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© 2022 Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul

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CIP – Dados Internacionais de Catalogação na Publicação

C728 Publicação Com você ando melhor : Psicologia e mulheres


no enfrentamento à violência / Conselho Regional de
Psicologia do Rio Grande do Sul, organização. – Porto
Alegre : CRPRS, 2022. 1.395 kb ; PDF.
Inclui bibliografia.
ISBN 978-65-87089-13-3

1. Psicologia. 2. Violência contra as mulheres. 3. Mulheres-


Psicologia. 4. Mulheres- Aspectos sociológicos. I. Conselho Regional
de Psicologia do Rio Grande do Sul, org.

CDU: 159.9

Bibliotecário responsável Luís Diego Dias de S. da Silva- CRB 10/2241


Sumário
Nominata ....................................... 5 A guerra tem rosto de mulher? ... 76

Apresentação ............................... 13 EIXO II


FALAR DO MUNDO, ESCUTAR
EIXO I EM BANDO ................................. 85
BASES PARA A COMPREENSÃO DA
VIOLÊNCIA ESTRUTURAL .......... 15 Falar para sobreviver ................... 86

Quanta violência esconde um Entre mulheres: tempos da


diagnóstico? ................................. 16 escuta de uma “clínica feminista
na perspectiva da
Rasgar a imaginação romântica, interseccionalidade” ................... 92
romper a violência monogâmica
contra mulher .............................. 24 (Re)aprendendo a escutar: a
escuta psicológica a mulheres em
Dias mulheres virão? ................... 33 contextos de vulnerabilidade e
violência .................................... 103
Aborto e Psicologia: reflexões
sobre posicionamentos éticos O percurso de tornar-se escutadora
da categoria ................................. 39 de mulheres que
sofrem violência ........................ 111
O papel da Psicologia no
enfrentamento das violências Experiências e vivências com
contra as mulheres transexuais mulheres em situação de violência
e travestis .................................... 49 doméstica................................... 119

Desigualdades e violências de EIXO III


gênero: experiências de idosas CONSTRUÇÕES E
negras ........................................... 60 DESCONSTRUÇÕES NECESSÁRIAS
PARA POLÍTICAS PÚBLICAS
“Você está ficando louca?”: VOLTADAS À GARANTIA DE
gaslighting e as relações de DIREITOS .................................. 130
gênero .......................................... 69
Escuta de mulheres em situação
de violência e a formação em
Psicologia: a experiência do PAAS/
UNISINOS ................................... 131

Enfrentamento da violência
no contexto da feminização
da velhice ................................... 142

Absorvendo o tabu: relato de uma


prática com mulheres assistidas
pelo Centro de Defesa dos Direitos
da Mulher em Maceió, AL ......... 153

“Com você eu ando melhor?”


Críticas feministas de um
caminhar dentro e fora das políticas
públicas ...................................... 164

Prevenção à violência contra


mulher na política de assistência
social em tempos de pandemia
Covid-19: um relato de
experiência................................. 172

Entre dores e afirmações:


cartografias sobre devir mulher em
situações de violência................ 183

O direito ao aborto de mulheres


e meninas vítimas de violência
sexual ......................................... 191
Nominata
Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul (CRPRS)
Gestão Frente em Defesa da Psicologia RS (2019-2022)
Conselheiras/os efetivas/os
• Ana Luiza de Souza Castro
• Angelista dos Santos Granja
• Carla Mariela Carriconde Tomasi
• Cristina Schwarz
• Daniela Duarte Dias
• Eliana Sardi Bortolon
• Fabiane Konowaluk Santos Machado
• Janete Nunes Soares
• Leandro Inácio Walter
• Marianna Rodrigues Vitorio
• Maynar Patricia Vorga Leite
• Miriam Cris tiane Alves
• Pedro Jose Pacheco
• Roberta da Silva Gomes
• Vinícius Cardoso Pasqualin
Conselheiras/os suplentes
• Alice Ubatuba de Faria
• Analice de Lima Palombini
• Dalmara Fabro de Oliveira
• Gabriel Marcelo Moresco
• Jose Ricardo Kreutz
• Luciana Barcellos Fossi
• Mariana de Medeiros e Albuquerque Barcinski
• Mateus Sturmer Daitx
• Pablo Potrich Corazza
• Thiago dos Santos Alves
• Robert Filipe dos Passos
Gestão Frente em Defesa da Psicologia RS (2022-2025)
Diretoria
Conselheira Presidenta: Fabiane Konowaluk Santos Machado
Conselheira Vice-Presidenta: Miriam Cristiane Alves
Conselheira Tesoureira: Maria Luiza Diello
Conselheira Secretária: Eliana Sardi Bortolon

Conselheiras/os efetivas/os
• Ademiel de Sant’Anna Junior
• Ana Paula Coutinho
• Camila Dutra dos Santos
• Eliana Sardi Bortolon
• Fabiane Konowaluk Santos Machado
• Jean Von Hohendorff
• Leandro Inácio Walter
• Maria Luiza Diello
• Miriam Cristiane Alves
• Priscila Góre Emilio
• Rafael Antônio Carneiro
• Samantha Medeiros Ferreira
• Silvia Edith Duarte Marques
• Thaíse Mendes Farias
• Vincent Pereira Goulart

Conselheiras/os suplentes
• Ayanna de Campos Bueno
• Camila de Freitas Moraes
• Daiana Meregalli Schütz
• Daniela Pereira da Costa de Menezes
• Diego Gonçalo Moraes Gomes
• Jéssica Gil Schossler
• Jéssica Prudente
• Lívia Caldieraro de Souza
• Luciana Barcellos Fossi
• Luís Carlos Bolzan
• Luís Henrique da Silva Souza
• Maria Marta Só Vargas de Oliveira
• Marina Medeiros Pombo
• Mayra Medeiros Osorio
• Silvana Maia Borges
Comissão Avaliadora:
Ana Júlia Pereira; Cristina Schwarz; Daniela Arns; Dóris Soares; Fernanda
Landim; Gabriela Zuchetto; Gláucia Fontoura; Maynar Patrícia Vorga Leite;
Marina Pombo; Mônica Restelatto; Roberta Gomes; Samantha Medeiros;
Samantha Torres; Thayná Miranda.

Comissão Organizadora
(Comissão de Direitos Humanos):
Ana Carolina Tittoni Silveira; Cristina Schwarz; Daniela Arns; Gabriela
Zuchetto; Marina Pombo; Maynar Patricia Vorga Leite; Mônica Restelatto;
Samantha Medeiros Ferreira; Samantha Torres

Mini Currículos das autoras:

Alexandra Garcia Grigorieff Nüske - CRP 07/25410 – Psicóloga formada


pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Mestra
em Psicologia Clínica pela PUCRS, integrante da equipe clínica e vice
coordenadora do Núcleo de Grupos e Projetos do Projeto Gradiva.
E-mail: alexandra.grigorieff@hotmail.com.

Ana Claudia Anesi Palermo Gíria - Graduanda de Psicologia no Centro


Universitário da Serra Gaúcha (FSG). E-mail: anaclaudiaap@hotmail.com.

Andréa Maria Szekir de Oliveira - CRP 07/05982 – Psicóloga.


E-mail: andreamsoliveira@hotmail.com.

Ângela Brum – CRP 07/36868 - Psicóloga formada em Psicologia pela


Universidade de Caxias do Sul (UCS). E-mail: abrum2@ucs.br.

Angela Ester Ruschel - CRP 07/08698 - Psicóloga do Hospital Materno


Infantil Presidente Vargas de Porto Alegre. Especialista em Psicologia
Clínica pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
e Violências pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em
Saúde Coletiva pela UFRGS. E-mail: angelaer@gmail.com.

Betina Hillesheim - Psicóloga, Doutora em Psicologia pela Pontifícia


Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), professora e
pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Educação e do Mestrado
Profissional em Psicologia da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC).
Líder do grupo de pesquisa Políticas Públicas, Inclusão e Produção de
Sujeitos.

Bruna Moraes Battistelli - CRP 07/21409 - Graduação em Psicologia pela


Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) (2012), Mestre em
Psicologia Social e Institucional pela UFRGS (2017).
E-mail: brunabattistelli@gmail.com.

Bruna Silva Grabowski - CRP 07/33260 - Psicóloga Clínica, Graduada em


Psicologia pela Universidade de Caxias do Sul (UCS).
E-mail: brunagrabowski@gmail.com.

Camila Noguez - CRP 07/15764 - Psicóloga, residente especialista pela


Residência Multiprofissional em Saúde (ESP), mestra em Saúde Coletiva pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atualmente trabalha na
Clínica de Atendimento Psicológico da mesma Universidade.
E-mail: canoguez@gmail.com.

Cristina Pereira de Souza - CRP 07/29914 - Graduação em Psicologia pela


Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) (2017), Especialista em
Saúde Mental Coletiva pela UFRGS (2022).
E-mail: souzapcristina@gmail.com.

Domenique Assis Goulart - Advogada (OAB/RS 116.303) e mestra em


Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul (PUCRS). Atualmente trabalha na rede de Assistência Social
e é professora na Universidade La Salle.
E-mail: domenique.goulart@gmail.com.

Dóris Firmino Rabelo - CRP-03/8039 - Psicóloga, Doutora em Educação,


Docente da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia.
E-mail: drisrabelo@yahoo.com.br.

Eliene Ellen Ferreira Guedes Laranjeira – Graduanda em Psicologia


no Centro Universitário Cesmac.

Elisama Barboza Farias – Graduanda em Psicologia no Centro


Universitário Cesmac.
Gabriel Licoski dos Santos - Bacharelando em Psicologia pelo Centro
Cenecista de Osório. E-mail: biellicoski@gmail.com.

Henrique Borba Bittencourt - CRP-07/033784 - Bacharel em Psicologia pelo


Centro Cenecista de Osório. E-mail: iqueb2@gmail.com.

Isabela Bressan Prux - CRP/RS 07/36823 - Mestranda em Psicologia pela


Universidade de Caxias do Sul (UCS). E-mail: isabela_b.prux@hotmail.com.

Lara Yelena Werner Yamaguchi – Sanitarista pela Universidade Federal do


Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: larawerner@gmail.com.

Lívia Maciel Vigil - CRP 0727058 - Mestranda em Psicanálise: Clínica e


Cultura pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
E-mail: liviamvigil@hotmail.com.

Lívia R. Fernandes - Graduanda de Psicologia pelo Centro Universitário da


Serra Gaúcha (FSG). E-mail: livia.fer8031@gmail.com.

Luciano Bairros da Silva – CRP15/3120 - Bacharel e Mestre em Psicologia no


Centro Universitário Cesmac. E-mail: luciano.silva@cesmac.edu.br.

Dra. Lutiane de Lara – CRP 07/15804 - Pós-doutoranda vinculada ao


Grupo de Estudos em Psicologia Social, Políticas Públicas e Produção
de Subjetividade (GEPS) do Programa de Pós-Graduação em Psicologia
Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(PPGPSI/UFRGS).

Maíra Freitas Barbosa – CRP 07/17847 - Psicóloga, especialista em


Saúde Pública/Sanitarista (ESP). Atualmente trabalha na rede de
Assistência Social. E-mail: mairapsi@gmail.com.

Manueli Tomasi – CRP/RS 07/28558 - Mestre em Ciências Sociais


pela Universidade do Vale dos Sinos (UNISINOS). Psicóloga formada
Faculdade Meridional IMED. Professora de Psicologia no Centro
Universitário da Serra Gaúcha (FSG).
E-mail: manueli.tomasi@fsg.edu.br.

Marília Spinelli Jacoby Cunda - CRP 07/15013 - Especialista em


Atendimento Clínico - Psicanálise pela Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS) e Mestre em Psicologia Social e Institucional (UFRGS).
E-mail: mariliajacoby@gmail.com.

Marina Medeiros Pombo - CRP 07/20844 - Psicanalista, Mestranda da


Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) no PPG em Psicanálise:
Clínica e Cultura. Integrante do Laboratório de Estudos em Psicanálise
Literatura e Política - LEPLIP. Coordenadora d’A Outra Clínica: Psicanálise e
Feminismo. Pós-graduada em Saúde da Criança com Transversalidade em
Violência e Vulnerabilidade pela Residência Multiprofissional pelo HMIPV/
UFRGS e pós-graduada em Análise Institucional pela UFRGS.

Michele Scheffel Schneider - CRP 07/11281 - Psicóloga, Psicanalista


pelo CEPdePA, Especialista em Psicoterapia Psicanalítica de Crianças e
Adolescentes e Mestre em Psicologia Clínica pela Universidade do Vale do
Rio dos Sinos (UNISINOS), Supervisora na Ação Escuta de Mulheres em
Situação de Violência do PAAS/UNISINOS desde 2016, docente no Curso de
Psicologia da UNISINOS. E-mail: mischeffel@unisinos.br.

Naylana Rute da Paixão Santos - CRP 03/11568 - Psicóloga, Mestre em


Psicologia do Desenvolvimento pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).
E-mail: naylanarute@hotmail.com.

Olga Myllena Diniz Botelho Santana – Graduanda em Psicologia


no Centro Universitário Cesmac.

Patrícia de Oliveira Luz - CRP 07/18230 – Psicóloga.


E-mail: patricia.o.luz@gmail.com.

Patrícia dos Passos - CRP 07/32545 - Psicóloga graduada pelo Centro


Universitário Metodista – IPA. Mestranda em Psicologia Social e
Institucional pelo Programa de Psicologia Social e Institucional da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGPSI/UFRGS).
E-mail: passos.patricia@hotmail.com.

Raquel Furtado Conte - CRP 07/05775 - Doutora em Diversidade


e Inclusão Social pela FEEVALE. Professora de Pós-Graduação do
Mestrado Profissional em Psicologia e da Graduação em Psicologia
da Universidade de Caxias do Sul (UCS). E- mail: rfconte@ucs.br.
Raysha Thereza Nery - CRP 07/26717 - Especialista em Saúde da Família
(Residência Multiprofissional - FURG) e mestranda em Psicologia Social e
Institucional na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail:
raysha_nery@hotmail.com.

Rosana Cecchini de Castro - CRP 07/02101 - Psicóloga, Psicanalista pelo


Círculo de Psicanálise do Rio Grande do Sul. Doutora em Psicologia da Saúde
e da Família, Deusto, Espanha. Professora e Coordenadora dos Cursos de
Psicologia na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) nos campus
São Leopoldo e Porto Alegre. Supervisora de Estágios e Coordenadora
do Programa de Atenção Ampliada à Saúde – PAAS, Serviço Escola
Interdisciplinar da Escola de Saúde da UNISINOS. Integrou a Ação “Escuta
de mulheres em situação de violência” de 2016 até 2018. E-mail: cecchini@
unisinos.br.

Rovana Ostjen de Azevedo - Graduanda em Psicologia pela Universidade do


Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) e Estagiária curricular no PAAS/UNISINOS.
Integrou a Ação “Escuta de mulheres em situação de violência” no primeiro
semestre de 2021. E-mail: rovanaoa@edu.unisinos.br.

Sabrina Cerchiari - Graduanda de Psicologia pelo Centro Universitário


da Serra Gaúcha (FSG). E-mail: sabrinacerchiari@gmail.com.

Sandra Djambolakdjian Torossian - CRP 07/04565 - Psicanalista,


Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) -
Departamento de Psicanálise e Psicopatologia e do PPG em Psicanálise:
Clínica e Cultura. Coordenadora do Laboratório de Estudos em
Psicanálise Literatura e Política - LEPLIP. Compõe a equipe de direção
da Clínica de Atendimento Psicológico (CAP) - UFRGS e Coordena o
GT AD - Grupo de Trabalho sobre Adolescências, Álcool e Drogas da
CAP. Membro do GT ANPEPP - Psicanálise, Política e Clínica,
Participa da REDIPPOL, e do Coletivo Amarrações: Psicanálise
e Políticas com Juventudes e compõe o Conselho Consultivo da REDUC -
Rede Brasileira de Redução de Danos e Direitos Humanos.

Sheryl Andreatta - Psicóloga, Mestra em Psicologia pela Universidade


de Santa Cruz do Sul (UNISC).
Simone Chandler Frichembruder - CRP 07/06042 – Psicóloga, Doutora
em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
E-mail: simonecfrichembruder@gmail.com.

Simone Mainieri Paulon - CRP 07/03000 - Psicóloga, Doutora em Psicologia


Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), docente
e pesquisadora do PPG de Psicologia Social e Institucional da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: simonepaulon@gmail.com.

Tatirrê Procópio Paz - CRP 07/21984 – Psicóloga, Técnica Social Sempre


Mulher Instituto de Pesquisa e Intervenção sobre Relações Raciais, Serviço
de Atendimento Familiar (SAF Sempre Mulher). E-mail: tatirre@gmail.com.

Vanessa Felix dos Santos - CRP 07/33951 - Pedagoga e Psicóloga, com


ambas formações pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
E-mail: vfelixpsi@gmail.com.

Virginia Severo Cordeiro - CRP 07/37378 - Graduada em Psicologia.


E-mail: vscordeiro@ucs.br.

Wesllany dos Santos Borges e Silva – Graduanda em Psicologia do Centro


Universitário Cesmac.

Yanaê Maiara Meinhardt - CRP 07/26559 – Mestra em Psicologia Social


e Cultura, Psicóloga. E-mail: yanaemeinhardt@gmail.com

Assessora de Comissões: Ana Carolina Tittoni da Silveira


Comunicação: Aline Victorino (Mtb. 11602) – Jornalista Responsável
Coordenação-Geral: Evelise Arispe de Campos (CRA-RS 1528)
Apresentação
“Companheira, me ajude, que eu Nesta coletânea, organizada a
não posso andar só... Sozinha eu partir de uma chamada pública
ando bem, mas com você ando para a submissão de textos por
melhor”. Os versos dessa ciranda psicólogas/os/ues e estudantes
feminista, há anos, entoam em de Psicologia, buscamos celebrar
encontros, manifestações e a caminhada da categoria junto
intervenções artísticas e políticas às mulheres, priorizando a análise
feministas pelas cidades do Brasil. das desigualdades de gênero
Nela, avistamos uma aposta: a de interseccionalizadas com outros
que a companhia e a solidariedade marcadores sociais como raça e
entre as mulheres são decisivas etnia, orientação sexual, identidade
no enfrentamento das opressões de gênero, classe social, deficiências,
cotidianas do machismo estrutural. geração e territorialidade. Ela
busca apresentar diferentes
No aniversário de 60 anos da práticas da Psicologia que se
regulamentação da Psicologia no ocupam dos desafios relacionados
Brasil, temos a tarefa de resgatar à desigualdade e à violência contra
sua trajetória, compreender seu as mulheres, que se manifestam
passado, construir seu presente e de diversas formas na vida e
projetar seu futuro. E a Comissão atingem de maneiras diferenciadas
de Direitos Humanos do Conselho as múltiplas mulheres de acordo
Regional de Psicologia do RS, com as interseccionalidades que as
na Gestão Frente em Defesa da constituem.
Psicologia RS 2019-2022, apostou na
importância desse resgate a partir No primeiro capítulo, a
da perspectiva da luta das mulheres compreensão das raízes
por direitos e justiça social, que compartilhadas entre o patriarcado,
muito tem ensinado à Psicologia – a o capitalismo global, o racismo e
começar, então, pela compreensão o colonialismo é necessária para
de que a tarefa do cuidado é o início do trajeto de leitura. Já a
coletiva, horizontal e ancorada no segunda sessão dá testemunho da
protagonismo dos sujeitos sociais e inexorável relação entre a escuta
políticos de nosso tempo. e a política, entre a singularidade
13
e a estrutura. Por fim, a ênfase na indigenistas, pelo direito à moradia,
transversalização do gênero, de à terra e ao território, pela relação
forma interseccional, para que as com os saberes tradicionais...
políticas públicas se traduzam em
ações de promoção e garantia dos Esperamos que a leitura contribua
direitos das mulheres. para questionarmos a Psicologia
que praticamos e afirmarmos a
Os textos demonstram que Psicologia que queremos.
a Psicologia de hoje avança
no questionamento das Com as mulheres, a Psicologia
normas de gênero patriarcais anda melhor.
e cisheteronormativas, das
identidades e relações sociais, Comissão de Direitos Humanos 2019-2022
afetivas e sexuais hegemônicas;
defende a autonomia das
mulheres sobre seus corpos e
o enfrentamento de diversas
desigualdades sociais; desnaturaliza
os saberes psicológicos a partir
da crítica feminista às ciências
androeurocêntricas, positivistas e
colonialistas. Também vislumbramos
a necessidade de envidar esforços
para visibilizar outros avanços
no fazer cotidiano da categoria,
que quiçá estejam contemplados
de forma robusta em futuras
produções. A luta pela igualdade de
gênero, para contemplar todas as
mulheres, deve ser antimanicolonial,
antirracista, anticapacitista, deve
combater o binarismo de gênero
e contemplar as sexualidades que
atravessam a vida das mulheres,
deve desconstruir sua branquitude
e deixar-se atravessar pelas pautas

14
Eixo I
Bases para a compreensão
da violência estrutural
Quanta violência esconde
um diagnóstico?

Cristina Pereira de Souza


Bruna Moraes Battistelli

Domesticar. Polir. Amansar. Docilizar. ficamos sobrecarregadas com tudo


Subjugar. Diminuir. Abaixamos o tom que nos responsabilizamos. Esperam
da nossa voz quando deveríamos de nós atitudes bondosas, amáveis,
gritar. Performamos delicadeza afáveis. Dizem-nos para libertarmos
para nos encaixar. Cuidamos quais de “energias negativas”, entretanto,
palavras usar. Não podemos falar não observam as estruturas que
palavrão e nem ousar responder, nos esmagam. Esforçam-se para
mesmo quando insultadas. Somos nos deixar intactas em eternos
puxadas, esticadas, moldadas. lugares da cuidadora, da mãe, da
Viramos objetos. Tentam nos tornar santa, da pura. Associam mulheres
sem identidade, sem história. a sentimentos de aceitação e
Calar nossas vozes. Buscam nos perdão. Sentimos culpa por sentir
reduzir a todo instante. Diminuir ao raiva. Tentam nos tirar até mesmo
máximo. Esperam de nós gentileza, o direito de sentir raiva. Fazem a
mesmo que sejamos violentadas, gente sentir culpa quando somos
machucadas. É ensinado a nós, abusadas. Pedimos desculpas pelo
mulheres, engolir todo e qualquer que somos, pelo que sentimos e
sentimento do qual se afaste desejamos. E quando nos rebelamos
da construção de feminilidade1. a tudo isso? Somos julgadas como
Esperam de nós sorrisos, as bruxas, as putas, as loucas, as
mesmo sendo alvos de assédios raivosas.
cotidianamente. Dizem a nós que
somos multitarefas, que “o cérebro O tema tratado neste texto
feminino foi treinado para fazer provém do Trabalho de Conclusão
muitas coisas ao mesmo tempo” e da Residência Integrada

1
São comportamentos e lugares relegados a meninas e mulheres.

16
Multiprofissional em Saúde Mental em saúde sobre as que ousam
Coletiva da Universidade Federal romper padrões”, tendo como
do Rio Grande do Sul (UFRGS), objetivo pensar a relação entre
da primeira autora deste texto. O violência, os estereótipos de gênero
trabalho teve como título de “É que estão atravessados, muitas
nos corpos femininos que a loucura vezes, nos próprios diagnósticos
habita? Escritas de uma residente psiquiátricos.

Figura 1 - Mistura de recortes de revistas com


arte digital, feita pela primeira autora deste texto.

A concepção da loucura varia diferentes formas ao longo dos


conforme o contexto sociocultural séculos. Juliana Suckow Vacaro
e histórico, sendo concebida de (2011, p. 15), em sua dissertação,

17
aponta: “A louca2 não habita um explicita os horrores ocorridos
mundo à parte, distante de sua em um dos maiores manicômios
realidade social – podemos dizer que já existiram, localizado em
que cada época e cada sociedade Barbacena, município de Minas
constrói e estabelece suas próprias Gerais e conhecido como Colônia.
loucas”. Como aponta Lia Carneiro Entrar em contato com os relatos
Silveira & Violante Augusta Batista trazidos no livro é entender o
Braga (2005, p. 592), na Grécia quanto as concepções de loucura
Antiga, a loucura era entendida e normalidade são atravessadas
como uma manifestação divina, por questões que vão além do
onde as (os) loucas (os) tinham o diagnóstico, como raça, gênero e
privilégio de se comunicarem com classe. A jornalista traz que:
divindades, por isso, acessavam
um saber importante. É no século Desde o início do século XX, a falta de
XIX que a loucura se torna algo critério médico para as internações era
rotina no lugar onde se padronizava
considerado perigoso. Sendo
tudo, inclusive os diagnósticos. Maria
trancafiada, tratada e ajustada. de Jesus, brasileira de apenas vinte
Nesta época, há o surgimento da e três anos, teve o Colônia como
Psiquiatria, campo da Medicina o destino, em 1911, porque apresentava
tristeza como sintoma. Assim como
qual se ocupava com os ditos loucos. ela, a estimativa é que 70% dos
Como escreve Melissa de Oliveira atendidos não sofressem de doença
Pereira (2019, p. 22), em sua tese: mental. Apenas eram diferentes ou
“Intrinsecamente relacionada com ameaçavam a ordem pública. Por
isso, o Colônia tornou–se destino de
o modo de produção capitalista, desafetos, homossexuais, militantes
a Psiquiatria se instaurou como políticos, mães solteiras, alcoolistas,
campo de saber, práticas e mendigos, negros, pobres, pessoas
sem documentos e todos os tipos de
instituições, denominando certas
indesejados, inclusive os chamados
experiências e situações como insanos. A teoria eugenista, que
doenças mentais e, a partir disso, sustentava a ideia de limpeza social,
classificando, agrupando e asilando fortalecia o hospital e justificava seus
abusos. Livrar a sociedade da escória,
determinados grupos ou pessoas”. desfazendo-se dela, de preferência em
No livro Holocausto Brasileiro, a local que a vista não pudesse alcançar.
jornalista Daniela Arbex (2017) (Arbex, 2013, p. 23, grifo nosso).

2
Na citação original, está “o louco” e “seus próprios loucos”. Desta forma, alterei intencionalmente para
sublinhar o gênero, marcando o objetivo deste trabalho: falar das mulheres tidas como loucas.

18
Perder sua identidade, sua história, você precisa dizer? Quais são as
suas referências, seus laços de tiranias que você engole dia após dia
afeto. Isso é um dos pontos trazidos e tenta tomar para si, até adoecer
por Arbex (2013), denunciando e morrer por causa delas, ainda em
que aquelas que não conseguiram silêncio?” Ela nos conta que um
pagar pela internação no Colônia, dos seus maiores arrependimentos
ou seja, mais de 80%, foram foram as vezes em que se calou,
consideradas indigentes, sendo alertando: “Meus silêncios não me
até mesmo rebatizadas pelos protegeram. Seu silêncio não vai
funcionários. Oficialmente, viravam proteger você” (Lorde, 2019, p. 50).
um corpo-objeto. Consolidava-se E é quando damos sinais, mesmo
a patologização das “desviantes”, sutis, da insuportabilidade de nos
colocava-se em prática a contenção manter caladas, de tentar ser como
medicamentosa para “as loucas”. o sistema diz que deveríamos ser,
Será que ainda fazemos isso com é quando transgredimos normas e
as mulheres para além dos muros nos afastamos dos comportamentos
das instituições manicomiais? O impostos a nós, é neste momento,
que realmente sabemos sobre nós que nos apontam e com veemência
mulheres para além dos prontuários, nos denominam como loucas.
diagnósticos e estereótipos que
nos são oferecidos? Qual a função Apesar das importantes
destes estigmas carregados? O contribuições de muitos pensadores,
que é realmente nosso e o que é como o francês Michel Foucault3,
projeção do outro, da sociedade? que se aprofunda na história
O que nos aproxima da loucura? O da loucura, faz-se essencial a
que nos faz nos enxergarmos como investigação do tema, não apenas
as loucas? O que nos faz sermos olhando para os loucos – enquanto
as loucas? Quem determina este sujeitos universais. É preciso
lugar? Audre Lorde (2019, p. 50), entender as especificidades sociais e
mulher negra, escritora, lésbica, culturais que se atravessam.
feminista em seu livro Irmã Outsider,
interroga: “Quais são as palavras Neste sentido, o gênero é colocado
que você ainda não tem? O que em evidência neste trabalho para

3
Foucault, filósofo francês, é importante neste processo, pois a partir do livro História da Loucura
na Idade Clássica (1961) discute a construção dos discursos e saberes de diferentes épocas e, isso
considerando os aspectos socioculturais, acerca do “louco”. Assim, teoriza sobre as lógicas de exclusão
do lido como louco e a relação da sociedade com a loucura.

19
olharmos para elas, as loucas. A sociedade designa que deveríamos
definição de gênero entendida neste ser, ficamos mais próximas da
trabalho não é uma categoria fixa, loucura.
a qual nos possa fazer cair em uma
visão superficial e equivocada de “Eu gostaria de ser vista como
mulheres em um eterno lugar de um ser humano e não como um
vítimas e homens como os agentes prontuário”, diz Ana4. A usuária
de toda a violência. me tira da zona de conforto de
profissional. Ainda bem. Ela não
O gênero é construído no quer ser objeto de estudo, quer ser
encontro, na relação com, estando gente. Quer ser olhada e percebida
intimamente ligado a relações de como alguém detentora de outras
poder. Como diz Joan Scott (1995, dimensões na vida para além do
p. 14): “Gênero é um elemento sofrimento. Será que somos capazes
constitutivo de relações sociais de enxergar além dos sistemas
fundadas sobre as diferenças classificatórios de sintomas? O
percebidas entre os sexos, e o que ela está me dizendo quando
gênero é um primeiro modo de fala esta frase? Quantas se sentem
dar significado às relações de desta forma, mas calam frente aos
poder”. Apesar de desejarmos a profissionais da saúde? Jacqueline
desconstrução de um binarismo do Simone de Almeida Machado (2009)
qual encaixa tudo ou “feminino” refere o momento da formação
ou “masculino”, esta lógica é da Psiquiatria no Brasil como
extremamente presente na nossa também um período onde ocorre
sociedade e ecoa na saúde mental. a construção de várias narrativas
Além disso, como a escritora a respeito de comportamentos
nigeriana Chimamanda Ngozi e representações supostamente
Adichie (2015, p. 41) ressalta: “O adequados às mulheres. Isso
problema da questão de gênero é considerando os valores e preceitos
que ela prescreve como devemos de três segmentos articulados entre
ser em vez de reconhecer como si: a burguesia, a medicina e a Igreja,
somos”. E ao nos afastar de quem consolidados no Brasil a partir da
devemos ser, ou seja, daquilo que a segunda metade do século XIX.

4
As histórias que conto são criações que fiz a partir das muitas histórias que chegaram até a mim: causos
contados por colegas, atendimentos, contadas por outras mulheres, histórias vistas em filmes e séries.
Busquei inspiração em Conceição Evaristo que no início do livro Insubmissas Lágrimas de Mulheres
(2016) nos ensina que todas as histórias são inventadas, mesmo aquelas que nos aconteceram.

20
Neste contexto, o esperado é que a não chegavam também no andar
mulher se adequasse a um modelo destinado à saúde mental? O que
de esposa submissa, dona de casa e afasta estas mulheres? Seria a saúde
boa mãe. Tratava-se de um padrão, mental um campo privilegiado
o qual se prescreve uma série de e excludente? Como aproximar
condutas apropriadas a mulheres. estas mulheres? A produção de um
Tudo que se afastasse minimamente sistema que registre o quesito raça/
deste modelo “ideal de mulher” cor, além de outros dados, pode
foi colocado no campo da loucura. produzir dados para que possamos
Tais papéis sociais citados eram olhar para estas questões.
esperados das mulheres brancas,
pois quando falamos em mulheres Neste âmbito, é importante
negras outros lugares são relegados se atentar para os fatos de
a elas. Ama de leite, mãe preta, forma ampla e contextualizada,
empregada doméstica, erotizada percebendo o quanto os discursos
passível de ser estuprada. Marina de estão inseridos dentro de uma
Oliveira Reis (2019, p. 100) coloca lógica que visa sustentar um projeto
que: “A imagem das mulheres de sociedade. Resgatar estes
negras é historicamente construída a discursos históricos a respeito das
partir da objetificação, sexualização mulheres se faz pertinente para
e negação de seu papel enquanto entendermos processos atuais
sujeito político”. A autora reafirma relacionados à saúde mental
que “a herança colonial racista e feminina. Como nos mostra Magali
sexista ainda projeta nas mulheres Engel (2004), no capítulo Psiquiatria
negras todos os mitos criados pelo e Feminilidade, do livro História das
colonizador branco” (Reis, 2019, Mulheres no Brasil, de Mary Del
p. 99). Em um dos serviços que fiz Priore, os argumentos pautados
parte, em uma Equipe de Saúde para as mulheres serem vistas
Mental, chamo a atenção para o fato como doentes mentais e, assim,
de quase a totalidade das mulheres serem “tratadas” eram os mais
usuárias do serviço que me deparei diversos: infidelidade, menstruação
eram brancas. No posto de saúde, o irregular, vivacidade, distúrbios
qual a Equipe é vinculada, mulheres uterinos, desejo sexual, recusa
negras transitavam em maior de desempenhar papéis como
número. Isso sempre me chamou a de esposa, de mãe, entre outros.
atenção. Por que mulheres negras Diagnósticos construídos por meio

21
de evidências contidas no corpo e como um todo, não pode ser vista
no comportamento da mulher. Tais como algo meramente orgânico,
construções tinham como alicerce mas sim um conjunto de aspectos
o poder patriarcal, evidenciando o que interagem entre si. Daniela
quanto “a louca” era considerada Lima (2016) assinala o quanto a
como tal justamente por transgredir construção dos diagnósticos era
os estereótipos de gênero. Neste realizada, via de regra, a partir
percurso histórico da loucura e do dos relatos do pai, do marido ou
patriarcado, atributos associados ao do irmão. Isso também possui
feminino e ao masculino, dentro de atravessamentos bem importantes,
uma visão dicotômica e biológica, pois quem estava falando por estas
são utilizados como fonte para mulheres?
classificar os doentes mentais.
Em muitos contextos, acusar a
Retomada por um “velho discurso” que mulher de louca foi utilizado como
tentava justificar as teorias e práticas uma maneira de camuflar abusos
liberais – que, embora comprometidas
com o princípio da igualdade, negavam
ocorridos na esfera privada. E
às mulheres o acesso à cidadania, quantas mulheres atendemos nos
através da ênfase na diferença entre serviços de saúde que passam
os sexos –, tal imagem seria revigorada por estas violências e olhamos
a partir das “descobertas da medicina
e da biologia, que ratificavam somente para os sintomas latentes
cientificamente a dicotomia: homens, sem olhar para as causas que as
cérebro, inteligência, razão lúcida, adoecem? Portanto, a redução de
capacidade de decisão versus
toda uma história a um diagnóstico,
mulheres, coração, sensibilidade,
sentimentos (Engel, 2004, p. 277). a um transtorno, a uma doença é
uma violência. Precisamos lutar
Haja vista, as dicotomias contra isso revisando nossas bases
fundamentadas na ciência, teóricas de trabalho, reformulando
onde é associado funções e estratégias de atendimento e
comportamentos como sendo analisando se não estamos com
naturais ao sexo biológico, foram nossas práticas, interpretações,
e ainda são utilizados como forma sistemas de avaliação e diagnósticos
de patologizar quem desvia, pavimentando um histórico
mesmo minimamente, destes de violência que muitas vezes
preceitos. Para tanto, é fundamental soma: abuso físico, sexual e uma
percebermos o quando a saúde, série de violências psicológicas.

22
Nossa intenção, com esse texto, v. 11, n. 11, 2016. Disponível em:
é questionar: a quem interessa o https://periodicos.ufpe.br/revistas/
excesso de diagnósticos com os cadernosdehistoriaufpe/article/
quais nos acostumamos? A quem view/109975/21914.
interessa o excesso de medicalização
ao qual submetemos mulheres Silveira, L. C., & Braga, V. A.
cansadas de serem diminuídas, B. (2005). Acerca do conceito
oprimidas e violentadas? de loucura e seus reflexos na
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Scott, J. W. (1989). Uma categoria


útil para análise histórica (Christine
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Trad.). Cadernos de História UFPE,

23
Rasgar a imaginação romântica,
romper a violência monogâmica
contra mulher

Yanaê Maiara Meinhardt

A violência contra as mulheres é mulher mobiliza mais da metade


um fenômeno global expresso em dos feminicídios cometidos no país
grande proporção e em diferentes (Bandeira & Magalhães, 2019),
formas conforme previsto pela o que indica que na análise da
Lei Maria da Penha, dentre as violência contra mulheres há outros
quais a violência simbólica, física, elementos a serem investigados
moral, psicológica, patrimonial e para além da compreensão do
sexual, sendo o feminicídio sua machismo, cuja monogamia ocupa
expressão máxima. O Brasil é um um eixo central de organização das
dos líderes mundiais no ranking relações (Núñez, Oliveira & Lago,
da violência contra as mulheres, 2019).
amplamente denunciada por
movimentos sociais, pesquisas Geralmente, as violências contra
teóricas e dados estatísticos. A alta as mulheres são analisadas na
taxa de feminicídio no país ocorre, dimensão pessoal do ciúmes,
em 90% dos casos, pelas mãos dos possessividade, dependência
companheiros e ex-companheiros emocional ou baixa autoestima
das vítimas, correspondendo sem articular estes elementos à
ao perfil de homens cis héteros monogamia enquanto estrutura
com quem mantinham relações normativa (Na Pai, 2014) na
românticas e monogâmicas (Fórum constituição de subjetividade,
Brasileiro de Segurança Pública, compreendida como a experiência
2018). A narrativa destes homens de si mesme em um jogo de
sobre a não aceitação do término verdade (Foucault, 1995) entre
da relação perante um pedido um “complexo de efeitos,
de separação ou afastamento da hábitos, disposições, associações

24
e percepções significantes que À medida que a lógica do Estado
resultam da interação semiótica do de propriedade privada é instituída
eu com o mundo exterior” (Lauretis, como método de controle, relações
1994, p. 228). comunitárias de cuidado coletivo de
povos originários são descartadas
Ao final do século XIX, Friedrich pela imposição da lógica familiar
Engels5 (2019) já buscava nuclear cuja monogamia garante
desnaturalizar a monogamia, o controle sobre a propriedade
destacando a violência contra a herdada (Engels, 2019). Esse
mulher no “processo civilizatório” processo tornou a dimensão do
e sua relação histórica com a cuidado individualizada pelo núcleo
estrutura monogâmica através da familiar, responsabilizando a mulher
instituição familiar. Historicamente, pelo trabalho não-remunerado
a monogamia se constitui como de criação dos filhos e gestão
modelo hegemônico para as doméstica, cuja desvalorização
relações afetivas e matrimoniais de seu corpo e trabalho produz
a partir da repressão aos arranjos dependência econômica, afetiva e
relacionais dos povos originários emocional (Federici, 2017).
com os quais os colonizadores se
encontraram ao invadir Abya Yala6 A imposição colonial da monogamia
(Felippi, 2008; Moreira, 2018) foi fundamental na implementação
e se insere na conjuntura dos do projeto colonial7 (Moreira, 2018)
sistemas coloniais de monocultura de expansão do eurocentrismo
(monoteísmo, monogamia, em um padrão de poder mundial,
monossexismo) fundamentados pela disparado com a colonização
não-concomitância de diferenças em de Abya Yala, a partir de 1492,
convivência (Núñez, Oliveira & Lago, abrangendo o globo até finais do
2019). século XIX (Quijano, 2005), impondo

5
A crítica à teoria de Engels reside em sua compreensão de que em um contexto não capitalista ou
“anterior” à invenção do Estado a monogamia seria importante ao aprofundamento das relações sociais.
6
Abya Yala é usado em contraponto à denominação América, que faz referência ao colonizador Américo
Vespúcio. Significa na língua do povo Kuna, Terra Madura, Terra Viva, Terra em florescimento e tem sido
usada como autodesignação de povos originários do continente (Carlos Walter Porto-Gonçalves, 2009).
7
Na lógica colonial, além de garantir o controle sobre a propriedade privada, a exclusividade
monogâmica imposta à mulher também garantiria a pureza genética no processo de embranquecimento
do Brasil, conforme propagado pela ideologia da mestiçagem aos finais do século XX (Abdias
Nascimento, 2016).

25
a supremacia de uma raça, uma Nação que fertiliza o campo de
cultura, uma epistemologia, uma possibilidades, produzindo um
pedagogia, um modelo de nação, modo de imagiNação romântica
uma religião, uma sexualidade, um evocada para as relações íntimas
gênero e um sistema econômico e amorosas. O amor romântico
(Grosfoguel, 2008). No entanto, a emerge como uma nova forma
colonização não finda com o fim de se relacionar no Ocidente
do colonialismo, e as violências (Giddens, 1993), modelando como
coloniais seguem se atualizando na nos sentimos, demandamos e
contemporaneidade, configurando a gerenciamos os afetos (Vasallo,
colonialidade (Quijano, 2005). 2018), estabelecendo a lógica
da intimidade e afinidade entre
A colonização europeia foi um pares como motivação para
empreendimento bélico regido relações monogâmicas e arranjos
pela valorização da agressividade matrimoniais sob narrativa
como traço viril/vitorioso (Taraud, biográfica compartilhada (Giddens,
2013) e pelo uso da violência 1993). Ao ser associado ao sistema
impregnou pelo mundo um monogâmico, o amor assume um
determinado modo de sentir, modelo emocional hegemônico
pensar e se relacionar como o único que busca representar a ideia de
possível, por meio da aniquilação humano sob o binarismo homem-
de outros arranjos (Núñez, Oliveira mulher da norma ocidental de
& Lago, 2019). Esses processos gênero (Mogrovejo, 2019). Nessa
são inseparáveis na constituição perspectiva, o pensamento amoroso
do mundo em que vivemos hoje constitui uma matriz moderna de
e regem a ordem pública sobre dominação que orienta normas,
as dinâmicas relacionais e as leis, instituições, símbolos e
expressões generificadas de afeto e identidades sociais (Esteban, 2011),
sexualidade permitidas socialmente cuja invenção ocidental da mulher
e quais devem ser reprimidas, como um corpo social (Oyeronké
patologizadas, perseguidas e Oyěwùmí, 1997) a torna um
criminalizadas pelas instituições do território de conquista e dominação
Estado (Navarro, 2017). de um determinado sistema político
(Segato, 2019).
Neste sentido, a colonialidade
determina um modelo de Estado- Comumente, podemos entender a

26
monogamia como a relação restrita romântico - sobretudo reprodutivo
entre duas pessoas e conceber esse e heterossexual - ocupa o lugar mais
esquema no campo da escolha alto, marcado pela exclusividade
sobre a quantidade de pessoas sexual (Vasallo, 2018). A hierarquia
com quem nos relacionamos. tem por função atribuir valor
No entanto, a monogamia não é pessoal, implicando a lógica do
meramente uma prática, é uma “quanto mais me amam, mais valor
forma de pensamento que constitui tenho; e se for mais amado que
um sistema de estrutura hierárquica qualquer outro, mais valioso sou”,
na produção de privilégios a partir assim positivando a exclusividade
de vínculos afetivos e matrimoniais e acirrando a competitividade e
(Vasallo, 2018), estabelecendo confrontação. E, portanto, articula a
um tipo de “trabalho emocional” conjunção identitária enquanto um
(Hochschild, 2012) relacionado par romântico está em relação, cuja
à padrões performáticos e pessoa companheira “conquista”
performativos (Butler, 2003) para a qualidade de permanente na
cada “tipo” de relação, que geram vida de seu par e essa qualidade
expectativas sociais relativas aos adquire o caráter identitário do
afetos e às experiências de gênero “somos”, mascarando o potencial
e sexualidade (Gonçalves, 2021). medo da finitude ao desaparecer
Portanto, a monogamia possui com a morte por meio do postulado
caráter sistêmico, coercitivo e de pertença, permanência
pedagógico na regulação do gênero, e perdurabilidade na vida
sexualidade e propriedade privada compartilhada (Vasallo, 2018).
(Gonçalves, 2021), mediando a
autopercepção e identidade (Hardy Em 2015, quando ainda estava
& Easton, 2017). cursando a graduação em Psicologia,
realizei estágio curricular em um
Esse sistema opera uma Centro de Atenção Psicossocial,
pedagogia emocional e relacional com ênfase aos efeitos da violência
(Gonçalves, 2021) que define o contra as mulheres na saúde
que entendemos por vida íntima mental. Essa experiência trouxe
e privada, nossas práticas sexuais, à luz importantes pistas sobre a
relações e determina uma forma compreensão do tema, tais como
de se vincular, amar e desejar em os conflitos das normas de gênero
uma escala hierárquica cujo par na produção de violência contra

27
a mulher8 , seu silenciamento e em xingamentos, humilhações e
invisibilidade no atendimento agressões); a culpa e a sensação
em saúde e a transversalidade constante de ser insuficiente e estar
do gênero nas políticas públicas devendo algo para a relação.
(Meinhardt & Maia, 2016). Neste
contexto, as queixas de tristeza, falta A violência monogâmica contra
de motivação, angústia, insônia, mulher pode abranger toda ou
ansiedade, dentre outros sintomas, qualquer forma de violência pautada
eram compreendidas como pela Lei Maria da Penha, com
sofrimento psíquico intenso que motivação específica caracterizada
parecia vir de lugar nenhum. Porém, pelas premissas monogâmicas que
o adoecimento estava relacionado à postulam sobretudo a centralização
estrutura monogâmica das relações do par romântico na vida da mulher
e suas respectivas demandas e atrelado à divisão generificada
atravessamentos, dentre estas: as do trabalho e performance de
exigências do par romântico por gênero, fundamentadas pela posse,
centralização na vida da mulher, por exclusividade, competitividade,
trabalho não-pago pelo cuidado da hierarquia relacional, meritocracia
casa e filhos e a obediência à tais afetiva, conjunção identitária e a
exigências sob penalização expressa dependência física, econômica e
na violência; o efeito coercitivo da emocional, que articulam o controle
monogamia na cumplicidade de suas sobre as mulheres materializado
engrenagens na relação, gerando na violência empregada sobre o
dependência emocional através deslocamento de tais premissas.
do medo da mulher em sofrer o
descarte pelo par romântico - o Geralmente, a relação entre
que implicaria o descarte do seu Psicologia e a situação de
valor pessoal; o isolamento da violência contra a mulher reside
rede de apoio da mulher (família, na compreensão social de atribuir
amigos, etc.), a perda de identidade aos profissionais da área de saúde
e valor pessoal na autopercepção mental encontrar a solução para
sob efeito da violência em diversas resolver problemas, pautado em
dimensões (principalmente expressa interpretações psicologizantes

8
A dimensão dos conflitos de gênero na produção de violência contra a mulher é mais bem explorada
no artigo “Não é uma rede que flui - da invisibilidade às possibilidades de novos modos de cuidar: a
violência contra as mulheres na saúde mental” (Meinhardt & Maia, 2016).

28
(Porto, 2006; Timm, Pereira engajamento amplo de setores e
& Gontijo, 2011). No entanto, agentes sociais no enfrentamento às
as práticas em Psicologia no relações predatórias e na garantia
contexto de violência monogâmica de direitos para viver uma vida sem
devem acolher a necessidade violências.
da mulher em falar e ser ouvida
em seu sofrimento, oferecendo
a compreensão histórica e social
da estrutura monogâmica para
reconhecer e nomear as violências,
em contraponto à interpretação
individualizada que gera efeitos
de culpabilização na mulher por
seu envolvimento em relações
predatórias, assim gerando recursos
para intervir nos efeitos de verdade
na autopercepção e identidade
degradada pela violência.

Nomear a violência monogâmica


das relações está imbuída em um
compromisso político com o mundo
que queremos viver, assumindo a
responsabilidade com os saberes
que produzimos e fazemos circular.
Esse compromisso realoca o cuidado
em saúde na produção do bem
viver coletivo e retira o sofrimento
da lógica subjetiva individualizada
para situá-lo em meio às estruturas
que trabalham juntas na produção
de violências e injustiças (Collins,
2009). Isso pode contribuir não
somente para a produção de outros
processos de subjetivação, como
também gerar ferramentas para o

29
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não para sempre: o matrimônio
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32
Dias mulheres virão?

Lívia Maciel Vigil

“A mulher de dentro de mim cansou


desse tempo”.
(Elza Soares, 2018)

A letra potente da canção em Apesar de branca, cisheterossexual,


epígrafe diz muito do que tem de classe média e sem deficiência,
habitado mulheres por todo o meu corpo feminino me situa na
mundo, na clínica ou fora dela. mira da violência, principalmente ao
Não poderia ser diferente, frente viver em um tempo de banalização
às estatísticas alarmantes que dessa forma de violência e em um
demonstram o aumento nos índices país onde ela parece não encontrar
dos casos de violência contra a seus limites.
mulher, principalmente a partir da
chegada da pandemia de Covid-19 Entretanto, se mulheres brancas
(Instituto Datafolha, 2021). e de classe privilegiada estão
expostas, mulheres negras ou
Na clínica com mulheres em racializadas, em vulnerabilidade
situação de violência, com a qual social e periféricas são,
tenho me ocupado, escutamos estatisticamente, o alvo mais
relatos dignos de filme de terror. atingido pelos mecanismos de
E não um filme de terror de baixa opressão e de destruição física,
categoria, com sangue esguichando psíquica e social. O discurso
e serras-elétricas, mas daqueles patriarcal, sustentado pela lógica
que assustam porque quem assiste, do capitalismo tardio do “ter para
pensa: “poderia ser comigo”. Essa ser”, desqualifica o lugar da mulher
realidade social que chega ao como aquela que não tem: não tem
consultório não deixa de me advertir dinheiro, pois recebe salários mais
para o fato de que eu, mulher, baixos; não tem emprego digno, pois
também estou sujeita a passar por está mais propensa a ser subjugada
situações como aquelas que escuto. a subempregos; não tem direitos,
33
pois sua existência é (mal)gerida séculos, fossem, de fato, escutadas.
pelo Estado; não tem voz, pois é O fato é: ouviríamos justamente
constantemente silenciada. Frente aquilo que o capitalismo tardio tenta
a isso, questiono: como pode uma denegar – mas já não consegue
prática que se propõe a escutar mais.
sujeitos se posicionar em relação ao
sintoma social da desigualdade de As psicanalistas Carla Sei e Maria
gênero? Se o silêncio e a indiferença Rosane Pereira (2020) apontam
social também são formas de que “o mal-estar de uma sociedade
violência, como pode a Psicologia mostra sua dimensão e gravidade
escapar do lugar de reproduzi-la? através do lugar que nela está
designado às mulheres”. Neste
Mais ainda: como pode a Psicologia sentido, se pensarmos com Jameson
intervir, com sua teoria e práxis, e Zizek (Fisher, 2020) de que é
como potencial subversivo para mais fácil imaginar o fim do mundo
a condição das mulheres na do que o fim do capitalismo, nós,
sociedade atual? Ao se deparar mulheres, estaríamos perdidas.
com um espaço de escuta, Estaríamos fadadas a seguir
de fala e de reconhecimento, ocupando o lugar de objeto a ser
muitas – principalmente as que consumido, batido, violentado
se encontram atravessadas por por uma cultura patriarcal voraz,
outras violências, como as de raça que se ergue na medida em que
e classe – encontram uma dinâmica padecemos.
inaugural. Um lugar simbólico onde
são reconhecidas como sujeitos da Diante disso, em um contexto
própria história, como autorizadas histórico-político-social como o
da própria voz. E essa voz tem atual, a Psicologia, com suas e
denunciado, há muitos e muitos seus profissionais, encontra-se
anos, a insuficiência dos discursos diante de um desafio: como se
contemporâneos regidos por posicionar eticamente frente à
fenômenos como a meritocracia, necessidade de intervenção no
os imperativos de gozo e a falácia fenômeno global da violência contra
do “empreendedor de si mesmo”. os corpos feminilizados? É urgente
Com Grada Kilomba (2016) podemos que se promova, além de formas
imaginar o que se ouviria caso essas de intervenção, a reflexão sobre a
mulheres, que vêm falando há vários atual posição subjetiva da mulher

34
e do feminino, pois o sintoma exemplo, uma enriquecedora
social da violência de gênero não contribuição a esse estudo. Em sua
se apresenta como peça isolada na obra Um Feminismo Decolonial,
causa direta do mal-estar que assola a autora nos ensina que uma
nossa cultura contemporânea. luta feminista (ou pelo feminino)
encontra nas teorias decoloniais
Importante ressaltar que a – que abrangem a tríade raça,
referência ao feminino não se cola, classe e gênero – subsídios para
necessariamente, ao corpo da resistir à estrutura econômica e
mulher. O sujeito contemporâneo social atual, indo para além do
é marcado pelo laço social no qual âmbito particular. Ela cita Angela
emerge e traz consigo certa dor Davis (2018, p. 99), que defende
psíquica proveniente dessa cultura que “o feminismo envolve muito
que tem produzido efeitos de mais do que a igualdade de gênero.
destruição. Isso demonstra que o E envolve muito mais do que o
tema da violência de gênero não gênero”. Ou seja, lutar pelo fim da
deve interessar apenas a quem violência de gênero antes do fim
se reconhece como mulher, mas do mundo é declarar guerra “ao
a todes. É assim que poderemos racismo e ao sexismo, ao capitalismo
tornar possível a invenção de saídas e ao imperialismo” (Vergès, 2019,
diante do mal-estar do nosso tempo. p. 28) que vêm produzindo tanto
sofrimento e devastação a todos os
A dor psíquica que se escuta na corpos – embora em alguns mais do
clínica traz marcas das raízes que em outros.
estruturais de opressão racista e
patriarcal. Com isso, a Psicologia É no sistema estrutural descrito
se depara com um sujeito cujo acima que a violência contra
sofrimento não está dissociado a mulher encontra seu fôlego
da dimensão social, econômica e renovado. Por isso, ainda que o
histórica que constitui sua realidade, machismo e o patriarcado estejam
o que torna incontornável a busca na origem desse sintoma social,
do diálogo com outras disciplinas é importante tomar o que chega
que estão se debruçando sobre clinicamente até nós a partir de
essa problemática. Encontramos uma investigação que ultrapasse
no pensamento da cientista política a perspectiva de gênero, sem
e feminista Françoise Vergès, por prescindir dela.

35
Nessa mesma direção, Sei e Pereira quem é socialmente e politicamente
(2022) defendem que: invisibilizada e invisibilizado.

O que acolhemos com nossa escuta,


na fala de cada sujeito mulher (e do
Com Maíra Brum Rieck (2021) é
sujeito como tal) é, em larga medida, possível pensar que “escutar grupos
marcado pelo que seu lugar na cultura desamparados discursivamente
onde ela se enlaça socialmente é fundamental, porque são esses
produziu em sua constituição psíquica,
não como uma causalidade, mas como grupos que vão esburacar os
um efeito [...]. (Sei & Pereira, 2022). discursos dominantes”. É o feminino
que habita cada sujeito humano que
Com as autoras até então referidas, vem denunciando a insuficiência
torna-se nítida a indissociabilidade dos discursos dominantes, desde –
entre sujeito e cultura, particular e pelo menos – o Iluminismo (Oliveira
universal. Embora Freud sustente & Nicolau, 2020). Além disso, a
essa premissa desde 1921, pode-se escuta de mulheres em situação de
dizer que a Psicologia Clínica nunca violência abre a possibilidade da
esteve tão implicada em refletir retomada simbólica da palavra, para
sobre o tema da interseccionalidade que saiam da repetição traumática e
e sobre o lugar violento em que busquem seu reconhecimento como
se cai caso não se esteja advertida sujeitos de direito e de desejo.
disso. Não podemos mais fechar
os olhos e os ouvidos ao que Na tentativa de criar saídas ao
testemunhamos no nosso tempo, fenômeno da violência contra
pois isso tem consequências diretas as mulheres, nossa luta também
em nossa prática, que se baseia passa por esburacar os regimes do
na confiança na palavra e no outro capitalismo tardio, do patriarcado
que a escuta. A partir do que e do racismo estrutural. Apenas
Françoise Vergès (2019) aponta assim estaremos próximas de
sobre a situação de invisibilidade ocupar uma posição ética diante da
das mulheres racializadas e sociedade, da qual a Psicologia não
empobrecidas – o que pode ser pode prescindir. Se os direitos das
ampliado também para os sujeitos mulheres vêm sendo manipulados
“não-mulheres” atravessados como forma de perpetuar a
pela violência social – cabe a nós ideologia neoliberal (Vergès, 2019),
o reconhecimento da urgência de faz-se necessário que tomemos as
um espaço de escuta destinado a rédeas de nossos corpos e de nossa

36
existência, a começar por nossas na pandemia no Brasil, aponta
palavras – escritas ou pronunciadas. pesquisa. Disponível em: https://
Dessa forma, será possível imaginar g1.globo.com/sp/sao-paulo/
discursos menos nefastos a circular noticia/2021/06/07/1-em-cada-4-
na contemporaneidade. mulheres-foi-vitima-de-algum-tipo-
de-violencia-na-pandemia-no-brasil-
Finalizo com Frantz Fanon (2011), diz-datafolha.ghtml. Acesso em: 10
que sugere: “ganhemos as mulheres, abr. 2022.
o resto virá por si”.
Kilomba, G. (2016). Descolonizando
o conhecimento. Youtube. Disponível
em: https://www.youtube.com/
Referências watch?v=iLYGbXewyxs.

Davis, A. (2018). A liberdade é uma Oliveira, P. A., & Nicolau, R. F. (2020)


luta constante. São Paulo: Boitempo Feminino em questão: diálogos
contemporâneos entre psicanálise
Fanon, F. (2011). L’An V de la e feminismo. Revista Subjetividade,
Révolution algérienne, Paris: La 20(2). Disponível em: https://doi.
Découverte, org/10.5020/23590777.rs.v20iEsp2.
e8974.
Fisher, M. (2020) Realismo
capitalista: é mais fácil imaginar Rieck, M. B (2021) Coluna da Appoa:
o fim do mundo do que o fim do Museu das Memórias (In)Possíveis.
capitalismo?. Autonomia Literária Sul21. 6. Recuperado de: https://
sul21.com.br/opiniao/2021/06/
Freud, S. (1921). Psicologia das coluna-da-appoa-museu-das-
massas e análise do eu. In: Edição memorias-inpossiveis/. Acesso em:
Standard Brasileira das bras 10 abr. 2022.
Psicológicas Completas de Sigmund
Freud. Rio de Janeiro: Imago. [1976] Soares, E. (2018). Canção “De
dentro de cada um”. Deus é mulher.
Instituto Datafolha, G1. (2021) Compositores: Luciano de Mello e
Uma em cada quatro mulheres foi Pedro Loureiro.
vítima de algum tipo de violência

37
Sei, C. C. & Pereira, M. R. (2020).
Uma psicanalista no teu caminho...
quando Eros rompe o silêncio.
Correio da APPOA, n. 303. Disponível
em: https://appoa.org.br/correio/
edicao/303/uma_psicanalista_
no_teu_caminho_quando_eros_
rompe_o_silencio/890. Acesso em:
10 abr. 2022.

Sei, C. C.; Pereira, M. R (20220). Uma


psicanálise feminista e decolonial é
possível? Correio da APPOA [texto
inédito a ser publicado em maio de
2022].

Vergès, F. (2020) Um
feminismo decolonial.
São Paulo: Editora Ubu.

38
Aborto e Psicologia: reflexões
sobre posicionamentos éticos da
categoria

Camila Noguez
Domenique Assis Goulart
Maíra Freitas Barbosa

Introdução saberes e das técnicas profissionais,


por entendermos que a construção
Acreditamos ser importante do conhecimento e nossa práxis
começar pelo lugar de escrita desse se situam em uma sociedade
texto, situado na militância pelo profundamente díspar, seja em
aborto legal, seguro e gratuito por termos de gênero, raça, classe,
parte das autoras: três mulheres sexualidade e outros marcadores
cis, duas brancas e uma parda, que estabelecem uma distribuição
todas com ensino superior desigual de precariedade de
completo e pós-graduação, que se vida sobre os corpos. Radica aí
encontraram e se marcaram pelo a pretensão de pautarmos os
enlace entre amizades, Psicologias desafios sobre a responsabilidade
e direitos. Nesses tramados da vida, ética da Psicologia frente à questão
uma questão ética nos convoca social do aborto, especialmente ao
especialmente – a necessidade de enfocarmos o potencial impacto que
nossas profissões se posicionarem um aporte técnico deste saber pode
diante da questão social do ofertar aos debates públicos no que
acesso ao aborto e, portanto, tange ao direito ao aborto (o que
da necessidade de nós mesmas será melhor desenvolvido ao final
também mobilizarmos nossa práxis deste trabalho), incidindo, portanto,
profissional nessa posição política. no enfrentamento às violências
correlatas.
Adotamos uma postura crítica em
relação à pretensa neutralidade dos

39
1. Refletindo sobre a questão social (Huppes & Corrêa, 2021) –, na
do aborto desde uma perspectiva contramão do que vemos em países
crítica latino-americanos. O silenciamento
e a negação a um dos aspectos dos
Mas, afinal, o que profissionais DSDR, que é o aborto, tem seus
de Psicologia têm a ver com o efeitos: dados da Pesquisa Nacional
tema do aborto? Para muitos, do Aborto (2016) apontam que
este tema percorre apenas dois o índice de abortamento entre
aspectos da vida: a saúde, no campo mulheres negras é duas vezes maior
restrito aos saberes médicos e da do que entre mulheres brancas, bem
enfermagem, e o âmbito jurídico. como revelam o fato de que uma
Ou, se pensarmos no que tange ao pessoa negra tem 2,5 mais chances
conhecimento psi, se considera no de morrer em decorrência de um
senso comum apenas o sofrimento abortamento inseguro.
em decorrência do abortamento.
O que nos toca como profissionais Outra faceta do silenciamento em
é levar o tema dos Direitos Sexuais torno do aborto são as mulheres
e Direitos Reprodutivos (DSDR) gestantes que não tiveram acesso
à tona em nossos espaços de aos métodos contraceptivos
atuação por considerarmos este um e que apresentam quadro de
compromisso ético, de exercício de vulnerabilidade social e insegurança
direitos como uma possibilidade alimentar com grande dificuldade
concreta e real que envolve as de criar seus filhos de forma
pessoas com possibilidade de digna. Trata-se de um contexto de
engravidar. Trata-se de um tema desinformação e de negativa de
que enlaça direitos e saúde em direitos que, apesar de se manifestar
suas amplas acepções e, por desigualmente, atinge a todas as
isso, entendemos ser de grande brasileiras, podendo se falar em uma
importância em nossos fazeres. política de desserviço em curso: não
se falando sobre a educação sexual
Atualmente, vemos movimentações nas escolas, nas Unidades Básicas de
em prol da supressão dos Saúde ou nos Centros de Referência
direitos ao aborto no Brasil, país em Assistência Social, tampouco
que atualmente lidera aliança divulgando os meios de acesso aos
internacional ultraconservadora métodos contraceptivos através
antiaborto – o Consenso de Genebra de campanhas de conscientização

40
social, tem-se como resultado a Teresa Zavala-Bonachea e María del
não campanha operando como Carmen Alva-López afirmam ser o
campanha em si, colocando o aborto uma experiência traumática
aborto, enquanto um dos direitos e violenta.
sexuais e reprodutivos, “no
armário”. Para uma aproximação acerca
da complexidade das sensações
1.1 O que a Psicologia tem com e sentimentos envolvidos,
isso? recomendamos a leitura do artigo
de Rosely Costa, Ellen Hardy, Maria
Não raro, quando a Psicologia José D. Osis e Aníbal Faúndes (1995)
se ocupa do aborto enquanto elaborado a partir da escuta de
tópico, o faz sob o signo do trauma mulheres que interromperam suas
para dizer como essa experiência gestações, momento em que se
se inscreve psiquicamente nas depararam com relatos de tristeza,
mulheres. Apenas para citar alguns culpa, mas também de leveza,
exemplos, temos uma publicação tranquilidade e felicidade. Neste
de 1981 pela Instituição Cyro sentido, a pesquisa desenvolvida
Martins intitulada “As trágicas por Corinne Rocca, Katrina
feridas emocionais do aborto”, Kimport, Heather Gould e Diana
em que o autor realiza uma breve Fostera (2013) evidenciou que a
análise acerca da criminalização maioria das mulheres que querem
do aborto, decretando o trauma e conseguem realizar o aborto
como destino certo e inexorável da expressam emoções positivas como
prática, sem relacioná-lo à condição o alívio, uma semana depois do
de ilegalidade. Em 1998, no artigo procedimento.
de Maria João Mendes Cosme
e Isabel Pereira Leal, podemos Ana Noya e Isabel Leal (1998)
encontrar a categórica afirmação: analisaram o discurso psicológico
“por muito bem que a mulher se relativo ao aborto e concluíram
sinta preparada, um aborto provoca que as normas sociais a favor do
sempre (grifo nosso) um trauma nascimento, seja ele na circunstância
psicológico e mental” (Cosme & Lela, que for, são internalizadas
1998, p. 448). Mais recentemente, individualmente, produzindo uma
em 2017, as mexicanas María tendência a constatar ansiedade,
Esther Cardoso-Escamilla, María depressão, culpa, vergonha e vazio

41
como respostas emocionais diante aborto mesmo em casos em que
do aborto provocado. Destacamos o procedimento não é ilegal.
ainda o livro Aborto e (não) desejo Trata-se do não reconhecimento
de maternidade(s): questões para a institucional ou social da violência
Psicologia, organizado por Valeska vivida, e é sobretudo nesse não-
Zanello e Madge Porto (2016). Em reconhecimento que reside o
um de seus artigos, Zeidi Trindade, trauma.
Sabrine Coutinho e Mirian Cortez
analisaram como a não maternidade Se o traumático, na perspectiva
é tratada nas publicações científicas ferencziana, situa-se na negação
da Psicologia. Concluíram que, de um fato, ao ampliar o escopo
de modo geral, as publicações da análise crítica, podemos nos
da categoria apontam que as perguntar o quão traumático para
consequências dessa escolha são uma população pode ser não
culpa, estigma social e sensação de reconhecer o aborto como fato
incompletude. inerente à vida das pessoas com
capacidade de gestar. Ou, ainda, se
Para além da culpa e do trauma a cada dois dias uma mulher morre
tratados como fenômenos em função de abortos inseguros –
intrínsecos ao aborto induzido, por serem clandestinos e realizados
encontramos em Sándor Ferenczi por mulheres de baixa renda que
(1931, p. 79), no entanto, a não conseguem acessar condições
seguinte contribuição: “o pior salubres para o procedimento
realmente é a negação, a afirmação (Brasil, 2018).
de que não aconteceu nada, de
que não houve sofrimento (...) Possibilidades de atuação
é isso, sobretudo, o que torna do profissional psi já estão
o traumatismo patogênico”. Ou mencionadas e previstas em
seja, o traumático incide também normativas técnicas que dispõem
num segundo tempo, na negação sobre a atenção às mulheres que
de um fato, por exemplo, de um realizarão aborto legal. Destacamos
episódio de estupro; quando alguns trechos para os casos de
meninas e mulheres vivenciam anencefalia: “obrigar a mulher a
a violência institucional e/ manter a gestação de anencéfalo,
ou religiosa ao enfrentarem as contra sua vontade, é submetê-la
barreiras para a realização do à tortura psicológica, violando sua

42
saúde física e mental e afrontando “o possível risco de sangramento
seus direitos fundamentais, excessivo e o eventual efeito
protegidos pela Constituição psicológico de observar a expulsão
Federal” (Brasil, 2014, p. 07); do conteúdo uterino devem ser
“não cabe ao psicólogo e/ou ao discutidos com a mulher” (Brasil,
profissional de saúde opinar sobre 2005, p. 26).
a escolha da mulher e/ ou do
casal acerca da continuidade ou Cada disposição supracitada foi
interrupção/antecipação terapêutica efeito de uma trajetória de luta
do parto” (Brasil, 2014, p. 20). pelo respeito à vida das mulheres.
No entanto, longe de ser uma
Vejamos excertos de normas paisagem já pacificada e definida
técnicas relativos a casos de por possibilidades e previsões no
abortamento em caso de campo de atuação psi, o que temos
violência sexual: “o atendimento é um campo em que a participação
precisa ser ofertado por equipe da/o psicóloga/o está em constante
multiprofissional e interdisciplinar, disputa. Como bem apontam Camila
essencialmente: médico(a); Giuliani, Ângela Rushel, Gregório
enfermeiro(a); técnico(a) em Patuzzi e Maura Belomé da Silva
enfermagem; assistente social e (2021), conforme estabelecido
psicólogo(a)” (Brasil, 2015, p. 13). pela Norma Técnica de 2005,
Já o Guia Orientador de Atenção enquanto os riscos referentes ao
Humanizada ao Abortamento assim procedimento do aborto devem ficar
refere: “muitos cursos de graduação explicitados, não são mencionados,
e formação em serviço não têm nos termos, os possíveis agravos
propiciado dissociação entre os em saúde mental no caso da
valores individuais (morais, éticos, manutenção de uma gravidez
religiosos) e a prática profissional; resultante de violência sexual, muito
muito pelo contrário, não preparam menos que o sejam comunicados
os profissionais(...)” (Brasil, 2005, à mulher. Vale destacar ainda a
p. 18); “é importante o espaço para Proposta Legislativa nº 028/2020
elaboração subjetiva da experiência, que, dentre as medidas de apoio à
com a verbalização dos sentimentos, gestante, encontra-se a obrigação de
a compreensão dos significados do “atendimento psicológico com vistas
abortamento no contexto de vida de a dissuadir a mulher” de abortar e a
cada mulher” (Brasil, 2005, p. 18); realização compulsória de ecografia

43
que mostre à mulher “a existência humanos. Assim, percebemos
de (...) batimentos cardíacos”. gestos para seguir pautando o tema
na área da Psicologia. Salienta-se,
Pois bem, retornando à pergunta nesse sentido, que em audiências
ora posta em voga sobre o que a públicas do julgamento da Arguição
categoria profissional da Psicologia de Descumprimento de Preceito
vem discutindo e como tem se Fundamental (ADPF) 442, em que
posicionado eticamente, temos se pleiteia a descriminalização
algumas pistas lançadas na do aborto até a 12ª semana de
publicação do Conselho Regional gestação, o Conselho Federal de
de Psicologia, em edição de 2021, Psicologia (2018) se fez presente
em matéria intitulada “O direito enquanto categoria profissional,
ao aborto e o papel da Psicologia”. apoiando o pedido da ação
Nesta reportagem, há diversas formulada perante o Supremo
profissionais entrevistadas que Tribunal Federal.
relatam os desafios que esta pauta
enfrenta em ter eco na sociedade, De forma comprometida com o
o que também impacta na atuação debate e no intuito de provocar
profissional. Como traz a psicóloga burburinhos sobre o direito ao
Ângela Ruschel ao relembrar o aborto é que lançamos alguns ruídos
fato de que “até hoje a informação no silêncio. Animadas pela vontade
sobre esse direito ainda é muito de investigação, seguimos neste
restrita na sociedade em geral e tema contando com a realização
entre as/os profissionais de saúde, de uma enquete simples entre
tanto as/os formadas/os há muito colegas de profissão, mas que gerou
tempo, quanto as/os recém-saídas/ discussões e surpresas para alguns,
os da faculdade”, na reportagem constituindo-se, agora, como uma
supracitada. das origens deste escrito.

O Conselho Federal de Psicologia 1.2 Enquete sobre o acesso ao


(CFP) se posicionou, em 2018, aborto legal no Brasil
a favor da descriminalização e
legalização do aborto no Brasil, por O método do qual nos valemos para
entender que a defesa dos direitos exercitar nossa curiosidade não
sexuais e reprodutivos das mulheres tem pretensões de rigor científico.
faz parte da defesa dos seus direitos Talvez, com sorte, provoque flertes

44
e promessas de pesquisas outras. às profissionais da categoria.
Nosso metho (meta) é a conversa, Tão relevante quanto seria fazer
nosso hodos (caminho), uma futuramente esse levantamento
indagação: com um público mais diverso
quanto à classe, cor, escolaridade
Você acha que a afirmação abaixo e gênero, uma vez que uma de
é verdadeira ou falsa? Responda nossas proposições é a de que a
a partir do que você acha, não difusão dessas informações entre
consulte fontes antes de responder. a população geral também diz
Há 3 situações em que o aborto é respeito à profissão; em outras
legal no Brasil: casos de estupro, palavras, a difusão deste tema
anencefalia fetal e risco de vida para também é responsabilidade da
a gestante: ( ) Verdadeiro ( ) Falso. Psicologia.
Caso tenha marcado a segunda
opção, o que tornaria a afirmação Considerações Finais
falsa, na sua opinião?
A especificidade do fazer psi tem
Essa pergunta – cuja sentença é a contribuir com a saúde mental
integralmente verdadeira – foi das pessoas com capacidade de
enviada por WhatsApp, no mês gestar que escolhem interromper
de março de 2022, tendo sido a gestação e com a saúde mental
respondida por 62 psicólogas/os das/os profissionais de saúde
com o registro ativo no Conselho que realizam o procedimento. Diz
Regional de Psicologia do Rio também da nossa especificidade
Grande do Sul (CRPRS). Inicialmente analisar o quanto uma sociedade
a enquete não foi desenhada valoriza e respeita a vida de meninas
para profissionais psi. Dentre os e mulheres, enfrentando violências
participantes, (83,9% mulheres, de gênero, o que nos sugere
88,7% brancas, 6,5% pardas, 4,8% possibilidades de atuação junto
pretas), 88,7% respondeu que a aos agentes legais e à sociedade
afirmação era verdadeira. civil. Ainda, se considerarmos que
o silêncio em torno do tema pode
O público-alvo da pesquisa foram gerar alguns dos adoecimentos que
pessoas psicólogas, uma vez que parcela da população experimenta,
o objetivo era instalar um índice rompê-lo também parece ser papel
de reflexão acerca do tema junto também de profissionais psi.

45
Na Colômbia, por decisão proferida rumo não podemos antecipar, mas
pela Suprema Corte do país, no ano podemos deflagrar.
de 2006, “o aborto é permitido no
país em casos de estupro, incesto,
deformidade severa do feto e de
risco à saúde da mulher — incluindo Referências
a saúde mental”. A hipótese de
proteção à saúde mental pode Brasil (2005). Atenção humanizada
abranger situações mais amplas, ao abortamento: norma técnica. 2.
tendo em vista o entendimento de ed. Brasília: Ministério da Saúde.
que “obrigar uma mulher a levar
uma gestação até o fim contra Brasil (2014). Atenção às Mulheres
sua vontade é impor sofrimento com Gestação de Anencéfalos:
psicológico e risco para sua saúde Norma Técnica. Brasília: Ministério
mental”, como refere Laura Mori da Saúde.
(2020) – e, em alguns casos, o
risco para a sua saúde mental se Brasil (2015). Norma técnica:
traduz em riscos para a sua vida, Atenção humanizada às pessoas em
acrescentaríamos. situação de violência sexual com
registro de informações e coleta de
Dos movimentos que surgiram vestígios. 1. ed. Brasília: Secretaria
a partir da produção deste texto De Políticas Para As Mulheres.
em parceria, ficamos com alguns
acenos para ações futuras, como Brasil (2018, agosto 03). Ministério
a realização de enquetes para da Saúde. Interrupção voluntária
profissionais ou estudantes de de gestação e impacto na
outras áreas que compõem o campo saúde da mulher. Disponível
da saúde e dos direitos. Ao fim e em: https://www.jota.info/wp-
ao cabo, vemos na pergunta um content/uploads/2018/08/312d
dos nossos melhores dispositivos 26ded56d74e21deec42b8cf612e8.
de ação na formação e no suporte pdf. Acesso em: 11 abr. 2021.
à saúde mental de mulheres e
profissionais. A enquete participaria Cardoso-Escamilla, M. E., Zavala-
do conjunto das perguntas possíveis, Bonachea, M. T., & Alva-López, M.
não como um fim em si, mas como D. C. (2017). Depressão e estresse
uma estratégia para a conversa, cujo pós-traumático em mulheres com

46
perdas gestacionais induzidas Ferenczi, S. (1931). Análises de
e involuntárias. Pensamiento crianças com adultos. In: Obras
psicológico, 15(2), 109-120. Completas Psicanálise IV (pp. 69-83).
São Paulo, SP: Martins Fontes.
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47
A não maternidade tratada nas
publicações científicas da Psicologia.
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(não) desejo de maternidade (s):
questões para a Psicologia (pp. 143-
166). Brasília, Conselho Federal de
Psicologia (CFP).

Zanello, V., & Porto, M. (2016).


Aborto e (não) desejo de
maternidade (s): questões para a
Psicologia. Brasília, Conselho Federal
de Psicologia (CFP).

48
O papel da Psicologia no
enfrentamento das violências
contra as mulheres transexuais
e travestis
Henrique Borba Bittencourt
Gabriel Licoski dos Santos
Simone Chandler Frichembruder

Por isso escrevo, por todas as travestis que


não alcançaram o saber que estavam vivas,
pela culpa e vergonha de não serem corpos
para serem amados e morrerem jovens
antes de serem felizes.
Morreram sem haver escrito nem uma carta
de amor.
(Cláudia Rodriguez – Manifesto Horrorista Travesti)

Introdução dos homens sobre as mulheres,


reforçando determinados papéis
Historicamente, imperou por muito sociais e funções para cada
tempo a concepção de que haveria categoria. Já a muitas décadas, essa
uma diferença fundamental entre construção normativa vem sendo
homens e mulheres, derivadas das alvo de constantes questionamentos
distinções sexuais biológicas; essa por parte das mobilizações sociais,
percepção tem sido problematizada especialmente dos movimentos
e hoje muitas(os) entendem que feministas, que buscam reivindicar a
ambas são construções sociais e equidade entre os gêneros.
reforçam a lógica do patriarcado
(Costa, 2021). Marta da Costa Em razão desses movimentos, as
(2018) ressalta que esta se trata da mulheres conquistaram inúmeros
internalização e naturalização de direitos que antes eram exclusivos
normas que garantem a dominação aos homens. Cabe ressaltar que tais

49
conquistas são alvo de permanentes Nacional de Travestis e Transexuais
disputas. Simone de Beauvoir, em - [ANTRA], 2020), deflagrando a
1949, já destacava que basta “uma importância do fomento de ações e
crise política, econômica ou religiosa debates acerca do tema.
para que os direitos das mulheres
e outras minorias sociais sejam Método
questionados”. Nesse campo fértil
para questionamentos, emergiram O presente escrito trata de uma
também movimentos reivindicando revisão narrativa da literatura de
direitos fundamentais para caráter qualitativo. Tal método,
lésbicas, gays, bissexuais, travestis e segundo Maria Martins (2018), é
transexuais, queer, interessexuais e apropriado para discutir o estado
assexuais dentre outros (LGBTQIA+). de arte de um determinado
assunto, sendo uma análise ampla
Uma das pautas de discussão da literatura, evidenciando novas
comum a ambos os grupos são ideias, métodos e temas internos
os direitos das mulheres trans e que têm recebido destaque. Para
travestis. As pessoas trans são tal, foram recuperados artigos dos
indivíduos cuja identidade de gênero seguintes bancos de dados: Pepsic,
não vai ao encontro de seu sexo Scielo, Pubmed e Lilacs, utilizando os
biológico, quebrando a dicotomia descritores mulheres transgênero,
binária de sexo-gênero: homem- saúde pública e violência e seus
masculino e mulher-feminina. Tal correspondentes em inglês
população, desde muito cedo, sofre transgender women, public health e
com discriminação e preconceito, violence.
sendo expulsas de casa e tendo de
parar de estudar, o que as coloca em Desta busca inicial, resultaram 102
situação de vulnerabilidade social artigos, que, após a leitura dos
(Restar, 2021). Nesse âmbito, cabe títulos, foram reduzidos a 58 artigos,
ressaltar a situação das mulheres sendo estes submetidos à leitura do
trans e travestis no Brasil, tendo em resumo. Desta leitura, identificamos
vista os altos índices de violências 30 artigos a serem avaliados na
de que tais populações são alvo: íntegra, que resultaram em 8
entre 2019 e 2020 o número de artigos que fazem parte da revisão
notificações destas ocorrências narrativa deste estudo. Os critérios
aumentou em 90% (Associação de inclusão utilizados durante a

50
seletiva dos artigos foram: artigos (2018) e Silvana Marinho (2020),
em português, inglês ou espanhol; em concordância com o Dossiê:
disponíveis na íntegra de forma assassinatos e violências contra
gratuita; publicados nos últimos travestis e transexuais brasileiras
cinco anos; que desenvolvessem em 2021, publicado pela ANTRA no
em seu conteúdo a temática de ano de 2022, fica evidente que ano
pelo menos 2 dos 3 descritores após ano o Brasil vai se firmando
supracitados. como o país com o maior índice
de violência contra a população
Importante destacar a relativa trans, efetuada majoritariamente
escassez de dados encontrados contra as mulheres trans e travestis.
relacionados à temática, motivo Segundo os dados apontados
que levou o grupo a acrescentar pelo dossiê da ANTRA, entre os
à pesquisa relatórios produzidos anos de 2017 e 2021, 781 pessoas
pela ANTRA, bem como capítulos trans foram assassinadas no Brasil;
de livro dispostos como leitura deste número, 80,6% representam
complementar para além de pessoas trans negras, enquanto,
cartilhas, notas técnicas, diretrizes para pessoas brancas, esse índice
e referências produzidas pelo cai para 19,2%. Neste sentido,
Conselho Federal de Psicologia fica evidente que tal situação é
(CFP) e por alguns Conselhos impactada tanto por questões de
Regionais de Psicologia (CRP). Este gênero quanto por fatores próprios
levantamento inicial das publicações ao racismo estrutural predominante
coloca-nos diante da invisibilidade no Brasil.
que a população trans ocupa
nas produções acadêmicas e dos Assim, quando abrimos o olhar
desafios em relação às práticas e à para a violência em todos os seus
produção de saber em relação a esta aspectos, observamos que a maior
população. parte das vítimas são jovens entre
13 e 29 anos, mulheres trans e
O perfil sociodemográfico da travestis, negras e periféricas. A
violência contra travestis e constante presença da violência
mulheres trans no Brasil letal contra estas mulheres é a
expressão mais radical de uma
Conforme pontuado por Eliana realidade estrutural de violação de
Zucchi et al. (2019), Magno et al. direitos contra as pessoas trans no

51
geral, em especial contra mulheres tendem a ser minimizados, sendo
trans e travestis. Estas vivem em sua responsabilidade atribuída às
situação de extrema vulnerabilidade próprias vítimas, sendo referidas
e precariedade, com difícil acesso como ‘morte por causas naturais’
ao mercado de trabalho formal e ou violência provocada por ataque
à formação acadêmica. Segundo prévio, principalmente quando
dados do projeto Além do Arco-íris/ envolvem forças policiais.
Afro Reggae, realizado no ano de
2018, apenas 0,02% das pessoas Somados à violência física,
trans estavam na universidade, 72% identifica-se a violência psicológica
não possuíam o Ensino Médio e e institucional, visto que nestes
56% o Ensino Fundamental (ANTRA, casos a vítima tem sua existência
2019). invalidada, desrespeitando
sua identidade de gênero nos
Tais informações estão em registros policiais. Muitas vezes
consonância com os dados trazidos mulheres trans e travestis têm
pelo dossiê da ANTRA no ano de suas ocorrências registradas como
2019. Neste, estima-se a idade indivíduos do gênero masculino,
média de 13 anos em que travestis sobretudo quando elas não
e mulheres transexuais são expulsas correspondem ao estereótipo de
de casa, dificultando o acesso destas feminilidade vigente, tornando-se
à moradia, alimentação, saúde e pela óptica dos seus agressores,
qualidade de vida, dentre tantos inaceitáveis em relação ao padrão
outros que são garantidos a boa cisgênero (Abreu et al., 2019;
parte das pessoas cisgênero (ANTRA, Arianne Reis et al., 2021; Magno
2019). et al., 2018; Nizar Shihadeh et al.,
2021).
O Estado, além de se omitir em
relação ao planejamento de políticas As tantas violências que sofrem as
públicas para essa população, tem travestis e mulheres trans desvelam
atuado como protagonista social os inúmeros preconceitos sociais
nas diversas formas de violências infringidos sobre elas. Neste cenário
contra estas mulheres. Segundo de preconceitos, torna-se ainda mais
relatório da ANTRA (2021), Paula difícil o acesso ao mercado ‘formal’
Abreu et al. (2019) e Zucchi et al. de trabalho, reforçando a ligação
(2019), crimes contra mulheres trans destas a ramos mais precarizados,

52
como o da prostituição, que se que enfrentam o julgamento e
torna um dos únicos meios para preconceito das profissionais dos
assegurar a sua sobrevivência e a diferentes dispositivos do Sistema
principal fonte de renda de cerca Único de Saúde (SUS). Com base
de 90% destas mulheres. Dentre os nos dados apresentados por Santos
múltiplos reveses do mercado de et al. (2020), nota-se que, apesar
trabalho das profissionais do sexo de alguns avanços na qualidade
temos presente uma significativa do atendimento realizado às
diminuição na expectativa de vida pessoas trans, sobretudo com
destas mulheres em relação às o estabelecimento do processo
mulheres cisgênero. Entretanto, o transexualizador, ainda há uma
fator principal para essa diminuição série de desafios que perpassam a
é o frequente uso de violência letal experiência dessas mulheres. São
contra essas profissionais, conforme exemplos destes a dificuldade de
nos é apontado pelo Dossiê acesso a unidades de saúde que
assassinatos e violências contra forneçam um acompanhamento
travestis e transexuais brasileiras em adequado e o processo de
2021 produzido pela ANTRA (2022), diagnóstico excludente no qual
indicando que no ano de 2021 o tais mulheres devem se encaixar
número de assassinatos de mulheres em um determinado padrão de
trans e travestis no Brasil era comportamento com a finalidade de
representado por um total de 78% serem “autorizadas” a acessar o seu
de vítimas vinculadas ao mercado direito a uma assistência de saúde
da prostituição, reforçando ainda adequada.
mais o processo de marginalização
imposto contra estas mulheres Muitas vezes, todo esse processo
(Abreu et al., 2019; Tsang, 2021; ocorre de maneira desrespeitosa e
ANTRA, 2022; Magno et al., 2018; acaba por aumentar ainda mais a
Zucchi et al., 2019). resistência das travestis e mulheres
trans em buscar auxílio do Estado,
Preconceitos e resistências nos seja nos serviços de saúde ou dos
serviços públicos operadores de segurança para se
proteger ou denunciar situações
A conjuntura supracitada é que ameaçam a sua integridade.
extensiva às práticas relacionadas ao Produz-se uma ruptura traumática
cuidado em saúde dessas mulheres nessas mulheres, ocasionada pela

53
violência psicológica, institucional O papel da Psicologia no
e por vezes física dos inúmeros enfrentamento à violência contra
casos de constrangimento, ações travestis e mulheres trans
de frieza e indiferença durante
os acolhimentos e/ou consultas, A Psicologia como ciência e
sendo um dos principais motivos do profissão vem posicionando-se
afastamento dessa população dos por meio do Sistema Conselhos
serviços públicos (Shihadeh et al., de Psicologia, desde a Resolução
2021; Zucchi et al., 2019). nº 01/99 do Conselho Federal de
Psicologia (CFP), contrária aos
Identifica-se mais uma forma de preconceitos e à visão patologizante
violência aplicada pelo Estado presente fortemente nas temáticas
contra estas mulheres, uma vez que, de sexualidade e gênero (Sousa
através de seus agentes, reforça o & Espozito, 2019). Sistema este
discurso de ódio manifestado por que cada vez mais vem ocupando
uma grande parcela da população. espaço neste debate, elaborando
O preconceito e julgamento são documentos em relação a essa
evidenciados em frases como “veja temática. Por exemplo, por meio
a roupa que ela estava usando”, da publicação de Psicologia e
“morreu porque estava na zona”, Diversidade Sexual em 2011; a Nota
“se tivesse estudado isso não teria Técnica de 2013 com objetivo de
acontecido”, “é assim por falta de abordar o processo transexualizador
Deus, tem o demônio no corpo”, e as demais formas de assistência
ocorrendo de forma escancarada às pessoas trans; a elaboração em
uma culpabilização da vítima, seja 2014, pela Comissão de Direitos
no âmbito da saúde, segurança e/ou Humanos do CFP, de campanha
educação (ANTRA, 2021; Shihadeh publicitária por meio do lançamento
et al., 2021; Zucchi et al., 2019). do site Despatologização das
Nesse contexto, cabe-se questionar: Identidades Trans; a Resolução
que medidas práticas estão sendo CFP nº 01/2018, que regulamenta
tomadas para mudar este cenário e a prática profissional da(o)
onde entra a Psicologia nisso? psicóloga(o) em relação às

54
travestilidades e transexualidades por uma maior inclusão dos temas
e a publicação da Nota Técnica relativos a relações de gênero e
que atualiza a Resolução do CFP nº diversidade sexual e de gênero
01/99 em 2021 (Sousa & Espozito, ainda na graduação. Tal função
2019). é ressaltada pelas resoluções
previamente citadas, que enfatizam
A Organização Mundial de Saúde tal tema e a necessidade de garantir
(OMS) também vem avançando um atendimento humanizado a
nesta temática, uma que vez todas as populações, em especial
que retirou da 11ª edição da para as que se encontram em
Classificação Internacional situações de vulnerabilidade social,
de Doenças (CID) o chamado visando promover, por meio da
Transtorno de Identidade equidade, melhores condições de
de Gênero, segundo o qual vida e acesso às boas práticas em
considerava como portadoras de saúde mental (Shihadeh, et al.,
transtorno mental pessoas que 2021; Newcomb, 2019).
não se identificavam com o gênero
atribuído no nascimento. Assim, Através da atuação com
a transexualidade passa a ser responsabilidade social, analisando
classificada como Incongruência de de forma crítica e historicizada as
Gênero e relativa à saúde sexual. realidades políticas, econômicas
Há de se destacar a relevância da e sociais postas de forma plural
retirada da categoria de transtorno nas vivências das mulheres trans
mental, no entanto, a mudança de e travestis, a Psicologia pode
gênero ainda permanece sendo influenciar positivamente os meios
categorizada como um diagnóstico onde está inserida. Isto é, nas
em sua última versão. relações sociais a nível pessoal,
interpessoal e comunitário, ao tomar
As históricas formas de violência que uma postura de desconstrução dos
sofrem essas mulheres convocam rótulos sociais e, assim, fomentar
a profissional da Psicologia a a construção subjetiva da história
desempenhar um papel de e vivência do sujeito (Jesus et al.,
catalisador social na promoção da 2020; Shihadeh et al., 2021; Sousa &
despatologização dos indivíduos, Espozito, 2019).
o que necessariamente perpassa

55
Considerações Finais emprego e renda. A Psicologia
deve discutir em suas pautas a
Apesar dos avanços feitos pela promoção da dignidade e qualidade
Psicologia enquanto ciência de vida das travestis e mulheres
e profissão, na luta contra as trans, uma vez que esses temas são
violências infligidas às travestis e intrínsecos a manutenção dos seus
mulheres trans, ainda há muito direitos, afirmados pela Declaração
a ser feito frente às concepções Universal de Direitos Humanos.
diagnósticas patologizantes, Possibilitando que estas mulheres
instauradas pelas normativas sociais almejem oportunidades melhores
em relação às vivências performadas de vida do que às oferecidas pelas
do ser mulher. Por meio do vias dos trabalhos precarizados
questionamento dos modelos de e medidas assistencialistas
organização social estruturados ofertadas pelo governo e/ou por
através dos mecanismos de entidades de caridade, visando que
segregação, violência e opressão realmente possam ter plenamente
social, é possível ampliar a escuta possibilidade de gerenciar as suas
desta população tantas vezes próprias vidas.
marginalizada, o que pode ser
realizado por meio dos vários Dessa forma, a Psicologia deve
espaços e ferramentas próprias à assumir o compromisso de acolher
Psicologia, possibilitando, assim, a diversidade e pluralidade,
intervenções significativas e de conscientizar e produzir diretrizes
maior potência do que a infindável e ações concretas contra a
tentativa de encaixar essas mulheres discriminação e patologização
em um determinado quadro exercidas contra estas mulheres,
diagnóstico. visando o enfrentamento das
ideologias promotoras do genocídio,
Por meio desta revisão foi percebida transfeminicídio e práticas
a urgência do levante de ações que meritocráticas, excludentes,
intervenham no enfrentamento da patologizantes e tecnicistas
vulnerabilidade social que vivem presentes na sociedade atual, a
as mulheres trans e travestis, não fim de promover a equidade nas
só no campo da saúde física e políticas públicas e desconstruir tais
mental, mas também na promoção concepções. Ainda, cabe destacar
de acesso à educação, formação, que, ao longo das pesquisas

56
realizadas para este artigo, a com/2019/12/dossie-dos-
restrição de conteúdos no que assassinatos-e-violencia-contra-
tange à produção acadêmica sobre pessoas-trans-em-2018.pdf.
a temática na seara da Psicologia
sinaliza a necessidade da produção ANTRA. (2020). Dossiê assassinatos
de mais pesquisas e ações acerca contra travestis brasileiras e
do tema, hoje ainda restritas, violência e transexuais em 2019.
majoritariamente, às mulheres trans Disponível em: https://antrabrasil.
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AIDS, trazendo maior visibilidade dossic3aa-dos-assassinatos-e-da-
a esta população que tantas violc3aancia-contra-pessoas-trans-
vezes não possui espaços de fala, em-2019.pdf.
representatividade, oportunidades,
legitimidade no campo das políticas ANTRA. (2021) Dossiê assassinatos
públicas ou condições de vida digna. e violência contra travestis e
transexuais brasileiras em 2020.
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ijerph17217959.

59
Desigualdades e violências de
gênero: experiências de idosas
negras

Naylana Rute da Paixão Santos


Dóris Firmino Rabelo

No cenário brasileiro, as assimetrias (Biroli, 2018). No campo profissional,


de gênero são significativas. nota-se que a remuneração das
Segundo Flávia Biroli (2018), mulheres que desempenham as
historicamente, a figura feminina mesmas atividades que os homens
tem sido associada à submissão, ao são menores. A população feminina
trabalho doméstico, à maternidade também é sub-representada na
e ao cuidado, dificultando, portanto, política, bem como em cargos de
seu movimento para outras áreas liderança e gestão, impactando na
da vida. É importante ressaltar mobilidade social das mulheres
que o gênero não se apresenta de (Lima et al., 2021).
maneira independente de raça e
classe social, sendo estes fatores Dados do estudo realizado
interseccionais relevantes para uma pelo Centro de Pesquisa em
compreensão ampliada sobre o tema Macroeconomia das Desigualdades
(Lima et al., 2021). - MADE-SP (Nassif-Pires, Cardoso
& Oliveira, 2021) mostraram que a
A relação entre o capitalismo e extrema pobreza, que atingia 9,2%
o modelo patriarcal influencia das mulheres negras em 2019,
intensamente na forma como subiu para 12,3% em 2020, na
as mulheres são posicionadas pandemia da Covid-19. Para homens
socialmente, como um grupo brancos, essa taxa foi de 3,4% para
onerado pelo cotidiano de situações 5,5% nesse mesmo intervalo. A
onde impera a desvalorização diminuição do Auxílio Emergencial
profissional e violências que se durante a crise sanitária aumentou o
apresentam de diferentes maneiras empobrecimento da população e os

60
hiatos de gênero e raça, sobretudo doméstico e de cuidado, o que traz
pela maior vulnerabilidade impactos negativos na saúde mental
econômica das mulheres negras. e na percepção de funcionalidade
familiar (Emmel, Paganelli & Valio,
Ainda no campo das desigualdades 2015; Rabelo, Silva, Rocha, Gomes &
de gênero, é expressivo o número Araújo, 2018).
de mulheres que precisam conciliar
o trabalho remunerado com o Se estes aspectos forem pensados
trabalho doméstico. Segundo Lima no contexto da mulher negra,
et al. (2021), somando as horas a velhice deste grupo será
trabalhadas nos dois âmbitos, em significativamente marcada por
2016, o sexo feminino ultrapassou violências e racismo, os quais afetam
54 horas semanais, enquanto os a subjetividade, a autoestima e
homens trabalham em média 51,5 outras crenças pessoais desta
horas. Nota-se que o tempo que população. A heterogeneidade
as mulheres dedicam aos afazeres feminina e suas interseccionalidades
domésticos é maior, sendo elas influenciam sobremaneira nas
chefes de família ou não, ou sendo vivências estressantes, sendo a
seus companheiros ocupados ou não. população feminina, negra, pobre
e velha um grupo vulnerabilizado
É importante refletir sobre as e agudamente afetado pelas
trajetórias de desenvolvimento condições sociais e falta de amparo
das mulheres, cujas desigualdades político (Santos & Rabelo, 2022).
de gênero se apresentam desde Discutir as desigualdades de gênero,
a infância, passando pela vida as violências que alcançam o
adulta e alcançando a velhice, envelhecimento de mulheres negras,
sendo todas estas fases marcadas os efeitos psicossociais do racismo
por desigualdades sociais, raça e e a raça/cor da pele como marcador
classe que se somam, também, social importante da produção
aos preconceitos etários com das vulnerabilidades sociais e
o envelhecimento. Portanto, iniquidades no Brasil, são pautas
na velhice, se perpetuam as necessárias para se pensar a atuação
desigualdades de gênero. Mulheres na Psicologia.
idosas, que muitas vezes necessitam
ser cuidadas, dedicam-se de Neste sentido, o objetivo deste
maneira sobrecarregada ao trabalho capítulo é apresentar as violências

61
relatadas por mulheres negras uma linha do tempo, na qual eram
idosas a partir dos dados de uma situadas as idades ou períodos de
pesquisa de mestrado realizada vida onde ocorreram cada situação
entre os anos de 2018-2020 que relatada. A análise dos dados
analisou os eventos considerados ocorreu por meio da análise de
produtores de estresse por pessoas entrevistas narrativas, proposto por
idosas negras. A metodologia Schutze (2011). Os aspectos éticos
utilizada no estudo foi de em pesquisas com seres humanos
natureza descritiva e qualitativa. foram respeitados, seguindo as
Participaram do estudo nove idosas diretrizes da Resolução nº 466/12 do
autodeclaradas negras (pardas + Conselho Nacional de Saúde (CNS).
pretas, segundo critérios do IBGE), Por este motivo, as participantes
selecionadas em uma Unidade de serão aqui identificadas por nomes
Saúde de Atenção ao Idoso de um fictícios para preservação de suas
município do interior da Bahia e identidades.
escolhidas por acessibilidade. A
referida unidade integra serviços Quanto ao perfil sociodemográfico
multiprofissionais de atendimento à das nove participantes, no que se
pessoa idosa. refere ao estado civil, 1 era casada,
3 eram divorciadas, 3 eram solteiras
A entrevista narrativa foi utilizada e 2 eram viúvas. Quanto às religiões
como procedimento de coleta de a que pertenciam, 6 participantes
dados, a qual ocorreu em até dois se denominaram evangélicas,
encontros por pessoa, na própria 1 católica, 1 espírita e 1 do
unidade de saúde. O local da coleta candomblé. O grau de escolaridade
consistia em uma sala reservada, variou de analfabeto até o ensino
preservando a privacidade das médio completo. A quantidade
participantes. As entrevistas foram de filhos variou de 1 a 12 (entre
gravadas em áudio para posterior mortos e vivos). Do total de idosas,
transcrição. A fala disparadora da 5 moravam sozinhas, 1 morava com
livre narrativa das participantes o cônjuge, 2 moravam com filhos
era a solicitação de que falassem e netos e 1 morava com filhos,
sobre suas histórias de vida, da netos e genros. A renda familiar
infância até a velhice, ressaltando as variou de “sem renda” a R$3.000
situações difíceis e estressantes já reais. Do total de participantes, 6
vivenciadas. Também foi construída relataram ser responsáveis por todas

62
as despesas da casa, 2 afirmaram Segundo Manso (2019), a violência
participar de algumas despesas e conjugal - que pode se constituir
1 relatou pedir ajuda de amigos e em ameaças, ofensas, xingamentos,
familiares por não ter renda. isolamento, agressões, entre outras
manifestações -, tem sido uma das
Os resultados mostraram que as maiores causas de morbidade em
situações experimentadas pelas mulheres, afetando expressivamente
mulheres tinham em seu cerne sua saúde, e ocasionando perdas
diferentes tipos de violência e na área do desenvolvimento
desigualdades, todas confluindo pessoal, social, afetivo e econômico.
para o aspecto de gênero: violência Conforme apresentado em Silva
no âmbito conjugal (fato relatado et al. (2020), um dos elementos
por sete mulheres); a sobrecarga precipitadores ou intensificadores
com as atividades domésticas e da violência no âmbito conjugal
a criação de filhos/as de maneira em tempos de pandemia da
solitária (relatado por seis Covid-19, referiu-se à instabilidade
mulheres), e as péssimas condições econômica, que está associada a
trabalhistas (mencionado por cinco). diminuição das oportunidades de
Todas as participantes apresentaram trabalho, a falta de recursos e a
situações atravessadas pela dependência econômica feminina,
desigualdade de gênero e raça. fatores que reunidos favorecem
o desenvolvimento de ambientes
As violências no âmbito conjugal conflitivos e consequente violência
envolveram não apenas violência marital.
física (fato relatado por 1 idosa), mas
envolveram, sobretudo, violências Uma das idosas participantes,
de cunho psicológico e financeiro. num contexto em que se sentia
Quanto a este aspecto, uma das pressionada a continuar cuidando do
participantes, aqui denominada de ex-cônjuge, exclusivamente por ser
Macaúba (63 anos), afirmou sobre a mulher, relatou: “Eu acho que é mais
relação com seu ex-cônjuge: “Não tem difícil hoje viver como mulher negra,
quem aguente, me xingava demais, porque a gente é muito cobrada, e
de tudo quanto era nome, ainda desvalorizada (...) se você não tiver
ameaçava, ‘a gente não vai se separar, uma formação e não souber se impor,
se não você vai ver’, tu acredita que a gente não vai a lugar nenhum, né?
ele me ameaçava assim?”. (...)” (Macaúba, 63 anos).

63
Esta fala traduz o reflexo de um violentadas fisicamente estão mais
sistema sexista (e racista) que situa suscetíveis a adoecimentos mentais,
as negras em lugares desvalorizados, tais como depressão, estresse
requerendo esforços pessoais para agudo, além de transtornos de
a mobilidade social. Sabe-se que ansiedade. Situações como esta,
não se trata de meritocracia, mas alertam para a necessidade de
da necessidade de uma mudança ações integrais que minimizem os
contextual e política que ofereça impactos do sofrimento e sejam
outras possibilidades à essas apoiadores e fortalecedoras para
mulheres. No entanto, a violência estas mulheres (Carneiro et al.,
de gênero é tão presente que a 2019)
atitude de “ter que se impor” e
a ideia de “se a gente não tiver As desigualdades de gênero,
uma formação”, compõem o também se revelaram nas injustiças
cenário cultural onde mulheres trabalhistas, nas explorações e
em todo tempo realizam esforços cobranças de trabalho, desde a
para minimamente se sentirem infância. Junto a estas situações,
valorizadas, incluídas e aceitas. se apresentaram as restrições
financeiras, influenciando em outras
A violência física na área conjugal áreas de vida, como as dificuldades
foi mencionada pela participante (e sobrecarga) na criação de filhos/
Ipê (60 anos), que narrou sobre as as, a má nutrição, a dificuldade
agressões ao explicar seu processo para adquirir suprimentos básicos à
de divórcio: “Foi uma fase que sobrevivência.
eu tava tão desesperada que eu
não exigi nada (...) arrumou outra A participante Figueira (74 anos)
mulher, destruiu tudo. Eu fiquei discorreu sobre situações que
muito mal, porque eu apanhava ocorrem desde o início de sua
muito. Oxe, apanhei foi muito, vida adulta: “Botava currículo na
do começo ao fim, que se eu não prefeitura e ninguém me chamava.
tivesse saído, eu hoje não tava aqui Botei 8 currículos. Aí eu vivia de
falando com você”. lavagem de roupa, aí até hoje é
assim, e também cato minhas
Além das consequências físicas, latinhas”. Acrescentou que ao
a exemplo de contusões, fraturas chegar em casa, ainda administrava
e cortes, mulheres que são as questões domésticas, sentindo-se

64
bastante cansada no “corpo velho”. remunerações, nas violências em
suas diferentes manifestações.
Situação similar foi vivida por
Guabiroba que narrou sobre seu As desigualdades de gênero
cansaço ao afirmar: “Fui criando vigentes na sociedade incidem
meus filhos adolescentes sozinha. sobre a diversidade de mulheres
Ainda trabalhava no hospital de que existem, a despeito de suas
copeira à noite, né? E ele [o marido] realidades. Fatores interseccionais
doente lá em casa. E minha vida como raça/cor da pele, classe
foi essa, de muita labuta, né? (...) social, local de moradia, faixa
Era muita coisa pra mim sozinha” etária, condições físicas de saúde,
(Guabiroba, 65 anos). Ainda no que potencializam as iniquidades
tange às condições trabalhistas que já existentes. A similaridade
interferem no cotidiano de cuidado de situações vivenciadas pelas
aos familiares, Macaúba relatou: mulheres do referido estudo
“tinha pessoas que não assinavam mostrou como tais situações
minha carteira, ou assinavam e alcançam coletividades e de quão
não pagavam (...), não consegui expressivas são as narrativas
me aposentar na hora certa e isso que demonstraram as violências
acabou frustrando planos que tinha e desigualdades raciais. Esta
pra família e tudo mais”. temática é uma questão de política
pública e precisa ser pautada nos
A estrutura capitalista está associada diferentes espaços, sobretudo
ao sexismo e ao racismo. Portanto, numa perspectiva em que sejam
a organização social se estrutura criadas e fortalecidas redes de
de maneira a potencializar as apoio e proteção às mulheres que
desigualdades e garantir o controle cotidianamente vivenciam tais
da sociedade nas mãos de um grupo violações de direitos.
dominante. Além de naturalizados
o lugar da mulher como subalterna, Nesse sentido, os dados deste
submissa, e restrito a esfera estudo trazem reflexões importantes
do cuidado (Birolli, 2018), as para o exercício ético-político da
opressões também se expressam Psicologia. Os efeitos psicossociais
na superexploração do trabalho, na do racismo têm se tornado uma
violação de direitos, nas restrições preocupação para a Psicologia
de oportunidades, nas baixas brasileira (CFP, 2018), e para o

65
fortalecimento de uma agenda estrutural do racismo e do sexismo
antirracista é preciso compreender traz à agenda da Psicologia a
o significado das experiências urgência de uma abordagem que
racializadas ao longo da vida e que favoreça emancipação e agência
o estudo da raça e do racismo não para que mudanças na vida
é um tópico especial e opcional, cotidiana sejam construídas e
mas central. Para alinhar uma ocupadas por cada pessoa como
atuação profissional com as sujeito de direitos.
necessidades urgentes do Brasil,
as problematizações apresentadas
demonstram que precisamos
assumir que o envelhecimento e Referências
a velhice de mulheres negras são
marcados por diversas violências Biroli, F. (2018). Gênero e
estruturais, institucionais e desigualdades: os limites da
interpessoais que se refletem na democracia no Brasil. São Paulo:
saúde física e mental. Boitempo.

O enfrentamento das demandas Carneiro, J. B. et al. (2019). Violência


do envelhecer sendo uma mulher e conjugal: significando as expressões
negra, a exemplo das apresentadas e repercussões a partir da Grounded
neste estudo relativas à violência no Theory. Revista Latino-Americana de
âmbito conjugal, a sobrecarga com Enfermagem, 27, e3185. Disponível
as atividades domésticas e criação em: https://doi.org/10.1590/1518-
de filhos sem apoio e as péssimas 8345.3116.3185.
situações trabalhistas, precisam
ser contempladas nas ações das Conselho Federal de Psicologia-CFP.
diferentes formas de atuação (2017). Relações Raciais: Referências
na Psicologia. Também é vital Técnicas para atuação de psicólogas/
discutir criticamente as dimensões os. Brasília: CFP.
raciais e de gênero presentes
nas compreensões e projetos de Emmel, M. L. G., Paganelli, L.
cuidado psicológico, como ressaltam O., & Valio, G. T. (2015). Uso do
Elisabete Santos e Clélia Prestes tempo de um grupo de idosos
(2022). Para as autoras, a expressão do município de São Carlos (SP),

66
Brasil. Revista Kairós Gerontologia, negra. Revista Kairós-Gerontologia,
18(2), 421-442. Disponível em: 21(3), 193-215. Disponível em:
https://doi.org/10.23925/2176- http://dx.doi.org/10.23925/2176-
901X.2015v18i2p421-442. 901X.2018v21i3p193-215.

Lima, B. L. S., Barreto, E. S., Silva, Santos, E. F. & Prestes, C. R. S.


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67
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68
“Você está ficando louca?”:
gaslighting e as relações de
gênero

Cristina Pereira de Souza


Bruna Moraes Battistelli

Gregory: — Costuma cumprimentar O diálogo parece sutil, inocente,


quem não conhece? mas ilustra o objeto de estudo deste
artigo: gaslighting. Esse nome tem
Paula: — Foi sem pensar, não sei o a sua origem devido à peça teatral
porquê sorri para ele. Gaslight de 1938, traduzido como
“meia luz”, tendo duas adaptações
Gregory: — Como todas as outras para o cinema; uma em 1940 e
coisas. outra em 1944. A gênese desse
nome ocorreu devido à manipulação
Paula: — Que coisas? psicológica sistemática utilizada
pelo personagem contra sua esposa.
Gregory: — Nada, Paula. (pequena O nome é “meia luz”, visto que
pausa no diálogo...) se refere a um tipo de iluminação
da época, a gás, onde se poderia
Gregory: — Tenho notado, Paula, modificar a intensidade da luz.
que anda esquecida, ultimamente. Isso era uma das situações que
fazia parte do jogo de manipulação
Paula: — Esquecida? do marido para desestabilizar a
sua esposa, pois ele diminuía e
Gregory: — Perdendo coisas e... não aumentava e quando ela percebia,
fique preocupada. Não é nada. Você ele negava a mudança.
se cansa e...
Apesar de Gaslight ser um filme
Paula: — Deve ser isso. Cansaço. antigo, em preto e branco, dialoga

69
perfeitamente com os dias atuais. O casal tem sido observado por
Paula, interpretada pela atriz Ingrid Brian Cameron, interpretado pelo
Bergman, mudou-se de sua casa ator Joseph Cotten, um detetive da
em Londres, onde a tia, mulher que Scotland Yard que acha estranha
a cuidou desde sempre, grande algumas situações, como o fato
cantora de ópera, foi assassinada de de Gregory impedir Paula de sair
forma misteriosa. Foi Paula, ainda de casa e de afirmar que ela está
criança, quem encontrou o corpo sempre doente. A personagem
da tia já falecido. Ao fazer aulas Miss Thwaites, uma vizinha, é
de canto, ela conhece Gregory. A quem fornece as informações
primeira ação de Paula é abandonar acerca dos hábitos do casal.
as aulas para poder “viver esta Cameron tenta encontrar Paula em
paixão”, com o apoio do seu próprio particular, contudo, é impedido
professor. O romance curto do casal sempre por Gregory. Cameron
da história logo evolui para um finalmente consegue ser recebido
casamento e, assim, passam a residir por Paula. Nesse momento, ela
na casa onde ocorreu o assassinato. estava totalmente desequilibrada,
O marido Gregory, interpretado no angustiada e visivelmente
filme por Charles Boyer, aparenta ter conturbada. Paula explica várias
algo a esconder e, então, faz de tudo pequenas situações a Cameron,
para manter o segredo, mesmo que como a luz de gás no quarto
para isso, necessite enlouquecer a dela estar instável, modificando
própria esposa. constantemente a intensidade,
mas diz que quando ela sinaliza
Assim, Gregory decide que a parte tais situações, ninguém além dela
de cima da casa, onde há um sótão, nota. Logo, começa a duvidar de sua
seja fechada e explica a Paula, que própria sanidade, questionando se
fará isso para o próprio bem dela, isso não seriam alucinações. Nesta
porque foi o local onde sua tia foi mesma visita, Cameron encontra
assassinada. Desde então, Paula objetos supostamente perdidos por
começa a perder objetos e, nisso, Paula, trancados na escrivaninha
Gregory diz reiteradamente o de Gregory. Além destes artefatos,
quanto a memória prejudicada dela está uma carta que Gregory
está atrapalhando a vida do casal. aparentemente escreveu vinte anos
São vários os momentos de críticas atrás para a tia assassinada de Paula.
efetuados por Gregory a sua esposa. O mistério da história é desvendado

70
e se entende o quanto tudo aquilo que gaslighting é uma violência
foi forjado pelo Gregory para manter emocional realizada através de
o poder e controle de toda uma manipulação psicológica, na qual
situação. a mulher e todos ao seu redor
começam a desconfiar que ela
1. Afinal, o que é Gaslighting? enlouqueceu ou que é incapaz. Haja
vista, o abusador ganha poder e
Gaslighting (lê-se “guéslaitin”) controle sobre a vítima. Robin Stern
é compreendido como uma (2007), psicanalista e autora do livro
manipulação sistemática. Sendo O efeito gaslight: como identificar
considerado uma violência e sobreviver à manipulação velada
psicológica. Este tema é recorrente que os outros usam para controlar
quando se discute acerca de sua vida, ao iniciar sua obra, expõe:
relacionamentos abusivos
heterossexuais, apresentando- O Efeito Gaslight resulta de um
relacionamento entre duas pessoas:
se como uma ferramenta eficaz um gaslighter (aquele que pratica o
para deslegitimar e desqualificar gaslighting), que precisa estar certo
o que mulheres dizem e fazem. para preservar o próprio senso de
Apesar desta violência acontecer identidade e de poder no mundo; e
um gaslightee (aquele que sofre o
em relacionamentos amorosos do gaslighting), que permite ao gaslighter
homem para a mulher, ressalta-se definir seu senso de realidade porque
que o gaslighting pode vir a ocorrer o idealiza e busca sua aprovação. Todo
tipo de pessoa pode ser gaslighter
em qualquer relação socioafetiva
ou gaslightee, e o gaslighting pode
e em diferentes ambientes, não acontecer em qualquer tipo de
somente no campo amoroso. relacionamento. Mas, na maioria
Pode acontecer no ambiente das vezes, vou chamar gaslighters de
“ele” e gaslightees de “ela”, já que,
familiar, profissional, acadêmico, em minha experiência clínica, essa é a
clínico, religioso, entre outros e situação mais comum. Explorarei uma
em diferentes vinculações afetivas, variedade de relacionamentos — com
como entre namorados, mãe e amigos, familiares, chefes e colegas
—, mas o relacionamento romântico
filha, médico e paciente, etc. A entre homem e mulher será meu foco
prática constitui-se em convencer principal. (Stern, 2017, p. 23).
a vítima de que ela está agindo
de forma insana, histérica em Stern (2007) pontua o gênero como
diferentes ocasiões ao longo de um uma categoria a ser destacada,
tempo. Maíra Liguori (2015) aponta levando em conta sua prática

71
enquanto terapeuta. No cenário e o mesmo aponta o quanto a
apresentado, o praticante da pessoa está “alterada”, “histérica”,
manipulação tem o costume de “nervosa” e alega que “talvez seja
repetir exaustivamente o quanto a melhor conversar depois”. Ou seja,
pessoa imagina situações ou distorce é uma situação na qual o abusador
fatos, e, na verdade, inicialmente, costuma se colocar em uma posição
ela recorda deles nitidamente. Ao de um sujeito equilibrado e lúcido
longo do tempo, esta repetição e a vítima como “desequilibrada”,
de discursos, apontando como “mentalmente perturbada”.
a pessoa é insensata, confunde Com isso, através do uso da
fatos e costumar ter reações manipulação, inicia-se um processo
exageradas e, segundo o abusador, de dúvida de si mesma por parte
estar sempre equivocada em suas da vítima. Sentimentos como culpa
ações e pensamentos pode trazer emergem e, por fim, aquela alvo do
uma ruptura em sua autoestima e gaslighting acaba por se desculpar
confiança. por, em tese, estar pensando ou
agindo de determinado jeito. Em
Um exemplo bem ilustrativo função disso, é instaurada uma
ocorre em algumas discussões. confusão na mente da pessoa
Imagine uma discussão em que abusada, fazendo com que, o que
a pessoa está com muita certeza sofreu o gaslighting, acabe por
sobre determinado assunto e, em distorcer a noção do que é realidade
dado momento, o outro indivíduo e do que não é. A vítima parece ir
com a qual ela está conversando perdendo a autonomia, vendo o
traz elementos ou contesta a mundo com olhos de outrem.
veracidade do conteúdo expresso
por ela. Então, repentinamente, Portanto, o gaslighting consiste em
iniciam-se alguns questionamentos toda esta dinâmica manipuladora,
na mente da pessoa, tais como: inserido em um contexto em
“Será que o que estou falando é que questões afetivas estão
correto mesmo?”, “Será que estou implicadas. O gaslighting acontece
exagerando?”, “Será que isso é coisa em um processo de constante
da minha cabeça?”. Outro cenário deslegitimação por parte do
possível é quando o indivíduo abusador. O abuso costuma ser
está em uma conversa, falando no gradual e sistemático, sendo tão
mesmo tom que seu interlocutor arraigado nas dinâmicas das relações

72
que pode aparentar ser inofensivo. que fosse o estilo, os resultados
eram os mesmos. O homem assumia
Robin Stern (2007) lista uma série
o controle ao esmagar a mulher.
de sinais para a pessoa identificar Esses mesmos homens também
se está sendo vítima de gaslighting. se recusavam a assumir qualquer
Entre eles, propõe questionar se a responsabilidade pela maneira como
seus ataques faziam as parceiras se
pessoa está sempre duvidando de si sentirem. Em vez disso, culpavam
mesma. Remover a credibilidade é o as esposas ou amantes por todo e
principal objetivo de quem executa qualquer incidente desagradável.
esta violência emocional. Com isso, (Forward, Torres & Barcellos, 1998, p. 17).
o abusador traz informações falsas
a fim de ocasionar dúvida na vítima. No trecho acima, destaca-se a
O fenômeno ocorre tanto quando seguinte frase: “O homem assumia
há negação de incidentes quanto o controle ao esmagar a mulher”.
quando há a realização de eventos Isso parece ser a justificativa para
forjados por parte do agressor que o gaslighting aconteça. Há uma
com a finalidade de desorientar a necessidade de manter o controle,
vítima. Ao encontro disso, é comum o poder sobre a vítima e para
a vítima de gaslighting duvidar do tanto, diminuir esta mulher, atingir
seu comportamento, memória e sua autoestima, deslegitimando o
percepção, pois quem pratica a tempo todo parece facilitar esta
manipulação, aos poucos, começa manutenção do poder por parte
a “minar” a autoestima da pessoa. do abusador. Ele a destrói a fim de
Em seu livro, a psicóloga Susan controlar.
Forward (1998), referindo-se aos
companheiros das mulheres que “Louca!” “Surtada!” “Neurótica!”
atendia, traz: “Histérica!” “Exagerada!” “Sensível
demais!” “Não dá pra acreditar na
Como as parceiras muitas vezes os sua memória!” “Cadê seu senso de
descreviam, eram encantadores e até humor?” é difícil imaginar mulheres
amorosos, mas também capazes de que nunca tenham sido alvo de
assumir um comportamento cruel,
crítico e insultuoso, de um momento
uma destas frases. Pelo simples fato
para o outro. O comportamento de emitir uma opinião ou mesmo
dos homens estendia-se por um de comportar-se de determinada
amplo espectro, da intimidação e forma. A violência psicológica, às
ameaça óbvias a ataques mais sutis e
disfarçados, sob a forma de constantes vezes, pode aparentar sutileza,
afrontas ou críticas erosivas. Qualquer mas é corrosiva. Aos poucos,

73
destrói a autoestima, confunde violência contra as mulheres pode
os pensamentos, fazendo surgir se esconder em gestos sutis do
questionamentos sobre sua própria cotidiano, na fala, inclusive, de uma/
sanidade e causando danos à saúde um profissional de nossa categoria
mental da vítima. que não consegue legitimar aquilo
que é trazido como questão por
2. Por que este tema interessa à uma paciente/usuária à sua frente.
Psicologia? Nas políticas públicas, quantas
foram as vezes em que uma mulher
Você, colega de profissão, já parou tem sua história e sua demanda
para pensar que esse tema te deslegitimadas no encontro com
interessa para além do consultório um/uma profissional de nossa
ou do cotidiano do serviço em que área que a toma como exagerada?
trabalha? Um tema como esse pode Reconhecer a importância de um
estar afetando, inclusive, inúmeras conceito como gaslighting para o
de nossas colegas de profissão em trabalho com mulheres é ampliar
seus relacionamentos pessoais. nossas análises sobre o que é
Desta forma, faz-se urgente que violência de gênero, como ela
possamos em nossas produções se manifesta e quais efeitos são
pensar como esses processos se dão, possíveis observar.
quais os efeitos que produzem e
como podemos construir estratégias Mesmo que os referenciais teóricos
de enfrentamento em busca da sobre o tema apontem que esse
garantia à vida e a produção de é um fenômeno mais comum
saúde mental de mulheres. de ocorrer em relacionamentos
afetivos, salientamos a importância
Este texto tem como ponto de de ampliarmos nossos olhares para
partida o Trabalho de Conclusão de as relações de gênero em nossa
Curso da primeira autora9, tendo sociedade e os atravessamentos
como objetivo pensar em como de raça e classe que também
o conceito de gaslighting pode compõem o cenário de trabalho
ajudar profissionais da Psicologia na clínica ou nos atendimentos nos
no trabalho de acolhimento, serviços das diferentes políticas
escuta e cuidado com mulheres. A públicas. Mulheres dependendo de

9
Gaslighting: “você está ficando louca?” as relações afetivas e a construção das relações de gênero,
disponível em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/179502.

74
suas posicionalidades no mundo Referências
(se são mulheres trans, lésbicas,
negras, pobres, mães, etc.) acabam Cukor, G. (Direção). Druten, J. V.
se tornando vulneráveis à um (Roteiro), Reisch, W. (Roteiro),
infinito número de violências: Balderston, L. J. (roteiro). 1944.
físicas, financeiras ou psicológicas. Gaslight [Filme]. EUA: Ralph E.
O gaslighting, desta forma, precisa Winters.
ser estudado e aprofundado
por quem se propõe a escutar Forward, S., Torres, J. & Barcellos,
mulheres. Trabalhadoras da A. (1998). Homens que odeiam suas
Psicologia não estão livres de serem mulheres & as mulheres que os
enredadas nessa trama enquanto amam. Rio de Janeiro, RJ. Rocco.
escutadoras, assim como, em seus
próprios relacionamentos afetivos: Liguori, M. (2015). O machismo
precisamos encarar a realidade também mora nos detalhes. Think
e afirmar o corpo encarnado da Olga. Disponível em: https://
psicóloga que também pode ser www.geledes.org.br/o-machismo-
vítima violência de gênero em suas tambem-mora-nos-detalhes/.
relações.
Souza, C. P. DE. (2017). Gaslighting:
Assim, quando apresentamos o “você está ficando louca?” as
conceito, fazemos o convite para relações afetivas e a construção das
que nossa categoria, formada relações de gênero. Trabalho de
majoritariamente por mulheres, Conclusão de Curso, Universidade
perceba que a violência é mais sutil Federal do Rio Grande do Sul,
do que imaginamos e mais próxima Porto Alegre, RS. Disponível
do que gostaríamos que fosse. em: https://lume.ufrgs.br/
As múltiplas formas de violência handle/10183/179502.
psicológica que acometem mulheres
em relacionamentos familiares Stern, R. (2007). O Efeito Gaslight:
e afetivos precisa ser divulgada, Como Identificar e Sobreviver
estudada e pensada para que à Manipulação Velada que os
possamos construir instrumentos de Outros Usam para Controlar sua
acolhimento mais eficientes em seus Vida (Wendy Campos Trad.) Rio de
propósitos. Janeiro: Alta Books. Alta Life, 2019.

75
A guerra tem rosto de mulher?

Manueli Tomasi
Isabela Bressan Prux
Lívia R. Fernandes
Sabrina Cerchiari
Ana Claudia Anesi Palermo Gíria

“Sonhávamos… Queríamos lutar na


guerra…”. Nonna Aleksándrovna Smirnova,
soldado, operadora de artilharia antiaérea
(Svetlana Aleksiévitch, 2016, p. 71).

“Os homens usavam, as mulheres não. Os


homens eram vencedores, heróis, noivos,
a guerra era deles; já para nós, olhavam
com outros olhos. Era completamente
diferente… Vou lhe dizer, tomaram a vitória
de nós. (...)Nos condecoravam com umas
medalhas pequenas…”. Valentina Pavlovna,
Sargenta, Comandante de Canhão Antiaéreo
(Aleksiévitch, 2016, p. 106).

Em março de 2022 o mundo foi afetos e resistências nos contextos


cientificado dos atuais conflitos de guerras. Afinal, a Guerra tem
militares entre a Rússia e a rosto de Mulher? O título do
Ucrânia, cujas causas são bastante presente trabalho, que lança um
profundas e se perpetuam desde questionamento, é inspirado na obra
1991, quando findou a União de Svetlana Aleksiévitch, jornalista
Soviética. Diante deste contexto, ucraniana que ganhou o Nobel
pretende-se refletir sobre as de Literatura em 2015 ao trazer
representações e estereótipos narrativas de mulheres que lutaram
da guerra direta e estritamente no Exército Vermelho (russo) contra
vinculados às representações de as tropas nazistas na Segunda
gênero, bem como pensar sobre o Guerra Mundial.
lugar dos corpos femininos, seus

76
O silenciamento das mulheres é uma que pairam sobre a sociedade,
condição imposta historicamente, como: “elementos de poder
uma forma de violência e de desigual, homens e mulheres, pais e
controle dos corpos femininos filhos” (Freud, 2010, p. 422).
nos espaços públicos. Através
de diferentes mecanismos, o Finalmente, Freud (2010) aponta
silenciamento se perpetua em que, para um movimento de
diversas áreas, desde as violências superação de um contexto de
sofridas pelas mulheres (como guerra, é preciso um “acordo
estupro e violência doméstica) humano universal”, em que
até mesmo quando os eventos houvesse a união dos homens em
são narrados exclusivamente por uma instituição de poder central.
homens, sendo as guerras sinônimo Para ele, somente com uma fissura
de masculinidade, luta, honra e na estrutura hierárquica de poder,
glória (Menegotto, 2018). se sairia do risco iminente da guerra.
Entretanto, quase cem anos após,
Sigmund Freud em seu célebre (re)vive-se a mesma problemática,
texto “Por que a Guerra?”, redigido e ainda se analisa que, no próprio
em resposta à pergunta que Albert contexto de guerra, são atualizadas
Einstein o dirigiu no ano de 1932, e reforçadas as relações de poder,
em que o mundo vivia a Grande principalmente em relação ao
Guerra, desliza sobre a temática, gênero feminino.
apontando para questões sociais
importantes acerca do fenômeno. O olhar que Svetlana Aleksiévitch
Freud explana de forma breve sobre (2016) explora em suas entrevistas
sua Teoria Pulsional, sugerindo que lança a reflexão sobre a memória
há no ser humano um “instinto” feminina da guerra e os seus
de ódio e destruição, do qual as significados para a mulher,
inúmeras passagens históricas atribuindo ao momento como de
podem confirmar a existência de muitas mortes, ódio e sofrimento.
tal força. No contexto de Guerra, Este outro lado desconstrói o único
isto é colocado em jogo de maneira ponto de vista ainda evidenciado
ostensiva (Freud, 2010). Para além sobre as guerras. Enquanto
de tais forças mortíferas, sugere sociedade ainda patriarcal e
ainda que o que estrutura a guerra machista, as masculinidades se
são também as relações de poder encobrem, cultivando a violência

77
e engrandecendo as guerras, guerras, as mulheres também foram
dignificando a morte como obrigadas a se engajar no esforço
resultante da conquista do poder e de guerra nacional. Elas geralmente
sinônimo de força. transitam entre espaços de
disputas públicas, conflito armado e
É desta forma que habitualmente domesticidade, sendo referência ao
se constroem estereótipos que cuidado direto da própria casa ou de
trazem a ideia de que a guerra familiares, seja em uma espécie de
é primordialmente masculina, espaço doméstico refeito nas frentes
travada por homens (Chaguri & que envolvem cuidar dos feridos,
Paniz, 2019). Vera Iconelli (2022) produzir alimentos, organizar
reflete que as masculinidades arsenais, documentos, uniformes
são construídas pelo conjunto (Chaguri & Paniz, 2019).
de pressupostos associados aos
homens, variando em cada tempo No Brasil, dados dos documentos
e lugar, sendo que, atualmente, oficiais da Guerra do Paraguai
entende-se masculinidade como a relatam a presença de mulheres
capacidade de portar fuzis. Estes pobres que se detinham a
fuzis, recebidos como um símbolo acompanhar seus familiares nos
do masculino, sancionam a fantasia campos de batalha, ou que, vivendo
do falo pertencente ao portador nas áreas de combate, juntavam-
do pênis, colocando os homens se às barracas para trabalharem
no centro dos conflitos e disputas como enfermeiras, cozinheiras
atuais por elementos como riqueza ou lavadeiras (Castilho & Garcia,
e dominação. Neste cenário, retira- 2020). Na Guerra do Vietnã (1954-
se a mulher da possibilidade de 1975), o ativismo das mulheres foi
ocupar lugar nas decisões sobre os representativo e sustentou diversas
rumos políticos das sociedades. mobilizações; a mulher criava,
alimentava e vestia as pessoas,
No entanto, pode-se ver uma principalmente os homens das
convergência e contradição dos frentes. Apesar das atividades ainda
papéis construídos em relação caracterizadas por papéis de gênero
ao gênero e as associações entre associados ao cuidado, um número
o “feminino” e o “cuidado” e significativo de mulheres também
a separação entre as esferas participou do combate. Observa-se
doméstica e pública. Durante as que as mulheres vietnamitas tinham

78
três responsabilidades durante o regras, normas, entre outros.
período de guerra: lutar, produzir e Neste sentido, entende-se que
cuidar (Chaguri & Paniz, 2019). diferentemente do que por muito
tempo foi conhecido e determinado,
Constantemente observada, a está vinculado a todas as relações
tentativa de divisão sexual de que são constituídas pela sociedade
trabalho, identificada também, (Pereira & Filho, 2008).
em diversos contextos de guerra,
estereotipando papéis femininos, Desde a década de 70, o termo
por vezes, se apoia em um gênero vem sendo conectado
determinismo biológico, como uma diretamente a conceitos de classe
forma de naturalizar essa divisão e raça, trazendo que a concepção
(Martins, 2011). Porém, sabe-se das categorias não pode ser
que o conceito de gênero deve ser analisada de forma isolada, visto
abordado através da concepção que a sociedade é estruturada
de relações entre feminino e em uma perspectiva hegemônica
masculino, identificando-o como com bases patriarcais, coloniais e
uma construção social, cultural racistas, que faz das mulheres uma
e histórica, originado sobre as população silenciada (Monteiro,
diferenças sexuais, diretamente 2021). Compreendido como uma
ligadas a relações de poder construção social da diferença
(Perrot, 1995). O gênero compõe sexual, iniciam-se evoluções nos
construções sociais, que englobam movimentos feministas, e noções
encadeamentos de poder entre como a visão de mundo em que
homens e mulheres (Candau, 2008). o cuidado, o sentimento e a
compaixão são representados por
O que alguns autores observam é feminilidades restritas e limitadas,
que estas construções se modificam passam a ser questionadas (Martins,
em diferentes sociedades e culturas, 2015). Estudos observam a
e, até mesmo dentro de uma única disparidade em relação ao tempo e
sociedade, não são fixas (Lago, as posições ocupadas por homens e
Toneli, Beiras, Vassori & Müller, mulheres, levando em consideração
2008). O conceito de gênero abrange a responsabilidade sobre tarefas
diversas categorias, como valores, domésticas e o cuidado com filhos
identidade, comportamentos, (Biroli, 2015; Martins, 2015).

79
Dentre as diversas problemáticas restrição da mobilidade, dificuldades
relacionadas às construções de financeiras, distanciamento dos
gênero, deve-se lembrar ser familiares, medo de contágio pelo
inequívoco que as práticas de vírus (Chagas et al., 2022).
violência contra a mulher e o
feminino, dentro da prerrogativa Corroborando com este recorte
dos estereótipos de cuidado e regional, o ‘Atlas da violência
submissão, são utilizadas como 2021’ informa que em 2019, no
instrumentos de poder pela Brasil, foram registrados 1.246
força, dominação e controle dos homicídios de mulheres nas
corpos. Fatos que ficam ainda mais residências, representando 33,3%
evidenciados nos contextos de do total de mortes violentas de
conflitos armados e, inclusive, de mulheres registradas. Aponta ainda
isolamento social, como pôde ser que, enquanto os homicídios de
observado no período recente da mulheres nas residências cresceram
pandemia do Coronavírus (Chagas, 10,6% entre 2009 e 2019, houve
Oliveira & Macena, 2022; Koshulko redução de 20,6% nos assassinatos
& Dluhopolskyi, 2022). fora das residências, no mesmo
período, indicativo provável de um
Em estudo publicado neste ano no crescimento da violência doméstica
estado do Ceará, apontou-se que na (IPEA, 2021). Essa realidade
região houve um aumento no total demonstra a perpetuação de uma
geral de homicídios e feminicídios sociedade que reflete uma cultura
em 2020 se comparado a 2019 que não é somente machista, de
(óbitos a cada 100 mil habitantes dominação sobre as mulheres, mas
mulheres: 5,0 em 2019 e 7,1 no ódio pelas mulheres (misoginia).
em 2020) (Chagas et al., 2022).
A pesquisa atribuiu à situação Este cenário é ainda mais
pandêmica uma ampliação na reforçado ao abordar contextos
vulnerabilidade das mulheres devido de guerra, onde a força e o poder
à necessidade de isolamento social masculinizados estão em maior
e reclusão aos lares, colocando-as evidência. Entre as inúmeras
em convívio mais direto com os violações de direitos humanos
parceiros agressores, sugerindo identificadas nas guerras, estes
que fatores característicos do conflitos, também, são marcados
período os encorajaram, tais como a por diversas formas de violência

80
contra as mulheres (Silva, fortemente se presentificado.
2011). Agressões físicas, assédio Mulheres permanecem sendo alvos
sexual, estupro, nudez forçada, de diversas formas de violências,
rapto, restrições de cidadania, justificadas pela ideia retrógrada de
subordinação, humilhação, serem “fracas e indefesas”. Mesmo
aprisionamento, tortura, com o passar do século, repetem-
prostituição forçada, são algumas se conflitos que se contrapõem
das violações representadas em aos direitos humanos, que
estudos históricos sobre a presença oprimem e destroem civilizações,
das mulheres em contextos de orientados pela busca de poder.
guerra (Segato, 2016). Porém, este poder que novamente
assujeita as mulheres, colocando-
Identifica-se que, no caso da as em posição de domínio sobre
recorrência de episódios históricos seus corpos e suas mentes, tem
de violência sexual contra mulheres, motivado o início de resistências.
não é possível afirmar que haja Em busca da proteção de seu país,
um atrelamento com a satisfação da liberdade e principalmente dos
sexual de homens, mas sim, com direitos humanos e das mulheres,
uma satisfação de poder masculino resistências armadas e desarmadas
sobre o corpo das mulheres (Segato, são organizadas pelas mulheres
2016). Em cenários de guerra, onde na Ucrânia. Mesmo que, por vezes
o poder se manifesta também sob subestimadas, essas resistências
o domínio dos corpos femininos, constituem um importante marco
identifica-se uma naturalização de mudança de estereótipos e
da violência, como algo inevitável modelos de gênero no Exército e
e até mesmo despreocupante na sociedade em geral (Koshulko &
(Schmidt, 2008). Essas violações são Dluhopolskyi, 2022).
identificadas como armas de guerra,
pois são reforçadas deliberadamente Na reflexão desenvolvida ao longo
com a eficácia de conflitos armados, deste texto, encontram-se duas
entendidos estritamente por esferas importantes da participação
relações de poder (Almeida, 2021). expressiva das mulheres durante
as guerras: um que denota a
No cenário de guerra atual, entre realidade do percurso de papéis
Rússia e Ucrânia, as violações femininos ao longo da história,
identificadas no passado têm abrangendo não somente o cuidado

81
com os filhos e com as casas, como aos corpos femininos. É desta
também uma ativa participação em forma, que se reproduz diferentes
conflitos, até então, considerados formas de violências, invisibilizando
“masculinos”; e o outro, como uma e subestimando as existências e os
tentativa de apropriação desses tipos de resistências das mulheres.
papéis femininos, colocando-os
em posições exclusivas de cuidado É um dever ético e político do
e compaixão. Essa ambiguidade fazer a Psicologia compreender
de contextos, implica em esses processos históricos, sociais
condições diferentes e injustas e e políticos acerca dos tipos de
a desvalorização nas relações de resistência e de tudo que insiste em
trabalho, assim como o aumento ir contra a liberdade e os direitos das
da violência e misoginia. A mulheres. Assumir um olhar a partir
compreensão sobre a influência desse ponto de vista das mulheres e
cultural nas relações humanas, suas resistências e existências não é
possibilita mudanças em visões de mostrar como elas enfrentam aquilo
mundo estritas e limitadas. que as ameaça, mas, ao enfrentar
tais ameaças, como elas reinventam
Destaca-se a importância de ampliar outra forma de ocupar seus espaços
a visão sobre a participação e a e mudar para melhorar suas vidas
resistência das mulheres na guerra e a situação de seus filhos, famílias,
no intuito de dar voz e vez para as países e sociedades.
desconstruções de estereótipos
de gênero. Como diz Chimamanda
Ngozi Adichie (2009), em “o perigo
da história única”, ao compreender Referências
os modos de vidas a partir de uma
única fonte de influência, de uma Adichie C. (2009). The danger of a
única forma de se contar histórias single story. TED. Vídeo: 19:16 min.
sob a perspectiva tradicional da Disponível em: https://www.youtube.
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Quando se trata dos assuntos de
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82
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feminina da guerra: Svetlana Editorial.

84
Eixo II
Falar do mundo,
escutar em bando
Falar para sobreviver

Alexandra Garcia Grigorieff Nüske

“Se falo é porque sou testemunha dos


efeitos do patriarcado em nós. Não há
feminista solitária, andamos sempre em
bando, pois precisamos umas das outras
para criar o que ainda não foi pronunciável”
(Diniz & Gebara, 2022, p. 245).

Escutar mulheres em situação Segurança Pública, 2021). Esses


de violência remete ao paradoxo dados alarmantes revelam a
de, por um lado, suportar a assustadora gravidade da misoginia
impotência da clínica diante de existente nessa sociedade, mas não
constantes ameaças à vida, mas surpreendem, na medida em que
por outro lado, tentar ajudá-las a se trata de um país onde impera
encontrar anteparos subjetivos para o discurso patriarcal machista e
sobreviver psíquica e fisicamente. racista, que naturaliza violências e
O Brasil ocupa, segundo o Anuário formas de poder.
Brasileiro de Segurança Pública
(2021), o 5º lugar no ranking Por meio deste escrito, busco
mundial de feminicídios, de forma compartilhar reflexões e impasses
que, em média, pelo menos três advindos da minha escuta, no
feminicídios são registrados por Projeto Gradiva10, de mulheres em
dia, o que significa que uma situação de violência. A experiência
mulher é assassinada a cada 7 clínica em um projeto social
horas no território brasileiro. Dos evidencia a inegável complexidade
1.350 feminicídios cometidos em da violência de gênero, que é
2021, 61% foi contra mulheres necessariamente incrementada
negras (Anuário Brasileiro de quando dirigida àquelas que sofrem,
10
Projeto Gradiva – Atendimento clínico psicanalítico para mulheres em situação de violência é um
projeto social composto por mulheres psicanalistas que se propõem a escutar todas aquelas que se
identificam como mulheres e que estejam em sofrimento psíquico decorrente de violências de gênero, e
que além disso, por condição socioeconômica, não têm acesso a tratamentos na esfera privada.

86
também, discriminação por raça e por instituições que deveriam
e classe. Trata-se, portanto, de protegê-la, como a polícia e/ou o
um cruzamento de agressões que Poder Judiciário. Escuto, no Projeto
se sobrepõem, denunciando a Gradiva, analisandas que, mesmo
urgência de ações que considerem com medida protetiva em vigência,
como ponto de partida debates e são agredidas, ameaçadas e/ou
intervenções sobre o machismo, o perseguidas por ex-companheiros.
racismo e a desigualdade social que Me deparo com histórias de
estruturam o Brasil. mulheres negras que, na audiência,
após denúncia de agressões,
Machismo e racismo, como bem foram mais uma vez violentadas
sustenta Grada Kilomba (2020), e humilhadas, desta vez pelos
são discursivos, ou seja, operam representantes do poder judiciário.
através de palavras e imagens, Escuto, ainda, casos em que a
que se repetem e se encadeiam, mulher, ao acionar a polícia durante
constituindo a narrativa do uma agressão, é negligenciada.
homem branco, que é autorizado e Mesmo ferida por seu agressor, ela
respaldado pela sociedade patriarcal é levada à delegacia, pela mesma
para usufruir de privilégios e instância para a qual havia pedido
posições de poder. Dessa forma, o ajuda, para prestar esclarecimentos.
mundo é regido por uma perspectiva Ou seja, é colocada sob suspeita,
única – branca e masculina – que, justamente quando deveria estar
através da arte, da literatura, da sendo amparada. Uma inversão
ciência, da filosofia e de tantas lógica como essa nos obriga a refletir
disciplinas, foi construída para sobre o quanto o Estado protege e
justificar preconceitos (Kilomba, promove a violência de gênero.
2020).
É de uma evidência impactante,
Neste sentido, o corpo negro é o desamparo e a desesperança
considerado um corpo público, aos quais essas mulheres são
matável e assujeitado a todas as cotidianamente submetidas.
formas de violência. A mulher A omissão de instituições, leis
preta, portanto, corre um risco e medidas que se propõem a
ainda maior de, em muitas vezes, proteger as vítimas colabora para
ser discriminada pelo próprio
companheiro, por pessoas próximas

87
o sentimento de onipotência e são amparadas pelo Auxílio Brasil
impunidade do agressor. De acordo (antigo Bolsa Família) e, precisam
com Elsa Dorlin (2020), quando atender o sustento de filhos e buscar
o Estado é o principal instigador pensão alimentícia em um sistema
da desigualdade, desvela-se que judiciário que costuma ser lento,
é ele mesmo que arma aqueles além de rotineiramente não garantir
que matam mulheres. Neste o cumprimento da obrigação
sentido, é explícita a sobreposição alimentar. Nesta perspectiva, Lelia
de crueldades presentes nesse Gonzales (2020) destaca que ser
sistema, no qual fica exposto um mulher, negra e pobre envolve um
pacto machista-racista para que constante empreendimento de
as mulheres ocupem um lugar estratégias de sobrevivência.
de medo, solidão e insegurança.
De onde podemos deduzir que O cenário de fome no Brasil, que
toda estrutura de Estado, em sua teve um aumento significativo com
dimensão política, é essencialmente o governo Bolsonaro, associado
patriarcal. à pandemia do Covid-19, faz
com que quem está na base
A violência de classe é mais um da pirâmide social, ou seja, a
elemento que compõe o aumento mulher negra e periférica, sofra
do sofrimento das mulheres. Muitas as piores consequências. Essa,
vezes, uma mulher permanece em definitivamente, não é uma
uma relação abusiva por depender preocupação do governo atual,
financeiramente do parceiro. A no qual o orçamento de combate
realidade ainda é mais delicada à violência contra a mulher caiu
quando ela tem filhos menores de ao menor patamar dos últimos
idade. No Projeto Gradiva, escuto anos (Instituto de Estudos
mulheres que com frequência Socioeconômicos, 2022). A cientista
se submetem às agressões do política francesa Françoise Vergès
companheiro pelo medo da fome, (2021, p.11) afirma que:
já que, em muitas situações, elas
renunciam ao labor para cuidar dos Nesses últimos anos, o patriarcado
neoconservador e neoliberal, que foi
filhos, o que é, em muitos casos, encarnado por diversos chefes de
mais uma forma de abuso imposta Estado (Donald Trump, Jair Bolsonaro,
pelo parceiro. Em outros casos, Matteo Salvini etc.), impôs recuos
as analisandas já se divorciaram, drásticos aos direitos das mulheres
tanto no âmbito pessoal como no

88
mundo do trabalho, ele sustenta e em pilares estruturais da sociedade.
encoraja o ódio contra minorias.
Contudo, o espaço de escuta tem
potência para fazer testemunho, e
Destaco a complexidade desse com isso, produzir transformações
cenário, no qual o homem, no modo como cada uma dessas
legitimado pelo sistema capitalista mulheres se posiciona diante
neoliberal, sente-se autorizado, desse contexto. E uma vez que a
à vontade para agredir e matar. situação clínica as leva a ressignificar
Os fatos e dados marcam um sua história através de suas
campo que parece sem saída, sem narrativas, elas criam estratégias
esperança, sem futuro. Porém, o de sobrevivência para que o novo
trabalho psicanalítico com essas possa advir. Neste sentido, o efeito
mulheres adota sentido contrário, psicanalítico ocorre apenas se
quando a analisanda identifica, o contexto social da mulher for
reconhece e se apropria novamente considerado.
de sua palavra, que ali é totalmente
validada. Além da importância da intervenção
clínica com as analisandas, é
Oferecer escuta a mulheres que fundamental esse fazer ser
há muito falam, mas que não sustentado em equipe. A fim de
apenas não são escutadas como suportar na escuta aquilo que
também são silenciadas, é fazer é da ordem da destruição, para
resistência ao sistema patriarcal, além da análise e da supervisão,
que atua na perpetuação da o diálogo entre colegas se coloca
violência contra elas. Neste sentido, como espaço para reflexões acerca
o Projeto Gradiva se apresenta das especificidades dessa clínica e
como um espaço para dar acesso de alerta para o risco de captura e
à psicanálise àquelas que não têm fascínio. Destaco a relevância que se
condições financeiras de sustentar coloca de, ao testemunhar, também
um tratamento na esfera privada. ter testemunhas, na medida em que
Escutá-las atravessadas pela a subversão passa, necessariamente,
intersecção de gênero, de raça e de pela linguagem. Nessa perspectiva,
classe aponta para impasses que a experiência de trabalho em equipe
revelam que a palavra pode não dar confirma que para transformar a
conta de transformar a realidade lógica patriarcal é necessário estar
de destruição, que está ancorada em bando.

89
Finalizo com uma poesia de Lilian Referências
Rocha (2018), que se coloca como
oxigênio para resistirmos. Anuário Brasileiro de Segurança
Pública. (2021). Violência doméstica
Nossos olhos e sexual. Disponível em: https://
um grito ecoa na noite forumseguranca.org.br/wp-content/
milhares de vozes uploads/2021/07/anuario-2021-
silenciadas completo-v6-bx.pdf.
um tiro, dois tiros... seis tiros
um soco no estômago Diniz, D., & Gebara, I. (2022).
um vômito que vem com raiva Esperança Feminista. Rio de Janeiro:
com medo, com desesperança. Rosa dos Tempos.
mais uma de nós abatida
feito caça, Dorlin, E. (2020). Autodefesa: uma
feito bicho. filosofia da violência. São Paulo:
nossos olhos Crocodilo Edições/Ubu Editora.
estão cheios d’água
o nosso espelho Gonzales, L. (2020). Por um
foi estilhaçado feminismo afro-latino-americano:
as vozes presas ensaios, intervenções e diálogos. Rio
no desespero de Janeiro: Zahar.
da verdade nua e crua
se dão conta Instituto de Estudos
que a carne mais barata Socioeconômicos. (2022).
continua sendo a da mulher Orçamento para combater a
negra, periférica, lésbica, violência contra a mulher em 2022
militante. é o menor dos últimos 4 anos.
chega de barbárie! Disponível em: https://www.inesc.
nossos olhos estão cheios de org.br/orcamento-para-combater-a-
sangue. violencia-contra-a-mulher-em-2022-
que a seiva e-o-menor-dos-ultimos-4-anos/.
do pulsar da Vida
multiplique Marielles em todos Kilomba, G. (2020, novembro
os cantos 19). Conversa sobre Memórias
a mão erguida é só o começo de Plantação. [Arquivo de vídeo].
da batalha Disponível em: https://www.
que será vencida! youtube.com/watch?v=2ez7e-JtgoA.
90
Rocha, L. (2018). Menina de Tranças.
Porto Alegre: Taverna.

Vergès, F. (2021). Uma teoria


feminista da violência. São Paulo:
Ubu Editora.

91
Entre mulheres: tempos
da escuta de uma “clínica
feminista na perspectiva da
interseccionalidade”
Marília Spinelli Jacoby Cunda
Simone Mainieri Paulon
Raysha Thereza Nery
Vanessa Felix dos Santos

Este texto busca partilhar uma A Clínica Feminista na perspectiva


história: o percurso trilhado até da Intersecionalidade ou CliFI
aqui pelo programa de extensão (como carinhosamente passamos
“Clínica Feminista na perspectiva a referi-la) iniciou-se ao final do
da Interseccionalidade” da ano de 2019, na afirmação de
Universidade Federal do Rio Grande uma parceria de trabalho entre
do Sul (UFRGS) - e o coletivo dois segmentos do Instituto de
nele ancorado que, há mais de Psicologia da UFRGS - o Programa
dois anos, vem sustentando um de Pós-Graduação em Psicologia
trabalho junto às mulheres da Social e Institucional (PPGPSI) e a
região metropolitana de Porto Clínica de Atendimento Psicológico.
Alegre, no Rio Grande do Sul (RS), Esta aliança pretendia responder a
na perspectiva do enfrentamento demandas de organizações sociais
às violências relacionadas ao relativas à formação e investigação
gênero. Tencionamos resgatar a no campo das violências de
trajetória pela qual assentamos uma gênero e à qualificação da rede de
metodologia específica de trabalho atendimento às mulheres, sob o
com as mulheres - os grupos de prisma da interseccionalidade.
escuta on-line - e os interrogantes
daí advindos, em especial, o recente Tais demandas apontavam as
impacto do atravessamento da fome urgências de um tempo que viria
e da vulnerabilidade social nestes convocar a proposta de uma
espaços. clínica afirmativamente feminista
92
e antirracista, poucos meses após Passamos do movimento inicial de
o início de nossas atividades, pelo pensar uma intervenção possível
acontecimento social da pandemia no contexto das violências de
do Sars-Cov2. O programa viu-se, gênero - uma demanda crescente no
então, interpelado a uma atuação cenário brasileiro -, para a criação
mais direta na escuta ao sofrimento de um campo de análises a respeito
psíquico de mulheres em situação da Psicologia que praticamos,
de vulnerabilidade associada a em diálogo com outras áreas de
violências de gênero. conhecimento. Atualmente, o
programa integra profissionais de
O que moveu um grupo de distintas formações de origem,
psicólogas à criação deste além da Psicologia: Enfermagem,
espaço, no âmbito da extensão Saúde Coletiva, Políticas Públicas,
acadêmica, bem como o que nos Fisioterapia, Nutrição e Serviço
impulsionou ao exercício de uma Social. Esta ampliação de olhares,
clínica feminista, é a afirmação na medida em que o coletivo
da potência dos encontros entre de trabalho crescia de forma
mulheres. Potência esta que crescia diversa, fez-se fundamental para a
no contraponto às exigências proposição de uma escuta articulada
de isolamento impostas pela a uma ética feminista, atenta aos
pandemia, acenando à força que o marcadores sociais de raça, classe
exercício de solidariedade e trocas e gênero. Esses dois deslocamentos
afetivas entre mulheres contém iniciais do programa conduziram-
- no sentido mesmo apontado nos a um terceiro movimento, no
pelo conceito de sororidade - do qual nos encontramos no momento
latim sóror, que significa “irmãs”. de escrita deste texto, em maio
Sentido, aliás, destacado por bell de 2022: quando a Psicologia se
hooks (2020b, p. 38) como força vê interpelada pela concretude da
propulsora de mudanças, pois fome.
“estamos precisando tanto da
renovação do comprometimento Tencionamos compartilhar as
com a solidariedade política entre estratégias e impasses do processo
mulheres quanto precisávamos de constituição de uma clínica
quando o movimento feminista estruturada sob a ética feminista na
contemporâneo começou”. perspectiva da interseccionalidade,

93
em três tempos: a universidade uma convocação: faz-se preciso
na escuta dos movimentos sociais; afinar nossos sentidos e preparar
a escuta entre/para mulheres não somente nossas ferramentas
e o imperativo da fome que se teórico-conceituais, mas também
faz escutar. Não se tratam de nossos corpos, para acolher
movimentos sequenciais ou mulheres em situação de violência.
lineares, mas de linhas de força que
produziram inflexões à escuta do Provocação equivalente nos
sofrimento psíquico das mulheres chegou à universidade, de forma
em situação de violência, e que aqui curiosamente concomitante, através
serão partilhadas por seu caráter das três frentes que compõem o
de interrogação a uma Psicologia tripé do trabalho acadêmico. A
alinhada às exigências de seu frente do ensino e da pesquisa
tempo. esteve situada na ampliação
das articulações entre estudos
1. A universidade escuta os feministas e o campo da saúde
movimentos sociais mental, a partir de pós-graduandas
querendo qualificar suas práticas
O feminismo precisa de escutadeiras, estas (algumas na rede pública, pela via
personagens capazes de escancarar dez
vezes os sentidos para abrir os portões da da pesquisa-intervenção, que marca
pedagogia feminista. nossas trajetórias de trabalho junto
(Débora Diniz e Ivone Gebara, 2022) ao PPGPSI-UFRGS). E a extensão, por
seu turno, se fez presente a partir
No recente diálogo acerca dos da crescente demanda percebida na
verbos que compõem a “Esperança Clínica-Escola para assistência direta
Feminista”, Débora Diniz e Ivone a mulheres vulnerabilizadas por
Gebara (2022, p. 15) propõem uma múltiplas violências sofridas.
questão que parece ressoar a cada
encontro em que mulheres da CliFI Duas parcerias com organizações
compartilham suas dores e inventam feministas atuantes na capital
jeitos de fazê-las doer menos: gaúcha foram decisivas para fazer
“Como estranhar o patriarcado convergir esses movimentos,
que cerra os portões da escuta levando à estruturação da CliFI:
para outras formas de vivência dos a Casa de Referência Mulheres
corpos?”. A provocação lançada Mirabal e a THEMIS – Gênero,
pelas escritoras nos alcança como Justiça e Direitos Humanos. A

94
primeira, uma ocupação coordenada do Brasil, já vinha precarizada.
pelo movimento de mulheres Olga
Benário, no vácuo das políticas de Quando, dois anos depois da
moradia e assistência a mulheres criação do Programa, vivenciamos
que sofrem violência; e a segunda, o primeiro encontro on-line
uma organização não governamental intergrupos, as mais de 40
com destacada atuação, há quase (quarenta) mulheres que se
30 anos, no enfrentamento à sentiram convidadas a trazer seus
discriminação contra mulheres no testemunhos em uma roda de
sistema de justiça. Uma mesma conversa pública, compartilharam
urgência “forçando” os portões da a compreensão visceral de um
universidade pública: as mulheres feminismo que se tece na escuta
precisam de apoio psicológico para mútua cuidadosa. Nas múltiplas
seguirem vivas! histórias, narrativas e caminhos
entrecruzados naquele encontro,
Ainda em março de 2020, a ONU foi possível ao coletivo da CliFI
Mulheres (2020) já alertava sobre olhar para a potência do percurso
os efeitos especialmente danosos percorrido até aqui em seus grupos
da incipiente crise sanitária para as de escuta.
mesmas. Dentre estes impactos,
destacamos: a sobrecarga do 2. Mulheres escutam outras
trabalho de cuidado no contexto mulheres: a proposição dos grupos
doméstico e materno; as mulheres de escuta on-line
na linha de frente da atuação na
pandemia (aproximadamente 70% “A gente começa esses grupos pedindo para
as psicólogas nos escutarem e, quando vê,
do setor de saúde e mais de 90% a gente mesmo tá virando escutadora umas
como trabalhadoras domésticas); das outras!”
(Fala de uma mulher integrante de grupo
o incremento dos índices de da CliFI, no primeiro encontro on-line
violência patriarcal - potencializada intergrupos, em 29/03/22)
em um contexto de estímulo às
masculinidades tóxicas, como Ao sermos convocadas a pensar a
desemprego crescente e aumento demanda de sofrimento psíquico
no consumo problemático de álcool associado às violências de gênero,
e outras drogas; e, ainda, a limitação sustentamos uma perspectiva de
de acesso a serviços de atendimento saúde mental coletiva e atualizamos
em uma rede pública que, no caso nossa posição clínico-política

95
quanto ao modo de compor o afirmar a noção de comunidade e
espaço de escuta. Neste caminho de assegurar os espaços de contar
de proposição de um dispositivo de e escutar histórias: “Histórias nos
cuidado grupal estivemos inspiradas, ajudam a nos conectar com um
a princípio: na experiência de mundo além da identidade. Ao
grupos on-line, iniciadas também no contarmos nossas histórias, fazemos
contexto pandêmico, em Alegrete conexões com outras histórias”.
(Ferrari, 2021); pela já consolidada Com esses diálogos, passamos a
rede de suporte mútuo no campo da compor a escuta das mulheres
saúde mental (Vasconcelos, 2013); e em um dispositivo próprio que se
pelas experiências acumuladas com configurou em um espaço grupal
grupos e oficinas terapêuticas no on-line, com a presença de duas
âmbito de serviços-escola da equipe escutadoras – profissionais e
que iniciou a CliFI. estudantes da área da saúde – e três
a cinco mulheres escutadas.
A perspectiva colocada para os
grupos de escuta esteve calcada A equipe foi também percebendo
na acolhida dos afetos mobilizados a necessidade de ofertar um
pelas situações de violência, espaço de acolhimento inicial,
na oportunização da troca de onde uma primeira escuta mais
experiências e suporte emocional. individualizada das mulheres que
Ninguém da nossa equipe havia, nos buscavam pudesse proporcionar
até então, experimentado trabalhar a organização de uma demanda,
com grupos no formato on-line e com a possível derivação posterior
sabíamos das possíveis limitações: para um de nossos grupos. O tempo
equipamentos adequados, créditos de acolhimento é singular a cada
de celulares e, especialmente, a processo e os atendimentos são,
possibilidade de um ambiente com também, realizados por uma dupla
privacidade, no qual as mulheres de escutadoras e na modalidade
que nos chegariam pudessem expor on-line. Entendemos que o processo
suas questões. de acolhimento tem auxiliado no
fortalecimento de vínculo entre
Conjuntamente, na construção deste a CliFI e as mulheres atendidas,
trabalho com grupos, dialogamos facilitando, também, a inserção nos
com a perspectiva de bell hooks grupos - na medida em que muitas
(2020a, p. 94) no sentido de das mulheres passam a desejar

96
experimentar esta modalidade de ser seguido. Somos guiadas pela
cuidado. ética feminista e pela análise
interseccional para abrir as
Na data de escrita deste texto, maio questões que se manifestam e
de 2022, temos oito grupos de colocam o pensamento e os afetos
escuta on-line em funcionamento, a transitar, produzindo sentidos
que ocorrem em dias e turnos coletivamente. Histórias de vida,
variados da semana, com frequência relatos de situações de violência
semanal e duração média de uma (conjugal, familiar, institucional e
hora e trinta minutos. A cada três de Estado), compartilhamento de
ou quatro meses, uma rodada conflitos cotidianos e estratégias,
de avaliação coletiva debate construção de redes de apoio,
a continuidade e composição celebrações de conquistas, dúvidas
daquele grupo, definindo se ele sobre diagnósticos, são exemplos de
deve prosseguir, ser encerrado - questões levantadas nos grupos.
caso não haja mais interesse das
integrantes - ou reconfigurado, Eis que em novembro de 2021,
eventualmente acolhendo novas uma mulher negra relata ao
mulheres. Alguns grupos têm mais grupo a dificuldade que tem
de um ano de existência. De abril sido se alimentar. A crescente
de 2020 a maio de 2022, mais de precarização da rede assistencial
150 (cento e cinquenta) mulheres já e escassez de alternativas de
passaram por acolhimento na CliFI e trabalho remunerado, que vínhamos
4 (quatro) grupos já encerraram suas acompanhando nos grupos, só se
atividades. agravou no período pandêmico e,
logo, outras mulheres compartilham
3. A fome se faz escutar suas situações de insegurança
alimentar. Uma escuta difícil, pois
Não sei como havemos de fazer. Se a gente além de trazer uma demanda
trabalha passa fome, se não trabalha passa fome.
concreta e urgente aos grupos,
(Carolina Maria de Jesus, 2014)
atualiza nos corpos das escutadoras
O espaço dos grupos é tecido a o encontro com a violência das
partir dos conteúdos e movimentos desigualdades de seu país - que
que se produzem na troca entre também se apresentam na realidade
as mulheres. Enquanto espaço da própria equipe, mobilizando
de cuidado, não há um roteiro a memórias e impotências muito

97
diversas em cada uma. Um coletivo institucional11 que nos permitiram
de trabalho que se assemelha em tomar a fome como um analisador
alguns marcadores sociais e se à instituição Psicologia. Para o
distingue em outros, mas nem por institucionalista Rene Lourau (1993),
isso menos diverso e plural em criador do conceito de “análise de
seus percursos de vida. Assim, esta implicação” como uma importante
escuta se impôs fazendo com que ferramenta, tanto na intervenção
nos mantivéssemos ainda mais clínica, pedagógica, quanto de
alertas aos riscos que a branquitude pesquisa, o trabalho analítico requer
opera nas práticas de cuidado, constante crítica ao modo com que
pois tende a produzir um modo somos subjetivados por instituições
hegemônico de escutar a fome. sociais. Para evitar que elas falem
O exercício intenso de análise das por nossa boca, segurem nossas
implicações se intensificou a cada mãos ao escrever, a análise coletiva
reunião do programa, incluindo e constante de como as instituições
desde os questionamentos acerca nos atravessam e subjetivam é
da condição de segurança alimentar um exercício indispensável. É ele
entre a equipe da Clínica até a que permite à(o) analista manter-
explicitação das heterogeneidades se atenta(o) aos acontecimentos,
que compõem nossa escuta. De palavras, gestos que podem servir
comum à multiplicidade dos nossos como dispositivos analisadores
ouvidos e corpos, só mesmo a naquilo “que fazem aparecer, de um
constatação de que todas foram só golpe, a instituição ‘invisível’”
interpeladas na escuta da fome. (Lourau, 1993, p. 35).

Neste sentido, o intenso debate Quando o tema da fome das


avindo de nossas diversas mulheres escutadas emerge
implicações com a experiência naquele espaço de cuidado em
da fome no âmbito da CliFI nos saúde mental, atravessando-
convocou a revisitar alguns nos de modos muito diversos,
ensinamentos da análise tornou-se imperativo que ele fosse

11
Referência a uma das correntes de trabalho com grupos e coletivos do Movimento Institucionalista
Francês, no bojo do qual o conceito-ferramenta da análise de implicações foi cunhado. Para
detalhamentos acerca do Movimento Institucionalista ver: PAULON, S. M. Instituição e Intervenção
Institucional: Percurso Conceitual e Percalços Metodológicos. Mnemosine (Rio de Janeiro), v.5, p.189
- 226, 2009; ou ROSSI, André; PASSOS, Eduardo. Análise institucional: revisão conceitual e nuances da
pesquisa-intervenção no Brasil. Rev. Epos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, p. 156-181, jun. 2014.

98
profundamente debatido. Afinal, e Segurança Alimentar (2021),
não eram só as vulnerabilidades das em dezembro de 2020, 54,9% da
escutadas, o sofrimento decorrente população brasileira encontrava-
das experiências singulares com as se em situação de insegurança
desigualdades do país que estavam alimentar. Destes dados, destaca-
em jogo. Eram também nossas se maior insegurança quando as
experiências de vida, de trabalho, famílias são chefiadas por mulheres,
de encontros com nossas (im) pessoas autodeclaradas pretas
potências que ali emergiam. O que ou pardas ou por pessoas com
podemos fazer como profissionais baixa escolaridade, apontando a
do campo da saúde mental? Como importância do viés interseccional e
analisar as marcas da fome naquela de considerar a segurança alimentar
vida e conduzir práticas que se como um determinante social em
mantenham atentas aos marcadores saúde.
de gênero, raça e classe? Como
ouvir aquela dor que é do estômago Neste cenário, definimos olhar
e é existencial ao mesmo tempo? mais atentamente para as
Cientes da inviabilidade de condições de alimentação nas
respostas à complexidade de tais quais mulheres participantes dos
questionamentos, consideramos grupos se encontravam. Para tal,
oportuno compartilhar como utilizamos como referência a EBIA
temos caminhado a partir do que (Escala Brasileira de Insegurança
o analisador fome fez a instituição Alimentar) e construímos um
Psicologia ver e falar. questionário eletrônico para ser
respondido pelas mulheres que se
Sabe-se que a crise política e sentissem à vontade para fazê-lo.
econômica que o país atravessa Neste questionário, abordamos
foi intensificada pela pandemia dados como idade, autodeclaração
do Covid-19, impactando de raça/cor, número de membros
significativamente o acesso à da família menores e maiores
alimentação da população a partir de 18 anos, se algum membro
da insuficiência de políticas de está gestante ou recebe auxílio
proteção, como geração de emprego governamental e o município e
e renda, ou mesmo do auxílio bairro de residência. Ainda, sobre
emergencial. Segundo a Rede insegurança alimentar, destacamos
Brasileira de Pesquisa em Soberania três questões de múltipla escolha

99
com as opções “sim” ou “não”: 1) preocuparam que a comida pudesse
Nos últimos 3 meses você teve a acabar antes de obtê-la novamente.
preocupação de que a comida na Já 80% das mulheres assinalaram
sua casa acabasse antes que tivesse afirmativamente a segunda questão
condição de comprar, receber ou e 75% a terceira. Ainda, 55% das
produzir mais comida?; 2) Nos mulheres se declararam brancas,
últimos 3 meses, a comida acabou 25% pretas e 20% pardas - isto é, de
antes que você tivesse dinheiro para acordo com o IBGE, 45% deste grupo
comprar mais?; 3)Nos últimos 3 compreendem mulheres negras. No
meses, você ou alguém em sua casa que se refere a faixa etária, 25% tem
diminuiu, alguma vez, a quantidade entre 18 e 39 anos, 70% entre 40 e
de alimentos nas refeições, ou pulou 59 anos e 5% acima de 70 anos.
refeições, porque não havia dinheiro
suficiente para comprar a comida? “Percebi que é horrível ter só ar
dentro do estômago” é a fala da
Ao todo, 20 (vinte) mulheres escritora Carolina Maria de Jesus
integrantes do programa (2014), mas bem poderia ser de uma
responderam ao questionário e mulher escutada em nossos grupos.
todas, a partir de suas respostas, A partir do momento em que
referiram experimentar situações abrimos essa discussão, os relatos
de insegurança alimentar. Isto e situações de vulnerabilidade
chamou-nos especial atenção já relacionadas à insegurança
que, até o momento em que fomos alimentar vieram à tona, delineando
provocadas pela primeira escutada a importância de também
que trouxe a fome como urgência construirmos uma práxis para lidar
maior de seu sofrimento ao grupo, com essa tão premente demanda.
esta questão ainda não havia se Incentivadas pelas trocas com
explicitado em nossos espaços as equipes parceiras, mapeamos
grupais. Estaria a fome escondida? instituições que trabalham com
Estariam as mulheres entendendo o fornecimento de cestas básicas
a fome como uma questão privada, e conseguimos estabelecer uma
a qual só caberia a elas buscar cota quinzenal para distribuição
soluções? O que nos apontam as às mulheres - cientes de se tratar
respostas das mulheres é que, para de uma medida inicial e de caráter
a primeira questão, 100% respondeu estritamente emergencial. Trata-se
sim - isto é, nos últimos 3 meses se de questão densa e que necessita

100
seguir sendo problematizada em na equipe, de uma zona de não
suas múltiplas dimensões, tomando saber como agir. Cabe destacar,
os marcadores sociais de classe, como primeira pista, a percepção
gênero e raça na exigência de um do regime colonial do saber que
cuidado que, mais do que nunca, nos formou, ou seja, que uma
entendemos precisar reafirmar o prática feminista e interseccional
que a CliFI carrega em seu nome: inclui o horizonte epistemológico
uma perspectiva interseccional. dentro do qual nós nos tornamos
sujeitas de determinados saberes,
As ressonâncias dessa intervenção exercemos poderes e fomos
ainda são recentes e seguiremos subjetivadas criando modos de fazer
dando lugar a seus desdobramentos, colonizadores.
localizando os efeitos que a
decisão de não nos furtarmos ao Ao nos desafiarmos a não deixar a
enfrentamento do sofrimento interseccionalidade só no sobrenome
trazido pela fome provoca em de uma clínica que se quer feminista,
todas as mulheres da CliFI. Nesse tomamos a fome que inundou os
borramento de fronteira entre grupos como analisadora, não só da
escutadas e escutadoras, também instituição Psicologia como de cada
nos escutamos e interrogamos a uma de nós. Seguimos na acolhida
partir da análise de implicações, dessas dores e desejos, com nossa
situando nossos corpos política disposição à tessitura de novos
e socialmente. Temos especial tempos em que, quiçá, comer e
preocupação em não performar ter um espaço de escuta não seja
o assistencialismo, a partir de um privilégio restrito a gênero, cor
sua configuração da branquitude, ou classe social. Seguimos com
buscando não reproduzir hierarquias “Esperança Feminista”, como nos
e relações de poder colonizadoras propõem Débora Diniz e Ivone
nas práticas de cuidado de uma Gebara (2022, p. 190): “Para celebrar
equipe que é majoritariamente a esperança feminista é preciso nos
branca. Observamos, neste juntar a outras que nos cutucam
encontro-intervenção com a fundo onde o patriarcado persiste
temática da fome atravessando a em nós. O isolamento solitário nos
escuta grupal, a presença frequente, afugenta da transformação”.

101
Referências Vasconcelos, E. M. (coord) (2013).
Manual de ajuda e suporte mútuos
hooks, bell. (2020a). Ensinando em saúde mental: para facilitadores,
pensamento crítico: sabedoria trabalhadores e profissionais de
prática. São Paulo: Elefante. saúde e saúde mental. Rio de
Janeiro: Escola do Serviço Social da
hooks, bell. (2020b). O feminismo UFRJ; Brasília: Ministério da Saúde,
é para todo mundo: políticas Fundo Nacional de Saúde.
arrebatadoras. Rio de Janeiro: Rosa
dos Tempos. ONU Mulheres. (2020). Gênero e
Covid-19 na América latina e no
Diniz, D., Gebara, I. (2022). Caribe: dimensões de gênero na
Esperança feminista. Rio de Janeiro: resposta. Disponível em: https://
Rosa dos Tempos. www.onumulheres.org.br/wp-
content/uploads/2020/03/ONU-
Ferrari, Judete. (2021) Os GOLs na MULHERES-COVID19_LAC.pdf.
pandemia: Grupos On-Line como
dispositivos para o distanciamento Rede Brasileira de Pesquisa em
físico e a proximidade afetiva. Soberania e Segurança Alimentar.
In: Vasconcelos, Eduardo Mourão (2021). Inquérito Nacional sobre
(org). Novos horizontes em saúde Insegurança Alimentar no Contexto
mental: análise de conjuntura, da Pandemia da Covid-19 no
direitos humanos e protagonismo de Brasil. Disponível em: http://
usuários(as) e familiares. São Paulo: olheparaafome.com.br/VIGISAN_
Hucitec, p. 312-321. Inseguranca_alimentar.pdf.

Jesus, C. M. de. (2014). Quarto de


despejo: diário de uma favelada. São
Paulo: Ática.

Lourau, R. (1993). Análise


Institucional e práticas de pesquisa.
Rio de Janeiro: Editora Universidade
do Estado do Rio de Janeiro.

102
(Re)aprendendo a escutar: a
escuta psicológica a mulheres
em contextos de vulnerabilidade
e violência

Sheryl Andreatta da Costa


Betina Hillesheim

Pensar a atuação da Psicologia e que, como discutem Sílvia Tedesco,


como se organiza sua ferramenta Christian Sade & Luciana Caliman
mais fundamental, a escuta, (2013, p. 301), na medida em que
no encontro com mulheres em a cartografia implica acompanhar
contextos de vulnerabilidade social e processos, a entrevista cartográfica
violência foi um dos ecos produzidos não é propriamente um modelo
a partir de uma pesquisa de que busca coletar dados de uma
mestrado12, realizada pela primeira realidade pré-existente, mas requer,
autora deste texto. A pesquisa além da troca de informações e de
possibilitou escutar mulheres acesso à experiência vivida, uma
em situação de vulnerabilidade ampliação da escuta e do olhar,
social, em contextos marcados “para além do puro conteúdo da
pela violência e desigualdades de experiência vivida, do vivido da
diferentes ordens (socioeconômicas, experiência relatado na entrevista,
gênero e raça), na tentativa de e incluam seu aspecto genético, a
compreender como se configuram dimensão processual da experiência,
modos de existência e resistência. apreendida em suas variações”.
Utilizou-se a cartografia como
método e a entrevista individual e o Este percurso de pesquisa exigiu
diário de campo como dispositivos um (re)aprendizado de escuta, no
de produção de dados. Cabe dizer qual se pudesse atravessar as ondas

12
O título da dissertação e a instituição serão inseridos após a avaliação do texto, para garantir o
anonimato das autoras.

103
sonoras das existências femininas, As teorizações foucaultianas não nos
oferecem uma resposta acabada sobre
tantas vezes silenciadas, visando
um outro modo de fazer psicologia,
a uma ação política disposta a elas nos possibilitam reposicionar
ir além da investigação sobre os questões relativas às suas práticas,
modos de ser. Para tanto, fez-se lançar um outro olhar, pensar outros
caminhos, o que, como efeito,
necessário tensionar as práticas transforma o próprio fazer. Esse
psicológicas na tentativa de produzir entendimento recusa a separação entre
uma escuta que se fizesse não o pensar/fazer, teoria/prática e nos
reguladora das subjetividades, indica o potencial produtivo que essas
análises encerram.
e que ao acompanhar sujeitos
em seus movimentos de
individuação, reconhecesse suas Ao encontrar com as vozes
forças e resistências produzindo das mulheres e as marcas de
um fazer-escutar em que fosse violências que impactam suas
possível acessar a potência destas vidas, compreendemos, enquanto
vozes. Assim, nos encontros da psicólogas-pesquisadoras, que a
pesquisa, as vozes das mulheres própria noção de vulnerabilidade
não se limitaram aos gritos de atrelada à existência das mulheres
sofrimento, elas falaram de vida, pode sugerir a produção de sujeitos
falaram de inventividade, falaram fragilizados, entendidos como objeto
de resistência. São vozes-mulheres de intervenção de uma política que
que lutam pelo protagonismo da as classifica como frágeis e, por
própria história, pelo direito de vezes, incapazes de produzir modos
narrar outras possibilidades de viver de ser alinhados com práticas que
e, além disso, o direito de serem vislumbrem a liberdade. Assim,
escutadas. na discussão que aqui se propõe,
pretende-se pensar sobre as
Michel Foucault (2002, p. 227) refere violências que se apresentam nas
que “toda psicologia é uma pedagogia, vidas das mulheres nas dimensões
toda decifração é uma terapêutica, socioeconômica, racial e de gênero,
não se pode saber sem transformar”, buscando reconhecer possibilidades
e é a partir do pensamento do para uma escuta psicológica que
autor que se caminhou para esse reafirme seu compromisso ético e
transformar da escuta, como apontam político em fazer eco para as vozes
Simone Huning & Neuza Guareschi das mulheres, contribuindo para a
(2005, p. 99): ampliação de suas potencialidades,

104
ao mesmo tempo em que se alia à relação de poder”. Desta forma, é
luta por romper com os silêncios possível acrescentar o argumento
que fortalecem as opressões e as desenvolvido por Judith Butler
violências presentes em suas vidas. (2014), ao ressaltar que, o gênero
como uma norma, além de governar
Quais gritos nossas escutas a inteligibilidade social, produz
alcançam? mecanismos de regulação que fazem
uso da violência como ação que visa
Ao acessar a vida presente nos conduzir os sujeitos para uma dada
contextos de vulnerabilidade e zona de normalidade.
violência, se faz imprescindível
compreender as experiências Sendo assim, a violência que incide
diversas que constroem os modos sobre os corpos das mulheres
de ser mulher. O olhar atento à reforça os lugares estabelecidos
interseccionalidade e à exposição para o feminino dentro das relações,
a violência auxilia na compreensão a submissão, a passividade, a
de como as desigualdades sociais fragilidade. Ao agredir, os homens
são vividas pelos sujeitos e quais os têm ampliada a posição de força e
lugares e alianças possíveis para a potência legitimada pelos discursos
Psicologia. que produzem as diferenças entre
masculino e feminino, já que, como
São os apontamentos foucaultianos aponta Dagmar Meyer (2009, p.
que nos orientam para entender o 218), “é no contexto de relações
modo como a violência se coloca de poder de gênero e sexualidade
nas relações de poder e pode atuar naturalizadas, sancionadas e
para adequar as condutas a uma legitimadas em diferentes instâncias
dada normalidade. Helrison Costa do social e da cultura, que
(2018, p. 159) aponta que, em suas determinadas formas de violência
teorizações sobre o poder, Foucault tornam-se possíveis”. André Silva,
concebe espaço para a violência Dagmar Meyer & Roberta Riegel
como uma via possível, mas “apenas (2021, p. 10) apontam ainda, que:
para caracterizar que mesmo que
a única possibilidade de ação de Nos termos das normas regulatórias, a
violência de gênero é acionada como
um indivíduo ou grupo seja um mecanismo que normatiza, regula e
comportamento violento, ainda determina a vida no detalhe. Assim, em
assim se está no terreno de uma meio às dinâmicas conflitivas que se
transformam em violência, a assimetria

105
e a reificação das desigualdades de aquelas mulheres que combinam
gênero não só são levadas ao extremo
ou entrecruzam opressões. Para
como produzem efeitos nos processos
de governo de si e dos outros. Kimberlé Crenshaw (2002), a
perspectiva da interseccionalidade
Ao escutar as mulheres participantes nos auxilia a pensar como se
da pesquisa, nos deparamos com entrecruzam os eixos de opressão
o desafio de compreender as que produzem consequências
dimensões de gênero e violência estruturais e dinâmicas entre os
e, ao mesmo tempo, acessar a vários eixos de subordinação,
realidade complexa, que inclui entendendo especificamente
outras vulnerabilidades que se a forma pela qual o racismo,
interseccionam na produção as relações de gênero e classe
das subjetividades. As violências criam desigualdades básicas que
que alcançam os corpos e as estruturam as posições relativas de
subjetividades das mulheres, mulheres. Esse entrecruzamento
compondo modos de ser, exigem é entendido como analisador
uma escuta que entenda a violência que nos permite problematizar
como parte de processos sócio- as vulnerabilidades a que estão
históricos, culturais e simbólicos que expostas as mulheres, ao mesmo
ocorrem tanto na esfera doméstica tempo que se acolhem as
e familiar, como no âmbito singularidades da vida, de maneira
comunitário e/ou institucional. que não podemos falar sobre
violência de gênero sem levar
Há de se considerar, conforme em consideração que mulheres
aponta Djamila Ribeiro (2017), negras precisam enfrentar um
que ao se falar em mulheres entrecruzamento de mais de um
vulnerabilizadas e expostas à tipo de opressão.
violência, deve-se sinalizar ainda
de quais mulheres se fala, uma Desta forma, a condição de
vez que mulheres não podem vulnerabilidade, atrelada às
ser vistas como uma categoria violências de classe e de raça,
unitária, já que possuem diferentes produz uma cristalização
pontos de partida e intersecção. da precariedade, em uma
Ao universalizar essa categoria, impossibilidade de romper com os
segundo a autora, se assume o quadros de violência. Nesse sentido,
risco de manter na invisibilidade a precariedade, assim como pensada

106
por Butler (2015, p. 41), mesmo que como sinalizado no Atlas de
seja condição generalizada de todos Vulnerabilidade dos Município
que vivem em sociedade, uma vez Brasileiros, o percurso de pesquisa
que todos precisam uns dos outros e a escuta das mulheres permitiram
para sobreviver, é diferenciada entre acessar um silenciamento que diz
os sujeitos, pois cada sociedade também sobre as intersecções
constitui, historicamente, um entre gênero, raça e classe, onde as
conjunto de ações, práticas, leis, interfaces entre violência racial e
organizações sociais e políticas, violência de gênero apontam para
com objetivo de “maximizar uma maior vulnerabilidade das
a precariedade para alguns e mulheres negras e o menor acesso
minimizar a precariedade para destas mulheres aos equipamentos
outros”. Isso equivale a decidir quais sociais e de saúde (Instituto de
vidas são relevantes e devem ser Pesquisa Económica Aplicada – IPEA,
preservadas e quais não importam, 2015).
podendo ser lesadas e eliminadas.
Como indica a autora, “(...) aqueles Por uma escuta interseccional
cujas vidas não são ‘consideradas’
potencialmente lamentáveis e, por Produzir intervenções e atuações
conseguinte, valiosas, são obrigados voltadas para as potências
a suportar a carga da fome, do transformadoras de vulnerabilidades
subemprego, da privação de direitos é um desafio na prática psicológica,
legais e da exposição diferenciada à em especial quando diante da
violência e a morte” (Butler, 2015, p. problemática da violência. Afinal,
45-46). como apontam Félix Guattari
& Suely Rolnik (1996), há uma
Ao pensar as mulheres em situação encruzilhada política e micropolítica
de violência como “vidas precárias” fundamental, já que este campo de
e, portanto, não passíveis de atuação não permite uma suposta
luto, entendemos que são vidas neutralidade. Para os autores, ao se
desprotegidas ou parcialmente interessar pelo discurso do outro,
protegidas por sistemas jurídicos, o/a profissional precisa articular com
redes de assistência e instituições, os agenciamentos, assumindo sua
e estão expostas não só à violência responsabilidade no contato com os
no âmbito familiar, mas também modos de subjetivação dominantes
à violência de Estado. Assim que impedem a criação de saídas

107
para os processos de singularização. em vulnerabilidade social,
Deste modo, pensar as costuras principalmente diante das violências
conceituais entre as práticas e das questões de gênero, raça e
psicológicas, as vulnerabilidades e a classe.
exposição à violência das mulheres,
se faz urgente para compreender O conceito de interseccionalidade
as implicações que dão sustentação provoca reflexões que podem
às formas de atendimento e aos ser aliadas à prática psicológica,
modelos de atenção que estão ao ampliar as discussões sobre
sendo oferecidos a sujeitos como as formas de dominação e
reconhecidos como vulneráveis. as desigualdades sociais impactam
as vidas das mulheres em situação
Nas narrativas das mulheres de vulnerabilidade e expostas à
participantes da pesquisa, as violência. Desta maneira, amplia-
práticas psicológicas se fazem se o entendimento do contexto
presentes, sendo a Psicologia social e questionam-se os modelos
compreendida como um saber de escuta que possam seguir
que, pautado na cientificidade e estigmatizando e afirmando lugares
ocupando um lugar de suposta cristalizados nas performances
neutralidade, pode direcionar as de gênero, bem como silenciando
condutas. Assim, é indispensável as desigualdades produzidas
pensar nos discursos psicológicos pela lógica racista. Dessa forma,
e sua implicação na produção de ao compreendermos que nossa
verdades sobre gênero, classe, raça, escuta precisa estar em constante
vulnerabilidade e violência. análise no que tange aos efeitos
do entrecruzamento de opressões,
Para considerar, portanto, uma que fazem com que os sujeitos
escuta às mulheres, há de se vivenciem situações semelhantes de
deslocar de uma prática psicológica modos muito diferentes, podemos
centrada no indivíduo, para então transpor aquilo que nossos
compor com outros saberes em privilégios – derivados, em geral,
uma dimensão psicossocial, de de nossos lugares como mulheres
maneira a tensionar os discursos brancas, de classe média urbana –
que normatizam e regulamentam por vezes não conseguem escutar.
as experiências das mulheres

108
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110
O percurso de tornar-se
escutadora de mulheres que
sofrem violência 13

Patrícia de Oliveira Luz


Andréa Maria Szekir de Oliveira
Lara Yelena Werner Yamaguchi

Ao encerrarmos a chamada de preciso. Sinto que posso falar de


vídeo de mais um encontro do verdade. Posso até chorar sem que
grupo, conversamos sobre aquela me diga ‘calma’ ou ‘vai passar’ ou
experiência tão intensa, quando que ‘confie em Deus’. Será que não
surge o questionamento: “como acredita em Deus?”
será que as mulheres do grupo
nos veem?” A parceira de escuta, Ressonâncias das vozes que
relembrando em alguns segundos ecoam em nossa atividade de
as tantas vozes que movimentaram escuta em grupo de mulheres
os encontros, diz que imagina algo que sofrem violência de gênero.
assim: “ela não pinta o cabelo. Acho Os grupos compõem as ações da
estranho. Não estava acostumada. Clínica Feminista na Perspectiva da
Falamos tanto sobre cuidado. Talvez Interseccionalidade (CliFI), Programa
não seja sobre isso porque cuidar de Extensão vinculado ao Instituto
ela parece saber, ou parece estar de Psicologia da Universidade
disposta a isso. E essa disposição me Federal do Rio Grande do Sul
faz sentir que nela tenho acolhida. (UFRGS). O encontro se dá de forma
Mas será que não cansa? Às vezes, on-line entre duas escutadoras e
chamo à noite, às vezes no final quatro mulheres escutadas. Os
de semana, e ela está lá. É, parece papéis se misturam. Perguntas e
disponível. Ou será que, ao acolher, afetos movimentam o lugar de
se acolhe? Não sei, mas me sinto escutadoras com e entre mulheres e
à vontade para chamá-la quando formam o percurso deste texto.

13
A escrita desse texto foi viabilizada pelo percurso com as professoras Carmem Grisci e Gislei Domingas
durante a realização da Oficina de Escrita, ação de formação vinculada ao Programa de Extensão CliFI. A
elas, nossa gratidão pela leitura atenta e generosa.

111
Enquanto escutamos, temos raiva. violência como meio aceitável de
Como uma pessoa pode estar controle social” (hooks, 2020, p. 96).
submetida a tamanho sofrimento
por conta de alguém que se acha no Mais raiva. Aquela que faz doer o
direito de subjugar, de ofender, de peito, que faz sentir o estômago
machucar o corpo, de deixar marcas embrulhar. A violência não tem
de medo, insegurança, dúvida. limite: o sexo é quando ele quer,
Escutamos por que comigo? O que inclusive enquanto ela dorme. O
será que fiz de errado? E vem a corpo está ali para ser violentado.
vontade de arrancar essa suspeita E se disser não, ser espancado. E
de que aquela mulher tenha a se ela tentar sair daquela situação,
responsabilidade naquilo que relata. é ameaçada: “tiro teus filhos, tiro
Ao percorrermos a narrativa das a tua vida!” E muitas vezes, tira
mulheres é evidente o modo como mesmo. Quem garante a ela que
se criam as armadilhas da violência isso não irá acontecer? Não é nada
exatamente nas relações que ela incomum escutarmos que a própria
confia: o namorado, o companheiro, mulher deva se responsabilizar por
o marido. Mas a dúvida faz parte do esse cuidado. Não se colocar em
cenário violento, faz parte do jogo risco, evitar discutir com o agressor,
de poder a que aquela mulher está fazer aquilo que ele demandar,
submetida. Dialogamos com bell “não dar motivo”. E esse discurso,
hooks (2020, p. 96) para entender muitas vezes, está nos serviços que
que, para além de pensarmos em ela busca com a expectativa de ter
termos de “violência doméstica”, alguma proteção. E onde, muitas
como nos convoca essa importante vezes, acaba encontrando mais
autora feminista, é preciso que se violência. Sem rede de apoio, não
pense essa violência no contexto parece ser possível achar uma saída.
doméstico como “violência Mas como é difícil tecer essa rede. E
patriarcal”, já que esse termo nos a raiva se mistura com impotência,
lembra que “violência no lar está com o limite que sabemos ter, mas
ligada a sexismo e ao pensamento que quando representa tanto para
sexista, à dominação masculina”. E a vida de alguém, é tão difícil de
ela segue nos alertando que “em lidar. Para a vida de alguém? Para as
uma cultura de dominação, todo nossas vidas. Dói porque é possível
mundo é socializado para enxergar nos ver em cada fala, em cada risco

112
corrido, em cada relação de poder. Escuta, raiva e movimento de si

Quem maltrata, ameaça, não é A raiva cresce a cada escuta.


um, mas muitos. Será um vírus? Perguntamo-nos o que fazer com
Pensamos, ironicamente. Pois se as ela? Dói cada piada machista,
histórias se repetem com todo tipo cada história “despretensiosa”
de violência envolvida, algo há para que lemos ou que escutamos por
além de alguém subjetivado pela aí sobre o lugar da mulher, sobre
crença de que pode se sentir dono o domínio do homem. Histórias
de outra pessoa, pela ideia de que que vão circulando com a desculpa
o corpo do outro – e sobretudo da do humor, da diversão. Em cada
outra! – existe para lhe proporcionar uma delas vemos a construção
prazer. Às vezes, o prazer de ver desses seres que machucam, que
sofrer, de ver sentir dor. Eles são se sentem donos das mulheres
muitos! Seria um vírus da violência? que escutamos. Já não basta não
Se sim, trata-se de um vírus das rir, precisamos fazer algo mais.
relações que compõem nossa Escutamos que é exagero, que
sociedade. E a responsabilidade faz não dá pra levar tudo tão a sério.
parte dos atos de nossas práticas A cada piada podemos enxergar
cotidianas. Já não se trata somente monstros sendo construídos e não
daquele que espancou a namorada, há graça nenhuma nisso. Mas não
mas do quanto se contribui para que são todos que conseguem ver. É só
isso aconteça. Cada uma de nós. uma piada! Temos raiva. Por muito
Será que fazemos o suficiente? Será tempo escutamos que ter raiva não
que acionamos nossa capacidade faz bem. Seja dócil, tenha calma,
de agir? Que reconhecemos que tenta entender. Alguma coisa ela
podemos fazer algo como parte fez! Sim, ela cresceu escutando
das relações nesta família, nesta que precisava ser dócil, precisava
comunidade, nesta cidade para entender, ter calma. Será que
evitar que alguma mulher passe por alguma de nós não escutou? E eles?
isso? Temos filhos. Será que estamos O que escutaram? Quantas vezes
conseguindo criá-los pra fazer tomamos conhecimento sobre
alguma diferença nessa realidade? grupos de homens estuprando

113
uma mulher? E nos perguntamos: errado. Mas escutar junto, juntas,
a nenhum ocorreu dizer que aquilo dá uma sensação boa de, talvez pela
estava errado? A nenhum?!? primeira vez, sentir que o incômodo
Outros tentam convencer a mulher é compartilhado. Não é só uma
a retirar a denúncia contra o ex- piada. Não tem que ter calma nem
companheiro, “pensa bem, é um paciência com o que é violento, com
cara bom, trabalhador, pai da o que contribui para a formação
tua filha”. O que faz com que se de sujeitos violentos. Sujeitos que,
protejam tanto, com que protejam o na sua perspectiva de poder tudo,
mal? O que faz com que minimizem transitam na vida muito acima da
o que não pode ser minimizado? velocidade permitida, levando tudo
que há pela frente, destruindo
A cada história, temos raiva! sonhos, destruindo vidas. Escutamos
E sentir aquilo que parecia ser o inegociável. Não é possível
proibido, vai se tornando o que relativizar. Se a sociedade contribui
nos faz experimentar, de fato, ser para a criação dos monstros, é
gente. Mas temos sentido raiva de preciso que se ocupe de fazê-los
maneira compartilhada. Escutarmos parar. E sentimos, cada vez mais,
junto tem feito sentirmos uma que é a raiva que tem nos movido.
cumplicidade que possibilita seguir Definitivamente, não é da ordem da
escutando. Essa cumplicidade vai calma e da paciência.
ajudando a dar sentido para o
lugar ocupado, um lugar que às Somos duas psicólogas e uma
vezes parece tão pequeno para o sanitarista, graduanda em Saúde
tamanho do que se escuta. Temos Coletiva. Compomos duplas de
entendido sobre a importância escutadoras em diferentes grupos
de possibilitarmos esse lugar de de modo que as nossas áreas de
escuta, quando muitas vezes os conhecimentos se entrecruzam
únicos lugares que essas mulheres com o objetivo de exercitar essa
encontram é o do preconceito, escuta compartilhada. Essa rede que
o da dúvida e o do medo. Mas vamos construindo tem se mostrado
ainda achamos que é preciso mais. muito potente no encontro com as
Escutá-las torna mais intenso um mulheres. Em diversos momentos
incômodo que sempre esteve aqui. precisamos, inclusive, acionar outras
Uma sensação de que há algo muito áreas, aumentar a rede. E nesse

114
exercício de costura a muitas mãos, como um espectador da própria
vamos tecendo o cuidado. história, que conta o que viu
de uma perspectiva outra, não
Fazer da escuta perguntas daquela que lhe foi colocada,
compartilhadas de vítima”. É essa a aposta que
fazemos com o testemunho do
Ao perguntarmo-nos sobre o que que escutamos pautadas por
fazer com a escuta que tanto nos uma ética feminista, “essa é a
afeta, nos perguntamos sobre o potência do testemunho: tornar
que faz a menina que vai se dando também o outro participante da
conta de que era abusada pelo experiência daquele que atravessou
tio quando dormia entre o casal, o insuportável e viveu para contar”
quando imaginava que iria ter o (Camargo, 2016, p. 49). Não há
aconchego e cuidado de adultos dúvida sobre o quanto essa escuta
protetores? Quantos relatos já nos afeta. Ao escutar a experiência
escutamos sobre abuso sexual dessas mulheres, compartilhamos
de meninas e adolescentes ou de memórias dolorosas. Elas já não
uma adulta que, depois de longo estão sozinhas. Nós já não estamos
tempo de silenciamento, grita o sozinhas. Mas o processo não é
que lhe emudeceu. O que fazer simples, muito menos fácil, “não
com a lembrança das mãos que se trata de conseguir suportar, mas
deveriam proteger, percorrendo o assumir o insuportável” (Camargo,
seu corpo pequeno, ainda muito 2016, p. 58).
dependente e certamente cheio
de sonhos? O que ela faz quando, E a raiva foi tornando-se pergunta.
já conseguindo nomear os abusos, Perguntamo-nos sobre o que fazer
tem que conviver com aquele tio com as lembranças dos horrores
nos encontros de família? Poder vividos pelas mulheres que passam
ser escutada, acolhida, pode ser uma noite inteira com um abusador
uma saída possível. Como nos traz que violou seu corpo a ponto de
Karina Acosta Camargo (2016, p.42) deixar sequelas que estarão sempre
na sua dissertação de mestrado, lá, lembrando todos os dias aquela
em que compartilha a sua própria violência vivida. Perguntamo-
experiência com o abuso sexual na nos sobre a vida de uma mulher
infância: “testemunhar um abuso que sobreviveu a uma tentativa
sexual infantil é apresentar-se de feminicídio. O que ela faz

115
com as lembranças daquele dia? suficientemente atendido nas suas
Lembranças que estão lá, registradas necessidades, resolve com violência.
nas tantas cicatrizes presentes no Como nos ensina bell hooks,
seu corpo e que a acompanham no sentimos que precisamos erguer a
dia seguinte, na casa, na rua, no voz! Como lidar com essa escuta que
trabalho, dia após dia. tanto nos afeta sem uma perspectiva
de mudança - ou de vingança? Basta
A cada escuta, ao nos perguntarmos mudar? Ou é preciso reparar?
o que elas fazem com tanta violência
sofrida, sentimos que estamos junto Emília e Jorge Broide (2020, p.
com elas na busca por essa resposta. 02) ao relatarem uma de suas
Precisamos fazer algo com a escuta experiências de trabalho com
que tanto nos afeta. Mas o quê? grupos, compartilham a intenção
A cada grupo que acompanhamos de criar “um dispositivo de fala
insiste a necessidade de que nossa para a construção de um espaço de
escuta contribua para que elas elaboração psíquica” para a “criação
possam fazer algo com as dores de estratégias de enfrentamento às
que estão tão presentes. Como fragilidades decorrentes da extrema
podemos fazer juntas? Compartilhar violência”. Essas são questões
tudo isso com nossas parceiras de muito presentes no nosso fazer
escuta - ou seria de luta? - tem sido e acrescentamos a elas, em uma
o caminho tomado. Perguntamo- perspectiva da ética feminista, a
nos muito sobre o que fazer com necessidade de problematizarmos
o que escutamos? Precisamos com as mulheres escutadas
coletivizar! Precisamos gritar para o que, assim como o racismo e o
mundo que há algo de muito errado capacitismo, que muitas vezes
acontecendo com as mulheres. se interseccionam à violência de
Precisamos gritar que não somos gênero, o machismo é estrutural e
objetos e que não somos heroínas. exige de nós um olhar crítico para
Não estamos disponíveis - nunca algo que precisa ser desconstruído
estivemos - ao uso e abuso. Não para que se possa, de fato, “acabar
queremos assumir, sozinhas, o com sexismo, exploração sexista e
cuidado com a casa, filhos, trabalho, opressão” (hooks, 2020, p. 17).
marido. Marido? Sim. Assumir
os cuidados também do marido. Por enquanto, vamos fortalecendo-
Aquele que, quando não se sente nos coletivamente na busca por

116
estratégias e pensamos que narrar escutamos, de lugares diferentes
essas práticas para compor os seria assumir um risco muito
saberes da Psicologia e áreas grande de reproduzirmos violência.
afins é imprescindível em nossa E assim, seguimos em busca de
formação. No caminho buscamos uma realidade em que as mulheres
criar, conforme nos ensina mais tenham paz. Paz e voz!
uma vez bell hooks (2017, p.
149), “um espaço feminino onde
(possamos) valorizar a diferença
e a complexidade”. No percurso, Referências
deparamo-nos com essa cultura
que põe em dúvida o tempo todo Akotirene, Carla. (2020).
a fala, o relato de experiência das Interseccionalidade. São Paulo: Sueli
mulheres, dúvida que deslegitima Carneiro: Editora Jandaira, 2020.
seus discursos e percepções. E nós, Feminismos Plurais, Ribeiro, D.
como escutadoras, precisamos (Coord).
reafirmar uma ética feminista atenta
à interseccionalidade entre gênero, Broide, J. & Broide, E. E. (2020). A
raça, classe, orientação sexual, psicanálise em situações críticas:
identidade de gênero, origem metodologia clínica e intervenções.
geográfica, e tantos marcadores São Paulo: Escuta.
da diferença que se apresentarem
a cada encontro. Conforme afirma Camargo, K. A. (2016). Abuso
Carla Akotirene (2020, p. 45), “o sexual infantil - uma cartografia:
pensamento interseccional nos silenciamento, testemunho,
leva reconhecer a possibilidade ressentimento, esquecimento.
de sermos oprimidas e de Dissertação de Mestrado, Programa
corroborarmos com as violências. de Estudos Pós-Graduados em
Nem toda mulher é branca, Psicologia Clínica), Pontifícia
nem todo homem é negro, nem Universidade Católica de São Paulo.
todas as mulheres são adultos
heterossexuais...”. Precisamos hooks, bell. (2017). Ensinando
estar atentas às tantas condições a transgredir: a educação como
das mulheres que escutamos, prática da liberdade. (2ª. Ed.; M.
lembrando sempre que não há B. Cipolla, Trad). São Paulo: WMF
um conceito universal de mulher. Martins Fontes. (Trabalho original
Não considerar que falamos, e publicado em 1994).
117
hooks, bell. (2020). O feminismo
é para todo mundo: políticas
arrebatadoras. (13ª. Ed.; B. Libanio,
Trad). Rio de Janeiro: Rosa dos
tempos. (Trabalho original publicado
em 2015).

118
Experiências e vivências com
mulheres em situação de
violência doméstica

Raquel Furtado Conte


Ângela Brum
Bruna Silva Grabowski
Virginia Severo Cordeiro

Resumo: Este relato de experiência clínico e identificar a postura ética


baseia-se na descrição de algumas do psicólogo frente à singularidade
atividades desenvolvidas na do outro e à rede de proteção.
clínica-escola com mulheres em Concluímos que o dispositivo grupal
situação de violência e em reflexões é uma importante ferramenta para
decorrentes dessas abordagens. dar voz às mulheres subvertendo a
Por meio da descrição dos lógica hegemônica.
fundamentos teórico-clínicos, foi
possível destacar as ferramentas Palavras-chave: Mulheres;
que utilizamos de outros campos do Psicoterapia; Violência doméstica.
conhecimento para compreender
o fenômeno da violência em sua A clínica-escola de uma
complexidade e atuar junto à Universidade do interior do
rede de proteção. Além disso, as Rio Grande do Sul, através do
vivências descritas neste trabalho Laboratório de Práticas Psicológicas,
apontam para desafios e avanços atende às demandas encaminhadas
com os quais o (a) profissional da pela Rede de Proteção à Mulher
Psicologia se defronta durante de um município do interior do Rio
o acompanhamento psicológico Grande do Sul (RS), oferecendo
dessas mulheres e delas junto à rede acompanhamento psicológico para
de proteção. Como resultados, foi mulheres em situação de violência
possível refletir sobre a importância doméstica. O Laboratório é uma
de conhecer os fundamentos disciplina oferecida aos acadêmicos
teóricos que sustentam o fazer do curso de Psicologia, de caráter
119
prático e interventivo. Entre as apresentavam insegurança e
atividades desenvolvidas, há o confusão durante as audiências,
grupo operativo com mulheres que ou, então, demonstravam medo
vivenciam ou vivenciaram violência e inibição na relação com os
doméstica, bem como atendimentos agressores, impedindo-as de
individuais para algumas mulheres modificar atitudes frente a eles.
que, por questões específicas, não
participam do grupo. Além dessas Para preparar o campo afetivo
atividades, o Laboratório realiza dos encontros no Laboratório,
lives e ações na comunidade, como inicialmente, o (a) futuro (a)
palestras e grupos de orientação profissional de Psicologia é
e de informação sobre temas convidado a conhecer os marcos
pertinentes (violência de gênero, legais que levaram à constituição
violência doméstica e familiar e da Rede de Proteção, bem como
violência de gênero contra a mulher, as implicações dos estudos de
entre outros). gênero para a compreensão da
violência contra a mulher como uma
Criado em 2017, o Laboratório representação histórica de nossa
inseriu-se na Rede de Proteção civilização. Um dos desafios nesse
de um município do interior do momento refere-se à atitude de
RS, junto aos demais serviços que abertura de que o (a) profissional
integram essa rede vinculados à precisa dispor, isto é, estranhar
Assistência Social, à Segurança o familiar e aproximar-se do
Pública, à Saúde e a Organizações infamiliar [Unheimliche] (Sigmund
Não Governamentais (ONGs) Freud, 1919/2019). Quando Freud
interessadas no tema e na luta discutiu o conceito de infamiliar,
contra a violência de gênero. A fez questão de diferenciar o que
partir de uma demanda da própria pode ser confundido com ausência
rede, compreendeu-se que as de referência ou de incerteza
mulheres em situação de violência intelectual daquilo que o próprio
doméstica poderiam se beneficiar sujeito aloja em si pelo efeito do
do acompanhamento psicológico recalcamento, ou seja, o próprio
para o enfrentamento da violência inconsciente.
experienciada. De acordo com a
observação e o acompanhamento Na perspectiva do infamiliar, o (a)
dos serviços da rede, estas mulheres profissional de Psicologia precisa

120
defrontar-se com a própria história, eliminação de todas as formas de
também perpassada pelos efeitos do violência de gênero, acolhendo e
gênero em sua constituição psíquica. cooperando com ações protetivas
Portanto, mesmo que o acesso a às mulheres, independentemente
documentos e materiais específicos de sua orientação e identidade
sobre o tema da violência possa ser de gênero, e de contribuir com
sistematizado durante o ingresso ações que fortaleçam a rede
na disciplina do Laboratório, é de apoio social familiar e de
preciso ir além e (re)conhecer a enfrentamento à violência.
complexidade do tema da violência, Associa-se a essa regulamentação
dos movimentos sociais, dos marcos a preocupação ética do nosso fazer
legais e das implicações dos estudos e saber, que, no cerne de uma
de gênero. perspectiva psicanalítica, como
propõe Isac Iribarry (2003), só é
Em conformidade com o Conselho possível quando o profissional
Federal de Psicologia (2013), a preconiza a transmissão da falta,
atuação do (a) profissional de com a distribuição de funções e
Psicologia em programas de deslizamento do saber em uma
atenção às mulheres em situação prática interdisciplinar.
de violência deve levar em conta
o compromisso ético da Psicologia Nas próprias resoluções do
e, em especial, promover o Conselho, percebe-se que há
protagonismo e o fortalecimento referências aos conceitos de
das mulheres. Do ponto de vista violência doméstica e violência de
de um trabalho em rede, essa gênero, fatos esses que nos levam
experiência aproxima Psicologia, a discutir primeiramente com o (a)
Direito e Serviço Social, baseando-se profissional as diferenciações entre
na cooperação e no diálogo entre os os termos associados à violência,
saberes, para uma escuta qualificada considerando o contexto em que ela
no contexto da violência. ocorre.

O Conselho Federal de Psicologia Entre os conceitos revisitados,


apresentou a Resolução nº 8, salientamos os seguintes: violência
de 07 de julho de 2020, a fim de doméstica, violência familiar ou
regulamentar o exercício profissional intrafamiliar, violência de gênero e
de Psicologia no que se refere à violência contra a mulher. Utilizamos

121
as autoras Joan Scott (1995) e No contexto em que ocorre a
Heleieth Saffioti (2011) para discutir violência, a violência doméstica
a violência de gênero associado e a intrafamiliar também entram
ao contexto do cenário capitalista. em pauta na discussão de Saffioti
Para Saffioti (2011) essa violência (2011), uma vez que não são
está associada ao patriarcado e termos sinônimos. Enquanto na
ao modelo de produção vigente primeira há uma restrição a toda
que instiga as desigualdades entre violência contra a mulher praticada
gênero, classe e raça. Portanto, no ambiente doméstico, com as
toda violência contra as mulheres é pessoas permanentes ou não
concebida como fruto das relações em seu convívio, na segunda, a
sociais, as quais são permeadas violência recai sobre os membros
por uma organização social que da família nuclear ou extensa,
privilegia o masculino. Considerando não se restringindo ao território
as diferenças de classe e raça, a físico do domicílio. Esses conceitos
autora reforça ainda que o conceito podem estar associados à violência
de violação de direitos contra de gênero contra as mulheres
as mulheres é diferenciado de como também vinculados a outras
acordo com a classe social e raça, violências que ocorrem entre os
assinalando que algo pode ser familiares.
considerado como violência para
uma mulher de uma determinada A fim de discutir os avanços legais
classe e raça, enquanto para outra, decorrentes dos movimentos
pode não significar nada. Scott sociais, revisitamos as leis que foram
(1995), por sua vez, nos convida a criadas com o intuito de coibir esse
pensar na superação da dicotomia fenômeno. Assim, contextualizamos
homem e mulher com base em suas a Lei Maria da Penha, a Lei do
diferenças sexuais para discutir os Feminicídio com as suas respectivas
gêneros masculino e feminino como atualizações, incluindo aquelas
categorias a serem construídas a realizadas no período da pandemia
partir do discurso e da inserção dos da Covid-19, que exigiram uma
corpos num universo simbólico que flexibilização de práticas e
os organizam socialmente. atendimentos dos serviços da rede
(Lei 13.979, Lei 14.022).

122
O resgate histórico dos avanços exemplo, a Rede de Proteção à
no combate à violência contra Mulher conta com os recursos da
as mulheres, no contexto do Prefeitura, por meio da Secretaria
Laboratório, permite contextualizar Municipal de Segurança Pública
as contribuições legais e e Proteção Social. Mediante um
internacionais que incentivam Protocolo de Intenções, renovado
e promovem a sistematização e em 25 de novembro de 2019,
a integração de vários serviços vários serviços públicos e privados
e políticas públicas em prol do assinaram o documento, com vistas
tema e com os quais a Psicologia a articular e executar ações de apoio
deve dialogar no âmbito de suas às mulheres vítimas de violência.
intervenções com essa população.
É apresentada a Convenção Serviços em rede que atendam
Interamericana para Prevenir, Punir mulheres em situação de violência
e Erradicar a Violência Contra a podem auxiliá-las a subverter
Mulher, também conhecida como padrões normatizados da cultura
Convenção de Belém do Pará (1994- patriarcal ou resistir a eles com
2014), que foi realizada no México, maior propriedade. Costuma-se
com a presença de 35 países da associar o conceito de redes sociais
América Latina e do Caribe. Seu ao conjunto de ações coletivas
papel foi de extrema importância estruturadas em rede que articulam
para o enfrentamento da violência o local com o global. A lógica de
contra as mulheres no Brasil. operação das redes é sistêmica
Em parceria com a Secretaria de e racionalizadora, com políticas
Políticas para as Mulheres (SPM) públicas descentralizadas, com a
e com ONGs feministas, propôs-se incorporação das organizações da
a aprovação da Lei nº 11.340, de sociedade civil aos mecanismos de
2006, conhecida como Lei Maria da gestão e com prestação de serviços
Penha. (Martins & Fontes, 2004).

Partimos do contexto mais amplo Contudo, salientamos que ainda


do conhecimento dos temas acima é notório a presença de mulheres
para identificar e reconhecer a brancas e de classe social menos
implementação e a execução favorecida economicamente
dos serviços que acontecem no que procuram os serviços do
município. Nessa cidade, por Laboratório. Mulheres com

123
poder aquisitivo limitado que da rede ou ocorrer de forma
demonstram a dificuldade de espontânea. Entre os serviços
inserção no mercado de trabalho da rede, o Centro de Referência
por possuírem baixa escolaridade, da Mulher14 e a Coordenadoria
além de dependência econômica da Mulher são aqueles que mais
dos parceiros (ou ex-parceiros) realizam encaminhamentos, uma
ou do Estado e ausência de vez que a maior parte das mulheres
vínculo familiar e rede de apoio, em situação de violência, frequenta
denotando as desigualdades sociais esse local.
e violências que se sobrepõem.
Mulheres brancas que, por Um dos desafios do trabalho com
um lado expõem o silêncio e a a rede refere-se à organização, ao
exclusão das mulheres negras. planejamento e à sistematização
Enquanto grupo de acadêmicos (as) dos encaminhamentos e ao
predominantemente de raça branca, acompanhamento dos casos.
evidenciamos a marginalização das Para a constituição dos grupos,
mulheres negras que não acessam as mulheres, inicialmente, são
os serviços, nos levando a pensar acolhidas por uma entrevista
nos avanços que ainda precisam individual, a fim de identificar o
ser realizados para a equidade dos desejo de sua participação nos
direitos, da visibilidade e alcance das grupos e sua condição psíquica para
mulheres às condições igualitárias acompanhar e socializar com as
de saúde, bem-estar e dignidade, demais integrantes do grupo. Os (as)
independente da classe e raça. alunos (as) realizam as entrevistas,
e, posteriormente, os casos são
Na sequência, discutimos no direcionados para inclusão no grupo
Laboratório o conceito de grupo ou permanência em atendimento
operativo e sua operacionalização, a individual.
fim de planejar nossas ações grupais
com as mulheres que procuram O grupo operativo foi elaborado
esse serviço. Os encaminhamentos por Enrique Pichon-Rivière (2009),
para o Laboratório podem ser com base na teoria psicanalítica, e
efetivados por qualquer serviço abrange os seguintes constructos: as

14
O Centro de Referência da Mulher é um espaço de acolhimento, de escuta, de recebimento de
denúncias de violência de gênero, de esclarecimento e de orientação psicológica, social e jurídica. O
Centro de Referência atende junto à Coordenadoria da Mulher, no Centro Administrativo da Prefeitura
do município.

124
relações vinculares e a internalização exemplo, citamos uma situação que
dos objetos com os quais o sujeito tivemos que aprender a enfrentar:
se relaciona. A partir das relações o reconhecimento das mulheres
vinculares, o sujeito constrói uma entre si e o medo da descoberta
forma de perceber e compreender e revelação ao ex-companheiro/
o mundo, ou seja, todo sujeito agressor. Muitas mulheres
tem um esquema referencial, comparecem aos grupos de forma
composto de conteúdos conscientes anônima, quando são reconhecidas
e inconscientes. De acordo com o ou identificadas por outra mulher
autor, esse esquema é que promove no mesmo grupo, surge um terceiro
a manutenção de comportamentos elemento no grupo que se torna
e sentimentos estereotipados. ameaçador levando-as a desistir do
serviço.
A partir da experiência em grupo
com essas mulheres, acreditamos Outras situações também merecem
que seja possível romper com destaque: o manejo do grupo
estereótipos que levam à alienação exige uma postura mediadora
frente a cultura dominante atrelado da coordenadora em relação a
ao masculino. Alinhadas à proposta impasses que surgem entre as
de Pichon-Rivière (2009), as participantes, como, por exemplo,
intervenções grupais que ocorrem no que se refere a conflitos
por parte da coordenação são em relação a compreensão e
perpassadas por momentos de banalização da violência. Um dos
indagação e problematização, desafios dos grupos com mulheres
estabelecendo algumas relações em situação de violência consiste
entre as falas das participantes. em tornar suportável a dor do outro
Além disso, são analisados os antes que ela possa despertar novas
pontos emergentes, os papéis e as feridas. Isso demanda favorecer
funções desempenhados por cada que as mulheres possam escutar
participante. as vivências das outras com uma
postura de humildade, coragem
Um dos desafios relativos à e esperança frente a dificuldades
execução dos grupos são as e conflitos em que se encontram,
situações inesperadas que se evitando julgamentos e confrontos
apresentam e com as quais morais. Em algumas situações, ao
precisamos aprender a lidar. Como se defrontarem com o discurso das

125
demais, há mulheres que se tornam na qual ocorrem as manipulações
agressivas e assumem o papel de afetivas. Esses conceitos permeiam
julgadoras. Observou-se que as que nosso olhar e auxiliam as mulheres a
já haviam superado a relação com conhecerem as tramas da violência
o agressor a partir de denúncias com as quais precisam lutar.
e separação possuíam menor
tolerância diante dos discursos das Salientamos ainda para a
demais, que ainda se encontravam importância do diálogo constante
imersas e confusas na relação com com a rede de proteção, tanto
os parceiros/agressores. para a atualização dos dados das
mulheres nos prontuários como
Como exemplo, citamos um trecho para a reflexão e debate de futuros
de uma das sessões dos grupos: encaminhamentos. Além disso, os
relatos das mulheres permitem
Eu sempre lavo a casa, a roupa dele, e a discussão nas reuniões da rede
eu doente, será que ele não podia ser
mais carinhoso? Ele me bate bem aqui
acerca das atividades a serem
(mostra o roxo na região da mama), propostas na região, bem como,
onde retirei a mama. Ele sai com várias a sugestão de intervenções com
mulheres... vadias. (Participante 4). serviços e programas que possam
qualificar a escuta dos profissionais
Utilizamos como referencial teórico que acolhem essas mulheres.
para a compreensão da violência
de gênero contra a mulher o Como considerações finais,
ciclo da violência definido por compreendemos que a
Leonore Edna Walker (2016). complexidade do fenômeno da
De acordo com suas pesquisas violência exige uma maleabilidade
com testemunhos de mulheres psíquica para aprender o novo, o
agredidas, a autora identificou fases familiar, e ressignificar o recalcado,
na violência com o parceiro, de o infamiliar. Despertamos nossos
duração e manifestações variadas, questionamentos e fantasmas
entre as quais: fase do acúmulo através das leis e dos estudos de
de tensão, fase de agressão e fase gênero referidos neste breve relato,
de reconciliação. Entre a primeira de modo a absorver e materializar o
e a última fase, destacam-se a fenômeno para objetivá-lo e estudá-
frequência das brigas, a irrupção lo. Por outro lado, tentamos abreviar
da violência e a fase da lua de mel, nossas angústias e incompletudes

126
ao identificar e ressaltar as Referências
singularidades e subjetividades
envolvidas nesse nosso percurso Conselho Federal de Psicologia
junto às mulheres. Sem dúvida, (CFP). (2013). Referência técnica
aceitamos como desafio o saber para atuação de psicólogas(os) em
entrecruzado com outras áreas, Programas de Atenção à Mulher em
enquanto nos sentimos também situação de Violência. 1Brasília DF.
tocadas em nossas raízes identitárias Disponível em: https://site.cfp.org.
no encontro com as mulheres br/wp-content/uploads/2013/05/
feridas. referencias-tecnicas-para-atuacao-
de-psicologas.pdf.
Aliamos nossa prática com a rede
de proteção e, sobretudo, com Comissão Interamericana de Direitos
o desejo de cada paciente. No Humanos. (1994). Convenção
entanto, preservamos a condição interamericana para prevenir, punir
da ética da Psicanálise em relação e erradicar a violência contra a
à compreensão de que toda mulher, “Convenção de Belém do
intervenção deve ser contrária a Pará”. Disponível em: http://www.
qualquer pretensão universalizante pge.sp.gov.br/centrodeestudos/
e totalizante de tomar a forma bibliotecavirtual/instrumentos/
de regras morais ou de um saber belem.htm.
médico-psicológico antes que
um sujeito possa emergir. É no Freud, S. (2019). O infamiliar.
espaço grupal que identificamos as Belo Horizonte: Editora Autêntica.
demandas singulares e percebemos [Original: 1919].
que o dispositivo grupal pode ser
uma estratégia de enfrentamento Iribarry, I. N. (2003). O que é
às crises, injustiças sociais e pesquisa psicanalítica? Ágora
vulnerabilidades. Compreendemos (Rio de Janeiro), 6(1), 115-138.
que nos grupos há uma subversão Disponível em: doi:10.1590/S1516-
de papéis e funções que essas 14982003000100007.
mulheres ocupam em seu cotidiano,
nesse sentido, há uma mudança Brasil. (2006). Lei n° 11.340, de 07 de
que faz emergir sujeitos e vozes em agosto de 2006. Lei Maria da Penha.
um movimento de alteridade capaz Cria mecanismos para coibir a
de produzir novas identificações, violência doméstica e familiar contra
rompendo a lógica hegemônica. a mulher. Brasília, DF. Disponível
127
em: http://www.planalto.gov.br/ e de enfrentamento à violência
ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/ contra crianças, adolescentes,
l11340.htm. pessoas idosas e pessoas com
deficiência durante a emergência
Brasil. (2015). Lei no 13.104, de 09 de saúde pública de importância
de março de 2015. Altera o Art. internacional decorrente do
121 do Decreto-lei no 2.848, de 7 coronavírus responsável pelo surto
de dezembro de 1940, do Código de 2019. Brasília, DF. Disponível
Penal, para prever o feminicídio em: http://www.planalto.gov.br/
como circunstância qualificadora ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/
do crime de homicídio, e o Art. 1o L14022.htm.
da Lei no 8.072, de 25 de julho de
1990, para incluir o feminicídio no Martins, P. H. & Fontes, B. A. S. M.
rol dos crimes hediondos. Brasília, (Eds.). (2004). Redes sociais e saúde:
DF. Disponível em: http://www. novas possibilidades teóricas. Recife:
planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015- Ed. Universitária da UFPG.
2018/2015/lei/l13104.htm.
Pichon-rivière, E. (2009/). O
Brasil. (2020). Lei nº 13.979, de 6 processo grupal (8a ed.). São Paulo:
de fevereiro de 2020. Dispõe sobre Martins Fontes. (Original publicado
as medidas para enfrentamento em 1998).
da emergência de saúde pública
de importância internacional Brasil. (2020). Resolução nº 8, de
decorrente do coronavírus 07 de julho de 2020. Estabelece
responsável pelo surto de 2019. normas de exercício profissional
Brasília, DF. Disponível em: http:// da Psicologia em relação às
www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ violências de gênero. Disponível
ato2019-2022/2020/lei/l13979.htm. em: https://site.cfp.org.br/
wp-content/uploads/2020/07/
Brasil. (2020). Lei nº 14.022, de Resolu%C3%A7%C3%A3o-CFP-
07 de julho de 2020. Altera a Lei n%C2%BA-082020.pdf.
nº 13.979, de 6 de fevereiro de
2020, e dispõe sobre medidas Saffioti, H. (2011). Gênero,
de enfrentamento à violência patriarcado e violência (2a ed.). São
doméstica e familiar contra a mulher Paulo: Fundação Perseu Abramo.

128
Scott, J. (1995). Gênero: uma
categoria útil de análise histórica.
Educação & realidade, 20(2), 71-99.
Disponível em: https://seer.ufrgs.
br/educacaoerealidade/article/
view/71721/40667.

Brasil (2011). Secretaria de Políticas


para as Mulheres; Presidência da
República. Política nacional de
enfrentamento à violência contra as
mulheres. Disponível em: https://
www12.senado.leg.br/institucional/
omv/entenda-a-violencia/pdfs/
politica-nacional-de-enfrentamento-
a-violencia-contra-as-mulheres.

Walker, L. E. (2016). The


Battered Woman Syndrome.
(4th ed.). New York: Springer
Publishing Company. Disponível
em: https://dl.icdst.org/pdfs/
files3/54b12836483cc27d01a2ec3f3
3679b35.pdf.

129
Eixo III
Construções e desconstruções
necessárias para políticas
públicas voltadas à garantia
de direitos
Escuta de mulheres em situação
de violência e a formação em
Psicologia: a experiência do
PAAS/UNISINOS

Michele Scheffel Schneider


Rovana Ostjen de Azevedo
Rosana Cecchini de Castro

Introdução dos fenômenos estruturais da


nossa sociedade, a violência contra
Escutar mulheres que vivem a a mulher, e possibilita a reflexão
violência doméstica tem sido uma sobre formas de manejo que
prática oferecida as acadêmicas buscam a composição com a rede
estagiárias do Programa de Atenção e o trabalho interdisciplinar. Contar
Ampliada à Saúde (PAAS), que é esta experiência, compartilhando a
o Serviço Escola Interdisciplinar metodologia de trabalho que temos
da Escola de Saúde, que integra o construído desde 2016, trazendo os
Serviço Escola do Curso de Psicologia principais desafios, potencialidades,
da Unisinos. Neste Programa, uma modificações que o trabalho vem
das ações denominada “Escuta de sofrendo ao longo do tempo, assim
Mulheres em situação de violência”, como o efeito dele na formação e
oportuniza o contato com um campo desenvolvimento profissional das
de trabalho que visa a defesa dos acadêmicas estagiárias que por esta
direitos das mulheres, através da ação passam, é o objetivo desse
escuta psicológica e do acolhimento artigo.
como principais ferramentas de
intervenção. É uma atividade Conforme dados da Ouvidoria
formativa que coloca a acadêmica Nacional de Direitos Humanos
estagiária15 em contato com um (2020), no que se refere a violência

15
Até o momento, apenas estagiárias mulheres participaram da Ação e o serviço permanece em
constante reflexão sobre a participação de estagiários homens nessa atividade formativa.

131
contra a mulher, houve um aumento março de 2020, a Organização
de 14,1% no número de denúncias Pan-Americana da Saúde (OPAS) e
nos primeiros quatro meses de a Organização Mundial de Saúde
2020, em comparação com os dados (OMS) passaram a considerar
registrados em 2019. O mês de a Covid-19, doença causada
abril apresentou um aumento de pelo vírus SARS-CoV-2, como
37,6% no comparativo entre os dois uma pandemia. A partir dessa
anos. De acordo com o Ministério declaração, tais organizações
da Mulher, da Família e dos Direitos reforçaram que os governos
Humanos (MMFDH) o grupo que adotassem medidas urgentes de
concentrou a maior parcela de combate à proliferação do vírus,
denúncias em 2020 foram as dentre eles, o distanciamento e
mulheres, seguidas das crianças e isolamento social. Pesquisadores
adolescentes e depois os idosos. do Grupo de Pesquisa “Direitos
Os canais de denúncias de direitos Humanos e Vulnerabilidades” da
humanos do Governo Federal Universidade Católica de Santos,
indicam 105 mil denúncias contra em junho de 2020, apontaram
as mulheres em 2020, sendo que que apesar de necessárias, essas
deste montante, 72% são referentes medidas impactaram diretamente
a violência doméstica e familiar os direitos humanos, acentuando
contra a mulher (ação ou omissão as vulnerabilidades já existentes,
que cause morte, lesão, sofrimento criando assim, uma situação de
físico, sexual ou psicológico da “vulnerabilidades sobrepostas”,
mulher, bem como danos morais ou termo trabalhado por Catherine-
patrimoniais) e 28% se relacionam Lune Grayson (2019) e Norwegian
a violação de direitos civis e Red Cross (2019), como citado em
políticos (escravidão, tráfico de Liliana Lyra Jubilut et al. (2020).
pessoas, cárcere privado, liberdade
de religião e crença e o acesso A Nota Técnica do Fórum Brasileiro
a direitos sociais como saúde, de Segurança Pública, de 16 de
educação, cultura e segurança).16 abril de 2020, intitulado “Violência
doméstica durante a pandemia de
É importante ressaltar que, em Covid-19” corrobora o aumento

16
Disponível em: https://www.gov.br/pt-br/noticias/assistencia-social/2021/03/canais-registram-mais-
de-105-mil-denuncias-de-violencia-contra-mulher-em-2020.

132
das vulnerabilidades, indicando individuais ou grupais há muitos
que uma das consequências do anos, mas foi em 2016, a partir
isolamento social não é só o de uma parceria firmada entre
aumento da violência doméstica, a Vara da Violência Doméstica
pela obrigatoriedade de as de São Leopoldo e o PAAS, que
mulheres permanecerem mais uma ação específica dentro
tempo junto ao agressor, como do serviço foi organizada para
também a diminuição das denúncias se dedicar exclusivamente a
justamente pela dificuldade de as escuta de mulheres em situação
mulheres saírem de casa ou pelo de violência. Na época, esta
medo delas realizarem a denúncia situação já se apresentava como
com o agressor por perto. Isso revela uma problemática grave o que,
uma subnotificação, que prejudica infelizmente só veio a se agravar
ainda mais o enfrentamento dessa com a pandemia por Covid-19,
situação, considerando também a que exigiu o isolamento social
necessidade dos registros para a e, portanto, também um maior
implantação de políticas públicas. convívio com os agressores. Vale
Diante disso, é possível refletir que considerar que a procura por esta
apesar dos dados acima indicarem parceria partiu da juíza da Vara da
aumento no número de registros Violência Doméstica da época, por
por alguns órgãos, no que se refere considerar o despreparo do juizado
a violência de gênero durante a no encaminhamento do sofrimento
pandemia por Covid-19, há ainda psíquico, nitidamente identificadas
muitas mulheres que sofrem nestas situações.
violência e não buscam ajuda, o que
justifica a necessidade de seguirmos O trabalho iniciou com as estagiárias
pensando e compartilhando práticas de Psicologia acompanhando as
que envolvam o atendimento às Audiências de Acolhimento no Foro
mulheres em situação de violência. de São Leopoldo, das mulheres que
tinham registrado ocorrência da
A realidade do trabalho no PAAS violência sofrida e solicitado medida
protetiva. A Psicologia passou
A temática da violência contra as a compor o campo de trabalho,
mulheres já se apresentava em numa perspectiva de prática
nosso serviço-escola por meio interdisciplinar, oportunizando
dos atendimentos psicológicos a estas mulheres um espaço de

133
escuta e acolhimento especializado. a atividade de “Sala de Espera”,
Aos poucos elas foram se sentindo uma escuta em grupo destas
à vontade para solicitar um mulheres antes das audiências.
atendimento após a audiência, na Como propósito, poderem perceber
intenção de sanar dúvidas sobre que não estavam sozinhas, que
algum encaminhamento para a outras mulheres viviam em
rede de cuidado ou mesmo para condições semelhantes e que,
aprofundar sua história e falar juntas, poderiam se fortalecer
de suas dores. Ter uma estagiária e encontrar novas saídas. A
de Psicologia naquele contexto intenção inicial desta intervenção
abriu caminhos e possibilidades, foi acolhê-las, na tentativa de
permitindo a sistematização daquilo diminuir a tensão e promover uma
que escutávamos. Identificamos maior consciência, apropriação
o desconhecimento das mulheres e autonomia na participação das
quanto à audiência, do medo de audiências. No segundo semestre
encontrar novamente o agressor e, de 2017 estreitamos os laços com
também, do número significativo o Centro Jacobina, que é o Centro
de solicitação de retiradas de de Referência no Atendimento as
medidas protetivas, com retorno das Mulheres em situação de violência,
mulheres ao agressor e, portanto, no município de São Leopoldo/RS,
para o ciclo da violência. A juíza onde as estagiárias deste serviço
também foi compreendendo passaram a integrar o trabalho
cada vez mais a importância da no Foro e foram implementadas
escuta psicológica e, juntamente reuniões sistemáticas mensais
com as estagiárias de Psicologia conjuntas17. As estagiárias do
e supervisoras da ação fomos PAAS, num esquema de rodízio,
incrementando a ação. começaram a participar no ano
de 2017, das reuniões da Rede
Ampliamos o trabalho tanto no que de Enfrentamento à Violência
se refere ao número de estagiárias contra a Mulher, ampliando a visão
envolvidas, atividades, espaço físico sobre o trabalho e identificando a
no Foro e na articulação com a articulação da prática realizada no
rede. Além do acompanhamento Foro com as estratégias pensadas no
das audiências, foi organizada município de São Leopoldo.

17
Mais informações no artigo: Escutas de mulheres no Fórum: desafios e potencialidades (2018), dos
Cadernos do PAAS, vol.5, intitulado “Redes: construções coletivas com um serviço escola”.

134
Com o início da pandemia de usuários do serviço e a necessidade
Covid-19 e das medidas de de possibilitar atendimentos à
contenção do vírus, as atividades de população, mesmo com o avanço da
estágio do PAAS foram suspensas pandemia e do isolamento social. A
em março de 2020, conforme nova modalidade de atendimento
as orientações dos órgãos de exigiu reformulações das atividades
cada categoria profissional e modificou a Ação, permitindo a
(Associação Brasileira de Ensino ampliação da prática e trazendo
de Psicologia (ABEP), Conselho desdobramentos para a intervenção.
Federal de Psicologia (CFP) e
Federação Nacional dos Psicólogos Uma mudança muito significativa
(FENAPSI) (2020) e da Unidade ocorreu na forma dos atendimentos.
de Graduação da Universidade18), Anteriormente, a escuta ocorria
em consonância com os órgãos de presencialmente e em grupo,
saúde (Organização Mundial de no Foro de São Leopoldo e com
Saúde (OMS) e Secretaria de Saúde a nova modalidade, passou a
de São Leopoldo e Secretaria de ser realizada individualmente,
Saúde do Estado do Rio Grande por meio de ligações de áudio
do Sul19). Dessa forma, a Ação no WhatsApp institucional do
“Escuta de mulheres em situação de PAAS. O fluxo de atendimento foi
violência”, que acontecia no Fórum construído conjuntamente, numa
de São Leopoldo, foi interrompida, reunião em junho de 2020, com
até junho de 2020, quando o representantes do PAAS, da Vara
PAAS, após tratativas com os da Violência Doméstica e do Centro
órgãos das categorias profissionais Jacobina21. Essa reorganização na
e autorização da Universidade, metodologia do trabalho permitiu
retomou suas atividades de estágio mantermos as atividades da Ação
na modalidade remota20. O retorno num momento em que as mulheres
das atividades de forma remota foi estavam ainda mais desprotegidas e
essencial, devido a demanda dos precisando de atendimento. Através

18
Disponível em: http://www.unisinos.br/coronavirus.
19
Disponível em: https://coronavirus.rs.gov.br/decretos-estaduais e https://www.saoleopoldo.rs.gov.
br/?titulo=&template=conteudo&categoria=1&codigoCategoria=1&idConteudo=4816&tipoConteudo=.
20
Conforme Plano de Contingenciamento – Covid-19, elaborado pelo PAAS entre 04/05/2020 e
01/06/2020.
21
Maiores informações no artigo: Escuta de mulheres em situação de violência no contexto da pandemia
por Covid-19: relato de experiência, dos Cadernos do PAAS, vol.7, intitulado “Retratos da pandemia:
conexões-desconexões & reconexões”.

135
da escuta individual foi possível foi se delineando, foi marcar a
um acolhimento, na tentativa de importância de elas ingressarem ou
identificar as condições psicossociais reingressarem na rede de proteção
das mulheres, explorar os impactos através do Centro de Referência
do isolamento social em relação do município, o Centro Jacobina.
à violência, mapear as medidas Inicialmente, foram previstos
de proteção já tomadas, além de atendimentos em torno de 30
fornecer informações sobre a rede minutos, porém, com o aumento
de cuidado. da demanda e da gravidade das
situações passamos para 45 a 50
No segundo semestre de 2020 minutos. Na supervisão, o lugar do
foi realizado um levantamento PAAS era discutido, nesse trabalho
sociodemográfico destas mulheres interprofissional, cuja intenção
que estavam sendo atendidas de primordial, além de escutar e
forma remota. Foram selecionados acolher as mulheres, era auxiliar
95 casos, encaminhados entre os no aquecimento da rede, para
meses de junho a setembro de 2020. fomentar e facilitar sua vinculação
Com relação a raça, 70 mulheres entre os serviços, no enfrentamento
se declararam brancas (73,7%), 12 à violência contra a mulher de São
pardas (12,6%), 7 se declararam Leopoldo.
pretas (7,4%) e 6 participantes não
informaram (6,3%). No total da Outra mudança relevante e que
amostra, 76 mulheres informaram também diz do lugar do PAAS nesta
serem solteiras (80%), 11 casadas rede de trabalho, está relacionada
(11,6%), 6 divorciadas (6,3%) e 2 não a construção de um fluxo para
informaram. A violência psicológica a efetivação das notificações
foi a que prevaleceu entre as de todos os casos de violência
participantes, sendo observada em atendidas pelo PAAS, a partir de
85 (89,5%) participantes, seguida da junho de 2020. Sabe-se que a Lei
violência física, que ocorreu em 78 nº 10.778, de novembro de 2003,
(82,1%) casos22. torna compulsória a notificação
de casos de violência contra a
Um dos objetivos principais que mulher no Sistema de Informação

22
Maiores informações no artigo “Para além da escuta de mulheres em situação de violência: relato de
experiência da análise dos fatores sociodemográficos”, publicado nos Cadernos do PAAS, vol.7 intitulado
Retratos da pandemia: conexões - desconexões & reconexões.

136
de Agravos de Notificação (SINAN), (Poder Judiciário, Centro Jacobina e
sendo obrigatória para todos e Reuniões de Rede de Enfrentamento
todas as profissionais da saúde. Por à Violência, no município de São
meio de um trabalho da Vigilância Leopoldo), a ação ainda demanda
Epidemiológica do município de uma grande articulação com a rede
São Leopoldo, iniciado em 2018 interna do serviço, na medida que
com o PAAS e interrompido por não só as estagiárias e supervisores
conta da pandemia por Covid-19, da ação estão envolvidos no
foi possível a implantação da prática trabalho, mas também a secretaria
de notificação no PAAS, a partir do PAAS, que recebe inicialmente
do segundo semestre de 2020. os casos por e-mail vindos do
Foi identificado que esse trabalho Poder Judiciário e alimenta uma
teve uma repercussão significativa primeira planilha. A cada semestre
no município, no que se refere ao um número maior de estagiárias
incremento do número de casos têm se interessado pela ação, não
notificados e o impacto disso para só participando propriamente dela,
a construção de políticas públicas, mas através da análise do banco
considerando que o PAAS passou de dados, originando artigos e
a ser o segundo serviço em São trabalhos de conclusão de curso24.
Leopoldo em notificações de
violência contra a mulher, pelo No momento, o trabalho está
trabalho desenvolvido na ação aqui gradualmente retornando ao
relatada23. presencial, no entanto, não será
abandonada a metodologia remota
Todos os casos atendidos são construída, em função de sua
organizados e sistematizados num efetividade. Essa prática que acolhe
banco de dados do serviço, o que as mulheres, mas que também
possibilita uma compreensão contribui para a formação das
integral destas mulheres e dados acadêmicas de Psicologia, está
para pesquisas. Além da articulação ocorrendo nas duas modalidades
desta ação com a rede externa desde o segundo semestre de 2021,

23
Conforme dados informados pela nutricionista Vanessa Backes, integrante da equipe de trabalho da
Vigilância Epidemiológica do município de São Leopoldo, na atividade da Formação Continuada do PAAS,
ocorrida em 25/10/2021, intitulada “O PAAS & as notificações compulsórias”.
24
Um dos artigos “Para além da escuta de mulheres em situação de violência: relato de experiência da
análise dos fatores sociodemográficos”, foi publicado nos Cadernos do PAAS, vol.7 intitulado Retratos da
pandemia: conexões - desconexões & reconexões.

137
ou seja, tanto no acompanhamento compreende os atravessamentos
das audiências no Foro, como políticos e sociais por trás das
também nas escutas individuais situações de violência, são
remotas. Assim, entendemos que necessárias constantes articulações
a pandemia exigiu da ação novos para ampliar e fortalecer a rede
recursos de trabalho, o que gerou de enfrentamento. Outro ponto
um grande investimento de todos essencial é a compreensão de
os envolvidos e contribuiu para a que são importantes ações em
implementação da ação, na medida nível federal, estadual, municipal
que ampliou as alternativas de e parcerias com organizações e
escuta e acolhimento desse público. com a sociedade para garantir a
efetividade do trabalho que visa
Algumas reflexões sobre o impacto combater a violência, defendendo
do trabalho na formação em a construção de políticas públicas
Psicologia que sigam promovendo a autonomia
e o fortalecimento de mulheres,
O fenômeno da violência contra a quando se encontram fragilizadas e
mulher é complexo e multifacetado, sem apoio para o enfrentamento da
exigindo uma compreensão e situação.
intervenções interprofissionais,
conforme apontado pelo Conselho Por fim, ter contato com a realidade
Federal de Psicologia (CFP, 2013). A da violência de gênero e das
pandemia mobilizou as profissionais desigualdades em relação ao acesso
e atores envolvidos no combate de atendimento especializado
à violência contra a mulher a durante a graduação é um
repensarem e reinventarem as fator constitutivo na formação,
suas ferramentas e práticas. O que repercute diretamente
trabalho na ação reforça o quanto na identidade profissional das
o enfrentamento da violência estudantes estagiárias. Também,
contra a mulher deve ser feito em são observados efeitos nos/nas
rede, com ações combinadas e profissionais envolvidos/as que,
constantes, através de alinhamento diariamente, são atravessados/
e aperfeiçoamento de fluxos, as por esta realidade que aponta
processos de trabalho e relações para a emergência da ampliação
entre serviços. Para além de um dos serviços e suas propostas de
espaço de escuta ampliada, que intervenção. Ainda, evidencia a

138
necessidade de profissionais éticos/ mais potente? Quem mais pode
as e comprometidos/as com a compor conosco? São perguntas
formação e com a atualização de que seguem reverberando e podem
conhecimentos e práticas, a fim inspirar a ampliação, criação
de auxiliar na garantia dos direitos e transformação dos serviços
das mulheres, como imprescindível envolvidos nessa temática.
no trabalho em rede e que, a
cada semestre é um aspecto
atualizado na ação, na medida em
que existe a troca de estagiárias Referências
o que naturalmente movimenta a
atividade e promove um constante Backes, V. (2021). Notificar? Pra
repensar sobre o fazer e um (re) que? Comunicação oral.
planejamento da prática.
Associação Brasileira de Ensino de
Considerações Finais Psicologia, Conselho Federal de
Psicologia & Federação Nacional
A pandemia da Covid-19 acentuou dos Psicólogos. (2020). Nota sobre
questões existentes e trouxe à atividades acadêmicas nos cursos de
tona outras discussões no que graduação em Psicologia em tempos
diz respeito a violência contra a de pandemia. Disponível em:
mulher. Com esse trabalho nos https://site.cfp.org.br/wp-content/
propusemos compartilhar nossa uploads/2020/03/Nota-sobre-
experiência na ação desenvolvida atividades-acad%C3%AAmicas-nos-
no PAAS juntamente com a rede cursos-de-gradua%C3%A7%C3%A3o-
de enfrentamento à violência, em-Psicologia-em-tempos-de-
do município de São Leopoldo, pandemia-Atualizada-1.pdf.
a fim de difundir o trabalho que
vem sendo construído para que a Brasil. (2020). Ministério da Mulher,
discussão seja estendida. Quais são da Família e dos Direitos Humanos.
as práticas possíveis quando falamos Denúncias registradas pelo Ligue
de violência contra a mulher? Como 180 aumentam nos quatro primeiros
construir práticas mais efetivas e meses de 2020. Disponível em:
inclusivas, considerando o contexto https://www.gov.br/mdh/pt-br/
pandêmico e seus efeitos? Como assuntos/noticias/2020-2/maio/
tornar o trabalho em rede ainda denuncias-registradas-pelo-ligue-

139
180-aumentam-nos-quatro- Jubilut, L. L. et al. (2020). Direitos
primeiros-meses-de-2020. Humanos e COVID-19 – Impactos em
Direitos e para Grupos Vulneráveis.
Brasil. (2021). Ministério da Santos: Grupo de Pesquisa “Direitos
Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e Vulnerabilidades” da
Humanos. Canais registram mais Universidade Católica de Santos.
de 105 mil denúncias de violência
contra mulher em 2020. Disponível Brasil. (2003). Lei 10.778, de 24
em: https://www.gov.br/pt-br/ de novembro de 2003. Estabelece
noticias/assistencia-social/2021/03/ a notificação compulsória, no
canais-registram-mais-de-105-mil- território nacional, do caso de
denuncias-de-violencia-contra- violência contra a mulher que for
mulher-em-2020. atendida em serviços de saúde
públicos ou privados. Brasília, DF.
Conselho Federal de Psicologia. Disponível em: http://www.planalto.
(2013). Referências técnicas para gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.778.
atuação de psicólogas(os) em htm.
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situação de Violência. Disponível Organização Pan-Americana da
em: https://site.cfp.org.br/ Saúde e Organização Mundial da
publicacao/referencias-tecnicas- Saúde. (2020). OMS afirma que
para-atuacao-de-psicologas-os-em- COVID-19 é agora caracterizada
programas-de-atencao-a-mulher- como pandemia. Disponível em:
em-situacao-de-violencia/. https://www.paho.org/pt/news/11-
3-2020-who-characterizes-covid-19-
Fórum Brasileiro de Segurança pandemic.
Pública, em parceria com Decode.
(2020). Nota Técnica - Violência Rio Grande do Sul. (2021). Secretaria
Doméstica durante a Pandemia de da Saúde do Estado do Rio Grande
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140
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Decretos de Calamidade Pública
- Coronavírus. Disponível em:
https:// www.saoleopoldo.rs.gov.
br/?titulo=&template=conteudo&ca
tegoria=1&codigoCategoria=1&idC
onteudo=4816&tipoConteudo=.

Rivero, N.E.E. et al. (2020).


Retrato da pandemia: conexões,
desconexões e reconexões. Casa
Leiria: São Leopoldo.

Universidade do Vale do Rio


dos Sinos. (2021). Coronavírus.
Disponível em: https://www.
unisinos.br/coronavirus/.

141
Enfrentamento da violência
no contexto da feminização
da velhice
Dóris Firmino Rabelo

O objetivo do presente ensaio é Ainda são muitos os desafios


discutir no contexto da feminização na formulação de intervenções
da velhice a violência contra interseccionais em Psicologia para o
mulheres, considerando os desafios enfrentamento da violência contra
e possibilidades de enfrentamento mulheres, e aqui destaca-se um
a partir de uma abordagem eixo frequentemente ignorado
interseccional. A interseccionalidade nesse campo: o envelhecimento
corresponde a uma práxis crítica e a para as mulheres. Ou seja, as
uma ferramenta analítica que ajuda questões coletivas de idosas que
a compreender a complexidade normalmente são negligenciadas
do mundo das pessoas e das suas ou omitidas dos debates feministas
experiências e está fundamentada ou programas voltados para
no pensamento feminista negro o atendimento daquelas que
(Collins & Bilge, 2021). Ela deve estar enfrentam situações de violência,
presente em qualquer intervenção mesmo sabendo-se que o mundo
psicológica com pessoas idosas das pessoas idosas, principalmente
para reconhecer a heterogeneidade das mais longevas, é um mundo de
desse segmento etário. O mulheres. É preciso pensar também
embasamento teórico-prático que não só a questão da idade, mas de
considera os nós e as intersecções geração e considerar quem são as
do envelhecimento com o gênero, a idosas atuais e quem serão as do
geração, a sexualidade, a raça/etnia, futuro.
a classe e o território possibilitam
propor um trabalho mais adequado As mulheres continuarão a
às demandas da realidade do representar uma parcela maior da
envelhecimento das mulheres em população idosa e sobreviverão aos
suas múltiplas condições. homens em quase todos os países. A

142
grande questão é o que essa maior o inquérito Vigilância de Violências
longevidade feminina representa, e Acidentes (VIVA), realizado em
individualmente e coletivamente, serviços de emergência em 2017,
em termos econômicos, de saúde, mostrou que mulheres idosas são
familiares e políticos, considerando mais vulneráveis em casa e tendem
as interseccionalidades que a ser agredidas por um familiar
posicionam diferencialmente grupos ou companheiro, e os homens
de mulheres e levam a diferentes idosos, em geral, sofrem violência
trajetórias de envelhecimento. nas ruas por um desconhecido
A compreensão da feminização (Andrade et al., 2020). Ainda, existe
da velhice não pode se restringir uma naturalização, silenciamento
à mera citação de dados e invisibilidade das violações de
sociodemográficos e à investigação direitos, além da subnotificação,
das diferenças entre homens e especialmente contra as mulheres
mulheres em alguns desfechos de (Tavares & Pereira, 2018).
saúde, sem discutir o que significa
envelhecer sendo mulher, em uma Logo no início da pandemia da
sociedade que explora seu trabalho, Covid-19, Ana Amélia Camarano
que controla seu corpo até o fim da (2020) publicou uma nota técnica
vida e que se apropria do seu tempo pelo IPEA com uma projeção das
para cobrir as lacunas das Políticas demandas de cuidado da população
Públicas. Uma sociedade em que as idosa. Ela destacou três pontos: 1)
desigualdades de gênero diminuem As mulheres idosas são as principais
as chances para as mulheres idosas demandantes de cuidados, isto é,
de usufruir da possibilidade de apresentam mais dificuldades para
uma aposentadoria fruto de um o desempenho de atividades de vida
trabalho formal com benefícios, de diária. Porém, elas tendem a receber
ter melhor renda e de ter melhores menos cuidados que os homens na
condições de saúde mental. Essas velhice. 2) A demanda por cuidados
questões precisam ser abordadas na velhice está concentrada nos
e ações direcionadas no campo do estratos menos escolarizados e
enfrentamento das violências. mais pobres, mostrando a relação
da dependência com o contexto de
Os dados de violência contra desigualdade social. A sobrecarga
pessoas idosas no Brasil revelam do cuidado na velhice se intensifica
diferenças de gênero. Por exemplo, para segmentos da população em

143
situação de maior vulnerabilidade, situações de risco para a violência
como por exemplo: mulheres contra pessoas idosas (Brasil,
negras, de baixa renda e pouca 2014). Gênero, envelhecimento e
escolarização. São mulheres que vulnerabilidades sociais estão inter-
vivenciam todas as restrições relacionados e a combinação com
promovidas pela desigualdade as condições de dependência torna
social, impossibilitando, na maioria as mulheres ainda mais expostas
das vezes, condições de acesso a à negligência, ao abandono e aos
recursos sociais e econômicos como maus tratos. A menor autonomia
fonte de apoio para cuidar de si ou e o maior percentual de ausência
para desempenhar essa função com de rendimentos colocam as idosas
outra pessoa. 3) O custo do cuidado na condição de dependentes,
(tempo, financeiro e emocional) provavelmente morando com
fica a cargo da família, mais outros parentes. Homens, em
especificamente de uma mulher, geral, permanecem como chefes de
pois são elas as principais cuidadoras família, mesmo sem rendimentos,
familiares ao longo da vida. Essa e quando perdem a autonomia, os
responsabilidade não proporciona mesmos costumam ter uma esposa
direitos sociais (não é considerado que assume o papel de cuidadora
trabalho produtivo), e pode resultar (Camarano, 2020).
em maior insegurança, inclusive, de
renda, além de demandar atenção Esse cenário piorou para as
e acompanhamento no futuro em mulheres na pandemia. Os dados
função da exaustão física e mental. da Pesquisa de Comportamento
- ConVid (Romero et al., 2021)
É amplamente reconhecido que mostraram que houve a diminuição
a dependência da pessoa idosa da renda em quase metade dos
para atividades de vida diária, domicílios de pessoas idosas, além
o isolamento social, a relação da piora do estado de saúde. O
desigual de poder entre pessoa distanciamento social total foi mais
em situação de violência e acentuado entre as mulheres, e os
agressor/a (a agressão tende a sentimentos de solidão, tristeza,
partir, na maioria das vezes, de ansiedade ou nervosismo foram
homens, mas também há casos de mais frequentes na população idosa
agressoras mulheres) bem como a feminina. A depressão, inclusive, foi
sobrecarga da pessoa que cuida são mais expressiva em domicílios com

144
menor renda. negras, chefes de família e com uma
jornada semanal média de 52 horas.
Os dados do estudo “Cuida- Os dados do Cuida-Covid (Groisman
Covid: pesquisa nacional sobre as et al., 2021) mostraram que em
condições de trabalho e saúde das relação às cuidadoras remuneradas,
pessoas cuidadoras de idosos na a maioria apresentou idade a
pandemia” (Groisman et al., 2021) partir dos 40 anos e características
mostraram que o tempo dedicado que são históricas em relação à
às atividades de cuidado aumentou, exploração do trabalho doméstico
sendo que 73,6% das cuidadoras no Brasil: uma atividade realizada
familiares atuavam nessa função principalmente por mulheres
todos os dias da semana, com negras, de baixa renda, com menor
jornadas de oito (8) a doze (12) ou acesso à escolarização, sem vínculo
mais horas, e 75% responderam que empregatício formalizado, e com
a quantidade de esforço também foi jornadas extensas de trabalho.
maior nesse período. Isso se reflete
na saúde física e mental dessas A institucionalização, uma via de
mulheres. Observou-se, ainda, que encaminhamento para casos de
na pandemia houve mais denúncias violência contra idosas, também
de violência contra pessoas idosas, precisa ser considerada nesse
sobretudo mulheres, inclusive nas debate. As mulheres predominam
Instituições de Longa Permanência nas ILPIs, especialmente as com
para Idosos - ILPIs (Moraes et al., 80 anos ou mais, como acontece
2020). Assim como o distanciamento com as demandantes de cuidados.
social reduziu o já difícil acesso aos Destaca-se aqui as mulheres
serviços de Saúde e de Assistência invisibilizadas, cuja trajetória
Social. familiar é do “quartinho de
empregada” para uma Instituição
No Brasil, muitas pessoas de Longa Permanência. Isto é,
idosas frágeis são cuidadas por aquelas mulheres negras que
trabalhadoras domésticas. Segundo se encontravam em situações
dados da PNAD Contínua (IBGE, precárias, do ponto de vista
2020), 8,7% das trabalhadoras trabalhista, desde a infância no lugar
domésticas eram idosas, mais de “quase da família” de pessoas
de 65% era de mulheres negras, brancas, vivenciam as consequências
ganhando 15% menos que as não disso para a fragilização dos

145
vínculos com a sua família de Assim, considerando os dados
origem, a desproteção social e a apresentados, é importante refletir
institucionalização como única sobre o contexto da feminização da
alternativa na velhice (Silva et al., velhice, em especial, a necessidade
2017). Foram observados diversos crítica de abordar a violação de
casos de resgate de mulheres direitos das mulheres idosas.
idosas em condições análogas Os desafios estão no campo das
ao trabalho escravo durante a violências estruturais, institucionais
pandemia. Ressalta-se ainda que e nas Políticas Públicas. É necessário
as violências nas ILPIs incluem reconhecer o trabalho do cuidado
intolerância religiosa e o tratamento não remunerado exercido pelas
diferenciado no cuidado quando idosas e estender a Proteção Social
a pessoa idosa diverge da norma a elas. É preciso superar a cultura
heterossexista. familista e a naturalização disso
como tarefa feminina. Cuidar de
É preciso atentar-se à questão de uma pessoa idosa é mais do que
que uma mulher idosa na realidade ter ou não “amor no coração”;
brasileira não é apenas um alvo é uma questão política. E dessa
de cuidado, mas muitas ocupam a forma, é urgente o desenvolvimento
função de cuidadora até uma idade de políticas de apoio formal às
avançada, independente se ela cuidadoras familiares e o acesso
própria precisa ser assistida, além a cuidados não familiares de
de frequentemente, ser a provedora longo prazo às pessoas idosas que
familiar. E essa mulher provavelmente necessitem, isto é, serviços tais
depende mais de benefícios sociais como programas de acompanhantes
(em especial as negras), tendo menor de pessoas idosas (a exemplo do
chance em relação a um homem de que existe na cidade de São Paulo)
receber cuidados, além de ser maioria e modalidades não manicomiais
nas ILPIs. Outra questão central é de assistência institucional com
o ageísmo interseccionado com o ampla cobertura oferecidos pelo
sexismo presente no atendimento Estado. É fundamental também uma
às idosas, isto é, quando a prática reflexão crítica dos programas que
não é guiada para a autonomia, dão centralidade às mulheres nas
mas mediada pela infantilização, orientações e encargos das atividades
paternalismo, controle e tutela de cuidado, tanto no âmbito da
(CRP03, 2021). Saúde quanto na Assistência Social.

146
O enfrentamento da violência tendências de marginalização na
contra pessoas idosas inclui velhice, medo do futuro, violência
três frentes. A primeira delas, é interpessoal ou autoprovocada
a ampla promoção da saúde e (Fernandes-Eloi & Rabelo, 2021).
bem-estar no envelhecimento. A
violência é um fator determinante Os programas de promoção
para o adoecimento psíquico de da saúde e bem-estar no
mulheres idosas, está associado envelhecimento no Brasil estão
a uma percepção negativa da amparados pelas Políticas da
saúde física e mental, contribui Organização Mundial de Saúde
para processos autodestrutivos e (Envelhecimento Ativo e Década
sempre é atualizada nas relações do envelhecimento saudável nas
sociais cotidianas e intergeracionais Américas - 2021-2030), pelas
(Oliveira, Costa e Silva & Farias, ações intersetoriais das Políticas
2021). As desigualdades raciais Públicas de Saúde e Assistência
geram para as idosas negras maior Social, bem como, pelos espaços
exposição às vivências de lutos, de Controle Social (Secretarias
perdas e violências, além de piores Municipais e Estaduais, Conselhos
condições socioeconômicas e do Idoso), pelos projetos
de acesso à saúde. As idosas da socioculturais, educacionais, de
população do campo, das florestas lazer e de ocupação do tempo
e das águas (povos e comunidades livre (Universidades Abertas à
que têm seus modos de vida, Terceira Idade-UATis, centros
produção e reprodução social de convivência e comunitários,
relacionados predominantemente ações educativas gerontológicas,
com a terra e com a água) têm projetos para a vida saudável) e
seus cursos de vida marcados por pelas associações voltadas para
relações violentas de exploração e psicopatologias ou condições
extermínio, pobreza, conflitos de específicas de saúde (Associação
terra, racismo ambiental e privação Brasileira de Alzheimer- ABRAZ,
múltipla de bens e serviços (Rabelo, Associação Brasileira Parkinson,
2020). As idosas LGBTQIAPN+ tem etc.). O desafio é promover ações
menores chances de receberem de fato interseccionais, de incentivo
cuidados e de acessar serviços de ao protagonismo político da pessoa
Política Pública de Saúde, Educação idosa, fazendo o planejamento em
e Assistência Social. E maiores conjunto, para respeitar a premissa

147
“nada sobre nós sem nós” e a geral, as orientações nacionais
inclusão da discussão de gênero e internacionais incluem as
em todos os âmbitos, desde a seguintes estratégias: investir numa
concepção até a execução. sociedade para todas as idades,
apoiar as famílias com pessoas
No campo da saúde mental, a idosas em sua casa, criar espaços
psicoterapia costuma aparecer sociais seguros, capacitação de
como a única estratégia viável, profissionais de Saúde, Assistência
ignorando que a saúde mental Social e cuidadores/as profissionais
depende do contexto social, de na abordagem preventiva da
condições concretas e dignas violência, incentivando a autonomia
de vida. Em um cenário de crise das pessoas idosas, articulando
política, desfinanciamento das atividades para a informação,
Políticas Públicas e ofensivas promovendo maior contato social e
constantes à classe trabalhadora, apoio às famílias com pessoas idosas
não há psicoterapia ou guia de dependentes.
orientação às famílias e às pessoas
idosas que sozinho dê conta. Não Programas voltados à pessoa
tem receita nem dica que, se focada responsável pelo cuidado
exclusivamente no indivíduo, seja são importantes para atuar
capaz de fazer um enfrentamento sobre o estresse objetivo e
efetivo. São paliativos e tem sua subjetivo, destacando-se pontos
importância no acolhimento e no de intervenção: informação,
cuidado. Mas o nosso caminho questões do papel (sobrecarga,
precisa ser, principalmente, no reconhecimento, identidade, culpa,
sentido de fortalecer redes e laços ambivalência afetiva, etc.), questões
sociais e investir nas mobilizações familiares, aperfeiçoamento de
sociais. habilidades quanto a responder
necessidades de quem é cuidado,
A segunda frente de enfrentamento apoio formal e informal. Porém,
da violência contra pessoas idosas ressalta-se novamente as limitações
é a abordagem preventiva de dessas intervenções, especialmente
violação de direitos. A Política de se o papel de cuidar é naturalizado
Assistência Social (Proteção Social como uma tarefa de mulheres e
Básica e Especial) é fundamental se as desigualdades de gênero
nesse contexto. De modo são silenciadas. Os programas

148
de capacitação profissional, a tipo psicológica, pois envolve a
discussão sistemática em equipe, invisibilidade do seu trabalho
o apoio às ILIPs e uma agenda de doméstico e de cuidado, crenças
enfrentamento ao ageísmo que seja gendradas na submissão e
feminista e antirracista devem ser passividade, senso de ser
prioritárias. responsável pela harmonia familiar
e pelas condutas de descendentes
A terceira frente de enfrentamento em razão dos conflitos. Ainda,
é a intervenção psicossocial para o na velhice, comportamentos
atendimento de idosas em situação de controle e cerceamento
de violência, que geralmente da autonomia das idosas não
envolvem o tripé - detecção, costumam ser vistos como
avaliação e intervenção - e exigem violentos, mas como cuidado. Esse
uma atuação multisetorial e tipo de protecionismo coercitivo
interdisciplinar. Mulheres idosas atinge a vida social e afetivo
sofrem duas vezes mais violência sexual das mulheres e o manejo
do que os homens, havendo do próprio dinheiro e bens. Isto
maior incidência a partir dos é, os abusos permeados pelo
70 anos de idade, com viúvas/ exercício da dominação-exploração
divorciadas, aposentadas, de por legitimação do poder ou
baixa renda e escolaridade, que imposição, ao longo da vida, podem
muitas vezes apresentam algum intensificar-se nessa fase da vida.
comprometimento físico e/ou
cognitivo, com residência própria, As estratégias de intervenção
coabitando com seus próprios costumam abarcar três dimensões:
agressores, que em geral são filhos o apoio social (reduzir o isolamento
homens, com idade entre 40 e 49 e informar sobre direitos), o
anos que se dizem responsáveis pelo fortalecimento (intervenções
cuidado, mas não necessariamente psicossociais que ajudam as
assumem esse papel com a pessoa idosas a maximizar sua confiança
idosa (Morilla & Manso, 2021). e habilidades a fim de recuperar o
controle de suas vidas, acionando
A detecção da violência é um a função protetiva da família e
nó crítico quando se pensa na programas multiprofissionais
mulher idosa, em especial a do específicos de atendimento

149
às pessoas em situação de A abordagem interseccional da
violência e as que perpetuam a violência contra mulheres idosas é
agressão); e serviços sociais de uma questão prioritária que afeta
base comunitária integrados para a todas-todes-todos nós. Ainda são
estabelecer atividades conjuntas grandes as dificuldades dos serviços
capazes de aproveitar os recursos responsáveis pelo atendimento
existentes (por exemplo, serviços às pessoas idosas, de modo que é
da Assistência Social integrados preciso tornar essa questão mais
a movimentos e organizações visível destacando-se as desiguais
da comunidade/território). É relações sociais de gênero, classe
importante que as intervenções e raça, sensibilizar profissionais,
levem em consideração a díade realizar pesquisas, além de
idosa/pessoa que executa a fortalecer políticas de atuação
violência, o tipo de abuso, o integrada que possam possibilitar
ambiente (comunidade, instituição), maneiras eficientes de manejar
características pessoais (ex.: estado este problema social. Em um nível
cognitivo e mental), a natureza do macro é preciso atuar na redução
relacionamento (familiar, colega de das desigualdades sociais e da
quarto, equipe ou outras relações) violência estrutural. É fundamental
(Brasil, 2014) e a interseccionalidade o fortalecimento da articulação
(gênero, raça, sexualidade, etc.), entre os serviços da Rede de
articulados aos serviços da Proteção e Defesa da Pessoa Idosa
rede de Proteção Social. Podem (RENADI), que incluem as três
incluir: ações socioeducativas frentes de enfrentamento citadas
(acompanhamento, orientação e nesse texto. A aliança das diferentes
reflexão); supervisão técnica para a formas de atuação na Psicologia
equipe; assistência na área jurídica na RENADI pode resultar em um
de família (mediação de conflitos e movimento estratégico na luta
acolhimento); suporte emocional contra as violências perpetuadas
de urgência; fortalecimento e no processo de envelhecimento.
ampliação dos recursos pessoais, Há a necessidade de desenvolver
sociais e institucionais para o serviços especializados que atendam
enfrentamento da violência e às demandas reais das idosas nas
avaliação psicológica. situações de violação de direitos e

150
que incluam a pessoa perpetradora Camarano, A. A. (2020). Cuidados
da agressão. É vital garantir para a população idosa e
serviços de saúde mental voltados seus cuidadores: demandas e
para mulheres idosas e incluí-las alternativas. Brasília: IPEA.
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violência de gênero. Conselho Regional de Psicologia
3ª Região Bahia (CRP-03). (2021).
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É necessário superar. Brasília, DF: pessoas cuidadoras de idosos na
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151
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152
Absorvendo o tabu: relato de
uma prática com mulheres
assistidas pelo Centro de Defesa
dos Direitos da Mulher em
Maceió, AL
Eliene Ellen Ferreira Guedes Laranjeira
Elisama Barboza Farias
Olga Myllena Diniz Botelho Santana
Wesllany Dos Santos Borges e Silva
Luciano Bairros Da Silva

Introdução se e trocarem seus produtos


menstruais impedia que elas
O tema higiene menstrual passou a desenvolvessem diversos aspectos
ter destaque na agenda das agências de suas vidas, assim como lhes
internacionais de direitos humanos, favorecia a associação de estigmas
em especial, a partir do relatório que evocam sujicidade e nojo (Roaf
especial apresentado por Catarina & Albuquerque, 2020).
de Albuquerque à Organização
das Nações Unidas (ONU), que à O Fundo de População das Nações
época ocupava nessa organização Unidas (UNFPA) e Fundo das
o mandato sobre direitos Nações Unidas para a Infância
humanos, água e saneamento. (Unicef) definem pobreza menstrual
Em entrevista concedida a Virginia como “um fenômeno complexo,
Roaf, Catarina de Albuquerque transdisciplinar e multidimensional,
comenta que durante suas visitas vivenciado por meninas e mulheres
de trabalho a diversos países devido à falta de acesso a recursos,
observava que a dificuldade de infraestrutura e conhecimento para
acesso ao saneamento adequado que tenham plena capacidade de
e a instalações apropriadas para cuidar da sua menstruação” (UNFPA
meninas e mulheres higienizarem- & Unicef, 2021, p. 05). Consolida-se

153
atualmente o consenso de que as No contexto brasileiro, o tema
experiências negativas relacionadas recebeu ampla repercussão após
à menstruação, assim como tabus a disputa para aprovação da Lei
que impõem o silenciamento nº 14.214, de 06 de outubro de
sobre esse fenômeno a muitas 2021 (Brasil, 2021), que institui o
meninas, mulheres e pessoas trans, programa de proteção e promoção
aprofundam as desigualdades entre da saúde menstrual, de autoria da
os gêneros. deputada federal pelo Estado de
Pernambuco, Marília Arraes. Depois
Nesse sentido, Inga Winkler dessa aprovação no Congresso
(2020) observa serem crescentes Nacional, o presidente da república,
as iniciativas para reconhecer Jair Bolsonaro, vetou trechos da lei
a menstruação como um eixo que: asseguravam a oferta gratuita
estrutural na construção das de absorventes e de cuidados em
políticas públicas. Porém, sabe- saúde menstrual; determinavam a
se também que, historicamente, lista de pessoas que deveriam ser
aquelas pessoas com beneficiadas, em geral, meninas
governabilidade para implementar e mulheres em situação de
essas ações, não as realizam por baixa renda, de rua, privadas de
desatenção e negligência a essa liberdade ou em cumprimento de
demanda ou mesmo por oposição medida socioeducativa; garantia
deliberada. Em âmbito internacional, a responsabilidade de custeio
houve a recomendação de que e execução dessas ações pelo
a higiene e a pobreza menstrual Sistema Único de Saúde; e incluía
fossem incluídas nos Objetivos o absorvente como item nas cestas
do Desenvolvimento Sustentável, básicas entregues pelo Sistema
o que ainda não foi efetivado, Nacional de Segurança Nutricional.
mas que, no entanto, provocou o Com a ampla repercussão do fato
aprofundamento do debate sobre na mídia e a intensa pressão das
a associação do tema a muitos dos organizações da sociedade civil
objetivos presentes na Agenda 2030 para aprovação da lei, os vetos
e na melhoria do monitoramento e presidenciais foram posteriormente
coleta de dados sobre menstruação derrubados no Congresso e a lei foi
em muitos países (UNFPA & Unicef, então sancionada.
2021; Roaf & Albuquerque, 2020).

154
É importante ponderar que, mesmo vivência e existência, marcadas
com a emergência do tema, há, pela condição de gênero. Sendo
no momento, reduzida produção assim, estivemos pautadas pela
na literatura científica específica necessidade permanente de reflexão
da Psicologia no cenário brasileiro sobre o lugar de escuta e de fala das
sobre a dignidade menstrual, mulheres, no contexto sociocultural
assim como são escassos os marcado historicamente pelo
documentos comunicando as machismo estrutural.
ações desenvolvidas que implicam
profissionais e a formação em Cenário da prática
Psicologia nesse âmbito. Desse
modo, este artigo objetivou relatar Este trabalho foi desenvolvido no
uma prática de intervenção realizada segundo semestre de 2021 a partir
por alunas de um curso de Psicologia da disciplina Prática Integrativa
sobre o tema da pobreza menstrual III, do curso de graduação em
junto a mulheres assistidas em uma Psicologia, do Centro Universitário
organização de defesa dos direitos Cesmac. Naquele momento, o
das mulheres, em Maceió, Alagoas. grupo de alunas autoras buscou
integrar-se às ações desenvolvidas
Percurso metodológico na organização não governamental
Centro de Defesa dos Direitos da
É importante comunicarmos que Mulher, localizada no bairro Santos
a prática relatada neste trabalho Dumont, na capital Maceió, Alagoas.
foi integralmente desenvolvida por A organização iniciou suas atividades
um grupo de mulheres constituído em 2018 e tem como missão “atuar
por: estudantes de um curso de em prol da garantia dos direitos de
Psicologia, profissionais da área da meninas e mulheres em situação
Psicologia e do Direito e usuárias de violência e vulnerabilidade
assistidas pelo Centro de Defesa dos social, além de promover ações
Direitos das Mulheres (CDDM) em com foco na prevenção com
Maceió, Alagoas. Incluímos também vistas no fortalecimento da rede
que mantivemos como orientação de atendimento a este público
para a prática a compreensão de no estado de Alagoas” (Laurindo
que as mulheres entendem as et al., 2020, n.p). A equipe
dores e os desafios aos quais são multiprofissional dispõe de
expostas a partir de sua própria voluntárias das áreas de Psicologia,

155
Serviço Social e Direito. As ações individualmente ou em grupos. No
ofertadas são gratuitas e incluem entanto, da intervenção ofertada
acolhimento às mulheres em e coordenada pelas autoras
situação de violência, assessoria deste relato, participaram 14
jurídica, aconselhamento mulheres — todas elas haviam
psicológico, orientação para acesso acessado a organização a partir do
e garantia aos direitos da mulher. À encaminhamento de um Centro
época, o CDDM possuía o registro de Referência de Assistência Social
de 384 mulheres cadastradas, (CRAS) da região, ou seja, nenhuma
as quais foram atendidas após havia buscado a CDDM por
sofrerem violência de gênero, seja demanda espontânea.
essa psicológica, física, sexual,
patrimonial e/ou moral. Procedimentos

A estrutura física conta com espaços A vivência no CDDM contou


para atendimento individual, área com duas fases, realizadas nos
para desenvolvimento de atividades meses de setembro e outubro de
em grupo, ambiente para recreação 2021. Iniciamos pela observação
infantil, biblioteca, refeitório e participante para captação de
banheiros. A ambiência do CDDM é informações, discussões com a
acolhedora. As paredes cativam as equipe da organização, contato com
visitantes com belas pinturas, assim as mulheres assistidas, identificação
como é despertado o desejo de das demandas e participação nas
conhecer as histórias ali contadas, atividades desenvolvidas. A seguir,
pelos vários registros escritos a conduzimos uma prática interventiva
tinta logo à entrada da organização, consoante com a organização e a
feitos pelas próprias mulheres ali demanda das usuárias, descrita no
acolhidas. relato da experiência.

Participantes da prática Observação participante

Durante o período da vivência Em uma primeira visita à


junto às atividades desenvolvidas organização, fomos acolhidas pela
no CDDM, tivemos oportunidade psicóloga, a assistente social e a
conhecer aproximadamente 40 equipe de gestão. Na ocasião, foram
mulheres que eram assistidas registradas as percepções acerca do

156
espaço e colhidas as informações enfrentados pelo terceiro setor
gerais, como número de mulheres para garantir os recursos mínimos
atendidas, perfil do público, e essenciais para sua efetivação,
objetivos e atividades desenvolvidas bem como a disponibilidade para o
no CDDM. Além das expectativas trabalho colaborativo e criativo que
com a própria prática, estávamos as voluntárias expressam na atuação
como estudantes iniciando nosso da instituição junto às mulheres em
primeiro trabalho presencial situação de violência — o que, para
desde que havia se decretado a nós, observadoras, já representava
pandemia da Covid-19, em março um marco em nossa experiência.
de 2020. Era, então, um momento
de descobertas, pois, além da A imersão, de fato, às atividades
retomada das atividades acadêmicas da organização, ocorreu quando
presenciais, aquela seria nossa participamos, como ouvintes,
primeira prática interventiva durante de uma roda de conversa sobre
a graduação em Psicologia. autocuidado, conduzida pelas
profissionais de Psicologia. Para essa
Por ser esse nosso contato atividade em grupo as psicólogas
inicial, também foi marcado pelo utilizaram as perguntas-chaves:
entusiasmo, pela novidade e pela a) quem sou? b) o que penso?
apreensão da própria condição de c) como faço? d) por que faço?
aprendizes. Somado a isso, tivemos para estimular um espaço de
um acolhimento marcante por parte fala e levantar reflexões acerca
da equipe efetiva da organização, de questões que potencializam e
que persistiu durante toda a nossa fortalecem a identidade de cada
prática, objetivando afeto e troca mulher atendida, bem como
de experiências e reflexões ao final daquilo que se apresenta como
de cada ação. Essa foi uma etapa de fraqueza — ou seja, o que as
descobertas, não só com as pessoas, impede de ser quem desejam ser.
mas com o próprio reconhecimento Observamos que entre os relatos
do espaço. Nas paredes, as frases prevaleceram os que destacavam a
ali expostas nos colocavam em sobrecarga do trabalho doméstico
contato com a luta das mulheres como um obstáculo que as
que constroem e tornam possível impede de desenvolverem outros
o CDDM. Além disso, ampliamos aspectos de suas vidas. Entre
a concepção acerca dos desafios os pontos de fortalecimento,

157
destacaram-se pessoas de seus Prática interventiva
ciclos familiares, sobretudo aqueles
que mais desenvolvem relações de Após o levantamento de
afetividade, como filhos e netos. informações sobre a organização,
as atividades que desenvolvem e a
A participação na roda de conversa respeito das principais demandas
sobre autocuidado também nos apresentadas pelas mulheres com
permitiu um olhar sobre nós quem escutamos e conversamos,
mesmas. Como seria possível realizamos uma reunião com as
questionar outra mulher sobre psicólogas do CDDM. O encontro
quem ela é, o que ela pensa, o tinha por objetivo a apresentação
que ela faz e o porquê de suas das impressões que registramos
ações sem, antes, perguntarmos até aquele momento, e buscar
a nós mesmas o que carregamos definir conjuntamente uma
conosco? Assim, pudemos não só atividade que pudéssemos ofertar,
nos identificar com alguns daqueles e que contribuísse tanto com a
relatos, como também estabelecer organização, como também para as
uma relação de empatia e de escuta mulheres atendidas.
humanizada.
Em um seguinte encontro, estivemos
Também nos foi permitido reunidas com as psicólogas do
acompanhar os atendimentos do CDDM e estudantes de Psicologia de
plantão jurídico, serviço realizado outra instituição de ensino superior.
por uma advogada. Nesse momento, Para esse momento, conduzido
priorizamos o levantamento das por uma das psicólogas, foram
demandas apresentadas pelas distribuídas cartas com situações
mulheres, de modo a apoiar as inusitadas que apresentavam
atividades interventivas posteriores. conflitos entre razão e emoção,
Essa experiência permitiu relações pessoais e financeiras,
observarmos a importância e família e trabalho, egoísmo e
a eficácia do trabalho de uma altruísmo, entre outros. A seguir,
equipe pautada tanto na garantia e nos era perguntado como agiríamos
promoção de direitos como no bem- em cada uma das situações. Essas
estar físico e mental das mulheres, perguntas nos levaram a reflexões
ofertando-lhes uma assistência o e diálogos sobre vários tabus e de
mais integral possível. que maneira também nos víamos

158
enredadas nesses tabus. Isso nos Após construirmos um planejamento
permitiu expor pensamentos para a roda de conversa, reunimo-
controversos diante do grupo e, nos novamente com a equipe do
assim, estimular a troca de ideias e CDDM para apresentar a proposta
crítica sobre as relações de gênero e realizarmos os ajustes que
e a respeito de nós mesmas. considerássemos pertinentes. Nesse
Essa técnica disparou o diálogo, encontro, ficaram definidas questões
destravou aquelas mais tímidas e fez relativas à condução da prática,
borbulhar pensamentos e críticas materiais necessários, convidadas,
que nos encaminharam a definição público-alvo, logística, atribuição de
por ofertar uma intervenção na papéis e a confecção e oferta de kits
organização. de higiene pessoal para mulheres
— com absorventes, sabonetes
Definimos ofertar uma roda de líquidos e presilhas —, assim como
conversa (Bernardes, Santos, & o título com o qual a atividade seria
Silva, 2015) com o tema da pobreza divulgada: Absorvendo o tabu.
menstrual. A temática foi escolhida
principalmente após identificarmos Relato da experiência:
o contexto socioeconômico em Absorvendo o tabu
que vivia a maioria das mulheres
assistidas pelo CDDM, visto que se A roda de conversa intitulada
encontram em situação de pobreza. “Absorvendo o tabu” foi ofertada
A escolha por essa temática com o intuito de debater o tema
foi, também, influenciada pela da pobreza menstrual, a fim de
repercussão que essa discussão que as participantes refletissem
havia tomado a nível nacional, sobre a importância do processo
naquele momento, pois estava em menstrual para o corpo feminino.
disputa, no Congresso Nacional, A roda de conversa foi conduzida
a aprovação de políticas públicas na responsabilidade da psicóloga
direcionadas à democratização do preceptora do CDDM, por duas
acesso a absorventes pela população estudantes de Psicologia — as
em situação de vulnerabilidade autoras Eliene Laranjeira e Elisama
socioeconômica. Entendíamos que Farias — e por uma psicóloga e
o compromisso e a responsabilidade educadora menstrual convidada
social da Psicologia nos colocavam para a intervenção.
consonantes com aquela pauta e
implicadas na garantia desse direito. O momento foi marcado pela fala
159
da educadora menstrual sobre A pobreza menstrual narrada pelas
quebra de tabu acerca da temática, mulheres que a vivenciam retrata
precariedade quanto ao acesso a a sobrecarga mental e os danos de
produtos para manter a higiene diferentes ordens, desde os riscos de
pessoal no período menstrual e infecção em decorrência de soluções
apresentação de formas de conter improvisadas ao sentimento
o fluxo menstrual — coletores e de inferioridade por não terem
absorventes. Simultaneamente, acesso a materiais básicos ou, até
foram-se gerando relatos do grupo mesmo, à interrupção de atividades
acerca da própria experiência importantes para seu crescimento
com a menstruação, sobre fatos e para a sua independência. Por
traumáticos, exemplos familiares, exemplo, faltar à aula ou ao trabalho
práticas de higiene adotadas, a para evitar constrangimentos.
época em que se recorria a panos
e fraldas, assim como sobre a A temática não só contribui
negligência e falta de acesso a para as discussões acerca de um
produtos de higiene. problema de saúde pública como
de ampla repercussão na esfera
Uma fala pertinente e que chamou social. A situação entra no campo
a atenção na roda foi de uma dos próprios determinantes
participante relatando com detalhes sociais de saúde e perpassa
que, durante sua adolescência, muitas outras áreas, inclusive a da
utilizava folhas de uma árvore violência doméstica que acomete,
como única opção para conter seu sobretudo, as mulheres negras —
fluxo menstrual. A seguir, contou historicamente oprimidas no Brasil.
que atualmente faz de tudo para Dialogar sobre essa temática com
que sua neta não passe pela as mulheres atendidas no CDDM
mesma situação, destacando que possibilitou compreender qual o
se esforçava para que não faltasse entendimento que elas têm de seu
o absorvente dela. A sentença papel social, da sua identidade, dos
revelou como o acesso a materiais conhecimentos sobre o próprio
de higiene pessoal representa, além corpo, dos seus direitos, bem como
de condições básicas de saúde, de suas condições socioeconômicas.
dignidade para as mulheres. Foi também um momento para

160
oferecer escuta e aconselhamento Breanne Fahs (2020) também
psicológico a essas mulheres. alerta que mulheres negras adultas
relatam com maior frequência
Um assunto não levantado nos experiências negativas relacionadas
diálogos da roda de conversa às práticas sexuais durante o
“Absorvendo o tabu” foi referente período menstrual do que mulheres
as implicações de raça com o tema brancas. Nesse sentido, avaliamos
da pobreza menstrual. No entanto, ser importante a perspectiva de
entendemos ser importante indicar raça receber relevo nos estudos
que Alagoas figurou, no Atlas da que tratem da pobreza menstrual,
Violência em 2019, a taxa de 5,1 pois também essa faz performar
homicídios de mulheres por cem mil os modos como as mulheres
habitantes, acima da taxa nacional, se relacionam com os tabus da
que foi de 3,5. Esse dado se torna menstruação.
mais abjeto quando identificamos
que naquele ano 100% dos Ao final, distribuímos 30 kits de
homicídios de mulheres registrados higiene pessoal, assim como
no estado ocorreram contra ofertamos um coffee break para
mulheres negras (Cerqueira et al., proporcionar um momento a mais
2021). Ainda que sejam escassos de socialização entre as mulheres e
os dados sobre pobreza menstrual a equipe. Os kits foram entregues a
relacionados a mulheres negras cada uma das mulheres presentes.
no Brasil, o relatório do UNFPA e Algumas que já se encontravam em
Unicef (2021, p. 22) identificou que, fase da menopausa se alegraram
proporcionalmente, meninas negras por poder levá-lo às suas filhas e/
têm três vezes mais chances de não ou netas. Os que sobraram foram
ter acesso a nenhum banheiro em deixados na organização para serem
casa do que meninas brancas em entregues a outras mulheres que
mesmas condições. Essa relação se viessem a necessitar.
inverte quando consultadas sobre
um número maior de banheiros, Por fim, a psicóloga e preceptora
pois “a chance de que as meninas reservou um momento à parte com
negras vivam em domicílios com a equipe a fim de comentarmos
4 ou mais banheiros privativos é a atividade, além de abordar
78% menor do que a das brancas” as contribuições da Psicologia.
(UNFPA & Unicef, 2021, p. 22). Nesse momento, também nos

161
foi enfatizada a visão da equipe em Psicologia, especialmente em
com respeito aos impactos da parceria com organizações da
atividade para as mulheres que sociedade civil, podem favorecer
participaram da roda de conversa. a formação de profissionais que
Avaliamos que a técnica permitiu o futuramente atuem e incluam a
compartilhamento de experiências atenção a esse direito no cotidiano
entre as participantes, favorecendo de trabalho, como também apoiem
a identificação e o vínculo entre e efetivem a estruturação desse
elas. Conversamos ainda sobre direito nas políticas públicas
a importância dessa vivência no brasileiras.
processo de formação de estudantes
e futuras profissionais em Psicologia. Agradecimentos

Considerações Finais Agradecemos à equipe do Centro de


Defesa dos Direitos das Mulheres
A vivência de discentes de (Maceió/AL) e às mulheres lá
Psicologia em uma organização de atendidas, que favoreceram e
defesa dos direitos das mulheres contribuíram para a concretização
favoreceu o debate e a crítica sobre deste trabalho.
a responsabilidade da Psicologia
com mulheres em situação de
violência, como também com a
transformação das condições de vida Referências
que as impedem de desenvolver
suas forças e potencialidades. Foi Bernardes, J.S., Santos, R.G.A.,
também o momento de fomentar & Silva, L.B. (2015). A “Roda de
a importância da perspectiva de Conversa” como dispositivo ético-
gênero na formação em Psicologia, político na pesquisa social. In C.E.
gerando outros sentidos no uso dos Lang, J.S. Bernardes, M.A.T. Ribeiro,
repertórios teóricos e na realização & S.V. Zanotti (Ed.), Metodologias:
das práticas com a inclusão dessa pesquisa em saúde, clínica e práticas
dimensão. psicológicas (pp. 13–34). EDUFAL.

Nesse sentido, consideramos Cerqueira, D., Ferreira, H., Bueno, S.,


que vivências para a garantia da Alves, P.P, Lima, R.S., Marques, D.,
dignidade menstrual na formação Silva, F.A.B., Lunelli, I.C., Rodrigues,

162
R.I., Lins, G.O.A., Armstrong, K.C., de 2006, para determinar que as
Lira, P., Coelho, D., Barros, B., cestas básicas entregues no âmbito
Sobral, I., Pacheco, D., & Pimentel, do Sistema Nacional de Segurança
A. (2021). Atlas da violência 2021. Alimentar e Nutricional (Sisan)
Fórum Brasileiro de Segurança deverão conter como item essencial
Pública. o absorvente higiênico feminino.
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06 de outubro de 2021. Institui o
Programa de Proteção e Promoção
da Saúde Menstrual; e altera a
Lei nº 11.346, de 15 de setembro

163
“Com você eu ando melhor?”
Críticas feministas de um
caminhar dentro e fora das
políticas públicas
tentativa de demonstrar que as
mulheres andarem juntas é melhor
A chamada para escrever este texto quando encontramos um ENTRE a
provoca alguns desconfortos em psicanálise e o feminismo. E que,
relação à atuação da Psicologia e da a partir disso, é possível construir
Psicanálise pelos caminhos dentro uma textualidade crítica para
dos espaços públicos e/ou privados. pensarmos sobre a escuta, os
Esses desconfortos, ao longo dos dispositivos clínicos, a proteção e o
anos, tomaram corpo através do reconhecimento de tantos corpos
estudo e práxis da psicanálise e do denominados de mulher.
feminismo na busca por modos de
escutar e intervir nas situações de Cenas do andarilhar
violência e suas formas de produção
e reprodução das desigualdades de Cena 1:1 - Sarau Feminista na
gênero, classe e raça. cidade de Porto Alegre em espaço
aberto:
Vamos dividir com vocês algumas
cenas25 desse andarilhar do ser Tina26: - Menina, quando jovem eu
psicóloga e psicanalista por dentro amava sapatos... (breve silêncio),
e por fora das políticas públicas. mas nunca tive dinheiro para
Escolhemos para isso os espaços comprar nenhum desse bonito aí.
de um hospital infantil e de um (Breve suspiro). Hoje já nem posso
sarau feminista realizado por um usar porque meus pés não me
projeto de educação feminista, permitem…
que ocorre de maneira itinerante
pela cidade de Porto Alegre, na Tina é uma mulher preta, com
25
As Cenas foram construídas e escolhidas como perspectiva metodológica de pesquisa sustentada no
fazer da psicanálise.
26
Todos os nomes utilizados durante este escrito são fictícios.

164
seus pés calejados e calcanhares Tina, denominada Mulher, é
abertos, que trabalhou durante boa moradora da periferia da cidade e
parte de sua vida em uma casa com está na faixa etária dos 50 anos. É
adolescentes de poder aquisitivo empregada doméstica desde seus
que se submetiam a procedimentos 18 anos, limpa a mesma casa há 32
estéticos com certa regularidade. Os anos.
pés dessa mulher preta nos contam
de sua itinerância pela cidade e das Cena 2:1 - Hospital na cidade de
linhas lotadas do transporte público, Porto Alegre:
e sobre um detalhe que não é do
conhecimento de todes: a pele - Moça, será que a senhora poderia
dos pés resseca e racha, deixando pedir para trocar o colchão do
a região do calcanhar em carne berço do meu filho? É muito grande
viva, quando se trabalha de chinelo e toda a vez que levanto a grade
ou pés descalços em exposição (demonstra o que diz segurando
aos produtos de limpeza que a barra de segurança do berço e
encontramos no supermercado. levantando-a), o colchão (que era
maior que o berço) sai do lugar
Cena 1:2 - Sarau Feminista na e é preciso encaixar (Não havia
cidade de Porto Alegre em espaço comodidade para mãe, nem para
aberto: criança).

No pico mais alto da pandemia do Eu pergunto: - Já solicitou à equipe?


Covid-19, que ainda enfrentamos,
seu patrão pega o vírus e chega a - Já, ela diz que não pode ir pegar
ser internado. Durante a internação, outro.
ocorre alguma confusão em relação
ao plano de saúde e o “direito” Olho para a responsável pelos
ao leito privativo. Ele, Pedro, leitos daquele quarto e já não a
ficaria no hospital em um leito encontro. O que ocorreu é que, ao
com mais pessoas. Quando toma ver outra profissional se ocupando
conhecimento disso, Tina verbaliza: com aquela solicitação de forma
- Imagina o Sr. Pedro, coitado! Num a legitimá-la, rapidamente ela foi
quarto cheio de gente! Isso é para buscar outro colchão de tamanho
nós do SUS, não para ele. adequado ao leito. Depois da troca
dos colchões, em silêncio para a

165
Mulher que solicitou ajuda para convencer a mãe de Joãozinho
conseguir algo que na verdade lhe a permitir uma transferência de
é de direito, procuro falar com a setores, a equipe médica solicita
profissional responsável pelo quarto auxílio à Psicologia. O pedido
perguntando o que houve, se ela era que a psicóloga do setor
precisa de alguma ajuda. A resposta “manejasse” essa mulher difícil e
que vem é “elas querem tudo, o violenta, acrescentando, ainda, que
tempo todo pedindo algo”. o melhor seria se ela levasse logo a
criança embora, pois, sem receber
Cena 2:2 - Hospital na cidade de o tratamento adequado (que a mãe
Porto Alegre: não permitia naquele momento
que fosse iniciado), poderia
É possível proibir as saídas, mesmo morrer ali mesmo e haveria, então,
que breves, das “mães” do setor culpabilização do serviço.
x. Elas estão saindo muito do setor
para passear. Por uma nova textualidade

Cena 2:3 - Hospital na cidade de A maioria das textualidades


Porto Alegre: teóricas dentro da Psicologia e da
Psicanálise ainda apresenta uma
Os gritos dela ecoavam pelo exclusão constitutiva da mulher.
corredor do serviço de saúde. Nossa cultura pela constituição da
Dizia: - meu filho não, vocês não norma e do que seria universal deixa
vão tocar no meu filho. Joãozinho fora dos ideais o que seria passível
estava internado há três dias de submissão, sujeição e morte.
quando se descobriu um problema Segundo Judith Butler (2015, p. 15),
de deglutição grave, que colocava em Quadro de Guerra – quando a
a vida dele em risco, e precisaria vida é passível de luto?, “o “ser”
de cuidados intensivos; porém, sua do corpo ao qual essa ontologia se
mãe ficou tão apavorada com a refere é um ser que está sempre
explicação dos profissionais médicos entregue a outros, a normas, a
que entrou em pânico e a única organizações sociais e políticas que
coisa que conseguia dizer enquanto se desenvolvem historicamente a
agarrava seu filho era: - Vocês não fim de maximizar a precariedade
vão encostar nele. para alguns e minimizar a
precariedade para outros”.
Diante dos gritos e sem conseguir
166
Durante o exercício da Psicologia Ser mulher carrega consigo
dentro e fora das políticas públicas, demarcações. Ser uma mulher
vemos e ouvimos as mulheres se preta, indígena ou trans carrega
tornarem, pela fala dos outros, demarcações a mais: servidão,
“as mães”, “as empregadas”, “as morte, colonização, descarte, entre
loucas”, “as descontroladas, “de outras formas que a violência se
difícil manejo” e outros adjetivos configura. Ser mulher carrega a
que demarcam seus afazeres e sua história de uma negação de direitos,
posição na sociedade, dependendo uma sobrecarga de deveres, e seria
da classe social e/ou cor da pele e/ o papel da Psicologia, da Psicanálise,
ou traços físicos que remetem a olhar e analisar essas demarcações,
algumas etnias específicas. a partir das teorias feministas
buscando um espaço entre sua
As demarcações carregam consigo práxis e o feminismo, para construir
uma textualidade construída a partir uma textualidade que transforme
de regras sintáticas, códigos visuais essa linguagem e enfrente a
e linguísticos e uma gramática violência enraizada e normalizada
inteira da nossa cultura que cola a do dia a dia. Para isso encontramos
mulher à passividade e à submissão. em Birman (2021, p. 156) pistas:
Esses adjetivos são tomados como
desculpas pelos profissionais da Portanto, é preciso romper
saúde ou sujeitos da sociedade definitivamente com a função
psicanalítica ideal que, em nome da
diante de suas condutas em relação boa adaptação do indivíduo ao espaço
a esses sujeitos denominados social e da suposta pureza do desejo
mulheres27. Carla Rodrigues (2018, p. inconsciente, nas diferentes tradições
39), no artigo Nós, o falo e a escuta psicanalíticas acima mencionadas,
(...) É imperativo romper com esse
escreve: “(...) gostaria de pensar que modelo no campo psicanalítico, que
no deslocamento do sujeito abstrato é o correlato da disseminação da
para sujeitos e sujeitas marcados normalização no campo da psicanálise.
(as) não apenas por um corpo (...),
mas também por gênero, raça, Nesse movimento de ruptura,
classe, lugar de moradia, religião, encontramos na carta de
local de nascimento etc. – sobretudo Chimamanda Ngozi Adiche (2017)
etc.”. para educar crianças Feministas

27
Partimos sempre de uma análise das estruturas subjetivantes e institucionais postas na nossa cultura
para pensarmos sobre o todo.

167
uma outra forma de subjetivação a maioria das mulheres, o primeiro
ofertada pelo feminismo: “A entendimento sobre o racismo como
primeira é a nossa premissa, a opressão institucionalizada se dá por
convicção firme e inabalável da qual experiência pessoal direta ou por
partimos. Que premissa é essa? informação adquirida em conversas,
Nossa premissa feminista é: eu livros, televisão ou filmes”.
tenho valor. Eu tenho igualmente
valor. Não “se”. Não “enquanto ‘’ Quando há uma mulher, mãe, que
eu tenho igualmente valor. E ponto acompanha seu filho internado
final”. numa instituição de saúde pública,
e lhe é exigida presença integral,
Nas cenas narradas28, as quais ignora-se o fato de que essa
carregam outras tantas cenas mulher tenha de ir trabalhar,
vivenciadas na nossa trajetória de possua outros compromissos,
escuta, é visível que a diferença ou minimamente uma vida para
de classe, de pele e de gênero vai além daquela situação. A violência
ditando os espaços que podem ser institucionalizada aparece nos
ocupados pelos sujeitos trazendo as acordos (informativos muitas
possibilidades de reconhecimento, vezes) entre profissionais/chefias/
a permissão e o acesso garantido, direção em relação às usuárias dos
inclusive o exercer sua cidadania serviços. Esses comunicados vêm
e viver com a mínima dignidade. revestidos de controle e exigência
Quando uma mulher preta precisa para que o atendimento se cumpra,
pedir a vários profissionais da mesmo que o Estatuto da Criança
mesma instituição para ter acesso e do Adolescente (ECA) afirme
ao básico - um colchão - sem que que, no caso de internação de
seja classificada pejorativamente ou crianças, ter um acompanhante é
ignorada, estamos todes colocando um direito de toda criança e não
essa pessoa em uma condição de uma condição obrigatória. Silvia
subsistência29 - uma existência sem Federici (2019; 1975, p. 40), no seu
dignidade mínima - e demarcando o livro O ponto zero da revolução:
que ela “merece” ou não ter/ser. bell trabalho doméstico, reprodução e
hooks30 (2019, p. 193) nos diz: “Para luta feminista, já diria em relação à

28
As cenas narradas trazem a ideia de um todo maior, institucional e social.
29
Subsistência: conjunto de coisas essenciais para a preservação da vida; sustento, saneamento básico,
alimentação, víveres: garantir a subsistência da família.
30
A autora usa o nome próprio em minúsculo.

168
maternidade na nossa cultura: “Eles e quem não tem direito a uma vida
dizem que é amor. Nós dizemos que que não seja precária.
é trabalho não remunerado”.
Assim, sugerimos que, nos diversos
Com você ando melhor? espaços clínicos, como reuniões
de equipe, processos de escuta e
A provocação a chamada para construção de casos, supervisões,
este escrito contida no subtítulo dentre outros, possamos introduzir
propõe pensarmos na reprodução alguns questionamentos simples31
da violência institucionalizada que a que subvertem a ordem do
Psicologia e a Psicanálise não estão laço social capitalista, racista e
livres de reproduzir através de sua misógino. Por exemplo, perguntar
textualidade. se o tratamento das profissionais
e seu fazer se modifica de um local
Ancoradas neste cuidado e na privado para um local público,
intenção de não repetirmos convidando a pensar o que é
violências de gênero, raça e demais vendido como merecimento e
demarcadores sociais fazemos natural no espaço privado e como
uso da crítica feminista durante as dever nos espaços públicos. O que a
supervisões, leituras dos textos e cor da pele modifica ou silencia na
construções de caso, sustentadas conclusão que, por vezes, torna-se
diversas vezes pela ferramenta que julgamento dos casos atendidos?
Chimamanda Ngozi Adiche (2017, p. Como o gênero se apresenta nessas
12) propõe em seu livro Para educar discussões e construções?
crianças feministas: um manifesto
ao afirmar: “A segunda ferramenta é Esses questionamentos que podem
uma pergunta: a gente pode inverter parecer simples e óbvios produzem
X e ter os mesmos resultados?”. dispositivos de vida e constroem
espaço fértil para colocarmos
As cenas compartilhadas denunciam em xeque nossa própria práxis e
o lugar que muitas mulheres nossos preconceitos. Entendendo
acreditam merecer nesse mundo que o lugar da Psicologia e da
devido a forças subjetivantes, aos Psicanálise também é ir além da
significantes que marcam quem tem ideia de que o sujeito é o único

31
Ressaltando que a escuta é o método de fazer do psicólogo/psicanalista, e que tais questionamentos
permitem um deslocamento dos sujeitos.

169
responsável pela sua história sem é preciso que haja uma mudança de
consciência por parte dos homens e das
que nos coloquemos, também,
mulheres. Todos devem estar dispostos
como agentes de mudança do seu a aceitar que a parentalidade isolada
percurso e da cultura opressora exercida por mulheres ou homens não
produtora de sofrimento psíquico. é a melhor forma de cuidar de crianças
e de ser feliz como mãe ou pai.
bell hooks (2019, p. 235) afirma:

As mulheres precisam começar o


trabalho de reorganização feminista E, por fim, a necessidade de nos
com o entendimento de que todas questionarmos constantemente
nós (independentemente de nossa diante das mulheres que
raça, sexo ou classe) temos agido em
cumplicidade com o sistema opressivo atendemos: será que com você
existente. E todas nós precisamos eu ando melhor? Tendo em vista
de forma consciente romper com o que, para construir uma resposta,
sistema.
precisamos todes nos implicar
clínica e politicamente numa análise
Em costura com o dito até aqui dos privilégios raciais, de gênero
auxiliar e defender o exercício e classe postos na cena clínica dos
da cidadania, em muitos casos diversos cenários em que estamos
roubado das mulheres pelo racismo sejam eles públicos, sejam eles
institucional e pela misoginia nos privados.
serviços de saúde/assistência
pública ou privada, é um ato que
precisa ser demarcado e defendido.
Por exemplo, colocar em questão Referências
a perpetuação da ideia fantasiosa
que apenas as mulheres seriam as Adichie, C. (2017). Para educar
responsáveis por seus filhos - numa crianças feministas: um manifesto.
ala pediátrica de um hospital - e não São Paulo: Companhia das letras.
que a questão da parentalidade é
um problema de todes como bell Birman, J. (2021). Cartografias do
hooks (1952, p. 212) nos lembra: avesso: Escrita, ficção e estéticas de
subjetivação em psicanálise. Rio de
Mas para que essa responsabilidade
Janeiro: Civilização Brasileira.
partilhada no cuidado parental possa
vir a existir e assim aliviar o fardo
das mulheres que se responsabilizam Butler, J. (2015). Quadros de Guerra
sozinhas pela criação de seus filhos, – Quando a vida é passível de luto?

170
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

Calvino, I. (2003). Cidades Invisíveis.


São Paulo: Folha de S. Paulo.

Federici, S. (2019). O ponto zero


da revolução: trabalho doméstico,
reprodução e luta feminista.

hooks, b. (2019). Teoria Feminista:


da margem ao centro. São Paulo:
Perspectiva.

hooks, b. (2019). E eu não sou


uma mulher? mulheres negras e
feminismo. Rio de Janeiro: Rosa dos
Tempos.

Rodrigues, C. (2018). Nós, o falo


e a escuta. Revista CULT, a. 21, n.
238, p. 36-39.

171
Prevenção à violência contra
mulher na política de assistência
social em tempos de pandemia
Covid-19: um relato de
experiência

Tatirrê Procópio Paz

Introdução sido um desafio. Nos atendimentos


têm crescido os relatos de violências
Este relato de experiência propõe-se e demandas diversas, por exemplo,
abordar as estratégias de prevenção a falta de alimentação, a perda
e enfrentamento à violência de emprego, a miserabilidade
contra as mulheres, na Política decorrente da crise econômica,
Nacional de Assistência Social etc. Nas reuniões de equipe,
(PNAS), durante um período da os questionamentos têm sido:
pandemia de Covid-19. O trabalho é Como trabalhar a prevenção de
desenvolvido em uma organização vulnerabilidades sociais diante do
da sociedade civil (OSC), no Serviço aumento expressivo das demandas?
de Atendimento Familiar (SAF), Como dar conta do aumento da
que atende famílias em situação demanda com equipes mínimas?
de vulnerabilidade social, este local Quais são as práticas possíveis de
é parceiro da Prefeitura de Porto prevenção? E quais são os serviços
Alegre, portanto, referenciado ao em funcionamento na rede de Porto
Centro de Referência de Assistência Alegre?
Social (CRAS).
A Psicologia Social tem muito a
Neste contexto pandêmico, contribuir com essas reflexões.
trabalhar a prevenção da violência Segundo Silvia Lane (1989, p. 19),
contra as mulheres na PNAS tem o objetivo da Psicologia Social é

172
“conhecer o indivíduo no conjunto No cotidiano do trabalho na
de suas relações sociais, tanto proteção social, observa-se
naquilo que lhe é específico como que, nesse período pandêmico,
naquilo em que ele é manifestação houve um aumento da violência
grupal e social”. Portanto, para que cometida contra as mulheres. Como
possa ser trabalhada a prevenção publicado na pesquisa realizada
da violência contra as mulheres, é pelo DataSenado (2021, p. 03), que
necessário que técnicos/as sociais 86% das mulheres entrevistadas
conheçam as leis construídas têm percebido essa alta. Segundo
pensando nas mulheres que a cartilha Lei Maria da Penha &
sofrem violência, saibam a história Direitos da Mulher (2011, p. 10),
individual de cada usuária, bem as principais formas de violência
como compreendam as dinâmicas praticada contra as mulheres
envolvidas no território de moradia no Brasil são: violência física,
dessas mulheres. Ademais, é psicológica, sexual, patrimonial e
importante identificar para quais moral. Diante do exposto, este relato
serviços poderá encaminhar a tem o objetivo de descrever quais
situação de violência atendida. as práticas de prevenção à violência
contra as mulheres são possíveis
Relevante destacar que a Política de serem realizadas no serviço de
Nacional de Assistência Social, atendimento familiar.
como a Política Nacional de Saúde,
é organizada em diferentes níveis Esse relato de experiência é
de proteção, são eles: 1. Proteção resultado do trabalho social com
Social Básica 2. Proteção Especial famílias, executado em um SAF.
de Média ou Alta Complexidade. É também um recorte das várias
Neste relato, o foco de trabalho atividades desenvolvidas no
com as mulheres dar-se-á nas serviço. Portanto, esse relato de
ações de proteção social básica, experiência pode ser entendido
que tem como objetivo “prevenir como um estudo de caso, conforme
situações de risco social por meio do o conceito de Godoy (1995, p.
desenvolvimento de potencialidades 25), “o estudo de caso tem como
e aquisições e o fortalecimento de propósito fundamental analisar
vínculos familiares e comunitários”. intensivamente uma dada unidade
(Brasil, 2004, p. 33). social”. A análise aqui realizada é

173
a das possibilidades de trabalho espontaneamente o serviço.
preventivo para o enfrentamento a Portanto, as práticas técnicas de
violência às mulheres. intervenção para a prevenção à
violência são direcionadas para
O serviço é composto por duas todas as mulheres que dela
técnicas sociais (Assistente Social necessitarem, independente da
e Psicóloga) e uma pessoa no modalidade de atendimento.
administrativo. O local onde são
realizados os atendimentos é uma A pergunta inicial que dispara
sala individual, que garante o sigilo a possibilidade de as mulheres
das informações compartilhadas abrirem situações de violência é:
com as técnicas. E este relato se Como você passou desde a última
baseia na vivência de atendimento vez que compareceu ao serviço?
de mulheres com idade acima Também ao final do atendimento
dos 18 anos desde o ingresso na é questionado à usuária, se além
instituição até o período atual. da demanda que ela veio buscar,
haveria mais alguma situação que
As situações incluídas neste gostaria de conversar. Importante
relato foram reunidas, durante os relatar que na sala de atendimento
atendimentos individuais, tanto são disponibilizados informativos
da modalidade pontual quanto sobre violência contra a mulher, com
de acompanhamento. De acordo alguns telefones como: da Escuta
com as Orientações Técnicas Sobre Lilás, da Delegacia Especializada de
o Trabalho no PAIF, a diferença Atendimento à Mulher (DEAM), do
do atendimento pontual para Centro de Referência da Mulher
o acompanhamento é que “o Márcia Calixto (CRAM), WhatsApp
atendimento pontual é uma da Polícia Civil; estes também
ação imediata e qualificada de podem ser estímulos disparadores
orientação ou oferta de serviços para que as mulheres relatem
[...] Já o acompanhamento é um situações de violência.
conjunto de intervenções que
visa o fortalecimento da família A experiência de atendimento às
ou indivíduo”. Brasil (2012, p. mulheres que sofrem violência
54). Algumas mulheres possuem
atendimentos mensais ou quinzenais Conforme a Política Nacional de
e outras apenas quando acessam Assistência Social (PNAS0, este

174
SAF atende famílias em situação sua vontade. Acreditava que havia
de vulnerabilidade social. Sabe-se algum problema físico com ela, pois
que a violência contra a mulher não sentia desejo pelo marido. No
pode acontecer com mulheres atendimento social, com frequência
de qualquer classe social. Porém, trazia angústias que sentia, já foi
as situações de violência vivida parar na emergência ao sentir
podem aprofundar as dificuldades palpitações no peito e estar com
econômicas existentes, conforme as pressão alta, e após exames médicos
situações relatadas abaixo. foi descartado problemas físicos.

Os nomes e dados de vida Nesse relato identifica-se uma


apresentados foram modificados violência sexual que, de acordo
para preservar a identidade das com a cartilha Lei Maria da Penha
mulheres. & Direitos da Mulher (2011, p. 10),
é “entendida como uma conduta
Em um dos atendimentos, após que constranja a mulher a manter
ser questionada se teria mais conduta sexual não desejada”. No
alguma situação para trazer no atendimento social, o trabalho
atendimento, foi identificado que desenvolvido foi de nomear que a
Amanda, meia idade, 6 filhos, era situação relatada se caracterizava
obrigada a manter relação sexual como violência. Foi também
com o esposo contra a sua vontade. conversado a respeito da libido e
Ela possui renda derivada de sobre os elementos que contribuem
faxinas, tem habilidade na culinária ou prejudicam o desejo sexual.
e durante a pandemia vendeu Culturalmente as mulheres ficam
salgados. Quando parou de receber responsáveis pelos cuidados da
o auxílio emergencial não conseguiu casa, dos filhos e do marido, e é
mais comprar os ingredientes para comum que quando haja problemas
produzir os alimentos. que os pensamentos foquem nas
preocupações e que a libido baixe.
Não desejava separar-se do marido,
mas que ele mudasse; é o único No final do atendimento foi-lhe
homem que conheceu intimamente, fornecido um folder com o telefone
casou ainda adolescente e desde o da Escuta Lilás e orientado que
início do matrimônio foi obrigada entrasse em contato com o serviço.
a manter relação sexual contra Amanda retornou dias depois,

175
relatou que conversou com o A identificação e reconhecimento
marido, dividiu as preocupações de que sofria violência psicológica
sobre sua sexualidade, pôde foi trabalhada por alguns anos na
vivenciar desejo sexual após ele modalidade acompanhamento
escutá-la. Desde esta intervenção, por diferentes equipes técnicas
em todo atendimento ela é que passaram pelo serviço. Após
diretamente questionada sobre compreender e aceitar que vivia
como está a relação com o marido, uma situação de violência por parte
e até o momento não houve outra do marido, alcoolista, conseguiu
situação em que se sentiu obrigada divorciar-se e saiu de casa.
a ter relação sexual contra sua
vontade. Atualmente sem renda, não pode
mais pagar aluguel; morou por
Está no planejamento da equipe um período com um familiar, mas
retomar as oficinas temáticas sentiu-se sobrecarregada com o
com o foco no fortalecimento das trabalho doméstico e decidiu voltar
mulheres, nas quais Amanda e a morar com o ex-marido, porém,
outras mulheres serão incluídas. em quartos separados. Os filhos
As oficinas são um recurso que não compreendiam como violência
pode ser utilizado como atividade a situação da mãe e insistiam para
de prevenção à violência contra que ela voltasse a morar com o pai.
as mulheres, porém, por medida Ao retornar à casa com o ex-marido,
de segurança coletiva durante o as violências voltaram a ocorrer, e
período da Pandemia, não foram quando alcoolizado ele costuma
realizadas. brigar muito e acordar Bárbara a
qualquer horário.
A situação de Bárbara é um exemplo
de violência psicológica. A idosa tem Enquanto equipe técnica, o trabalho
4 filhos, trabalhou com faxina, mas, tem sido de escuta, fortalecimento
por motivo de doença, não pode da usuária para que novamente
mais trabalhar. Durante um período saia de casa e atendimento com
teve acesso ao auxílio-doença que, a família. Tentou-se solicitar um
no ano passado, foi reavaliado e benefício eventual, que naquele
após negado - diante da negativa, momento foi negado em função dos
a usuária solicitou nova perícia na poucos recursos disponibilizados
previdência social. para a cidade. Uma alternativa,

176
discutida em reunião de equipe com Toda vez que Eva inicia um namoro,
o CRAS, foi encaminhá-la para o o ex-marido aparece, querendo
Centro Dia do Idoso (CDI) - mesmo saber da filha e questionando
que no período da pandemia sobre o homem com que Eva está
funcione meio turno, é um tempo envolvida, chegando ao ponto de
longe da situação de violência, onde perseguir o casal, ameaçando o
pode conhecer outras pessoas que namorado. Os relacionamentos
possivelmente a ajudem no seu de Eva costumam durar pouco,
fortalecimento, já que a mesma fragilizando-a.
não deseja ir para uma casa de
acolhimento. Inicialmente a usuária justificava
as agressões sofridas com o
Bárbara também foi orientada a diagnóstico de adoecimento
buscar assessoria Jurídica gratuita mental do ex-marido. O trabalho
via Defensoria Pública e ver a desenvolvido foi o fornecimento de
possibilidade de entrar na justiça recurso como vale assistencial para
solicitando a partilha de bens. transporte e o fortalecimento de
Eva, para que conseguisse entrar na
Já Eva reside de aluguel com a justiça exigindo o direito à pensão.
filha, recebe um benefício e faz Atualmente, ela acionou o ex-marido
faxinas para complementar a renda, judicialmente e o mesmo passou a
comprometida por empréstimos. organizar-se para ficar alguns dias
Casou ainda adolescente pois estava com a filha.
gestante, sofreu violência física
desde o início da relação, inclusive Carolina é uma jovem adulta.
foi agredida durante a gestação. Depois do trabalho saiu para beber
Ficou casada por aproximadamente com as amigas; após conversar
10 anos. O matrimônio chegou ao com um rapaz, teve um apagão e
fim quando o ex-marido decidiu ir acordou num local estranho a ela,
morar com outra mulher e Eva foi sem dinheiro e sem lembrar como
expulsa da casa onde morava, junto chegou, tinha apenas alguns flashs
com a filha. Por um período, o pai da do homem tocando em seu corpo e
criança não procurou e nem ajudou dela tentando resistir. Compareceu
financeiramente a filha; disse para ao SAF solicitando recurso de vale
Eva que a responsabilidade de arcar assistencial para transporte, a fim de
com os cuidados dos filhos é da mãe. realizar exames no posto de saúde,

177
na ocasião estava muito fragilizada jovem adulta, vive com o marido
e culpando-se por ter saído para e um dos filhos. Está na fila para
beber. No caso de atendimento fazer a cirurgia bariátrica, porém,
social à violência física e sexual, o cônjuge não autoriza que ela
a depender da complexidade do faça a cirurgia e constantemente
caso, os SAFs podem referenciar a agride física e verbalmente;
as mulheres para um serviço costuma insinuar que ninguém
de proteção de média ou alta além dele ficará com ela. Dinorá já
complexidade. teve seus pertences como cartões,
chaves, celular e inclusive remédios
Na situação de Carolina, foi realizada escondidos. Parou de tomar
uma escuta sensível para identificar medicação controlada pois acordava
por quais serviços a usuária já durante a madrugada suja entre as
havia passado e para quais outros pernas.
ainda poderia ser encaminhada.
Ela havia acessado a Delegacia da Financeiramente depende do
Mulher, onde realizou o boletim marido, já tentou que ele saísse
de ocorrência e foi orientada de casa e o mesmo alegou que
a acessar o posto de saúde. não deixaria a casa nem a filha,
Importante destacar a necessidade tentou também ajuda de familiares
do acolhimento e do sigilo nos próximos para sair dessa situação,
serviços em geral, pois, no posto de mas foi desencorajada. Ao mesmo
saúde onde foi realizar os exames, tempo, tem muito medo de
teve que descrever diversas vezes e separar-se pois teme pela sua vida.
para pessoas diferentes o estupro, Diante do isolamento familiar e
fazendo com que ela revivesse e comunitário, acredita que o marido
se culpasse a cada vez que repetia é a única pessoa com que pode
o relato. Ao final do atendimento contar para enfrentar os perrengues
social, foi oferecido atendimento da vida.
psicológico em um projeto parceiro
da instituição. No SAF, o trabalho desenvolvido foi
de buscar a rede de apoio familiar
Dos tipos de violência já extensa fora da cidade, para que
mencionados no texto, Dinorá assim pudesse realizar a denúncia
vivencia todos. Ela também é uma e não sofresse represália. Diversas

178
vezes recuou em denunciar, Resultados e discussão
conforme é possível pela Lei Maria
da Penha, pois afirmava que, se Sabemos que culturalmente
o marido fosse preso, ele não homens e mulheres têm diferentes
sobreviveria. construções, diferentes acessos
ao trabalho, remuneração,
Em acompanhamento, foram à informação e diferentes
trabalhadas algumas possibilidades responsabilidades, por isso “a
de retorno ao mercado de violência contra a mulher é
trabalho, mas o preconceito em entendida como um fenômeno
relação à obesidade e a pouca social baseado nas desigualdades de
disponibilidade de vagas dificultam gênero”. (Brasil, 2011, p.09). Neste
este retorno. Foi identificado que, relato de experiência, fica explícito
em função da violência, a filha como estes homens acreditam e
estava desprotegida, pois a menina agem sobre a vida das mulheres
presenciava as diversas agressões e, como se pudessem controlá-las,
ao imaginar que ficaria sozinha aos sendo um fenômeno estrutural da
cuidados do pai, ficava desesperada, sociedade. O trabalho de prevenção
chorava muito, chegando a vomitar. na Política de Assistência Social se
Por fim, percebendo que Dinorá faz necessário, no entanto outras
não conseguia romper o ciclo de demandas acabam ocupando o
violência, avaliou-se o esgotamento trabalho de prevenção social.
das ações deste serviço de
proteção básica e em discussão Mesmo quando a mulher possui
de caso, ela foi encaminhada independência financeira, é
para atendimento na proteção de frequente a tentativa de dominação
média complexidade, no Centro da vida destas mulheres, e quando
de Referência Especializado de há dependência financeira é mais
Assistência Social (CREAS), onde difícil para a mulher sair da rotina
terá mais suporte e recurso para o de violências. O fator geracional
enfrentamento à violência. das famílias que convivem com a

179
violência, ao naturalizar a situação, que mulheres que vivem com seu
também aprofunda e dificulta a agressor têm mais dificuldades de
ruptura do ciclo vivenciado, como acionar os serviços, casos que são
no exemplo vivido por Bárbara e identificados e encaminhados via
Dinorá, que foram aconselhadas reunião de discussão de caso para o
e incentivadas a continuar com CREAS ou outro serviço da rede.
os maridos agressores. Oficinas
temáticas sobre violência Sobre a rede de atendimento,
doméstica e ações com entregas de além dos serviços existentes na
informativos na comunidade são política de assistência social para
ações de prevenção necessárias encaminhamento e apoio a essas
para ampliar o conhecimento e mulheres, os serviços identificados
a dimensão do impacto que a pela equipe técnica do SAF até
violência tem na vida das mulheres. o momento são: Polícia Civil e
Militar, Escuta Lilás (que atualmente
Do ponto de vista da saúde mental, tem funcionado no horário das
foi identificado que a violência 08h30 até 18h sendo referência
afeta essas mulheres; Teresa Bruel e de atendimento para o Estado, no
Carolina Mombach (2015) escrevem momento não tem atendimento
que “esses processos de longa presencial, em função de não
vivência da violência, quando não ter estrutura adequada, no local
resultam em morte, podem resultar também realizam intermediação
em danos profundos na saúde com casas e abrigos para mulheres
mental das vítimas” - a exemplo vítimas de violência). Em Porto
de Amanda, que foi parar no posto Alegre, a referência de atendimento
de saúde com palpitações no peito é o Centro de Referência da Mulher
e pressão alta, sendo descartada Márcia Calixto (CRAM), que tem
causa física. atendimento com Psicóloga e
Assistente Social para mulheres
A respeito do abuso sexual, é acima de 18 anos - o horário de
perceptível que as mulheres têm atendimento externo é das 09h até
a compreensão da gravidade da 16h e o agendamento é realizado
violência, conhecem os serviços que via telefone, não sendo necessário
devem acionar e algumas sentem-se ter boletim de ocorrência para
fortalecidas para buscar os serviços. ser atendida no local. Na cidade
Neste relato, também, percebe-se também existe a Casa Viva Maria,

180
um local que acolhe mulheres em cadastro único e aceitam vincular-se
situação de violência. às redes de serviços. Há mulheres
que possuem fragilidades na rede
Conclusão de apoio familiar e comunitária e,
por viverem situações de violência,
Compreende-se que este relato é têm sua autonomia e proatividade
uma amostra pequena da realidade afetadas; as violências sofridas
das violências vividas pelas atrapalham sua função protetiva e
mulheres do território durante o a afetividade, afetando diretamente
período da pandemia. No entanto, seus filhos.
é possível nesta amostra identificar
as principais formas de violência A respeito da rede integrativa, para
praticadas contra as mulheres. dar sequência ao atendimento das
mulheres em situação de violência
No que diz respeito às ações de e fortalecê-las para que rompam o
prevenção à violência, na prática, o ciclo de violência, como já citado, há
que é feito neste serviço é a escuta serviços públicos na rede de Porto
sensível, que abre possibilidades de Alegre. E esta instituição também
informar e ampliar o entendimento busca parcerias com projetos
das mulheres sobre quais são as privados de fortalecimento à mulher,
situações de violência e como é como a parceria com um Centro de
possível proteger-se. Também Desenvolvimento da Mulher que
são disponibilizados folders e realiza atendimento psicológico.
cartazes informativos sobre as
principais violências e contatos para Por fim, é importante pontuar que,
realizarem a denúncia. A respeito no trabalho cotidiano, o número
das atividades coletivas, as mesmas de equipes está limitado, e com o
foram suspensas em função dos aumento das diversas demandas
protocolos de saúde, retornando há necessidade de ampliação de
progressivamente neste ano de serviços e profissionais das diversas
2022. políticas públicas, principalmente
na assistência social e saúde. O
No âmbito do Sistema Único de aumento do quadro de profissionais
Assistência Social, é importante certamente possibilitará a ampliação
informar que as mulheres trazidas de ações de prevenção, informação
neste relato têm inscrição no e combate à violência às mulheres.

181
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operacional básica (NOB/SUAS) - Lane, Silvia T. M.& CODO,
Secretaria Nacional de Assistência Wanderley. (1989). Psicologia Social:
Social. Brasília: Ministério do o Homem em movimento. Editora
Desenvolvimento Social e Combate Brasiliense.
à Fome. Disponível em: https://
www.mds.gov.br/webarquivos/
publicacao/assistencia_social/
Normativas/PNAS2004.pdf.

182
Entre dores e afirmações:
cartografias sobre devir mulher
em situações de violência

Patrícia dos Passos


Lutiane de Lara

Experiências e atravessamentos atravessamentos, dúvidas, limites


e criações sobre as práticas da
A presente escrita acontece a Psicologia, sobre ser estudante
partir da experiência de um estágio e hoje psicóloga. Tais questões
profissionalizante em uma Casa seguem acompanhando minha
Abrigo para mulheres em situação prática, com a problemática sobre o
de violência e de suas reverberações lugar da Psicologia e suas produções
e questionamentos que de verdade no trabalho com
acompanham a trajetória de quem situações de violência. O estágio
a/e/os escreve até então. As Casas- teve importância tão profunda, pois
Abrigo ou Casas de Acolhimento a brutalidade das histórias escutadas
fazem parte da política de mulheres, ecoa e me faz perguntar: afinal,
tendo suporte da Lei Maria da Penha que Psicologia queremos exercer
– Lei nº 11.340 (2006)32, sendo nesse contexto? Que Psicologia
então necessária Medida Protetiva exercemos? Seremos novamente
de Urgência (MPU)33 para entrada reprodutoras das violências que
nas Casas. Busco trazer reflexões nos perpassam ou produziremos
acerca desse processo de estágio, um campo de composição com as
que durou 12 meses, e desencadeou mulheres em acolhimento? Estamos
32
Lei na íntegra: http://www.institutomariadapenha.org.br/assets/downloads/lei-11340-2006-lei-maria-
da-penha.pdf.
33
“Trata-se de uma determinação do juiz ou juíza para proteger a mulher em situação de violência
doméstica, familiar ou na relação de afeto, conforme a necessidade da solicitante. As medidas protetivas
podem ser demandadas já no atendimento policial, na delegacia, e ordenadas pelo juiz ou juíza em até
48 horas, devendo ser emitidas com urgência em casos em que a mulher corre risco de morte. Assim,
conforme o art. 22 da Lei Maria da Penha, o juiz ou juíza poderá determinar.” Disponível em: http://
www.institutomariadapenha.org.br/lei-11340/lei-maria-da-penha-na-integra-e-comentada.html.

183
dispostas ao sensível e abertas aos para que acompanhemos esses
deslocamentos, rupturas, criações processos, essas linhas, aberturas e
ou esperamos manuais e guias para fechamentos.
moralizar e produzir verdade sobre
escolhas? Estamos dispostas a errar? Para os geógrafos, a cartografia
– diferentemente do mapa:
É possível devir mulher atravessando representação de um todo estático – é
violências diárias? um desenho que acompanha e se faz
ao mesmo tempo que os movimentos
Que Psicologia exercemos/ de transformação de paisagem.
Paisagens psicossociais também são
queremos? cartografáveis. A cartografia, nesse
caso, acompanha e se faz ao mesmo
A proposta desta escrita se utiliza tempo que o desmanchamento de
certos mundos – sua perda de sentido
da cartografia como processo de
– e a formação de outros: mundos
saber em movimento, processo que se criam para expressar afetos
contínuo de reflexão sobre contemporâneos, em relação aos quais
acontecimentos e experiências, os universos presentes tornaram-se
obsoletos. (Rolnik, 2007, p. 23).
estando as pessoas envolvidas,
atravessadas, implicadas e afetadas.
Enquanto profissionais da Psicologia, Sendo assim, todas as histórias que
a cartografia nos permite estar me atravessaram adentram essa
em constante lugar de reflexão e escrita, não aparecem de forma
questionamento sobre o nosso direta, mas são o que potencializam
fazer, sobre o que nos passa. Ela as páginas que seguem. As práticas
permite mapearmos o que acontece em locais de acolhimento a
em abertura para a novidade que mulheres em situação de violência
ultrapasse os guias universais. são guiadas por diretrizes e guias,
É a partir desse conceito que em sua maior parte moralizantes
seguimos o caminho da importância e produtores de verdade sobre
do que se cria nas rupturas, nos as escolhas e autonomia dessas
desmanchamentos de certos mulheres. As Casas ainda se baseiam
mundos, possibilitando a criação de em normas de comportamento
outros. A cartografia, como pensada como o ciclo da violência34. O
por Suely Rolnik (2007), serve conceito criado por Lenore Walker

34
1º FASE: A CONSTRUÇÃO DA TENSÃO NO RELACIONAMENTO - Nessa fase podem ocorrer incidentes
menores, como agressões verbais, crises de ciúmes, ameaças, destruição de objetos 2º FASE: A
EXPLOSÃO DA VIOLÊNCIA – DESCONTROLE E DESTRUIÇÃO - A segunda fase é marcada por agressões
agudas, quando a tensão atinge seu ponto máximo e acontecem os ataques mais graves. 3º FASE: A LUA-
DE-MEL – ARREPENDIMENTO DO(A) AGRESSOR(A) - Terminado o período da violência física, o agressor
demonstra remorso e medo de perder a companheira. (Instituto Maria da Penha, 2009). 184
(1979) se baseia na existência de um e vontades.
ciclo comum que é constantemente
repetido nas relações atravessadas A partir desses pontos, busco
pela violência. Tais normas podem questionar as produções da
guiar as práticas no acolhimento Psicologia nesses lugares e
a imposições sobre quais escolhas contextos. Estamos oferecendo o
seriam corretas, sendo elas apenas que as próprias diretrizes propõem
as que levariam ao rompimento para esses locais? As Diretrizes
com o agressor e saída da violência. Nacionais para o Abrigamento de
O ciclo da violência pode ser Mulheres (2011) apontam que
útil para pensar casos quando o conceito de abrigamento traz
os atravessa, mas nos parece características que afirmam a
importante problematizar sua necessidade de um local seguro
universalidade para trabalharmos que ofereça, além de acolhimento,
as multiplicidades e singularidades serviços que atendam as famílias
de cada história. Na prática diária atravessadas pela violência de forma
de uma Casa Abrigo, diversas integral.
mulheres em acolhimento resolvem
voltar para a relação em que se Trago pequeno trecho que mistura
encontravam. Nessas situações realidade e ficção para transpor
há julgamento e descaso com a as histórias que circulavam pela
autonomia e potencialidades dessas casa, mas que também é parte da
mulheres, como se nós profissionais realidade de milhares de mulheres,
retivéssemos o saber e a salvação sendo a escrita que segue composta
dessas pessoas. Isso nos leva a também por cenas de histórias
repetirmos novamente a produção da arte ou de contos. Este trecho
de violência com essas mulheres, mistura tudo isso como proteção
pois, ao invés de proporcionarmos às usuárias envolvidas, mas tenta
um espaço conjunto e compormos trazer a complexidade do que se
com elas, tomamos o lugar da passa nesse contexto. Sendo assim,
verdade e imposição. Ocupamos o trecho mescla diversas histórias,
novamente o lugar da manutenção pessoas e personagens, não sendo
das mulheridades35 e, muitas vezes, ele sobre uma mulher em específico.
da desqualificação sobre suas ideias

35
Uso mulheridades, inspirada em Letícia Nascimento (2021), para abranger a multiplicidade do ser
mulher: mulheres cis, trans, lésbicas, heterossexuais +.

185
Diário de Estágio – Virginia36: havia trabalho exercido era integral e em
mulheres que queriam regressar conjunto? É possível trabalhar junto
para casa, outras que não queriam a essas mulheres, não impondo,
um trabalho formal, e algumas mas compondo e criando caminhos
que entendiam que o cuidado das possíveis para suas escolhas?
crianças não poderia ser mais
exercido por elas. Todos esses casos Certamente havia busca pela
inquietavam parte da equipe. Eles integralidade dos atendimentos e
fugiam do que se esperava sobre também pela oferta de um espaço
o caminho “certo e saudável” seguro, mas o que questiono é
para situações de violência. Pôr exatamente a segurança a partir
em prática a autonomia desejada das nossas práticas. Quando
nesse tipo de trabalho era bastante nos colocamos em lugar da
difícil quando essas decisões verdade sobre essas mulheres e
precisavam ser discutidas. Em uma direcionamos suas escolhas para
dessas situações, ao final do seu o que consideramos ser correto
tempo de casa a mulher entende para essas situações, estamos
que para dar um melhor cuidado proporcionando segurança e
para a filha precisaria trabalhar acolhimento? Muitas vezes as
mais horas, para isso, como não usuárias diziam se sentir agredidas
havia opções de creche naquele pela equipe, pois suas demandas e
momento, decide que a solução vontades eram desqualificadas se
seria que o pai cuidasse da filha, não se enquadrassem às normas
afinal, ele não era violento com a esperadas pela mesma. Enquanto
criança. Assim, ela poderia ajudá-lo profissionais, se realizarmos
financeiramente e prover melhores um trabalho que vise apenas
possibilidades para a filha. A certos moldes de relação, que
decisão foi bastante julgada, como não adentre a complexidade de
se essa escolha não fosse correta situações de violência e negligencie
ou possível. A potencialidade dessa a potencialidade e autonomia
mulher que estava revendo sua dessas mulheres, a oportunidade
vida e a autonomia para melhor de criação, devir e saúde nos parece
cuidado da filha não era vista ficar barrada nesses espaços. Por
como potente ou saudável. Esse isso, o trabalho no contexto de
pequeno trecho me faz perguntar, o violência precisa estar atento às

36
Personagem Conceitual criada para transpor essas narrativas. Deleuze e Guattari (2010, p. 78).

186
rupturas que surgem, às linhas violência, há perguntas que não
de fuga que são criadas por essas conseguem ser respondidas por
mulheres, que desestabilizam e tamanha complexidade desses locais
deslocam o que esperamos nesses e contextos. Ao mesmo tempo em
cenários. “A linha de fuga é criadora que acolhemos isso, pensamos
desses devires. As linhas de fuga haver alguns caminhos que diferem
não têm território. A escritura opera da prática moralizadora e linhas de
por conjugação, a transmutação dos fuga que podemos encontrar para
fluxos, através do que a vida escapa um processo mais interessante.
ao ressentimento das pessoas, das Ao questionarmos o lugar pronto
sociedades e dos reinos” (Parnet & e estático que temos colocado as
Deleuze, 1998, p. 63). Afinal, essas mulheres em situação de violência,
mulheres não se encontram em abrimos algumas possibilidades.
situações estáticas, elas produzem Primeiro: as possibilidades de
e encontram movimentos diários começarmos a deslocar-nos de
no enfretamento à violência. Poder um suposto lugar de verdade ou
olhar para isso é perceber que há saber que impõe escolhas, mas
diversos pontos a serem pensados, adentrarmos um lugar conjunto,
e que as mesmas ultrapassam o que de composição e construção com
esperamos sobre elas. É preciso que essas usuárias e mulheres. A partir
entendamos que novos lugares para disso, acabamos por deslocar vias
si são produtores de saúde. Nesse únicas e olhares pré-estabelecidos
sentido, a cartografia está nesta sobre elas, entendendo que seus
escrita para pôr em questão essas processos de resistência e resolução
noções de relação e também seus quanto à violência são múltiplos e
processos de subjetivação. podem se apresentar em diferentes
escolhas e formas. Desse modo,
Sem respostas: a busca por entendemos essas mulheres como
novos caminhos pessoas autônomas e capazes de
escolher suas próprias vidas, são
Com todas as problemáticas sobre elas as protagonistas que precisam
a produção de verdades e os modos de apoio e acolhimento, mas não
de subjetivação envolvidos no de processos que inviabilizem suas
fazer em locais de acolhimento à escolhas.

187
Trazemos o devir mulher como devir mulher em locais como esse
possibilidade de pensarmos os é apostarmos na possibilidade da
descolamentos e as potencialidades diferença, das criações, do encontro
dessas mulheres, pois, no momento com a multiplicidade e saúde. Como
em que rompemos com os lugares apontado por Deleuze e Guattari
esperados para essas sujeitas, (2012), em algum momento todas
estamos lidando com a possibilidade as pessoas precisam devir mulher,
de um campo aberto ao devir. Para mas as mulheres também precisam
isso, em contextos que envolvem devir mulher, pois nada está
tanta brutalidade e violência, é estabelecido, precisamos romper
preciso que nós mesmas estejamos com o que é dado e rígido sobre o
dispostas a embarcar aos devires ser mulher, para que encontremos
imperceptíveis, às microrrevoluções direções singulares que funcionem
que acontecem diariamente na para cada uma de nós. A partir
vida dessas mulheres e às diversas disso, apostarmos na dissolução da
lutas diárias que elas travam por forma criada ao longo dos anos para
sua existência. É romper com mulheres em situação de violência é
seu passado e com seu futuro apostarmos no encontro com novas
estabelecido, adentrarmos em possibilidades no acolhimento.
processo de criação para o que se “É que devir não é imitar algo ou
pode ser mulher nesse mundo. alguém, identificar-se com ele.
Tampouco é proporcionar relações
Os devires são geografia, são formais. Nenhuma dessas duas
orientações, direções, entradas e figuras de analogia convém ao devir,
saídas. Há um devir-mulher que não se nem a imitação de um sujeito, nem
confunde com as mulheres, com seu
passado e seu futuro, e é preciso que as
a da proporcionalidade de uma
mulheres entrem nesse devir para sair forma”. (Deleuze & Guattari, 2012,
de seu passado e de seu futuro, de sua p. 67).
história. (Parnet & Deleuze, 1998, p. 10).

Nesta escrita, não queremos a


Lugares estáticos no acolhimento criação de novos manuais para o
em saúde não produzem saúde, trabalho em situações de violência,
mas acabam produzindo violência mas, na busca por práticas menos
e despotencializando ações. Por moralizadoras, evidenciarmos a
isso, questionar a possibilidade de importância de nos colocarmos em

188
questão, abarcando a complexidade Deleuze, G., & Guattari, Félix. (2010).
do tema. Nessa via, há potência na O que é a filosofia? São Paulo:
busca pela abertura e pelo trabalho Editora 34.
em conjunto, já que a composição
parece ser uma aposta interessante Deleuze, G., & Guattari, Félix. (2nd
e produtora de saúde. Acolhendo os ed.). (2012). Mil platôs: capitalismo
riscos de uma prática que escapa às e esquizofrenia. vol. 2. São Paulo:
normas, apostamos no processo de Editora 34.
devir entre trabalhadoras e usuárias.
É possível (e desejável) então que Deleuze, Gilles, & Parnet, Claire.
ele produza rompimentos que nós (1998). Diálogos. São Paulo: Escuta.
mesmas precisamos encontrar para
exercer uma Psicologia outra que Instituto Maria da Penha (IMP).
difere e escapa à violência diária (2009). A lei na integra e comentada.
pela qual todas nós, mulheres, Fortaleza. Disponível em: http://
somos atravessadas. www.institutomariadapenha.org.br/
lei-11340/lei-maria-da-penha-na-
integra-e-comentada.html.

Referências Instituto Maria da Penha (IMP).


(2009). Ciclo da Violência. Fortaleza.
Brasil. (2006). Lei n. 11.340, de 7 Disponível em: https://www.
de agosto de 2006. Presidência da institutomariadapenha.org.br/
República Casa Civil. Disponível violencia-domestica/ciclo-da-
em: http://www.planalto.gov.br/ violencia.html.
ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/
L11340.htm. Instituto Maria da Penha
(IMP). (2009) Resumo da Lei.
Brasil. (2011). Diretrizes nacionais Disponível em: https://www.
para o abrigamento de mulheres em institutomariadapenha.org.br/
situação de risco e violência. Senado lei-11340/resumo-da-lei-maria-da-
Federal. Disponível em: https:// penha.html.
www12.senado.leg.br/institucional/
omv/menu/entenda-a-violencia/ Nascimento, L. (2021).
files/pdfs/diretrizes-nacionais-para- Transfeminismo Jandaíra.
o-abrigamento-de-mulheres-em-
situacao-de-risco-e-de-violencia.
189
Rolnik, S. (2007). Cartografia
Sentimental: transformações
contemporâneas do desejo. Porto
Alegre: Sulina.

Walker, L. (1979). The battered


woman. Harper and How.

190
O direito ao aborto de
mulheres e meninas vítimas
de violência sexual

Angela Ester Ruschel

Falar do atendimento psicológico relações interpessoais e que trazem


nas situações de violência importante prejuízo à qualidade
sexual (VS) exige uma inevitável de vida (Machado et al., 2015;
costura entre tantas histórias que Guimarães & Ramos, 2017). Um
acompanhei, durante quase 20 dos agravos resultantes da VS é
anos de trabalho como psicóloga a gravidez, que segundo Drezett
hospitalar. Trata-se de um percurso (2002), pode ser vivida como uma
cheio de inquietações e demandas nova violência à medida em que
ainda pouco estudadas e discutidas provoca a revivência da situação
em nossa área. traumática.

O trauma da VS é apontado pela Apesar do aborto ser considerado


Organização Mundial de Saúde crime no Brasil, a lei permite que,
(2013) como um fator precursor nos casos de estupro, a mulher
de sintomas depressivos, quadros possa interromper a gestação
de Estresse Pós-Traumático, (Brasil, 1940). No entanto, foram
Transtornos de Ansiedade, aumento necessários quase 60 anos para a
nos índices de uso de substâncias organização da 1ª política pública
psicoativas, disfunções sexuais e referente ao atendimento dos
dores crônicas. Estudos no Brasil agravos resultantes da VS, entre
também indicam inúmeras reações eles o aborto legal (Brasil, 2012).
psíquicas decorrentes da VS, como Até hoje a previsão legal do aborto
vergonha, medo, sentimentos de e as normativas técnicas referentes
desvalia, raiva e dificuldades nas ao tema são pouco conhecidas,
191
tanto no âmbito da saúde quanto do sequelas da VS, provocam piores
público em geral, fato que dificulta desfechos em relação às condições
em vários aspectos a realização do de saúde e reduzem as chances de
procedimento e o exercício desse acesso aos serviços (Giugliani et al.,
direito pelas mulheres. 2021), o que comumente ocorre no
caso de uma gravidez por estupro.
O número de casos de estupro
no Brasil é alarmante. Foram Diante da VS, a maioria das
66.041 denúncias em 2018, o mulheres não busca qualquer
que representa em torno de 10% tipo de ajuda, sendo que a
do que realmente ocorre (Bueno desinformação está na base desse
& Lima, 2019). A parcela da silenciamento. As mulheres não
população mais atingida por essa sabem que existem cuidados
violência é a feminina, sendo que de saúde imediatos a serem
mulheres indígenas, negras, pobres, tomados: profilaxias para infecções
com deficiências ou com menor sexualmente transmissíveis (IST) e
escolaridade apresentam maior anticoncepção de emergência, que
vulnerabilidade e têm acesso mais devem ser recebidas no período
restrito aos serviços de saúde (Opas, de até 72 horas após o ocorrido.
2017). O Anuário Brasileiro de A Norma Técnica do Ministério da
Segurança Pública aponta que 51% Saúde prevê também a atenção em
das mulheres vitimadas são negras, saúde mental como um cuidado
mas o acesso aos órgãos públicos emergencial, não sendo necessário
de proteção ainda é mais frequente registro policial para receber o
entre as brancas (Bueno & Lima, atendimento em saúde.
2019). Vemos, portanto, que as
categorias de raça, gênero e classe Além da desinformação, a
social são marcadores fundamentais decisão de guardar em segredo a
nessa análise, apontando violência sofrida tem relação com
desigualdades estruturais em nosso sentimentos reativos de vergonha,
país. São determinantes sociais medo, ou ameaças que envolvem
que atravessam e complexificam as a situação (Lima, Larocca &

192
Nascimento, 2019). O julgamento de - “faz-de-conta-que-isso-não-
das pessoas próximas, o receio de aconteceu” - tentando crer que
ser maltratada ou culpabilizada se tratou de um pesadelo. Assim,
pelos profissionais da saúde e acreditam também que não revelar
polícia também são motivos para a VS vai permitir com que a vida siga
não buscar ajuda (Nunes & Morais, normalmente.
2016). Denunciar a violência exige
uma nova exposição, um obstáculo Silêncios e escutas: Histórias
difícil de transpor num universo (des)guardadas
ordenado pela desigualdade de
gênero e pelos valores patriarcais. Vejo na prática clínica que esse
segredo, por vezes, leva anos para
A decisão de silenciar é ainda ser revelado, cronificando sintomas
alimentada pela crença no e causando adoecimento psíquico.
esquecimento, o que traz à cena o Histórias guardadas que podem vir
mecanismo de defesa da negação: à tona em momentos de um novo
estratégia psíquica produzida pelo trauma, na revivência, como por
ego e usada para se proteger da exemplo, no caso de Margarida37,
dor (Freud, 2006), impedindo-o 20 anos, grávida de um estupro.
de perceber a veracidade de Durante o acompanhamento
algum fato ou situação. Trata- psicológico, contou para a mãe
se de um mecanismo frequente o ocorrido, e surpreendeu-se
diante de eventos traumáticos e com a revelação, de que na sua
que pode ser uma resposta inicial juventude, a mãe também havia
protetora e benéfica. Entretanto, passado por VS. Margarida conta
de forma patológica, impede que que a depressão da mãe iniciou
o indivíduo incorpore informações naquela época e que até então havia
desagradáveis, cujas consequências guardado esse segredo.
podem ser emocionalmente
danosas (Alves, 2019). As mulheres Em outros casos, o que rompe o
relatam que constroem uma espécie silêncio é o atraso menstrual, a

37
Os fatos relatados são recortes anonimizados de casos atendidos.

193
suspeita ou constatação de uma para seu e-mail alguns dias depois.
gravidez. Em algumas situações a Viu o resultado positivo para BHCG
negação é intensa, como no caso de (exame de gravidez) e sua reação
Rosa, uma universitária de 24 anos, foi deletar o arquivo diante do
que aceitou um convite para ir à pensamento imediato de que “seus
casa de amigos depois de uma festa exames haviam sido trocados”.
em que bebeu muito. Lembrava Levou ainda muitos dias para chegar
de ter adormecido no sofá e ao ao hospital, já com 18 semanas de
acordar ter estranhado a roupa mal gestação38. Muitas mulheres não
colocada e manchas nas roupas conseguem fazer o aborto legal por
íntimas. Sem conseguir lembrar o chegar tardiamente ao serviço, com
que havia acontecido, sua reação foi idade gestacional avançada.
ir embora e não falar com ninguém
sobre isso. Quis acreditar que tinha Nessa dinâmica do silêncio impera
sido apenas uma “bebedeira’’ como também a culpa. Numa nítida
tantas outras. Com o passar dos inversão, a violência sexual é
dias sentia-se diferente: mudou seu um crime em que o sentimento
trajeto para o trabalho porque a de culpa fica com a vítima. A
casa do amigo ficava no caminho e mulher se questiona e busca em
passar por ali lhe causava incômodo; si comportamentos, hábitos ou
tinha enjoos frequentes e flashbacks “erros” que justifiquem o ocorrido.
de cenas daquele dia. Passaram- Pode ser a roupa que vestia, a
se semanas quando percebeu o bebida que aceitou, a saída para a
atraso menstrual e comentou com festa, a volta sozinha para casa. A
uma amiga. Diante de inevitáveis sociedade aponta para a mulher
perguntas, contou sobre o dia da e julga. A mulher olha para si e
festa e foi a amiga que insistiu e a julga. Veredicto: culpada! Pesquisa
levou ao médico. Sua preocupação do Fórum Brasileiro de Segurança
era uma possível IST. O resultado Pública (FBSP, 2016) mostrou que
dos exames realizados foi enviado 42% dos homens acreditam que

38
De acordo com a Norma técnica para o tratamento dos agravos resultantes de VS do Ministério da
Saúde é possivel fazer um aborto até a 22ª semana de gestação (Brasil,2012).

194
“uma mulher que se dá ao respeito uma interrupção voluntária de
não é estuprada”. Apesar de 85% gestação (Diniz, Madeiros &
das mulheres referirem “medo Madeiro, 2017). Mulheres de todas
de sofrer uma VS”, 32% também as idades, de diferentes credos e
concordam com essa afirmação. A níveis educacionais fazem aborto,
culpabilização da vítima é típica da no entanto são as mulheres negras,
cultura do estupro que se reproduz pobres e as mais jovens que correm
em nossa sociedade. Há uma maior risco de adoecer ou morrer
naturalização de comportamentos em consequência de um aborto
masculinos agressivos e abusivos inseguro (Giugliani et al., 2021). De
e uma tolerância social em relação acordo com a Pesquisa Nacional do
a violência sofrida pelas mulheres Aborto, 15% das mulheres negras
(Giugliani et al., 2021). e 24% das mulheres indígenas
já fizeram um aborto na vida,
Romper o silêncio é o 1º passo, mas comparadas a 9% de mulheres
a falta de informação é outro grande brancas (Diniz, Madeiros & Madeiro,
obstáculo. Quem sabe que existem 2017). Essa desigualdade racial e de
serviços de referência para o aborto classes coloca as mulheres negras
legal? E como chegar a um serviço e indígenas numa condição de
de referência? A desinformação maior vulnerabilidade, dificultando
paira sobre a sociedade e também o exercício de seus direitos sexuais
sobre os profissionais: médicos(as), e reprodutivos e o acesso aos
psicólogos(as), assistentes cuidados de saúde.
sociais, enfermeiros(as), policiais,
professores(as). No Brasil pouco Caminhos possíveis da Psicologia
se fala sobre aborto, apesar de
sua prática insegura ser a quarta O aborto é um tema tabu também
causa de óbito materno (Giugliani em nossa categoria. Nessas histórias
et al., 2021). O aborto é frequente testemunhei muitas “não escutas”
entre as brasileiras, sendo que trazidas pelas mulheres: “tentei
quase 20% das mulheres, aos 40 falar na terapia que fiz, mas foi
anos, já realizaram pelo menos como não dizer nada, aí achei que

195
não era importante...”; ou “ela (a escolha possível. A nossa escuta é o
psicóloga) fez uma cara… aí desisti acolhimento livre de preconceitos
de falar sobre isso”; ou ainda “a ou julgamentos. Escutar é mais
psicóloga me falou que aborto é complexo do que ouvir. Escutar é
pecado e que eu iria me arrepender verbo transitivo direto: escutamos
para o resto da vida...”. É preciso algo, alguém. É ficar atento para
escutar, ter a informação correta, ouvir o que vem do outro, mas é
saber orientar e, na impossibilidade também ouvir o que vem de si. Na
disso, encaminhar de modo ético, escuta psicológica essa dinâmica flui
com respeito à dignidade da pessoa, e faz parte do processo terapêutico.
a sua individualidade e a sua Precisamos da empatia e, na escuta
capacidade de autodeterminação da violência, mais do que isso:
e decisão. Uma mulher grávida emprestamos nosso ego inteiro para
de uma violência tem o direito de um ego que chega aos pedaços. A
abortar. Nós profissionais temos a violência pode despedaçar.
obrigação de saber orientar onde
e como acessar esse direito. É Num cenário brasileiro cheio de
vedado ao psicólogo(a) “induzir ameaças em relação aos direitos
a convicções políticas, filosóficas, humanos das mulheres, sigo na
morais, ideológicas, religiosas, de minha inquietação e na busca
orientação sexual ou a qualquer tipo constante pelo avanço na equidade
de preconceito, quando do exercício de gênero, a qual só é possível
de suas funções profissionais” (CFP, pela total autonomia em relação
2013, p. 09). É preciso atenção às ao próprio corpo. Sigo escutando
diversas vulnerabilidades que se histórias diversas, mas muito iguais.
apresentam na interseccionalidade A cada novo caso as mesmas velhas
das questões de gênero, raça barreiras, que definitivamente não
e classe social, acolher sem podemos tolerar.
julgamento e instrumentalizar a
mulher para que ela faça a melhor

196
Referências São Paulo. Disponível em: https://
www.forumseguranca.org.br/wp-
Alves, C. (2019, 6 de fevereiro). Os content/uploads/2019/10/Anuario-
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Brasil. (1940). Decreto-Lei nº 2.848, para-atuacao-de-psicologas-os-em-
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