Você está na página 1de 5

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

N
o contexto científico contempo- a) Classifique os movimentos dos mó-
Rafael Vasques Brandão râneo, o processo de modelagem veis A e B. b) Determine a distância
E-mail: rafael.brandao@ufrgs.br assume um papel fundamental entre A e B no instante t = 0. c) Deter-
na busca por respostas que auxiliam o ho- mine o instante e o espaço em que os
Ives Solano Araujo mem a compreender o mundo em que vi- móveis se encontram. [6, p. 49]
E-mail: ives@if.ufrgs.br ve. Já no atual contexto educacional [1-4],
tem-se visto que estratégias didáticas Esta crítica não se refere à tentativa
Eliane Angela Veit baseadas na noção e uso de modelos sur- de explicar um fenômeno físico utilizando
E-mail: eav@if.ufrgs.br gem como alternativas para inserção de a matemática, nem toma como alvo o
conteúdos de natureza epistemológica estudo da cinemática, tantas vezes criti-
Instituto de Física, Universidade que, imbricados com conteúdos de física, cada de forma injusta. Por este motivo,
Federal do Rio Grande do Sul, Porto propiciam aos alunos uma visão mais discutiremos na última seção deste artigo
Alegre, RS, Brasil holística sobre a natureza e a construção um problema de cinemática para mostrar
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
do conhecimento científico. Nesse contex- que, quando ensinada apropriadamente,
to, ao discutir aspectos conceituais da mo- pode levar o aluno a compreender pontos
delagem científica, este trabalho pretende cruciais da modelagem científica, como as
fornecer subsídios para a elaboração de idealizações e as aproximações. Dessa for-
estratégias didáticas que permitam aos ma, nossa crítica se dirige, fundamental-
professores de física mente, às estratégias
caminhar em direção Estratégias didáticas baseadas didáticas que em mo-
a um ensino que vise na noção e uso de modelos mento algum estabe-
a compreensão, em surgem como alternativas para lecem uma conexão
que, como bem salien- inserção de conteúdos de entre o mundo abs-
tado por Eric Rogers, natureza epistemológica que, trato (ideal) e o mun-
“saber dar nomes no- imbricados com conteúdo de do concreto (real).
vos às coisas é algo física, propiciam aos alunos Esta desconexão entre
bem diferente de com- uma visão mais holística sobre teoria e realidade é um
preendê-las” [5]. Ou a natureza e a construção do problema freqüen-
seja, é preciso dar sen- conhecimento científico temente observado,
tido ao que se estuda: chegando a gerar nos
seja por meio da experimentação, seja por alunos posições disparatadas, como a
meio da conceitualização. Com isso não apontada por Mazur [7, p. 4], em um
se quer dizer que o uso da matemática na diálogo com um aluno seu:
solução de problemas da física deve ser
Professor Mazur, como eu de-
relegado, senão que a “matematização”
vo responder estas questões?
Tendo em vista as possíveis melhorias que uma da física não deve ser o ponto de partida
De acordo com o que você nos
adequada compreensão sobre o processo de mo- nem tampouco o objetivo final. Que sen-
ensinou, ou da forma que eu
delagem científica pode trazer ao ensino de tido faz para um aluno de ensino médio o
penso sobre estas coisas?
física, no presente trabalho apresentamos algu- problema a seguir, se o mesmo for pen-
mas relações existentes entre teoria e realidade, sado como o ponto de partida no estudo A passagem acima evidencia um obs-
através do uso de estratégias didáticas baseadas do movimento? táculo a ser superado no ensino de ciências
na noção de modelo científico. Para tanto, dis- em geral e da física em particular, seja ela
cutimos a partir de dois problemas típicos de
Dois móveis, A e B, movimentam-se clássica ou moderna: a incomensurabili-
física (cinemática e termodinâmica), encontra-
dos em livros de texto de nível médio, algumas sobre uma mesma trajetória. As fun- dade entre as visões de mundo que insis-
das idéias do filósofo da ciência Mario Bunge ções horárias do espaço para os movi- tem em coabitar a mente do aluno. Uma
sobre a construção e a testabilidade de modelos mentos são: sA = 20t + t2 e sB = 400 - sendo formada por concepções científicas
científicos. 10t, com s em metros e t em segundos. que parecem ter pouco a ver com a realidade

10 Modelagem e ensino de física Física na Escola, v. 9, n. 1, 2008


e a outra que, embora constituída de encaixados em teorias gerais, poderão se cedo ou mais tarde, falhem ao representar
concepções alternativas às científicas, for- constituir em modelos teóricos capazes de aspectos da realidade. Nesses casos, dize-
nece explicações para muitas das situações gerar resultados que possam ser confron- mos que o domínio de validade do modelo
do dia-a-dia. O desafio que se impõe a nós tados com os resultados empíricos prove- foi extrapolado. De forma semelhante, as
educadores está em reduzir o papel desem- nientes da experimentação. Porém, quão teorias gerais também possuem limi-
penhado pelas concepções alternativas em bem um modelo teórico representa o com- tações. O exemplo clássico é o da mecânica
favor das científicas. Nesse sentido, portamento de um objeto ou fenômeno newtoniana que descreve com boa apro-
acreditamos que a modelagem, mais do que físico? A adequação de modelos teóricos ximação o movimento de objetos macros-
uma ferramenta útil para a resolução de aos fatos depende basicamente: a) das cópicos usuais, porém, com o surgimento
problemas, pode contribuir de forma signi- questões que preten- de outras teorias, suas
ficativa para uma visão de ciência adequada dem responder; b) do A modelagem, mais do que leis e princípios de-
à prática científica moderna, cuja essência grau de precisão dese- uma ferramenta útil para a monstraram-se limi-
está na criação de modelos [8-10], e que jável em suas predi- resolução de problemas, pode tados para a descrição
foi bem exemplificada por Moreira [11] no ções; c) da quantidade contribuir de forma significativa do movimento nas
artigo sobre os 50 anos do modelo da dupla de informações dispo- para uma visão de ciência regiões de altas velo-
hélice para a estrutura do DNA. níveis sobre a realida- adequada à prática científica cidades (da ordem da
de; e d) das idealiza- moderna, cuja essência está na velocidade da luz), e de
A modelagem científica ções que são feitas a criação de modelos pequenas dimensões
Nos referimos à modelagem científica respeito dos seus refe- (escalas atômica e
como um processo de criação de modelos rentes. Adicionalmente, é desejável que os sub-atômica).
com a finalidade de compreender a reali- modelos sejam compatíveis com grande Daqui para frente, utilizaremos o ter-
dade. A Fig. 1 ilustra de forma esquemá- parte do conhecimento científico previa- mo “modelo conceitual” como sinônimo
tica as relações entre os diversos elementos mente estabelecido. Estes requisitos de de representação simplificada, idealizada,
envolvidos no processo de modelagem. cientificidade, embora necessários, de mo- de um sistema ou fenômeno natural, acei-
Na parte superior esquerda do mapa do algum são suficientes quando alcan- ta pela comunidade científica. Vejamos
conceitual, vê-se que a modelagem cientí- çados independentemente. Contudo, ne- um exemplo nesse sentido.
fica é, antes de tudo, um processo de busca nhum modelo teórico tem a pretensão de
por respostas. Assim, os cientistas pro- representar completamente qualquer sis- Considere a foto de um homem, um
duzem conhecimento científico formulan- tema ou fenômeno físico. Em geral, eles manequim de plástico e um macaco.
do questões de pesquisa sobre objetos (ou são concebidos para descrever certos fenô- Qual desses modelos é o mais adequado
fatos) reais ou supostos como tais. Por menos que exibem estrutura e/ou compor- para representar um homem? A res-
exemplo, átomos, moléculas, células, sis- tamento semelhantes. Por isso, possuem posta é: depende. A foto deve ser um
temas, processos, máquinas e sociedades, um domínio de validade. Por concentra- bom modelo para um pintor, pois re-
etc. Nesse processo, eles formulam hipó- rem-se em um número limitado de carac- trata a fisionomia da pessoa. O mane-
teses e elaboram modelos conceituais que, terísticas essenciais, espera-se que, mais quim é uma representação tridimen-

Figura 1. Mapa conceitual relacionando os diversos elementos presentes no processo de modelagem de aspectos da realidade.

Física na Escola, v. 9, n. 1, 2008 Modelagem e ensino de física 11


sional do corpo humano, sendo um o modelo. Entretanto, para outras condi- ilustra alguns exemplos de representações
bom modelo para um alfaiate. Já o ma- ções que não estas, os efeitos acima podem- feitas em física.
caco é fisiologicamente semelhante ao se tornar relevantes. No artigo em que dis- A fim de que se possa avaliar a aplica-
ser humano e deve ser o modelo pre- cutem a aerodinâmica da bola de futebol, bilidade dos diversos conceitos associados
ferido por um biólogo. [12, p. 44] Aguiar e Rubini [13] concluem que a traje- à modelagem, trataremos de exemplificar
tória descrita pela bola que Pelé chutou o modo como eles podem ser inseridos no
O exemplo acima ilustra também no jogo de futebol Brasil x Tchecoslová- contexto de sala-de-aula.
uma outra idéia muito importante quan- quia pela Copa de 1970 no México, pró-
do se trabalha com modelagem: a de que ximo à linha do meio-campo, em direção A discussão em sala-de-aula
não existem modelos corretos, mas sim à meta adversária - jogada que ficou co- Nosso objetivo aqui é apresentar uma
adequados. Alguns modelos conceituais nhecida como “o gol que Pelé não fez” - discussão baseada nas idéias da modela-
são mais adequados só pode ser entendida gem sobre dois problemas típicos de livros
do que outros por O computador, visto como uma ao levarmos em con- de texto de física, em nível médio, com a
enfatizarem certos as- ferramenta didática no auxílio ta os efeitos de resis- expectativa de que possam servir de exem-
pectos negligenciados da aprendizagem, pode fornecer tência do ar, incluindo plos para outras discussões nas demais
pelos demais. Para oportunidades ímpares para a a crise do arrasto, e o áreas da física. Vejamos o primeiro exem-
tanto, analisemos um contextualização, visualização e Efeito Magnus devido plo:1
exemplo de interesse apresentações das mais diversas à rotação da bola em
Um caminhão com 20,0 m de com-
da física: o movimen- situações físicas que possam dar torno do seu centro.
primento atravessa uma ponte com
to real de um projétil. sentido ao conceito físico que Apesar de não ser
80 m de extensão com velocidade cons-
Até que ponto esta esteja sendo trabalhado pelo o foco do presente tra-
tante de 72,0 km/h (20,0 m/s), como
situação pode ser re- professor balho, destacamos
ilustra a Fig. 2.
presentada por um que uma das formas
modelo de partícula em movimento para- mais promissoras para a integração de O fenômeno físico de interesse refere-
bólico sob a ação da força da gravidade? discussões sobre modelagem científica em se ao movimento dos corpos. Seu enun-
Em outros termos, faz sentido comparar sala de aula possa dar-se por meio da ciado contextualiza este fenômeno ao des-
os resultados de um modelo que despreza modelagem computacional aplicada ao crever a situação de um caminhão atra-
a resistência do ar, a variação da aceleração ensino de física. O computador, visto neste vessando uma ponte. A partir dessa con-
gravitacional, o empuxo, o raio de cur- processo como uma ferramenta didática textualização é possível formular algumas
vatura da Terra e a sua velocidade de rota- no auxílio da aprendizagem, pode fornecer questões: qual o peso máximo do cami-
ção, com os dados experimentais (para o oportunidades ímpares para a contextua- nhão que a ponte pode suportar? Qual o
alcance, a altura máxima, o tempo de vôo, lização, visualização e apresentações das valor do coeficiente de atrito entre os
etc.)? E a resposta poderia ser: faz sentido mais diversas situações físicas que possam pneus do caminhão e a ponte? Qual deve
dependendo do tipo de projétil, das condi- dar sentido ao conceito físico que esteja ser a velocidade do caminhão para atra-
ções iniciais de lançamento (posição e sendo trabalhado pelo professor. Para sa- vessar a ponte em um certo intervalo de
velocidades de translação e rotação) e do ber um pouco mais sobre este assunto, tempo? Qual o intervalo de tempo gasto
grau de precisão que se deseja. Ou seja, sugerimos a leitura dos trabalhos de Me- pelo caminhão para atravessar a ponte
todas essas hipóteses simplificadoras, ou deiros e Medeiros [14], Araujo et al. [15] com certa velocidade? As duas primeiras
melhor, idealizações, são válidas para e Dorneles et al. [16]. questões pressupõem o estudo das forças
condições muito específicas. Assim, um Em suma, o processo de modelagem envolvidas na situação real, enquanto nas
objeto de área “pequena”, densidade “mui- reside no fato de que teorias gerais, que duas últimas o foco está nas variáveis que
to maior” do que a do ar, velocidade li- em princípio não se pronunciam direta- descrevem o comportamento observável
near “baixa” e que gire “pouco” pode ser mente sobre a realidade, ao serem enxer- do caminhão ao atravessar a ponte, a sa-
descrito com boa aproximação por um tadas por modelos conceituais, produzem ber: o tempo, o comprimento e a veloci-
modelo baseado nas hipóteses acima. As representações de parte da realidade, isto dade do caminhão, e a extensão da ponte.
expressões entre aspas podem adquirir é, modelos teóricos que fornecem soluções Ou seja, enquanto as duas primeiras per-
diferentes interpretações, dependendo do a situações-problema particulares. A Ta- guntas envolvem a dinâmica do sistema,
grau de precisão que se deseja obter com bela 1, inspirada em Bunge [17, p. 35], as duas últimas são típicas de uma descri-

Tabela 1. Alguns exemplos de situações-problema que são modeladas pela física.


Situação-problema Modelo Teoria Modelo
a ser modelada conceitual geral teórico
Escoamento da água no Fluido contínuo sem viscosidade Mecânica dos fluidos Modelo de fluido ideal
interior de uma tubulação Fluido contínuo com viscosidade Modelo de fluido viscoso
Certa quantidade de gás contida Sistema de partículas, termicamente Mecânica estatística e Modelo de gás ideal clássico
num recipiente fechado isolado, que interagem via colisões mecânica clássica
perfeitamente elásticas Mecânica estatística e Modelo de gás ideal quântico
mecânica quântica
Comportamento da matéria Mecânica clássica e Modelo atômico de
em nível microscópico eletromagnetismo Rutherford
Sistema planetário
Movimento dos planetas do Mecânica clássica Modelo gravitacional de
Sistema Solar Newton

12 Modelagem e ensino de física Física na Escola, v. 9, n. 1, 2008


associado ao primeiro caso pode ser cal-
culado da seguinte forma

onde e% é o erro percentual associado à


idealização. De modo semelhante, o inter-
valo de tempo gasto pelo ponto material
para atravessar a ponte de 2000 m seria
de

Figura 2. Na parte superior, o instante em que o caminhão entra na ponte. Na parte Em conseqüência, o erro percentual
inferior, o instante em que o caminhão cruza completamente a ponte [18, p. 44]. associado à idealização, nesta situação,
seria de
ção cinemática do movimento. Nesse sen- dade durante o movimento, ou seja, o ca-
tido, a situação descrita acima pode ser minhão atravessará a ponte ao longo da .
objeto de estudo tanto da cinemática direção que coincide com o comprimento
A resposta ao item “c” do problema,
quanto da dinâmica. Contudo, em ambas: da mesma. Com base nestas idealizações,
com base na análise do erro percentual
a) delimitamos o sistema a ser estudado, obtemos uma representação esquemática
devido à redução das dimensões do cami-
selecionando os objetos relevantes que fa- (modelo conceitual) na qual o caminhão
nhão a um ponto material, poderia ser:
rão parte do modelo, isto é, os referentes; descreve um movimento retilíneo e uni-
embora a simplificação resulte, em am-
b) fazemos idealizações de modo a simpli- forme. Para determinar o intervalo de
bos os casos, em uma diferença de 1 s entre
ficar o tratamento do problema em função tempo gasto pelo caminhão ao atravessar
os intervalos de tempo considerando o ca-
das variáveis e dos parâmetros associados a ponte de 80 m de extensão (do item “a”
minhão ora como corpo extenso, ora
aos referentes; c) estimamos os erros do problema), basta aplicar o conceito de
como ponto material, o modelo de ponto
introduzidos pelas idealizações a fim de velocidade média à situação idealizada,
material alcança um grau de precisão acei-
alcançarmos um grau de precisão acei- lembrando que o deslocamento do
tável somente no caso em que a ponte pos-
tável; e d) discutimos a validação da solu- caminhão equivale à soma da extensão da
sui extensão de 2000 m. Outro aspecto
ção encontrada. Em suma, construímos ponte mais o seu próprio comprimento,
importante é a análise da razoabilidade das
um modelo teórico capaz de gerar resul- de modo que
soluções encontradas. Mesmo um erro de
tados que possam ser confrontados com
1%, 1 s, poderia ser relevante na situação
os dados empíricos e analisamos a razoa- ,
hipotética em que a ponte estivesse na imi-
bilidade dos mesmos. Do ponto de vista
nência de cair. Freqüentemente, esta aná-
da cinemática, os referentes envolvidos onde é a velocidade média do caminhão, lise acaba servindo como ponto de partida
nesta situação são dois: o caminhão e a Δx o seu deslocamento e Δt o intervalo de para a formulação de outras questões ini-
ponte. Se estivéssemos tratando o proble- tempo gasto para atravessar a ponte. De cialmente não consideradas, como, por
ma do ponto de vista da dinâmica tería- forma análoga, para determinar o inter- exemplo: e se considerássemos a possibi-
mos que incluir a Terra e, ao considerar a valo de tempo gasto pelo caminhão para lidade da ponte desmoronar? Neste caso,
resistência do meio, o ar como referentes, atravessar a ponte de 2.000 m (item “b”), parece razoável considerar o comprimento
também. Consideremos o problema do temos que do caminhão como sendo a distância en-
ponto de vista da cinemática, como pro-
tre os seus eixos dianteiro e traseiro para
posto por Gaspar [17], formulando as . fins de determinação do intervalo de tem-
seguintes questões:
po necessário para o caminhão atravessar
a) Qual o intervalo de tempo que o ca- Os intervalos de tempo acima foram efetivamente a ponte, antes que a mesma
minhão leva para atravessar comple- determinados considerando-se as dimen- se rompa. Este tipo de questionamento
tamente a ponte?; b) Supondo que a sões do caminhão, isto é, tratando-o como pode contribuir para a conexão entre teo-
ponte tenha 2000 m de extensão, qual corpo extenso. O item “c” do problema ria e realidade, para a conceitualização das
deve ser o intervalo de tempo gasto pelo sugere a possibilidade de se considerar o grandezas envolvidas e, provavelmente,
caminhão para atravessar a mesma?; caminhão como um ponto material. A fim para uma maior motivação do aluno.
c) Em qual das situações o caminhão de avaliarmos esta possibilidade, calcula- Por último, discutiremos de forma
pode ser considerado um ponto mate- remos o erro percentual introduzido por qualitativa um segundo problema de
rial? esta simplificação, ou seja, o erro devido termodinâmica:2
A fim de tratar a situação de forma à idealização que ignora as dimensões do Uma barra de alumínio de comprimen-
simplificada, faremos as seguintes ideali- caminhão, nos dois casos. Para a ponte to L = 80 cm e de seção reta A = 200
zações: a) desprezaremos todo o tipo de de 80 m, o intervalo de tempo gasto pelo cm2 tem uma de suas extremidades intro-
ondulação ao longo da ponte, consideran- ponto material ao atravessá-la seria de duzida em uma caldeira com água em
do-a perfeitamente plana; b) considera- ebulição. A outra extremidade da barra
.
remos o movimento do caminhão unifor- se encontra no ar ambiente, a 20 °C. De-
me, como o próprio enunciado afirma; e termine o fluxo de calor Φ que é transfe-
c) desprezaremos todo o tipo de sinuosi- Conseqüentemente, o erro percentual rido através da barra para o ar ambiente.

Física na Escola, v. 9, n. 1, 2008 Modelagem e ensino de física 13


O fenômeno físico de interesse deste poucas vezes se discute é a questão do significativa para uma melhor compre-
problema se refere ao processo de transfe- domínio de validade desta equação. A ensão do mundo em que vivemos e do
rência de energia, na forma de calor, deno- Fig. 3 ilustra de forma esquemática a si- desenvolvimento científico propriamente
minado condução. O enunciado acima tuação ideal em que: a) a barra é perfei- dito.
contextualiza este fenômeno ao descrever tamente homogênea; b) cada extremidade
a situação em que a extremidade de uma da barra é mantida em contato com um Agradecimento
barra de alumínio é introduzida em uma reservatório térmico à temperatura cons- Ao Prof. Alberto Gaspar e à Editora
caldeira com água a uma temperatura tante, com T2 > T1; c) a superfície lateral Ática, que cederam o uso da Fig. 2.
maior do que a temperatura do ambiente da barra está envolvida por paredes
em que se encontra o restante do corpo adiabáticas que evitam a perda de energia Notas
1
da barra. Com base nesta contextualiza- para o meio que a circunda; e d) a barra Adaptado de Alberto Gaspar, Física.
ção, o problema formula a seguinte ques- se encontra em regime estacionário, ou Mecânica (Editora Ática, São Paulo, 2000),
tão: qual o fluxo de calor Φ transferido seja, é possível associar a cada ponto da p. 44.
2
ao longo da barra? Em física, o fluxo de barra um valor de temperatura que não Adaptado de A. Máximo, e B. Alva-
calor é definido como sendo a quantidade depende do tempo, somente da sua loca- renga, Curso de Física (Scipione, São Paulo,
de energia ΔQ, na forma de calor, que atra- lização ao longo da barra. 2005), p. 105.
vessa a área de uma superfície qualquer Como conseqüência destas idealiza-
por unidade de tempo, ou seja ções, o fluxo de calor se mantém cons-
tante através de qualquer seção reta da
, barra, o que dá origem à equação apre- Referências
sentada anteriormente. Assim, a validade
[1] A. Cupani, e M. Pietrocola, Caderno
em que ΔQ se mede em joules e Δt em se- da equação para o fluxo de calor está rela-
Brasileiro de Ensino de Física 19
19, 100
gundos, no S.I. Logo, Φ se mede em J/s. cionada com o cumprimento das condi- (2002).
A explicação para a transferência de ener- ções apresentadas acima, o que, em geral, [2] I.A. Halloun, Modeling Theory in Science
gia de uma extremidade à outra da barra não se satisfaz. Logo, o que obtemos, na Education (Kluwer Academic Publish-
é fornecida pelo modelo cinético-molecu- verdade, é uma estimativa (valor apro- ers, Dordrecht, 2004).
lar da matéria, no qual o excesso de movi- ximado) do fluxo de calor ao longo da [3] R. Justi e J. Gilbert, International Jour-
mento dos constituintes microscópicos da barra de alumínio, pois: a) supomos a bar- nal of Science Education 22 22, 993
região mais aquecida da barra, à tempe- ra como sendo homogênea; b) tratamos (2000).
ratura T2, se transfere à região menos a caldeira e o ar ambiente como reserva- [4] O. Lombardi, Educacion en Ciencias 2 ,
aquecida, à temperatura T1, enquanto a tórios térmicos; c) desprezamos a perda 5 (1999).
de energia através da superfície lateral da [5] A. Medeiros, Física na Escola 8 :1, 40
diferença de temperatura se mantém en-
(2007).
tre elas. A partir de resultados experimen- barra; e d) supomos que a barra atinge a
[6] P.C.M. Penteado, Física. Conceitos e
tais, verifica-se que o fluxo de calor Φ ao condição de regime estacionário após um Aplicações (Moderna, São Paulo,
longo da barra pode ser calculado por curto intervalo de tempo. Por fim, esse 1998).
tipo de discussão levanta uma série de [7] E. Mazur, Peer Instruction: A User’s
, outras questões, tais como: existem reser- Manual (Prentice Hall, Upeer Saddle
vatórios térmicos? E paredes adiabáticas? River, 1997).
onde A é a área da seção reta da barra, Como podemos minimizar os efeitos aci- [8] M. Pietrocola, Investigações em Ensino
Δt = T2 - T1 é a diferença de temperatura ma, ao realizar um experimento? Se nos de Ciências 4 , 213-227 (1999).
restringirmos à mera aplicação de fór- [9] R.N. Giere, J. Bickle e R.F. Mauldin, Un-
entre as suas extremidades, e L é o seu
mulas, estaremos deixando de lado toda derstanding Scientific Reasoning
comprimento. A constante de proporcio-
a física envolvida no problema. (Thomson Wadsworth, Toronto,
nalidade k, na expressão acima, é a 2006).
condutividade térmica do material de que [10] E.A. Veit e I.S. Araujo, Educação 13 13,
Considerações finais
é feita a barra. Logo, a determinação do 51 (2004).
fluxo de calor transferido ao longo da Neste trabalho chamamos atenção pa- [11] I.C. Moreira, Física na Escola 4 :1, 5
barra é meramente uma questão de apli- ra o distanciamento entre o ensino de ciên- (2003).
cação da última expressão para Φ. O que cias e a realidade experienciada pelos estu- [12] L.H.A. Monteiro, Sistemas Dinâmicos
dantes, devido ao modo excessivamente (Livraria da Física, São Paulo, 2006).
formal como as disciplinas científicas vêm [13] C.E. Aguiar e G. Rubini, Revista
sendo abordadas. Esta abordagem faz uso Brasileira de Ensino de Física 26
26, 297
de regras e esquemas associados especifi- (2004).
camente ao contexto escolar de modo que [14] A. Medeiros e C.F. Medeiros, Revista
“dois mundos” disjuntos passam a coa- Brasileira de Ensino de Física 2424, 77
(2002).
bitar a mente dos estudantes. Torna-se,
[15] I.S. Araujo, E.A. Veit e M.A. Moreira,
então, necessário redirecionar o objetivo Revista Brasileira de Ensino de Física
do ensino de ciências para a reconstrução 26
26, 179 (2004).
conceitual da realidade, ou, em outros ter- [16] P.F.T. Dorneles, E.A. Veit e I.S. Araujo,
mos, dar sentido para aquilo que se quer Revista Brasileira de Ensino de Física
Figura 3. Situação idealizada em que cada ensinar. Nesse sentido, discutimos alguns 28
28, 487 (2006).
extremidade da barra metálica, de com- aspectos conceituais envolvidos no proces- [17] M. Bunge, Teoria e Realidade
primento L, encontra-se em contato com so de modelagem por acreditar que estra- (Perspectiva, São Paulo, 1974).
um reservatório térmico à temperatura tégias didáticas baseadas na noção e uso [18] A. Gaspar, Física. Mecânica (Ática, São
constante, com T2 > T1. de modelos podem contribuir de forma Paulo, 2000), v. 1.

14 Modelagem e ensino de física Física na Escola, v. 9, n. 1, 2008

Você também pode gostar