Você está na página 1de 18

André Duarte

DIREITO A TER DIREITOS COMO PERFOMATIVIDADE

DOSSIÊ
POLÍTICA: reler Arendt com Butler

André Duarte*

Este texto discute o significado da noção de um “direito a ter direitos”, introduzida por Hannah Arendt no
contexto de sua análise dos elementos sócio-históricos e políticos que se cristalizaram na forma de domínio
totalitária. Num primeiro momento, apresento rapidamente o contexto em que a noção fez sua aparição no
interior da obra Origens do totalitarismo. Num segundo momento, apresento a interpretação proposta por
Seyla Benhabib para aquele preceito arendtiano, que o situa num plano teórico epistemológico-moral e o
refere ao projeto de um cosmopolitanismo neokantiano. Num terceiro momento, argumento a favor de uma
leitura propriamente política daquela noção arendtiana, divergindo da leitura de Benhabib. Finalmente,
num quarto e último momento, apresento a interpretação proposta por Butler para a noção arendtiana do
direito a ter direitos, a qual explicita sua dimensão político-performativa, revelando-se assim sua impor-
tância para pensarmos manifestações políticas contemporâneas em um contexto de privação de direitos.
Concluo que a interpretação de Butler é mais consoante com o pensamento político de Arendt.
Palavras-chave: Arendt. Direito a ter direitos. Benhabib. Butler. Performatividade política.

INTRODUÇÃO noção cujo brilho luminoso nos impele a re-


fletir sobre determinado assunto a partir de
Há pensadores/as políticos/as cuja ge- uma perspectiva teórica outra. A genialidade
nialidade teórica se caracteriza pela constru- sutil de tais pensadores/as reside não apenas
ção de obras baseadas numa sólida e sistemá- no conjunto de sua obra, mas também se mani-
tica arquitetônica, no interior da qual concei- festa em noções que, a despeito de aparecerem
tos bem-fundados se encadeiam de maneira apenas esporadicamente em seus textos, desta-
a construir o universo normativo a partir do cam-se no conjunto de sua reflexão e acabam
qual julgamos e avaliamos as situações polí- por inspirar debates e discussões que em mui-
ticas concretas do mundo. Jürgen Habermas, to transcendem o contexto teórico imediato ao
John Rawls, mas também Norberto Bobbio se- qual tais noções se encontravam vinculadas.
riam autores exemplares a esse respeito, como Tais pensadores/as são capazes de provocar o
tantos outros mais. Mas também há pensado- pensamento alheio, isto é, são aqueles/as que
res/as cuja marca genial se manifesta a partir nos convidam a pensar junto a eles/as, a pre- Caderno CRH, Salvador, v. 33, p. 1-17, e020014

de noções e intuições poderosas, nem sempre encher com nosso pensamento as lacunas e os
suficientemente exploradas ou explicitadas, silêncios de suas próprias formulações, quan-
frequentemente desprovidas de fundamentos do não nos incitam a pensar para além deles/as
seguros, mas que, entretanto, dão muito que e até mesmo contra eles/as.
pensar. Tais pensadores/as são aqueles/as que, Creio que Hannah Arendt se enquadra
subitamente, num canto de página ou no de- nessa última categoria de pensadoras, e para
curso de uma entrevista, nos apresentam uma justificar essa consideração gostaria de reto-
mar a sua interessante e enigmática noção a
* Universidade Federal do Paraná UFPR. Departamento de
Filosofia. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Pro- respeito de um “direito a ter direitos”, introdu-
grama de Pós-Graduação em Educação. zida ao longo das páginas finais de sua análise
Rua Dr. Faivre n. 405. Ed. D. Pedro II, 2o andar. Cep: 80060-
120. Curitiba – Paraná – Brasil. do “Imperialismo”, que integra sua primeira
andremacedoduarte@yahoo.com.br
https://orcid.org/0000-0002-8401-0032 e monumental obra, Origens do Totalitarismo

http://dx.doi.org/10.9771/ccrh.v33i0.35322 1
DIREITO A TER DIREITOS COMO PERFOMATIVIDADE ...

(2000), publicada em 1951. Hannah Arendt terceiro momento, argumento a favor de uma
formulou a noção de um “direito a ter direitos” interpretação propriamente política daque-
no contexto de sua avaliação crítica acerca dos la noção. Finalmente, num quarto momento,
paradoxos e insuficiências da Declaração dos apresento a interpretação proposta por Judith
Direitos do Homem em face da presença de Butler para aquela noção, a qual explicita a
milhões de migrantes, refugiados e apátridas, dimensão político-performativa que lhe seria
os quais se viram desprovidos de um lugar no inerente. Neste quarto e último momento, tam-
mundo no período histórico do entre guerras bém procuro mostrar porque a interpretação
do século XX. Tal fenômeno, de certa maneira, proposta por Butler me parece mais consoante
pavimentou o caminho que conduziu às políti- com o espírito da reflexão arendtiana acerca da
cas de extermínio levadas a cabo por diversos ação política, e exploro, então, sua potencia-
regimes políticos, alcançando o paroxismo com lidade teórica para a compreensão de alguns
a chamada Solução Final, preparada e perpe- movimentos políticos do mundo contemporâ-
trada pelo nacional-socialismo. Tal noção surge neo, em particular, aqueles levados a cabo sob
de maneira súbita ao longo de páginas memo- circunstâncias de forte privação de direitos.
ráveis, mas Arendt jamais a esmiuçou ou re-
tomou de maneira sistemática ao longo de sua
obra, deixando em estado bruto um diamante HANNAH ARENDT E O DIREITO A
reluzente, incrustado na rocha magnífica que TER DIREITOS
é o seu livro Origens do Totalitarismo. Poste-
riormente, tal noção seria retomada, lapidada e A noção de Arendt acerca de um “direi-
burilada por diversos autores,1 inspirando refle- to a ter direitos” aparece brevemente no final
xões que, por vezes, chegam a conclusões dia- do subitem 5 da Segunda Parte de Origens do
metralmente opostas e distintas entre si, como Totalitarismo, intitulado “O declínio do Esta-
é o caso das interpretações propostas por Seyla do-nação e o fim dos direitos do homem”, que
Benhabib (2005) e Judith Butler (2015). conclui a Segunda Parte daquela obra. Ali,
O propósito deste texto é o de retomar a Arendt discute o fenômeno do Imperialismo
discussão da noção arendtiana de “direito a ter europeu de finais do século XIX e meados do
direitos” levando em consideração, justamen- século XX, entendendo-o como um dos ele-
te, as interpretações e apropriações propostas mentos que contribuíram para a consolidação
por Benhabib e Butler a seu respeito. Num pri- da dominação totalitária em sua vertente nazis-
meiro momento, apresento o contexto original ta. Nas páginas que encerram a segunda parte
em que a noção fez sua aparição no interior da obra, Arendt ressalta o vácuo institucional
de Origens do totalitarismo. Num segundo mo- produzido pela desestabilização das estrutu-
Caderno CRH, Salvador, v. 33, p. 1-17, e020014

mento, apresento a interpretação proposta por ras políticas, econômicas e sociais europeias
Seyla Benhabib para aquela noção arendtiana, após a Primeira Guerra Mundial, enfatizando,
situando-a num plano teórico epistemológi- sobretudo, a aparição de uma quantidade in-
co-moral que tem por referência o projeto de calculável de refugiados, minorias e apátridas,
um novo cosmopolitanismo kantiano. Em um isto é, de um imenso contingente populacional
1
Para uma discussão do “direito a ter direitos” vejam-se:
destituído de direitos. Ao assumirem escala
Schaap, A. “Enacting the right to have rights: Jacques Ran- global, tais fenômenos prenunciaram a ruptu-
cière critique of Hannah Arendt”. In: European Journal of
Political Theory, 10:22, 2011; Ingram, J.: “What is a ‘Right ra do princípio da igualdade de todos perante
to have Rights’? Three images of the Politics of Human Ri-
ghts”. In: American Political Science Review, vol. 102, n. 4, as leis, uma das bases de sustentação do an-
Novembro de 2008; Bernstein, R. “Statelessness and the tigo estado-nação. Naquele contexto, Arendt
Right to have Rights”. In: Hannah Arendt and the Jewish
Question. Cambridge, Massachusetts, MIT Press, 1996; sustentou que a ruptura da igualdade de todos
Aguiar, O. “Hannah Arendt e o direito”, Parte II. In Krite-
rion, n. 143, agosto de 2019. perante as leis tinha como consequência a dis-

2
André Duarte

solução da nação numa “massa anárquica de metafísica de que os seres humanos, enquanto
indivíduos super e subprivilegiados.” (Arendt, tais e por si próprios, seriam, desde o seu nas-
2000, p. 324). cimento, portadores de direitos humanos ina-
Esse vácuo institucional ensejou a apa- lienáveis. Para Arendt, a calamidade da perda
rição de indivíduos que já não compartilha- de direitos por parte de massas humanas cuja
vam quaisquer laços ou interesses comuns, dimensão global era sem precedentes históri-
condição que os transformou em uma massa cos, revelaria que o fundamento dos direitos
indistinta e que, pouco depois, engrossaria e, também, o dos Direitos Humanos, não se
as fileiras do movimento totalitário ou seria encontraria numa concepção filosófico-moral
deportada e aprisionada em campos de con- acerca do Homem ou da Humanidade toma-
centração ou de extermínio. Para a autora, dos em sua individualidade, isto é, enquanto
quando massas gigantescas de seres humanos unidade isolada ou singular, não plural, mas
foram consideradas indesejáveis e supérfluas sim, na pertença relacional e efetiva a uma co-
por estados europeus cujas constituições, não munidade política, em que seja possível agir e
obstante, estavam baseadas no princípio dos discursar de maneira relevante e significativa.
direitos humanos, revelou-se que, a despeito Contudo, não parece haver consenso em tor-
deles serem “supostamente inalienáveis”, tais no dessa interpretação. Afinal, a despeito de
direitos eram, de fato, “inexequíveis” (Arendt, recusar a interpretação clássica, monológica,
2000, p. 327). O problema evidenciado pelas acerca da noção de fundamento, Seyla Benha-
massas de apátridas, imigrantes, minorias e re- bib propõe em sua obra, O direito dos outros
fugiados não era mais apenas a “perda do lar”, (2005), uma interpretação filosófico-moral do
isto é, a “perda de toda a tessitura social na preceito arendtiano do “direito a ter direitos”
qual haviam nascido e na qual haviam cria- que a refere ao projeto de um novo cosmopoli-
do para si um lugar peculiar no mundo”, mas tismo kantiano. Vejamos.
se encontrava na própria impossibilidade de
encontrar um “novo lar” no mundo (Arendt,
2000, p. 327). Tais massas humanas se viram BENHABIB: direito a ter direitos
privadas da proteção legal promovida e garan- como princípio epistemológico-moral
tida por quaisquer Estados, pois tal proteção
lhes fora negada nos países em que antes vi- Seyla Benhabib interpreta o preceito
viam, e tampouco lhes foi garantida nos países arendtiano do “direito a ter direitos” no capí-
para os quais se dirigiram. Tais massas tam- tulo dois de sua obra, Os direitos dos outros
pouco poderiam recorrer ao direito de asilo, (2005), na qual discute a noção de “pertenci-
pois não haviam sido expulsas de seus países mento político” tendo em vista esclarecer os Caderno CRH, Salvador, v. 33, p. 1-17, e020014

de origem por motivo de quaisquer convicções “princípios e práticas” políticas que permi-
políticas ou religiosas. tem a “inclusão de estrangeiros, imigrantes
É no contexto da conclusão de sua e recém-chegados, refugiados e asilados” no
análise dos elementos históricos que tornaram interior de “entidades políticas” existentes
possível a cristalização totalitária que Arendt (Benhabib, 2005, p. 13). Em termos moder-
formula sua crítica, a qual se dirige não pro- nos, tal pertencimento político é regulado pelo
priamente aos Direitos Humanos enquanto conceito de “cidadania nacional” atribuída por
tais, mas às perplexidades imbricadas em seu Estados “soberanos”, muito embora tal sobe-
fundamento metafísico. De fato, quando Han- rania estatal tenha sido posta em questão por
nah Arendt introduz a noção do “direito a ter diversos fenômenos políticos, como guerras e
direitos” (Arendt, 2000, p. 330 trad. mod.), ela movimentos migratórios massivos, de manei-
a entende, de saída, em contraponto à ideia ra que a noção de “fronteiras da comunidade

3
DIREITO A TER DIREITOS COMO PERFOMATIVIDADE ...

política” tem se mostrado insuficiente para de- dicionais dos estados nacionais existentes (Be-
terminar a condição de pertencimento político nhabib, 2005, p. 14). Trata-se, pois, de abrir bre-
cidadão (Benhabib, 2005, p. 13). chas para uma “justiça cosmopolita” no interior
Em uma palavra, sua preocupação resi- de unidades estatais soberanas e, para tanto, a
de em definir princípios normativos que pos- autora diverge das interpretações neokantianas
sam nortear uma teoria da “justiça global” e, que privilegiam aspectos distributivos e deixam
para tanto, Benhabib recorre a uma releitura de lado uma discussão mais apurada acerca da
do cosmopolitanismo de inspiração kantiana, noção de “pertencimento justo” (Ibidem, p. 14-
visando levar em consideração o fenômeno da 15). Sua noção de “pertencimento justo” impli-
hospitalidade ou da inclusão cidadã de massas ca o reconhecimento de um “direito moral dos
de estrangeiros, migrantes e refugiados, cuja refugiados e asilados a uma primeira adesão”;
própria existência põe em questão o Estado- um “regime de fronteiras porosas para os imi-
-centrismo, isto é, o Estado como figura polí- grantes”, bem como um “mandato contra a des-
tica determinante na regulação da concessão nacionalização e a perda de direitos de cidada-
da cidadania e na definição das políticas de nia,” além da “reivindicação do direito de todo
proteção das fronteiras. A questão central que ser humano a ‘ter direitos’, quer dizer, a ser uma
anima a reflexão de Benhabib nesse livro é a pessoa legal, com certos direitos inalienáveis,
de que os “movimentos migratórios transna- não importando qual seja sua condição de per-
cionais” põem em destaque um “dilema cons- tencimento político” (Benhabib, 2005, p. 15). É
titutivo” das democracias liberais, qual seja, o neste contexto teórico que Benhabib recorre à
dilema “entre as afirmações da autodetermi- noção arendtiana do “direito a ter direitos”.
nação soberana, por um lado, e a adesão aos Em sua interpretação, Benhabib distin-
princípios universais dos direitos humanos, gue analiticamente as duas figuras do direito
por outro.” (Benhabib, 2005, p. 14). Seu pro- que aparecem no enunciado arendtiano. Para
pósito é o de levar a cabo uma discussão acer- a autora, o conceito de direito que aparece no
ca do “pertencimento político” a partir de uma início do enunciado seria de natureza distinta
“reconstrução interna” destes dois elementos do conceito de direito que aparece ao seu final,
que constituem tal dilema político. (Ibidem). de modo que o preceito arendtiano traria im-
A perspectiva da reconstrução interna plícito consigo dois conceitos de direito articu-
visa afastar o que a autora entende ser a solução lados entre si, um constituindo o fundamento
fácil da recusa do Estado soberano como ins- do outro. O direito enunciado no singular e em
tância de atribuição da cidadania. De fato, não primeiro lugar seria um “direito moral” enrai-
há solução fácil para aquela tensão constitutiva zado na própria “humanidade” do ser humano,
das democracias liberais entre as reivindicações devendo ser entendido como o fundamento
Caderno CRH, Salvador, v. 33, p. 1-17, e020014

de soberania e do respeito aos direitos huma- sobre o qual se assentam todos os demais di-
nos, e a autora se nega a tomar partido por ape- reitos civis e políticos. Inspirando-se na análi-
nas uma dessas polaridades, considerando que se proposta por Michelman (1996), Benhabib
ambas devem ser mantidas, porém, de maneira entende que este direito primeiro constituiria
revisada. Seguindo “a tradição kantiana do fe- um “imperativo moral” relativo à obrigação de
deralismo cosmopolita”, Benhabib argumenta a reconhecer todo e qualquer ser humano como
favor do que denomina como o princípio das pertencente a um determinado agrupamento,
“adesões democráticas” em entidades estatais isto é, seria o “direito a ser reconhecido pelos
que preservam sua soberania no interior de demais como pessoa, à qual correspondem di-
fronteiras determinadas, mas, de maneira que reitos em geral” (Benhabib, 2005, p. 50).
tais adesões possam abranger uma noção de Este imperativo estaria amparado no
“pertencimento” que exceda as estruturas tra- princípio kantiano do reconhecimento da

4
André Duarte

humanidade como um “fim em si mesmo”, e (Arendt, 2000, p. 332). Tal desconfiança, por
nunca como meio para algo. Enquanto tal, este certo, em nada invalida a proposição filosófi-
direito primeiro e de natureza moral é distinto co-moral da humanidade como fundamento
da noção jurídico-política dos direitos, enun- filosófico para um futuro direito cosmopolita
ciada em segundo lugar e relativa àqueles di- dos povos. Entretanto, não é esta a posição
reitos e obrigações que correspondem a cada teórica defendida por Arendt, que via com
um, tão logo tenham sido efetivamente reco- desconfiança o gesto teórico que subsume as
nhecidos como pertencentes a um determina- relações políticas a posições normativas em
do agrupamento humano. Haveria, portanto, sentido forte e fundante, apartadas de uma
um “direito moral ao pertencimento”, ao qual atenta consideração acerca das realidades e
se associa a expectativa de certa maneira de experiências políticas concretas, como, ade-
tratar os seres humanos como fins em si mes- mais, o reconhece a própria Benhabib (2005,
mos, bem como haveria “direitos e obrigações” p. 52). Arendt chegou mesmo a ponderar que
de caráter civil e legal, isto é, aqueles direitos e tal fundamento humanitário poderia se tornar
obrigações que recaem sobre aqueles/as que já profundamente perigoso, caso um dia viesse a
foram reconhecidos/as como de fato pertencen- ser implementado. O risco temido pela auto-
tes a uma “comunidade legal” (Benhabib, 2005, ra era o de que “uma humanidade altamente
p. 50-51). Enquanto o direito moral que funda- organizada e mecanizada chegue, de maneira
menta a atribuição de direitos jurídico-civis está democrática – isto é, por decisão da maioria –
assentado na noção de “humanidade”, restando à conclusão de que, para a humanidade como
“aberto e indeterminado” quem é a pessoa porta- um todo, convém liquidar certas partes de si
dora desse direito, os direitos jurídico-civis são mesma” (Arendt, 2000, p. 332).
direitos atribuídos a seres humanos que já foram Meu propósito aqui não é debater a per-
reconhecidos como pertencentes a uma “comu- tinência teórica da concepção neokantiana de
nidade humana organizada” (Ibidem, p. 51). justiça cosmopolita defendida por Benhabib,
Segundo Benhabib, “A assimetria entre os usos nem tampouco debater seus inúmeros pressu-
primeiro e segundo do termo ‘direito’ deriva da postos filosóficos (Frateschi, 2014), mas, pro-
ausência, no primeiro caso, de uma comunidade por uma interpretação política para o precei-
jurídico-civil de co-sócios, que estejam em uma to arendtiano do “direito a ter direitos”. Uma
relação de dever recíproco” (Ibidem). interpretação política daquele preceito há de
De fato, Arendt considerou que, se no considerar que as lutas políticas pela conquis-
século XVIII, a humanidade fora entendida ta do direito de cidadania ou de pertencimen-
como um ideal regulador, em sentido kantia- to a uma comunidade política, assim como as
no, no século XX a humanidade teria se torna- lutas pela defesa e ampliação de direitos dos Caderno CRH, Salvador, v. 33, p. 1-17, e020014

do um “fato inelutável” (Arendt, 2000, p. 332). cidadãos, não se encontram numa relação de
Assim, poder-se-ia supor que a humanidade subordinação a um fundamento conceitual,
bem pudesse vir a assumir o papel de um novo ou a um conjunto de princípios filosóficos e
fundamento para o direito, no sentido de que morais, de caráter universal. Tal argumento,
o “direito a ter direitos, ou o direito de cada contudo, não significa invalidar tais funda-
indivíduo de pertencer à humanidade, deveria mentos e princípios universais, nem tampouco
ser garantido pela própria humanidade” (Ibi- desconsiderar que eles constituem importante
dem). Contudo, esta breve suposição caracteri- fonte de inspiração para aquelas lutas. Uma
zada pelo uso do condicional é imediatamente interpretação política do “direito a ter direi-
posta em suspenso pela própria Arendt, que, tos” afirma a potência política da demanda por
logo a seguir, afirma, de maneira peremptória, direitos humanos universais a partir das pró-
que “Nada nos assegura que isso seja possível” prias lutas políticas pela conquista do direito

5
DIREITO A TER DIREITOS COMO PERFOMATIVIDADE ...

de cidadania, e de todos os demais direitos a direitos humanos em um conceito solipsista,


ele vinculados. Nesse sentido, tratar-se-ia jus- não-relacional, acerca do Humano ou da Hu-
tamente de inverter a proposição de Benhabib manidade, e de sua dignidade intrínseca.
e de deslocar a ênfase de sua discussão sobre o Contudo, a plena compreensão do sen-
fundamento conceitual na direção de uma aná- tido político deste preceito pressupõe conside-
lise da própria dinâmica das reivindicações e rar, ainda, outros dois argumentos de natureza
lutas políticas, as quais já são sempre lutas que propriamente política: um primeiro argumen-
incorporam a demanda por direitos humanos. to, em vista do qual Arendt vincula o precei-
Para tanto, será preciso relacionar o preceito to do “direito a ter direitos” ao horizonte de
do “direito a ter direitos” com a análise arend- pertencimento a uma comunidade política or-
tiana acerca da dinâmica da ação política cole- ganizada; e, de maneira suplementar, um ar-
tiva, aspecto central da reflexão de Arendt em gumento relativo à caracterização do que seja
A Condição Humana, obra publicada em 1958. uma comunidade política organizada. Se ler-
mos o preceito do “direito a ter direitos” em co-
nexão com as reflexões de Arendt sobre a ação
POR UMA INTERPRETAÇÃO POLÍ- e o discurso político, em A Condição Humana
TICA DO DIREITO A TER DIREITOS – e tal leitura se justifica, visto que já em Ori-
gens do Totalitarismo ela entendia a cidadania
Penso que o “direito a ter direitos” não como vinculada à capacidade de agir e discur-
é entendido por Arendt como uma “reivindi- sar coletivamente – veremos que a autora não
cação moral fundamental”, segundo os termos restringe a noção do pertencimento a uma co-
propostos por Benhabib (2005, p. 57), mas munidade política organizada àquela situação
como o próprio princípio político da cidada- jurídico-política, na qual um grupo humano
nia, pois se refere à condição de “pertencer a encontra-se previamente reconhecido como
algum tipo de comunidade organizada” em sujeito de direitos por uma entidade estatal
que se possa agir e discursar publicamente, soberana. Por outro lado, a reflexão de Arendt
e em que cada um seja “julgado pelas ações e sobre a ação e o discurso político, permite in-
opiniões” professadas (Arendt, 2000, p. 330). terpretar o preceito do “direito a ter direitos”
Numa formulação bastante enfática, a autora como extensível às formas não-estatais e não
chega mesmo a afirmar que o problema crucial convencionais de organização e reivindicação
não seria a perda de quaisquer direitos especí- política coletiva, como é o caso das lutas pela
ficos, ou mesmo a perda dos chamados direitos inclusão dos não-cidadãos no interior das re-
humanos, mas, sim, “a perda de uma comuni- gras jurídico-políticas que definem a vigência
dade disposta e capaz de garantir quaisquer di- da condição de pertencimento cidadão, aspec-
Caderno CRH, Salvador, v. 33, p. 1-17, e020014

reitos” (Ibidem, p. 331). A compreensão dessa to enfatizado por Judith Butler em sua inter-
tese arendtiana de que o “direito a ter direitos” pretação do “direito a ter direitos” como prin-
diz respeito ao pertencimento a uma comuni- cípio político-performativo.
dade, na qual a garantia e a defesa dos direitos Vejamos, primeiramente, como Arendt
se relaciona à possibilidade de agir e discursar argumenta no nível filosófico-político. Para a
politicamente, supõe distinguir diferentes ní- autora, os Direitos do Homem não deveriam
veis de argumentação: um nível filosófico-po- ser entendidos como fundados em um concei-
lítico e um nível mais propriamente político, to metafísico acerca da Humanidade e de sua
ambos interligados entre si. Ao formular o pre- dignidade intrínseca. Vale dizer, Arendt não
ceito do “direito a ter direitos”, Arendt propõe compreende a noção acerca do “direito a ter
um argumento de caráter filosófico-político, direitos” por referência a categorias filosófi-
que recusa a fundamentação metafísica dos co-morais do século XVIII, “pois estas presu-

6
André Duarte

mem que os direitos emanam diretamente da estar reduzido à “abstrata nudez de ser unica-
‘natureza’ do homem (...). O fator decisivo é mente humano e nada mais” (Ibidem). Mas, se
que esses direitos, e a dignidade humana que o fundamento do “direito a ter direitos” não
eles outorgam, deveriam permanecer válidos reside num conceito metafísico de humanida-
mesmo que um ser humano seja expulso da de, estaria tal fundamento radicado na história
comunidade humana” (Arendt, 2000, p. 331). das tradições locais, ou no vínculo entre esta-
Ora, justamente esse pressuposto foi demons- do, nação e território?
trado como insustentável, em face das calami- Se Arendt não endossa a ideia filosó-
dades políticas do entre guerras do século XX, fica moderna, de matiz kantiano, de que as
com suas multidões de refugiados, migrantes, relações políticas devam estar subsumidas a
minorias desprotegidas e apátridas, para não princípios filosóficos ou morais de natureza
mencionar o horror dos campos de extermí- extra-política, como a Humanidade do ser hu-
nio, postos em ação pelo totalitarismo nazista. mano, cabe observar que sua rápida menção à
Para a autora, “O homem pode perder todos os crítica de Burke (2014) à formulação universal
chamados Direitos do Homem sem perder a abstrata dos Direitos do Homem, elaborada por
qualidade essencial de homem e sua dignida- ele já no decorrer da Revolução Francesa, não
de humana” (Arendt, 2000, p. 331), como bem faz da autora uma defensora das peculiarida-
o demonstraram todos/as aqueles/as que, na des históricas vinculadas aos contextos locais
clandestinidade e, muitas vezes, desprovidos/ e historicamente particulares, nem faz dela
as de quaisquer direitos, se engajaram no mo- uma defensora do princípio da soberania esta-
vimento de resistência à dominação totalitária. tal, com base na territorialidade e na nacionali-
Por outro lado, contudo, estar privado dade. Arendt não defende o preceito de Burke
do pertencimento a uma “comunidade políti- acerca dos direitos históricos dos ingleses ou
ca” onde nossos atos e palavras possuam rele- de quaisquer outros povos, em sua reflexão
vância, ou seja, estar totalmente impossibilita- crítica sobre as perplexidades dos direitos hu-
do de agir e discursar politicamente, condição manos, visto que tal preceito assume para ela
partilhada, por exemplo, pelos milhões de se- apenas “validade pragmática” (Arendt, 2000,
res humanos aprisionados nos campos de con- p. 333) e não validade teórica como fundamen-
centração e de extermínio, isto sim equivaleria to de natureza historicista para a formulação
ao mesmo que estar expulso da “humanidade”, e garantia de quaisquer direitos. Por certo, ela
perdendo-se, consequentemente, toda e qual- reconhece que, durante o entre guerras, e logo
quer dignidade (Arendt, 2000, p. 331). Para a após a segunda grande guerra, “não apenas a
autora, portanto, o que confere humanidade e perda de direitos nacionais levou à perda dos
dignidade ao ser humano é o fato de encontrar direitos humanos, mas a restauração desses Caderno CRH, Salvador, v. 33, p. 1-17, e020014

um lugar no mundo onde os próprios atos e direitos humanos, como demonstra o exem-
palavras tenham relevância e significação po- plo do Estado de Israel, só pôde ser realizada
líticas, este sendo o princípio a partir do qual até agora pela restauração ou pelo estabeleci-
ela entende o significado mesmo da cidadania, mento de direitos nacionais” (Arendt, 2000,
para além de uma definição estritamente jurí- p. 333). Entretanto, o que lhe importava não
dica daquele título. Estar privado do “direito a era a defesa dos valores e tradições históricos
ter direitos”, entendido como a raiz política de como fundamento da atribuição, validade e ga-
uma cidadania definida como capacidade de rantia dos direitos, nem tampouco argumentar
agir e discutir politicamente, é estar privado, que somente poderia haver direitos nacionais
também, não apenas de todo e qualquer direito resguardados por estados-nação soberanos.
suplementar, de que o cidadão possa se bene- Sobretudo, não se tratava de retomar a defesa
ficiar, mas, sobretudo, significa o mesmo que da tese acerca de um vínculo indissolúvel

7
DIREITO A TER DIREITOS COMO PERFOMATIVIDADE ...

entre estado, nação e direito, uma vez que queles/as que “foram expulsos de toda comu-
Arendt estava ciente das limitações inerentes nidade política” (Arendt, 2000, p. 334) no pe-
ao sistema do estado-nacional, demonstradas, ríodo do entre guerras. Aqui, é crucial atentar
cabalmente, com a ruptura da estrutura social, para o fato de que a argumentação de Arendt
política e econômica dos estados-nacionais, é propositadamente inespecífica ao mencionar
em meio às agruras da crise econômica do en- o termo “comunidade política”, que permane-
tre guerras e, mais ainda, durante os anos de ce indeterminado. Essa indeterminação parece
dominação totalitária e sua política de exter- cumprir duas funções na reflexão arendtiana:
mínio em escala de massas. por um lado, essa indeterminação abre espaço
O fenômeno da multiplicação exponen- para se refletir sobre o caráter artificial da co-
cial de apátridas, migrantes, refugiados e mi- munidade política; por outro lado, ela também
norias desprotegidas mostrara à autora que o abre espaço para uma reflexão política que não
vínculo entre nação, Estado, território e direito restringe o exercício da cidadania à jurisdição
já não poderia mais constituir um fundamento do Estado, nem, muito menos, ao conceito de
sólido para o direito, do mesmo modo como estado-nacional, com sua carga de natureza e
tampouco faria sentido voltar a recorrer à “su- naturalidade, estabelecida a partir da vincula-
posta existência de um ser humano em si” ção entre direito e nascimento, num dado ter-
como fundamento do direito. Afinal, recorda ritório governado por um poder soberano. De
Arendt, nos momentos de maior urgência po- fato, mesmo que Arendt não tenha dirigido
lítica, “o mundo não viu nada de sagrado na o impulso de sua reflexão na direção de uma
abstrata nudez de ser unicamente humano” recusa absoluta da figura do Estado como ins-
(Arendt, 2000, p. 333). Ou seja, o recurso prag- tância de atribuição e garantia de direitos, há
mático ao argumento de Burke não leva Aren- diversas passagens em seus textos que deixam
dt a defender os direitos ou privilégios asso- clara sua crítica à redução da política e da cida-
ciados à história dos povos, mas, opera como dania ao âmbito estatal e aos laços de naturali-
contraste heurístico, que revela a exigência de dade, motivo pelo qual jamais concordou com
repensar a relação entre direito, natureza e po- a criação de Israel como estado-nacional judeu,
lítica no mundo contemporâneo: “Parece que o às expensas da população árabe da Palestina.
homem que nada mais é que um homem perde Vários textos recolhidos na coletânea The Jew
todas as qualidades que possibilitam aos ou- as Paraiah (1978) mostram que Arendt sempre
tros tratá-lo como semelhante” (Arendt, 2000, foi crítica em relação às correntes prevalecentes
p. 334). Contudo, cabe perguntar: o que signi- do sionismo, estando ciente do caráter proble-
fica a menção arendtiana à “abstrata nudez de mático das bases de fundação do Estado de Isra-
ser unicamente humano e nada mais” (Ibidem, el como estado-nacional judeu, visto considerar
Caderno CRH, Salvador, v. 33, p. 1-17, e020014

p. 331)? Como compreender o sentido da afir- que, tal condição, implicaria o rebaixamento da
mação de que “o homem que nada mais é que população árabe que vivia e vive na Palestina,
um homem perde todas as qualidades que pos- à condição de cidadãos de segunda categoria, e
sibilitam aos outros tratá-lo como semelhan- mesmo à condição de não-cidadãos.
te”? Quais qualidades estão aqui em questão? Mas, voltemos à figura indeterminada da
É então que os dois argumentos mais comunidade política no pensamento de Aren-
propriamente políticos de Arendt se tornam dt. É justamente essa indeterminação que lhe
importantes para a compreensão do sentido do permite refletir sobre a comunidade política
seu preceito quanto ao “direito a ter direitos”. como aquilo que resulta do “artifício humano”
Como dissemos anteriormente, os argumen- (Arendt, 2000, p. 334), isto é, como “produto”
tos de Burke assumiram para Arendt “novo ou invenção artificial, construída por atos e pa-
significado” diante da realidade concreta da- lavras, por meio dos quais os seres humanos

8
André Duarte

se dão condições igualitárias, que eles jamais tivamente construído, se veja sujeito a trans-
podem encontrar como dadas no âmbito da na- formações derivadas das ações e palavras sub-
tureza. Arendt formulou sua concepção acerca sequentes de outros cidadãos. Por outro lado,
da artificialidade do direito e da política, no Arendt considera que as populações ou grupos
contexto desolador da redução do ser humano, humanos que são impedidos de participar do
nos campos de concentração dos regimes totali- mundo político comum veem-se reduzidos à
tários, à condição natural de simples membros sua “elementaridade natural, à sua mera dife-
da espécie humana, com seus atributos e dis- renciação” (Arendt, 2000, p. 335). Quem está
tinções naturais. Aliás, o nazismo fez justamen- privado/a do reconhecimento de sua condição
te da natureza, do sangue e da hereditariedade de igualdade, pensa Arendt, está privado/a do
os elementos decisivos para a determinação da exercício da cidadania e, assim, também do
condição privilegiada ou desprivilegiada de mi- exercício e usufruto de quaisquer direitos.
lhões de seres humanos. Para a autora, a meta Certamente, está sujeito à crítica o modo
dos regimes totalitários foi a de reduzir homens eurocêntrico e, por vezes, mesmo ingênuo,
e mulheres a seu mínimo denominador comum pelo qual Arendt reafirma a tradicional oposi-
natural, privando-os de seus direitos políticos e ção filosófica entre estado civil e estado de na-
de sua dignidade, ao deportá-los e aprisioná-los tureza. A partir dela, Arendt delineia uma dis-
em laboratórios infernais, para então extermi- tinção simplista entre civilizados e selvagens, a
ná-los. Daí deriva sua oposição entre natureza qual desconsidera as pesquisas etnológicas que,
e artifício político, expressa de maneira contun- já à época de formulação e redação de Origens
dente na seguinte afirmação: do Totalitarismo, haviam compreendido que as
coletividades ditas primitivas também constro-
A igualdade, em contraste com tudo o que se rela-
ciona com a mera existência, não nos é dada, mas
em um mundo e uma cultura, que as qualifica e
resulta da organização humana, porquanto é orien- diferencia em relação ao ambiente e aos demais
tada pelo princípio da justiça. Não nascemos iguais; seres naturais, em meio aos quais vivem. Temos
tornamo-nos iguais como membros de um grupo por aqui uma versão claramente problemática de
força da nossa decisão de nos garantirmos direitos suas distinções entre natureza e política, espaço
reciprocamente iguais. Nossa vida política baseia-se
privado e espaço público, entre o âmbito da ne-
na suposição de que podemos produzir igualdade
através da organização, porque o homem pode agir
cessidade e o da liberdade, em vista das quais,
sobre o mundo comum e mudá-lo e construí-lo jun- a autora afirma que tudo aquilo que provém da
tamente com os seus iguais e somente com os seus “esfera do que é meramente dado,” e que, nas
iguais (Arendt, 2000, p. 335). sociedades civilizadas, é relegado à “vida pri-
vada”, deve ser visto como uma “permanente
Arendt estabelece aqui uma inversão ameaça à esfera pública, porque a esfera pú- Caderno CRH, Salvador, v. 33, p. 1-17, e020014
do postulado filosófico moderno, de inspira- blica é tão consistentemente baseada na lei da
ção cristã, de que todos os homens nascem igualdade como a esfera privada é baseada na
livres e iguais entre si, a fim de enfatizar que lei da distinção e da diferenciação universal”
a igualdade não é um dado da natureza, mas, (Arendt, 2000, p 335).
sim, uma conquista política, um constructo O problema dessa afirmação reside na
que depende da organização e da decisão co- ideia de que a própria fronteira entre os âmbi-
letiva, no sentido de que a igualdade precisa tos público-político e o privado não esteja su-
ser afirmada e posta em ação. Tal decisão e jeita à transformação, em decorrência do agir
afirmação, portanto, vinculam-se às palavras e político coletivo, possibilidade que a própria
ações oriundas de uma pluralidade de agentes Arendt não deixou de reconhecer em outras
que se orientam pelo princípio da justiça, de ocasiões. Em um debate ocorrido em 1972,
sorte que o mundo comum, que assim é cole- quando questionada justamente acerca da ri-

9
DIREITO A TER DIREITOS COMO PERFOMATIVIDADE ...

gidez de sua distinção entre público e privado, pois, a comunidade política, neste sentido am-
Arendt respondeu que plo e indeterminado, não se restringe ao Es-
tado ou a qualquer instância governamental,
Em todas as épocas, as pessoas que vivem coletiva-
mente terão assuntos que pertencem ao espaço pú-
mas é aquilo que se constitui, ou que resulta,
blico – coisas ‘que são dignas de ser discutidas em das ações e palavras coletivas, que qualificam
público’. O que são esses assuntos em cada momen- politicamente os seres humanos como iguais.
to histórico é provavelmente totalmente diferente. Este é um aspecto crucial do pensamento aren-
(...) Então, o que se torna público (what becomes dtiano e que, infelizmente, apenas raramente
public) em cada período dado parece ser para mim
tem sido observado pelos seus intérpretes. Es-
totalmente diferente (Arendt,1979, p. 316).
tão contidas nesse argumento político arend-
Do contrário, tornar-se-ia impossível tiano diversas implicações relevantes para a
pensar, em termos arendtiano, a politização de análise da potência política dos novos movi-
questões que, ao adentrarem o espaço público, mentos sociais, aspecto ressaltado por Judith
não levaram a uma contaminação perigosa do Butler (2015). Recorde-se a formulação aren-
espaço público pelo privado, mas, sim, a um dtiana, citada anteriormente, de que somente
enriquecimento e a um entendimento mais nos tornamos iguais enquanto membros de
complexo acerca da composição histórica do um agrupamento humano, na medida em que
espaço público, bem como acerca da própria decidimos nos atribuir e nos garantir direitos
redefinição da distinção entre espaço público reciprocamente iguais. Ou seja, a igualdade
e espaço privado (Duarte, 2016). Afinal, tudo resulta da decisão humana, é um produto da
aquilo que, durante séculos, permaneceu rele- ação e do discurso políticos. Em momento al-
gado ao plano privado, ao ser transformado em gum, como se percebe, Arendt relaciona a vida
objeto de ação e discurso coletivos, necessa- política à condição prévia de já ser membro
riamente se politiza e se transforma, alterando cidadão reconhecido por um Estado soberano.
seu antigo status. O que, por certo, não quer Para Arendt, o que está em questão é o me-
dizer que as distinções entre público e priva- canismo político pelo qual os/as agentes atri-
do, política e natureza, liberdade e necessida- buem-se e garantem-se a si mesmos/as direitos
de, não tenham qualquer validade. Afinal, a iguais, não importando, aqui, se tais direitos já
afirmação taxativa de que tudo é político leva se encontram protegidos por alguma instância
necessariamente à dissolução de toda e qual- estatal. Cada agente político/a que se engaja
quer fronteira e, assim, dissolve a própria ideia num determinado curso de ação, em condições
de política. Tudo depende, portanto, do modo de respeito da pluralidade, e orientando-se
como tais distinções são postas em operação pelo princípio da justiça, atribui-se a si, e aos
(Honig, 1995). demais, direitos reciprocamente iguais.
Caderno CRH, Salvador, v. 33, p. 1-17, e020014

No entanto, tampouco se pode descon- Assim, a formulação arendtiana é vaga


siderar as importantes implicações políticas o suficiente ao referir-se apenas à noção de
contidas na tese arendtiana de que, aque- pertencimento a um “grupo”, o que, por certo,
les/as que decidem se reunir politicamente, bem pode valer para aqueles/as que se enga-
põem em marcha o exercício da cidadania e, jam em movimentos sociais visando à amplia-
nesse mesmo momento, se constituem como ção de seus direitos, ou mesmo visando à sua
membros iguais de uma comunidade política, própria inclusão no domínio jurídico da cida-
forjando um mundo comum, sob a égide do dania. A igualdade é indissociável do exercí-
princípio da justiça. Exatamente aqui surge cio da liberdade política, pois é em condições
o segundo argumento político implicado no de igualdade que podemos agir e transformar
preceito arendtiano do “direito a ter direitos”, o mundo e suas estruturas institucionais. Em
Who sings the Nation-State (2010) e, sobretu-

10
André Duarte

do, em Notes toward a performative theory of parte do próprio objeto da reflexão política e
assembly (2015), Butler segue exatamente essa da ação” (Butler, 2015, p. 44).
linha de raciocínio e, a partir dela, constrói sua Estabelecida essa divergência de fundo,
interpretação da noção arendtiana do “direito vejamos como Butler interpreta e se apropria
a ter direitos”, enfatizando seu poder perfor- do lema arendtiano do “direito a ter direitos”.
mativo, isto é, sua capacidade de produzir efei- Como vimos, uma das teses fortes que Arendt
tos de cidadania, pela ação coletiva de popula- defende é a de que as populações ou grupos
ções subalternizadas que lutam por condições humanos que são impedidos de participar do
de uma vida vivível. mundo político comum veem-se reduzidos à
sua “elementaridade natural, à sua mera di-
ferenciação” (Arendt, 2000, p. 335). Assim,
BUTLER: a interpretação político- aqueles/as que estão privados/as da capaci-
-performativa do direito a ter direitos dade de agir e falar pública e coletivamente,
estão privados/as da possibilidade de reconhe-
Contrariamente a certos aspectos pro- cerem-se como iguais, isto é, estão privados/
blemáticos do pensamento político de Hannah as do exercício da cidadania e, também, do
Arendt, Judith Butler entende que não é possí- usufruto de todos os direitos a ela associados.
vel deixar de considerar o papel dos corpos e Ora, esta ideia tem como correlato a tese de
de suas necessidades quando se trata de pen- que aqueles/as que decidem se reunir politica-
sar a ação e o discurso políticos. Butler reitera mente põem em marcha, justamente, exercício
e retoma, deste modo, as diversas críticas for- da cidadania, e, nesse instante, se constituem
muladas por pensadoras do feminismo quanto como membros iguais de uma comunidade,
à distinção arendtiana entre os assim chama- no sentido de que produzem a igualdade recí-
dos movimentos políticos, levados a cabo em proca, ao agirem inspirados pelo princípio da
nome da liberdade, e os movimentos sociais, justiça, verdadeiro motor do engajamento polí-
que seriam ditados pela premência da necessi- tico democrático. Eis, então, como Butler relê
dade e, assim, seriam supostamente não-polí- a conexão entre essas duas teses arendtianas:
ticos, como se o âmbito do corpo e das necessi-
Nos termos de Arendt, podemos dizer que ser ex-
dades constituísse o campo da não-liberdade: cluído do espaço da aparência, ser excluído de fazer
“Se o corpo permanece no nível da necessi- parte da pluralidade, que traz o espaço da aparência
dade, então pareceria que nenhuma conside- ao ser, é ser privado do direito a ter direitos. A ação
ração política da liberdade poderia ser incor- plural e pública é o exercício do direito ao lugar e ao
porada” (Butler, 2015, p. 47). Ao considerar o pertencimento, e este exercício é o meio pelo qual
o espaço das aparências é pressuposto e trazido à
caráter corporal e incorporado do exercício da Caderno CRH, Salvador, v. 33, p. 1-17, e020014
existência (Butler, 2015, p. 59-60).
liberdade, Butler desmonta a distinção arend-
tiana entre liberdade e necessidade, e defende Estar impedido de agir e discutir pu-
o caráter propriamente político da luta coletiva blicamente é o mesmo que estar privado/a de
contra a desigual distribuição mundial da ne- liberdade e de igualdade, visto que ambas so-
cessidade: “Apenas no contexto de um mundo mente se atualizam no espaço das aparências,
vivo emerge o homem como criatura que age, que constitui um mundo comum entre os/as
um homem cuja dependência para com outros agentes políticos/as. Liberdade, igualdade e
e para com os processos vivos faz emergir sua cidadania não são conceitos abstratos para
própria capacidade para a ação”. Neste senti- Arendt, mas somente se constituem na medida
do preciso, portanto, “Viver e agir estão vin- em que os/as agentes políticos/as podem agir e
culados, de tal maneira que as condições que discutir entre si, seja num espaço público pre-
tornam possível para qualquer um viver, são viamente delineado, seja por meio da própria

11
DIREITO A TER DIREITOS COMO PERFOMATIVIDADE ...

criação de um espaço público paralelo ou mes- (Benhabib, 2005, p. 50), Butler a entende como
mo clandestino, quando situações políticas insígnia dotada da capacidade performativa de
emergenciais se apresentam. Por outro lado, produzir, em ato, aquelas condições das quais
agir e discursar politicamente, mesmo quando os/as agentes se encontram privados/as. Este
não se está de posse de um título jurídico que efeito performativo de instauração em ato da-
qualifique o/a agente como cidadão/ã de direi- quilo de que se carece, no contexto imediato
to, é o mesmo que pôr em ação a liberdade po- do próprio curso da ação coletiva, é entendido
lítica e a igualdade recíproca, produzindo-se, como a condição política primeira para que,
assim, um efeito político de cidadania. Assim, posteriormente, tal clamor e apelo políticos,
a tese interessante que Butler defende em sua venham a conquistar materialidade institucio-
interpretação da noção arendtiana do direito a nal e positiva nos códigos jurídicos. A eficácia
ter direitos enfatiza o seu poder performativo, política do “direito a ter direitos” não depen-
isto é, a sua capacidade de produzir efeitos de deria, então, de sua cuidadosa fundamentação
igualdade e de cidadania por parte das popula- moral na dignidade intrínseca do Homem ou
ções subalternizadas, exatamente no instante da Humanidade, mas dos efeitos políticos per-
em que lutam para conquistar os direitos de formativos produzidos pelas próprias lutas,
que carecem. Deste modo, Butler entende que estas sendo as instâncias privilegiadas para a
o pensamento de Arendt nos oferece impor- geração de direitos. Para Butler, demandar di-
tantes indicações acerca de como o reunir-se reitos quando se está desprovido deles
e o associar-se agem de maneira a estabelecer Significa reivindicar aquele mesmo poder de que
ou reestabelecer “o espaço da aparência”, en- se está privado, a fim de expor e de militar contra
tendido como espaço constituído pelo “caráter aquela denegação. (...) algumas vezes é uma questão
corporal da ação humana plural” (Butler, 2015, de agir e, ao agir, reivindicar o poder de que se ne-
cessita. Isto é a performatividade como a entendo,
p. 48). Para Butler, portanto, “Talvez um dos
bem como é, também, uma maneira de agir a partir
propósitos aqui seja o de tentar repensar essas
e contra a precariedade (Butler, 2015, p. 58).
distinções arendtianas para mostrar que o cor-
po, ou, antes, a ação corporal concertada (...) A autora observa ainda que o direito de
pode dar sentido aos princípios da liberdade e aparecer publicamente está regulado por nor-
da igualdade” (Butler, 2015, p. 48). mas e esquemas regulatórios que estabelecem
Para Butler, o “direito a ter direitos” é quem pode, e quem não pode aparecer em pú-
um “tipo de exercício performativo,” no sen- blico impunemente, isto é, sem correr riscos
tido de que se trata de algo que se exerce, e de violência. Por isto, toda reivindicação pelo
não de um ato para o qual se requeira um fun- direito universal de aparecer em público está
damento exterior à própria ação política que perpassada por formas de poder que estabe-
Caderno CRH, Salvador, v. 33, p. 1-17, e020014

demanda direitos. Esta reivindicação perfor- lecem diferenças que qualificam tal aparição.
mativa pelo “direito a ter direitos” não é, por- Deste modo, quando se trata dos/as que não
tanto, “puramente linguística”, nem tampouco têm direito à franca aparição pública, o seu
assume caráter epistemológico-moral; antes, próprio aparecimento, e suas alianças para tor-
tal reivindicação é política, e se leva a cabo por narem-se visíveis, assumem um caráter decisi-
meio do “movimento corporal, de assembleias, vo, e isso “envolve a afirmação plural e perfor-
de ação e resistência” (Butler, 2015, p. 49). mativa de uma elegibilidade, ali mesmo onde
Assim, contrariamente à interpretação pro- ela não existia antes” (Butler, 2015, p. 50). Os
posta por Benhabib, segundo a qual a noção efeitos dessa afirmação plural e performativa
arendtiana do “direito a ter direitos” seria um não procuram definir apenas um lugar para
“imperativo moral dirigido a todos os homens aqueles/as que haviam sido desprezados/as,
indistintamente (à humanidade enquanto tal)” e se encontravam em clara situação precária,

12
André Duarte

mas, sobretudo, visam a “produzir uma racha- um Estado determinado define os limites da
dura no interior da esfera da aparência, expon- cidadania e quem é portador/a de direitos. Isto
do a contradição pela qual sua reivindicação não significa que Arendt espose um cosmo-
de universalidade é afirmada e tornada nula” politismo jurídico ideal e desencarnado, mas
(Butler, 2015, p. 50). Em suma, a entrada no que a capacidade humana para agir e discursar
espaço das aparências daquelas populações coletivamente, pode se dar em uma multiplici-
que não têm franqueado o seu acesso à visi- dade de espaços e contextos mundanos, exce-
bilidade, depende de uma “crítica das formas dendo-se os limites da concepção da cidadania
diferenciais de poder, pelas quais aquela esfe- como direito positivado e garantido por um es-
ra é constituída, bem como depende de “uma tado soberano, bem como extrapolando-se os
aliança crítica formada entre aqueles que não limites da política representativa, centrada ex-
contam, os inelegíveis – os precários – a fim clusivamente nos partidos políticos. É por isso
de estabelecer novas formas de aparência, que que Butler ressalta que a ação performativa,
busquem superar aquela forma diferencial de operada pelo “direito a ter direitos”, indepen-
poder” (Ibidem, p. 50-51). de “da existência de qualquer organização po-
Inspirando-se em Arendt, Butler consi- lítica particular para sua legitimidade” (Butler,
dera que os agrupamentos que agem politica- 2015, p. 80), bastando que haja cidadãos que
mente, formulam suas demandas coletivas não se reúnam na modalidade da ação e do discur-
apenas em nome da igualdade de direitos, ou so concertados.
da igualdade de tratamento, mas que agem e De fato, em A Condição Humana (1989),
enunciam suas demandas nos próprios termos Hannah Arendt defendera a ideia de que a po-
da igualdade, isto é, se assumem, na prática de lítica e o poder surgem originariamente do “es-
suas ações e discursos, “como um agente de paço da aparência”, que passa a “existir sem-
igual valia com outros” (Butler, 2015, p. 52). pre que os homens se reúnem na modalidade
Assim, toda comunidade ou coletividade polí- do discurso e da ação” (Arendt, 1989, p. 199).
tica que se reúne publicamente, e passa a agir Trata-se, aí, de um espaço comum que “pre-
em nome da igualdade, da liberdade e da justi- cede toda e qualquer constituição formal da
ça, estabelece uma oposição crucial para com esfera pública e as várias formas de governo,”
os significados tradicionais, ou hegemonica- e cuja própria existência depende, apenas, de
mente estabelecidos numa dada sociedade, a que os/as agentes permaneçam juntos/as e dis-
respeito do que sejam igualdade, liberdade e postos/as a agir e a falar entre si, desaparecen-
justiça. Para Butler, do assim que se isolem uns/mas dos/as outros/
as. Nesse sentido, trata-se também de um es-
A igualdade é uma condição e um caráter da própria
ação política, ao mesmo tempo em que é, também, a
paço comum, até certo ponto intangível, e que Caderno CRH, Salvador, v. 33, p. 1-17, e020014

sua meta. Exercer a liberdade não é algo que vem de existe apenas potencialmente, isto é, enquanto
você ou de mim, mas vem daquilo que está entre nós, possibilidade, nunca necessariamente ou para
do vínculo que constituímos no momento em que sempre. Por isso, Arendt também afirmava que
exercemos a liberdade conjuntamente, liame sem o “a polis, a rigor, não é a cidade-estado em sua
qual não há qualquer liberdade (Butler, 2015, p. 52).
localização física; é a organização do povo tal
Butler entende que Arendt, ao relacio- como ela desponta do agir e falar conjuntos,
nar o “direito a ter direitos” à figura política e seu verdadeiro espaço se encontra entre as
de uma cidadania que se constrói em atos e pessoas que vivem em conjunto para esse pro-
palavras, não a limita ao plano da soberania ou pósito, não importa onde estejam” (Arendt,
dos códigos jurídicos estabelecidos. Extrapo- 1989, p. 198). Se estabelecermos uma conexão
lam-se, assim, as fronteiras jurídico-políticas entre a concepção arendtiana da polis, como
institucionais e burocráticas, a partir das quais dimensão política instaurada pela ação e pelo

13
DIREITO A TER DIREITOS COMO PERFOMATIVIDADE ...

discurso, com sua noção acerca do “direito a capazes de fundar e orientar, em sentido forte,
ter direitos”, podemos então compreender que, as ações dos/as agentes. Afinal, o importante
tal direito, precede qualquer codificação legal aqui é, justamente, a consideração dos efeitos
e é independente de qualquer apelo a um di- políticos derivados da ação corporal e discur-
reito natural. Ele não está fundamentado num siva, que reivindica direitos. Em se tratando
conceito moral ou político de humanidade, de reivindicações por direitos fundamentais
mas depende de um conjunto de agentes que por parcelas da população maximamente ex-
reivindiquem politicamente o direito de que se postas à precariedade, em função da carência
encontram desprovidos: de políticas de proteção e garantia das condi-
ções que tornam uma vida digna e vivível, o
O direito ganha existência quando é exercido, e
quando exercido por aqueles que agem em concer-
conceito de performatividade política permite à
to, em aliança. Aqueles que são excluídos da po- autora abrir mão do conceito de sujeito de di-
lítica existente, aqueles que não pertencem a um reitos e, ainda assim, considerar os efeitos po-
estado-nação, ou a qualquer outra formação estatal líticos implicados nas formas de ação e de rei-
contemporânea, podem ser considerados ‘irreais’ vindicação por direitos, postas em prática por
apenas por aqueles que tentam monopolizar os ter-
trabalhadores imigrantes ilegais, desprovidos
mos da realidade. E, no entanto, mesmo depois que
a esfera pública foi definida por meio de sua exclu-
de documentação e de cidadania jurídico-polí-
são, ainda assim, eles agem. Ainda que tenham sido tica. Não por acaso, Butler propôs sua primei-
abandonados à precariedade, ou deixados à morte ra interpretação do preceito de Arendt sobre o
por meio da negligência sistemática, a ação concer- “direito a ter direitos” ao refletir sobre as gran-
tada ainda emerge de seu agir conjunto. E isto é o des manifestações de imigrantes ilegais, de ori-
que vemos, por exemplo, quando trabalhadores sem
gem latina, ocorridas na Califórnia em meados
documentação se reúnem nas ruas, sem qualquer
direito legal para fazê-lo (...) (Butler, 2015, p. 80-81).
dos anos 2000. O ápice performático daquelas
manifestações públicas consistia em cantar o
Em seu diálogo com Spivak, publica- hino nacional norte-americano em espanhol,
do sob o título de Who sings the Nation-State demonstrando-se, assim, a complexidade da
(2010), Butler já dera os primeiros passos para relação entre a comunidade latina e os Estados-
a formulação da sua noção de performativida- -Unidos. Nestas manifestações políticas, a co-
de política, ao discutir a noção arendtiana do munidade latina reivindicava publicamente os
“direito a ter direitos”. Desde então, ela a en- direitos de cidadania dos quais se encontrava
tendia não como princípio normativo abstrato legalmente privada, gerando-se, assim, efeitos
e pertencente ao indivíduo isolado, mas como políticos inesperados e mesmo paradoxais, pois
princípio performativo, próprio à ação política a ação política concertada e pública daqueles/as
coletiva no espaço público, por meio da qual agentes instaurava, em ato e instantaneamente,
Caderno CRH, Salvador, v. 33, p. 1-17, e020014

agentes desprovidos/as de cidadania, põem em justamente a cidadania e a liberdade política de


exercício uma liberdade política que, justa- que formalmente careciam:
mente, caracteriza a condição do/a cidadão/ã.
Exercer a liberdade e afirmar a igualdade, precisa-
Ao transplantar sua anterior noção de perfor-
mente em relação a uma autoridade que as obstrui,
matividade de gênero, para o campo dos mo- é mostrar como a liberdade e a igualdade podem e
vimentos políticos de resistência à opressão, devem se mover, para além de suas articulações po-
Butler logrou pensar práticas políticas que não sitivas. (...) O chamado para este exercício da liber-
pressupõem um sujeito identitário ou substan- dade, que vem com a cidadania, é o exercício daque-
la liberdade numa forma incipiente: ela começa por
cializado, pois não dependem de uma concep-
exercer aquilo que reivindica (BUTLER; SPIVAK,
ção essencialista do sujeito, e nem mesmo da
2010, p. 66-68).
formulação de um conjunto de princípios éti-
cos e políticos de caráter normativo e abstrato, Ali onde a legitimidade do estado é posta

14
André Duarte

em questão por uma forma inesperada de apa- se encontram excluídos/as da comunidade po-
recimento em público, tais corpos em aliança lítica. Para Butler, como para Arendt, apenas a
exercem “um direito que não é um direito”, no luta pela conquista de direitos poderá garantir a
sentido do direito positivado. Em outras pala- posse e o usufruto dos direitos, o que, eviden-
vras, aqueles/as que lutam e se organizam poli- temente, não significa que as duas autoras des-
ticamente exercem um direito que é, também, prezem o direito positivo, ou desconsiderem a
a constituição ativa de uma forma de vida po- dimensão política do próprio ordenamento ju-
lítica. Afinal, por meio desse agir coletivo se rídico, assim como a importância das reivindi-
cações por direitos humanos, as quais ressaltam
[...] articula seu modo de viver, mostrando tanto sua
precariedade, quanto seu direito a persistir. Este
sua dimensão moral. Entretanto, como vimos, o
direito não está codificado em lugar algum. Não é núcleo central das reflexões de Arendt a respei-
garantido por nada, ou pela lei existente, mesmo se, to do “direito a ter direitos” é o de que “a pri-
por vezes, encontra apoio precisamente ali. Ele é, de vação fundamental dos direitos humanos ma-
fato, o direito a ter direitos, não como direito natural nifesta-se primeiro, e acima de tudo, na priva-
ou como estipulação metafísica, mas como persis-
ção de um lugar no mundo que torne a opinião
tência do corpo contra aquelas forças que buscam
sua debilitação ou erradicação (Butler, 2015, p. 83).
significativa e a ação eficaz” (Arendt, 2000, p.
330). Ora, se a corrosão dos direitos humanos,
Não se trata, aqui, de um apelo ao “vita- e de todos os demais direitos, se manifesta em
lismo”, ou de uma reinvindicação abstrata pelo primeiro lugar na condição de estar privado/a
“direito à vida” (Butler, 2015, p. 83). Trata-se, da capacidade de agir e discursar politicamen-
por outro lado, de corpos que, por sua própria te, então, pode-se considerar que a condição
aparição e por sua ação e discursos concerta- primeira para a geração e garantia dos direitos
dos, colocam em xeque a legitimidade de certos está associada ao exercício da política em atos
aspectos do ordenamento jurídico estabelecido. e palavras, por uma pluralidade de agentes.
Mesmo os corpos expostos à privação e exclu- Pensando com Arendt, para além de Arendt, e
são podem eventualmente tornar-se corpos que mesmo contra Arendt, Judith Butler nos ofere-
aparecem e agem em concerto, ao denunciar ce uma interpretação política do “direito a ter
sua exclusão do espaço das aparições políticas, direitos”, que faz jus ao brilhantismo da refle-
e é justamente por meio desse novo modo de xão arendtiana, que continua dando tanto o que
aparecer e agir publicamente, que eles põem em pensar nos dias que correm.
ação o direito de que carecem:

Juntos, eles exercem o poder performativo de de- Recebido para publicação em 03 de fevereiro de 2020.
mandar o público, de um modo que ainda não está
Aceito em 21 de julho de 2020
codificado pela lei, e que jamais poderá ser total-
Caderno CRH, Salvador, v. 33, p. 1-17, e020014

mente codificado pela lei. E esta performatividade


não é apenas discurso, mas são as demandas da ação
corporal, do gesto, do movimento, da congregação,
da persistência e exposição à violência possível. (...) REFERÊNCIAS
Tais ações reconfiguram o que será o público e o que
será o espaço da política (Butler, 2015, p. 75). AGUIAR, O.: “Hannah Arendt e o direito”, Parte II. In
Kriterion, n. 143, agosto de 2019.

Assim, a interpretação proposta por ARENDT, H. The Jew as Pariah: jewish identity and politics
in the modern age. Editadopor Ron H. Feldman, NY: Grove
Butler para o preceito arendtiano do “direito Press, 1978.
a ter direitos” o entende como lema político. ARENDT, H. “Hannah Arendt on Hannah Arendt”. In Hill,
M. The recovery of the public world. Nova York, St. Martin’s
Ele incita à luta por parte daqueles/as que são Press, 1979.
discriminados/as no interior da comunidade ARENDT, H. The human condition. Chicago, University of
Chicago Press, 1989.
política, assim como por parte daqueles/as que

15
DIREITO A TER DIREITOS COMO PERFOMATIVIDADE ...

ARENDT, H. Origens do Totalitarismo. SP: Cia das Letras, FRATESCHI, Y. “Universalismo interativo e mentalidade
2000. Tradução de Roberto Raposo. alargada em Seyla Benhabib: apropriação e crítica de
Hannah Arendt”. In: Ethic@ (UFSC), v. 13, p. 363, 2014.
BENHABIB, S. Los derechos de losotros.Extranjeros,
residentes y ciudadanos. Tradução de G. Zadunaiski. HONIG, B. “Toward an Agonistic Feminism” in Feminist
Barcelona: Gedisa, 2005. Interpretations of Hannah Arendt. Ed. B. Honig. Penn State
University Press, 1995.
BERNSTEIN, R. J.: “Statelessness and the Right to have
Rights”, in Hannah Arendt and the Jewish Question. INGRAM, J.: “What is a ‘Right to have Rights’? Three
Cambridge, Massachusetts, MIT Press, 1996. images of the Politics of Human Rights”. In American
Political Science Review, vol. 102, n. 4, Novembro de 2008.
BURKE, E. Reflexões sobre a revolução na França. São
Paulo: Edipro, 2014. Tradução de José Miguel Nanni MICHELMAN, F.: “Parsing ‘A Right to have Rights’”. In
Soares. Constellations, vol. 3, n. 2, outubro de 1996.
BUTLER, J.; SPIVAK, G. C. Who Sings the Nation-State?: SCHAAP, A. “Enacting the right to have rights: Jacques
Language, Politics, Belonging. Seagull Books, 2010. Rancière critique of Hannah Arendt”. In European Journal
of Political Theory, 10:22, 2011.
BUTLER, J. Notes towards a performative theory of
assembly. Nova York: Routledge, 2015. 
DUARTE, A. “Judith Butler e Hannah Arendt em diálogo:
repensar a ética e a política In: Vida e Liberdade: entre a
ética e a política. Curitiba: PUCPRESS, 2016, v.1, p. 311-
336.
Caderno CRH, Salvador, v. 33, p. 1-17, e020014

16
André Duarte

RIGHT TO HAVE RIGHTS AS POLITICAL LE DROIT À AVOIR DES DROITS COMME


PERFORMATIVITY: Rereading Arendt with Butler PERFORMATIVITÉ POLITIQUE: rélire Arendt
avec Butler

André Duarte André Duarte

This text intends to discuss Hannah Arendt’s Ce texte se propose de discuter la notion de Hannah
notion about the “right to have rights”, introduced Arendt autour du « droit à avoir des droits »,
in her analysis of the socio-historical and political introduit dans son analyse des éléments socio-
elements that later crystalized in the totalitarian historiques et politiques qui se sont cristallisés
domination. In a first moment, I briefly present dans la domination totalitaire. Dans un premier
the original context in which thatArendtian notion moment, je présente brièvement le contexte original
was proposed in The Origins of Totalitarianism. dans lequel la notion d’Arendt était formulée
In a second moment, I present the way Seyla dans Origines du Totalitarisme. Dans un second
Benhabib interpreted that Arendtian notion, moment, je présent la manière dont SeylaBenhabib
byemphasizingits allegedly epistemological and a interprétée cette notion, en affirmant sa portée
moral implications in the context ofa Neokantian epistémologico-moral dans le contexte du projet
cosmopolitanism. In a third moment, I shall argue d’un cosmolopolitisme d’inspiration néokantien.
for a political interpretation of that Arendtian Dans un troisième moment je propose une
precept, in a clear contrast to Benhabib’s reading interprétation notamment politique du précepte
of it.Finally, in a fourth moment, I present Judith arendtien, dans un sens divers de celui proposé par
Butler’s interpretation of the Arendtian notion Benhabib. Finalement, dans un quatrième moment,
about the right to have rights, which emphasizes its je présent l’interprétation du droit à avoir des
political-performative dimension, thus highlighting droits tel que proposée par Judith Butler, laquelle
its importance to understand certain contemporary relève sa portée politico-performative et, donc, son
political movements performed under conditions importance pour réfléchir sur des mouvements
of deprivation of rights. I conclude that Butler’s politiques menés à bout dans des conditions de
interpretation is more akin to Arendt’s political privation de droits. Je considère que la lecture de
thinking. Butler est plus en syntonie avec la pensée d’Arendt.

Key-words: Arendt. Right to have rights. Benhabib. Mots-cléf: Arendt. Droit à avoir droits. Benhabib.
Butler. Political performativity. Butler. Performativité politique.

Caderno CRH, Salvador, v. 33, p. 1-17, e020014

André Duarte – Doutor em Filosofia. Professor do Departamento de Filosofia e do Programa de Pós-


Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professor do Programa de Pós-
Graduação em Educação da UFPR. Pesquisador bolsista do CNPq 1-C. Diretor da Agência UFPR
Internacional entre 2017-2020. Membro do Comitê Gestor do Programa PRINT CAPES-UFPR. Autor de
Vidas em Risco: crítica do presente em Arendt, Heidegger e Foucault. RJ: Forense Universitária/GEN, 2010;
e O pensamento à sombra da ruptura: política e filosofia no pensamento de Hannah Arendt. SP: Paz e
Terra, 2000. Autor de diversos artigos e capítulos de livro publicados no Brasil e no exterior.

17

Você também pode gostar