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o contexto científico contempo- a) Classifique os movimentos dos mó-
Rafael Vasques Brandão râneo, o processo de modelagem veis A e B. b) Determine a distância
E-mail: rafael.brandao@ufrgs.br assume um papel fundamental entre A e B no instante t = 0. c) Deter-
na busca por respostas que auxiliam o ho- mine o instante e o espaço em que os
Ives Solano Araujo mem a compreender o mundo em que vi- móveis se encontram. [6, p. 49]
E-mail: ives@if.ufrgs.br ve. Já no atual contexto educacional [1-4],
tem-se visto que estratégias didáticas Esta crítica não se refere à tentativa
Eliane Angela Veit baseadas na noção e uso de modelos sur- de explicar um fenômeno físico utilizando
E-mail: eav@if.ufrgs.br gem como alternativas para inserção de a matemática, nem toma como alvo o
conteúdos de natureza epistemológica estudo da cinemática, tantas vezes criti-
Instituto de Física, Universidade que, imbricados com conteúdos de física, cada de forma injusta. Por este motivo,
Federal do Rio Grande do Sul, Porto propiciam aos alunos uma visão mais discutiremos na última seção deste artigo
Alegre, RS, Brasil holística sobre a natureza e a construção um problema de cinemática para mostrar
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do conhecimento científico. Nesse contex- que, quando ensinada apropriadamente,
to, ao discutir aspectos conceituais da mo- pode levar o aluno a compreender pontos
delagem científica, este trabalho pretende cruciais da modelagem científica, como as
fornecer subsídios para a elaboração de idealizações e as aproximações. Dessa for-
estratégias didáticas que permitam aos ma, nossa crítica se dirige, fundamental-
professores de física mente, às estratégias
caminhar em direção Estratégias didáticas baseadas didáticas que em mo-
a um ensino que vise na noção e uso de modelos mento algum estabe-
a compreensão, em surgem como alternativas para lecem uma conexão
que, como bem salien- inserção de conteúdos de entre o mundo abs-
tado por Eric Rogers, natureza epistemológica que, trato (ideal) e o mun-
“saber dar nomes no- imbricados com conteúdo de do concreto (real).
vos às coisas é algo física, propiciam aos alunos Esta desconexão entre
bem diferente de com- uma visão mais holística sobre teoria e realidade é um
preendê-las” [5]. Ou a natureza e a construção do problema freqüen-
seja, é preciso dar sen- conhecimento científico temente observado,
tido ao que se estuda: chegando a gerar nos
seja por meio da experimentação, seja por alunos posições disparatadas, como a
meio da conceitualização. Com isso não apontada por Mazur [7, p. 4], em um
se quer dizer que o uso da matemática na diálogo com um aluno seu:
solução de problemas da física deve ser
Professor Mazur, como eu de-
relegado, senão que a “matematização”
vo responder estas questões?
Tendo em vista as possíveis melhorias que uma da física não deve ser o ponto de partida
De acordo com o que você nos
adequada compreensão sobre o processo de mo- nem tampouco o objetivo final. Que sen-
ensinou, ou da forma que eu
delagem científica pode trazer ao ensino de tido faz para um aluno de ensino médio o
penso sobre estas coisas?
física, no presente trabalho apresentamos algu- problema a seguir, se o mesmo for pen-
mas relações existentes entre teoria e realidade, sado como o ponto de partida no estudo A passagem acima evidencia um obs-
através do uso de estratégias didáticas baseadas do movimento? táculo a ser superado no ensino de ciências
na noção de modelo científico. Para tanto, dis- em geral e da física em particular, seja ela
cutimos a partir de dois problemas típicos de
Dois móveis, A e B, movimentam-se clássica ou moderna: a incomensurabili-
física (cinemática e termodinâmica), encontra-
dos em livros de texto de nível médio, algumas sobre uma mesma trajetória. As fun- dade entre as visões de mundo que insis-
das idéias do filósofo da ciência Mario Bunge ções horárias do espaço para os movi- tem em coabitar a mente do aluno. Uma
sobre a construção e a testabilidade de modelos mentos são: sA = 20t + t2 e sB = 400 - sendo formada por concepções científicas
científicos. 10t, com s em metros e t em segundos. que parecem ter pouco a ver com a realidade
Figura 1. Mapa conceitual relacionando os diversos elementos presentes no processo de modelagem de aspectos da realidade.
Figura 2. Na parte superior, o instante em que o caminhão entra na ponte. Na parte Em conseqüência, o erro percentual
inferior, o instante em que o caminhão cruza completamente a ponte [18, p. 44]. associado à idealização, nesta situação,
seria de
ção cinemática do movimento. Nesse sen- dade durante o movimento, ou seja, o ca-
tido, a situação descrita acima pode ser minhão atravessará a ponte ao longo da .
objeto de estudo tanto da cinemática direção que coincide com o comprimento
A resposta ao item “c” do problema,
quanto da dinâmica. Contudo, em ambas: da mesma. Com base nestas idealizações,
com base na análise do erro percentual
a) delimitamos o sistema a ser estudado, obtemos uma representação esquemática
devido à redução das dimensões do cami-
selecionando os objetos relevantes que fa- (modelo conceitual) na qual o caminhão
nhão a um ponto material, poderia ser:
rão parte do modelo, isto é, os referentes; descreve um movimento retilíneo e uni-
embora a simplificação resulte, em am-
b) fazemos idealizações de modo a simpli- forme. Para determinar o intervalo de
bos os casos, em uma diferença de 1 s entre
ficar o tratamento do problema em função tempo gasto pelo caminhão ao atravessar
os intervalos de tempo considerando o ca-
das variáveis e dos parâmetros associados a ponte de 80 m de extensão (do item “a”
minhão ora como corpo extenso, ora
aos referentes; c) estimamos os erros do problema), basta aplicar o conceito de
como ponto material, o modelo de ponto
introduzidos pelas idealizações a fim de velocidade média à situação idealizada,
material alcança um grau de precisão acei-
alcançarmos um grau de precisão acei- lembrando que o deslocamento do
tável somente no caso em que a ponte pos-
tável; e d) discutimos a validação da solu- caminhão equivale à soma da extensão da
sui extensão de 2000 m. Outro aspecto
ção encontrada. Em suma, construímos ponte mais o seu próprio comprimento,
importante é a análise da razoabilidade das
um modelo teórico capaz de gerar resul- de modo que
soluções encontradas. Mesmo um erro de
tados que possam ser confrontados com
1%, 1 s, poderia ser relevante na situação
os dados empíricos e analisamos a razoa- ,
hipotética em que a ponte estivesse na imi-
bilidade dos mesmos. Do ponto de vista
nência de cair. Freqüentemente, esta aná-
da cinemática, os referentes envolvidos onde é a velocidade média do caminhão, lise acaba servindo como ponto de partida
nesta situação são dois: o caminhão e a Δx o seu deslocamento e Δt o intervalo de para a formulação de outras questões ini-
ponte. Se estivéssemos tratando o proble- tempo gasto para atravessar a ponte. De cialmente não consideradas, como, por
ma do ponto de vista da dinâmica tería- forma análoga, para determinar o inter- exemplo: e se considerássemos a possibi-
mos que incluir a Terra e, ao considerar a valo de tempo gasto pelo caminhão para lidade da ponte desmoronar? Neste caso,
resistência do meio, o ar como referentes, atravessar a ponte de 2.000 m (item “b”), parece razoável considerar o comprimento
também. Consideremos o problema do temos que do caminhão como sendo a distância en-
ponto de vista da cinemática, como pro-
tre os seus eixos dianteiro e traseiro para
posto por Gaspar [17], formulando as . fins de determinação do intervalo de tem-
seguintes questões:
po necessário para o caminhão atravessar
a) Qual o intervalo de tempo que o ca- Os intervalos de tempo acima foram efetivamente a ponte, antes que a mesma
minhão leva para atravessar comple- determinados considerando-se as dimen- se rompa. Este tipo de questionamento
tamente a ponte?; b) Supondo que a sões do caminhão, isto é, tratando-o como pode contribuir para a conexão entre teo-
ponte tenha 2000 m de extensão, qual corpo extenso. O item “c” do problema ria e realidade, para a conceitualização das
deve ser o intervalo de tempo gasto pelo sugere a possibilidade de se considerar o grandezas envolvidas e, provavelmente,
caminhão para atravessar a mesma?; caminhão como um ponto material. A fim para uma maior motivação do aluno.
c) Em qual das situações o caminhão de avaliarmos esta possibilidade, calcula- Por último, discutiremos de forma
pode ser considerado um ponto mate- remos o erro percentual introduzido por qualitativa um segundo problema de
rial? esta simplificação, ou seja, o erro devido termodinâmica:2
A fim de tratar a situação de forma à idealização que ignora as dimensões do Uma barra de alumínio de comprimen-
simplificada, faremos as seguintes ideali- caminhão, nos dois casos. Para a ponte to L = 80 cm e de seção reta A = 200
zações: a) desprezaremos todo o tipo de de 80 m, o intervalo de tempo gasto pelo cm2 tem uma de suas extremidades intro-
ondulação ao longo da ponte, consideran- ponto material ao atravessá-la seria de duzida em uma caldeira com água em
do-a perfeitamente plana; b) considera- ebulição. A outra extremidade da barra
.
remos o movimento do caminhão unifor- se encontra no ar ambiente, a 20 °C. De-
me, como o próprio enunciado afirma; e termine o fluxo de calor Φ que é transfe-
c) desprezaremos todo o tipo de sinuosi- Conseqüentemente, o erro percentual rido através da barra para o ar ambiente.