários
dilúvios que ele agora reconhecia haviam antecedido o dilúvio de Noé.
Em 1829, após um vigoroso debate na Sociedade Geológica sobre a
dissertação de Conybeare sobre o vale do Tâmisa (William Conybeare era um
membro proeminente do grupo de Buckland), Lyell, triunfante, escreveu para
seu partidário Gideon Mantell:
Murchison e eu lutamos bravamente, e Buckland foi bastante piano. A
dissertação de Conybeare não tem força alguma. Ele admite três dilúvios
antes do dilúvio de Noé! E Buckland acrescenta sabe Deus quantas
catástrofes além dessas, de modo que os fizemos abandonar a crônica de
Moisés completamente.
(Para os leitores que não entendem de música, ressalto que piano quer dizer
“suave” em italiano. O instrumento tem seu nome devido a uma redução do
termo pianoforte que serve para designar um dispositivo capaz de tocar tanto
suavemente, ou piano, quanto fortemente, ou forte.)
O próprio Buckland, baseado nos mesmos fundamentos, admitiu a derrota no
seu importante livro seguinte, de 1836, embora ainda não houvesse reconhecido
a alternativa glacial:
As descobertas feitas desde a publicação desse trabalho [Reliquiae
diluvianae] demonstram que muitos dos animais nele descritos existiram
durante mais de um período geológico anterior à catástrofe pela qual foram
extirpados. Portanto, parece mais provável que o evento em questão tenha
sido o último de várias revoluções geológicas produzidas por violentas
irrupções de água em vez da inundação comparativamente tranquila descrita
na Inspirada Narrativa.
Quando os indícios fracassam, bons cientistas como Buckland não se
limitam simplesmente a admitir a derrota, rastejar para dentro de um buraco e
vestir um cilício. Eles preservam o interesse e lutam para descobrir novas
explicações. Buckland não apenas abandonou sua teoria diluviana quando o
trabalho empírico demonstrou sua falsidade, como acabou por liderar na Grã-
Bretanha o movimento para substituir a água pelo gelo.
Embora o estudo em retrospecto seja injusto para com as figuras históricas,
devo dizer que experimentei uma sensação quase que sinistra enquanto ha
Reliquiae diluvianae à luz do conhecimento posterior sobre a teoria glacial.
Muitos dos enunciados empíricos específicos de Buckland quase gritam para
serem interpretados por mantos de gelo em vez de água. Ele relata
continuamente, por exemplo, que a inundação, tanto na Grã-Bretanha quanto na
América do Norte, deve ter vindo do norte, uma direção óbvia para o avanço do
gelo, mas não para um dilúvio universal de um oceano em ascensão. Ele também
argumenta que blocos de granito trazidos do topo do Monte Branco para
altitudes menores provam que o Dilúvio foi alto o bastante para cobrir todas as
montanhas — enquanto diríamos simplesmente que as geleiras trouxeram as
rochas para baixo.
Louis Agassiz, o geólogo suíço que crescera quase que literalmente entre
geleiras de montanhas, desenvolveu a teoria das eras glaciais durante a década
de 1830. Ele e Buckland tornaram-se grandes amigos e companheiros de
exploração. Buckland foi também um dos primeiros na Inglaterra a se converter
à teoria glacial. Ele leu três dissertações defendendo essa nova interpretação de
seus indícios perante a Sociedade Geológica em 1840 e 1841, e, por fim, até
mesmo persuadiu seu velho adversário Charles Lyell sobre a realidade e a força
dos mantos continentais de gelo. Assim, Buckland não se limitou a abandonar
prontamente a sua teoria diluviana quando ela fracassou no teste; ele também
liderou a busca por novas explicações e alegrou-se com sua descoberta.
Os criacionistas modernos, por outro lado, têm pregado dogmaticamente
uma versão ainda mais ultrapassada e desacreditada da teoria diluviana desde
que G. M. Price a ressuscitou há cinquenta anos. Eles não fazem trabalho de
campo para testar suas asserções (argumentando, ao contrário, por meio da
distorção da obra de geólogos de verdade para obter efeito retórico), e não
mudam um pontinho que seja de sua absurda teoria.
Não posso apresentar maior contraste entre esta moderna pseudociência e o
espírito verdadeiramente científico da retratação de Adam Sedgwick em seu
discurso presidencial perante a Sociedade Geológica de Londres, em 1831. Na
condição de principal partidário de Buckland, ele liderava a luta pela teoria
diluviana; mas, por ocasião do discurso, ele sabia que estivera errado.
Reconheceu também que havia argumentado de modo deficiente num ponto
crítico: ele correlacionara as cavernas e os cascalhos não através de indícios
empíricos, mas através de uma crença bíblica anterior na realidade do Dilúvio.
Como os indícios empíricos provaram ser falsa a sua teoria, ele percebeu essa
deficiência lógicâ e se submeteu a uma autocrítica rigorosa. Em todos os anais
da ciência, não conheço melhor declaração que a retratação franca de Sedgwick,
e quero encerrar este ensaio com suas palavras. Como testemunha no julgamento
criacionista em Arkansas, em dezembro de 1981, também li esta passagem para
os autos da corte, porque senti que ela ilustrava muito bem a diferença entre o
dogmatismo, que não pode mudar, e a verdadeira ciência, praticada, neste
episódio, por pessoas que, por acaso, eram criacionistas. A ironia final, a
mensagem profunda, é simplesmente esta: a teoria diluviana, a peça central do
criacionismo moderno, foi refutada há 150 anos, em boa parte por clérigos
profissionais que também eram geólogos, cientistas exemplares e criacionistas.
O inimigo do saber e da ciência é o irracionalismo, não a religião:
Tendo eu sido um crente, e, naquilo que de melhor podia fazer, um
propagador daquilo que agora considero uma heresia filosófica, e tendo sido,
por mais de uma vez, citado para apoiar opiniões que não mais sustento,
julgo correto, como um de meus últimos atos antes de deixar esta cadeira, ler
publicamente deste modo a minha retratação...
Existe, penso eu, uma grande conclusão negativa, agora incontestavelmente
estabelecida, de que as vastas massas de cascalho aluvial, espalhadas por
quase toda a superfície da Terra, não pertencem a um único período violento
e transitório...
Deveríamos, na verdade, ter-nos detido antes de adotar a teoria diluviana e
atribuir todo o nosso velho cascalho superficial à ação do Dilúvio Mosaico.
... Ao classificar em conjunto formações desconhecidas distantes sob um
único nome; ao dar-lhes uma origem simultânea, e ao determinar a sua data,
não através dos restos orgânicos que havíamos nelas descoberto, mas através
do que esperávamos hipoteticamente descobrir depois; demos mais um
exemplo da paixão com a qual a mente se apega a conclusões gerais e da
presteza com a qual ela abandona a consideração de verdades não
relacionadas.
3. A importância da taxonomia
Durante toda uma longa década de ensaios, eu nunca escrevi, por motivos
óbvios, sobre o tema de biologia mais próximo de mim. No entanto, desta vez,
no meu centésimo esforço, peço a sua indulgência para lhe impingir o Cerion,
um caracol terrestre das Bahamas, esteio da minha pesquisa pessoal e do meu
trabalho de campo. Eu amo o Cerion de todo coração e intelecto, mas tenho-o
evitado conscientemente neste foro porque a linha que separa o interesse geral da
paixão pessoal não pode ser traçada a partir de uma perspectiva de imersão total
— a imagem de pais-coruja atordoando de sono amigos e vizinhos com filmes
de família vem facilmente à lembrança. Estes ensaios devem seguir duas regras
inflexíveis: eu nunca minto, e esforço-me bravamente para não entediá-los.
Desta vez, porém, dentre cem, colocarei em risco a segunda apenas pelo meu
prazer pessoal.
O Cerion é o caracol terrestre mais conhecido nas ilhas das índias
Ocidentais. É encontrado desde as Ilhas Key, na Flórida, até as pequenas ilhas de
Aruba, Bonaire e Curaçao, perto da costa venezuelana, mas a vasta maioria das
espécies habita dois centros principais — Cuba e Bahamas. A vida do Cerion
não é muito excitante, segundo os nossos padrões. A maioria das espécies habita
as rochas e a vegetação esparsa limítrofes ao litoral. Podem viver de cinco a dez
anos, mas passam a maior parte desse tempo no que equivale, em climas
quentes, à hibernação (o entorpecimento de estio), pendurados de ponta-cabeça
na vegetação ou fixados em rochas. Após uma chuva ou às vezes no frescor e
umidade relativos da noite, eles descem de seus galhos e pedras, mordiscam os
fungos da vegetação que se decompõe, e às vezes até copulam. Nós marcamos e
mapeamos o movimento de caracóis individuais e muitos podem ser encontrados
nos mesmos metros quadrados de campo, ano após ano.
Por que escolher o Cerion? Realmente, por que gastar tanto tempo em cada
detalhe particular quando todas as estonteantes generalidades da teoria evolutiva
clamam pelo estudo de uma vida inteira, tempo suficiente para dar conta de
apenas algumas delas? Iconoclasta que sou, nunca iria abandonar a sabedoria
central da história natural desde a sua fundação — que conceitos sem objetos de
percepção são vazios (como disse Kant), e que nenhum cientista pode
desenvolver uma “sensação” adequada da natureza (aquele pré-requisito
indefinível da verdadeira compreensão) — sem examinar em profundidade
detalhes empíricos mínimos de algum grupo bem escolhido de organismos.
Assim. Aristóteles dissecou lulas e proclamou a eternidade do mundo, enquanto
Darwin escreveu quatro volumes sobre cracas e um sobre a origem das espécies.
Os maiores evolucionistas e estudiosos de história natural dos Estados Unidos,
G. G. Simpson, T. Dobzhansky e E. Mayr começaram suas carreiras,
respectivamente, como especialistas proeminentes em mamíferos mesozoicos,
joaninhas e pássaros da Nova Guiné.
Os cientistas não mergulham em particularidades apenas pelo motivo
grandioso (ou egoísta) de que tais estudos podem levar a generalidades
importantes. Fazemos isso por diversão. A alegria da descoberta transcende o
seu teor. E fazemos isso pela aventura e pela expansão. Em dramaticidade,
expedições de trabalho nas Bahamas podem parecer ridículas quando
comparadas à viagem de Darwin no Beagle, à de Bates no Amazonas, e à de
Wallace no arquipélago ma-laio — embora eu não faça questão de repetir o
único esbarrão que tive com a morte, preso no meio de um tiroteio entre
traficantes de drogas em Andros do Norte. Valorizo muito mais as ocasiões
calmas em mundos diferentes: uma discussão noturna sobre medicina do sertão
em Mayaguana, uma exploração de entalhes ornamentais que adornam tetos na
ilha Long e em Andros do Sul, e a melhor refeição que já comi — uma panela de
búzio fresco, cozido na fogueira do acampamento com batatas-doces do jardim
de Jimmy Nixon em Inagua, depois de um dia quente e de trabalho duro.
Se todos os naturalistas devem escolher um grupo de organismos para a
imersão minuciosa, não devemos selecioná-lo descuidadamente ou a esmo (ou
mesmo, como sugeriram alguns céticos, porque as Bahamas são melhores que o
Yukon como área para trabalho de campo). Estou interessado principalmente na
evolução da forma e me concentrei na maneira pela qual as formas variáveis do
desenvolvimento de um indivíduo podem servir como fonte de modificação
evolutiva (ver meu livro técnico Ontogeny and Philogeny, na Bibliografia). Um
paleontólogo de invertebrados com esses interesses acabaria por se voltar para os
caracóis, já que as suas conchas preservam um registro completo do
desenvolvimento do ovo ao adulto.
Um estudioso da forma com uma queda por gastrópodes não teria como
evitar o Cerion, pois esse gênero exibe, entre as suas várias centenas de espécies,
uma amplitude de forma inigualada por qualquer outro grupo de caracóis.
Alguns Cerions são altos e finíssimos; outros têm o formato de bolas de golfe.
Numa conferência pública, quando um colega arriscou “caracóis quadrados”
como um exemplo de animais impossíveis, pude lhe mostrar o estranho Cerion
quadrangular da fotografia acima, fileira de baixo, segundo a partir da esquerda.
Há cinco anos, descobri o maior Cerion, um gigante fóssil, fino e de lados
paralelos, de Mayaguana, com mais de 70 mm de altura. O menor é virtualmente
uma esfera que mal chega aos 5 mm de diâmetro, da Pequena Inagua (ver
fotografia).
O mistério e o interesse especial do Cerion não residem apenas na sua
exuberante diversidade; muitos grupos de animais contêm alguns membros com
uma propensão incomum para a formação de novas espécies e a consequente
variação de forma. As espécies são as unidades fundamentais da diversidade
biológica, populações distintas permanentemente isoladas uma da outra por meio
de uma ausência de hibridação na natureza. Não deve ser motivo de surpresa
para nós que grupos que produzem grandes números de espécies possam se
tornar inteiramente diversos na forma, já que mais unidades distintas oferecem
mais oportunidades para a evolução de uma larga amplitude morfológica.
Confrontados com uma sucessão de formatos tão profusa, naturalistas mais
antigos nomearam montes de espécies de Cerion, umas seiscentas mais ou
menos. No entanto, poucas são biologicamente válidas como populações
distintas, que não se acasalam entre si. Em dez anos de trabalho de campo em
todas as principais ilhas das Bahamas, só uma vez encontramos duas populações
distintas de Cerion vivendo no mesmo lugar sem se acasalarem — espécies
verdadeiras, portanto. Essas incluíam um gigante e um anão — trazendo assim à
lembrança várias piadas ruins sobre chihuahuas e cães dinamarqueses. Em todos
os outros casos, duas formas, não importa o quão distintas em tamanho e forma,
acasalam-se e produzem híbridos no ponto de contato geográfico. De algum
modo, o Cerion consegue gerar a sua inigualável diversidade de formas sem
dividir as suas populações em espécies verdadeiras. Como isso pode acontecer?
Além do mais, se formas tão diferentes produzem híbridos tão prontamente,
então as diferenças genéticas entre eles não podem ser tão grandes. Como pode
surgir tamanha diversidade de tamanho e forma na ausência de uma ampla
mudança genética?
Num segundo mistério relacionado, muitas vezes formas distintas de Cerion
habitam ilhas largamente separadas. A explicação mais simples propõe que essas
colônias afastadas representam a mesma espécie e que os furacões podem soprar
caracóis para grandes distâncias, produzindo distribuições fortuitas, ou então que
as colônias que habitavam ilhas intermediárias se extinguiram, deixando grandes
distâncias entre os sobreviventes. Contudo, todos os especialistas em Cerion
desenvolveram a sensação (que eu compartilho) de que essas colônias separadas,
apesar da similaridade detalhada de várias séries de traços, se desenvolveram de
modo independente in situ. Se tal interpretação não-convencional for correta,
como séries tão complexas de traços associados podem ser desenvolvidas
repetidas vezes?
Assim, o Cerion apresenta duas peculiaridades notáveis em meio à sua
inigualável diversidade: as suas formas mais distintas acasalam-se entre si e não
são espécies verdadeiras, enquanto essas mesmas formas, apesar de toda a sua
complexidade, podem ter se desenvolvido várias vezes de modo independente.
Qualquer cientista que possa explicar esses singulares fenômenos no caso do
Cerion dará uma importante contribuição para a compreensão da forma e da sua
evolução em geral. Tentarei descrever os poucos passos, preliminares e
vacilantes, que fizemos rumo a uma tal solução.
O Cerion tem atraído a atenção de vários naturalistas destacados, desde
Lineu, que nomeou a primeira espécie em 1758, até Ernst Mayr, que foi o
pioneiro no estudo de populações naturais duzentos anos mais tarde. Ainda
assim, apesar dos esforços de um pequeno grupo de entusiastas, o Cerion não
recebeu o renome que merece à luz de sua curiosa biologia e da promessa que
encerra como exemplar da evolução da forma. A sua relativa obscuridade pode
ser atribuída diretamente à prática biológica passada. Os naturalistas mais
antigos enterraram a biologia incomum do Cerion num matagal tão impenetrável
de nomes (para espécies inválidas) que os colegas interessados na teoria
evolutiva foram incapazes de recuperar o padrão e o interesse do caos absoluto.
O pior infrator foi C. J. Maynard, um bom biólogo amador, que, no período
compreendido entre 1880 e 1920, nomeou centenas de espécies de Cerion. Ele
imaginou que estava prestando um grande serviço, ao proclamar em 1889:
Os conquiliologistas (Conquiliologia: estudo das conchas - N.R.T.) podem fazer
objeções a algumas das minhas novas espécies, julgando, talvez, que usei
caracteres muito triviais para separá-las. Acreditando, porém, como acredito,
que é dever imperativo dos naturalistas, hoje, registrar minúcias das
diferenças entre os animais... não hesitei em assim designá-las, se não por
outro motivo, pelo benefício das gerações vindouras.
Confio que não serei acusado de ceticismo indevido ao reconhecer outro
motivo. Maynard financiava suas viagens às Bahamas, vendendo conchas, e um
número maior de espécies significava mais artigos que ele podia empurrar.
Caveat emptor.
Os colegas profissionais foram duros com a divisão esmiuçada de Maynard.
H. A. Pilsbry, o maior conquiliologista americano, declarou, numa prosa
atipicamente vigorosa, que “deuses e homens podem muito bem ficar
estupefatos diante da designação de colônias individuais em todos os campos de
sisal e plantações de batatas das Bahamas”. W. H. Dali rotulou os esforços de
Maynard como “nocivos e estonteantes”. No entanto, quando postos à prova na
prática, nem Pilsbry, nem Dali mostraram-se à altura de suas bravas palavras.
Cada um reconheceu pelo menos metade das espécies que Maynard defendia,
uma quantidade ainda excessiva, o suficiente para ocultar qualquer padrão na
floresta de nomes inválidos.
Tão rica era a diversidade do Cerion, e tão numerosas as suas espécies, que
G. B. Sowerby, o notável conquiliologista inglês, que se imaginava (com pouca
justificativa) um poeta, escreveu esta versalhada na introdução de sua
monografia sobre o gênero:
Ao Teu comando, coisas que não estavam
em forma perfeita, perante Ti se postam;
E todos elevam ao seu Criador
Uma harmonia maravilhosa de louvor.
Sowerby prossegue então enunciando um refrão e tanto. E esse quarteto data
de 1875, antes que Maynard nomeasse sequer um Cerion! À luz do caos
existente, e antes mesmo que possamos fazer as perguntas gerais propostas
acima a respeito da forma, devemos empreender uma tarefa bem mais básica e
humilde. Devemos descobrir se é possível encontrar algum padrão na
distribuição ecológica e geográfica da morfologia do Cerion. Se não detectarmos
absolutamente correlação alguma com a geografia ou o meio ambiente, então o
que podemos explicar? Por sorte, em uma década de trabalho, reduzimos o caos
de nomes existentes a padrões previsíveis e estabelecemos por meio deles o pré-
requisito para uma explicação mais profunda. Da natureza dessa explicação mais
profunda, temos intuições e indícios, mas nenhuma informação definida ou
mesmo as ferramentas necessárias para obtê-la (pois estamos encalhados numa
área da biologia — a genética do desenvolvimento — que se encontra, ela
própria, lamentavelmente subdesenvolvida). Ainda assim, acho que nós fizemos
um bom começo.
Digo “nós” porque percebi imediatamente que não podia fazer esse trabalho
sozinho. Sinto-me competente para analisar o desenvolvimento e a forma de
conchas, mas não possuo nenhum conhecimento especializado em duas áreas
que têm de estar unidas à morfologia em qualquer estudo abrangente: a genética
e a ecologia. Portanto, uni-me a David Woodruff, um biólogo da Universidade
da Califórnia em San Diego. Durante uma década, compartilhamos tudo, desde
bolhas na ilha Long até tiros em Andros.
(Preciso parar neste ponto, pois percebo de repente que quase quebrei a
minha primeira regra. Os cientistas têm uma propensão terrível para apresentar o
seu trabalho como um pacote lógico, como se determinassem tudo
antecipadamente, num planejamento cuidadoso e rigoroso, e então apenas
prosseguissem de acordo com seus bons desígnios. Nunca funciona desse jeito,
se não por outro motivo, porque qualquer pessoa que possa pensar e ver faz
descobertas imprevistas e tem de alterar fundamentalmente qualquer estratégia
preconcebida. Além disso, as pessoas se metem em problemas pelos motivos
mais peculiares e acidentais que se pode imaginar. Projetos crescem como
organismos, com felizes acasos e ajustes flexíveis, não como os passos pré-
ordenados de uma prova de geometria plana do colegial. Deixe-me confessar.
Fui atraído pelo Cerion pela primeira vez porque queria comparar os seus fósseis
com caracóis que havia estudado nas Bermudas. Evitei cuidadosamente todos os
Cerions modernos porque fiquei horrorizado diante do matagal de nomes
disponível e porque os considerei intratáveis. Woodruff foi a Inagua pela
primeira vez porque queria estudar o padrão de listras coloridas de outro gênero
de caracóis. Só que ele viajou no auge da temporada de mosquitos e ficou dois
dias. Fizemos a nossa primeira viagem conjunta à ilha da Grande Bahama: eu,
para estudar fósseis, ele para tentar mais uma vez o outro gênero. No entanto,
logo descobri que a Grande Bahama não tem nenhuma (ou quase nenhuma)
rocha de origem terrestre, e, portanto, nenhum caracol terrestre fossilizado. O
outro gênero também não era muito mais comum. Ficamos plantados lá por uma
semana. Assim, estudamos os Cerions vivos e descobrimos um padrão por trás
da pletora de nomes. Desde então, seguindo o conselho de Satchel Paige, nunca
mais olhamos para trás.)
Haviam sido propostos cerca de quinze nomes para os Cerions da Grande
Bahama e de Abaco, a ilha vizinha. Depois de uma semana, Woodruff e eu
descobrimos que apenas duas populações distintas habitavam essas ilhas, cada
uma restrita a um meio ambiente definido e diferente.
As ilhas Abaco e Grande Bahama projetam-se acima de uma plataforma rasa
chamada Pequena Plataforma das Bahamas (ver o mapa anexo). Quando o nível
do mar estava mais baixo, durante a última era glacial, a plataforma inteira
emergiu e as ilhas ficaram ligadas por terra. A Pequena Plataforma das Bahamas
está separada por oceano profundo da Grande Plataforma das Bahamas, maior
berço das ilhas mais conhecidas do arquipélago (New Providence, onde fica
Nassau, a capital das ilhas, Bímini, Andros, Eleuthera, Cat, o grupo Exuma e
várias outras). Todas essas ilhas também estiveram ligadas por terra durante as
épocas glaciais, quando o nível do mar era baixo. À medida que Woodruff e eu
passávamos de ilha para ilha na Grande Plataforma das Bahamas, encontramos o
mesmo padrão de duas populações diferentes, sempre nos mesmos meios
ambientes distintos. Na Pequena Plataforma das Bahamas, uma dúzia de nomes
inválidos haviam caído nesse padrão. Na Grande Plataforma das Bahamas, eles
desabaram, literalmente, para a centena. Cerca de um terço de todas as
“espécies” de Cerion (perto de duzentos ao todo) mostraram ser nomes
inválidos, baseados em variações menores dentro desse padrão único. Havíamos
reduzido um caos de nomes impróprios a uma ordem única, baseada na ecologia.
(Essa redução aplica-se apenas às ilhas da Pequena e da Grande Plataforma das
Bahamas. As ilhas de outras plataformas no sudeste do arquipélago, inclusive a
ilha Long, a ilha mais ao sudeste da Grande Plataforma das Bahamas, contêm
Cerions verdadeiramente diversos. Esses Cerions também podem ser reduzidos a
padrões coerentes, baseados em poucas espécies genuínas. Mas não há espaço
para tanto no presente ensaio, e restrinjo-me aqui apenas às Bahamas
setentrionais.)
As ilhas das Bahamas possuem dois tipos diferentes de Unhas costeiras. As
ilhas principais encontram-se nas bordas das plataformas. As plataformas em si
são bem rasas nas suas partes superiores, mas as bordas mergulham
precipitadamente no oceano profundo. Assim, as costas localizadas nas bordas
das plataformas são limítrofes ao oceano aberto e tendem a ser ásperas e
tempestuosas. Ao longo das costas varridas pelo vento, formam-se dunas que
acabam por se solidificar em forma de rocha (muitas vezes chamadas
erroneamente de “coral” pelos turistas). Portanto, as costas nas bordas das
plataformas tendem a ser também rochosas. Por contraste, as linhas costeiras das
regiões internas das plataformas — vou chamá-las de costas internas — são
rodeadas por águas calmas, rasas, que se estendem por milhas e não promovem a
formação de dunas. As costas internas, portanto, tendem a ser cobertas de
vegetação, baixas e calmas.
Woodruff e eu descobrimos que as costas externas das Bahamas setentrionais
são habitadas invariavelmente por Cerions de casca grossa, cheia de nervuras,
com coloração uniforme (do branco ao castanho meio escuro), relativamente
larga e de lados paralelos. Para não escrever a maior parte do resto desta coluna
em latim, vou deixar de lado os nomes formais e me referir a essas formas como
‘ ‘populações com nervuras” (ver fotografia da p. 161). As costas internas são o
lar de Cerions de casca fina, sem nervuras ou com poucas nervuras, de coloração
pintalgada (em geral com manchas brancas e castanhas), estreitas e em forma de
barril — as “populações malhadas”. (Os Cerions malhados também vivem longe
das costas, no centro das ilhas, enquanto os Cerions com nervuras estão
confinados exclusivamente às bordas das plataformas.)
Esse padrão é tão coerente e invariável que podemos “mapear” as zonas
híbridas antes mesmo de visitar uma ilha, simplesmente olhando uma carta de
batimetria. As zonas híbridas ocorrem onde as costas externas e internas se
encontram.
Esse padrão poderia parecer merecedor de algo mais que um indulgente
“hum, hum”. Talvez as conchas malhadas e as conchas com nervuras não sejam
tão diferentes. Talvez os dois meios ambientes extraiam as suas formas diversas
diretamente do mesmo material genético básico, como uma comida boa e
abundante pode tomar um homem gordo, e uma comida miserável transformar o
mesmo figurão num espantalho. A própria precisão e a previsibilidade da
correlação entre forma e meio ambiente poderiam sugerir esta solução
biologicamente sem graça. Dois argumentos, porém, parecem se opor de forma
conclusiva a essa interpretação e indicar que os Cerions malhados e os com
nervuras são entidades biológicas diferentes.
Primeiro, os caracóis com nervuras não são meramente formas malhadas
com conchas mais grossas e com mais nervuras. Como minha contribuição
técnica para nosso trabalho conjunto, eu meço cada concha de vinte modos
diferentes. Esse esforço me permite caracterizar o desenvolvimento e a forma
adulta final em termos matemáticos. Pude demonstrar que as diferenças entre os
caracóis cóm nervuras e os malhados envolvem diversos determinantes de forma
com variação independente.
Segundo, uma análise das zonas híbridas prova que elas caracterizam uma
mistura de duas entidades diferentes, não uma fusão homogênea de populações
separadas apenas superficialmente. Minha análise morfológica demonstra, em
muitos casos, as anomalias de forma e a variação aumentada que ocorrem com
frequência quando dois programas de desenvolvimento diferentes são misturados
na prole. A análise genética de Woodruff também prova que os híbridos
combinam dois sistemas substancialmente diferentes, já que ele encontrou uma
variabilidade genética em geral aumentada nas amostragens híbridas e genes não
encontrados em nenhuma das populações progenitoras.
Podemos demonstrar que os caracóis com nervuras e os malhados
representam populações com diferenças biológicas substanciais, mas não
podemos especificar a causa da separação, já que não nos foi possível fazer a
distinção entre duas hipóteses. Primeiro, a ecológica: as formas com nervuras e
as malhadas podem ser adaptações recentes e imediatas aos seus meios
ambientes locais diversos. Conchas brancas ou com cores claras dificilmente são
vistas contra o fundo de rochas de dunas das costas externas, enquanto as
conchas grossas e com nervuras protegem os seus portadores nessas costas
rochosas e varridas pelo vento. As conchas malhadas são igualmente difíceis de
ser vistas (na verdade, camuflam-se de modo notável) sob a luz solar filtrada
pela vegetação que abriga o Cerion na maioria das costas internas, enquanto as
conchas finas e leves também estão bem adaptadas para que os seus portadores
se pendurem em galhos finos e folhas de grama. Segundo, a histórica: o padrão
pode ser consideravelmente mais antigo (embora, ainda assim, seja
provavelmente adaptativo pelas razões citadas acima). Quando o nível do mar
era bem mais baixo e as plataformas estavam expostas, durante os períodos
glaciais, talvez as populações com nervuras habitassem todas as costas (já que
todas elas estavam então nas bordas das plataformas) enquanto as populações
malhadas evoluíam no interior da ilha. Quando o nível do mar subiu, os caracóis
com nervuras e os malhados simplesmente conservaram as suas posições e
preferências. As novas costas no interior das plataformas eram o interior de ilhas
maiores e continuam a ser o abrigo de caracóis malhados.
A distinção de caracóis malhados e caracóis com nervuras resolveu quase
todos os duzentos nomes anteriormente dados aos Cerions das Bahamas
setentrionais. Mas um problema (envolvendo mais cerca de dez nomes)
permaneceu. Um terceiro tipo de Cerion, com uma concha grossa, mais lisa, de
um branco puro, e com formato triangular, fora encontrado em Eleuthera e na
ilha Cat. Os relatos anteriores não indicavam nada a respeito da sua ecologia ou
dos seus hábitos, mas encontramos esses grossos caracóis brancos em duas áreas
separadas do sul de Eleuthera e no sudeste da ilha Cat. Eles preferem o interior
das ilhas e encaixam-se no padrão geral do Cerion com uma previsibilidade
gratificante — isto é, eles produzem híbridos com as populações malhadas
quando nos aproximamos das costas internas, e com as populações com nervuras
quando nos aproximamos das costas externas. Mas o que são eles? Assim como
a ecologia e a genética resolveram o padrão básico de caracóis malhados e
caracóis com nervuras, devemos recorrer à paleontologia para explicar a nossa
fonte restante de diversidade.
As dunas fósseis das Bahamas formaram-se em tempos em que o nível do
mar era alto, durante os períodos mais quentes entre os episódios de glaciação
(eras glaciais). Três conjuntos principais de dunas formaram New Providence, a
única das ilhas Bahamas com um pedigree geológico documentado (ver Garrett
e Gould, na Bibliografia). Esses abrangem, do mais jovem para o mais velho,
umas poucas dunas pequenas com menos de 10.000 anos e depositadas desde
que se derreteram as últimas geleiras; um conjunto extenso (que forma a espinha
dorsal da ilha) representando os altos níveis do mar há 120.000 anos, antes que
se formassem as últimas geleiras; e um conjunto menor (situado perto do centro
da ilha) construído há mais de 200.000 anos, antes de um período glacial
anterior. As dunas mais antigas contêm um Cerion fóssil agora desconhecido nas
Bahamas (ver fotografia na p. 164). O segundo e maior conjunto possui duas
espécies de Cerion, uma forma anã agora extinta e uma espécie grande, lisa,
chamada Cerion agassizi (o nome foi dado em homenagem a Alexander
Agassiz, filho de Louis, e um pioneiro da oceanografia científica nas índias
Ocidentais). O conjunto mais recente, como é de esperar, contém tanto Cerions
de nervuras quanto malhados, como na fauna modema. Comparamos os grandes
caracóis brancos de Eleuthera e da ilha Cat com o C. agassizi e não descobrimos
nenhuma diferença substancial. As populações pequenas nessas ilhas são
sobreviventes de uma espécie que já foi abundante em todas as ilhas da Grande
Plataforma das Bahamas.
As duzentas “espécies” de Cerion das Bahamas setentrionais reduzem-se,
portanto, a três tipos básicos com uma distribuição sensata e ordenada. O padrão
geográfico identificou as populações com nervuras e as malhadas, mas
precisamos recorrer à história para compreender as conchas brancas e lisas das
ilhas Eleuthera e Cat. É tremendamente grande a distância que separa este
exercício taxonômico em história natural do nosso objetivo final — compreender
como evolui a inigualável diversidade de forma do Cerion — mas demos o
primeiro passo no único caminho que conheço.
Para exemplificar a maneira pela qual esse padrão esclarece a questão maior,
usamos a nossa distinção entre caracóis malhados e caracóis com nervuras para
provar, pela primeira vez, que a hipótese não-convencional expressada pela
maioria dos especialistas em Cerion é realmente válida: a série complexa de
caracteres que definem tais formas básicas como caracóis malhados e caracóis
com nervuras pode ser desenvolvida de modo independente várias vezes.
Encontramos a mesma distinção de caracóis malhados e com nervuras tanto na
Pequena quanto na Grande Plataforma das Bahamas. A sabedoria convencional
sustentaria que os caracóis malhados de ambas as plataformas representam um
único tronco, enquanto os caracóis com nervuras formam um único grupo
genealógico. Mas Daniel Chung, um aluno de Woodruff, e Simon Tillier, um
proeminente anatomista de caracóis terrestres do Museu de Paris, estudaram para
nós a anatomia genital desses caracóis, e fizeram a seguinte e surpreendente
descoberta: ambos os caracóis, os malhados e os com nervuras, da Pequena
Plataforma das Bahamas, compartilham a mesma anatomia, ao passo que os
caracóis malhados e os com nervuras da Grande Plataforma das Bahamas têm
um conjunto de estruturas genitais distintamente diferentes. (A anatomia genital
é o instrumento-padrão para o estabelecimento de parentesco entre caracóis
terrestres. As diferenças são profundas e complexas o suficiente para indicar que
a anatomia compartilhada reflete a ascendência comum, enquanto a morfologia
compartilhada da concha deve evoluir de modo independente.) Assim, o
complexo de traços que define os caracóis malhados e os com nervuras pode
evoluir diversas vezes. Não teríamos sido capazes de chegar a essa conclusão se
não houvéssemos extraído o padrão de caracóis malhados e caracóis com
nervuras do caos de nomes antes existente.
Neste ponto, acho que começamos a vislumbrar vagamente o mistério mais
profundo da forma. Demonstramos que um conjunto complexo de traços
independentes pode ser desenvolvido virtualmente do mesmo modo mais de uma
vez. Não vejo como isso pode acontecer, se cada traço tiver de ser desenvolvido
em separado, seguindo o seu próprio caminho genético, a cada vez. Os traços
devem estar, de algum modo, coordenados no programa genético do Ceriom,
eles devem ser acionados ou “suscitados” juntos. Algum gatilho genético deve
coordenar o aparecimento conjunto desses caracteres. O programa genético
mestre de todos os Cerions codifica caminhos alternativos que representam as
formas básicas que se desenvolvem repetidas vezes? As mutações homeóticas de
insetos (ver ensaio 15 em Hen’s Teeth and Horse’s Toes) indicam que algum
sistema hierárquico de tal tipo deve regular o desenvolvimento, pois a produção
de órgãos bem formados nos lugares errados (pernas no lugar de antenas, por
exemplo) indica que alguma chave-mestra deve regular todos os genes que
produzem pernas, e que controles superiores devem acionar a chave-mestra no
lugar errado ou no momento errado. Do mesmo modo, alguma chave-mestra
dentro do programa do Cerion deve acionar algum dos seus caminhos básicos de
desenvolvimento e promover repetidas vezes a evolução do conjunto de traços
que caracteriza as suas formas fundamentais.
Desse modo, o Cerion fornece um vislumbre do que pode ser o problema
mais difícil e importante da teoria evolutiva: Como podem surgir formas novas e
complexas (não meramente características isoladas com um benefício adaptativo
óbvio) se cada uma requer milhares de mudanças separadas, e se estágios
intermediários fazem pouco sentido como organismos em funcionamento? Se os
programas genético e de desenvolvimento são organizados hierarquicamente,
como sugerem as mutações homeóticas e a evolução múltipla de formas básicas
no Cerion, então modelos anatômicos novos não têm de surgir em etapas (com
todos os intratáveis problemas vinculados a tal opinião), mas de maneira
coordenada, por meio de chaves-mestras (ou “reguladores”) de programas de
desenvolvimento. Ainda assim, é tão profunda a nossa ignorância a respeito da
natureza do desenvolvimento e da embriologia que temos de olhar os produtos
finais (uma Drosophila adulta com uma perna no lugar da antena, ou Cerions
malhados desenvolvidos repetidas vezes) para fazer inferências incertas a
respeito dos mecanismos subjacentes.
Escolhi o Cerion porque achei que ele poderia ilustrar estas grandes e
confusas questões. Ainda assim, embora sempre se esgueirem no fundo da
minha mente, elas não são a fonte da minha alegria diária. Pequenas previsões
que são comprovadas ou pequenos palpites que se revelam incorretos e são
substituídos por ideias mais interessantes são o alimento da satisfação contínua.
O Cerion, ou qualquer outro projeto de campo bom, oferece estímulo
interminável, contanto que pequenos enigmas permaneçam tão intensamente
absorventes, fascinantes e frustrantes como grandes questões. O trabalho de
campo não é como o centésimo milésimo ensaio sobre os sonetos de
Shakespeare; ele sempre apresenta algo verdadeiramente novo, não uma glosa de
comentários anteriores.
Lembro-me de quando descobrimos a primeira população de Cerions
agassizi vivos no centro de Eleuthera. Nossa primeira hipótese do padrão geral
do Cerion exigia que fossem confirmadas duas previsões (ou, do contrário,
estaríamos numa encrenca): essa população devia desaparecer por meio de
hibridação com conchas nialhadas na direção das costas internas e com caracóis
com nervuras na direção das costas externas. Caminhamos para o oeste na
direção das costas internas e encontramos híbridos facilmente, logo na beira da
estrada do aeroporto. Deslocamo-nos então para o leste, em direção à costa
externa, por uma estrada em desuso, onde a vegetação chegava a cinco pés no
espaço central entre os pneus. Devíamos ter encontrado os nossos híbridos, mas
não encontramos. O Cerion agassizi simplesmente desaparecia cerca de duzentas
jardas ao norte do nosso primeiro Cerion com nervuras. Percebemos então que
havia um pequeno lago bem do nosso lado leste, e que as formas com nervuras,
com suas preferências costeiras, talvez não gostassem do lado oeste do lago.
Vadeamos o lago e encontramos uma zona híbrida clássica entre o Cerion
agassizi e os Cerions com nervuras. (O Cerion com nervuras havia conseguido
apenas contornar a extremidade sul do lago, mas ainda não se deslocara o
suficiente para o norte ao longo do lado oeste para estabelecer contato com as
populações de C. agassizi). Eu quis gritar de alegria. Então pensei: “Mas para
quem eu posso contar; quem se importa?” E respondi a mim mesmo: “Não tenho
de contar para ninguém. Acabo de ver e compreender algo que ninguém jamais
viu e compreendeu antes. Do que mais precisa um homem?”
Um colega eminente, um bom teórico que cumpriu suas obrigações de
trabalho de campo, disse-me certa vez, brincando apenas em parte, que o
trabalho de campo é um modo dos diabos de se obter informações. Tanto tempo,
tanto esforço, tanto dinheiro, muitas vezes para se conseguir resultados pequenos
quando comparados com as horas investidas. É verdade, especialmente quando
fico contando as horas que gasto bebendo café cubano, o único prazer do meu
lugar menos favorito, o aeroporto de Miami. Mas todas as frustrações e todos os
esforços monótonos, repetitivos, tornam-se insignificantes diante da alegria pura
de descobrir algo novo — e esse prazer pode ser saboreado quase todos os dias
quando também se ama as pequenas coisas. Dizer: “Nós descobrimos isso; nós
compreendemos isso; nós conseguimos extrair sentido e ordem da confusão da
natureza.” Pode existir recompensa maior?
Admiro a abrangência e a coerência da visão de Oken, mas vou descer ao
domínio do sensato e quero ser o tio de um macaco se ela diz alguma coisa de
significativo sobre a natureza.
Assim como Oken construiu as suas rodas ascendentes de cinco na
Alemanha durante as décadas anteriores a Darwin, outra teoria taxonômica, o
sistema quinário, levou muitos naturalistas ingleses a ordenar todos os
organismos em círculos de cinco diferentes. O sistema quinário atrai a
comparação com o sistema de Oken porque ele também construiu círculos de
cinco em escalas diferentes e procurou correspondências entre organismos na
mesma posição em diferentes círculos. Ele também tentou resolver a aparente
contradição entre o progresso linear e a repetição circular.
O sistema quinário baseia-se numa separação entre dois tipos de
similaridade: afinidade e analogia. Vínculos de afinidade unem formas no
mesmo círculo; as analogias especificam a correspondência entre círculos. Por
exemplo, William Swainson, um proeminente representante britânico da teoria
quinária, justificou em 1835 o seguinte círculo de vertebrados. Reconhecemos os
peixes, anfíbios, répteis, aves e mamíferos como cinco grupos de modelo
anatômico comum. Mas como eles podem representar ao mesmo tempo um
caminho ascendente e um círculo fechado de cinco? Swainson argumenta que
devemos unir cada par por meio de uma forma intermediária que mostra
vínculos de afinidade — do peixe ao anfíbio através do girino, do anfíbio ao
réptil através da rã adulta, do réptil à ave através do pterodáctilo, da ave ao
mamífero através do ornitorrinco, e do mamífero de volta ao peixe através do
maior agente de transporte natural, a baleia. Como as baleias ligam os mamíferos
superiores aos peixes inferiores, o caminho de progresso curva-se sobre si
mesmo e forma um círculo. “A própria natureza”, proclamou Swainson,
‘‘descreve o grandioso círculo e declara-o completo.”
O círculo dos vertebrados pode então ser unido a outros círculos em escalas
menores e maiores por meio de vínculos de analogia que ligam grupos em
posições similares. (Devo confessar que os argumentos de Swainson parecem
tão forçados quanto os de Oken. Os adeptos da teoria quinária nunca
apresentaram critérios rigorosos para os motivos pelos quais certas relações
devem ser chamadas de afinidade e outras de analogia. Fica-se com a
desagradável sensação de que eles elaboraram de antemão os seus círculos
preferidos e então inventaram justificativas ad hoc para as afinidades e analogias
assim ordenadas — embora o método supostamente funcionasse em ordem
inversa, construindo-se círculos e correspondências a partir de dados brutos de
afinidade e analogia.) Por exemplo, Swainson ordenou todos os animais em
círculos de Radiata (equinodermos e parentes), Acrita (protozoários e outras
criaturas “simples”), Testacea (moluscos), Annulosa (vermes segmentados,
insetos e crustáceos), e Verte-brata. Os supostos vínculos de analogia com o
círculo dos vertebrados parecem, no mínimo, um tanto artificiosos: os mamíferos
com os vertebrados na condição dos mais aperfeiçoados de cada círculo; os
peixes com os radiários porque ambos são exclusivamente aquáticos, “não tendo
nenhuma espécie de nenhum dos grupos sido ainda descoberta em terra”;
Amphibia com Acrita porque ambos (aguente essa) “por mais dissimilares que
sejam em outros aspectos são notáveis por mudarem suas formas mais do que
qualquer outro dos tipos aberrantes em cada um dos círculos”; os répteis com os
moluscos porque tanto as serpentes quanto os caracóis não têm pés e rastejam
sobre os seus ventres; e as aves com os Annulosa porque os insetos também
voam.
Fiquei desapontado ao descobrir que o artigo sobre Swainson na bíblia dos
historiadores, o Dictionary of Scientific Biography (chamado DSB por todos do
ramo), segue a antiga tradição, já criticada neste ensaio, de desprezar sistemas
ultrapassados como pateticamente tolos à luz do conhecimento moderno:
A sua infatigável atividade na história natural e o trabalho consciencioso em
prol dela merecem ser lembrados como uma compensação para o prejuízo
que ele inadvertidamente causou por sua adesão ao absurdo sistema quinário.
... Essa teoria extraordinária foi tenazmente mantida por Swainson ao longo
de toda a sua carreira zoológica e certamente prejudicou muito o seu
trabalho.
Oken e Swainson foram legítima e severamente criticados em seus próprios
termos. (Tentei formular alguns desses argumentos expondo os critérios
fantasiosos usados para estabelecer os círculos de cinco e extrair analogias entre
eles.) Mas eles não eram tolos ou loucos, e os seus sistemas não eram absurdos.
Oken e Swainson ocupavam uma posição destacada entre os melhores
historiadores naturais da Europa, e os seus sistemas numéricos de taxonomia
foram populares e competidores sérios entre os esquemas contemporâneos de
ordenamento da natureza.
Sistemas numéricos rígidos só se tornaram absurdos posteriormente, à luz da
evolução, pois a sua respeitabilidade está assentada em teorias tidas como sendo
as causas da ordem da natureza. Se Deus colocou as espécies na Terra (como
Swainson acreditava), então ele poderia ter agido com uma precisão numérica
que exibiria o rigor e a harmonia dos seus pensamentos. Se leis simples, em vez
de acidentes da história, estabelecem a sequência dos organismos (como Oken
sustentava), então a ordem numérica poderia surgir entre os animais, exatamente
como a tabela periódica regula os elementos químicos. A numerologia na
taxonomia pode hoje ser rejeitada como misticismo absurdo, mas, no tempo de
Oken e Swainson, essa abordagem corporificava um resultado sensato de teorias
defensáveis sobre as causas da ordem da natureza. Swainson expôs isso com
perfeição ao inferir a existência de Deus e a sua preocupação especial para
conosco da ordem quinária:
Quando descobrimos indicações evidentes de um plano definido, sobre o
qual todas essas modificações foram reguladas por algumas leis simples e
universais, nosso assombro é despertado não só pela sabedoria e pela
bondade inconcebíveis do SUPREMO pelo qual essas miríades de seres
foram criadas e são agora preservadas, como também pela cegueira mental e
pelo entendimento deturpado daqueles filósofos, assim falsamente
denominados, que gostariam de nos persuadir de que mesmo o Homem, a
última e a melhor das coisas criadas, é insignificante demais para merecer o
cuidado especial da Onipotência.
Darwin destruiu a regra de cinco para sempre porque eliminou a sua
fundamentação lógica reconstruindo a natureza. O seu agente de destruição não
foi a evolução em si. Posso imaginar teorias evolutivas (na verdade, algumas
foram propostas) tão comprometidas com o pré-ordenamento por meio de leis
simples ou inteligências diretoras que a ordem numérica ainda poderia surgir de
processos rigidamente previsíveis. O anjo exterminador de Darwin foi,
simplesmente, a história. A evolução não ocorre segundo leis simples que
especificam resultados necessários. Os seus caminhos são torcidos e sacudidos
por ambientes em mudança, de modificações de pouca monta na temperatura e
na precipitação ao soerguimento de cordilheiras, ao crescimento de geleiras, ao
deslocamento de continentes, e até (provavelmente) ao impacto de cometas e
asteroides. A evolução não pode atingir a perfeição de construção porque tem de
trabalhar com partes herdadas de histórias anteriores, de diferentes contextos: o
“polegar” do panda é um osso destacado do pulso, desajeitado, posto em serviço
porque o primeiro dígito de verdade ficou incumbido de outras funções durante a
sua vida ancestral como carnívoro convencional; suportamos o incômodo de
dores nas costas e a irritação das hérnias porque criaturas grandes, de quatro
patas, da nossa linhagem, não foram feitas para andar apoiadas em dois pés —
quatro patas, bom; duas patas, não tão bom.
Como os animais poderiam evoluir ao longo dos tortuosos caminhos da
história e dispor-se ordenadamente em círculos de cinco? A precisão numérica
não pode regular a taxonomia porque a vida se desdobra no tempo. A evolução
registra uma história complexa, irrevogável; os seus caminhos não foram pré-
ordenados por regras simples ou inteligências diretoras.
Mas, ainda assim, a vida regulada pela história tem ordem — um padrão
firme, inelutável, definível, averiguável. A sua ordem é a topologia da sua
metáfora adequada — a árvore da vida. A sua ordem é a genealogia, a
vinculação por meio de ramificação e descendência. Swainson descreveu o
mundo biológico corretamente antes de ir longe demais:
Houvesse a ordem da natureza sido tão irregular a ponto de descobrirmos
que ela criara algumas aves com quatro pés, outras com dois, e algumas sem
nenhum; ou que, como o fabuloso grifo, existissem criaturas que fossem
metade quadrúpede, metade ave; ou se fossem encontrados insetos com pés
de quadrúpede e dedos de aves; em resumo, se existissem tais animais
compostos na natureza, as fundações da história natural como ciência nunca
poderiam ter sido estabelecidas.
Darwin então descobriu o motivo da ordem e mudou o mundo para sempre:
Algo mais está incluído na nossa classificação que a simples semelhança.
Creio que esse algo é... a afinidade de descendência — a única causa conhecida
da similaridade de seres orgânicos.
4. Tendências e o seu significado
Desejo propor um novo tipo de explicação para a história mais antiga da liga
de beisebol — a tendência mais amplamente discutida na história da estatística
do beisebol: a extinção do rebatedor de 400 (Trata-se de um rebatedor que deteve 40% de
sucesso em suas rebatidas, rebatidas que se converteram em pontos - N.R.T.). Os entusiastas do
beisebol nadam em estatísticas, uma obsessão sensata que os não-iniciados
compreendem com dificuldade e ridicularizam com frequência. Os motivos não
são difíceis de se compreender. No beisebol, cada ação essencial é uma disputa
entre dois indivíduos — rebatedor contra arremessador, ou rebatedor contra
defensor — criando desse modo uma arena de feitos verdadeiramente
individuais dentro de um esporte de equipe.
Comparativamente, a abstração de feitos pessoais em outros esportes de
equipe faz pouco sentido. Os pontos marcados no basquete ou as jardas ganhas
no futebol americano dependem da complexidade indissolúvel do jogo de
equipe; uma corrida completa (home run) [Ocorre toda vez que um rebatedor consegue
percorrer as quatro bases do campo após uma rebatida e antes de a defesa chegar com a bola - N.R.T.], é
você contra o outro. Além disso, o beisebol tem sido jogado de acordo com um
conjunto de regras e condições suficientemente constantes durante o nosso
século para tornar as comparações significativas, e, no entanto, suficientemente
diferentes em detalhe para proporcionar matéria interminável para debate (a
“bola morta” de 1900-1920 contra a “bola viva” de anos posteriores, a
introdução de jogos noturnos e da substituição de arremessadores, a invenção do
slider [É um tipo de jogada em que o rebatedor escorrega até uma base para ganhar tempo - N.R.T.] os
tamanhos mutáveis e irregulares dos campos, os da natureza contra os de
Astroturf).
Nenhum tema inspirou mais discussão do que o declínio e o desaparecimento
do batedor de .400 — ou, de modo mais geral, a queda nas médias principais de
rebatidas de confederação (Média de todos os rebatedores do campeonato - N.R.T.) durante o
nosso século. Como chafurdamos em nostalgia e temos uma tendência lúgubre
para fazer comparações desfavoráveis entre o presente e uma “era de ouro”
passada, essa tendência adquire ainda mais fascínio porque carrega implicações
morais ligadas metaforicamente a comidas ruins, bombas nucleares e meios
ambientes em erosão como sinais do presente declínio e da queda iminente da
civilização ocidental.
Entre 1901 e 1930, as médias principais de confederação de .400 ou
melhores eram bastante comuns (nove dentre trinta anos) e foram obtidas por
vários jogadores (Lajoie, Cobb, Jackson, Sisler, Heilman, Hornsby e Terry), e as
médias acima de .380 praticamente não mereciam grandes comentários. No
entanto, a abundância cessou abruptamente daí em diante. Em 1930, Bill Terry
conseguiu .401, tornando-se o último rebatedor de .400 na Confederação
Nacional; e os .406 de Ted Williams marcaram o último pináculo da
Confederação Americana. Desde que Williams, o maior rebatedor que já vi,
conseguiu o seu feito no ano do meu nascimento (e eu, ai de mim, não sou mais
um garotinho), apenas três homens conseguiram marcas acima de .380 em uma
única temporada: Williams novamente em 1957 (.388, com 38 anos e o meu
voto de maior feito em rebatidas da nossa era), Rod Carew (.388 em 1977), e
George Brett (.390 em 1980). Para onde foram todos os grandes rebatedores?
Dois tipos um tanto diferentes de explicação têm sido tradicionalmente
oferecidos. O primeiro, ingênuo e moralista, apenas reconhece com um suspiro
que naqueles dias existiam gigantes na Terra. Algo em nós sente a necessidade
de criticar sem piedade o presente à luz de um passado irrealmente róseo. Ao
pesquisar a história da má conduta, por exemplo, descobri que cada geração
(pelo menos desde a metade do século XIX) tem se imaginado mergulhada numa
onda de crime. Cada era também tem testemunhado um declínio chocante de
esportividade. De modo similar, cidadãos mais velhos da liga de beisebol, assim
como torcedores mais jovens (pois a nostalgia pode conseguir o seu maior
impacto junto aos que são jovens demais para ter conhecimento direto de uma
realidade passada), tendem a afirmar que os rebatedores de .400 de tempos
passados simplesmente tinham mais interesse e se esforçavam mais. Bem, Ty
Cobb pode ter sido um exemplo acabado de intensidade, além de um diabo, e
Pete Rose, em comparação, pode ser um cavalheiro, mas o jogo de hoje é tudo,
menos apático. Digam o que quiserem, recompensas monetárias em milhões sem
dúvida inspiram esforços sinceros.
O segundo tipo de explicação encara as pessoas como basicamente iguais ao
longo do tempo e atribui a tendência de decréscimo nas médias principais de
rebatidas de confederação a mudanças no esporte e nos seus estilos de jogo. As
mais citadas são os progressos no arremesso e na defesa e as programações mais
extenuantes que reduzem o nível de excelência. J. L. Reichler, por exemplo, um
dos principais colecionadores de fatos do beisebol, argumenta (ver Bibliografia):
As chances de surgir outro batedor de .400 são bastante desfavoráveis por
causa do tremendo progresso na substituição de arremessadores e na defesa.
Os jogadores de hoje enfrentam as desvantagens de uma programação maior,
que desgasta até mesmo os atletas mais fortes, e de uma quantidade maior de
jogos noturnos, nos quais a bola é mais difícil de ser vista.
Não contesto os motivos de Reichler, mas creio que ele oferece uma
explicação incompleta, expressada a partir de uma perspectiva inadequada.
Outra proposta nessa segunda categoria de explicações invoca a numerologia
do beisebol. Todos os especialistas em estatísticas sabem que, após a introdução
da bola viva no começo da década de 1920 (e o estrago que Babe Ruth fez em
cima disso), as médias de rebatida dispararam de um modo geral e
permaneceram altas durante vinte anos. Como a tabela anexa demonstra, as
médias de confederação para todos os jogadores subiram para a casa dos .280 em
ambas as confederações durante a década de 1920 e permaneceram na dos .270
durante a década de 1930, mas nunca passaram de .260 em nenhuma outra
década do nosso século. Naturalmente, se as médias de confederação subiram de
modo tão considerável, não deve ser motivo de surpresa para nós que os
melhores rebatedores também tenham melhorado as suas marcas. A grande era
das médias de .400 na Confederação Nacional realmente ocorreu durante a
década de 1920 (outro episódio importante de medidas altas ocorreu na era pré-
moderna, durante a década de 1890, quando a média por década subiu para .280
— ela fora de .259 na de 1870 e de .254 na de 1880).
Mas esse fator simples também não consegue explicar a extinção do
rebatedor de .400. Ninguém conseguiu atingir .400 em nenhuma das
confederações entre 1931 e 1940, embora as médias de confederação tenham
estado vinte pontos acima dos valores das duas primeiras décadas do século,
quando as batidas com efeito estavam em moda. Uma comparação dessas duas
primeiras décadas com tempos recentes sublinha tanto o problema quanto o
fracasso das soluções comumente propostas — pois as marcas altas (e as de .400
em particular) floresceram de 1900 a 1920, mas as médias de confederação na
época não foram diferentes das de décadas recentes, ao passo que as marcas altas
desapareceram sem deixar traços.
Considere-se, por exemplo, a Confederação Americana durante os períodos
de 1911-1920 (média de confederação, .259) e de 1951-1960 (média de
confederação, .257). Entre 1911 e 1920, foram registradas médias acima de .400
durante três anos, e a média principal caiu abaixo de .380 apenas duas vezes (os
.368 e os .369 de Cobb em 1914 e 1915). Esse padrão de médias altas não se deu
apenas por obra e graça de Ty Cobb. Em 1912, Cobb conseguiu .410, enquanto o
malfadado Shoeless Joe Jackson alcançou .395, Tris Speaker, .383, Nap Lajoie,
com 37 anos, .368, e Eddie Collins, .348. Em comparação, durante 1951-1960,
apenas três médias principais excederam o quinto lugar de Eddie Collins, com
.348 (Mantle, com .353 em 1956, Kuenn, com .353 em 1959, e Williams, com os
seus já discutidos .388, em 1957). A década de 1950, diga-se de passagem, não
foi uma década de incompetentes, contando com gente como Mantle, Williams,
Minoso e Kaline. Assim, um declínio geral nas médias principais de
confederação ao longo do século não pode ser explicado por uma inflação de
médias gerais durante duas décadas intermediárias. Ficamos às voltas com um
enigma. Como acontece com os enigmas mais persistentes, provavelmente
precisamos de um novo tipo de explicação, não de uma simples reciclagem e
refinamento de argumentos antigos.
Sou paleontólogo por ofício. Nós, estudiosos da história da vida, gastamos a
maior parte do tempo preocupando-nos com tendências de longo prazo. A vida
tornou-se mais complexa ao longo do tempo? Existem mais espécies de animais
agora do que há duzentos milhões de anos? Há vários anos, ocorreu-me que
sofremos de uma predisposição sutil, mas poderosa, na abordagem que adotamos
para explicar tendências. Os extremos nos fascinam (o maior, o menor, o mais
velho), e tendemos a nos concentrar apenas neles, divorciados dos sistemas em
que estão incluídos na condição de valores incomuns. Ao explicar extremos, nós
os abstraímos de sistemas maiores e presumimos que as suas tendências surgem
por motivos autogerados: se os maiores se tornam ainda maiores ao longo do
tempo, uma vantagem poderosa deve acompanhar o aumento de tamanho.
Mas se considerarmos os extremos como valores-limite de sistemas maiores,
muitas vezes um tipo bem diferente de explicação se impõe. Se a quantidade de
variação dentro de um sistema muda (seja qual for o motivo), então os valores
extremos podem aumentar (se a variação total crescer) ou diminuir (se a variação
total cair) sem qualquer motivo especial baseado no caráter ou no significado
intrínsecos dos valores extremos em si. Em outras palavras, tendências em
extremos podem ser o resultado de mudanças sistemáticas em quantidades de
variação. Os motivos das mudanças de variação são muitas vezes
consideravelmente diferentes dos motivos propostos (com frequência espúrios)
para mudanças de extremos considerados como independentes dos seus sistemas.
Permitam-me ilustrar este conceito pouco conhecido com dois exemplos da
minha profissão — um para o aumento, outro para a diminuição de valores
extremos. Primeiro, um exemplo de aumento de valores extremos
apropriadamente interpretado como uma expansão de variação: os maiores
tamanhos de cérebros dos mamíferos aumentaram constantemente ao longo do
tempo (os campeões de miolos conseguiram mais miolos). Muitas pessoas, a
partir desse fato, inferem que tendências inexoráveis para um aumento de
tamanho do cérebro afetam a maioria ou todas as linhagens de mamíferos. Não é
assim. Dentro de vários grupos de mamíferos, o tamanho mais comum de
cérebro não mudou em nada desde que o grupo se tornou estabelecido. Contudo,
a variação entre as espécies aumentou — isto é, a amplitude de tamanhos de
cérebro tem crescido à medida que as espécies se tornam mais numerosas e mais
diversificadas nas suas adaptações. Se nos concentrarmos somente em valores
extremos, veremos apenas um aumento geral ao longo do tempo e presumiremos
algum valor intrínseco e inelutável no tamanho crescente do cérebro. Se
considerarmos a variação, veremos apenas uma expansão de amplitude ao longo
do tempo (levando, é claro, a valores extremos maiores), e ofereceremos uma
explicação diferente baseada nos motivos para a diversidade aumentada.
Segundo, um exemplo de diminuição de extremos interpretado
apropriadamente como um declínio de variação: um padrão característico na
história da maioria dos invertebrados marinhos foi denominado “experimentação
inicial e padronização posterior”. Quando surge um novo modelo de corpo, a
evolução parece explorar todos os tipos de torceduras, voltas e variações. Uns
poucos funcionam bem, mas a maioria não (ver ensaio 16). Por fim, apenas uns
poucos sobrevivem. Os equinodermos apresentam-se hoje em cinco variedades
básicas (dois tipos de estrela-do-mar, ouriços-do-mar, pepinos-do-mar e
crinóides — um grupo pouco familiar, que lembra mais ou menos uma estrela-
do-mar com vários braços em cima de um talo). Mas quando os equinodermos se
desenvolveram pela primeira vez, eles irromperam numa série impressionante de
mais de vinte grupos básicos, incluindo alguns torcidos como uma espiral e
outros com uma simetria bilateral tão acentuada que alguns paleontólogos
interpretaram-nos como ancestrais dos peixes. De modo similar, os moluscos
hoje existem na forma de caramujos, mariscos, cefalópodes (polvos e
aparentados), e mais dois ou três grupos raros e pouco familiares. Mas eles
exibiram de dez a quinze variações fundamentais no começo da sua história.
Essa tendência para aparar e eliminar extremos é com certeza a mais comum na
natureza. Quando os sistemas surgem pela primeira vez, eles examinam todos os
limites de possibilidades. Muitas variações não funcionam; surgem as melhores
soluções, e a variação diminui. À medida que os sistemas se regularizam, a
variação decresce.
A partir desta perspectiva, ocorreu-me que poderíamos estar encarando o
problema do rebatedor de .400 pelo lado errado. As médias principais de
confederação são valores extremos dentro de sistemas de variação. Talvez o seu
decréscimo ao longo do tempo testemunhe simplesmente a padronização que
afeta tantos sistemas à medida que eles se estabilizam — inclusive a própria
vida, tal como foi declarado acima e desenvolvido no ensaio 16. Quando o
beisebol era jovem, os estilos de jogo ainda não haviam se tornado regulares o
suficiente para frustrar os truques dos que eram bons de verdade. Wee Willie
Keeler podia “acabar com eles onde quer que estivessem” (e marcar uma média
de .432 em 1897) porque os defensores ainda não sabiam onde deviam estar.
Aos poucos, os jogadores foram se deslocando rumo a métodos ótimos de
posicionamento, defesa, arremesso e rebatida — e a variação caiu
inevitavelmente. Os melhores encontravam agora uma oposição por demais
afinada à sua própria perfeição para admitir os extremos de realização de uma
era mais descuidada. Não podemos explicar o declínio das médias altas
simplesmente argumentando que os empresários inventaram a substituição de
arremessadores, enquanto os arremessadores inventaram o slider — explicações
convencionais baseadas em tendências que afetam as médias altas consideradas
como um fenômeno independente. Mais exatamente, o jogo inteiro aprimorou os
seus padrões e diminuiu as suas amplitudes de tolerância.
Assim, apresento a minha hipótese: o desaparecimento do rebatedor de .400
(e o declínio geral das médias principais de confederação ao longo do tempo)
resulta em boa parte de um fenômeno geral — um decréscimo de variação de
médias de rebatida à medida que o esporte padronizava os seus métodos de jogo
— e não de uma tendência intrinsecamente impelida justificando uma explicação
especial em si mesma.
Para testar tal hipótese, precisamos examinar as mudanças ao longo do
tempo na diferença entre médias principais de confederação e a média geral de
todos os rebatedores. Se eu estiver certo, essa diferença deve decrescer. Mas
como a minha hipótese envolve um sistema inteiro de variação, então, algo
paradoxalmente, devemos examinar também as diferenças entre as médias de
rebatida mais baixas e a média geral. A variação deve diminuir em ambas as
pontas — isto é, dentro do sistema inteiro. Tanto as médias de rebatida mais
altas quanto as mais baixas devem convergir rumo à média geral de
confederação.
Assim, peguei a minha fiel Baseball Encyclopedia, aquele vade mecum de
todos os torcedores sérios (embora, com mais de 2.000 páginas, seja meio difícil
andar com ela debaixo do braço). A enciclopédia relata as médias de
confederação de cada ano e relaciona as cinco maiores médias para jogadores
que tenham pego o bastão oficialmente um número suficiente de vezes. Como os
extremos altos nos fascinam, ao passo que os baixos são apenas embaraçosos,
não há nenhuma lista das médias mais baixas, e é preciso passar em revista
laboriosamente a lista inteira de jogadores. Nas médias mais baixas, encontrei
(para cada confederação em cada ano) as cinco marcas mais baixas de jogadores
que tenham pego o bastão pelo menos trezentas vezes. Então, para cada ano,
comparei a média de confederação com a média das cinco marcas mais altas e as
cinco mais baixas para jogadores frequentes. Por fim, tirei a média desses
valores anuais década por década.
No quadro anexo, apresento os resultados de ambas as confederações
combinadas — uma confirmação clara da minha hipótese, já que tanto as médias
mais altas quanto as mais baixas convergem para a média de confederação ao
longo do tempo.
O declínio medido das médias altas para o meio parece ocorrer na forma de
três patamares, apenas com variação limitada dentro de cada patamar. Durante o
século XIX (só a Confederação Nacional; a Confederação Americana foi
fundada em 1901), a diferença média entre as médias mais altas e as mais baixas
foi de 91 pontos (amplitude de 87 a 95, por década). De 1901 a 1930, ela caiu
para 81 (amplitude de apenas 80 a 83),. enquanto que para as cinco décadas
desde 1931, a diferença entre média e extremo teve como média 69 (com uma
amplitude de apenas 67 a 70). Esses três patamares correspondem a três eras
marcadas por médias de rebatida altas. A primeira inclui as médias
desembestadas da década de 1890, quando Hugh Duffy alcançou .438 (em 1894)
e todos os cinco jogadores principais superaram .400, no mesmo ano (o que não
é surpreendente, já que esse ano apresentou a infame experiência, logo
abandonada, de contar caminhadas[Esta regra dá ao rebatedor o direito de caminhar para uma
base após erros sucessivos do arremessador, direito que ele normalmente só teria quando conseguisse
rebater a bola - N.R.T.] como rebatida). O segundo patamar inclui todas as marcas
inferiores de batedores de .400 do nosso século, com exceção de Ted Williams
(Homsby encabeçou as tabelas com .424 em 1924). O terceiro patamar registra a
extinção das marcas de .400.As médias mais baixas exibem o mesmo padrão de
diferença decrescente em relação à média de confederação, com um declínio
precipitado por década, de 71 para 54 pontos durante o século XIX, e dois
patamares desde então (de mais ou menos 40 no começo do século para mais ou
menos 30 depois), seguidos por uma exceção ao meu padrão — um retorno para
mais ou menos’40 durante a década de 1970.
Os valores do século XIX devem ser tomados com restrições, já que as
regras do jogo eram um tanto diferentes. Durante a década de 1870, por
exemplo, as programações variavam de 65 a 85 jogos por temporada
(comparados com os 154 da maior parte do nosso século e os 162 de tempos
mais recentes). Com temporadas curtas e menos jogadores no bastão, a variação
deve aumentar, exatamente como, em nossos dias, as médias de junho e julho
abrangem uma amplitude maior do que as médias de fim de temporada, depois
que centenas de jogadores passaram pelo bastão. (Para temporadas curtas, usei
dois turnos no bastão por jogo como critério para inclusão nas tabulações de
médias baixas.) No entanto, na década de 1890, as programações haviam
aumentado para 130-150 jogos por temporada, e as comparações com o nosso
século tornam-se mais significativas.
Fiquei um tanto surpreso — e prometo aos leitores que não estou fazendo
racionalizações após o fato, mas atuando sobre uma previsão que fiz antes de
começar a calcular — com o fato de que o padrão de decréscimo não ofereceu
mais exceções durante as duas últimas décadas, porque o beisebol experimentou
uma profunda desestabilização, do tipo que os meus cálculos deveriam refletir.
Após meio século de jogo estável com oito times geograficamente estacionários
por confederação, o sistema finalmente se rompeu em resposta à maior
facilidade de transporte e ao maior acesso aos poderosos dólares. As sedes das
equipes começaram a mudar, e os meus adorados Dodgers e Giants
abandonaram Nova York em 1958. Então, no começo da década de 1960, ambas
as confederações aumentaram para dez times, e, em 1969, para doze times em
duas divisões.
Essas ampliações deveriam ter causado uma inversão nos padrões de
decréscimo entre médias extremas de rebatidas e médias de confederação.
Muitos jogadores menos que adequados tornaram-se regulares e fizeram
diminuir as médias baixas (Marvelous Marv Throneberry ainda está colhendo os
benefícios em anúncios de cerveja Lite). As médias de confederação também
declinaram, em parte como consequência do mesmo influxo, e chegaram no
nível mais baixo em 1968 com .230, na Confederação Americana. (Essa
tendência foi revertida por decreto em 1969, quando a base do arremessador
tornou-se mais baixa e a zona de rebatida obrigatória diminuiu para dar uma
chance melhor aos rebatedores.) Essa diminuição de médias de confederação
também deveria ter aumentado a distância entre rebatedores com médias altas e a
média de confederação (já que os jogadores muito bons não estavam sofrendo
um declínio geral de qualidade). Assim, surpreendeu-me que um aumento na
distância entre as médias de confederação e as médias mais baixas durante a
década de 1970 tenha sido o único resultado dessa desestabilização importante
que pude detectar.
Na condição de não profissional e não jogador, não posso precisar as
mudanças que fizeram com que o jogo se estabilizasse e a amplitude de médias
de rebatida diminuísse ao longo do tempo. Mas posso identificar o caráter geral
de influências importantes. As explicações tradicionais que encaram o declínio
das médias altas como uma tendência intrínseca têm de enfatizar invenções e
inovações explícitas que desencorajam a marcação de pontos — a introdução da
substituição de arremessadores e a maior quantidade de jogos noturnos, por
exemplo. Não nego que esses fatores tenham efeitos importantes, mas se o
declínio teve como causa principal, como proponho, um decréscimo geral na
variação das médias de rebatidas, então devemos recorrer a outros tipos de
influências.
Deveríamos nos concentrar na precisão, na regularidade e na padronização
crescentes do jogo — e devemos procurar os modos que os empresários e
jogadores descobriram para remover a vantagem de que desfrutavam no passado
os jogadores verdadeiramente excelentes. O beisebol tornou-se uma ciência (no
sentido vernáculo de precisão repetitiva de execução). Os defensores de fundo de
campo praticam durante horas para fazer passes para o interceptador. O
posicionamento dos defensores muda por turno e por jogador. Os double plays
(Jogada dupla onde a defesa elimina dois jogadores adversários que correm simultaneamente para bases
diferentes antes que eles realizem uma home run. Consegue-se isso fazendo a bola chegar às bases
correspondentes antes de cada um dos jogadores adversários - N.R.T.) são executados com a
impressionante precisão de uma máquina. Cada arremesso e cada modo de
manejar o bastão é catalogado; mantêm-se livros elaborados sobre os hábitos e
as fraquezas pessoais de cada rebatedor. O “jogo” pelo jogo não existe mais.
Quando os grandes navios do mundo abrilhantaram o nosso bicentenário em
1976, muitas pessoas lamentaram a sua beleza perdida e citaram a mágoa de
Masefield, de que nunca “veríamos navios como esses outra vez”. Eu alimento
sentimentos opostos em relação ao desaparecimento do rebatedor de .400. Os
gigantes não cederam lugar a meros mortais. Aposto qualquer coisa como Carew
podia ser páreo para Keeler. Mais precisamente, as fronteiras do beisebol foram
restringidas e as suas arestas aparadas. O jogo alcançou uma graça e uma
precisão de execução que teve como consequência a eliminação dos feitos
extremos dos anos iniciais. Um jogo inigualado em estilo e detalhe tornou-se
mais equilibrado e bonito.
Pós-escrito
Alguns leitores extraíram do ensaio precedente a inferência (absolutamente
não-intencional) de que sustento uma atitude cética ou mesmo indigesta em
relação aos grandes feitos do esporte — algo por um passado distante, quando
heróis de verdade podiam brilhar, antes que o jogo alcançasse a sua perfeição
quase mecânica. Mas o capricho dos grandes dias e momentos, situado no
domínio do imprevisível, nunca poderia desaparecer, mesmo que os patamares
de realização constante rumassem para uma média invariável. Como tributo meu
à possibilidade eterna da transcendência, submeto este comentário sobre o maior
momento de todos, na página de artigos assinados do New York Times de 10 de
novembro de 1984.
Três strikes para Babe
(Strike é o termo utilizado para quando um rebatedor erra a bola, apesar de ela vir numa posição
considerada pelo juiz como “rebatível”. Se o rebatedor cometer três strikes ele é eliminado do jogo -
N.R.T.)
Lembretes minúsculos e superficiais muitas vezes provocam torrentes de
recordações. Acabo de ler uma pequena nota, espremida nas páginas de esportes:
“Babe Pinelli, por longos anos importante juiz de confederação, morreu
segunda-feira, com 89 anos, numa instituição de convalescença perto de São
Francisco.”
O que poderia ser mais fugaz do que a perfeição? E o que você preferiria ser
— o agente ou o juiz? Babe Pinelli foi o árbitro no único episódio de perfeição
no beisebol, numa ocasião em que isso era da maior importância. 8 de outubro
de 1956. Um jogo perfeito na World Series (Os americanos adoram chamar o seu
campeonato de beisebol como o “campeonato mundial” - N.R.T.) — e, por coincidência, o
último jogo oficial de Pinelli como árbitro. Que consumado canto do cisne! O
jogo estava empatado em 27 a 27. E, como atos isolados de grandeza são
estímulos intrínsecos à democracia, o agente foi um arremessador Yankee
competente, mas, de resto, inexpressivo, Don Larsen.
O dramático final foi todo de Pinelli, controverso desde então. Dale Mitchel,
substituindo Sal Maglie, foi o vigésimo sétimo rebatedor. Com uma contagem de
1 e 2 (A contagem 1 e 2 significa “1 rebatida e 2 strikes” - N.R.T.) Larsen serviu uma alta e
fora (Bola alta e fora é uma bola lançada pelo arremessador e que está fora do alcance do rebatedor, não
sendo válida; o rebatedor pode deixar passar sem que se considere como strike - N.R.T.) — quase, mas
certamente não, pela definição técnica, um ponto. Mitchell deixou o arremesso
passar, mas Pinelli não hesitou. Ergueu o braço direito para indicar o terceiro
strike. Yogi Berra saiu de trás da caixa do rebatedor, quase derrubando Larsen
num pulo frontal de alegria. “Fora por um pé”, resmungou Mitchell mais tarde.
Ele exagerou — já que foi fora apenas por umas poucas polegadas — mas estava
certo. Babe Pinelli, porém, estava mais certo. Um batedor não pode deixar passar
um arremesso próximo quando há tanta coisa em jogo. O contexto importa. A
verdade é uma circunstância, não um determinado local.
Eu cursava o penúltimo ano da Jamaica High School. Naquele dia, todos os
professores, até mesmo a sra. B, a nossa velha e azeda professora de geometria
sólida (e, em retrospecto, uma fã secreta de beisebol, acho eu), nos deixaram
acompanhar o jogo pelo rádio. Já no final da partida, fomos até a sra. G, a nossa
professora de francês, ainda mais azeda, e eu fui o escolhido para implorar. “A
senhora tem que deixar a gente ouvir”, disse eu, “nunca aconteceu antes.” “Meu
jovem”, ela retrucou, “esta é uma aula de francês.” Por sorte, sentei no fundo da
sala, bem na frente de Bob Hacker (lembram-se da distribuição de carteiras por
ordem alfabética?), um fã doente do Dodger, com rádio portátil e fone de
ouvido. No meio da aula, após o último ponto de Pinelli, senti um tapinha
sepulcral e olhei para trás. O rosto de Hacker estava sem cor. “Ele conseguiu —
o maldito conseguiu.” Eu gritei e atirei a minha jaqueta para o alto. “Meu
jovem”, disse a sra. G da escrivaninha, “tenho certeza de que o verbo écrire não
é tão excitante assim.” Isso me custou 10 pontos na média final, e talvez também
a admissão em Harvard. Nunca experimentei um instante de arrependimento.
A verdade é inflexível. A verdade é inviolável. Pelo costume reconhecido e
de longa data, por qualquer conceito de justiça, Dale Mitchell tinha de tentar
acertar qualquer coisa que passasse por perto. Foi um ponto — um ponto alto e
fora. Babe Pinelli, apitando o seu último jogo, encerrou-o com o seu momento
melhor, mais perceptivo e mais verdadeiro. Babe Pinelli, árbitro da história,
entrou no vestiário e chorou.
Pós-pós-escrito
Que negócio engraçado. Trabalhei durante três anos para escrever uma
monografia sobre a evolução de caracóis terrestres das Bermudas e, desde então,
apenas nove pessoas citaram o tomo resultante. Escrevi estas poucas centenas de
palavras num ímpeto de inspiração de quinze minutos, durante uma interminável
rodada de discursos no banquete anual da Pequena Confederação do meu filho
(ocasião boa para algo mais além de peru fatiado, eu sempre achei) — e elas já
receberam mais comentários do que a maioria dos meus trabalhos técnicos
combinados.
Algumas pessoas entenderam mal (recebi uma carta impiedosa do pastor de
Babe Pinelli, exigindo virtualmente uma retratação pública da minha acusação
de que o grande juiz havia mentido conscientemente, fosse por uma ducha
antecipada, fosse por um lugar ao sol). Recebi muitas outras cartas adoráveis,
inclusive uma do neto de Pinelli, dizendo que “Babe nunca teve segundas
intenções com aquele ponto e que não ia engolir gracinhas”. Certíssimo. Um
radialista particularmente gentil desenterrou a sua velha gravação do incidente e
tocou-a para mim pelo telefone — após observar que a sra. G havia me privado
de tal prazer, e que eu nunca escutara realmente o grande momento.
Fiquei feliz e surpreso ao saber que este comentário, que eu pretendia fosse
apenas uma doce lembrança de um único evento, foi lido e discutido em escolas
e em aulas de ética de faculdades. Só para que fique registrado, portanto, por
favor, não leiam o texto como uma argumentação a favor de um relativismo
piegas na busca da verdade. A questão estritamente empírica tem uma solução
clara e inequivocamente concreta — uma verdade absolutamente inviolável, se
quiserem. O arremesso foi alto e fora. A flexibilidade baseada nas circunstâncias
surge apenas no que diz respeito às definições, que são inventadas por pessoas e
não parte do mundo externo. O arremesso, naquele contexto particular, foi um
stríke, e Pinelli estava certo.
Devo também confessar um profundo constrangimento, sobretudo à luz do
meu último parágrafo. O meu texto original identificava o arremesso como baixo
e fora (tal como relatado por Peter Golen-bock em Dinasty, a sua história dos
anos de glória dos Yankee — mas, sem desculpas, já que eu não devia ter me
limitado simplesmente a copiar). O Times até mesmo exacerbou o erro, usando
como título, não a linha que eu pretendia usar (agora restaurada), mas “o ponto
que foi baixo e fora”. No entanto, mesmo o erro pode ter a sua recompensa,
provando assim que o mundo contém alguma benevolência intrínseca. Red
Barber, aquele bom homem e maior anunciante de todos, corrigiu-me com
bastante sutileza na sua preciosidade semanal de cinco minutos no serviço
público de rádio. Ele devia saber; afinal de contas, ele estava lá (e eu não, como
prova o texto). Eu pesquisei profundamente, só para confirmar. Ele estava certo,
é claro. O arremesso foi alto, não baixo. Lembre-se daquela série de desenhos —
“a emoção que vem apenas uma vez na vida” (como a do garoto que leva o carro
até o posto de gasolina e diz “enche”). Foi assim que eu senti. Imagine só — ser
corrigido pelo próprio Old Redhead!
Não posso, porém, resistir a uma atualização em forma pictórica. Em
dezembro de 1984, Dolf Seilacher enviou-me a cópia acima da sua primeira
tentativa de desenhar toda a fauna ediacarana à luz da sua nova teoria. Nenhum
tema é mais fundamental a este livro e às suas convicções sobre o caráter central
da história do que a importância da taxonomia, encarada, não como um cabide
neutro para os fatos da natureza, mas como uma teoria que obriga e dirige o
nosso pensamento. A figura de Seilacher atordoou-me com a alegria específica
de ver algo inteiramente novo em objetos familiares. Durante toda a minha vida
profissional, eu vira os organismos ediacaranos como ancestrais de filos
modernos, posteriores. Foi assim que os classifiquei na minha mente. A Sprigina
(fila 1) ficou com os vermes, a Charnia (fila 1), com os corais, a Cyclomedusa
(fila 3), com as águas-vivas, e o Tribrachidium (fila 3), com os equinodermos.
Colocados nessas categorias distintas, simplesmente nunca percebi as
similaridades que agora me saltam aos olhos (embora, em certo sentido
“objetivo”, as similaridades tenham sempre estado “lá”). Agora consigo perceber
com nitidez o argumento de Seilacher — uma comunidade de estruturas de
partes fundidas, poliformes, com eixos de crescimento e simetria diferentes. A
taxonomia é uma ciência dinâmica e criativa da história.
Os conodontes são evidentemente as únicas partes duras (e, portanto, as
únicas porções geralmente preservadas como fósseis) de uma criatura que, de
resto, tinha corpo mole. Mas que tipo de animal, e como descobri-lo a partir de
estruturas separadas semelhantes a dentes? Quando os conodontes eram
conhecidos apenas como elementos isolados, desarticulados — a situação desde
a sua descoberta em 1856 até 1934 —, não tínhamos fundamento algum para
qualquer opinião sensata, e a especulação corria solta. Os conodontes foram
colocados em quase todos os grupos principais do reino vegetal e do animal,
sendo considerados desde estruturas de sustentação de algas até órgãos
copulatórios de nematóides. As opiniões mais comuns atribuíam-lhes o caráter
de elementos mandibulares de anelídeos ou de peixes.
Em 1934, foram descobertos os primeiros, assim chamados, agrupamentos
de conodontes — elementos articulados unidos em padrões definidos e
invariáveis. Com a sua simetria bilateral e a gradação de elementos semelhantes
a dentes, do maior para o menor, esses agrupamentos sugeriam com mais força
ainda que os conodontes atuavam como estruturas coletoras de alimento (fosse
diretamente, como dentes, ou indiretamente, como suportes duros para coletores
de alimentos carnosos ou ciliares). Desapareceram as hipóteses mais fantasiosas
de parentesco, e a ideia de que os conodontes eram elementos mandibulares de
alguma criatura semelhante a um verme ou a um peixe ganhou força adicional.
Mas ainda não possuíamos nenhum indício direto do animal conodonte.
Então, em 1969, paleontólogos de todo o Continente reuniram-se no Field
Museum of Natural History, em Chicago, para a Primeira Convenção
Paleontológica Norte-Americana. (Lembro-me muito bem de mim nessa ocasião,
um professor assistente de primeiro ano, inexperiente, sentado em meio a todos
os grandes da minha profissão, pensando: ‘‘Se os russos — ou os chineses, ou
quem quer que seja — quisessem destruir esta profissão inteira...” E depois
concluindo, confiante: (“Mas por que eles iriam se importar?”) Na sessão
plenária, foi feita uma revelação dramática — o animal conodonte finalmente
havia sido descoberto. Fora encontrada uma criatura de corpo mole em Montana
com conodontes dentro de si, numa posição interpretada como sendo a boca ou o
intestino anterior, onde a comida podia ser masca-da ou macerada. Esses animais
possuíam outras características que pareciam uni-los aos cordados, membros
primitivos do nosso próprio filo (que inclui todos os vertebrados) e receberam o
nome de conodontocordados.
Infelizmente, não passou de um alarme falso. O estudo posterior revelou que
os conodontes se encontravam mais para trás no intestino — numa posição que
sugere com maior probabilidade que eles haviam sido engolidos pelo animal.
Além disso, a sua distribuição não era compatível com o que sabemos sobre
agrupamentos de conodontes. Um conodontófago continha partes de
agrupamentos distintos, indicação clara de que dois indivíduos conodontes
haviam, de algum modo, entrado no animal. Outro continha conodontes que
variavam muito em tamanho para que se inferisse sensatamente que provinham
do mesmo organismo. Um terceiro não tinha conodonte algum no lugar em que
era de esperar. Claramente, os chamados conodontófagos comiam animais
conodontes e muitas vezes retinham conodontes de mais de um indivíduo no
intestino. Essa notícia pode ter desapontado os paleontólogos, mas não rebaixou
a significação da descoberta. O conodontófago é um comedor de conodontes,
não um animal conodonte, mas continua a ser um enigma notável por direito
próprio. Em vez de resolvermos um fóssil problemático, havíamos acrescentado
outro à nossa copiosa lista. Que seja. O acréscimo de um mistério interessante é
quase tão bom (e muitas vezes mais interessante) quanto a solução de outro.
Contrariando as imagens românticas da ciência e da exploração, muitas
descobertas importantes são feitas em gavetas de museus, e não sob as condições
adversas do ressequido Gobi ou da enregelante Antártida. E tem de ser assim, já
que o século XIX foi a grande era de coleta — e praticantes destacados cavaram
material às toneladas, jogaram-no nas gavetas de museus e nunca mais olharam
para ele de novo. Uma das grandes descobertas zoológicas do nosso século, o
molusco segmentado primitivo Neopilina, foi tirado do fundo do mar, colocado
num frasco e catalogado com o nome de um caramujo semelhante ao
crepidópode (pois a sua concha externa conserva tal formato). Ali permaneceu
por vários anos até que H. Lemche virasse o frasco para olhar as partes moles e
descobrisse as guelras segmentadas.
E um prazer para mim comunicar que o animal conodonte foi agora
descoberto, e, desta vez, aparentemente, de verdade — numa gaveta de museu na
Escócia. Meu amigo Euan Clarckson estava remexendo algum material do
carbonífero (com cerca de 340 milhões de anos) coletado por D. Tait durante a
década de 1920, quando notou a impressão deixada por uma criatura vermiforme
com conodontes na extremidade frontal, exatamente onde deveria ser a boca.
Como Clarckson não é um especialista em conodontes, ele chamou alguns
colegas para verificar e ampliar a sua descoberta. Os resultados acabam de ser
publicados (Derek E. G. Briggs, Euan N. K. Clarckson, e Richard J. Aldridge, na
Bibliografia).
O nosso registro fóssil é quase que inteiramente a história de partes duras —
ossos, dentes, conchas e placas — porque as estruturas moles deterioram-se com
rapidez e não se fossilizam. Sob circunstâncias bastante especiais, partes moles
podem ser preservadas, e essas raras janelas que dão para a verdadeira
diversidade da vida passada encontram-se entre as mais preciosas das nossas
locações fossilíferas. Para os seiscentos milhões de anos em que os animais
multicelulares dominaram a fauna terrestre, não temos mais de uma dúzia de
depósitos extensos de criaturas de corpo mole. Os mais famosos são as películas
carbonizadas com criaturas bizarras e assombrosas na argila xistosa de Burgess
(Burgess Shale), cambriano de Alberta (com cerca de 550 milhões de anos, a
mais antiga das nossas grandes janelas); animais preservados dentro de
concreções de minério de ferro na formação de Mazon Creek de Illinois, período
carbonífero (350-270 milhões de anos); e.os calcários litográficos do período
jurássico (180-130 milhões de anos) de Solnhofen, Alemanha, onde foram
descobertos os restos do Archaeopteryx, a primeira ave, com penas e tudo.
O animal conodonte vem de uma das nossas janelas menores, a chamada
“faixa do camarão” (shrimp band) dentro dos arenitos de Granton (Granton
Sandstones), a leste de Edimburgo. Os arenitos de Granton são uma sequência de
sedimentos de lagos e lagoas depositados em água doce ou levemente salina.
Essa bacia foi ocasionalmente inundada pelo mar, e a “faixa do camarão”
representa uma dessas incursões marinhas. A sua fauna de corpo mole foi
preservada porque duas condições incomuns prevaleceram durante essa breve
inundação. Primeiro, as águas do fundo careciam aparentemente de oxigênio.
Nenhum animal consumidor de carniça ou bactérias poderia viver no leito do
lago, e os animais mortos que afundavam não eram desmembrados ou
decompostos. (Fazemos essas inferências porque a “faixa do camarão” exibe
sedimentação contínua, compacta, uma indicação de que nenhuma criatura
escavou ou abriu sulcos nos detritos do fundo.) Segundo, a bacia era estagnada e
virtualmente destituída de correntes. Assim, criaturas frágeis, de corpo mole, não
foram partidas, mas afundaram suavemente sendo enterradas intactas.
O animal conodonte tem aparência vermiforme, com cerca de 40,5 mm de
comprimento, não ultrapassando, porém, 2 mm de largura (ver fotografia na p.
231). A extremidade da cabeça parece ser bipartida, com dois grandes lobos ao
redor de uma depressão central (entrada para a boca, talvez). Logo atrás da
cabeça, os conodontes estão fixados ao longo de uma borda localizada numa
posição sensata para a boca. Eles ocorrem em três grupos e contêm elementos de
um agrupamento bem conhecido. Assim, Clarckson e os seus colegas não
precisaram inventar um nome para sua criatura; eles o incluíram dentro do
gênero Clydagnathus, estabelecido em 1969 só para os conodontes descarnados.
Umas poucas débeis linhas percorrem o interior do animal, paralelas aos seus
lados. Não sabemos se representam um intestino, um tubo nervoso ou mesmo
talvez a notocorda de um cordado. A partir de cerca de dois terços do corpo e
estendendo-se quase até a extremidade posterior, encontramos uma curiosa
sequência de segmentos repetidos, uns trinta e três ao todo, inclinando-se em
ângulo com a linha mediana do corpo. Por fim, uma borda da extremidade
posterior parece guarnecida com uma sequência de projeções, interpretadas
como raios de nadadeiras. Nada mais que seja digno de nota foi preservado. Pelo
menos as estruturas do Clydagnathus confirmam uma antiga suposição sobre os
elementos conodontes — eles representam as únicas partes duras de uma criatura
que, em outros aspectos, tinha o corpo inteiramente mole. Não é de admirar que
tivéssemos tão pouco sucesso na determinação do seu parentesco.
Como eu disse no início, Clarckson e os seus colegas resolveram só metade
do problema do conodonte. Eles encontraram o animal fugidio, mas não sabem
qual é o seu lugar. Dos filos animais modernos, apenas dois parecem dignos de
discussão como possíveis categorias taxonômicas para o animal conodonte.
Talvez ele seja um cordado — isto é, um membro pré-vertebrado do nosso
próprio filo. No entanto, cada similaridade potencial com os cordados não
carrega quase que convicção alguma. O corpo esguio e achatado, em forma de
enguia, lembra-nos alguns cordados, mas encontramos o mesmo formato geral
também em vários outros filos. As débeis linhas paralelas aos lados do animal
poderiam representar estruturas de cordados, como a notocorda, mas podem ser
simplesmente os resquícios do intestino, um órgão compartilhado por
virtualmente todos os animais “superiores”. Os raios de nadadeira aparentes da
extremidade posterior sugerem afinidades com os cordados, mas estruturas
similares também ocorrem em muitos outros filos. Os segmentos em forma de V
parecem dizer “cordado”, mas essas estruturas encontram-se tão mal preservadas
que não podemos realmente distinguir entre um estilo cordado de segmentação e
os padrões de muitos outros filos com elementos repetidos em série. Em resumo,
encontramos algumas similaridades gerais e superficiais com os cordados, mas
nada específico, e certamente nada que garanta qualquer colocação firme, ou
mesmo experimental, dentro do nosso filo.
Os Chaetognatha, ou vermes em forma de flecha, um pequeno grupo
marinho, localizado não muito longe dos cordados na nossa árvore evolutiva,
incluem os únicos outros candidatos viáveis para uma ligação entre o animal
conodonte e algum grupo moderno. Os quetognatos estão armados com espinhas
de preensão que guarnecem os flancos da boca em dois grupos laterais. Essas
espinhas têm uma semelhança superficial com os conodontes, mas são feitas de
quitina, não de fosfato de cálcio. Os quetognatos também possuem nadadeiras
caudais semelhantes às do animal conodonte. Além disso, possuem nadadeias
laterais, e tais estruturas não estão presentes no animal conodonte (numa área do
corpo — a posterior — onde a preservação é detalhada e excelente). Em resumo,
os quetognatos parecem uma perspectiva ainda menos digna de consideração do
que os cordados para abrigar o animal conodonte.
Portanto, Briggs, Clarckson e Aldridge concluíram, com ampla justiça, em
minha opinião, que o animal conodonte é único e anteriormente desconhecido.
Deve ser colocado num filo separado — o Conodonta. Afinal, argumentam eles,
se um século de esforços para enfiá-lo em algum grupo moderno foi frustrado
pelo enigma das suas peculiares partes duras, por que a descoberta de partes
moles igualmente ambíguas deveria encaixá-lo confortavelmente em alguma
categoria bem estabelecida da nossa taxonomia? Eles escrevem: “A falta de uma
solução definitiva para este problema em 125 anos de pesquisa enfatiza a
singularidade dos conodontes.” E com esta conclusão — a de que os conodontes
devem ser colocados num filo próprio, novo e separado —, finalmente chegamos
à mensagem geral que me inspirou a escrever este ensaio.
Os paleontólogos são, em geral, um grupo conservador. Organismos
problemáticos de afinidade taxonômica incerta e poucas espécies são um
embaraço e um estorvo desarranjado; nada deixa um paleontólogo às antigas
mais feliz do que a colocação bem-sucedida de organismos problemáticos dentro
de um grupo bem conhecido. O reconhecimento de que os organismos
problemáticos devem ser tratados com o estabelecimento de novos filos vai
contra a esperança e a tradição, e representa um último recurso. Em anos
recentes, esse recurso tem sido usado com mais e mais frequência porque — ora,
diabos! — muitos organismos problemáticos são estranhos, fantásticos,
singulares e simplesmente não se encaixam em qualquer grupo conhecido. Esse
reconhecimento relutante reflete um fato importante e pouco conhecido sobre a
história da vida.
Para compreender esse fato e as suas implicações, devemos estudar a
distribuição no tempo dos organismos problemáticos que não podem ser
colocados em filos convencionais. A história da vida vem apresentando animais
multicelulares apenas durante os últimos seiscentos milhões de anos. Dividimos
esse tempo em três grandes eras — a paleozoica (ou vida antiga), a mesozoica
(ou vida média), e a cenozoica (ou vida recente). Virtualmente todos os
organismos problemáticos aos quais se vem concedendo com má vontade os
seus próprios filos viveram durante a era mais antiga, a paleozoica (apesar de os
conodontes, depois de viverem durante toda a era paleozoica, terem se insinuado
no triássico, o primeiro período da era mesozoica). Este fato, o foco do meu
ensaio, pode não parecer estranho à primeira vista. Afinal, quanto mais para trás,
mais diferente dos filos modernos deve ser a vida. No entanto, dois aspectos
dessa distribuição no tempo provocam surpresa e apontam para um padrão
importante. Primeiro, embora pudéssemos esperar um decréscimo geral no
número de grupos problemáticos através do tempo, não iríamos prever um
desaparecimento abrupto de esquisitices depois da era paleozóica. Não
encontramos um declínio gradual de criaturas estranhas. Em vez disso, elas são
abundantes na era paleozóica inferior, tomam-se raras lá pelo fim da era
paleozóica e cessam daí em diante. Das três janelas que mencionei, a argila
xistosa de Burgess (era paleozóica inferior) está abarrotada de organismos
problemáticos, a formação de Mazon Creek (era paleozóica inferior) tem dois, e
os calcários litográficos de Solnhofen (era mesozoica), nenhum. Algo na história
inicial da vida multicelular encorajou um florescimento de organismos
problemáticos. Algo na sua história posterior (e não muito posterior) secou
completamente o poço.
Segundo — embora os conodontes sejam uma exceção a essa generalidade
—, os organismos problemáticos, em sua grande maioria, são raros, restritos no
tempo e representados por apenas umas poucas espécies. Espera-se que os filos
sejam grupos grandes — os artrópodes com as suas 750.000 espécies de insetos,
ou os cordados com as suas 20.000 espécies de peixes. Espera-se também que
subsistam por um bom tempo. Os taxonomistas são avarentos; eles não gostam
de estabelecer um grupo imediatamente inferior à categoria de reino apenas para
abrigar umas poucas espécies que só viveram uns poucos milhões de anos. Se os
organismos problemáticos estivessem restritos à era paleozóica, mas fossem
todos abundantes e se estendessem por um bom período de tempo, como os
conodontes, o padrão não seria tão perturbador ou estranho. No entanto, alguns
dos organismos problemáticos, agora colocados cada um no seu filo exclusivo,
são conhecidos apenas como uma única espécie, encontrada num único lugar. E
alguns são incomparavelmente estranhos. Considere-se o animal tão
formidavelmente estranho que tem o nome latino de Hallucigenia, cunhado pelo
seu autor, Simon Conway Morris, devido “à aparência bizarra e onírica do
animal”. (Simon disseme uma vez que o organismo se assemelhava a algo que
ele vira durante uma viagem — e não me refiro a uma viagem a Boston.) A
Hallucigenia (da primeira e mais famosa janela, a da argila xistosa de Burgess)
tem um corpo alongado, com quase uma polegada de comprimento, sustentado
por sete pares de espinhas que não se parecem em nada com as pernas de
qualquer criatura conhecida. Tem uma cabeça bulbosa e, por trás dela, uma fila
de tentáculos, cada um deles bifurcado na ponta, dispostos ao longo do dorso.
Atrás dos tentáculos encontra-se um agrupamento de projeções que lembram os
espinhos na cauda de um Stegossaurus. Um tubo anal projeta-se para cima na
extremidade posterior (ver figura na p. 235). Um diabo de coisa esquisita como
eu nunca vi na minha vida. Ou considere-se o peculiar organismo problemático
da segunda janela, a nossa formação de Mazon Creek, em Illinois. Ele também
possui um nome formal excêntrico, uma latinização do seu descobridor, um
certo sr. Tully, e da sua aparência. Chama-se Tullimonstrum. O monstro de Tully
é uma criatura peculiar, com um formato que, grosso modo, lembra uma banana,
de três a seis polegadas de comprimento. Assim como a Hallucigenia, é tão
diferente de qualquer coisa que conhecemos que parece exigir um filo só para si.
Tendemos a considerar a evolução como uma mudança progressiva dentro de
linhagens — peixes tornam-se anfíbios, répteis, mamíferos e, finalmente,
humanos — e, portanto, deixamos escapar temas importantes relacionados a um
aspecto diferente e mais generalizado da evolução: a diversidade mutante,
considerada como números absolutos de espécies e a sua abundância relativa ao
longo do tempo. A predominância dos organismos problemáticos da era
paleozoica registra um tema importante na história da diversidade. Esse tema
confere uma direção ao tempo que é mais clara e confiável do que qualquer
enunciado que possamos fazer sobre a mudança dentro de linhagens. Ela
provavelmente também reflete uma lei mais geral e básica sobre a história da
mudança nos sistemas naturais.
Durante a década passada, os paleontólogos discutiram acaloradamente o
padrão de mudança ao longo do tempo na diversidade dos animais marinhos.
Existem hoje mais espécies (como o parecer “progressivo” da evolução poderia
sugerir) ou o número de espécies permaneceu mais ou menos constante, devido à
obtenção rápida de algum valor de equilíbrio após a explosão do cambriano? O
problema não é tão fácil de ser resolvido como parece à primeira vista. Não se
pode simplesmente contar o número de espécies descritas para cada intervalo de
tempo. O registro fóssil é notoriamente imperfeito, e tende a piorar na medida
em que retrocedemos no tempo. Assim, um acréscimo empírico na abundância
de fósseis conhecidos poderia refletir, na verdade, um decréscimo de diversidade
verdadeira.
Os argumentos, portanto, sucederam-se apaixonadamente, mas, em 1981, os
quatro debatedores principais estabeleceram a paz e publicaram uma dissertação
conjunta com um acordo bem-vindo (J. J. Sepkoski, R. K. Bambach, D. M.
Raup, e J. W. Valentine, na Bibliografia). Várias fontes de dados (todos
corrigidos do melhor modo possível no que diz respeito à imperfeição do
registro) apontam agora para um padrão nítido de acréscimo real ao longo do
tempo — não estável e progressivo, mas indubitavelmente constituindo uma
direção geral. Os oceanos modernos contêm pelo menos o dobro do número de
espécies que a média dos mares paleozoicos.
Portanto, poderíamos esperar — na verdade, isso parece inevitável — que os
mares modernos devessem conter, não apenas mais espécies, mas também mais
tipos distintos de criaturas, mais modelos corporais basicamente diferentes. Mas
não é bem assim. Hoje, o dobro do número de espécies está apinhado num
número bem menor de grupos de hierarquia taxonômica superior. É claro, ainda
encontramos vários filos como modelo corporal distinto e poucos membros —
todos os grupos vermiformes com nomes engraçados que ninguém, a não ser os
especialistas, conhece e ama: os cinorrincos, gnatostomulídeos, priapulídeos,
quetognatos, já mencionados como um grupo onde seria possível a inclusão dos
conodontes, e vários outros. Os nossos mares modernos, porém, são dominados
por apenas uns poucos grupos — principalmente mariscos, caramujos,
caranguejos, peixes e equinóides — cada um deles com muito mais espécies que
qualquer filo paleozoico (com a possível exceção dos trilobitas no ordoviciano e
dos crinóides no carbonífero). Os mares paleozoicos podem ter contido apenas
metade das espécies que honram os nossos oceanos modernos, mas essas
espécies estavam distribuídas numa amplitude muito grande de modelos
corporais básicos. Esse decréscimo estável nos tipos de modelos anatômicos
orgânicos — todos em face de um grande acréscimo no número de espécies —
pode representar a tendência mais importante do nosso registro fóssil.
Tal decréscimo estável está bem testemunhado pelo padrão dos organismos
problemáticos já discutidos. A maioria das criaturas realmente bizarras e
fantásticas viveu exclusivamente durante a era paleozoica. (Não se impressione
com a singularidade de alguns filos modernos menores, pois muitos deles não
surgiram recentemente, mas têm também registros que se estendem até a era
paleozoica.) Ele talvez seja ainda melhor testemunhado pelas mudanças no
número de classes (o nível taxonômico imediatamente inferior) dentro dos filos
comuns. Considere-se apenas um exemplo, baseado numa contagem de classes
bastante conservadora feita por J. J. Sepkoski, da Universidade de Chicago. Os
equinodermos modernos surgem em quatro classes, todos com uma diversidade
que vai de respeitável a alta: ouriços-do-mar (os equinodermos já citados como
um grupo dominante), estrelas-do-mar, pepinos-do-mar e crinóides. No entanto,
mais dezesseis classes viveram e morreram durante a era paleozoica, e dezesseis,
do total de vinte, coexistiram durante o período ordoviciano, há cerca de
quinhentos milhões de anos. Nenhuma dessas dezesseis classes (com duas
possíveis exceções) jamais alcançou a diversidade hoje exibida por qualquer um
dos sobreviventes modernos.
O mundo paleozoico era bem diferente do nosso, com poucos representantes
de um tipo distribuídos numa variedade bem grande de formas corporais básicas.
A Hallucigenia desapareceu, o monstro de Tully não vive mais, e mesmo os
abundantes conodontes estão extintos. Por que o mundo da vida sofreu esse
profundo deslocamento, de poucas espécies em vários grupos para muitas
espécies em menos grupos?
Das duas respostas gerais, a primeira é convencional e causal (a segunda
basear-se-á em processos aleatórios). Ela invoca o que pode ser uma propriedade
comum de quase todos os sistemas naturais e que pode, portanto, ter uma
importância que transcende em muito este exemplo particular. O princípio
poderia ser chamado de “experimentação inicial e padronização posterior”. Há
cerca de seiscentos milhões de anos a explosão do cambriano encheu os oceanos
com o seu primeiro cortejo de animais multicelulares. A evolução sondou todos
os limites da possibilidade. Cada plano corporal básico experimentou uma
enorme série de variantes potenciais. O padrão de muitos grupos, cada um com
poucos membros, foi estabelecido. Alguns desses experimentos funcionaram
bem, mas, inevitavelmente, a maioria não — e uma eliminação gradual teve
lugar.
Muitos dos fracassos eram defeituosos desde o início e nunca alcançaram
uma grande diversidade. São os nossos estorvos taxonômicos — planos
corporais altamente distintos com poucas espécies. Nós os chamamos
Problemática, concedemo-lhes os seus filos próprios apenas com muita má
vontade (embora, se compreendêssemos o princípio que representam,
proporíamos e aceitaríamos os seus nomes especiais com mais equanimidade).
Outros, como as classes pequenas e extintas de equinodermos paleozoicos, são
experimentos fracassados com um modelo anatômico fundamental que, sem
dúvida, funciona bem em algumas poucas classes bem-sucedidas. Assim,
ouriços-do-mar e estrelas-do-mar usam o plano fundamental dos. equinodermos
de modo bastante vantajoso, ao passo que um grande número de experimentos
iniciais, dotados de nomes tão estranhos como ctenocistóides, helicoplacóides e
edrioblastóides, logo fracassaram. As nossas faunas modernas são os
sobreviventes que passaram pelo crivo de uma grande limpeza baseada em
princípios de bom planejamento.
O mesmo princípio se aplica a qualquer sistema de experimentação livre mas
que se baseia, em última análise, na modelagem boa e funcional. Carros elétricos
e a vapor, e uma variedade de outros experimentos, cederam lugar ao motor de
combustão interna (embora, algum dia, se faltar petróleo, eles possam ressurgir
como a fênix). Os carros surgem agora em centenas de marcas, cada uma delas
construída sobre o mesmo princípio. Em 1900, uma quantidade bem menor de
marcas usava uma variedade bem maior de modelos básicos. E considere-se os
dirigíveis, planadores e a variedade de aviões a motor antes que nos
estabelecêssemos nos 747 e nos da sua espécie.
Esse princípio de experimentação inicial e padronização posterior dita uma
redução geral de variação — particularmente a eliminação de extremos. Muitas
vezes compreendemos mal o motivo para uma perda de extremos porque
tentamos interpretar o desaparecimento de singularidade como uma tendência
por direito próprio e não como uma consequência inevitável da variação
decrescente dentro de um sistema natural. O ensaio 14 sobre o desaparecimento
dos rebatedores de .400 no beisebol considera outro exemplo do mesmo
processo. As explicações convencionais para essa tendência notável e
amplamente discutida no beisebol invariavelmente procuram por alguma
modificação direcional — a introdução da substituição no arremesso ou as
programações mais extenuantes, compostas, na maior parte, de jogos noturnos
— que diminuiria sozinha as médias altas. Meu raciocínio é o de que o declínio
das médias altas pode simplesmente refletir a estabilização e o aperfeiçoamento
geral de jogo que deve acompanhar um esporte à medida que sobem os seus
padrões (análogas à redução de planos corporais à medida que modelos
anatômicos bem-sucedidos predominam na história da vida). À medida que o
arremesso, a defesa e a rebatida progridem, a variação em cada categoria
decresce. Pude demonstrar que as médias de confederação não mudaram entre a
grande era das rebatidas de .400 (1890-1920) e hoje, mas que tanto as médias
mais altas (os rebatedores de .400) como as médias mais baixas convergiram
rumo à média de confederação. Em outras palavras, os extremos foram
eliminados em ambas as pontas — o mesmo princípio de experimentação (ou
tolerância) inicial e padronização posterior.
A segunda explicação não é convencional e baseia-se em processos
aleatórios. Um padrão de deslocamento, de poucas espécies em muitos grupos
para muitas espécies em menos grupos, ocorreria mesmo sob regimes de
extinção aleatória, contanto que admitamos uma mudança média maior por
evento de criação de espécie no início da história da vida (como parece garantido
num mundo inicialmente “vazio”, aberto a quase que qualquer experimento em
forma).
A extinção, como nos lembram os militantes ecologistas, é para sempre.
Uma vez perdido um experimento complexo de forma, ele não surgirá outra vez;
as chances matemáticas são fortemente contrárias à repetição de passos
complexos numerosos (os biólogos referem-se a esse princípio como “a
irreversibilidade da evolução”). Assim, inevitavelmente, perdemos a maior parte
dos experimentos iniciais e começamos a encher os nossos oceanos com
exemplos repetidos dos poucos grupos sobreviventes principais. Interessado
como sou por processos aleatórios, duvido que eles venham a explicar o padrão
de redução inteiro dos planos corporais, se não por outro motivo, pelo fato de
que a ideia de experimentação inicial e padronização posterior faz muito sentido.
Mas eu insistiria para que as consequências previsíveis dos processos aleatórios
recebessem mais atenção do que a que comumente recebem. Processos
aleatórios de fato produzem altos graus de ordem — e a existência de padrão não
é um argumento contra a aleatoriedade.
Vivemos num mundo de história e mudança. Como criaturas de hábitos, que
se sentem confortadas pela descoberta de ordem, buscamos princípios que
confiram uma direção ao tempo — que admitam um pouquinho de ordem na
pujante confusão da história. No entanto, as flechas do tempo são difíceis de ser
encontradas, e a ciência não nos deu muitas. A segunda lei da termodinâmica,
com a entropia crescente e a ordem decrescente em universos fechados, é o
nosso agente de direção mais famoso. A maioria das propostas da biologia
evolutiva é espúria e baseia-se mais nas nossas esperanças e expectativas do que
nos mecanismos da seleção natural — a noção de progresso contínuo em
particular. Este princípio de diversidade — experimentação inicial e
padronização posterior —, porém, pode ser uma característica da história,
produzindo tendências para uma variação menor em modelos básicos de vida.
Portanto, deveríamos nos interessar pelos conodontes, mesmo que nunca
tenhamos correlacionado uma rocha ou então que tenhamos a tendência de olhar
de soslaio para vermes de uma polegada com nadadeiras caudais esmaecidas e
cabeças bilobadas. Pela sua idade, pela sua singularidade taxonômica e pelo seu
desaparecimento, eles podem registrar a natureza da história.
5. Política e progresso
Como segundo motivo para o exagero de similaridades entre o chimpanzé e
os humanos, Tyson cometeu um erro crucial. Ele sabia que o seu pigmeu era um
animal jovem, pois as extremidades dos ossos longos ainda estavam formadas
em cartilagem e não plenamente ossificadas, mas ele o considerou quase que de
todo crescido porque, erroneamente, tomou a série completa de dentes de leite
por uma dentição permanente (em alguns aspectos, os dentes de leite dos
macacos antropoides de fato lembram os dentes permanentes dos humanos).
Desse modo, ele não percebeu como era jovem — quase um bebê — o animal
que estava dissecando. (Essa identificação errônea também agravou o erro
subsequente, num tratado filológico apenso à anatomia, de atribuir as lendas
clássicas e os relatos mais recentes sobre pigmeus africanos ao mesmo animal,
que ele considerou como tendo apenas dois pés de altura quando plenamente
desenvolvido.)
Muitas vezes discuti nestes ensaios o papel da neotenia (literalmente,
agarrar-se à juventude) na evolução humana (ver Darwin e os grandes enigmas
da vida e O polegar do panda). Nós evoluímos diminuindo os ritmos de
desenvolvimento geral dos primatas e outros mamíferos. Assim, os adultos
humanos lembram chimpanzés e gorilas jovens muito mais intimamente do que
macacos antropoides adultos. Em consequência disso, o esqueleto de um bebê
chimpanzé conserva muitas características humanoides que um adulto perderia
— inclusive uma cabeça relativamente grande (os bebês humanos, é claro,
também têm cabeças relativamente maiores do que as dos adultos humanos), um
posicionamento mais ereto da cabeça sobre a espinha (já que o foramen
magnum, ou orifício de articulação entre crânio e coluna vertebral, se desloca
para trás com o crescimento), um crânio mais bulboso (já que o cérebro cresce
muito mais devagar que o corpo após o nascimento), protuberâncias do
supercílio menos salientes, e mandíbulas menores. A gravura de Tyson do
esqueleto do seu pigmeu, uma figura notavelmente precisa (vi fotografias dos
ossos originais), mostra todos esses traços humanoides.
Tyson também notou todos esses traços com prazer no seu texto, mas deixou
escapar o tema coordenador — não o de que os chimpanzés são tão parecidos
com os humanos, mas o de que ele havia dissecado um animal bem jovem e que
os primatas jovens lembram os adultos humanos de vários modos, sem que isso
demonstre descendência direta ou parentesco. Ele escreveu, por exemplo:
Quanto ao rosto do nosso pigmeu, ele era mais parecido com o de um
homem do que com os de um grande símio ou de um macaco: pois a sua
testa era maior, e mais arredondada, e a mandíbula superior e a inferior não
tão longas ou proeminentes, e mais espalhadas; e a sua cabeça, novamente,
era maior do que a de qualquer um dos dois outros animais.
De fato, o cérebro grande e semelhante ao humano do chimpanzé de Tyson
propunha um problema e tanto. Tyson já havia determinado que o aparelho vocal
do seu pigmeu era suficientemente semelhante ao nosso para a fala, mas então
por que ele não falava? Talvez uma deficiência do cérebro impedisse a expressão
desse atributo humano por excelência. No entanto, Tyson encontrou pouca
diferença entre o cérebro do seu pigmeu e o nosso, quer na estrutura básica, quer
no tamanho relativo.
Poder-se-ia estar propenso a pensar que, como existe uma disparidade tão
grande entre a alma de um homem e um bruto, do mesmo modo, o órgão no
qual ela está também deveria ser bastante diferente. No entanto, comparando
o cérebro do nosso pigmeu com o de um homem, e com o maior rigor,
examinando cada parte em ambos, surpreendeu-me muito encontrar uma
semelhança tão grande, que não poderia ser maior, entre um e outro.
Numa passagem fascinante, que exibe o contexto seiscentista da sua obra,
Tyson simplesmente negou que a estrutura física deva oferecer uma explicação
para a função. Os cérebros são de fato semelhantes, mas os humanos possuem
algo, em princípio superior, que anima a mesma matéria de um modo diferente:
Não há nenhum motivo para se pensar que os agentes realmente executem
tais e tais ações porque se descobre que são possuidores dos órgãos
apropriados para tal; porque, então, o nosso pigmeu poderia de fato ser um
homem. Os órgãos nos corpos animais são apenas um conglomerado
harmonioso de tubos e vasos para a passagem de fluidos, e são passivos. O
que os ativa são os humores e os fluidos; e a vida animal consiste no
movimento devido e regular desse corpo orgânico. Mas aquelas faculdades
mais nobres na mente do homem devem certamente possuir um princípio
superior, e a matéria organizada nunca poderia produzi-las; pois, qual outro
motivo poderia explicar que, sendo os órgãos iguais, as ações executadas
também não o sejam?
Se a cadeia do ser possuísse valor permanente como estímulo heurístico para
a exploração de elos perdidos, e se as lacunas se tornassem maiores à medida
que a cadeia avançasse, então o que fazer com o abismo ainda maior do que
aquele que Tyson julgou ter preenchido entre símio e homem — a lacuna entre
humanos e anjos e outros seres celestiais? Tyson deu ao problema um
comentário superficial, mais político do que científico, sugerindo na epístola
dedicatória a John Sommers, presidente da Câmara dos Pares da Inglaterra e
presidente da Royal Society (editores do tratado), que homens com tão ampla
erudição podiam muito bem preencher os buracos eles mesmos!
O animal do qual forneci a anatomia, o qual é o que mais se aproxima do
gênero humano, parece ser o nexo entre o animal e o racional, assim como
Vossa Excelência e os da Vossa Categoria e Ordem, por conhecimento e
sabedoria, sendo os mais próximos daquela espécie de seres que se
sobrepõem em seguida a nós, são os que ligam o mundo visível ao invisível.
No entanto, embora Tyson não tenha dado prosseguimento à questão, a
lacuna entre homens e anjos na cadeia tornou-se um importante estímulo para
especulações iniciais sobre um tema atualmente popular e talvez, pela primeira
vez, abordável — a exobiologia (ver ensaios na Parte 7). Pois a solução óbvia deve
sustentar que as criaturas mais avançadas do que os humanos, e que preenchem a
lacuna entre homem e anjo, habitam outros planetas. O filósofo Immannuel
Kant, por exemplo, argumentou que um planeta grande e pesado como Júpiter
devia suportar tais criaturas superiores. E Alexander Pope mencionou-as
explicitamente nos dísticos sobre a cadeia do ser do seu Essay on Man (enquanto
ao mesmo tempo elogiava Isaac Newton como um exemplo de sabedoria
terrena):
Seres superiores, quando há pouco viram
Um mortal desvendar toda a lei da natureza,
Admiraram tamanha sabedoria numa forma terrena
E apresentaram Newton como apresentamos um macaco.
Pope apenas se dava ao luxo de devaneios emoldurados em dísticos heroicos.
Tyson foi o homem que primeiro apresentou um grande antropoide com exatidão
e uma admirável meticulosidade.
Esse projeto de lei modelo tornou-se o protótipo da maioria das leis
decretadas nos Estados Unidos, embora poucos Estados as fizessem tão
abrangentes quanto Laughlin aconselhara. (As categorias de Laughlin incluíam
“cegos, inclusive os indivíduos com visão seriamente debilitada; surdos,
inclusive os indivíduos com audição seriamente debilitada; e dependentes,
inclusive órfãos, inúteis, desabrigados, vagabundos e mendigos”.) As sugestões
de Laughlin foram melhor observadas na Alemanha nazista, onde a sua lei-
modelo inspirou o infame e rigorosamente executado Erbgesundheitsrecht, que,
às vésperas da Segunda Guerra Mundial havia levado à esterilização forçada
cerca de 375.000 pessoas, a maioria por “debilidade mental congênita”, mas
incluindo quase 4.000 por cegueira e surdez.
A campanha nos Estados Unidos pela esterilização eugênica compulsória
alcançou o clímax e o auge da respeitabilidade em 1927, quando a Suprema
Corte, por uma votação de 8 a 1, sustentou a lei de esterilização no Estado de
Virgínia no caso Buck versus Bell. Oliver Wendell Holmes, então com seus
oitenta e poucos anos, o mais famoso juiz dos Estados Unidos, escreveu a
opinião da maioria com a costumeira verve e força de estilo. Ela incluía o
notório parágrafo, com a sua arrepiante frase-chave, desde então citada como a
expressão consumada do princípio eugênico. Relembrando com orgulho as suas
experiências distantes como soldado de infantaria na Guerra Civil, Holmes
escreveu:
Vimos em mais de uma ocasião que o bem-estar público pode pedir a vida
dos seus melhores cidadãos. Seria estranho se não pudesse pedir estes
sacrifícios menores àqueles que já sugam a força do Estado. ... Seria melhor
para todo o mundo, se, em vez de esperarmos para executar por causa de
crime a prole degenerada, ou deixar que ela morra de fome por causa da
imbecilidade, a sociedade pudesse impedir de propagar a sua espécie, os que
são manifestamente incapacitados. O princípio que sustenta a vacinação
compulsória é bastante abrangente para incluir o corte das trompas de
Falópio. Três gerações de imbecis são suficientes.
Quem foram, então, as famosas “três gerações de imbecis”, e por que ainda
deveriam arrebatar o nosso interesse?
Quando o Estado de Virgínia decretou a sua lei de esterilização compulsória
em 1924, Carrie Buck, uma mulher branca, de dezoito anos, vivia como
residente involuntária da Colônia Estadual para Epilépticos e Deficientes
Mentais. Na condição de primeira pessoa selecionada para a esterilização pela
nova lei, Carrie Buck tornou-se o foco de um desafio constitucional lançado, em
parte, pelos conservadores Cristãos da Virgínia, os quais sustentavam, segundo
os modernistas eugênicos, pareceres “antiquados” sobre preferências individuais
e o poder estatal “benevolente”. (Rótulos políticos simplistas não são adequados
neste caso e, diga-se de passagem, raramente o são. Costumamos considerar a
eugenia como um movimento conservador e os seus críticos mais ruidosos como
membros da esquerda. Esse alinhamento tem sido geralmente válido na nossa
década. Mas a eugenia, aclamada na sua época como a última palavra em
modernismo científico, atraiu muitos liberais e, dentre os seus críticos mais
ferozes, contava com grupos muitas vezes catalogados como reacionários e anti-
científicos. Se alguma lição política emerge dessas alianças oscilantes,
poderíamos considerá-la como sendo a inalienabilidade genuína de certos
direitos humanos.)
Mas por que Carrie Buck estava na Colônia Estadual e por que ela foi
selecionada? Oliver Wendell Holmes defendeu a escolha como sensata nas
linhas iniciais do seu parecer de 1927:
Carrie Buck é uma mulher branca, débil mental, que foi posta sob a custódia
da Colônia Estadual. ... Ela é filha de uma mãe débil mental da mesma
instituição, e mãe de uma filha débil mental ilegítima.
Em resumo, a herança colocava-se como questão crucial (na verdade, como a
força propulsora por trás de toda a eugenia). Pois, se a deficiência mental medida
surgisse da má nutrição, do corpo ou do espírito, e não de genes maculados,
como poderia ser justificada a esterilização? Se alimentação, criação, cuidado
médico e educação decentes pudessem fazer da filha de Carrie Buck uma cidadã
digna, como o Estado de Virgínia poderia justificar o corte das trompas de
Falópio de Carrie contra a sua vontade? (Algumas formas de deficiência mental
são transmitidas por herança em linhas familiares, mas a maior parte delas não
— uma conclusão pouco surpreendente quando consideramos os milhares de
choques que nos perseguem a todos durante as nossas vidas, de anomalias no
desenvolvimento embriológico até
traumas de nascimento, má nutrição, rejeição e pobreza. De qualquer modo,
nenhuma pessoa com mentalidade justa daria crédito aos critérios sociais de
Laughlin para a identificação de deficiências hereditárias — inúteis,
desabrigados, vagabundos e mendigos — embora, como em breve veremos,
Carrie Buck tenhá sido condenada com base nesses fundamentos).
Quando o caso de Carrie Buck surgiu na condição de prova crucial para a lei
do Estado de Virgínia, os chefões da eugenia compreenderam que havia chegado
a hora de falar ou calar sobre a questão crucial da herança. Assim, o Eugenics
Record Office enviou Arthur H. Estabrook, o seu “grande” pesquisador de
campo, até a Virgínia, para um estudo “científico” do caso. O próprio Harry
Laughlin prestou um depoimento, e a sua súmula a favor da herança foi
apresentada no julgamento local que confirmou a lei da Virgínia e que
posteriormente conseguiu chegar à Suprema Corte como o caso Buck versus
Bell.
Laughlin insistiu em dois temas importantes perante o tribunal. Primeiro, o
de que Carrie Buck e a sua mãe, Emma Buck, eram débeis mentais segundo o
teste de QI de Stanford-Binet, o qual, na época, encontrava-se na sua infância.
Carrie conseguia a marca de uma idade mental de nove anos, Emma, de sete
anos e onze meses. (Esses números classificavam-nas tecnicamente como
“imbecis”, segundo as definições da época, daí a posterior escolha de palavras de
Holmes — embora a sua infame frase seja muitas vezes citada erroneamente
como “três gerações de idiotas”. Para completar a antiga nomenclatura da
deficiência mental, os imbecis exibiam uma idade mental de seis a nove anos; os
idiotas saíam-se pior e os mentecaptos, melhor). O segundo, de que a maior parte
dos tipos de deficiência mental reside ineluta-velmente nos genes, e de que o
caso de Carrie Buck situava-se com certeza dentre dessa maioria. Laughlin
relatou:
A deficiência mental geralmente é causada pela herança de qualidades
degeneradas, mas às vezes pode ser causada por fatores ambientais que não
são hereditários. No caso dado, há indícios muito fortes de que a deficiência
mental e a delinquência moral de Carrie Buck devem-se, antes de mais nada,
à herança e não ao ambiente.
A filha de Carrie Buck era então, e tem sido sempre, a figura central desse
doloroso caso. Observei no início deste ensaio que nos inclinamos (muitas vezes
em risco próprio) a considerar duas ocorrências como um acidente potencial e
três como um padrão estabelecido. A suposta imbecilidade de Emma e Carrie
poderia ter sido uma coincidência infeliz, mas o diagnóstico de uma deficiência
semelhante em Vivian Buck (feito por uma assistente social, como veremos,
quando Yivian tinha apenas seis meses) inclinou a balança a favor de Laughlin e
levou Holmes a declarar a linhagem de Buck inerentemente corrupta por causa
de herança deficiente. Yivian selava o padrão — três gerações de imbecis são
suficientes. Além disso, se Carrie não tivesse Vivian ilegitimamente, nada teria
vindo à luz (em duplo sentido).
Oliver Wendell Holmes encarou o seu trabalho com orgulho. O homem tão
famoso pelo seu princípio de comedimento judiciário, que proclamara que a
liberdade não devia ser restringida sem “perigo nítido e presente” — sem o
equivalente de gritar “fogo” num teatro lotado, quando não há fogo — escreveu
sobre o seu julgamento em Buck versus Bell: “Senti que estava próximo do
primeiro princípio de reforma real.”
E assim Buck versus Bell permaneceu por cinquenta anos uma nota de
rodapé de um momento da história americana que talvez fosse melhor esquecer.
Então, em 1980, ele ressurgiu para espetar a nossa consciência coletiva, quando
o dr. K. Ray Nelson, então diretor do Lynchburg Hospital, onde Carrie Buck
fora esterilizada, pesquisou os registros da instituição e descobriu que 4.000
esterilizações haviam sido executadas, a última em 1972. Ele também encontrou
Carrie Buck, viva e passando bem, perto de Charlottesville, além de sua irmã,
Doris, esterilizada dissimuladamente com base na mesma lei (disseram-lhe que
se tratava de uma operação de apendicite), agora, com uma dignidade feroz,
arrasada e amarga porque queria um filho mais do que qualquer outra coisa na
vida e finalmente descobrira, na velhice, por que nunca havia concebido.
À medida que especialistas e repórteres visitavam Carrie Buck e a irmã, o
que alguns poucos especialistas sabiam o tempo todo tomou-se fartamente claro
para todos. Carrie Buck era uma mulher de inteligência obviamente normal. Por
exemplo, Paul A. Lombar do, da Faculdade de Direito da Universidade de
Virgínia, e um dos maiores conhecedores do caso Buck v. Bell, escreveu, numa
carta dirigida a mim:
Quanto a Carrie, quando a encontrei, ela lia jornais diariamente e reunia-se
com uma amiga mais instruída para que ela a ajudasse nas pelejas regulares
com as palavras cruzadas. Não era uma mulher refinada e faltava-lhe o
requinte social, mas os profissionais de saúde mental que a examinaram
posteriormente confirmaram a minha impressão de que ela não era
mentalmente enferma ou retardada.
Então, com base em que indícios Carrie Buck foi confiada à Colônia
Estadual para Epilépticos e Deficientes Mentais em 23 de janeiro de 1924? Vi o
texto da audiência de internamento; ele é, no mínimo, superficial e contraditório.
Além da autoridade dos pais adotivos, nua e sem documentação, e de uma rápida
apresentação perante uma comissão de dois médicos e um juiz de paz, nenhuma
prova foi apresentada. Nem mesmo o tosco e ainda jovem teste Stanford-Binet,
tão fatalmente inadequado como medida de valor inato (ver meu livro, The
Mismeasure of Man, embora os indícios do caso de Buck sejam suficientes) fora
aplicado.
Quando entendermos por que Carrie Buck chegou a ser internada em 1924,
conseguiremos finalmente compreender o significado oculto do seu caso e a sua
mensagem para nós hoje. A solução silenciosa é, mais uma vez, como foi desde
o início, sua filha, Vivian, nascida em 28 de março de 1924, e, na época, apenas
uma saliência evidente na sua barriga. Carrie Buck foi uma dentre os vários
filhos ilegítimos que sua mãe, Emma Buck, deu à luz. Ela cresceu com pais
adotivos, J. T. e Alice Dobbs, e continuou morando com eles quando adulta,
ajudando nos serviços de casa. Foi violentada por um parente dos pais adotivos e
depois culpada pela gravidez resultante. Quase que com certeza, ela veio a ser
(como costumavam dizer) internada para esconder a sua vergonha (e a
identidade do estuprador), não porque a ciência esclarecida acabava de descobrir
o seu verdadeiro estado mental. Em resumo, ela foi mandada embora para ter o
filho. O seu caso nunca foi de deficiência mental; Carrie Buck foi perseguida por
suposta imoralidade sexual e comportamento social divergente. Os anais do
julgamento e da audiência têm o fedor do orgulho dos bem de vida e bem
criados pelas pessoas pobres de “moral frouxa’’. Ninguém iria mesmo se
importar em saber se Vivian era ou não um bebê de inteligência normal; ela era
filha ilegítima de uma filha ilegítima. Duas gerações de bastardos são
suficientes. Harry Laughlin iniciou a “história de família” dos Buck escrevendo:
“Estas pessoas pertencem à classe inepta, ignorante e inútil de brancos
antissociais do sul.”
Pouco sabemos sobre Emma Buck e sua vida, mas não temos maiores
motivos para suspeitar da sua deficiência mental bem como da de sua filha
Carrie. O suposto desvio de ambas foi social e sexual; a acusação de
imbecilidade veio a ser apenas um disfarce, o sr. juiz Holmes não obstante.
Chegamos então ao ponto crucial do caso, a filha de Carrie, Vivian. Que
indícios foram apresentados para provar a sua deficiência mental? Este e apenas
este: no julgamento original, no fim de 1924, quando Vivian Buck tinha sete
meses, uma certa srta. Wilhelm, assistente social da Cruz Vermelha, compareceu
perante o tribunal. Ela começou por declarar honestamente o verdadeiro motivo
para o internamento de Carrie Buck:
O senhor Dobbs, que tinha a guarda da jovem, tendo-a acolhido ainda
pequena, havia contado à srta. Duke [secretária temporária do Bem-Estar
Público da Comarca de Albemarle] que a jovem estava grávida e que ele
queria que fosse internada em algum lugar — que fosse enviada para alguma
instituição.
A srta. Wilhelm forneceu então o seu julgamento sobre Vivian Buck
comparando-a com a neta normal da sra. Dobbs, nascida apenas três dias antes:
É difícil julgar as probabilidades de uma criança tão jovem quanto essa, mas
ela não me parece um bebê inteiramente normal. Na aparência — devo dizer
que talvez o meu conhecimento da mãe possa me tornar preconceituosa
nesse aspecto, mas eu vi a criança na mesma época em que vi o bebê da filha
da sra. Dobbs, que é apenas três dias mais velha do que essa, e existe uma
diferença indiscutível no desenvolvimento dos bebês. Isso foi há, mais ou
menos, duas semanas. Existe algo nela que não é inteiramente normal, mas
exatamente o que é, eu não sei dizer.
Este breve depoimento, e nada mais, constituiu toda a prova para a crucial
terceira geração de imbecis. Um novo interrogatório revelou que nem Vivian
nem a neta dos Dobbs sabia andar ou falar, e que o bebê da “sra. Dobbs é uma
menina bastante receptiva. Quando você brinca com ela ou tenta atrair a sua
atenção — é um bebê com quem se pode brincar. A outra não. Ela parece
bastante apática e bem pouco receptiva”. A srta. Whilhelm então instigou a
esterilização de Carrie Buck: “Eu acho”, disse ela, “que isso pelo menos
impediria a propagação dos da sua espécie.” Vários anos depois, a srta.
Whilhelm negou que houvesse examinado Vivian ou que houvesse considerado
a criança débil mental.
Infelizmente, Vivian morreu com oito anos de “enterocolite” (tal como
registrado no certificado de óbito), um diagnóstico ambíguo que pode significar
muitas coisas, mas que pode muito bem indicar que ela foi vítima de uma das
doenças infantis evitáveis, derivadas da pobreza (um desagradável lembrete da
verdadeira questão em Buck versus Bell). Ela está, portanto, emudecida como
testemunha na nossa reavaliação do famoso caso.
Quando Buck versus Bell voltou à tona em 1980, ocorreu-me imediatamente
que o caso de Vivian era de extrema importância, e que os indícios quanto à
condição mental de uma criança morta aos oito anos poderiam ser encontrados
em boletins escolares. Portanto, nos últimos quatro anos, saí em busca dos
registros escolares de Vivian Buck e finalmente consegui. (Eles me foram
fornecidos pelo dr. Paul A. Lombardo, que também me enviou outros
documentos, inclusive o depoimento da srta. Wilhelm, e que gastou horas
respondendo às minhas perguntas por carta, e Deus sabe quanto tempo bancando
o detetive bem-sucedido no que se refere aos registros escolares de Vivian.
Nunca conheci o dr. Lombardo; ele fez todo o trabalho por gentileza, espírito
acadêmico e amor ao jogo do conhecimento, não na expectativa de recompensa
ou mesmo por reconhecimento. Numa profissão — a acadêmica — tantas vezes
prejudicada por banalidades e brigas tolas por causa de prioridades sem sentido,
essa generosidade deve ser registrada e celebrada como um sinal de como as
coisas podem e deveriam ser.)
Vivian Buck foi adotada pela família Dobbs, que havia criado (mas depois
mandado embora) sua mãe, Carrie. Com o nome de Vivian Alice Elaine Dobbs,
ela frequentou a Venable Public Elementary School de Charlottesville durante
quatro períodos, de setembro de 1930 até maio de 1932, um mês antes da sua
morte. Foi uma estudante perfeitamente normal, inteiramente dentro da média,
nem particularmente destacada, nem muito problemática. Naqueles dias, antes da
inflação das notas, quando C queria dizer “bom, 81-87” (tal como definido no
boletim) e não apenas aprovado “raspando”, Vivian Dobbs recebeu A e B por
comportamento e C em todas as matérias acadêmicas, menos matemática (que
sempre foi difícil para ela, e na qual tirou D) durante o seu primeiro período, na
série IA, de setembro de 1930 a janeiro de 1931. Ela progrediu durante o
segundo período, na série 1B, merecendo um A em comportamento, C em
matemática e B em todas as outras matérias acadêmicas; foi colocada na lista de
louvor em abril de 1931. Promovida para a 2A, teve problemas durante o
período de outono de 1931, sendo reprovada em matemática e ortografia, mas
recebendo A em comportamento, B em leitura e C em composição e inglês. Foi
“retida na 2A” pelo período seguinte — ou “repetiu”, como costumávamos
dizer, algo que, quando me lembro de todos os meus camaradas que tiveram o
mesmo destino, dificilmente pode ser caracterizado como sinal de imbecilidade.
De qualquer modo, ela mais uma vez se saiu bem no período final, com B em
comportamento, leitura e ortografia, e C em composição, inglês e matemática
durante o seu último mês na escola. Essa filha de mulheres “lascivas e imorais”
teve comportamento excelente e um desempenho adequado, ainda que não
brilhante, nas matérias acadêmicas.
Em resumo, só podemos concordar com a conclusão a que o dr. Lombardo
chegou na sua pesquisa sobre Buck versus Bell — não havia imbecis, uma que
fosse, nas três gerações dos Buck. Sei que tais correções de erros passados, mas
esquecidos da história, não valem grande coisa; no entanto, acho simbólico e
satisfatório descobrir que a esterilização eugênica compulsória, um
procedimento de moralidade tão dúbia, tenha conseguido a sua justificação (e
ganho a sua frase retórica mais citada) fundamentando-se numa falsidade
patente.
Carrie Buck morreu no ano passado. Por um capricho do destino, e não por
lembrança ou propósito, ela foi enterrada a apenas alguns passos do túmulo de
sua única filha. No enésimo e definitivo verso de uma velha balada favorita, uma
rosa e uma sarça — o doce e o amargo — emergem das tumbas de Barbara Allen
e de seu amante, entrelaçando-se na união da morte. Que Carrie e Vivian,
vítimas de modo diferentes, na flor da idade, descansem em paz juntas.
6. Darwiniana
Ao chamar essa teoria de “transmutação sexual catastrófica”, Iltis identifica
eficazmente as suas duas propriedades notáveis e não convencionais. Primeiro,
usando o critério posicionai da homologia como guia, as espigas de milho
femininas surgiram através da transmutação de um pendão masculino de
teosinto, e não através do crescimento gradual de uma espiga feminina de
teosinto. Segundo, a transformação ocorreu rapidamente, sob a orientação de
pouca (ou nenhuma) mudança genética, a despeito da alteração repentina e
surpreendente da forma. Tentarei resumir a argumentação de Iltis nos seguintes
passos básicos:
1. Tanto no milho quanto no teosinto, os hormônios são distribuídos ao longo
de gradientes simples em caules longos, com zonas
masculinas nos ápices, passando através de um limiar para zonas femininas
abaixo.
2. Um gradiente na época de diferenciação durante o desenvolvimento
também acompanha essa distribuição hormonal. As estruturas nos ápices dos
caules desenvolvem-se antes das que estão abaixo. Num ramo lateral de
teosinto, o pendão masculino terminal diferencia-se antes das espigas
femininas abaixo.
3. As necessidades alimentares de um pendão masculino são pequenas, as de
uma espiga feminina (particularmente de uma espiga grande e polística de
milho) muito maiores. A diferenciação de um pendão na ponta terminal de
um ramo ainda deixa a maioria dos nutrientes disponíveis para o
desenvolvimento de estruturas femininas abaixo (ver ponto 2).
4. Se um pendão masculino terminal se transformasse abruptamente numa
espiga feminina, essa espiga iria se tornar de imediato um receptáculo para
todos os nutrientes disponíveis e poderia suprimir de forma automática o
desenvolvimento de qualquer estrutura feminina subsequente em posição
inferior no ramo.
5. O passo inicial da transmutação sexual catastrófica, dados os pontos de 1 a
4, poderia, portanto, exigir nada mais do que um encurtamento acentuado de
um ramo lateral de teosinto. O encurtamento mudaria a ponta do ramo, de
zona masculina para zona feminina (ponto 1). A estrutura terminal então se
diferenciaria primeiro como espiga feminina (pontos 1 e 2). A espiga
terminal iria se apropriar de todos os nutrientes e suprimir o
desenvolvimento de quaisquer estruturas abaixo, inclusive das costumeiras
espigas femininas de teosinto (pontos 3 e 4).
6. Embora o encurtamento de um ramo possa induzir uma série profunda e
variada de consequências automáticas (ponto 5), a mudança inicial (o
encurtamento em si) é simples e pode exigir apenas uma alteração genética
insignificante, talvez a mutação de um único gene. A mudança inicial
poderia mesmo não exigir absolutamente mutação genética alguma, pois
vários tipos de ferrugem e vírus do milho, ou mesmo uma simples mudança
ambiental, como temperaturas noturnas mais frias, ou dias mais curtos,
poderiam levar a uma feminilização dos pendões centrais do milho.
7. E claro que o produto inicial de tal encurtamento e feminilização não seria
uma espiga moderna de milho plenamente desenvolvida. O primeiro passo
produziria, com toda probabilidade, um sabugo com umas poucas fileiras de
grãos femininos na base e estruturas masculinas acima. A produção de
espigas polísticas, ou de muitas fileiras, continua problemática. Uma
hipótese imagina a conjunção de vários segmentos do pendão (à medida que
o ramo diminui) e a sua junção e entrelaçamento subsequentes para formar a
espiga polística. Lembre-se, porém, de que a teoria convencional de
derivação a partir de uma espiga de teosinto com duas fileiras depara-se com
o mesmo problema e propõe a mesma resolução básica. Como assinala Iltis,
o pendão de um teosinto é um candidato melhor do que a espiga de teosinto
para tal processo hipotético. A espiga do teosinto é, como dizem os biólogos,
uma estrutura fortemente “canalizada” — uma que se desenvolve
basicamente do mesmo modo em todos os indivíduos de uma raça, sem
muita variação de planta para planta. Ela sempre tem duas fileiras e poucos
grãos. O pendão, por outro lado, é bem variável e prolífico em unidades
individuais (todas adequadas para a transformação em grãos). Ao
transformar uma variante masculina com quantidade máxima de fileiras e
unidades, o primeiro passo poderia nos trazer bem mais perto de uma espiga
de milho do que qualquer mudança inicial a partir de uma espiga de teosinto.
8. A espiga inicial, pequena, da transmutação sexual catastrófica é
imediatamente útil como alimento humano. Os fazendeiros, portanto,
propagam os grãos e selecionam as futuras gerações a partir das plantas com
os grãos maiores. A seleção agrícola comum, portanto, produz a espiga
maior e mais cheia a partir da sua condição inicial, um tanto quanto pequena,
mas ainda assim útil.
Como característica geral mais importante, a teoria de Iltis propõe que uma
pequena mudança genética, que inicia uma modificação básica de forma
(encurtamento dos ramos laterais), engendra automaticamente uma importante
alteração de estrutura (transformação da espiga do pendão masculino em espiga
feminina) “destruindo o equilíbrio’ ’ dos sistemas de desenvolvimento e sexual
herdados (gradientes hormonais de macho para fêmea ao longo de um caule, e
gradientes em diferenciação que permitem que estruturas terminais se
desenvolvam primeiro). Essa teoria, portanto, pode servir como um exemplar
notável de um processo longamente ridizularizado por evolucionistas
convencionais, mas, a meu ver, eminentemente plausível em certos casos — o
“monstro promissor”, um parecer “saltacionista” para a origem de estruturas
morfológicas e de espécies novas (evolução por saltos). O grande geneticista
alemão Richard Goldschmidt propôs essa ideia numa série de obras, que
culminaram no seu livro de 1940, The Material Basis of Evolution (recentemente
reimpresso pela Yale University Press com uma introdução feita por este seu
criado). O monstro promissor de Goldschmidt tornou-se o bode expiatório dos
darwi-nianos ortodoxos, com as suas preferências pela mudança gradual e
contínua, e a sua teoria sofreu o destino mais cruel de todos — não ser lida nem
compreendida, ao mesmo tempo em que era ridicularizada numa versão caricata.
Na sua versão caricata, os monstros promissores são rejeitados por três
motivos. A proposta de Iltis sobre a origem do milho ilustra muito bem a teoria
na sua forma correta e sutil, tal como Goldschmidt a apresentou, e fornece um
antídoto específico para todos os três argumentos. Primeiro, os detratores
afirmam que a teoria de Goldschmidt representa uma capitulação à ignorância,
uma busca de apoio em algum tipo de acidente singular e caprichoso, útil por
acaso, vez ou outra. No entanto, não sabemos que virtualmente todas as grandes
mudanças são prejudiciais? Goldschmidt reconheceu que a maioria dos
macromutantes são inviáveis — monstros verdadeiramente sem esperança, nas
suas palavras. Os poucos promissores conquistaram a sua condição precisamente
porque alcançaram a sua forma abruptamente alterada dentro das limitações
impostas por um sistema de desenvolvimento herdado. Os monstros promissores
não são uma velha mudança singular, mas modificações em larga escala ao
longo de caminhos estabelecidos de desenvolvimento sexual e embriológico
comuns. Na teoria de Iltis, os gradientes herdados, de desenvolvimento e
hormonais, ao longo de um ramo, permitem a transformação do pendão em
espiga. Mudanças grandes em harmonia com — e produzidas ao longo de —
caminhos comuns de desenvolvimento não têm de ser inviáveis, pois elas se
encontram dentro das possibilidades herdadas da organização fundamental.
Segundo, os monstros promissores têm sido rejeitados porque supostamente
propõem perturbações desconhecidas e de grande escala dos sistemas genéticos.
De fato, no fim da carreira, Goldschmidt infelizmente confundiu a noção inicial
de mudança por saltos na forma com uma teoria posterior de mudança genética
abrupta e substancial — a chamada mutação sistêmica. Mas, na versão inicial de
Goldschmidt, o monstro promissor surgiu como consequência de mudanças
genéticas pequenas — e, portanto, plausíveis e ortodoxas — que produzem
grandes efeitos na forma porque alteram estágios iniciais de desenvolvimento
que provocam efeitos em cadeia no desenvolvimento subsequente. Iltis propõe
uma mudança genética pequena (ou mesmo nenhuma) como base para o
encurtamento dos ramos laterais e a produção do salto, de pendão para espiga,
como uma consequência automática de padrões de desenvolvimento.
Terceiro, quem o monstro promissor irá escolher para o acasalamento? Ele é
apenas um indivíduo, ainda que bem dotado, e a evolução exige a difusão dos
traços favoráveis na população. A prole de duas formas diferentes, um indivíduo
normal e um monstro promissor, será, com toda probabilidade, estéril ou, pelo
menos, no seu estado peculiarmente híbrido, não será páreo para os indivíduos
normais na seleção natural. No entanto a teoria de Iltis evita esse problema
invocando a ajuda humana na propagação das sementes. O teosinto trans-mutado
catastroficamente ainda é uma criatura viável, com um pendão masculino na
espiga central e espigas femininas em posições terminais nos ramos laterais.
Por fim, uma última característica, interessante e incomum, da teoria de Iltis:
ela recorre à resposta humana, não apenas para melhorar a espiga inicial por
meio da seleção convencional, mas também para torná-la, antes de mais nada,
uma estrutura viável — um exemplo notável de interação entre duas espécies
disparatadas na natureza. A espiga de milho, como objeto natural, pode muito
bem não ser funcional — pois os folhelhos, que envolvem o sabugo com firmeza
como resultado do encurtamento tão drástico do ramo lateral, impedem qualquer
dispersão das sementes (os grãos). Em estado natural, a espiga simplesmente
apodreceria no local onde caísse, ou daria origem a plantas tão próximas entre si
que nenhuma delas alcançaria a maturidade plena. Mas os fazendeiros podem
tirar os folhelhos e plantar as sementes — convertendo um monstro sem
esperança num monstro muitíssimo promissor e útil.
O milho é a terceira maior cultura do mundo, não muito atrás do trigo e do
arroz. Na condição de cultura básica original dos povos do Novo Mundo, ele
construiu as civilizações de um hemisfério inteiro. Hoje plantamos 270 milhões
de acres de milho por ano, que produzem quase nove bilhões de Bushels (unidade
de medida de grãos. Equivale a oito galões ou 36,5 litros - N.R.T.). A maior parte disso não
acaba em tacos ou salgadinhos, mas em ração animal — a fonte primária para os
nossos apetites carnívoros. Precisamos do milho para uma vida confortável, mas
o milho precisa de nós, simplesmente para sobreviver.
7. Avida aqui e em outros lugares
A versão de Wallace do princípio antrópico sustenta que a vida requer cada
parte desse intrincado universo físico, e que a vida só poderia surgir ao redor de
um Sol situado no local onde, por sorte, está o nosso, na borda exterior do
agrupamento solar central. Todos esses anéis, agrupamentos e espaços vazios
devem, portanto, refletir o plano da inteligência preexistente.
O argumento de Wallace requer que as estrelas distantes exerçam uma
influência direta e sustentadora sobre a capacidade da Terra de manter vida.
Enquanto tenta desesperadamente elaborar argumentos em torno de um cálculo
contemporâneo, segundo o qual a brilhante estrela Vega proporciona à Terra
cerca de 1/200.000.0Ú0 do calor de uma vela comum a um metro de distância,
ele flerta com a ideia de que os raios estelares podem ser benéficos para as
plantas. Ele até mesmo propõe o dúbio argumento de que, como as estrelas
podem imprimir a sua luz sobre uma placa fotográfica, as plantas também
podem requerer a mesma luz para executar as suas atividades noturnas — um
salto bem precipitado, que parte do fato de que o filme pode registrar para a
inferência de que a matéria viva necessita.
Mas Wallace não insistiu nesse débil argumento especulativo. Em vez disso,
ele enfatizou que a vida depende da estrutura física detalhada do universo pelo
mesmo motivo que Dyson cita nos seus dois principais exemplos: a evolução de
vida complexa, inteligente, requer um Sol central que possa se queimar de modo
estável por eras incontáveis, e tais sóis estáveis desenvolvem-se apenas dentro de
um âmbito delicado e estreito de leis e condições físicas. Dyson enfatiza a
densidade estelar e os diprótons; Wallace argumentava que sóis adequados só
podiam existir num universo estruturado como o nosso e apenas na borda de um
agrupamento central de tal universo.
No universo de Wallace, as estrelas estão concentradas em três regiões: o
anel exterior (ou a Via-Láctea propriamente dita), o anel interior que rodeia o
agrupamento central, e o próprio agrupamento central. O anel exterior da Via-
Láctea é uma região muito densa e ativa para permitir a existência de sóis
estáveis. As estrelas movem-se com muita rapidez e encontram-se tão próximas
entre si que as colisões e aproximações romperiam inevitavelmente qualquer
sistema planetário antes que a vida inteligente evoluísse.
Wallace então afirma que a estabilidade solar não pode (como acreditamos
hoje) surgir como um produto do suprimento de combustível próprio de uma
estrela (ele sabia pouca coisa sobre radioatividade e fusão nuclear). As estrelas
só podem se queimar de modo estável se forem constantemente abastecidas com
matéria nova proveniente de outros lugares. Essa matéria se desloca, por
gravitação, das regiões exteriores do universo (particularmente do anel da Via-
Láctea) rumo ao centro, onde reside o nosso Sol. O anel interior não pode
abrigar sóis estáveis, já que é bombardeado por muita matéria exterior. O centro
do agrupamento solar não serve, porque recebe muito pouco material nutritivo.
Apenas na borda exterior do agrupamento solar, onde (e certamente de modo
planejado) reside o nosso Sol, é que uma estrela consegue obter o equilíbrio
ideal de material para ser queimado de modo estável, durante um período de
tempo longo o suficiente para a evolução da inteligência.
Cada detalhe do plano cósmico conspira para permitir a vida num planeta
que circula ao redor de um Sol tão afortunadamente situado. Precisamos da Via-
láctea para fornecer o combustível externo. Precisamos do anel interno como um
filtro, permitindo que apenas a quantidade certa de combustível passe.
Precisamos de um agrupamento central onde as estrelas se movem
vagarosamente e não interferem uma na outra. Tudo isso poderia ter acontecido
sem alguma inteligência diretora? Oitenta anos depois do livro de Wallace, o
nosso universo não poderia ser mais radicalmente diferente, e, no entanto, a
esperança humana continua a lhe impor o mesmo argumento inválido.
Uma diferença importante, final, separa Wallace de Dyson e da maioria dos
defensores modernos do princípio antrópico. Nossos adeptos contemporâneos
desenvolvem os seus argumentos e então apresentam a conclusão — a de que a
mente planejou o universo, em parte para que a vida inteligente pudesse evoluir
dentro dele — como uma inferência necessária e lógica. Wallace era um cientista
histórico muito bom para se permitir uma certeza tão fácil; ele compreendia
muito bem que resultados ordenados e complexos podem surgir de
improbabilidades acumuladas. Portanto, ele reconheceu e apresentou
francamente a interpretação alternativa:
Um corpo considerável, incluindo provavelmente a maioria dos homens de
ciência, admitirá que os indícios sem dúvida levam a essa conclusão
aparente, mas irá explicá-la como tendo sido causada por uma feliz
coincidência. Poderiam ter existido cem ou mil planetas capazes de sustentar
vida, houvesse o curso da evolução sido um pouco diferente, ou poderia não
ter existido absolutamente nenhum.
Esse bom cientista, cansado pela idade e por tantas batalhas solitárias por
causas idiossincráticas, mas que ainda era incisivamente autocrítico, apresentou
então a sua interpretação favorita, reconhecendo com honestidade que ela tinha
como base uma visão confortadora da vida, impossível de ser provada:
O outro corpo, que provavelmente é bem maior, seria representado por
aqueles que, afirmando que a mente é essencialmente superior à matéria e
dela distinta, não conseguem acreditar que a vida, a consciência, a mente, são
produtos da matéria. Eles afirmam que a maravilhosa complexidade de
forças que parece controlar a matéria, se é que não a constituem de fato, são
e têm de ser produtos da mente.
Não posso negar que este segundo parecer, o princípio antrópico, é uma
interpretação possível dos indícios, embora eu prefira a primeira explicação.
(Sempre suspeite de conclusões que reforçam a esperança acrítica e que seguem
tradições confortadoras do pensamento ocidental.) Não me oponho à sua
apresentação e discussão, contanto que a sua condição de interpretação possível,
não de inferência lógica, seja adequadamente identificada — como Wallace fez
há oitenta anos, e Dyson não fez no nosso tempo. Quanto a mim, procurarei a
minha esperança em outro lugar. Também ficaria surpreso, mas nem um pouco
insatisfeito, se, mirabile dictu, Wallace e Dyson estivessem certos, afinal.
Pós-escrito
Vários leitores me informaram (como eu deveria ter me lembrado) que o
famoso ensaio de Mark Twain, “A maldita raça humana”, foi escrito como
resposta explícita à versão de Wallace do princípio antrópico. A Parte 1 desta
série, intitulada ‘‘O mundo foi feito para o homem?”, tem como epígrafe: “A
ressurreição, promovida por Alfred Russell [s/c, Russel] Wallace, da teoria de
que esta Terra está no centro do universo estelar, e é o único globo habitável,
despertou grande interesse no mundo.” Twain, à sua moda inimitável, reconta
então a história da vida em cinco páginas, assegurando-nos de que toda a rica e
desordenada diversidade só podia representar um longo cortejo de preparo para
aquele segundo geológico final da habitação humana! — o suficiente para a
asserção de Wallace de que o universo deve ter sido planejado conosco em
mente.
Fiquei fascinado ao ver quantos outros temas destes ensaios estão embutidos
na sátira sucinta de Twain. Por exemplo, ele cita Kelvin como fonte de
autoridade para afirmar a grande idade da Terra — uma confirmação do meu
argumento (ensaio 8) de que o trabalho de Kelvin, na sua própria época, e
contrariando o mito comum que o retrata como um vilão arrogante contra a
ciência empírica, foi interpretado como prova da confortável antiguidade da
Terra, não como uma restrição da imensidade do tempo: “De acordo com esses
números [os de Kelvin], foram necessários 99.968.000 anos para preparar o
mundo para o homem, impaciente como estava o Criador, sem dúvida, para vê-
lo e admirá-lo. Mas um empreendimento como esse tem de ser conduzido com
cautela, a duras penas e de maneira lógica.”
O final de Mark Twain apresenta uma metáfora maravilhosa (a literatura e a
ciência popular contêm tantas) para a grande idade da Terra em relação ao
espaço de tempo da ocupação humana. (Eu o vejo como um tipo de ancestral
literário da imagem de John McPhee em Basin and Range — a de que, se
imaginássemos o tempo geológico como a antiga jarda inglesa, a distância do
nariz do Rei até a ponta do seu braço esticado, um golpe de lixa aplicado à unha
do seu dedo médio apagaria toda a história humana):
Tal é a história. O homem está aqui há 32.000 anos. Que tenham sido
necessários cem milhões de anos para preparar o mundo para ele é prova de
que é para isso que o mundo foi feito. Acho que sim. Sei lá. Se a Torre Eiffel
agora representasse a idade do mundo, a casquinha de tinta na bolinha do
pináculo, lá no topo, representaria a parte do homem nessa idade; e qualquer
um perceberia que foi para essa casquinha que a torre foi feita. Imagino que
achariam isso, sei lá.
8. Extinção e continuidade
29. Continuidade
Uma faixa dourada de mosaicos circunda o interior da cúpula de
Michelângelo na Basílica de São Pedro no Vaticano. Ela é adornada por aquele
trocadilho geológico definitivo, as palavras de Cristo, tomadas desde então como
justificativa da supremacia e da continuidade papal. Tu es Petrus, et super hanc
petram aedificabo ecclesiam meam — “Tu és Pedro, e sobre esta pedra
edificarei a minha igreja” (Mateus 16:18) Em latim, e em outras línguas do
tempo de Cristo, o nome de Pedro significa pedra petra) — portanto, Cristo
nomeou o seu primeiro papa por nome e talvez não sem um toque de humor. (É
claro que não é da minha conta, mas sempre considerei Pedro — o hómem que
negou Cristo três vezes e então tentou escapulir de Roma até que Cristo
reaparecesse e respondesse com uma suave censura à sua indagação “Domine,
quo vadis?” — um caráter um tanto fraco para assumir uma responsabilidade tão
importante.) De qualquer modo, as palavras em mosaico dourado simbolizam
uma das grandes continuidades da nossa instável e efêmera história — uma
instituição (o papado) que tem como reconstituir a sua linhagem ao longo de
dois milênios.
Não há nenhuma cidade exatamente como Roma, e nenhuma instituição
exatamente como a Igreja católica, no que diz respeito a continuidade apreciável
— aquela propriedade fugaz que um paleontólogo como eu deve considerar de
valor intrínseco e inestimável. Se o ajustamento sutil a necessidades e
sentimentos humanos profundos representa a melhor fórmula para a
continuidade, então a Igreja de Roma conquista os aplausos deste leigo. Ao fim
da tarde, na bela igreja de Santa Maria de Trastevere, iniciada no século III,
rapazes jogam futebol na praça contígua. À medida que o dia se esvai, eles se
deslocam para o pórtico iluminado, sob os magníficos mosaicos da Virgem, e
prosseguem com o jogo, em meio às tumbas de cristãos primitivos. O sagrado
e.o profano devem se misturar.
Na Casina Pio Quatro (palácio de Pio IV), no território do Vaticano, em
janeiro de 1984, começo do ano de Orwell, encontrei-me com vinte cientistas de
oito nações para esboçar um relatório sobre o “inverno nuclear” que o papa
pudesse usar nos seus discursos contra a guerra atômica. Pio IV foi um papa
quinhentista da poderosa família Mediei. A casa dele é um palácio romano,
rodeado de grutas e terraços ornados com estátuas e relevos de jovens romanos
em várias poses de brincadeira e contentamento. Os tetos são pintados com
desenhos ondulantes de criaturas imaginárias e símbolos sexuais e de fertilidade
razoavelmente ostensivos. Querubins erguem o escudo de seis bolas dos Mediei,
o símbolo do poder temporal, com o seu título digno de um monarca terreno,
Pius IIII Pontifex Optimus Maximus. Aqui e ali, quase que como um
pensamento de última hora, uma cena bíblica — o batismo de Cristo por João,
por exemplo — preenche um espaço entre motivos romanos. Mais uma vez,
sagrado e profano, espiritual e temporal, prazer e contemplação — todos
contidos numa única unidade artística, um símbolo de continuidade que
incorpora o passado e reconhece realidades humanas do presente.
Estive em Roma para discutir a continuidade na mais grandiosa escala. Uma
série de estudos, executados por grupos independentes de cientistas em diversas
nações, examinados e confirmados por líderes das várias disciplinas envolvidas,
parecem estar convergindo (apesar de várias incertezas remanescentes) para uma
conclusão perturbadora. Em todos os prognósticos sobre os horrores da guerra
nuclear, deixamos passar anteriormente um tema importante que torna a
perspectiva de tal holocausto ainda mais impensável. Exploramos as
consequências imediatas da explosão e da precipitação radioativa, mas não
avaliamos os efeitos a longo prazo (de meses e anos) sobre o clima produzidos
pelas nuvens de poeira e fuligem erguidas por grandes explosões. Sob uma série
de circunstâncias plausíveis, um manto de partículas poderia cobrir a Terra,
trazendo temperaturas abaixo de zero nos verões de latitudes médias e
envolvendo a Terra em tamanha escuridão que a agricultura poderia desaparecer
completamente. Esse inverno nuclear levanta, pela primeira vez, a aterrorizante
perspectiva de que uma grande guerra não apenas debilitaria e dizimaria,
trazendo consigo sofrimento humano inigualado, mas também levaria à extinção
total e irremediável de várias espécies vegetais e animais. Nós, humanos, somos
um grupo robusto e bem distribuído, mas até mesmo a possibilidade do nosso
próprio desaparecimento, como consequência da pior sequência de eventos de
um inverno nuclear, não deve ser de todo excluída.
Por que devemos nos preocupar tanto com a extinção? Já é bastante
considerar a destruição aterradora da guerra nuclear sem essa dimensão
adicional. Eu poderia oferecer uma série de motivos “objetivos”. Alguns são
práticos. O milho, a nossa colheita mais importante, estará em dificuldades se
perdermos o teosinto, a sua gramínea ancestral, com uma distribuição geográfica
e ecológica limitada na América Central e América do Sul. O teosinto produz
híbridos com o milho (ver ensaio 24) e constitui uma importante reserva de
variabilidade genética de que todas as espécies necessitam para a sua própria
preservação e flexibilidade evolutiva. Outros motivos são francamente estéticos.
Este seria mesmo um mundo bem empobrecido e triste se não encontrássemos
nada além de humanos, e um rato ou uma barata de vez em quando. Mas, no
presente ensaio, que apresento mais como uma divagação sobre a continuidade
do que como um relato técnico sobre o inverno nuclear, gostaria de enfatizar um
argumento altamente pessoal, moral (não sujeito a prova, mas simplesmente à
expressão, profundamente sentida), que se origina da minha própria carreira de
paleontólogo, um estudioso da maior de todas as continuidades naturais, a
genealogia da vida na Terra.
Temos hoje provas, nos fósseis de células simples e nos tapetes de
sedimentos que os agregados dessas células capturam e prendem, de que a vida
surgiu há pelo menos 3,5 bilhões de anos. Desde então, ela tem se expandindo
no tempo, numa sequência ininterrupta até o presente. Todos nós, musgo,
efêmera, hipopótamo, podemos, de modo absolutamente literal, rastrear toda a
nossa ascendência até esses primórdios. A árvore é uma metáfora precisa para a
história da vida; a ponta de cada ramo hoje existente (nós, humanos, somos um
deles) recua por ramos sempre mais largos e robustos, até o tronco comum das
células originais com quase quatro bilhões de anos de idade.
Cada extinção remove em caráter permanente um pedaço desse patrimônio;
cada morte irremediável de uma espécie não destrói meramente um bocado do
protoplasma presente, mas um caminho singular da história, mantido durante
quatro bilhões de anos. Cada extinção é um rompimento de continuidade na mais
grandiosa escala. Claro, a partir de uma perspectiva geológica medida em
milhões de anos, a extinção é inevitável, até mesmo necessária para a
manutenção de uma vigorosa árvore da vida. Também podemos argumentar,
tanto no nível abstrato quanto na história efetiva da vida, que um ocasional
episódio catastrófico de extinção em massa abre novas possibilidades evolutivas,
liberando espaço ecológico num mundo lotado.
Mas essas escalas geológicas não são adequadas para se considerar a nossa
própria vida e o seu significado imediato. O efeito potencialmente benéfico de
uma extinção em massa no imprevisível ricochete da vida ao longo de dez
milhões de anos não pode expressar o significado do nosso pequeno ramo na
árvore da vida — e não estamos exibindo uma vaidade cósmica quando achamos
melhor alimentar e defender este raminho em especial, mas apenas um auto-
interesse adequado.
O nosso raminho é bem pequeno mesmo, mas lembre que ele remonta, por
meio de uma miríade de galhos maiores, ao longo de quatro milhões de anos, ao
próprio tronco central. A nossa origem na África e a subsequente difusão por
todo o mundo formam uma história complexa e instigante que expressa a nossa
continuidade com toda a história da vida. Se extirparmos este raminho
diretamente, por meio do inverno nuclear, ou se perdermos tantos outros ramos
que o nosso venha por fim a murchar, teremos então cancelado para sempre o
experimento mais peculiar, diferente e imprevisto jamais gerado entre os bilhões
de ramos — a origem, via consciência, de um ramo capaz de descobrir a sua
própria história e de apreciar a sua continuidade.
Algumas pessoas, que nunca se livraram da cadeia do ser (ver ensaios 17-19)
e que encaram a história da vida como um relato de progresso linear que leva de
modo previsível à evolução da consciência, poderiam sentir-se menos
perturbadas (em certo sentido abstrato) pela nossa potencial auto-remoção.
Afinal, a evolução se desloca rumo à complexidade e à consciência. Se não nós,
então algum outro ramo sobrevivente entrará na corrente e por fim dará uma
segunda chance à inteligência. E, se não aqui, então em outro lugar, num
universo povoado, pois as leis da natureza não variam de lugar para lugar.
Como estudioso da história da vida, e como homem que trabalhou duro para
separar o preconceito cultural e a esperança psicológica da história que os fósseis
tentam nos contar, cheguei a uma conclusão inteiramente diversa, compartilhada,
penso eu, pela maioria dos colegas profissionais: a consciência é um caprichoso
acidente evolutivo, um produto de uma linhagem peculiar que desenvolveu a
maioria dos componentes da inteligência para outros propósitos evolutivos (ver
ensaio 27). Se perdermos esse ramo com a extinção humana, a consciência pode
não se desenvolver outra vez em qualquer outra linhagem durante os mais ou
menos cinco bilhões de anos que restam à Terra antes da explosão do Sol. Sem
nenhuma culpa nossa, e sem a pressão de nenhum plano cósmico ou propósito
consciente, nós nos tornamos, pelo poder de um glorioso acidente evolutivo
chamado inteligência, os administradores da continuidade da vida na Terra. Não
pedimos esse papel, mas não podemos abjurá-lo. Podemos não estar qualificados
para tamanha responsabilidade, mas cá estamos nós. Se a mandarmos pelos ares
(em sentido absolutamente literal), romperemos em caráter permanente uma
continuidade de eras que reduz a nossa minúscula história à insignificância
geológica, mas que, não obstante, nós agora controlamos. Não consigo imaginar
nada mais vulgar, mais odioso, do que a perspectiva de que um ramo minúsculo,
com um poder peculiar, possa dizimar uma árvore majestosa e antiga, cuja
continuidade se prolonga desde a aurora dos tempos da Terra e cujo tronco e
ramos abrigam milhares de pré-requisitos para a existência desse mesmo ramo.
O argumento do inverno nuclear tem várias fontes e progenitores. Mas ele
ganhou destaque em fins de 1983 principalmente através do trabalho de uma
equipe com a apropriada acrossemia de TTAPS (Taps significa toque fúnebre - N.T.) —
R. P. Turco, O. B. Toon, T. P. Ackerman, J. B. Pollack e Cari Sagan. A
modelagem climática representa um estilo pouco familiar de ciência, bem
diferente do estereótipo escolar de experimento simples, previsão clara e prova
inequívoca. Temos de lidar, ao contrário, com uma série de variáveis cujos
valores não conseguimos especificar com exatidão e cujas interações são, em
boa parte, desconhecidas, já que o experimento, graças a Deus, não foi tentado.
Quanta poeira e fuligem sobe; ela se espalha numa camada homogênea ou deixa
brechas para a luz solar intermitente; ela se espalha para o hemisfério sul e, se o
fizer, com que intensidade; em que lugar da atmosfera a poeira e a fuligem se
alojam e por quanto tempo elas permanecerão antes que a chuva consuma as
partículas e as traga de volta ao chão; a que nível chegará o frio; por quanto
tempo durarão os efeitos? Eu poderia continuar por uma eternidade, mas vou
parar por aqui. Além disso, estas são apenas as questões de primeira ordem sobre
resultados imediatos desconhecidos. O que dizer das interações entre os efeitos,
pois tais “sinergias” muitas vezes não são, no jargão técnico, cumulativas — isto
é, mau com mau pode não ser duas vezes mau, mas muitas vezes pior. A
radiação, por exemplo, enfraquece o sistema imunológico humano. Ela também
engendra altos ritmos de mutação capazes de levar à evolução de um agente de
doenças particularmente virulento. A interação desse novo vetor de doença,
junto com corpos humanos de resistência nitidamente reduzida, poderia produzir
uma pandemia bem maior em efeito do que qualquer previsão baseada em
componentes considerados em separado seria capaz de imaginar.
Em face dessas dificuldades e incertezas, a equipe TTAPS procedeu
especificando os âmbitos de valor mais sensatos para cada efeito e elaborando
centenas de roteiros possíveis para obter algum senso de campo de ação
plausível. As variações principais dependem em boa parte dos diferentes
comportamentos e quantidades de poeira e fuligem. Em resumo, e simplificando
um pouco, impactos diretos longe de cidades podem erguer grandes quantidades
de poeira fina na atmosfera; as explosões sobre cidades e florestas podem
acender gigantescas labaredas que colocam nuvens de fuligem mais grossa em
níveis atmosféricos mais baixos. A poeira e a fuligem bloqueiam a luz solar e
engendram o inverno nuclear. (Nem mencionei as séries de outros efeitos
profundamente negativos como, por exemplo, a radiação e o esgotamento da
camada de ozônio).
Não posso nem começar a tratar dos detalhes técnicos neste pequeno ensaio.
(O relatório original do TTAPS e o comentário de biólogos que o acompanha,
divulgados primeiro como dois artigos na Science, em 23 de dezembro de 1983,
foram republicados por W. W. Norton como The Cold and the Dark, de Paul
Ehrlich et al. — ver Bibliografia. Cari Sagan também publicou um relato menos
técnico, mas, ainda assim, completo, no número de inverno de 1983/1984 da
Foreign Affairs.) Mencionarei, porém, apenas duas conclusões gerais. Primeiro,
o limiar do inverno nuclear pode ser atingido através de várias sequências
plausíveis de eventos envolvendo uma porcentagem apropriada da megatonagem
do mundo e um número plausível de bombas explodidas sobre cidades e alvos
militares. Segundo e, de certo modo, surpreendentemente, mesmo uma guerra
nuclear “pequena” poderia, sob circunstâncias plausíveis, detonar o inverno
nuclear (por exemplo, apenas 100 megatons, do estoque mundial de
aproximadamente 10.000, se explodidos em cidades, com grandes incêndios
subsequentes e uma produção máxima de fuligem, poderiam ser suficientes).
Não sou um observador astuto da política mundial, e fiquei surpreso (mas
bastante satisfeito) com o reconhecimento de que a possibilidade do inverno
nuclear surtiu efeito com tanto vigor em tantos setores. Sempre achei que a nossa
velha história, restrita às conseqüên-cias imediatas de explosão e precipitação
radioativa, era tão horrível que nenhum acréscimo adicional de tormento seria
necessário para galvanizar a opinião pública. Mas agora percebo, criaturas
esperançosas que somos, que muitas pessoas viviam com a ilusão, a essa altura
dissipada, de que, se residissem longe o suficiente das explosões imediatas e
permanecessem o tempo suficiente em seus abrigos, em breve poderiam voltar à
superfície de um mundo luminoso esperando para ser reconstruído. Também não
havia conseguido notar que pessoas de outras nações, particularmente do
hemisfério sul, conseguiam sentir certa segurança pessoal, agora também
dissipada, frente à loucura do norte. O inverno nuclear também ajuda a
esclarecer o que me parece a quase certeza de que qualquer “conquista” na
guerra nuclear poderia se tornar apenas a definitiva vitória de Pirro, à medida
que um clima impiedoso fosse propagando os seus enregelantes efeitos contra
qualquer agressor.
De qualquer modo, o argumento do inverno nuclear espalhou-se por todo o
mundo como a sua nuvem de poeira, tornando-nos, talvez, mais próximos e
unindo-nos contra um perigo comum — pois a Terra, assim como um
organismo, possui a sua própria continuidade e pode distribuir em partes iguais
os insultos que sofrer. A Academia Pontifícia de Ciências, representando a
instituição mais ecumênica do mundo, trouxe ao Vaticano vinte de nós, de oito
nações e mais religiões (e não religiões) a fim de elaborar um pronunciamento
sobre o inverno nuclear e para um encontro com o papa João Paulo II num
esforço para desenvolver esse novo argumento como uma arma eficaz contra a
ameaça de uma guerra nuclear. Num breve pronunciamento a nós, o papa
argumentou que devemos combinar o nosso modo científico de dissuasão (a
nossa melhor estimativa das consequências concretas) com o meio de dissuasão
moral que ele e outros podem oferecer. E eu pensei no casamento do espiritual e
do temporal, da contemplação e da sensualidade, da força física e da persuasão
moral, todos retratados nos tetos quinhentistas do nosso local de encontro. A
continuidade exigirá essa flexibilidade, essa união de todas as nossas forças.
Também podemos estender este tema de continuidade, flexibilidade e
ecumenismo ao próprio processo de geração do argumento do inverno nuclear na
ciência. A elaboração dos detalhes exigiu as habilidades combinadas de físicos,
meteorologistas, químicos, biólogos, especialistas na mecânica da formação de
crateras e no comportamento de partículas em suspensão. Fico feliz em dizer que
uma das duas maiores fontes de inspiração para o grupo TTAPS veio
diretamente do meu campo, a paleontologia, tantas vezes vista como uma
disciplina arcana devotada a eventos do passado distante, sem relevância
imediata para a vida humana. Escrevi diversos ensaios sobre a teoria do impacto
na extinção do período cretáceo — a ideia instigante, com apenas alguns anos de
idade, mas conquistando continuamente força e indícios de que a extinção dos
dinossauros e muitas outras criaturas há 65 milhões de anos pode ter sido
detonada pelo impacto de cometas ou asteroides que se chocaram com a Terra e
deixaram indícios do seu bombardeio nos altos níveis de irídio, um elemento
extremamente raro em rochas nativas da crosta terrestre, porém mais comuns em
corpos extraterrestres (ver ensaios 28 e 30).
Luis Alvarez, o grande físico de Berkeley e cofundador da teoria do impacto,
defendeu desde o início uma sequência de eventos para a extinção que tem como
base uma gigantesca nuvem de poeira erguida pelo choque cósmico, com a
subsequente supressão de fotossíntese e o súbito declínio de temperatura. Ele
também reconheceu explicitamente os paralelos entre o choque com um cometa
e a guerra nuclear (na verdade, a megatonagem de tal impacto excede em muito
a força de todo o nosso arsenal nuclear). Sagan e os seus colegas leram a
mensagem e aplicaram-na diretamente. A boa ciência também exibe a
continuidade entre disciplinas aparentemente não relacionadas.
O impacto tornou possível a nossa evolução; sem tal explosão, duvido que
estivéssemos aqui para considerar o inverno nuclear. Os mamíferos
desenvolveram-se mais ou menos ao mesmo tempo que os dinossauros e
passaram os seus primeiros cem milhões de anos como criaturas pequenas,
vivendo na periferia de um mundo dominado por répteis gigantes. Se os
dinossauros não houvessem se extinguido no bombardeio do cretáceo, eles
presumivelmente ainda dominariam a Terra (já que o haviam feito por cem
milhões de anos, por que não por mais 65 milhões ou mais?), os mamíferos
teriam continuado a viver como criaturas pequenas, do tamanho de ratos, e a
inteligência não se teria desenvolvido para criar as glórias do intelecto e os
horrores do holocausto nuclear. Não é mesmo um pensamento cheio de
esperança o de que, reconhecendo a causa de um evento fundamental para a
nossa evolução, podemos também contribuir, através do seu uso direto na
formulação do argumento do inverno nuclear, para a nossa sobrevivência na luta
contra a maior ameaça já produzida pela árvore da vida contra a sua própria e
frágil continuidade?
Pós-escrito
O pronunciamento oficial do Vaticano, elaborado durante o nosso encontro,
foi agora publicado. O texto completo aparece abaixo.
Inverno nuclear: uma advertência
A guerra nuclear teria entre as suas consequências imediatas a morte de uma
grande proporção das populações das nações combatentes. Tal guerra
representaria uma catástrofe sem precedentes na história humana. A subsequente
precipitação radioativa, o enfraquecimento do sistema imunológico, a doença e o
colapso do serviço médico e outros serviços civis ameaçariam um grande
número de sobreviventes.
Temos agora de emitir uma advertência adicional: efeitos recém-
reconhecidos da guerra nuclear sobre o clima global indicam que as
consequências a longo prazo podem ser tão terríveis quanto os efeitos imediatos,
se não piores.
Numa guerra nuclear, as armas detonadas perto do solo introduziriam
grandes quantidades de poeira na atmosfera, e as detonadas acima de cidades e
florestas gerariam repentinamente enormes quantidades de fumaça fuliginosa
dos incêndios resultantes. As nuvens de partículas finas logo se espalhariam por
todo o hemisfério norte, absorvendo e dispersando a luz solar e desse modo
escurecendo e resfriando a superfície da Terra. As temperaturas continentais
poderiam cair rapidamente — bem abaixo do nível de congelamento, durante
meses, mesmo no verão — criando um “inverno nuclear”. Isso aconteceria
mesmo com grandes variações na natureza e no âmbito da guerra nuclear.
Apenas recentemente nos demos conta de quão severos o frio e a escuridão
poderiam ser, sobretudo como consequência dos intensos e numerosos incêndios
provocados por explosões nucleares, e das mudanças consequentes na circulação
atmosférica. Isso produziria uma agressão adicional profunda às plantas, aos
animais e humanos sobreviventes. A agricultura, pelo menos no hemisfério
norte, poderia ficar seriamente prejudicada por um ano ou mais, causando fome
generalizada.
Os cálculos demonstram que a poeira e a fumaça podem muito bem se
espalhar para os trópicos e boa parte do hemisfério sul. Assim, nações não
combatentes, incluindo aquelas bem distantes do conflito, poderiam ser
seriamente danificadas. Nações como índia, Brasil, Nigéria e Indonésia
correriam o risco de ser atingidas por desastres sem paralelo, sem que uma única
bomba explodisse em seus territórios.
Além disso, o inverno nuclear poderia ser detonado por uma guerra nuclear
relativamente pequena, envolvendo apenas uma fração reduzida dos presentes
arsenais estratégicos do globo, bastando que cidades sejam alvejadas e
queimadas. Mesmo se uma guerra nuclear “limitada” fosse iniciada de uma
maneira que tivesse como intenção minimizar os seus efeitos, ela provavelmente
aumentaria até o uso maciço de armas nucleares, como salientou a Academia
Pontifícia de Ciências na precedente “Declaração sobre a prevenção da guerra
atômica” (1982).
Os resultados gerais parecem ser válidos num âmbito amplo de condições
plausíveis, e ao longo de grandes variações no caráter e na extensão de uma
guerra nuclear. Contudo, ainda existem incertezas nas presentes avaliações, e há
efeitos que ainda não foram estudados. Portanto, trabalhos científicos adicionais
e o escrutínio crítico contínuo de métodos e dados são nitidamente necessários.
Perigos adicionais imprevistos da guerra nuclear não podem ser excluídos.
O inverno nuclear implica um vasto aumento do sofrimento humano,
incluindo nações não diretamente envolvidas na guerra. Uma grande proporção
de humanos que sobrevivessem às consequências imediatas da guerra nuclear
provavelmente morreria de frio, fome, doença e, além disso, dos efeitos da
radiação. A extinção de muitas espécies vegetais e animais pode ser esperada, e,
em casos extremos, poderia ocorrer a extinção da maioria das espécies não
oceânicas. A guerra nuclear traria na sua esteira uma destruição inigualada de
vida em qualquer tempo durante o período de vida dos humanos na Terra, e
poderia, portanto, colocar em risco o futuro da humanidade.
Carlos Chagas, Brasil, Presidente
S. N. Isaev, URSS
Vladimir Alexandrov, URSS
Raymond Latarjet, França
Edoardo Amaldi, Itália
Louis Leprince-Ringuet, França
Dan Beninson, Argentina
Carl Sagan, EUA
Paul J . Crutzen, República Federal da Alemanha
Carlo Schaerf, Itália
Lars Ernster, Suécia
Eugene M. Shoemaker, EUA
Charles Townes, EUA
Giorgio Fiocco, Itália
Stephen J. Gould, EUA
Eugene P. Velikhov, URSS
José Goldemberg, Brasil
Victor Weisskopf, EUA
A maioria das ideias “quentes” acabam por se revelar erradas. Só posso
esperar que eu não venha a ser lembrado como o homem que lutou por um nome
para o inexistente (certamente pior que uma lua para os vis). Alguns riscos
valem a pena. Se Talia sorrir, e Shiva existir, pense o que isso significará para a
minha adorada ciência da paleontologia. Trabalhamos há tanto tempo sob o ônus
do tédio e do enfado. Somos os guardiães da história, mas somos muitas vezes
retratados como insensatos filatelistas de pedras; especialistas em cantos
insignificantes do espaço, do tempo e da taxonomia; fornecedores de nomes tão
arcanos como Pharkidonotus percarinatus em enormes orgias de detalhes
irrelevantes. Os editores da principal publicação científica da Grã-Bretanha
escreveram sobre nós em 1969: “Os cientistas em geral podem ser desculpados
por presumirem que a maioria dos geólogos são paleontólogos e que a maioria
dos paleontólogos tiveram como trabalho da sua vida delimitar uma milha
quadrada com estacas”.
Os tempos vêm mudando há mais de uma década, mas Shiva coroaria a
nossa transformação. Que apoteose para uma ciência anteriormente “enfadonha”
— ser a fonte e o ímpeto, por meio da descoberta do ciclo de 26 milhões de
anos, para a maior revisão da cosmologia (pelo menos a do nosso cantinho dos
céus) desde Galileu.
Bibliografia
Agassiz, L. 1862. Contributions to the natural history of the United States, vol.
4. Boston.
Altick, R. D. 1978. The shows of London. Cambridge, MA: Harvard University
Press.
Alvarez, L. W. 1982. “Experimental evidence that an asteroid impact led to the
extinction of many species 65 million years ago”. Proceedings of the National
Academy of Sciences 80: 627-42.
Alvarez, L. W.; W. Alvarez; F. Asaro; e H. V. Michel. 1980. “Extraterrestrial
cause for the Cretaceous-Tertiary extinction”. Science 208: 1095-1108.
Alvarez, W., e R. A. Muller. 1984. “Evidence from crater ages for periodic
impacts on the earth”. Nature 308: 718-20.
Anônimo. 1969. “What will happen to geology”. Nature 221: 903.
Barnes, C. W. 1980. Earth, time and life. Nova York: John Wiley.
Bateson, G. 1979. Mind and nature. Nova York: E. P. Dutton.
Beadle, G. W. 1980. “The ancestry of corn”. Scientific American, janeiro, pp.
112-19.
Bigelow, R. P. 1900. “The anatomy and development of Cassiopea xamachana”.
Memoirs Boston Society of Natural History 5: 191-236.
Briggs, D. E. G.; E. N. K. Clarkson; e R. J. Aldridge. 1983. “The conodont
animal”. Lethaia 16: 1-4.
Buckland, W. 1823. Reliquiae diluvianae; or, observations on the organic
remains contained in caves, fissures, and diluvial gravel, and on other geological
phenomena attesting the action of a universal deluge. Londres: John Murray.
Buckland, W. 1836 (edição de 1841). Geology and mineralogy considered with
reference to natural theology. Filadélfia: Lea e Blanchard.
Buffon, G. L. 1828. Oeuvres complètes de Buffon. Editado por M. A. Richard.
Vol. 28. Paris: Baudouin.
Burchfield, J. D. 1975. Lord Kelvin and the age of the earth. Nova York:
Science History Publications.
Buskirk, R. E.; C. Frohlich; e K. G. Ross, 1984. “The natural selection of sexual
cannibalism”. American Naturalist 123: 617-25.
Colbert, E. H.; R. B. Cowles; e C. M. Bogert. 1946. “Temperature tolerances in
the American alligator and their bearing on the habits, evolution, and extinction
of the dinosaurs”. Bulletin of the American Museum of Natural History 86: 327-
74.
Coon, C. 1962. The origin of races. Nova York: A. A. Knopf.
Cuvier, G. 1817. “Extrait d’observations faites sur le cadavre d’une femme
connue à Paris et à Londres sous le nom de Vénus hottentotte”. Mémoires du
Muséum d’Histoire Naturelle 3: 259-74.
Darwin, C. 1859. On the origin of species. Londres: John Murray.
Darwin, C. 1871. The descent of man and selection in relation to sex. Londres:
John Murray.
Davis, M.; P. Hut; e R. A. Muller, 1984. “Extinction of species by periodic
comet showers”. Nature 308: 715-17.
Dobzhansky, T.; F. J. Ayala; G. L. Stebbins; e J. W. Valentine. 1977. Evolution.
São Francisco: W. H. Freeman.
Dyson, F. 1979. Disturbing the universe. Nova York: Harper e Row.
Ehrlich, P. R.; C. Sagan; D. Kennedy; e W. O. Roberts. 1984. The cold and the
dark. The world after nuclear war. Nova York: W. W. Norton.
Eiseley, L. 1958. Darwin’s century. Nova York: Doubleday.
Garrett, P., e S. J. Gould. 1984. “Geology of New Providence Island, Bahamas”.
Geological Society of America Bulletin 95: 209-20.
Goldschmidt, R. 1940 (reimpresso em 1982 com prefácio de S. J. Gould). The
material basis of evolution. New Haven: Yale University Press.
Gosse, P. H. 1857. Omphalos: An attempt to untie the geological knot. Londres:
John Van Voorst.
Gould, S. J. 1977. Ever since Darwin. Nova York: W. W. Norton.
Gould, S. J. 1977. Ontogeny and phytogeny. Cambridge, MA: Belknap Press of
Harvard University Press.
Gould, S. J. 1980. The panda’s thumb. Nova York: W. W. Norton.
Gould. S. J. 1981. The mismeasure of man. Nova York: W. W. Norton.
Gould, S. J. 1983. Hen’s teeth and horse’s toes. Nova York: W. W. Norton.
Gould, S. J., e C. B. Calloway. 1980. “Clams and brachiopods — ships that pass
in the night”. Paleobiology 6: 383-96.
Gould, S. J., e D. S. Woodruff. 1978. “Natural history of Cerion. VIII: Little
Bahama Bank — a revision based on genetics, morphometries, and geographic
distribution”. Bulletin of the Museum of Comparative Zoology 148: 371-415.
Grew, N. 1681. Musaeum regalis societatis, or a catalogue and description of the
natural and artificial rarities belonging to the Royal Society and preserved at
Greshan Colledge, whereunto is subjoyned the comparative anatomy of
stomachs and guts. Londres: Thomas Malthus.
Guenther, M. 1980. “The changing Western image of the Bushmen”. Pai-deuma
26: 123-40.
Haeckel, E. H. 1869. Über Arbeitstheiling in Natur undMenschenleben (On the
division of labor in nature and human life). Berlim.
Haeckel, E. H. 1888. “Report on the Siphonopharae collected by HMS
Challenger during the years 1873-1876. Voyage of HMS Challenger”, Zoology,
vol. 28.
Hearnshaw, L. S. 1979. Cyril Burt, psychologist. Londres: Hodder and
Stoughton.
Hoagland, K. E. 1978. “Protandry and the evolution of environmentally-
mediated sex change: A study of the Molusca”. Malacologia 17: 365-91.
Howard, L. O. 1886. “The excessive voracity of the female Mantis”. Science 8:
326.
Huxley, T. H. 1849. The oceanic Hydrozoa observed during the voyage of HMS
“Rattlesnake” in the years 1846-1850. Londres: The Ray Society.
Huxley, T. H. 1863. Evidence as to man’s place in nature. Londres: Williams e
Norgate.
litis. H. H. 1983. “From teosinte to maize: The catastrophic sexual
transmutation”. Science 222: 886-94.
Jenkin, P. M. 1957. “The filter feeding and food of flamingoes (Phoenicop-
teri)”. Philosophical Transactions of the Royal Society of London, Series B. 240:
401-93.
Jensen, A. R. 1969. “How much can we boost IQ and scholastic achievement”.
Harvard Educational Review 33: 1-123.
Just, E. E. 1912. “The relation of the first cleavage plane to the entrance point of
the sperm”. Biological Bulletin 22: 239-52.
Just, E. E. 1933. “Cortical cytoplasm and evolution”. American Naturalist 67:
20-29.
Just, E. E. 1939. The biology of the cell surface. Philadelphia: P. Blakiston’s
Son.
Just, E. E. 1940. “Unsolved problems of general biology”. Physiological
Zoology 13: 123-42.
Kamin, L. J 1974. The science and politics of IQ. Potomac, MD: Lawrence
Erlbaum Associates.
Keeton, W. T. 1980. Biological science. Nova York: W. W. Norton.
Kinsey, A. C. 1930. The gall wasp genus Cynips: A study in the origin of
species. Indiana University Studies, vol. 16, 577 pp.
Kinsey, A. C. 1936. The origin of higher categories in Cynips. Indiana
University Publications, Science Series N? 4, 334 pp.
Kinsey, A. C.; W. B. Pomeroy; e C. E. Martin. 1948. Sexual behavior in the
human male. Filadélfia: W. B. Saunders.
Kinsey, A. C.; W. B. Pomeroy; C. E. Martin; e P. H. Gebhard. 1953. Sexual
behavior in the human female. Philadelphia: W. B. Saunders.
Lack, D. 1947. Darwin’s finches: An essay on the general biological theory of
evolution. Cambridge, Inglaterra: Cambridge University Press.
Lamarck, J. B. 1809 (reproduzido em 1984). Zoological philosophy. Chicago:
University of Chicago Press. (Usei o original francês, portanto a redação pode
ser diferente.) Lewontin, R. C. 1982. Human diversity. Nova York Scientific
American Library.
Linnaeus, C. 1758 (reproduzido em fac-símile em 1956). Systema naturae.
Regnum animate. Inglaterra: British Museum (Natural History).
Lovejoy, A. 1936. The great chain of being. Cambridge, MA: Harvard
University Press.
Lyell, C. 1830-1833. Principles of geology. Londres: John Murray.
Manning, K. R. 1983. Black Apollo of science: The life of Ernest Everett Just.
Nova York: Oxford University Press.
Maupertuis, P. (publicado anonimamente). 1745. Venus physique. 194 pp.
Mayer, A. G. 1910. Medusae of the world. Vol. 3. Publicações do Carnegie
Institute of Washington, n? 109.
Mayr, E. 1982. The growth of biological thought. Cambridge, MA: Harvard
University Press.
Montagu, A. 1943. Ed ward Tyson, M. D., F.R.S. 1650-1708, and the rise of
human and comparative anatomy in England. Memoirs of the American
Philosophical Society, vol. 20, 488 pp.
Montagu, A. 1945. “Intelligence of northern Negroes and southern whites in the
First World War”. American Journal of Psychology 58: 161-88.
Morton, S. G. 1839. Crania americana. Philadelphia: John Pennington.
Oken, L. 1847. Elements of physiophilosophy (tradução de A. Tulk of Oken’s
Lehrbuch der Naturphilosophie). Londres: Ray Society.
Ornstein, L. 1982. “A biologist looks of the numbers”. Physics Today, março,
pp. 27-31.
Parthasarathy, A. 1983. The symbolism of Hindu gods and rituals. Bombay:
Shailesh Printers.
Perkins, H. F. 1908. “Note on the occurrence of Cassiopea xamachana and
Polyclonia frondosa at the Tortugas”. Papers from the Tortugas Laboratories 1:
150-55.
Policansky, D. 1981. “Sex choice and the size advantage model in jack-in- the-
pulpit (Arisaema triphyllum)”. Proceedings of the National Academy of
Sciences IS: 1306-08.
Polis, G. A., e R. D. Farley. 1979.“Behavior and ecology of mating in the
cannibalistic scorpion, Paruroctonus mesaensis Stahnke (Scorpionida:
Vaejovidae)”. Journal of Arachnology 1: 33-46.
Purcell, J. E. 1980. “Influence of siphonophore behavior upon their natural diets:
Evidence for aggressive mimicry”. Science 209: 1045-47.
Raup, D. M., e J. J. Sepkoski, Jr. 1984. “Periodicity of extintions in the geologic
past”. Proceedings of the National Academy of Sciences 81: 801-05.
Reichler, J. L. 1981. Fabulous baseball facts, feats and figures. Nova York:
Collier.
Reichler, J. L. 1982. The baseball encyclopedia. Nova York: MacMillan.
Roeder, K. D. 1935. “An experimental analysis of the sexual behavior of the
praying mantis (Mantis religiosa L.)”. Biological Bulletin 69: 203-20.
Ross, K., e R. L. Smith. 1979. “Aspects of the courtship behavior of the black
widow spider”, Laterodectus hesperus (Araneae: Theridiidae), with evidence for
the existence of a contact sex pheromone”. Journal of Arachnology 7: 69-77.
Sagan, C. 1983. ‘‘Nuclear war and climatic catastrophe: Some policy
implications”. Foreign Affairs, Inverno 1983/84, pp. 257-92.
Schrodinger, E. 1944. What is life? Cambridge, Inglaterra: Cambridge
University Press.
Seilacher, A. 1984. “Late Precambrian and early Cambrian Metazoa:
Preservational or real extinctions”. In Patterns of change in Earth evolution', ed.
H. D. Holland e A. R. Trendall, pp. 159-68. Berlim: Springer Verlag.
Sepkoski, J. J.; R. K. Bambach; D. M. Raup; em J. W. Valentine. 1981.
“Phanerozoic marine diversity and the fossil record”. Nature 293: 435.
Serres, E. R. A. 1833. “Recherches d’anatomie transcendante et pathéologique.
Théorie des formations et des déformations organiques, appliquée à l’anatomie
de Ritta Christina, et de la duplicité monstrueuse”. Mémoires de l’Académie
Royale des Sciences 11: 583-895.
Shapiro, D. Y. 1981. “Sequence of coloration changes during sex reversal in the
tropical marine fish Anthias squamipinnis”. Bulletin of Marine Sciences 31:
383-98.
Siegel, R., citado por J. Greenberg. 1983. “Natural highs in natural habitats”.
Science News, 5 de novembro, pp. 300-01.
Simpson, G. G. 1964. “The nonprevalence of humanoids”. In This view of life,
Ensaio 13, pp. 253-71. Nova York; Harcourt, Brace e World.
Sterba, G. 1973. Freshwater fishes of the world. Hong Kong TFH Publications, 2
vols.
Sulloway, F. J. 1982. “Darwin and his finches: The evolution of a legend”.
Journal of the History of Biology 15: 1-53.
Sulloway, F. J. 1982. “Darwin’s conversion: The Beagle voyage and its
aftermath”. Journal of the History of Biology 15; 325-96.
Swainson, W. 1835. On the natural history and classification of quadrupeds.
Londres. Longman, Rees, Orme, Brown, Green e Longman.
Thomson, W. (após Lord Kelvin). 1866. “The “doctrine of uniformity” in
geology briefly refuted”. Proceedings of the Royal Society of Edinburgh 5: 512-
13.
Tipler, F. J. 1981. “Extraterrestrial intelligent beings do not exist”. Physics
Today, abril, pp. 9, 70-71.
Tipler, F. J. 1982. “We are alone in our galaxy”. New Scientist 96 (7 de
outubro), pp. 33-35.
Tyson, E. 1699. Orang-Outang, sive Homo sylvestris; or, the anatomy of a
pygmie compared with that of a monkey, an ape, and a man. Londres. Thomas
Bennet.
Van Valen, L. 1974. “A new evolutionary law”. Evolutionary Theory 1: 1-30.
Wallace, A. R. 1870. “The measurement of geological time”. Nature 1: 399-401,
452-55.
Wallace, A. R. 1903. Man’s place in the universe: A study of the results of
scientific research in relation to the unity or plurality of worlds. Nova York:
McClure Phillips and Company.
Wells, W. C. 1818. “Account of a female of the white race of mankind, part of
whose skin resembles that of a Negro”. In Two Essays: One upon single vision
with two eyes, the other on dew. Londres: Archibald Constable and Company.
White, C. 1799. An account of the regular gradation in man, and in different
animals and vegetables. Londres: C. Dilly.
Whitmire, D. P., e A. A. Jackson IV. 1984. “Are periodic mass extinctions
driven by a distant solar companion?” Nature 308: 713-15.
Cromosete
Gráfica e editora Ltda.
Impressão d acabamento
Rua Uhiand, 307 - Vila Ema
03283-000 - São Paulo - SP
Tel/Fax (011) 6104-117
Email: adm@aomcnrie.cam.br